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Relações étnicorraciais na escola: desafios teóricos e práticas pedagógicas após a Lei 10.639

Organizadores:

Claudia Miranda Mônica Regina Ferreira Lins

Ricardo Cesar Rocha da Costa

Autores

Aderaldo Pereira dos Santos - FAETEC Ana Cláudia Diogo da Silva - FAETEC

Cláudia Cristina dos Santos Andrade - UERJ Claudia Miranda – UNIRIO

Leda Maria de Souza Machado - FAETEC Luiz Fernandes de Oliveira - UFRRJ

Marcelo Pacheco Soares - IFRJ Marcia Gomes de Oliveira Suchanek - FAETEC

Maria Elena Viana Souza - UNIRIO Mônica Regina Ferreira Lins - UERJ

Otavio Henrique Meloni - IFRJ Ricardo Cesar Rocha da Costa - IFRJ

Renato de Alcântara - FAETEC Rogério José de Souza - UFRJ

Walter Angelo Fernandes Aló - FAETEC

Rio de Janeiro Maio 2011

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SUMÁRIO Introdução......................................................................................................................3 Parte 1 Desafios teóricos Continuísmos e rupturas na seleção de saberes escolares de História (s): entre um Brasil Colonial e um Brasil Decolonial ..................................................................................... 14 O pensamento social brasileiro e a questão racial: da ideologia do “branqueamento” às “divisões perigosas”...................................................................................................... 28 Reflexões educativas sobre o ensino da História da África .............................................. 49 Da África visões da Europa ou Exemplos de re-apoderação do discurso literário em Angola e Moçambique ............................................................................................................. 65 Educação étnico-racial brasileira: uma forma de educar para a cidadania......................... 76 Nos deram um espelho e vimos um mundo doente....................................................... 102 “A sala de aula é o último lugar onde ocorrerão mudanças”. A lei 11.465: suas implicações teóricas e práticas na recente produção acadêmica. ..................................................... 119 A união pelo traço: caminhos de leitura para a poesia de João Maimona........................ 146 A poética do Jongo: tradição e reinvenção ............................................................... 165 Parte 2 Práticas pedagógicas Além do Jonny Quest: a utilização de dois clássicos cinematográficos como recursos didáticos no ensino de história da África. ...................................................................... 182 Zumbi: herói ou vilão?................................................................................................. 198 Ações pedagógicas e maiuêutica: trabalhando religião ludicamente............................... 211 Eu e o outro: o professor como artesão da interculturalidade ......................................... 223 África e as relações étnicorraciais na educação de jovens e adultos............................... 238

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Introdução

O longo caminho de reafirmação de reivindicações dos movimentos negros

deu origem à Lei 10.639/03, um projeto de lei apresentado em 11 de março de 1999

pelos deputados federais Ester Grossi (educadora) e por Ben-Hur Ferreira (oriundo

do Movimento Negro), ambos do PT. A lei modificou a LDBEN e foi sancionada pelo

Presidente Lula e pelo Ministro Cristovam Buarque, em 09 de janeiro de 2003. Ela

torna obrigatória a inclusão no currículo oficial de ensino da temática “História e

Cultura Afro-brasileira”1.

A lei, de início, trouxe consigo uma intensa polêmica: para alguns, significava

uma imposição de conteúdos; para outros, uma concessão. Porém, com a

realização de diversos fóruns estaduais e nacionais promovidos pelo MEC e o

empenho de diversos educadores e dos movimentos negros, os debates sobre o

ensino da História da África e dos negros no Brasil nos currículos escolares vêm

conquistando espaços significativos como parte da luta antirracista na sociedade

brasileira.

Ao lado das discussões sobre as ações afirmativas, em especial a polêmica

sobre as cotas no Rio de Janeiro, as reflexões acadêmicas vêm se ampliando e

adentrando outras discussões temáticas já presentes no campo educacional, tais

como currículo, práticas de ensino, multiculturalismo, educação inclusiva etc.

Publicações começaram a tomar corpo no cenário acadêmico, em revistas de

divulgação científica e também na mídia. Antes mesmo da promulgação da nova lei,

em 2003, todo esse movimento foi reforçado pela recorrência de publicações de

artigos sobre a educação das relações étnicorraciais nas principais revistas

acadêmicas de educação, a partir dos anos 90, assim como pela fundação da

Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), em 2000. Pode-se

também considerar como determinante nesse processo a formação de um Grupo

de Estudos Afro-brasileiros e Educação nos Encontros Anuais da ANPED, a partir

de 2002. Destaca-se, por fim, a ampliação, principalmente após a publicação da Lei

10.639/03, de cursos de pós-graduação lato-sensu sobre História da África,

relações raciais e educação em diversas instituições de ensino.

1 A lei foi modificada em março de 2008, passando a incluir a obrigatoriedade do ensino de história e culturas indígenas (Lei 11.645/08).

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Esta nova legislação, somada às ações do Estado, assume novas

abordagens interpretativas sobre a identidade nacional, com alguns pressupostos

não-eurocêntricos, pois claramente propõe ampliar o foco dos currículos. Deve-se

deixar claro de que não se trata da substituição de um “foco eurocêntrico” por um

“afrocêntrico”. Na verdade, essa nova abordagem associa a ideia de nação

democrática com o reconhecimento da diferença racial e tenta estabelecer uma

perspectiva de relações interculturais nos processos educacionais, na medida em

que declara que a educação das relações étnicorraciais impõe aprendizagens entre

brancos e negros como trocas de conhecimentos para a construção de uma

sociedade justa, igual e equânime. Os sujeitos para esta tarefa, segundo a

legislação e os agentes do Estado, são os docentes. Estes devem incorporar uma

perspectiva de reconhecimento das diferenças e das desigualdades raciais

presentes na história brasileira, adotando práticas de valorização da luta antirracista

e desconstruindo o mito da “democracia racial”. Um dos aspectos mais relevantes

dessa nova postura diz respeito à necessidade de se incorporar uma nova

perspectiva historiográfica que considere os africanos e seus descendentes no

Brasil como sujeitos históricos, em oposição ao estabelecido por longos anos de

formação histórica e historiográfica.

Este livro tem a intenção de descrever e analisar essas questões, a partir de

reflexões teóricas e relatos de experiências que estão sendo implementadas em

algumas instituições de ensino no Rio de Janeiro. Professores e especialistas

discutem aqui, a partir de diversas áreas de conhecimento, as tensões e os desafios

da perspectiva de reeducação das relações étnicorraciais na educação básica.

Desde a promulgação da Lei 10.639, em 2003, mas principalmente a partir

da sua mudança de perfil institucional, no processo de expansão da rede federal de

ensino técnico, com a reforma ocorrida em 2008,2 o IFRJ – antigo CEFET Química

– tem se destacado como uma das instituições que tem promovido experiências

exitosas em termos de práticas pedagógicas sobre as relações étnicorraciais. Em

meio a inúmeras iniciativas – que podem ser conferidas no relatório que o Instituto

enviou à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

2 A rede federal de ensino, após a promulgação da LEI nº 11.892/2008, passou a ser composta pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia; a Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR; os Centros Federais de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro – CEFET-RJ e de Minas Gerais – CEFET-MG e Escolas Técnicas vinculadas às Universidades Federais.

