REFORMA SANITRIA BRASILEIRA:
CONTRIBUIO PARA A COMPREENSO E CRTICA.
JAIRNILSON SILVA PAIM
SALVADOR, setembro de 2007
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE SADE COLETIVA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA
REFORMA SANITRIA BRASILEIRA:
CONTRIBUIO PARA A COMPREENSO E CRTICA.
Jairnilson Silva Paim
Salvador, setembro de 2007
3
JAIRNILSON SILVA PAIM
REFORMA SANITRIA BRASILEIRA:
CONTRIBUIO PARA A COMPREENSO E CRTICA.
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva do Instituto de Sade Coletiva da Universidade Federal da Bahia, como parte dos requisitos para obteno do ttulo de "Doutor em Sade Pblica", sob a orientao da Profa. Carmen Fontes Teixeira.
Salvador Setembro de 2007
4
Ficha Catalogrfica Elaborao: Maria Creuza F. Silva CRB 5-996
______________________________________________________________________
P 143 Paim, Jairnilson Silva.
Reforma sanitria brasileira: contribuio para a compreenso e crtica / Jairnilson Silva Paim. Salvador: J.S. Paim, 2007.
300p.
Orientadora: Profa. Dra. Carmen Fontes Teixeira.
Tese (doutorado) Instituto de Sade Coletiva, Universidade Federal da Bahia.
1. Reforma Sanitria. 2. Reforma Setorial. 3. Reforma dos Servios de Sade. 4. Planejamento em Sade. 5. Poltica de Sade. 6. Sade Pblica. I. Titulo.
CDU 614(81) ______________________________________________________________
5
JAIRNILSON SILVA PAIM
Reforma Sanitria Brasileira: Contribuio para a
compreenso e crtica.
Data de defesa: 19 de setembro de 2007.
Banca Examinadora:
______________________________________________________________________
Profa. Carmen Fontes Teixeira - ISC/UFBA Orientadora
_____________________________________________________________
Prof. Eduardo Luiz Andrade Mota - ISC/UFBA
_______________________________________________________________________
Profa. Lgia Maria Vieira da Silva - ISC/UFBA
_______________________________________________________________________
Prof. Hsio Albuquerque Cordeiro - Universidade Estcio de S, Rio de Janeiro
_______________________________________________________________________
Profa. Lilia Blima Schraiber - Faculdade de Medicina - USP.
Salvador
Setembro de 2007
6
Para Teca, inclusive por me convencer que valia a pena.
A Marcele e Maurcio, por seguirem ensinando.
E ao Luquinha, com quem continuo aprendendo.
7
AGRADECIMENTOS
Quem me viu sozinho nos ltimos seis meses, digitando em minha sala, no fazia a
menor idia de que realizava um trabalho coletivo. Contudo, mesmo uma pesquisa que
dispensava o trabalho de campo envolveu um conjunto de pessoas que,
generosamente, contriburam de forma direta ou indireta para o alcance deste produto.
Neste momento quero expressar-lhes a minha mais profunda gratido, ainda que o
espao no permita registrar todos os nomes que gostaria.
A Carmen Teixeira, por acolher, com um entusiasmo que nem eu mesmo entendia, a
idia, o projeto e o candidato que se submetia seleo do doutorado. A sua
orientao sensvel, ressaltada por muitos dos seus alunos, ajudou-me e comoveu-me.
A Solange Viana, pelas viagens cuidadosas aos relatrios das conferncias nacionais de
sade e editoriais do Cebes e da Abrasco, alm das discusses calorosas sobre as
interessantes descobertas.
A Creuza, nossa querida bibliotecria, pela disposio permanente de me ajudar nas
revises da literatura e das referncias bibliogrficas, e ao solcito Marcelo Rocha, pelo
apoio na consulta ao Banco de teses da Capes, alm do empenho em contribuir,
presentemente, com a reconstituio do Cebes na Bahia.
A Ana Cristina e Na pela pacincia e arte final da digitao. E a Anunciao e
Soninha pela diligncia com que aliviaram a minha inapetncia de lidar com a
burocracia acadmica.
A Ins Dourado pelo afetuoso incentivo no tempo certo e a Lgia Vieira da Silva,
Conceio Costa, Glria Teixeira e Sebastio Loureiro pelo apoio de sempre.
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RESUMO
Passados 20 anos da 8. Conferncia Nacional de Sade e trs dcadas da fundao do
Centro Brasileiro de Estudos de Sade, justifica-se uma anlise sobre o projeto,
processo e perspectivas da Reforma Sanitria Brasileira. Desse modo, o objetivo da
presente investigao analisar a emergncia e o desenvolvimento de uma Reforma
Sanitria numa formao social capitalista, seus fundamentos e caractersticas,
discutindo os desafios da prxis. Partindo de quatro tipos de prxis e de mudanas em
sociedades - reforma parcial, reforma geral, movimentos polticos revolucionrios e
revoluo social total - defende-se a tese segundo a qual a Reforma Sanitria Brasileira,
como fenmeno social e histrico, constitui uma reforma social. O estudo tem como
hiptese que a Reforma Sanitria Brasileira, embora proposta como prxis de reforma
geral e teorizada para alcanar a revoluo do modo de vida, apresentaria como
desfecho uma reforma parcial - setorial e institucional. Realizou-se um estudo de caso,
a partir de pesquisa documental, em duas conjunturas, tendo como componente
descritivo o ciclo idia-proposta-projeto-movimento-processo e, como componente
explanatrio, a anlise do desenvolvimento da sociedade brasileira, recorrendo ao
referencial "gramsciano", particularmente as categorias de revoluo passiva e
transformismo. Os resultados apontam para uma reforma parcial cuja prxis tenderia
manipulao poltico-ideolgica na medida em que aponta para mudanas, mas mantm
o status quo. Equivale ao binmio aluso-iluso presente nas prticas ideolgicas,
quando alude aos problemas de sade e da organizao dos servios e ilude quanto
soluo. Procura-se acentuar a relevncia do elemento jacobino no caso de uma
Reforma Democrtica da Sade, cuja radicalizao da democracia contribuiria para a
alterao da correlao de foras, desequilibrando o binmio conservao-mudana em
benefcio do segundo e conferindo um carter mais progressista para a revoluo
passiva. Esta poderia, devidamente compreendida, compor um critrio para os novos
sujeitos sociais constitudos mudarem a direo do transformismo.
9
ABSTRACT
Twenty years after the accomplishment of the Eighth National Health Conference and
three decades after the foundation of The Brazilian Center for Health Studies it is
justified an analysis on the project, process and perspectives of Brazilian Health Sector
Reform. Therefore, the aim of the present research is to analyze the emergence and the
development of a Health Sector Reform inside a capitalist social formation, its
foundations and characteristics, discussing the praxis challenges. The point of depart
are four types of praxis and social changes: partial reform, general reform,
revolutionary political movement and global social revolution. The thesis that is
supported is that the Brazilian Health Sector Reform, as a social and historic
phenomenon, is a social Reform. The hypothesis of the study is that the Brazilian Health
Sector Reform, even though proposed as a global reform in its praxis and theorized to
reach a revolution in peoples way of life, has became a partial reform sectorial and
institutional. It was carried out a case study research based on documental analysis
over two conjunctures. The descriptive component of the study was the cycle: idea-
proposal-project-mouvement-process, and the explanatory one was the analysis of
Brazilian societys development based on Gramscis theoretical referential, particularly
the categories of passive revolution and transformism. The results points in the
direction of a partial reform whose prxis would tend to a political and ideological
manipulation as it point to changes and at the same time preserves the status quo. Its
equivalent to the binomen allusion-illusion present in the ideological practice when one
alludes to health problems and health services organization`s problems and, at the
same time, illudes towards it`s solution. The importance of the Jacobin compound in a
Democratic Health Sector Reform is discussed. In this case, the democratic
radicalization would contribute to change the correlation of forces, imbalancing the
binomen conservation-change in the benefit of the the latter and conferring a more
progressive characteristic for the passive revolution. The latter could be, if well
understood, a criteria for the new social subjects change transformism`s direction.
10
SUMRIO
1 Introduo 20
2 Elementos conceituais e tericos 31
3 Dinmica da pesquisa 46
4 Contextualizao: Estado, sociedade, cultura e pensamento social no
Brasil 52
5 Conjuntura da transio democrtica: da criao do Cebes Constituio. 69
5.1 O nascimento do Cebes 75
5.2 O Programa Nacional de Servios Bsicos de Sade (PREV-SADE) 79
5.3 O Plano de Reorientao da Assistncia Mdica no mbito da
Previdncia Social (o Plano do CONASP). 82
5.4 As Aes Integradas de Sade (AIS). 89
5.5 A 8a. Conferncia Nacional de Sade. 92
5.6 A Comisso Nacional da Reforma Sanitria (CNRS). 113
5.7 Sistema Unificado e Descentralizado de Sade (SUDS). 120
5.8 O processo constituinte 124
6 Reforma Sanitria como objeto de reflexo terico-conceitual 134
6.1 Concepes de sade 144
6.2 As concepes de prticas de sade e organizao de servios 147
6.3 Afinal, o que Reforma Sanitria? 149
7 Conjuntura ps-constituinte 153
7.1 Final do perodo Sarney 153
7.2 Perodo Collor 158
7.3 Perodo Itamar 165
7.4 Perodo FHC 172
11
7.5 Perodo Lula 201
8 Estratgias, foras polticas, bases sociais e prxis da Reforma Sanitria 224
9 Reforma Sanitria: uma ilustrao da revoluo passiva no Brasil? 241
9.1 As conquistas da Reforma 243
9.2 As promessas no cumpridas 245
9.3 Revoluo passiva e Reforma Sanitria: a sua mais completa traduo? 247
9.4 Dilogo com a "hiptese concorrente" 250
9.5 Reforma Sanitria ou Retrica Sanitria? 255
9.6 O "fantasma da classe ausente" e os novos sujeitos sociais 257
9.7 A Reforma Sanitria Brasileira no um "movimento desnaturado" 259
9.8 Perspectivas da Reforma Sanitria no Brasil. 260
10 Concluses. 270
11. Referncias Bibliogrficas 274
12
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
5a. CNS: 5a Conferncia Nacional de Sade
7a. CNS: 7a. Conferncia Nacional de Sade
8a. CNS: 8a. Conferncia Nacional de Sade
9a. CNS: 9a. Conferncia Nacional de Sade
10a. CNS: 10a. Conferncia Nacional de Sade
11a. CNS: 11a. Conferncia Nacional de Sade
12a. CNS: 12a. Conferncia Nacional de Sade
ABEN: Associao Brasileira de Enfermagem
ABRES: Associao Brasileira de Economia da Sade
ABI: Associao Brasileira de Imprensa
ABRAMGE: Associao Brasileira de Medicina de Grupo
ABRASCO: Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva
AID: Agency for International Dvelopment
AIDS: Sndrome da Imunodeficincia Adquirida
AIS: Aes Integradas de Sade
ALAMES: Associacin Latinoamericana de Medicina Social
ANPASA: Associao Nacional do Ministrio Pblico Federal em Defesa da Sade
AMB: Associao Mdica Brasileira
AMS: Assistncia Mdica Supletiva
ANDES: Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior
ANMTR: Associao Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais
ANS: Agncia Nacional de Sade Suplementar
ANVISA: Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria
APM: Associao Paulista de Medicina
APSP: Associao Paulista de Sade Pblica
ARENA: Aliana Renovadora Nacional
BID: Banco Interamericano de Desenvolvimento
BIRD: Banco Internacional para a Reconstruo e o Desenvolvimento (Banco Mundial)
13
BNDES: Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social
CAPES: Coordenao do Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
CEBES: Centro Brasileiro de Estudos de Sade
CEBRAP: Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento
CFM: Conselho Federal de Medicina
CGT: Confederao Geral dos Trabalhadores
CONAM: Confederao Nacional das Associaes de Moradores
CNA: Confederao Nacional da Agricultura
CNC: Confederao Nacional do Comrcio
CNI: Confederao Nacional das Indstrias
CIB: Comisso Intergestores Bipartite
CIPLAN: Comisso Interministerial de Planejamento e Coordenao
CIS: Comisso Interinstitucional de Sade
CIMS: Comisso Interinstitucional Municipal de Sade
CIT: Comisso Intergestores Tripartite
CNBB: Confederao Nacional de Bispos do Brasil
CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
CONASP: Conselho Nacional de Administrao da Sade Previdenciria
CONASS: Conselho Nacional de Secretrios de Sade
CONASEMS: Conselho Nacional de Secretrios Municipais de Sade
CNI: Confederao Nacional da Indstria
CNRS: Comisso Nacional da Reforma Sanitria
CNS: Conferncia Nacional de Sade
CODI: Centro de Operaes de Defesa Interna
COFINS: Contribuio para o Financiamento da Seguridade Social
CONSU: Conselho de Sade Suplementar
CONTAG: Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
DIESAT: Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisa de Sade e dos Ambientes
do Trabalho
DEM: Democratas
DMP: Departamento de Medicina Preventiva
14
DOI: Destacamento de Operaes de Informaes
DOU: Dirio Oficial da Unio
EC: Emenda Constitucional
ECEM: Encontro Cientfico dos Estudantes de Medicina
ENSP: Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca
FAT: Fundo de Amparo do Trabalhador
FBH: Federao Brasileira de Hospitais
FEF: Fundo de Estabilizao Fiscal
FHC: Fernando Henrique Cardoso
FIOCRUZ: Fundao Oswaldo Cruz
FMI: Fundo Monetrio Internacional
FSE: Fundo Social de Emergncia
FUNAI: Fundao Nacional do ndio
HIV: Vrus da Imunodeficincia Humana
HMO: Health Mantenance Organization
IAHP: International Association of Health Policy
IMS: Instituto de Medicina Social
INAMPS: Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social
INSS: Instituto Nacional do Seguro Social
IPEA: Instituo de Pesquisa Econmica Aplicada
MAB: Movimento dos Atingidos por Barragens
MAC: Mdia e Alta Complexidade
MEC: Ministrio da Educao
MOPS: Movimento Popular de Sade
MPA: Movimento dos Pequenos Agricultores
MPAS: Ministrio da Previdncia e Assistncia Social
MRSB: Movimento da Reforma Sanitria Brasileira
MS: Ministrio da Sade
MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
OAB: Ordem dos Advogados do Brasil
OEA: Organizao dos Estados Americanos
15
OMC: Organizao Mundial do Comrcio
OMS: Organizao Mundial da Sade
ONGs: Organizaes No Governamentais
ONU: Organizao das Naes Unidas
OPAS: Organizao Pan-Americana da Sade
PAIS: Programa das Aes Integradas de Sade
PAISM: Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher
PARES: Programa de Apoio Reforma Sanitria
PAS: Plano de Assistncia Sade
PCB: Partido Comunista Brasileiro
PC do B: Partido Comunista do Brasil
PDT: Partido Democrtico Trabalhista
PECE: Programa Especial de Controle da Esquistossomose
PEC: Proposta de Emenda Constitucional
PECs: Programas de Extenso de Cobertura
PESES: Programa de Estudos Scio-Econmicos de Sade
PFL: Partido da Frente Liberal
PIASS: Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento do Nordeste
PIB: Produto Interno Bruto
PITS: Programa de Interiorizao do Trabalho em Sade
PMDB: Partido do Movimento Democrtico Brasileiro
PND: Plano Nacional de Desenvolvimento
PNI: Programa Nacional de Imunizaes
PREV-SADE: Programa Nacional de Servios Bsicos de Sade
PRONAN: Programa Nacional de Alimentao e Nutrio
PSB: Partido Socialista Brasileiro
PSDB: Partido da Social Democracia Brasileira
PSOL: Partido Socialismo e Liberdade
PSSP: Prestao de Servios s Pessoas
PSTU: Partido Socialista de Trabalhadores Unificado
PT: Partido dos Trabalhadores
16
PTB: Partido Trabalhista Brasileiro
REDE UNIDA: Uma Nova Iniciativa - Integrao Docente Assistencial
REME: Movimento de Renovao Mdica
RENAME: Relao Nacional de Medicamentos Essenciais
RSB: Reforma Sanitria Brasileira
SAMU: Servio de Atendimento Mvel de Urgncia
SBPC: Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia
SAS: Secretaria de Ateno Sade / Secretaria de Assistncia Sade at 2003
SCMA: Saneamento e Controle do Meio Ambiente
SEPLAN: Secretaria de Planejamento
SES: Secretaria Estadual de Sade
SESAC: Semana de Estudos de Sade Comunitria
SEMSAT: Semana de Sade do Trabalhador
SNI: Servio Nacional de Informaes
SNS: Sistema Nacional de Sade
SSAA: Atividades de Apoio ao Sistema Nacional de Sade
SUDS: Sistemas Unificados e Descentralizados de Sade
SUS: Sistema nico de Sade
SUSEP: Superintendncia de Seguros Privados
UERJ: Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFBA: Universidade Federal da Bahia
UFMG: Universidade Federal de Minas Gerais
UnB: Universidade de Braslia
UNE: Unio Nacional dos Estudantes
UNICAMP: Universidade Estadual de Campinas
USP: Universidade de So Paulo
USAID: United States Agency International Development
USL: Unidade Sanitria Local
VISA: Vigilncia Sanitria
17
APRESENTAO
O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (no s pelo saber em si, mas tambm pelo objeto do saber), isto , em acreditar que o intelectual possa ser um intelectual (e no um mero pedante) mesmo quando distinto do povo-nao, ou seja, sem sentir as paixes elementares do povo, compreendendo-as e, portanto, explicando-as e justificando-as em determinada situao histrica, bem como relacionando-as dialeticamente com as leis da histria, com uma concepo do mundo superior, cientfica e coerentemente elaborada, com o 'saber'; no se faz poltica-histria sem esta paixo, isto , sem esta conexo sentimental entre intelectuais e povo-nao (GRAMSCI, 1999, p.222).
O pensamento do filsofo militante pode facultar um dilogo com os leitores deste
trabalho. A natureza acadmica do estudo e a finalidade de pesquisa no podem ocultar
a paixo do autor pelo tema ao pretender contribuir com a sua compreenso e crtica.
No se trata apenas de objetivar um sujeito supostamente objetivante, como
recomendam os que exercem o ofcio de socilogo. Isto necessrio, mas no
suficiente. Trata-se de reafirmar uma "conexo sentimental" com as lutas sociais do
povo brasileiro, admitindo que certos intelectuais podem ser seus aliados fundamentais
quando dedicam as suas vidas a determinadas causas para as quais valha a pena lutar.
Assim a Reforma Sanitria Brasileira e por isso o estudo segue um caminho inspirado
na tese O Dilema Preventivista. Contribuio para a compreenso e crtica da Medicina
Preventiva. Alm de uma homenagem ao intelectual, militante e amigo Antnio Srgio
da Silva Arouca, falecido em 2003, trata-se de um justo reconhecimento por duas
grandes obras que legou sociedade brasileira: a tese de doutorado na qual realizou
um giro crtico sobre a Medicina Preventiva, propiciando uma prtica terica e uma
prtica poltica cuja sntese se expressa na Sade Coletiva, como campo de
conhecimento e mbito de prticas; e o projeto da Reforma Sanitria, no qual se
revelou como um dos seus mais brilhantes autores e atores, seja na formulao, seja na
construo.
18
A idia deste estudo surgiu de um caminho inesperado, juntando Srgio Arouca e o
Joo Ubaldo Ribeiro. Do primeiro apareceu o sub-ttulo, derivado do ttulo da sua tese
de doutoramento. Do segundo saiu uma ttica do seu jeito de escrever: primeiro
inventando o ttulo e depois tecendo o texto. Espero ao longo do estudo corresponder
pelo menos ao dbito da investigao em relao tese de Arouca. Quanto ao escritor
baiano, continuo lhe devendo a ironia com que trata os poderosos do dia e o que
aprendi com Viva o Povo Brasileiro.
A pergunta inicial da pesquisa foi aparentemente simples, ainda que para os
empiricistas preocupados em recortar o objeto da forma mais precisa possvel possa
parecer extremamente complexa e pretensiosa: Por que a Reforma Sanitria Brasileira
no cumpriu o que prometeu? Da em diante, o caminho do pensamento e alguma
experincia com a elaborao de projetos foram delineando a pesquisa. Apesar de uma
preocupao com a busca de evidncias empricas, o estudo procura fundamentar
teoricamente a tese segundo a qual o proposta da Reforma Sanitria corresponde a
uma reforma social, explicitando algumas questes sobre seus limites e possibilidades.
Nesse particular, lana mo de uma "hiptese explicativa", recorrendo a certas
categorias gramscianas para a anlise do desenvolvimento da sociedade brasileira de
onde nasceu tal proposta.
Na universidade continuo pensando na questo da veracidade, antes de mais nada.
Nesse sentido no considero este trabalho suficiente para explicar os problemas e
desafios da Reforma Sanitria. O tempo em que foi realizado e o recurso exclusivo
pesquisa documental podem comprometer a anlise de certos fatos e favorecer
equvocos na interpretao de outros. No fcil tornar estranho um objeto familiar e
sempre se corre o risco da "iluso da transparncia", como ensinam os cientistas
preocupados com aspectos epistemolgicos e metodolgicos da investigao em
cincias sociais. Mas neste particular a teoria e a vigilncia crtica podem ceder alguma
ajuda.