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(SEPPIR), em abril de 20113 –, gostaríamos de destacar aquelas promovidas pelos

docentes da área de Ciências Humanas e pela Direção do campus São Gonçalo do

IFRJ, desde o início de 2009. Em primeiro lugar, a iniciativa de organização do

Curso de Extensão “Brasil e África em Sala de Aula”, voltado principalmente para a

qualificação e a atualização de professores da educação básica, mas aberto

também à participação de estudantes de licenciatura e de militantes de movimentos

sociais e da comunidade em geral. O curso, estruturado em um formato

transdisciplinar, tem como objetivo principal oferecer a oportunidade para que seus

participantes desenvolvam a sua prática docente ou a sua militância social com a

devida base teórica e fundamentação legal. Como desdobramento desse primeiro

curso, com o incremento das demandas por parte do magistério local, teve início em

fevereiro de 2011 a primeira turma da Pós-Graduação Lato Sensu “Especialização

em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-Brasileira”. Esta Pós-Graduação

tem como finalidade contribuir para a formação, em termos de ensino e de

pesquisa, de docentes e profissionais ligados à educação, comprometidos com uma

política educacional que reconhece a nossa diversidade étnico-racial.

Estas iniciativas no campo de debate e de ação da prática pedagógica foram

ainda complementadas no Campus São Gonçalo do IFRJ com a organização do

Grupo de Pesquisa em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileira,

registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa da Plataforma Lattes do CNPq e,

finalmente, com a criação, também no início de 2011, do NEAB – Núcleo de

Estudos Afro-Brasileiros.

Nesta coletânea participam três professores envolvidos nesse processo de

discussão das relações étnicorraciais por parte do IFRJ, sendo dois deles lotados

no campus São Gonçalo e um pertencente ao campus Volta Redonda – mas

lecionando na Especialização citada acima. Tratam-se, como veremos adiante, de

contribuições no campo da reflexão teórica sobre a temática da questão racial no

pensamento social brasileiro e de questões envolvendo obras importantes da

Literatura Africana.

Outra experiência importante está presente na FAETEC.

A Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia e a Fundação de Apoio às

Escolas Técnicas do Estado do Rio de Janeiro – FAETEC, em resolução conjunta 3 Cf. o documento assinado pela Reitoria do IFRJ na data citada, intitulado “Relatório de resposta ao Ofício 505/2011/Ouvidoria/Gabinete/SEPPIR/PR”. Disponível em: http://ifrj.edu.br/site/midias/arquivos/2011413141956117_seppirfinal.pdf. Acesso: maio/2011.

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publicada no Diário Oficial do estado, em agosto de 2007, instituiu na rede de

ensino FAETEC o Núcleo de Estudos Étnico-Raciais e Ações Afirmativas - NEERA,

órgão responsável pela implementação e cumprimento dos Artigos 26–A e 79–B da

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, das Diretrizes Curriculares

Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História

e Cultura Afro-Brasileira e das Convenções Internacionais de Combate ao Racismo,

preconceito e outras formas de discriminação e violações de Direitos Humanos.

A fim de implementar o disposto na resolução, coube ao NEERA às

atribuições de promoção de pesquisa, extensão e formação continuada, em

conexão com as políticas de ação afirmativa de promoção da diversidade e

igualdade racial.

A instituição e regulamentação do NEERA expressaram as demandas

oriundas de análises e reflexões críticas do cotidiano escolar de docentes e

estudantes, desde a fundação da FAETEC, em 1997, tendo em vista a presença de

preconceitos, discriminações e racismo no cotidiano escolar e nas relações

pedagógicas.

Preocupada com o cumprimento da legislação e reconhecendo as

reivindicações de educadores e do movimento social negro, a FAETEC oficializou a

proposta de constituição de um Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros formulada por

um movimento interno de professores, a partir de 2005. Tal reconhecimento e

oficialização aconteceram em 2007 com a criação do Núcleo de Estudos Étnico-

Raciais e Ações Afirmativas (NEERA), no âmbito da Divisão de Inclusão da

instituição.

Após quatro anos de sua instituição, o NEERA já acumulou experiências e

reflexões relevantes na perspectiva de promoção da reeducação das relações

étnicorraciais nas escolas, formulando propostas de currículos, cursos de formação

docentes, elaboração de materiais didáticos e intercâmbio com outros espaços de

reflexão teórica e prática.

Fruto desse processo coletivo, esta coletânea apresenta contribuições de

cinco docentes e especialistas da questão racial, onde, a partir de suas elaborações

teóricas e práticas docentes, tentam construir caminhos e perspectivas para a

implementação da Lei 10.639/03 na rede FAETEC.

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Também damos destaque às experiências e reflexões vivenciadas no

Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da UERJ (CAp – UERJ),

especialmente as atuações de docentes nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

No ano da Copa do Mundo realizado na África, em 2010, os docentes dos

anos iniciais do CAp-UERJ compraram um desafio: estabelecer novos enfoques

históricos, literários, científicos e sociais na compreensão da constituição da nação

brasileira e uma nova fundamentação das relações étnicorraciais entre crianças dos

anos iniciais de escolaridade.

Com base em experiências didáticas, a partir de reflexões sobre a

manifestação do racismo entre crianças, somadas a questões teóricas

desenvolvidas pelas próprias docentes ao longo dos últimos 10 anos – sobre

diversos aspectos, tais como os saberes que as crianças trazem ao espaço escolar

e a construção curricular, dentre outras –, um conjunto de professoras do

Departamento dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental (DEF) do CAp - UERJ

promoveu uma série de reflexões didáticas e curriculares sobre essas temáticas.

Neste livro, alguns docentes dessa instituição socializam suas reflexões sobre este

período de escolaridade, em que algumas questões que envolvem as relações

étnicorraciais são pouco divulgadas ou aparecem como aspectos secundários no

grande tema sobre racismo e educação.

Por outro lado, a questão das diferenças culturais é outra marca do conjunto

dos trabalhos apresentados pelos docentes do IFRJ, da FAETEC e do CAp - UERJ.

Assim, conceitos como diferença cultural, culturas, exclusão social e cultura escolar

perpassam os diversos textos, interligando-se à temática étnicorracial.

Por fim, destacamos as reflexões de especialistas que há vários anos refletem

sobre a temática, em colaboração com os docentes das instituições acima citadas.

Estes, atualmente, se encontram na Secretaria Estadual de Educação do Rio de

Janeiro e em universidades públicas, como a UNIRIO, a UFRRJ e a UFRJ.

Os autores aqui reunidos desenvolvem com seus estudantes reflexões sobre

as relações étnicorraciais no Brasil, as políticas de promoção da igualdade racial e o

reconhecimento da diferença no âmbito das escolas e dos sistemas de ensino.

Quando afirmamos a necessidade de um pensamento transdisciplinar na ação

pedagógica, queremos destacar as iniciativas desses docentes, pois pertencem a

diversas áreas de conhecimento como História, Sociologia, Pedagogia, Literatura e

Ciências Sociais.

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Feitas essas considerações iniciais, apresentamos a seguir a organização e

os artigos que compõem esta obra, divididas em duas partes: desafios teóricos e

práticas pedagógicas.

A primeira parte é composta de nove capítulos.