19
Fui um dos fundadores do Cebes e da Abrasco, participando lateralmente em algumas
das gestes e militando desde 1976 no movimento da democratizao da sade,
conhecido como "movimento sanitrio". No fui um dirigente poltico mas fiz poltica,
nessa perspectiva, em diferentes espaos com distintos sujeitos. Redigi alguns dos
textos que se transformaram em posies pblicas das entidades do movimento,
algumas delas examinadas neste estudo. Enfrentei, tambm, algumas polmicas, orais
ou escritas, com companheiros, dirigentes ou adversrios. Nunca pertenci a partido
poltico, mas sempre tive lado: de preferncia, onde bate o corao.
No sou um cientista poltico, mas como militante e intelectual sinto-me obrigado a
buscar a contribuio das cincias sociais para analisar os impasses da Reforma
Sanitria Brasileira. Portanto, sei que no posso ser neutro neste estudo, mas tenho o
dever de ser o mais objetivo possvel. Da o esforo de buscar, o mximo que pude,
documentos e publicaes para ilustrarem fatos e interpretaes, cotejando com outros
existentes. No mais, os captulos referentes ao quadro terico e dinmica da pesquisa
devero explicitar os passos e cuidados adotados.
Um grande artista tem que estar feliz.
Sambando na lama e salvando o verniz.
(...)
E o tal ditado, como ?
Festa acabada, msicos a p.
(Chico Buarque)1
1 Chico Buarque. Cantando no Tor. In: Buarque, C. Carioca ao Vivo, 2007 (Biscoito Fino).
20
1. Introduo
No tenho medo de que meu tema possa, em exame mais detalhado, parecer trivial. Receio apenas que eu possa parecer presunoso por ter levantado uma questo to vasta e to importante (CARR, 2002, p.44).
A crtica realizada Medicina Preventiva e ao "dilema preventivista" no incio dos anos
1970 (AROUCA, 2003) apontava, entre outras limitaes, o fato de estarem
circunscritos a um movimento ideolgico, no investindo na produo de conhecimentos
nem na mudana das relaes sociais. Ao serem examinadas as possibilidades de
superao do dilema identificado, foi proposto o desenvolvimento de uma prtica
terica e de uma prtica poltica. Na dcada seguinte foi possvel constatar alguns
desdobramentos daquela tese. A partir da crtica Medicina Preventiva ocorreu uma
aproximao terico-conceitual com a Medicina Social, evoluindo para a constituio da
Sade Coletiva, enquanto campo cientfico comprometido com a prtica terica (PAIM,
2006a). De forma equivalente, a idia de uma prtica poltica voltada para a mudana
das relaes sociais, tomando a sade como referncia, resultou na proposta da
Reforma Sanitria (TEIXEIRA, 1988).
Nesse sentido, o 1o. Congresso Brasileiro de Sade Coletiva, realizado no Rio de Janeiro
em 1986, pode ser reconhecido como um momento privilegiado para a identificao do
encontro entre as prticas terica e poltica e para demonstrar a organicidade entre a
Sade Coletiva e a RSB. Em conferncia proferida naquele evento Giovanni Berlinguer
indagou: O que uma Reforma Sanitria?
Ao destacar que as revolues e as reformas no se exportam, defendeu a idia de
estudar a histria das "reformas sanitrias", tal como foi feito em relao s revolues
cientficas (KUHN, 1975). Enumerou um conjunto de aspectos que poderiam ser
investigados nessa perspectiva: os conhecimentos cientficos; as avaliaes das doenas
e dos direitos dos homens; as profisses e as formas de organizao sanitria; a
conscincia popular; e a integrao entre sade e sociedade. Desse modo, mencionou
21
algumas reformas ou revolues: a Reforma Hipocrtica que separou as cincias
mdicas da religio e a profisso mdica do sacerdcio, alm de estabelecer uma tica
prpria para os mdicos e de reconhecer as relaes entre sade, ambiente e
instituies polticas, bem como a norma como forma de preveno; a Reforma
Sanitria da passagem do sculo XIX para o XX, com o desenvolvimento das cincias
mdicas, descobrimentos no campo das doenas infecciosas e do trabalho, condies de
vida nas cidades, relao entre moradia e doena, incluindo as contribuies dos
informes mdicos e de inspetores de fbricas utilizados no primeiro volume do "Capital"
de Marx, de qumicos como Pasteur e de cientistas como Oswaldo Cruz; e registrou,
ainda, uma fase nova de "Reforma Sanitria" envolvendo "a tendncia contraditria de
conquistar o direito universal sade e construir servios nacionais ou sistemas
integrados de sade" (BERLINGUER, 1987).
Nessas "reformas sanitrias" contemporneas haveria dois exemplos histricos de
construo: como conseqncia de uma revoluo poltica e social (China e Cuba)2 ou
como parte de um processo vinculado a uma "revoluo democrtica" no qual "as
classes trabalhadoras e a intelectualidade comprometida podem exercer um papel de
vanguarda". Identificava o caso da Itlia nesse segundo grupo de pases, podendo "ser
considerada um dos caminhos da 'longa marcha' atravs das instituies e do processo
de transformao da sociedade e o Estado" (BERLINGUER, 1987).3
No Brasil, surgiu, em meados da dcada de setenta, um movimento postulando a
democratizao da sade, justamente num perodo no qual novos sujeitos sociais
emergiram nas lutas contra a ditadura. Estudantes, professores universitrios, setores
populares e entidades de profissionais de sade passaram a defender mudanas na
2 Antes de Cuba organizar o sistema de servios de sade mais bem estruturado entre os pases das Amricas, aps 1959, (ROJAS OCHOA & LPEZ SERRANO, 2000) e a China valorizar a medicina tradicional com a moderna, utilizando em larga escala os chamados "mdicos de ps descalos" (DROBNY, 1974), cabe mencionar a reestruturao dos servios de sade realizada aps a Revoluo Bolchevique na Rssia, em 1917, incluindo o setor sade nos planos qinqenais (LISSTSINE & BATGUINE, 1980). 3 Nesse segundo grupo poderia ser citada a implantao do National Health Service no Reino Unido em 1948, primeiro sistema estatal em pas capitalista e uma das conseqncias do Relatrio Beveridge de 1942 que fundamentou o Welfare State, alm das reformas canadense (1974) e daquelas resultantes da queda das ditaduras da Espanha e de Portugal naquela mesma dcada (ROEMER, 1985).
22
sade, culminando com a criao do Centro Brasileiro de Estudos de Sade (CEBES) em
1976 (FLEURY, 1997).
A conquista da democracia em 1985 possibilitou a realizao da 8. Conferncia
Nacional de Sade no ano seguinte. Nesse evento reafirmou-se o reconhecimento da
sade como um direito de todos e dever do Estado, recomendando-se a organizao de
um Sistema nico de Sade (SUS) descentralizado (com atribuies especficas para a
Unio, estados e municpios) e democrtico (garantindo a participao social na
formulao das polticas de sade, no acompanhamento e na avaliao).
A partir dessa Conferncia, a sociedade brasileira passou a dispor de um corpo
doutrinrio e um conjunto de proposies polticas voltados para a sade que
apontavam para a democratizao da vida social e para uma Reforma Democrtica do
Estado. E justamente esse processo de democratizao de sade que naquela poca
cunhou-se o nome de Reforma Sanitria (PAIM, 1987b).
Diante das primeiras reflexes tericas sobre essa proposta, o intelectual e homem de
ao, uma das lideranas daquele movimento, assim se expressou:
Discutir a REFORMA SANITRIA nos seus aspectos conceituais, ideolgicos, polticos e institucionais , atualmente, tarefa fundamental de todos aqueles que, em diferentes pases como o Brasil, Itlia, Bolvia, Espanha, Portugal etc. esto comprometidos com a democratizao das estruturas polticas e a melhoria da qualidade de vida dos cidados. Esta tarefa mais que fundamental, torna-se imprescindvel para ns que buscamos, nas lutas pela Reforma Sanitria, construir as base do socialismo democrtico que almejamos para o Brasil (AROUCA, 1989b).
Passados 20 anos da histrica 8. Conferncia Nacional de Sade (CNS) e do 1o.
Congresso Brasileiro de Sade Coletiva, faz-se necessria a realizao de uma anlise
crtica que permita rever paradigmas, impasses e perspectivas da Reforma Sanitria,
considerando a situao concreta vivida pela sociedade brasileira no incio do sculo 21.
Caberia investigar essa proposta procurando responder a um conjunto de questes:
Que se entende como Reforma Sanitria? Quais as suas bases conceituais, tericas e
polticas? Em que condies foi gestada a proposta e formulado o projeto? Quais as
23
estratgias pensadas e acionadas no momento da formulao e da implantao? Que
dilemas enfrentou na sua concepo e no seu processo? Seria a Reforma Sanitria
Brasileira (RSB) uma promessa no cumprida 4 pelas foras polticas que apostaram no
processo de redemocratizao do pas? Que perspectivas se colocam, atualmente, para
tal projeto?
Desse modo, as perguntas centrais a orientar a pesquisa foram: como se
desenvolveram a proposta, o projeto e o processo da RSB5 e por que seria uma
promessa no cumprida pelas foras que atuaram nos perodos anterior e posterior
Constituinte? Outras perguntas conexas, tambm, poderiam ser explicitadas: Em que
condies poder-se-ia afirmar que a RSB representaria uma promessa no cumprida e
por que? Em que medida poderiam ser identificados, na atualidade, fatos produzidos
em funo do projeto da RSB? Ainda seria pertinente falar em RSB, tal como evocada
em position papers (ABRASCO, 2002)? Haveria elementos comuns com outros
processos de mudana, a exemplo da Reforma Agrria? Que atores sociais foram
capazes de sustent-lo, por quanto tempo, e quais os que poderiam responder os novos
desafios postos pela realidade, sem negligenciar a sua utopia? Quais os vazios tericos
e as lacunas de conhecimento que poderiam estimular a produo de novas pesquisas e
reflexes? Enfim, quais os desafios da prtica terica, ideolgica, poltica, cultural e
tcnica para a RSB?
4 Essa pergunta parte do pressuposto de que o projeto da RSB no realizou plenamente aquilo que concebera. Talvez se assemelhe s promessas no cumpridas da modernidade, tal como postulou Boaventura Santos (2000), seja pela colonizao do mundo da vida pelo sistema, como sustenta Habermas (1990, 1998), seja pela dominao do pilar da regulao (do Estado, do mercado ou da comunidade) em detrimento do pilar da emancipao, como sugere o pensador portugus. 5 Poderiam ser acrescentados mais dois elementos: idia e movimento. Portanto, antes da proposta poderia ser considerada a idia da Reforma Sanitria, seja como resposta crise da sade, seja como elemento cultural resultante da leitura de experincias de outros pases. Do mesmo modo, um movimento de idias (movimento ideolgico) pode sustentar a proposta, o projeto e o processo que, ao incidir sobre as relaes de poder, transforma-se em movimento poltico. Todavia, o estudo da Reforma Sanitria Brasileira, enquanto movimento poltico-ideolgico, j foi realizado na dcada de oitenta (ESCOREL, 1998). E a investigao sobre a idia da RSB poderia levar a incurses filosficas e epistemolgicas distantes do propsito de uma tese de doutorado com tempo programado, alm de escapar da competncia do autor.
24
Apesar dos estudos sobre a RSB,6 muito material disperso sobre o tema ainda no foi
objeto de sistematizao e anlise para fins de pesquisa. As publicaes disponveis
enfocaram a Reforma Sanitria na perspectiva da implantao do SUS (SOUSA, 1996;
LOBATO, 2000; CORDEIRO, 2004), da equidade (COHN & ELIAS, 2002), dos atores
sociais (LOBATO, 1994; VASCONCELOS, 1997) e, da poltica de sade ou poltica social
(GERSCHMAN, 1989; PEREIRA FILHO, 1994; RODRIGUES, 1999; GRYNSPANM, 2005).
O prprio movimento sanitrio, reconhecido como um ator central de sustentao para
a RSB, foi investigado da sua emergncia at o incio da dcada de noventa (ESCOREL,
1998), mas pouco analisado na conjuntura ps-constituinte (GERSCHMAN, 1994;
MISOCZKY, 2002). Conseqentemente, a anlise do significado e da viabilidade do
projeto da RSB exige a realizao de investigaes sobre o seu processo na passagem
da dcada de noventa para a primeira do sculo XXI, requerendo a identificao dos
atores sociais relevantes. Tais investigaes poderiam estimular a produo de outras
pesquisas e reflexes, bem como novas proposies polticas.
Parte das perguntas acima listadas e a reviso da literatura sobre o tema sugerem que
o projeto da RSB no realizou plenamente aquilo que concebeu (PINHEIRO, 2003).
Autores que estudaram o desenvolvimento da RSB registraram dificuldades e impasses
para a sua implementao (GERSCHMAN, 1995; SOUSA, 1996; VASCONCELOS, 1997),
chegando a questionar "o motivo pelo qual a Reforma Sanitria havia fracassado em
sua perspectiva contra-hegemnica" (GALLO, 1995, p.51). Essas questes podem estar
indicando que a RSB no se enquadra completamente no que se convenciona chamar
de polticas sociais (ou de proteo social) nem se limita ao tpico das polticas de
sade, como sugerem alguns autores (GERSCHMAN, 1995; LOBATO, 2000).
Essas pesquisas tm recorrido s teorias sobre poltica social para analisar o processo
da RSB, tanto no que diz refere formulao quanto implantao
6 Alm dos ensaios e pesquisas produzidos no pas nas duas ltimas dcadas sobre a Reforma Sanitria Brasileira (mais de uma centena na base LILACS) , foram identificadas no banco de teses da Capes 171 dissertaes ou teses tendo o tema como uma das palavras-chave Na base de dados MEDLINE foram examinados 41 artigos sobre reforma dos servios de sade no Brasil entre 1996 e 2006, a maior parte enfocando a descentralizao ou a implementao do SUS em algumas unidades da federao.
25
(GERSCHMAN,1989).7 Em outra oportunidade a autora explicitou como objeto de
investigao o estudo dos movimentos sociais em sade referidos ao processo de
formulao e implantao das polticas de sade no perodo que se estende de meados
da dcada de 70 a 1994 (GERSCHMAN, 1995, p.15). Conseqentemente, o foco do
estudo eram os movimentos sociais em sade e no a Reforma Sanitria em si.
Esses estudos representaram importantes contribuies na anlise das polticas de
sade, contemplando outros sujeitos coletivos e individuais que participaram do
processo poltico da sade, alm do Estado. No entanto, restringiram-se a uma
concepo de reforma setorial, deixando de considerar mudanas mais amplas que a
RSB ambicionava na construo da transio democrtica.
Ainda que parte da implementao da RSB possa ser traduzida por polticas de sade, a
exemplo da implantao do Sistema nico de Sade (SUS), a sua concepo e
formulao transcendem s polticas estatais. Do mesmo modo, apesar de ter como
sujeito coletivo o "movimento sanitrio", as origens e desenvolvimento da RSB no
permitem enquadr-la, facilmente, no conjunto de pesquisas contempladas pelas teorias
dos movimentos sociais (GOHN, 2004). Tambm o conceito de corporativismo utilizado
na elaborao de um marco conceitual para a anlise da trajetria poltico-institucional
da Reforma Sanitria, depara-se com certas dificuldades diante da especificidade do
movimento sanitrio:
O movimento sanitrio no um grupo de interesses e nem formado por grupos de interesses [...]. O que o caracteriza enquanto movimento o fato de ele aglutinar, alm de indivduos, entidades de diferentes naturezas funcionais, organizacionais e polticas, com uma proposta tico-poltica visando interesses coletivos [...]. O movimento se identifica como condutor das aspiraes de grupos de consumidores, de usurios dos servios de sade enquanto cidados (VAITSMAN, 1989, p.153-154).
Portanto, esses estudos sobre a RSB (GERSCHMAN, 1989, 1995; VAITSMAN, 1989;
ESCOREL, 1998) tiveram como foco o movimento sanitrio, admitindo o movimento
7 Nesse particular, a autora reconhecia no episdio histrico da 8. CNS a possibilidade de investigar a formulao e a reforma administrativa em 1987, propiciada pelo SUDS, como o incio do processo de implantao.
26
mdico e o movimento popular em sade como componentes dos "movimentos sociais
em sade".8 Do mesmo modo, os positions papers e ensaios publicados sobre a
Reforma Sanitria no tiveram o flego suficiente para sistematizar os fundamentos,
discutir as suas eventuais debilidades de concepo e de formulao, bem como de
analisar os obstculos para a sua implementao. Enquanto multiplicam-se os estudos
sobre o SUS e certos componentes (financiamento, controle social, gesto), como
indicam revises da literatura (AYRES, 2000; LEVCOVITZ et al., 2003; PAIM &
TEIXEIRA, 2006), so relativamente poucas as iniciativas que tomam a RSB, em si,
como objeto de investigao.9
A literatura internacional tem concedido um destaque maior para as reformas setoriais
(WEIL, 1993; MAYNARD & BLOOR, 1998; WONG & CHIU, 1998; LANGIANO & MARTIN,
1998; DONELAN et al., 1999; CONILL, 2000; SOUZA et al., 2002; WILD & GIBIS, 2003;
LIGHT, 2003; DAVAKI & MOSSIALOS, 2005), inclusive em pases da Amrica Latina
(INFANT et al., 2000; CORDEIRO, 2001; HERNNDEZ, 2002; ALMEIDA, 2002;
BELMARTINO, 2002; LABRA, 2002; MITJAVILA et al., 2002; PEGO & ALMEIDA, 2002;
GAKIDOU et al., 2007; FRENK, 2007)10. Na Regio das Amricas a expresso reforma
do setor sade tem sido utilizada no sentido de descrever processos voltados para
mudanas nas funes setoriais com vistas eficincia, efetividade e equidade, tendo
como propsito atenderem as necessidades de sade das populaes (EDITORIAL,
1999).
8 O movimento sanitrio, enquanto sujeito coletivo, denominado em diversas oportunidade de "Movimento da Reforma Sanitria Brasileira (MRSB)". Mais recentemente utilizam-se outras expresses como "movimento pelo direito sade" ou "movimento da sade" (FALEIROS et al., 2006). 9 Foram localizadas 18 dissertaes ou teses no banco da Capes com a expresso Reforma Sanitria integrando o ttulo do estudo. Ainda assim, a maioria dessas pesquisas centrava-se no SUS. 10 Na reviso da literatura internacional sobre reforma em sade (1997-2007) foram identificados 1572 ttulos na base Medline e 1251 na base Lilacs. Ainda que existam repeties entre essas bases no possvel desconhecer a expressividade quantitativa dessa produo. Mesmo que certos autores utilizem a expresso "reforma sanitria", na realidade referem-se a reformas setoriais ou reformas do setor sade (MENDES, 2001). Este autor fez uma reviso de tipologias e geraes de reformas para em seguida propor "uma reforma de reforma sanitria brasileira". Por ora cabe uma distino inicial entre reforma sanitria e reforma setorial. No se pretende nenhum preciosismo semntico, mas apenas alertar o leitor para o fato de que uma reforma pode pretender transcender o setor, ainda que tenha como referncia a sade. Desse modo pode-se distinguir as reformas que privilegiam mudanas no sistema de servios de sade (reforma so setor sade) e aquelas outras que, reconhecendo os sistema de servios como uma das respostas sociais, pretendem intervir de forma ampla no atendimento das necessidades de sade, com vista melhoria das condies de sade e da qualidade de vida da populao (reforma sanitria).