No primeiro capítulo temos o texto intitulado “Continuísmos e rupturas na

seleção de saberes escolares de História(s): entre um Brasil Colonial e um Brasil

Decolonial”, dos professores, Claudia Miranda da UNIRIO e Rogério José de

Souza da UFRJ. O texto se localiza no campo do currículo, privilegiando autores

comprometidos com a crítica pós-colonial e suas contribuições no debate sobre

outras práticas pedagógicas. Os autores examinam aspectos do desenho

curricular que nos fixam como sujeitos coloniais (o eu e o outro), assim como

buscam interfaces sobre as formas de movimentação do currículo de História do

Brasil dentro e fora dos muros da escola. No mais, entre outras questões,

sugerem re-significações das práticas discursivas e dos espaços de construção de

saberes que possam contribuir para a ampliação das representações identitárias

em confronto com a ideia de brasilidade.

No segundo capítulo, temos o texto “O pensamento social brasileiro e a

questão racial: da ideologia do ‘branqueamento’ às ‘divisões perigosas’” de

Ricardo Cesar Rocha da Costa, professor de Sociologia do IFRJ e ex-professor da

FAETEC. Esse artigo tem como objetivo apresentar uma reflexão parcial e dirigida

sobre o pensamento social e político brasileiro e a questão racial, situando-o a

partir do debate de três ideias ou temas, cada um deles caracterizando um

determinado período histórico. A primeira seção foca o século XIX e a ideologia do

“branqueamento”, defendida pelas classes dominantes do Império, com base nas

teorias racistas de suposto cunho “científico” em voga daquela época. A segunda

seção está centrada no século XX e na discussão a respeito do mito da

“democracia racial”. Por fim, a terceira seção procura atualizar o debate sobre a

“democracia racial” neste século XXI, por conta da instituição das iniciativas

governamentais envolvendo as políticas de promoção da igualdade racial, que têm

provocado reações extremadas no meio acadêmico e na imprensa.

No terceiro capítulo temos o texto intitulado “Reflexões educativas sobre

o ensino da História da África” de Aderaldo Pereira dos Santos, professor de

História da FAETEC. O artigo reflete questões relacionadas ao ensino da História

do continente africano, sobretudo no que diz respeito aos temas da “escravidão na

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África” e “a crise africana”, tomando por base obras de referência como A

escravidão na África: uma história de suas transformações, de Paul E. Lovejoy

(2002) e Compasso de Espera: o fundamental e o acessório na crise africana, de

Carlos Lopes (1997). O autor argumenta sobre a importância das respectivas

obras no sentido de realizarmos um ensino da História da África que seja pautado

numa perspectiva crítica e complexa.

No quarto capítulo temos o texto “Da África visões da Europa ou

Exemplos de re-apoderação do discurso literário em Angola e Moçambique”, do

professor de Língua Portuguesa e Literatura do IFRJ, Marcelo Pacheco Soares. O

autor apresenta a reflexão sobre como Angola e Moçambique, independentes

politicamente de Portugal a partir de meados da década de 1970, são nações que

desde o fim do período colonial buscam se impor às tradições literárias

estrangeiras a fim de traçar suas próprias identidades. O presente ensaio

investiga como a consolidação dessas identidades se processa mais

contemporaneamente a partir da transformação de ícones de culturas

notadamente europeias em figuras locais, trazendo à leitura o personagem Jaime

Bunda (criado pelo angolano Pepetela) e o conto “Sidney Poitier na barbearia de

Firipe Beruberu” (de autoria do moçambicano Mia Couto).

No quinto capítulo temos o texto da professora da UNIRIO Maria Elena

Viana Souza, intitulado “Educação étnicorracial brasileira: uma forma de educar

para a cidadania”. Aqui, a autora tem como objetivo principal trazer para o

debate as relações que podem ser feitas entre uma educação étnicorracial e

alguns elementos constitutivos para a construção da cidadania, no contexto

escolar de educação básica. Para tanto, utiliza o pensamento de autores como

Hasenbalg (1979, 1988, 1992), Corrêa (2000), Gomes (2001), Cuche (2002),

Ferreira (2004), entre outros, recorrendo à discussão sobre a Lei 10.639.

No sexto capítulo temos o texto “Nos deram um espelho e vimos um

mundo doente” da professora de Sociologia da FAETEC Marcia Gomes de

Oliveira Suchanek. O propósito do artigo é realizar um breve histórico sobre o

processo de apropriação português das terras dos povos que habitavam o Brasil

antes da colonização. Para atender a Lei 11.465/08 e realizar um bom trabalho em

sala de aula, independente da disciplina que se esteja ministrando, a primeira

atitude a fazer, segundo a autora, é conhecer como foi construída a concepção de

“índio” e qual lugar ela ocupa na sociedade brasileira. De acordo com a

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concepção da autora, a informação histórica é o primeiro instrumento de trabalho

capaz de eliminar os preconceitos enraizados em nossa sociedade.

O sétimo capítulo, “‘A sala de aula é o último lugar onde ocorrerão

mudanças’ – Lei 11.465: suas implicações teóricas e práticas na recente produção

acadêmica”, é do professor de Sociologia da UFRRJ Luiz Fernandes de Oliveira,

também ex-professor da FAETEC e do CAp–UERJ. O objetivo do texto é sintetizar

algumas discussões que vêm se desenvolvendo em pesquisas e reflexões

acadêmicas sobre a questão da implementação da Lei 11.465 nos sistemas de

ensino, no currículo e nas escolas brasileiras, e identificar alguns limites dessas

discussões à luz da complexidade e das tensões que se apresentam entre um

dispositivo legal - que estabelece a obrigatoriedade de certos conteúdos históricos

e culturais - e as práticas e visões pedagógicas e curriculares tradicionais que têm

fortes inserções nas escolas e nas salas de aula.

O oitavo capítulo, intitulado “A união pelo traço: caminhos de leitura para a

poesia de João Maimona”, do professor de Literatura do IFRJ, Otavio Henrique

Meloni, apresenta uma reflexão literária sobre o poeta angolano João Maimona. O

autor nos mostra que a obra de João Maimona reflete o contexto social angolano

e suas mazelas, tanto como heranças da guerra de libertação nacional quanto da

guerra civil, então em pleno desenvolvimento. É um texto que amplia nossa visão

sobre a literatura de língua portuguesa e brasileira.

Fechando a primeira parte do livro, apresentamos o nono capítulo, “A

poética do Jongo: tradição e reinvenção” de Renato de Alcântara, professor de

literatura da FAETEC e Cláudia Cristina dos Santos Andrade, professora dos

anos iniciais do CAp - UERJ. O objetivo deste texto é compreender a construção

da poética dos pontos de Jongo, contribuindo com o conhecimento desta

prática pelos educadores. Os autores afirmam que a força da palavra cantada

faz emergir o orgulho de pertencer e recupera a história, retomando, na

atividade jongueira, a (re)inauguração de identidades, produzindo experiências

que se contrapõem à massificação cultural homogeneizante e

descaracterizante.

A segunda parte do livro apresenta algumas experiências pedagógicas,

acompanhadas também de reflexões teóricas, desenvolvidas em algumas

instituições de ensino do estado do Rio de Janeiro.