27
Nesse sentido, cinco princpios orientadores tm sido acionados para essas reformas
planificadas: equidade, qualidade, eficincia, sustentabilidade e participao social. As
tentativas de acompanhamento dessas iniciativas indicam que a natureza das reformas
muito diversa, com variaes no contedo e na dinmica das mudanas (INFANT et
al., 2000). Na Amrica Latina as reformas em sade podem ser analisadas considerando
o timing em relao ao processo de redemocratizao e s polticas de ajuste
macroeconmico. No caso brasileiro, por exemplo, a proposta de reforma surgiu
durante a redemocratizao do pas, anteriormente s polticas de ajuste. J na
Argentina, a reforma ocorreu depois da redemocratizao e durante o ajuste estrutural,
enquanto no Mxico o processo situou-se no perodo posterior crise econmica e
antes da ampliao da democracia.11 Mais recentemente alguns autores admitem a
Venezuela, com o programa denominado Misin Barrio Adentro, como a nica
alternativa, junto a Cuba, contra a tendncia neoliberal de reformas setoriais que teriam
afetado todos os pases da Amrica Latina (MUNTANER et al., 2006).12
Na presente dcada, o monitoramento e a investigao das reformas do setor sade na
Amrica Latina e Caribe (OPS, 2001) tem conduzido a uma Nova Agenda de Reformas
Setoriais, contemplando distintas estratgias e polticas. 13 Assim, os resultados a serem
obtidos nesta investigao poderiam contribuir com os estudos comparativos de
reformas em distintos pases14, alm de indicar acertos e eventuais equvocos do
11 Ver: Agenda Poltica Brasil em Defesa da Sade como Direito da Cidadania e como Bem Pblico. Seminrio Nacional Reformas do Estado, Sade e Equidade no Brasil. Rio de Janeiro, 20 junho de 2000, 9p. 12 Essa opinio parece ignorar a experincia brasileira, pois o pas, apesar das tentativas de influncia dos organismos internacionais, particularmente o Banco Mundial, para realizar reformas setoriais orientadas para o mercado (JASSO-AGUILAR et al., 2004), formulou o seu projeto de Reforma Sanitria na dcada de oitenta com um sentido completamente diverso. A reforma no decorreu de uma iniciativa das reas econmicas do Poder Executivo nem de uma induo internacional, como no caso da Colmbia, nem de um processo revolucionrio como Cuba (DE VOS et al., 2006), mas se desenvolveu numa conjuntura de transio democrtica, com ampla participao da sociedade civil. 13 Ver por exemplo: 1) reduzir as iniqidades na rea de sade; 2) aumentar a solidariedade no financiamento; 3) direcionar intervenes s populaes vulnerveis; 4) utilizar modelos de ateno baseados na promoo da sade e preveno de doenas; 5) promover a sade pblica; 6) promover o desenvolvimento abrangente e sustentvel dos recursos humanos na rea de sade; 7) fortalecer a Funo Gestora; 8) promover a expanso da Proteo Social em sade (RIVAS-LORIA et al., 2006, p.7). 14 A experincia internacional aponta para quatro formatos institucionais de sistemas de servios de sade: monoplio estatal, sistema pblico, competio gerenciada e livre mercado (MENDES, 2001). No
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projeto da RSB bem como as foras sociais capazes de sustentar, poltica e
ideologicamente, o processo. Pretende-se analisar a RSB para alm das polticas
estatais, isto , das polticas sociais e de sade. Diferentemente dos estudos que
privilegiam os movimentos sociais, parte-se da tese segundo a qual a RSB constituinte
de um projeto de reforma social, no uma mera poltica social ou de sade. O ngulo
privilegiado de anlise a prpria reforma sanitria, enquanto proposta, projeto e
processo, ainda que s analiticamente seja possvel distingui-la do movimento, assim
como o criador em relao criao e criatura...
Como se registrou anteriormente, antes da constituio de uma proposta pode ser
considerado o momento da idia, do mesmo modo que a transformao da proposta
em projeto e processo ocorre na presena do movimento. Ainda que se reconhea a
importncia do momento da idia este no se realiza completamente se no contar
com as relaes sociais que possibilitam a prxis dos sujeitos, como se explica a seguir:
As idias e opinies no 'nascem' espontaneamente no crebro de um indivduo: tiveram um centro de formao, de irradiao, de difuso, de persuaso, houve um grupo de homens ou at mesmo uma individualidade que as elaborou e apresentou na forma poltica de atualidade (GRAMSCI, 2000b, p.82).
Este ciclo idia-proposta-projeto-movimento-processo tem apenas um sentido analtico,
no orgnico. Na realidade, esses momentos encontram-se, dialeticamente, imbricados:
o movimento gera o projeto e desencadeia o processo e este condiciona o prprio
movimento. Uma idia, em si mesma, sem relaes sociais que a transformem em
primeiro caso tem-se um Estado regulador, financiador e prestador de servios (Cuba). O sistema pblico no dispensa a ao reguladora do Estado, mediante contratualizao e cooperao gerenciada, e procura separar as funes de regulao e financiamento das de prestao de servios, combinando os controles tecnocrtico e pblico, direto e indireto (Canad). No formato da "competio gerenciada" predomina a relao de agncia com um controle que adiciona a atuao tecnocrtica e pblica, direta e indireta, com o mercado, tendo como financiamento via subsdio demanda (Colmbia). No ltimo caso seu financiamento privado, articulado e regulado pela demanda e pelo mercado, sem controle estatal. (EUA). A partir desta reviso o citado autor prope uma "reforma da reforma sanitria" mediante a "construo de um sistema pblico com cooperao gerenciada, acessvel a todos os brasileiros" (MENDES, 2001, p.56). O estudo da Reforma Sanitria no Brasil permitiria, antes de sugerir uma "reforma da reforma", aprofundar a anlise dos seus fundamentos e caractersticas, inclusive o SUS, possivelmente, apontando as suas especificidades, quase como um caso exemplar.
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proposta, projeto, movimento, poltica e prtica, apenas uma idia. 15 Assim, parte-se
do pressuposto segundo o qual a RSB representaria um projeto de reforma social e
como tal faz-se necessrio investig-lo luz das teorias da mudana social, examinar
seus fundamentos e analisar o seu processo em distintas conjunturas no sentido de
identificar obstculos e possibilidades.
Mais que uma determinao estatal a partir de uma suposta funcionalidade das polticas
sociais ao capitalismo, o estudo da RSB poderia revelar a ao (ou a determinao) das
foras sociais organizadas na sociedade civil que tiveram a oportunidade e a potncia
de fazer com que o Estado viesse a incorporar essa proposta de forma contraditria:
Muito da proposta foi colocada em prtica, mas por vezes de maneira to tortuosa e at mesmo deturpada que as conseqncias negativas da implementao no podem ser atribudas a problemas relativos a princpios gerais equivocados, diretrizes fora da realidade ou propostas mal elaboradas [...] possibilitando dessa forma perguntar: o que est em curso no Brasil realmente um processo de Reforma Sanitria? (ESCOREL, 1995, p.155).
Este fragmento que distingue a proposta e o processo da RSB ilustra a indagao inicial
desta pesquisa. Considerando que o movimento sanitrio no um movimento social
qualquer, mas um conjunto articulado de prticas ideolgicas, polticas, cientficas,
tericas, tcnicas e culturais, uma nfase especial merece ser concedida s relaes
entre saber e prxis na RSB (DAMASO, 1989) na medida em que tal problemtica
prpria da sociedade burguesa, ou seja, un producto de su estructura y una
manifestacin de ella (HELLER, 1986, p.161).
Desse modo, a presente investigao procura analisar a emergncia e o
desenvolvimento da Reforma Sanitria Brasileira (RSB) em uma formao social
15 "Em suma, deve sempre valer o princpio de que as idias no nascem de outras idias, de que as filosofias no so geradas de outras filosofias, mas so expresso sempre renovada do desenvolvimento histrico real" (GRAMSCI, 1999, p.246). A ttulo de ilustrao, a idia da promoo da sade, por exemplo, identificada desde Virchow no surgimento da Medicina Social no sculo XIX e passando por Winslow e Sigerist na primeira metade do sculo XX, transformou-se em proposta da Medicina Preventiva (ao no perodo pr-patognico) na dcada de cinqenta e em projeto, configurado na Carta de Otawa em 1986. A partir das conferncias internacionais subseqentes, da produo de textos e revistas, alm do apoio na difuso pela OMS, pode ser identificado o movimento ideolgico da promoo da sade nas ltimas dcadas, buscando influenciar na formulao da poltica de sade e redefinio das prticas de sade (PAIM, 2006a).
30
capitalista, seus fundamentos e caractersticas, discutindo os desafios da prxis. A partir
desse objetivo geral, apresentam-se os seguintes objetivos especficos:
a) Identificar os fundamentos tericos e conceituais que sustentaram a proposta e o
projeto da RSB;
b) Analisar as bases sociais e foras polticas que formularam o projeto e conduziram o
processo de implantao e seus desdobramentos;
c) Discutir possveis alteraes das suas caractersticas durante a implementao ao ser
incorporada pelo Estado ou por governos;
d) Examinar possveis deslocamentos das suas bases de sustentao poltica e os
esforos para o seu aprofundamento ou "radicalizao";
e) Distinguir projetos polticos que disputam o campo da sade e as tendncias que se
configuram nas relaes entre Estado e sociedade no Brasil com relao proteo
social, especialmente a questo da seguridade social.
f) Caracterizar os desafios da prxis, particularmente nas dimenses poltica e tcnica.
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2. ELEMENTOS CONCEITUAIS E TERICOS
A cincia no trata da realidade, do dado, da empiria, e sim dos objetos do conhecimento (KALLSCHEUER, 1989, p.64).
Ao tomar como objeto de pesquisa a RSB impe-se, inicialmente, algum esforo do
pensamento no sentido de explicitao quanto natureza do que se pretende
investigar: um fenmeno histrico e social. 16 Com isto se quer afirmar, ao mesmo
tempo, a historicidade do objeto que permitiria a sua identificao em uma dada
conjuntura e a sua permanncia processual, enquanto cristalizaes e transformaes,
possveis de serem observadas no presente.
Esta concepo de fenmeno histrico no decorre, necessariamente, da constatao
de a sua emergncia e desenvolvimento terem sido localizados no passado, mas sim de
uma dada compreenso da Histria como realizao de sujeitos sociais diante das
circunstncias o que implica certa intencionalidade e, ao mesmo tempo, o
reconhecimento das limitaes estruturais e dos constrangimentos conjunturais. 17 A
Histria no se restringe aos tempos pretritos, mas corresponde a construtos sociais
realizados por sujeitos em cada conjuntura.
16 A proximidade do pesquisador com o objeto poderia conduzi-lo "iluso da transparncia" ou mesmo a uma identidade ou recusa em relao s representaes de autores sobre o mesmo (o que em si pode ser um desdobramento da investigao). Da a necessidade do trabalho terico e da vigilncia epistemolgica, no s para superar tal "iluso" mas, sobretudo para permitir uma anlise e distanciamento crticos em relao s opinies de atores e autores presentes no material emprico da pesquisa. Nesse caso, o doxolgico no se resume a um momento da produo de conhecimentos a exigir uma ruptura epistemolgica, ou a passagem da "hermenutica 0" (TESTA, 1997), mas a prpria matria prima da pesquisa est impregnada de doxa. 17 "A histria no pode ir alm da certeza (com a aproximao da investigao da "certeza"). A converso do "certo" no "verdadeiro" pode dar lugar a construes filosficas (da chamada histria eterna) que tm apenas pouco em comum com a histria "efetiva"; mas a histria deve ser "efetiva" e no romanceada: a sua certeza deve ser, antes de mais nada, certeza dos documentos histricos" (GRAMSCI,1999, p.91). Cabe, portanto, considerar a distino entre episdio histrico e histria, totalidade que sntese de mltiplas determinaes (TESTA, 1995).