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Assim, no décimo capítulo, temos o texto “Além do Jonny Quest: a

utilização de dois clássicos cinematográficos como recursos didáticos no ensino

de História da África”, de Walter Angelo Fernandes Aló, também professor de

História da FAETEC. A intenção do autor é compartilhar com os professores de

História, de Literatura e das demais áreas das Ciências Sociais a experiência de

utilização de dois clássicos cinematográficos como recursos didáticos, abordando,

de maneira crítica e contextualizada, os conteúdos da cultura africana e afro-

brasileira, e contribuindo assim para a renovação das abordagens sobre o tema.

O décimo primeiro capítulo é intitulado “Zumbi: herói ou vilão?” da

professora e pedagoga da FAETEC Leda Maria de Souza Machado. Nesse artigo

apresenta-se um pouco do caminho do negro escravizado, mas reconhecido

como um homem contumaz, orgulhoso, forte, revolucionário e insatisfeito com sua

condição social, que resolveu libertar a si e a seu povo da escravidão. Após a

leitura de vários relatos sobre sua vida, atesta-se que ela é cercada de inúmeras

interrogações, a começar pelo seu nome: Zumbi ou Zambi? Teria nascido no

Brasil ou seria um chefe africano trazido para ser escravizado? Seus pais eram

conhecidos? Teria sido capturado quando criança? Ganga Zumba seria seu

parente? Teria tido mulher e filhos? A autora se questiona: de que adianta tantos

aparatos para a igualdade de direitos, se não temos acesso ao conhecimento de

nossos heróis negros nos livros didáticos, como acontece com os outros heróis

brancos?

O décimo segundo capítulo, intitulado “Ações pedagógicas e maiuêutica:

trabalhando religião ludicamente”, da professora e pedagoga Ana Cláudia Diogo

da Silva da FAETEC, discute e propõe uma reflexão sobre o tema da religião,

contextualizado no currículo da escola laica. Tendo como base a discussão da Lei

10.639/03, a partir da postura e pensamento sugeridos pela maiêutica, o artigo

enfatiza o fazer pedagógico criativo.

O décimo terceiro capítulo apresenta o texto “Eu e o outro: o professor

como artesão da interculturalidade”, de Luiz Fernandes de Oliveira, da UFRRJ, e

Mônica Regina Ferreira Lins, professora dos anos iniciais do CAp–UERJ. A partir

de falas infantis e relatos de experiências com crianças dos anos iniciais, os

autores buscam uma reflexão sobre o papel que os professores têm na promoção

de relações interculturais no currículo escolar. Para os autores, a Lei 10.639, ao

instituir a obrigatoriedade do Ensino de História da África e da Cultura Afro-

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Brasileira, implica em investimento na formação de docentes que, por longos

anos, apreenderam visões de mundo eurocêntricas – não somente por meio da

escrita, mas também por meio de imagens, fotografias, desenhos e áudios-visuais.

O artigo, além de abordar as polêmicas em torno da Lei, apresenta um

levantamento de aspectos históricos da produção da desigualdade no sistema

escolar, fazendo uso do relato de experiências de sala de aula. Assim, afirma o

pressuposto de que os docentes são importantes artesãos de práticas

interculturais.

Fechando a segunda parte, apresentamos décimo quarto capítulo,

intitulado “África e as relações étnicorraciais na educação de jovens e adultos”,

também dos professores de Luiz Fernandes de Oliveira e Mônica Regina Ferreira

Lins, tem como intenção descrever uma experiência de reflexão realizada no

curso de Extensão “Educação de Jovens e Adultos nos Anos Iniciais – contexto

histórico, cotidiano e currículo”, durante os anos de 2008 a 2010, no Instituto de

Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp–UERJ). Neste artigo, os

autores descrevem como a reflexão teórica apresentada no curso de extensão

- e para o conjunto de professores dos anos iniciais do CAp–UERJ -, gerou

certos dilemas e desafios quando se apresentaram temáticas novas e

conhecimentos históricos questionadores da visão oficial curricular no ensino

de História.

No conjunto da obra, esperamos alcançar os objetivos que estão explícitos

– e, às vezes, implícitos – nos trabalhos apresentados por todos os autores, ou

seja, o fortalecimento de intercâmbios teóricos e pedagógicos na perspectiva de

aprofundamento multidisciplinar das questões referentes à implementação das

Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e

para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na educação básica

do Rio de Janeiro. Esperamos que o leitor, além de desfrutar e compartilhar as

experiências e reflexões teóricas aqui apresentadas, se sinta motivado a caminhar

com seus autores nesta longa luta por uma educação antirracista e democrática.

Claudia Miranda Mônica Regina Ferreira Lins

Ricardo Cesar Rocha da Costa

Rio de Janeiro, maio 2011.

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Parte 1

Desafios teóricos

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Continuísmos e rupturas na seleção de saberes escolares de História (s): entre um Brasil Colonial e um

Brasil Decolonial

Claudia Miranda4 Rogério José de Souza5

Introdução

Nesta primeira década do século XXI, viradas conceituais se tornam

indispensáveis aos temas do currículo e das propostas de pedagogias alternativas

para a transmissão cultural. Em tempos de implementação de políticas

diferencialistas, de debates intensos sobre pedagogias “outras” e de proposições

voltadas para a valorização da diversidade cultural, é urgente o retorno ao

questionamento sobre a missão da escola como instância formadora apoiada na

perspectiva político-pedagógica. Observamos que a produção de pesquisas sobre

interculturalidade, pluralismo, identidade e diferença, em periódicos e coletâneas

organizadas por estudiosos, instituições dos movimentos sociais, programas de

pesquisa, Núcleos de Estudos Afrobrasileiros instituídos em universidades, tornou-

se um marco para o debate sobre a diminuição das desigualdades em sentido

amplo.

Para acompanharmos essas mudanças e as crises sucessivas no campo da

teoria social e também do pensamento pedagógico, o “giro decolonial”, como

sugere Santiago Castro-Gomez (2007), passa a ser um imperativo. Os achados

teóricos contemplados neste artigo fazem parte do desdobramento do diálogo

estabelecido com os pesquisadores do Grupo Latinoamericano de investigação

Modernidad-Colonialidad dedicados aos estudos sobre colonialidad e

decolonialidad del poder.

Importa compreendermos os projetos de intervenção desenvolvidos por

grupos populares e movimentos sociais que se comprometem com políticas e

abordagens emancipatórias sobre os sujeitos fixados como subalternos. No caso do

Brasil, ganha relevo projetos voltados à inserção de um maior número de afro- 4 Doutora em Educação pela UERJ, Mestre em Educação pela UFRJ e Professora Adjunta da UNIRIO. 5 Mestre em História pela UFRJ, professor do ensino básico e pesquisador das relações étnicorraciais.

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brasileiros nos espaços de prestígio como é o caso das universidades e de setores

do mundo do trabalho pouco sensíveis aos processos galopantes de exclusão. Os

“prejuízos coloniais” (grifos nossos) são reconhecidos, sobretudo, nas opções

políticas que reforçam os mecanismos de racialização dos diferentes outros

inventados pela colonização. Segundo Reinaldo Fleuri (2003),

Nos processos de colonização nos Estados Unidos, no Canadá, em países da América Latina, assim como em países de outros continentes, tal concepção etnocêntrica justificava a escravização e o genocídio dos povos nativos. Os imigrantes invasores trataram o continente americano como terra de conquista e não reconheceram a cultura dos indígenas, que foram obrigados a aceitar a cultura dos conquistadores. Considerando-se civilizadores e colocando em questão até mesmo a humanidade dos interlocutores, os primeiros colonizadores empreenderam uma ação de extermínio e de escravização, geralmente justificada por uma teorização pseudocientífica baseada em uma concepção evolucionista-biológica da diferença racial. Em nome de uma visão iluminista do progresso, proclamaram a inferioridade daqueles povos e destruíram suas diferentes culturas, impondo a própria civilização com o poder das armas. O Brasil de hoje, sob forte resistência, inicia sua tentativa de problematizar

suas múltiplas identidades. Neste processo, novas temáticas são introduzidas nos

currículos e nas mídias diversas. A transmissão cultural em linhas gerais ganhou

centralidade nos fóruns sobre currículo e práticas emancipatórias para o currículo

de História, não podemos ignorar o debate sobre as representações identitárias dos

sujeitos coloniais (o eu e o outro). Defendemos uma ampliação não apenas das

referências aos acontecimentos históricos e a presença dos grupos que compõem a

Diáspora Africana no Brasil. Para assumirmos um currículo ampliado faz-se

necessário reinventarmos os espaços de transmissão cultural. Caberia, portanto,

um breve entendimento sobre a proposta deste artigo: como podemos incorporar os

exemplos de experiências de projetos transversais para o debate sobre a História e

a seleção cultural? Quando produzimos saberes não-escolares e consideramos

nossas histórias locais para compreendermos a globalidade podemos vislumbrar

processos de descolonização do conhecimento a ser ensinado? Como a

invisibilização dos pressupostos advindos de uma aposta na diversidade passa a

ser um recurso de manutenção da perspectiva colonial de currículo? Os conteúdos

de História herdados da aventura colonial ganham centralidade no debate sobre os

modos de descolonizar a transposição didática em sentido mais amplo? E por

último: como podemos defender uma brasilidade decolonial indo além dos

currículos escolares e da visão eurocentrada de currículo?

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16

De certo, essas questões orientam nosso olhar investigativo e nos

aproximam de achados teóricos e metodológicos indispensáveis ao campo da

educação. De todas as indagações suscitadas neste estudo - sobre o continuísmo e

o descontinuísmo das representações do “Brasil Colonial” no currículo de História -,

nos interessou a que diz respeito ao objeto de ensino e suas diferenças com

relação ao objeto de saber correspondente. Para Ramón Grosfoguel, (2008, p.168)

“esta continuidad del poder desde la colonia hasta hoy permitió elites blancas

clasificar a las poblaciones y excluir a las racializadas de las categorías de

ciudadanía y de la comunidad imaginada conocida como la nación”. Nosso estudo

toma como base o diálogo com a crítica pós-colonial para pensar políticas e práticas

curriculares privilegiando autores comprometidos com um contra-discurso e

abordagens emancipatórias dos sujeitos coloniais (o eu e o outro).

Examinamos aspectos do desenho curricular que nos fixam como sujeitos

coloniais; buscamos interfaces que facilitem a movimentação do currículo dentro e

fora dos muros da escola; situamos nuances do debate sobre as políticas e as

relações de poder instituídas a partir do conhecimento selecionado para ser

ensinado; ampliamos a concepção de práticas pedagógicas e de espaços de

formação por entendermos que a cidade pode ser o ponto de partida para outras

pedagogias dando suporte às instituições escolares. Neste caminho, apreendemos

alguns dos determinantes que definiram o debate inevitável sobre, “Pedagogia

Decolonial”, como defende Catherine Walsh (2008). Sugerimos re-significações das

práticas discursivas sobre as identidades construídas no Brasil e nos espaços de

construção de saberes que possam contribuir para a ampliação das representações

sobre “brasilidade (s)” problematizando o lugar colonial desses sujeitos agrupados

na utopia de identidade nacional.

Currículo de História (s) do Brasil e caminhos transversais

No Brasil de hoje, gestores da administração pública, educadores e

pesquisadores, enfrentam como desafio, uma agenda pautada na ampliação das

condições de acesso ao bem cultural e oportunidades de maior participação dos

segmentos historicamente deixados de fora da experiência cidadã que privilegia,

sobretudo, a educação escolarizada. Um exemplo disso é a repercussão dos

resultados de aproveitamento da Escola Municipal Casa Meio-Norte localizada na

Page 17: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

17

periferia de Teresina (Piauí). De acordo com seu projeto educativo, a comunidade

escolar elabora uma proposta pedagógica diferente, resultado de estudos feitos

com base na Psicopedagogia. A escola fez parte das experiências documentadas

no Aprova Brasil (2007), um estudo que reuniu práticas educativas (trinta e três

escolas) consideradas de sucesso. A parceria com instituições externas à

comunidade escolar é uma das dimensões valorizadas nas conclusões porque

assim essas instituições “podem estar ligadas aos recursos e infra-estrutura da

escola, a projetos socioculturais ou a ações socioeducativas” (p.57). No documento,

ganha ênfase as práticas pedagógicas variadas e “embora haja referência a

processos pedagógicos formais, a ênfase das declarações sobre a proposta

pedagógica diz respeito a um conjunto de práticas que podem ou não ser parte de

uma proposta ou projeto político-pedagógico” (p.60). Ainda sobre a Escola

Municipal Casa Meio-Norte, chama a atenção seu projeto intitulado “Didáticas

Alternativas” que sistematiza as aulas com base numa visão espiritual da criança.

A grande repercussão dos resultados obtidos na Prova Brasil (2005) indica

como o sistema educacional, às voltas com as resoluções sobre a educação em

ciclos, os modos de avaliação, e as transformações conceituais, incorpora, por

questões irrefutáveis, teorias e discursos sobre alternativas para a transposição

didática, para o currículo, visando desestabilizar ou se quisermos “desacomodar”

(grifos nossos) a cultura escolar. Indica, ainda, como é possível promover

interseções incluindo outros espaços educativos no sentido de problematizar o lugar

do conhecimento. Segundo as análises do Aprova Brasil (2007), há, entre os

entrevistados, “declarações que explicam que os professores vão além do uso do

livro didático, trazendo para a sala de aula recursos novos ou levando as crianças

para outros ambientes e espaços onde podem interagir e aprender, na própria

comunidade, no município” (p.27). Nota-se, portanto, uma corrida pela “qualidade” e

por experiências de “sucesso” no processo ensino-aprendizagem. E, assim, ganha

centralidade a idéia de expansão dos espaços educativos. Por tudo isso, podemos

afirmar que, compreender o currículo é compreender as distintas possibilidades de

transmissão da(s) cultura (s). E se assim for, transmissão cultural está para além do

estabelecimento “escola”.