32
E ao considerar social tal fenmeno, alm de histrico, no se pretende insistir na
redundncia de que a histria ocorre na sociedade, mas insinuar que ela ainda pode
fazer-se presente em termos de fatos produzidos na atualidade e de certas
acumulaes de natureza poltica, econmica e cultural que podem gerar novos fatos
(MATUS, 1997). Desse modo, a Reforma Sanitria, enquanto fenmeno histrico e
social poderia ser analisada como idia-proposta-projeto-movimento-processo.18 Ao
traduzir no mbito do pensamento este ciclo como representao de um fenmeno
histrico e social pretende-se expor os seus elementos ao crivo de pressupostos para
fins de descrio, anlise e interpretao dos resultados.
Alm de se explicitar a concepo de histria adotada, pretende-se delinear, embora
com certo grau de abstrao, o tipo de sociedade em que o fenmeno ser examinado,
as relaes entre as classes e grupos sociais com o Estado, a natureza desse Estado,
bem como os movimentos sociais capazes de influrem sobre as relaes de poder e
sobre a cultura da referida sociedade. Conseqentemente, nessa construo do objeto
(construo terica) pretende-se chegar a uma "teoria do objeto", identificando
conexes da RSB com outros objetos que passam a compor o modelo terico (Estado,
estrutura social, ideologia, setor sade, etc.).
Ainda que uma aproximao inicial com tal objeto indique a noo de reforma como
referente para tal construo, distintas concepes de reformas e teorias de mudana
social poderiam ser examinadas para contriburem na elaborao da "teoria do objeto".
Reforma e revoluo constituem fenmenos histricos relativos mudana social cuja
reviso crtica da literatura em cincia poltica j representaria, em si, uma investigao
de flego. Como esta no a pretenso do presente estudo, optou-se tomar como
referncia para a elaborao do quadro terico, quatro tipos de prxis e,
conseqentemente, diferentes possibilidades de mudanas em sociedades, a saber: a)
18 Idia: Percepo, representao, pensamento inicial; Proposta: Conjunto articulado de princpios e proposies polticas; Projeto: Conjunto de polticas articuladas; Movimento: Conjunto de prticas ideolgicas, polticas e culturais; Processo: Conjunto de atos, em distintos momentos e espaos, que realizam prticas sociais econmicas, polticas, ideolgicas e simblicas.
33
reforma parcial; b) reforma geral; c) movimentos polticos revolucionrios; d) revoluo
social total (HELLER, 1986).19
No caso da reforma parcial, trata-se de um conjunto de atividades que se prope a
transformao de setores particulares, instituies ou relaes da sociedade. A teoria
das reformas parciais no transcende as premissas da sociedade e elaborada pelos
experts do setor em questo (poltico, econmico, educacional, etc.). Podem ser
acionadas campanhas de sensibilizao da opinio pblica, porm as aes de massa
so efmeras e entram em refluxo rapidamente depois da realizao da reforma
(HELLER, 1986, p.167). Depois de ilustrar esse tipo prxis com a proposta do divrcio
na Itlia, a autora chega a seguinte concluso:
Los movimientos que apuntan a las reformas parciales pueden convertirse fcilmente en vehculos para la manipulacin [] simplesmente por el hecho de que canalizando la oposicin al sistema social existente hacia la reforma de las particulares y parciales instituiciones concretas, crean la apariencia de transformabilidad de un determinado orden social (HELLER, 1986, p.167).
No que diz respeito reforma geral, prope-se a transformao de toda a sociedade
mediante reformas parciais. A autora ilustra essa modalidade com a experincia da
social-democracia at 1914. Seus tericos apresentam uma atitude crtica em relao
totalidade do sistema social dominante, possibilitando uma ao ao conjunto do
movimento social:
Estos no son expertos o no actan como tales; son ms bien lderes del movimiento []. Los movimientos para la reforma general son idealmente movimientos organizados con una amplia base de masas y no dejan de existir despus de la realizacin de una reforma parcial, sin que permanecen constantemente en accin (HELLER, 1986, p.167).
O terceiro tipo de prxis que se realiza mediante movimentos polticos revolucionrios
visa transformao radical de toda a sociedade com a conquista do poder poltico. A
direo cabe a uma minoria pronta sempre para a ao, preparada para correr risco,
19 Embora os dois ltimos no sejam de maior interesse para a presente pesquisa, a sua descrio tem certa utilidade como contraponto aos dois primeiros e, tambm, pelo fato de eventualmente compor parte da utopia de alguns dos seus formuladores.
34
dispondo de apoio ativo das massas. Aps a vitria, ocorre um refluxo, com a separao
do indivduo (o burgus, no caso da Revoluo Francesa) que luta pelos seus
interesses, permanecendo inalterada o modo de vida da maioria do povo, enquanto o
cidado separa a vida cotidiana das atividades polticas.
Finalmente, o quarto tipo de prxis (revoluo total) supe a revoluo do modo de
vida. Nesse caso, as bases do movimento se alargam, envolvendo estratos cada vez
mais amplos da populao, com uma transformao da vida cotidiana das pessoas.
Ainda que o Cristianismo e o Renascimento, em certos pases, possam ser mencionados
como exemplos desse tipo de prxis, a autora faz a seguinte advertncia:
Podemos afirmar que hasta el momento no ha existido en la historia una revolucin tal del modo de vida que haya sido simultaneamente una revolucin consciente y conscientemente realizada de toda la sociedad desde la economa a la poltica y a la cultura (HELLER, 1986, p.169).20
Tomando como referencial terico essas reflexes da filsofa hngara, as perguntas
formuladas sobre o objeto desta investigao implicam indagaes acerca da sociedade
brasileira que podem ser traduzidas em um "sistema de proposies" capazes de
orientar a formulao da hiptese da investigao. A partir da tese de que a RSB
representa um projeto de reforma social, a hiptese geral da investigao sustenta que
ela foi concebida como reforma geral, tendo como horizonte utpico a revoluo do
modo de vida, ainda que parte do movimento que a formulou e a engendrou tivesse
como perspectiva apenas uma reforma parcial, sendo este, possivelmente, o seu
desfecho. Essa hiptese delinearia o modelo terico que orientaria a identificao dos
fatos de acordo com os objetivos do estudo e com as relaes entre os elementos que
comporiam o referido modelo.
Nessa perspectiva, impe-se do ponto de vista metodolgico uma anlise da formao
social especfica onde se estuda a RSB cabendo examinar o desenvolvimento da
20 Ainda em termos tericos, a filsofa analisa as implicaes dessas possibilidades e entre algumas delas pode-se considerar a proposta/projeto da RSB. Nesse sentido, o estudo pretende reunir, no momento emprico da pesquisa, material documental relativo RSB, dialogando com a contribuio dessa autora hngara e dos que formularam e organizaram o saber sobre a Reforma Sanitria no Brasil.
35
sociedade brasileira e o papel desempenhado pelo Estado na consolidao do
capitalismo, considerando diversas categorias gramscianas, tais como: bloco histrico,
estado ampliado, sociedade poltica, hegemonia, reforma intelectual e moral,
intelectuais orgnicos, revoluo passiva, transformismo, entre outras (GRAMSCI,
1966).21 A opo pelo marxismo, enquanto corrente terica (PAIM, 2006b), e pelo
pensamento desse filsofo da prxis deve-se ao fato de suas categorias de anlise
serem passveis de contextualizao para a realidade brasileira, alm de terem
fundamentado a concepo da Reforma Sanitria (GRYNSZPAN, 2005).22 Gramsci
mudou a teoria marxista, especialmente seus vnculos com a poltica e com a cultura
(BUCI-GLUCKSMANN, 1980, p. 493) no sentido de apreender a realidade como
totalidade23:
Gramsci no toma o marxismo como doutrina abstrata, mas como mtodo de anlise concreta do real em suas diferentes determinaes. Debrua-se sobre a realidade enquanto totalidade, desvenda suas contradies e reconhece que ela constituda por mediaes, processos e estruturas (SIMIONATTO, 1998, p.37).
Portanto, o presente estudo parte de um quadro terico de referncia, centrado nas
relaes sociais, de onde foram buscados os fundamentos para a construo do
21 Uma extensa bibliografia gramsciana encontra-se disponvel no seguinte stio: http://soc.qc.cuny.edu/gramsci/index.html 22 Uma das primeiras utilizaes das categorias de anlise gramscianas para a realidade brasileira teve como foco o "golpe de classe" de 1964 (DREIFUSS, 1981). Os conceitos gramscianos foram acionados, tambm, para o esboo de uma teoria da Reforma Sanitria (OLIVEIRA, 1988), cujo artigo foi alvo de produtiva polmica (CAMPOS, 1988a; FLEURY, 1988a; CAMPOS, 1988b). 23 Ver as relaes entre o pensamento de Antnio Gramsci com os de outros tericos marxistas do seu tempo, a exemplo de Lnin, Trotsky e Rosa Luxemburgo (MACCIOCCHi, 1976). Assim, "Gramsci props uma outra interpretao de Marx, no sentido que iniciou a superao dos limites da elaborao marxista do sculo XIX, excessivamente dependente das 'estruturas'. Mas o seu marxismo, - sustentado pela rejeio do determinismo mecanicista, por uma viso antifatalista da histria, pela categoria de prxis, um marxismo do sujeito: um marxismo da hegemonia, da totalizao dialtica, da possibilidade de uma reunificao social" (NOGUEIRA, 1998, p.27). Nesse sentido, concede uma ateno especial educao como hegemonia (BROCCOLI, 1979) e formao e insero poltico-social dos intelectuais, reconhecidos como funcionrios da superestutura, sejam os intelectuais orgnicos ou os intelectuais tradicionais (GRAMSCI, 1977). Na ao poltica sua palavra-chave era unidade: unidade de toda a classe operria, a unidade do Norte com o Sul da Itlia, a unidade dos camponeses com os operrios, a unidade do povo. Um dos seus companheiros de poltica assim lhe descrevera: "Vivi junto desse homen mais de quinze anos e com profunda emoo que evoco, que vejo diante de mim a sua fraterna imagem, o seu corpo martirizado, a sua cabea de pensador, a sua fronte cheia de pensamentos, os seus olhos profundos e sorridentes, o sorriso e o riso com que sabia acompanhar todas as manifestaes do pensamento e do sentimento humano, e a sua voz que era spera na crtica, imperiosa ao indicar directivas ao prprio partido, mas doce e malevel na persuaso, na convico, na instruo dos camaradas" (TOGLIATTI, 1975, p.68-69).
36
"modelo terico" e, especialmente, a indicao das relaes entre os conceitos para o
"sistema de proposies" e, em ltima anlise, a hiptese da pesquisa. As relaes
sociais que so objetivadas dizem respeito quelas estabelecidas entre as classes
sociais, ou seja, as relaes sociais de produo, de moldes capitalistas que definem as
classes sociais fundamentais - a burguesia e os trabalhadores. Dadas as contradies
geradas nesse processo de produo, ergue-se uma superestrutura poltico-ideolgica
que assegura as condies no materiais para a reproduo dessa estrutura social
(MARX, 1996).
Embora esse autor no tenha chegado a formular uma teoria do Estado, ofereceu os
fundamentos para a compreenso das relaes entre a base material da sociedade e o
carter do Estado. As formulaes contidas no jovem Marx do Manifesto Comunista,
todavia, era de um "Estado restrito", um mero comit executivo dos negcios da
burguesia. Tal concepo, de certo modo, indicava o pensamento liberal prevalente e o
controle do Estado pela burguesia, expressando, concretamente, o Estado realmente
existente que Marx criticava.
A partir da contribuio gramsciana ao marxismo, realiza-se uma crtica dicotomia
Estado (concebido como sociedade poltica) e sociedade civil, quando esta "distino
metodolgica transformada e apresentada como distino orgnica" (GRAMSCI,
2000b, p.47). Esta confuso entre sociedade civil e sociedade poltica pode ser
explicada por se incluir na noo geral de Estado "elementos que devem ser remetidos
noo de sociedade civil"(GRAMSCI, 2000b, p.244). Nesse sentido, "seria possvel
dizer que Estado = sociedade poltica + sociedade civil, isto , hegemonia couraada de
coero" (GRAMSCI, 2000b, p.244).24
24 "Se cincia poltica significa cincia do Estado e Estado todo o complexo de atividades prticas e tericas com as quais a classe dirigente no s justifica e mantm seu domnio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados, evidente que todas as questes essenciais da sociologia, no passam de questes da cincia poltica" (GRAMSCI, 2000b, p.331).
37
A reviso das concepes sobre o poder poltico e o Estado, este entendido como uma
condensao material de uma relao de foras (POULANTZAS, 1980), os conceitos de
sociedade poltica e Estado ampliado, bem como o estudo das contribuies marxistas
para uma "teoria crtica do Estado" (GRUPPI, 1980; HABERMAS, 1986), tm favorecido
um entendimento mais aproximado do papel do Estado no capitalismo, particularmente,
do sentido das polticas sociais (OFFE, 1984). Na medida em que a determinao
econmica insuficiente para construo do conceito de classe social e para o exame
do papel e das funes do Estado contemporneo, caberia considerar a determinao
poltica e ideolgica, a partir das relaes sociais.25 Essas relaes sociais polticas e
ideolgicas constituem os sujeitos e do concretude noo de natureza humana: "o
conjunto das relaes sociais historicamente determinadas, isto , um fato histrico
comprovvel, dentro de certos limites, atravs dos mtodos da filosofia e da crtica"
(GRAMSCI, 1976, p.9). A filosofia da prxis, em vez de confrontar o sujeito s
estruturas e sustentar um determinismo econmico, aponta possibilidades para a ao
social e para a constituio daquele ao forjar um "bloco intelectual-moral".26
Essa abordagem rejeita a concepo instrumentalista do Estado, o fatalismo e a
dicotomia entre o protagonismo do sujeito e as determinaes estruturais27, pois
25 "As relaes de produo correspondem, nas relaes sociais, s relaes sociais de produo; mas tambm se poder falar com todo o rigor das relaes 'sociais' polticas e relaes 'sociais' ideolgicas" (POULANTZAS, 1977, p.63). 26 "A compreenso crtica de si mesmo obtida, portanto, atravs de uma luta de 'hegemonias' polticas, de direes contrastantes, primeiro no campo da tica, depois no da poltica, atingindo, finalmente, uma elaborao superior da prpria concepo do real. A conscincia de fazer parte de uma determinada fora hegemnica (isto , conscincia poltica) a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconscincia, na qual teoria e prtica finalmente se unificam. Portanto, tambm a unidade de teoria e prtica no um dado de fato mecnico, mas um devir histrico [...] por isso que se deve chamar a ateno para o fato de que o desenvolvimento poltico do conceito de hegemonia representa, para alm do progresso poltico-prtico, um grande progresso filosfico, j que supe necessariamente uma unidade intelectual e uma tica adequada a uma concepo do real que superou o senso comum e tornou-se crtica, mesmo que dentro de limites ainda restritos" (GRAMSCI, 1999, p.103-104). 27 Ao contrrio do que consideram alguns autores da Sade Coletiva (BURLANDY & BODSTEIN, 1998; MINAYO, 2001) o marxismo, desde o 18 Brumrio e as Lutas Sociais na Frana no se reduz ao componente da estrutura, nem subestima a subjetividade. O prprio Antnio Gramsci, ao polemizar com Benedetto Croce rejeitou a sua crtica de que "a filosofia da prxis seria teologizante e o conceito de estrutura no seria mais do que a representao ingnua do conceito de um 'deus oculto'" (GRAMSCI, 1999, p.296). Assim, esclarecia que a filosofia da prxis est relacionada " concepo subjetiva da realidade, precisamente enquanto a inverte, explicando-a como fato histrico, como 'subjetividade histrica de um grupo social', como fato real" (GRAMSCI, 1999, p.297). O tema da subjetividade humana contemplado, tambm, no Grundrisse (CERRONI, 1976).
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reconhece a autonomia relativa da prxis, inscrita no jogo das instituies e nas lutas
sociais e de grupos. Nessa perspectiva, o Estado apia-se em certas classes dominadas
da sociedade apresentando-se como seu representante, mediante um complexo
processo ideolgico. Mas nesse processo de dominao de classe o Estado, em ltima
anlise, atua em proveito poltico das classes dominantes recorrendo a dispositivos e
aparelhos ideolgicos de diversas ordens. 28 O conceito de ideologia 29 apresenta-se,
portanto, como fundamental, no s para compreender o papel dos intelectuais na
elaborao da proposta e do projeto da Reforma Sanitria, mas, sobretudo para analisar
os enfrentamentos no seu processo diante das questes relativas organizao
poltica.30
Essas reflexes devem ser desdobradas a partir de trs questes bsicas sobre a
poltica: 1) Como os interesses so representados? 2) De quem so os interesses
representados?. Qual a justificao para representar interesses?" (COUTINHO, 1989,
p.47). Nesse particular, cabe ao Estado e aos seus aparelhos, dar conta dos
enfrentamentos de classe e fraes de classes, favorecendo a hegemonia das classes
dominantes e buscando o consenso das classes subalternas.
28 "No modo de produo capitalista, e em uma formao capitalista, em que o econmico detm, regra geral, o papel dominante, constata-se a dominncia no ideolgico da regio jurdico-poltica: em particular, no entanto, no estgio do capitalismo monopolista de Estado em que o papel dominante assumido pelo poltico, a ideologia econmica - de que o 'tecnocratismo' s um dos seus aspectos - que tende a tornar-se a regio dominante da ideologia dominante" (POULANTZAS, 1977, p.205). 29 "Desde que se d ao termo 'ideologia' o significado mais alto de uma concepo do mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econmica, em todas as manifestaes de vida individuais e coletivas" (GRAMSCI, 1999, p.98-99). Mas dentro do marxismo ideologia tem sido tratada, tambm de forma negativa, enquanto falsa conscincia: "A sua funo no oferecer aos agentes um verdadeiro conhecimento da estrutura social, mas simplesmente inseri-los de algum modo nas suas atividades prticas que suportam esta estrutura [...], ocultar as contradies reais, reconstituir, em um plano imaginrio, um discurso relativamente coerente que serve de horizonte ao 'vivido' dos agentes, moldando as suas representaes nas relaes reais e inserindo-as na unidade das relaes de uma formao" (POULANTZAS, 1977, p.201-202). Na realidade, o termo ideologia polissmico desde Destutt de Tracy (1754-1836), com a sua obra Elments d'Idologie. De um conceito de ideologia como "cincia das idias" ou "anlise sobre a origem das idias" chegou-se ao significado de "sistemas de idias". Assim, "o prprio significado que o termo 'ideologia' assumiu na filosofia da prxis contm implicitamente um juzo de desvalor, o que exclui para os seus fundadores a origem das idias devesse ser buscada nas sensaes e portanto, em ltima anlise, na fisiologia: esta mesma 'ideologia' deve ser analisada historicamente, segundo a filosofia da prxis, como uma superestrutura" (GRAMSCI, 1999, p.208). 30 "Uma massa humana no se 'distingue' e no se torna independente 'para si' sem organizar-se (em sentido lato); e no existe organizao sem intelectuais, isto , organizadores e dirigentes" (GRAMSCI, 1999, p.104).
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No caso dos pases capitalistas subdesenvolvidos dependentes as lutas sociais no se
restringem, todavia, s classes nem ao momento econmico-corporativo. 31
Reproduzem-se entre grupos sociais, na sociedade civil, nas instituies e no prprio
Estado, cujo pessoal tende a expressar a clivagem desses enfrentamentos
(POULANTZAS, 1980). Assim, a relao dos burocratas com a instncia do poltico
poderia ser comparvel com a dos intelectuais com o ideolgico (POULANTZAS, 1977).
A partir dessas indicaes tericas, impe-se do ponto de vista metodolgico uma
anlise da formao social especfica onde se desenvolve a Reforma Sanitria,
recorrendo a duas categorias para agrupar as respostas sociais via ao estatal:
necessidades decorrentes do processo de acumulao capitalista e luta pela hegemonia. 32 Compreendendo a questo sade como objeto de ao poltica das classes dirigentes
que controlam o Estado e seus aparelhos, h que se observar como se apresenta o
processo poltico em sade em uma dada conjuntura, o que vale dizer, como se
enfrentam as foras sociais diante dessa questo. 33 Mais que deduzir a ao estatal a
partir das necessidades da acumulao, trata-se de examinar as disputas pela
hegemonia.
31 "Pode-se dizer que no s a filosofia da prxis no exclui a histria tico-poltica, como, ao contrrio sua mais recente fase de desenvolvimento consiste precisamente na reivindicao do momento da hegemonia como essencial sua concepo estatal e 'valorizao' do fato cultural, da atividade cultural, de uma frente cultural como necessria, ao lado das frentes meramente econmicas e polticas" (GRAMSCI, 1999, p.295). 32 Desse modo, "para o campo das polticas sociais confluem interesses de natureza diversa e mesmo contraditrios, advindos da presena dos atores na cena poltica, de sorte que a problemtica da emergncia da interveno estatal sobre as questes sociais encontra-se quase sempre multideterminada" (TEIXEIRA, 1989, p.21). 33Assim, a partir de uma abordagem histrico-estrutural (TEIXEIRA, 1985), possvel identificar as relaes entre a estrutura de classes e as polticas e prticas de sade em trs nveis: - ao nvel econmico, atravs das diferentes necessidades de reproduo ampliada do capital que incidem ou se realizam atravs do setor sade; - ao nvel poltico, ao compreender as polticas de sade como parte do processo de legitimao do poder do Estado, e, conseqentemente, da manuteno do domnio de classe; - ao nvel ideolgico ao desvendar as articulaes entre a produo cientfica, as prticas sociais e o conjunto de valores que organiza o universo cultural e moral dos profissionais de sade, com a insero desses agentes na estrutura social (TEIXEIRA, 1989, p.17-18). Na realidade, "tudo poltica, inclusive a filosofia ou as filosofias [...], e a nica 'filosofia' a histra em ato, ou seja, a prpria vida" (GRAMSCI, 1999, p.246).