A crítica pós-colonial parte de um discurso construído fora do lugar, conforme

Edward Said (2003) aponta. Suas análises nos ajudam a compreender as práticas

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educativas e o papel do conhecimento selecionado como referência para uma dada

sociedade. Conforme Ramón Grosfoguel (2008, p.164),

El sistema-mundo capitalista está estructurado alrededor de una división internacional de trabajo y un sistema global interestatal. Las estratégias geopolíticas de los Estados del centro pueden en muchas ocasiones sacrificar sus intereses econômicos a corto prazo en aras de preservar los intereses a largo plazo del capitalismo como sistema-mundo. Los países-vitrina son ejemplos de este mecanismo. Se trata frequentemente de países militar y simbólicamente estratégicos dentro de una región. Considerando a colonização como um fato social total, podemos arriscar

afirmar o quanto faz sentido a luta por garantir espaço para narrativas

historicamente excluídas das propostas oficiais de curricular. Qual seria a história do

Brasil silenciada no processo de invenção do currículo desta disciplina escolar?

O texto introdutório dos PCNs (1997, p.10) ressalta, o quanto é preciso

colocar no centro do debate, as atividades escolares de ensino e aprendizagem e a

questão curricular como de inegável importância para a política educacional da

nação brasileira. Nota-se o quanto a questão curricular tornou-se um imperativo

para a compreensão dos arranjos sociais engendrados para reforçar as hierarquias

a partir da diferenciação dos segmentos sociais.

Pensando um pouco com Catherine Walsh (2008), entendemos a Pedagogia

Decolonial como uma possibilidade de por em cena o racismo, a desigualdade e a

injustiça racializada bem como uma oportunidade de vislumbrarmos práticas

voltadas à transformação. Apostar em uma Pedagogia Decolonial pode ser, por

exemplo, abrir mão de currículos eurodirigidos criando alternativas para

enfrentarmos as múltiplas identidades que nos constituem. Significa considerarmos

saberes outros na seleção de conteúdos vislumbrando uma maior “flexibilização do

conhecimento de referência”, se assim pudermos considerar. Seriam práticas re-

significadas, portanto, aquelas que privilegiam espaços educativos oferecidos no

itinerário percorrido ao longo de uma dada cidade.

As identidades coloniais são por si mesmas variantes fundadoras da

manutenção das diferenças que nos afetam e nos dividem entre racializados e não-

racializados. Pensando um pouco com Vron Ware (2004, p.7) o caso do Brasil, o

que está em jogo é a “necessidade de reconhecer os padrões destrutivos de

racismo que perpetuam a injustiça social e de eliminar o preconceito e a

discriminação”. O lugar de privilégio dos grupos identificados como não-racializados

(eurodescendentes e/ou brancos) parece sofrer ameaças com a lente de aumento

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dos estudos sobre a branquidade-branquitude. Segundo Bento (2003), os privilégios

dos grupos brancos não são discutidos, apesar de a escravidão dos povos

africanos ter sido desumana, deixando heranças simbólicas positivas para o

primeiro segmento.

Ao situarmos a Pedagogia Decolonial alinhada aos processos educativos no

Brasil, enfrentaremos práticas discursivas sobre as heranças e os lugares da

subalternidade que nos diferenciam pelas formas de racialização e não-racialização

ainda vigentes: seja no currículo prescrito, nas diferentes pedagogias aqui

ressaltadas ou, ainda, nos bancos escolares. Os desafios de descolonização dos

referenciais historicamente selecionados na abordagem sobre as identidades

brasileiras nos alertam para a urgência de criação de subsídios que auxiliem outras

práticas pedagógicas no processo ensino-aprendizagem de História.

Em Cultura e Imperialismo (SAID, 1995, p.106), o romance é analisado como

um artefato cultural da sociedade burguesa e como resultado, o imperialismo e o

romance se fortaleceram reciprocamente a um tal grau que seria impossível ler um

sem estar lidando de alguma maneira com o outro. Os “prejuízos identitários”, se

assim pudermos considerar, são fortemente atacados nos estudos baseados na

crítica pós-colonial. Ao considerarmos tais pressupostos como racionalidades

insurgentes, pensar a Pedagogia Decolonial significa pensar pedagogias outras

para além do espaço escolar. Sua base intercultural nos obriga a aceitar as

interseções estabelecidas para além da instituição estabelecida como legitimadora

dos saberes curriculares. Seriam, portanto, conformações necessárias ao

“empreendimento decolonial” (grifos nossos) que vai além dos muros da escola. No

sentido dado por Catherine Walsh (2008), o poder sobrevive, toma novas formas e

assume estratégias, inclusive em sociedades multiétinicas e culturalmente diversas.

Esta mutação, quando se pensa em descolonização curricular, tem sido maior que

a escola. As diferentes mídias, os espaços de socialização dos jovens pouco

valorizados pelo sistema educacional, podem ser fontes de estudos promissores no

tocante aos saberes que circulam e aos valores assimilados no que se refere aos

desejos identitários desses sujeitos sociais. Em outros termos, aprende-se em

distintos espaços educativos e sobre este aspecto, a escola não consegue

acompanhar o tempo das imagens, da produção cinematográfica que chega aos

diferentes lares do Brasil; não consegue incorporar as novidades tecnológicas

oferecidas aos adolescentes e jovens a cada instante.

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20

A escola é um estabelecimento dentre tantos outros numa dada sociedade.

Define-se na incompletude das diferentes esferas sociais. Para a efetivação de um

projeto de descolonização do currículo podemos admitir, primeiramente, suas

limitações bem como as limitações dos sujeitos nas relações de inspiração colonial

que nos caracterizam como “um país de hierarquias coloniais por inspiração” (grifos

nossos). Quando analisamos estes achados teóricos partimos de uma perspectiva

de abertura curricular e posteriormente, de insurgência do “outro colonial”.

Aceitamos ser provável instituirmos uma política curricular reconhecendo os

obstáculos forjados nessa experiência hierárquica de sociedade. Práticas

discursivas eurodirigidas passam a ser alvo dos insurgentes bem como de

movimentos reivindicatórios que visam o desfetichismo como uma estratégia de

combate aos estigmas no currículo.

Na seção “Pluralidade Cultural” que integra os temas transversais dos PCNs

(1997, p.20), o texto de apresentação destaca que:

Tratar da diversidade cultural, reconhecendo-a e valorizando-a, e da superação das discriminações é atuar sobre um dos mecanismos de exclusão - tarefa necessária, ainda que insuficiente, para caminhar na direção de uma sociedade mais plenamente democrática”. Neste eixo, segundo as pesquisadoras Vargens e Freitas (2009, p.384),

“atribui-se ao mito da democracia racial o papel de preservação de uma longa

história de discriminação na escola brasileira encoberta e sustentada pela imagem

de um país de braços abertos”. Por outro lado, as mesmas autoras encontram

semelhança na “invenção” de um Brasil Mestiço e de um Brasil Plural. Em sua

crítica o patrimônio étnicocultural é valorizado por ser um traço da chamada

brasilidade e, neste sentido, apresentam sua discordância. Para elas “esta

perspectiva implica uma visão essencialista da construção identitária, visto que a

suposta identidade nacional é definida por uma origem histórica pautada no

encontro de diferentes culturas” (VARGENS & FREITAS, 2009, p.388). Fica

evidenciada a crítica àquilo que entendem como “reforçar a idéia de culturas e

identidades de origem” e “focar na afirmação da diferença”. Podemos supor que,

esta crítica, desconsidera uma agenda política responsável por avanços

significativos sobre a mudança de discurso curricular. E, se assim for, corremos o

risco de aderir ao rebaixamento da questão político-pedagógica tão cara aos que,

ao longo das últimas décadas, lutam por justiça denunciando a hegemonia dos

discursos eurocentrados.