40
O fato da hegemonia pressupe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendncias dos grupos sobre os quais a hegemonia ser exercida, que se forme um certo equilbrio de compromisso, isto , que o grupo dirigente faa sacrifcios de ordem econmico-corporativa; mas tambm indubitvel que tais sacrifcios e tal compromisso no podem envolver o essencial, dado que, se a hegemonia tico-poltica, no pode deixar de ser tambm econmica, no pode deixar de ter seu fundamento na funo decisiva que o grupo dirigente exerce no ncleo decisivo da atividade econmica (GRAMSCI, 2000b, p.48).
Portanto, hegemonia no se confunde com coero. Ela pode se apresentar como
coero, sim, mas envolve o consenso ativo entre os governados, o que supe uma
direo tica, poltica e cultural. Nessa perspectiva, segundo o autor, um grupo
subalterno pode construir a hegemonia antes mesmo de ser dirigente. E o Estado e
seus aparelhos de hegemonia 34 so locus de disputa entre as classes fundamentais e
grupos sociais para o exerccio da hegemonia.
Mesmo sem adentrar na complexa questo das relaes entre infra e super-estrutura
dentro do marxismo (HABERMAS, 1986), cabe destacar que "a natureza e o
crescimento do Estado nas sociedades capitalistas contemporneas podem ser
atribudos s necessidades sociais crescentes do capital e s exigncias sociais dos
trabalhadores" (NAVARRO, 1983, p.147).35 Se ao Estado burgus interessa a
legitimidade e a sua legitimao, via polticas sociais para o exerccio da hegemonia, s
classes subalternas e aos seus intelectuais orgnicos faz sentido atuar sobre as
contradies e conflitos desse Estado e apostar na contra-hegemonia, enquanto direo
poltica e cultural para a formao de um novo bloco histrico (PORTELLI, 1977): 36
34 Ver: (GRAMSCI, 2000b, p.284) e (GRUPPI, 1978). 35 Assim, para compreender a natureza de uma poltica estatal, a exemplo da sade, o autor apresentava duas advertncias: a) "No h uma nica explicao para polticas sociais: elas se explicam pela combinao dos fatores mencionados e a natureza e o nmero destas combinaes dependero das origens histricas de cada fator, da forma poltica que os fatores determinem e sua relao com os outros e de sua funo nessa formao social especfica; b) "No h um corte dicotmico claro entre as necessidades sociais do capital e as demandas sociais do trabalho. Qualquer poltica utilizada pode servir a ambos. Na verdade as polticas sociais que servem aos interesses da classe trabalhadora podem ser adotadas consecutivamente para benefcio dos interesses da classe dominante (NAVARRO, 1983, p.147-148). 36 "A estrutura e as superestruturas formam um 'bloco histrico', isto , o conjunto complexo e contraditrio das superestruturas o reflexo do conjunto das relaes sociais de produo" (GRAMSCI,
41
A democracia, enquanto uma modalidade plural de exerccio do poder poltico, passa a ser vista como o espao ideal de formulao de uma contra-hegemonia, ampliando o campo e alianas das camadas populares, de sorte que os intelectuais oriundos das classes mdias e da burguesia vm a ser um aliado fundamental neste processo de formulao de um projeto poltico e cultural dos setores dominados (TEIXEIRA, 1989, p.32).
A autora entende a sade como "um meio em que a ambivalncia representa a
condio de possibilidade de construo de um bloco histrico" (TEIXEIRA, 1989, p.42),
mesmo recorrendo a noes ambguas como a de cidadania. Embora essa noo possa
estar vinculada a uma perspectiva poltica social-democrata, favorecendo um efeito de
mascaramento, ao negar a existncia de classes sociais e privilegiando uma relao do
indivduo com o Estado com base em direitos, o avano da cidadania, dialeticamente,
"coloca na ordem do dia a necessidade do socialismo" (COUTINHO, 1989, p.57) dado
que, segundo o autor, no possvel compatibilizar a plena cidadania poltica e social
com o capitalismo.
No caso da presente investigao, recorreu-se s categorias de revoluo passiva e
transformismo (GRAMSCI, 2002) para, juntamente como os quatro tipos de prxis
apresentados (HELLER, 1986), analisar o processo da Reforma Sanitria no Brasil.
A revoluo passiva 37 designa um processo de restaurao-revoluo verificado na
histria italiana durante o Risorgimento, caracterizado nos seguintes termos:
1999, p.250). Este conceito, atribudo pelo autor a Georges Sorel (1847-1922), pensador socialista, apreenderia a unidade entre estrutura e superestrutura estabelecida pelo marxismo: "[...] No verdade que a filosofia da prxis 'destaque' a estrutura das superestruturas; ao contrrio, ela concebe o desenvolvimento das mesmas como intimamente relacionado e necessariamente inter-relativo e recproco. Tampouco a estrutura , nem mesmo por metfora, comparvel a um 'deus oculto'" (GRAMSCI, 1999, p.369). 37 Esta expresso, atribuda a Vincenzo Cuoco, diz respeito s modificaes ocorridas na Itlia a partir das guerras napolenicas, perodo conhecido como Risorgimento, mas pode ser utilizado para a anlise de outras formaes sociais: "o conceito de revoluo passiva me parece exato no s para a Itlia, mas tambm para outros pases que modernizaram o Estado atravs de uma srie de reformas ou de guerras nacionais, sem passar pela revoluo poltica de tipo radical-jacobino" (GRAMSCI, 2002, p.220). Como conceito foi elaborado para analisar "o movimento poltico que conduziu unificao nacional e formao do Estado italiano" (GRAMSCI, 2002, p.41), sendo acompanhado de outras expresses como "riscossa nacional" e "riscatto nacional". De acordo com o autor, "todos expressam o conceito de retorno a um estado de coisas j havido no passado, ou de 'retomada' ofensiva (ricossa) das energias nacionais dispersas em torno de um ncleo militante e concentrado, ou de emancipao de um estado de servido para retornar primitiva autonomia (riscatto). So difceis de traduzir [...] de modo que se concebe a
42
As exigncias que encontraram na Frana uma expresso jacobino-napolenica foram satisfeitas em pequenas doses, legalmente, de modo reformista, conseguindo-se assim salvar a posio poltica e econmica das velhas classes feudais, evitar e reforma agrria e, notadamente, evitar que as massas populares atravessassem um perodo de experincias polticas similares s da Frana nos anos do jacobinismo, em 1831, em 1848 (GRAMSCI, 1999, p.299). 38
J o transformismo, trata-se de um fenmeno associado revoluo passiva quando
certos partidos (ou agentes) se unificam, mudando de lado, e reforando posies
conservadoras das foras da ordem estabelecida, ou seja, "cooptao ou assimilao
pelo bloco de poder das fraes rivais das prprias classes dominantes ou at mesmo
de setores das classes subalternas" (COUTINHO, 1985, p.114). 39
Essas categorias que, segundo o autor, apresentam entre si uma "relao orgnica",
foram selecionadas para o quadro terico da presente investigao diante das suas
potencialidades heursticas para a compreenso do desenvolvimento histrico da
sociedade brasileira e, particularmente, de um "processo em aberto" nela inserido,
como aquele experimentado pela Reforma Sanitria.40 Considerando que o
desenvolvimento capitalista tem-se realizado menos pelo padro de revoluo
francesa e mais por transformaes moleculares que caracterizam a revoluo passiva,
a investigao utilizou esse conceito, tomando-o como "hiptese interpretativa" na
seguinte perspectiva:
nao italiana como 'nascida' ou 'surgida' com Roma, pensa-se que a cultura greco-romana tenha 'renascido', a nao tenha 'ressurgido', etc. (GRAMSCI, 2001, p.89). Ver o volume 5 da edio brasileira dos Cadernos do Crcere que se dedica, especialmente, ao tema (GRAMSCI, 2002). Na lngua portuguesa tem sido traduzido como Ressurgimento. 38 Tambm chamada de "revoluo pelo alto" ou "revoluo sem revoluo, a revoluo passiva "um processo de transformao que excluiu a participao das foras democrticas e populares do novo bloco do poder, das foras interessadas na completa erradicao dos restos feudais, e, como tal, numa revoluo agrria que integrasse os camponeses na economia capitalista moderna e os atrasse para a defesa da ghegemonia burguesa e democrtica" (COUTINHO, 1981, p.54). A revoluo passiva tambm "difere da contra-revoluo, essa, sim, uma reao manifesta mudana social" (VIANNA, 2004,p.98). 39 Nas palavras do filsofo militante: "O transformismo 'clssico' foi o fenmeno pelo qual se unificaram os partidos do Risorgimento; este transformismo traz luz o contraste entre civilizao, ideologia, etc., e a fora de classe." (GRAMSCI, 2000b, p.95). 40 "As modalidade de revoluo passiva [...] aparecem a anlise como processos abertos, a serem aferidos em seu percurso e resultados por meio do comportamento e protagonismo dos sujeitos histricos" (AGGIO, 1998, p.172).
43
O tipo de acordo poltico eventualmente firmado (formalmente ou no) entre fraes de classes dominantes, mais avanadas ou retardatrias do ponto de vista econmico, ou mesmo com outros segmentos ou grupos sociais (como as camadas mdias), assim como a ausncia ou no de uma aliana com as massas populares, a incompletude da reforma intelectual e moral ou o grau de frustrao no processo de afirmao de uma vontade nacional-popular, moda jacobina, transformadora do aparelho estatal, so todos elementos que compem analiticamente o conceito e que necessitam da verificao caso a caso, para que se possa aferir os resultados e as possveis alternativas que existiam diante dos sujeitos histricos (AGGIO, 1998, p.167).
O estudo da RSB poderia ser um caso e a feio exibida pelo seu processo at 2006
teria a possibilidade de ser explicada atravs dessa "hiptese interpretativa".41 A
utilizao desses conceitos poderia contribuir par
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