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21

Vimos, no trabalho de Vargens e Freitas (2009) um exemplo sobre como é

possível afastar-se da agenda política que, no final do século XX, conseguiu tocar

as políticas educacionais com vistas a problematizar o domínio da orientação

eurocêntrica. Suas conclusões não fazem distinção entre um discurso curricular que

conserva visões eurocêntricas – continuísmos a partir da idéia de um Brasil Mestiço

- e a proposta de descontinuísmos na seleção do conhecimento – a opção por um

Brasil, plural, um Brasil decolonial. Concordando com Leite (2005) a teoria da justiça

curricular apresentada por Connell (1997) favorece práticas contrahegemônicas

onde há lugar para os interesses dos menos favorecidos, para a participação e a

escolarização comum e que se estrutura na intenção de produzir situações de

igualdade. Assim, “em um currículo contrahegemônico não se trata de substituir os

beneficiários mas, sim, de superar os obstáculos que as atuais estruturas do poder

representam para um progresso intelectual e cultural partilhado”. (LEITE, 2005, p.8).

Ao analisarmos as proposições sobre pedagogias decoloniais apenas a partir de

uma concepção discursiva, tiramos a relevância do processo de construção de uma

política e de uma prática que se pretendem emancipatórias. As manifestações

contrárias às políticas diferencialistas como é o caso da implementação da Lei

10639 (2003,), que, alterou a Lei nº 9.3946 (1996), e que estabelece as diretrizes e

bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial a temática "História e

Cultura Afro-Brasileira", podem refletir as formas de resistência que denunciam

perspectivas de conservação da idéia da mestiçagem em detrimento de um Brasil

de todas as manifestações culturais.

O tecido colonial reveste nossa história, forja e deforma nossas identidades

na medida em que celebramos, cotidianamente, a partir de distintas pedagogias

sociais, no currículo em ação, na agenda escolar e nas datas comemorativas, os

processos de subalternização de segmentos inteiros de nossa sociedade como é o

caso dos afrobrasileiros. O bicentenário da chegada da Família Real Portuguesa foi,

em grande escala, um desses episódios explícitos das formas de reforçar nossas

“inspirações coloniais”. Vimos, com base em fragmentos de um projeto político-

pedagógico de uma dada escola da rede oficial de ensino médio, justificativas onde

momentos como esses “são boas oportunidades para conhecer a história da cidade

e valorizar o patrimônio herdado”. Observa-se quão natural é, nestes discursos

pedagógicos, a reprodução de pressupostos que valorizam tão somente as 6 Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

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características arquitetônicas da cidade que, por sua vez, justificam a organização

de passeios com os estudantes.

Em outros termos, a chegada da Família Real ao Rio de Janeiro passa a ser

tratada no currículo, em suas diferentes fases, – prescrito e em ação - como um fato

histórico a ser comemorado sem a devida observância dos prejuízos coloniais que

nos afetam como parte da periferia da colonização. Tais referências permanecem

intocadas e se justificam por ser este um objeto cultural legitimado na seleção de

saberes escolares e por satisfazer, historicamente, aos anseios das periferias

coloniais. No dizer de Castro-Gomez (2007, p.13), “asistimos, más bien, a una

transición del colonialismo moderno a la colonialidad global, proceso que

certamente há transformado las formas de dominación desplegadas por la

modernidad, pero no la estructura de las relaciones centro-periferia a la escala

mundial”. Para os pesquisadores do Projeto Latinoamericano modernidad-

colonialidad é importante questionar o mito da descolonização e a tese de que a

pós-modernidade nos conduz a um mundo já desvinculado da colonialidade

(CASTRO-GOMEZ, 2007, p. 14). Sob essa orientação, afirma-se que a ciência

social contemporânea não conseguiu incorporar o conhecimento “subalterno” aos

processos de produção de conhecimento (Idem).

Pedagogias outras e ampliação dos espaços educativos para rever a História

Ao propormos abordagens significativas para a experiência pedagógica de

grupos e/ou sujeitos envolvidos na transposição e/ou mediação do conhecimento

(conhecimento selecionado para ser ensinado e legitimado como currículo), não

podemos abandonar as pesquisas sobre diversidade e re-significação das políticas

curriculares. Em outro lugar (MIRANDA, 2010, p.4) afirmamos:

O desafio que se coloca para educadores/as em contextos multiculturais como é o caso do Brasil, inclui a análise da utilização de recursos antes desprezados como, por exemplo, a própria cidade onde se vive: um espaço educativo privilegiado. As histórias locais passam a subsidiar metodologias consideradas indispensáveis para uma transposição didática pautada na desfolclorização de espaços e de grupos que dele fazem parte.

Para tanto, seria conveniente observarmos as seguintes orientações a serem

consideradas pelas instâncias e pelos sujeitos envolvidos nos processos de

transmissão cultural:

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23

• Refletir criticamente sobre as formas alternativas de orientar o processo de ensinar e aprender a História do Brasil e a sua diversidade;

• Refletir sobre as formas possíveis de mediar com justiça todo e qualquer conhecimento selecionado como currículo;

• Considerar outras referenciais para a pesquisa como parte de um todo incluindo os saberes não-selecionados convertendo-os em escopo para o desenvolvimento de um currículo mais aberto e conseqüentemente mais justo;

• Conhecer, analisar e criticar orientações metodológicas, orientações didáticas e os arranjos que legitimam os currículos oficiais.

Chama a atenção as possibilidades que já estão ao nosso alcance de

reconhecermos outras formas de narrar as histórias do Brasil.

Juliana Lages Sarinho (2010) desenvolve uma pesquisa ressaltando “a

necessidade de ampliar os estudos sobre patrimônio, estendendo-se a análise da

produção da memória social ao âmbito da recepção, pelos diferentes grupos

sociais, dos bens que pretendem representar e materializar uma memória comum”.

A autora ressalta que a “expressão ‘educação patrimonial’ configura-se como uma

redundância, pois não existe processo de aprendizagem que não leve em

consideração certo entendimento sobre o que seja patrimônio”. Argumenta, ainda,

que “falar em educação patrimonial é falar em educação cultural, não havendo

distinção entre as duas e fazendo com que a primeira seja considerada parte

integrante de todo o processo educacional que leva em consideração a formação

holística do indivíduo socialmente atuante”. (CHAGAS Apud SARINHO, 2010, p.92).

Assim, o conjunto dos bens patrimoniais possui a função de criar um repertório

simbólico que possibilite estabelecer na sociedade a noção de pertencimento e de

identidade nacional. Por isso, entre os atores sociais e os bens eleitos, poderia

existir um pacto afetivo e os valores culturais em destaque passariam a ter sentido

em suas vidas (SARINHO, 2010, p.98).

Ao aceitarmos a proposição da Pedagogia Patrimonial, poderíamos

considerar a multidimensionalidade da transmissão cultural e um currículo,

conseqüentemente, mais abrangente, mais flexível. Para a análise das

incompletudes no ensino de História – uma transposição analisada à luz da

diversidade cultural – parece haver um continuísmo favorecendo as representações

de um Brasil colonial em confronto com um Brasil Decolonial. Sendo a transposição

didática o trabalho que transforma um objeto de saber em um objeto de ensino,

passa a ser indispensável o reforço do apelo presente no texto dos Parâmetros

Page 24: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

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Curriculares (1997) acerca das alternativas ancoradas na diversidade cultural que

nos atravessa.

Na discussão sobre a rejeição da alteridade, importa entender “que forças

históricas e contemporâneas sustentam as formações particulares da branquidade

no Brasil” (WARE, 2004, p.9) e quais estratégias anti-coloniais seriam apropriadas

para subvertê-las. Tal convergência implica ações políticas no que concerne às

agendas dos grupos que confrontam os discursos curriculares e a luta por direito do

“outro” colonial como partícipe na construção da memória do país.

A guisa de conclusão

No quadro teórico aqui explorado, ganhou visibilidade a Pedagogia

Decolonial (Walsh, 2008) como escopo para vislumbrarmos outras pedagogias no

sentido de trabalharmos à favor da justiça curricular. Localizamos a problemática

sobre os lugares coloniais estabelecidos sob “imitação” e sobre os diferentes modos

de mediar os saberes selecionados como conhecimento de referência.

A imitação, neste contexto, pode significar um modo de comportar-se de

grupos e/ou sujeitos que se consideram estabelecidos, detentores de um bônus que

permite definir as hierarquias nas relações cotidianas e conseqüentemente, no

currículo.

Quando observamos as nuances do questionamento realizado sobre o que

querem os sujeitos fora do lugar (o outro colonial), sobretudo quando examinamos

as representações construídas nos referenciais no currículo de História, destaca-se

o apelo ao sistema colonial que assegura, a partir de um resgate constante da

memória, as práticas de fixação, de manutenção dos insurgentes, dos não-

europeus, dos outros produzidos ao longo da formação de uma suposta identidade

brasileira.

A descolonização da consciência e da memória de uma sociedade

dependerá da sua capacidade de enfrentar as aberrações do colonialismo que

hierarquizam grupos humanos pelas formas de imitação engendradas, também, nas

mediações curriculares.

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25

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O pensamento social brasileiro e a questão racial: da ideologia do “branqueamento” às “divisões perigosas”

Ricardo Cesar Rocha da Costa7

1. Século XIX: as elites dirigentes e as políticas de “branqueamento”

Pode-se dizer que o processo de independência política do Brasil, no início

do século XIX, inseriu na pauta de discussões da nossa elite dirigente, latifundiária e

escravagista, a preocupação com a construção de uma Nação soberana,

desenvolvida economicamente, mas que deveria, no futuro, partilhar socialmente

dos padrões civilizatórios de inspiração européia, considerados como superiores,

em comparação com outros povos. Tal ideia era baseada em fundamentos ditos

“científicos”, difundidos entre muitos intelectuais brasileiros que, exatamente por

serem “filhos” dessa citada elite dirigente, faziam seus estudos superiores na

Europa.

A ideia científica de “raça” teve origem e começa a ser difundida no final do

século XVIII e durante todo o século XIX. Pensadores europeus como Ernest

Renan, Arthur de Gobineau, Gustave Le Bon, Vacher de Lapouge, entre outros, não

só se preocuparam com o estabelecimento de um sistema classificatório de caráter

“científico”, como procuraram sempre comprovar a superioridade civilizatória da

“raça” branca – com destaque para a de origem “ariana”, conforme pensava

Gobineau – e a prática da “mistura” como “fonte de decadência para a raça

superior” (WIEVIORKA, 2007, p. 21). Teorias evolucionistas, como as formulações

defendidas por Lapouge, Herbert Spencer e Lewis Morgan, distinguiam a existência

de diferentes estágios de evolução da humanidade (selvageria, barbárie e

civilização, segundo Morgan), com diagnósticos nada “animadores” sobre o futuro

do Brasil: na visão de Lapouge, um país que apresentava “uma imensa nação

negra em regressão para a barbárie” (citado por CARNEIRO, 1995, p. 22).

De fato, estatísticas divulgadas na segunda metade do século XIX (1872)

apontavam que a população livre brasileira, de cor, dezesseis anos antes da

7 Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense. Doutorando em Serviço Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor de Sociologia do IFRJ – Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – Campus São Gonçalo.

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Abolição, correspondia a 42% da população. Este percentual, somado aos 16% de

população escrava, representava um total de 58% de negros, em relação à

população total (cf. SKIDMORE, 1989, p. 57). Este número “incomodava” a elite

política, preocupando inclusive abolicionistas como Joaquim Nabuco, que

levantavam dúvidas sobre a constituição de uma sociedade liberal numa realidade

que apresentava um grande contingente populacional não-branco (cf. SKIDMORE,

1989, p. 38). Estava em jogo, portanto, como afirmou-se acima, a construção de

uma futura identidade nacional.

Desde antes da independência, entretanto, políticas oficiais de

“branqueamento” da população estavam em curso. Esse foi o caso, por exemplo,

da assinatura, em 1818, por D. João VI, do tratado de colonização de Nova Friburgo

por imigrantes suíços – fato que deveria ser entendido, segundo o príncipe regente,

como “parte de um processo civilizatório em curso no Reino do Brasil” (SEYFERTH,

2002, p. 30). Mais adiante, em 1824 – já durante o governo de D. Pedro I –, fatores

geopolíticos determinaram a destinação de recursos públicos para o assentamento

de imigrantes alemães no Sul do país. O projeto de colonização foi retomado com

recursos privados na década de 1840. Segundo Giralda Seyferth,

“Havia o entendimento de que terras públicas deviam ser colonizadas com imigrantes europeus, alimentado pela crença de que a existência do regime escravista era empecilho para a implantação de uma economia liberal no país e a população de origem africana não se coadunava com os princípios da livre iniciativa. Nessa lógica evidentemente racista, negros e mestiços (e também os índios selvagens) podiam ser escravos, servos ou coadjuvantes, mas não se adequavam ao trabalho livre na condição de pequenos proprietários” (SEYFERTH, 2002, p. 30-31).

Na década de 1850, ainda segundo Seyferth, a publicação da tese

determinista racial do conde de Gobineau, que defendia as “virtudes civilizatórias”

do branco europeu, reforçou a defesa das políticas de imigração planejadas pelo

Estado (Idem, 2002, p. 32). Gobineau, diga-se de passagem, foi embaixador

francês no Brasil, onde desembarcou em 1869. “Amigo pessoal” do Imperador

Pedro II, considerava-o uma honrosa exceção numa terra “desprezível”, de cultura

estagnada e sob a ameaça de terríveis doenças tropicais. Quanto ao povo

brasileiro, caracterizava-o como “uma população totalmente mulata, viciada no

sangue e no espírito e assustadoramente feia”, além de definir os nativos como

“nem trabalhadores, nem ativos, nem fecundos” (passagens citadas por

SKIDMORE, op. cit., p. 46-47).

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30

Apesar da tese de Gobineau a respeito da tendência ao desaparecimento da

população brasileira, por causa da “degenerescência” genética, como conseqüência

da intensa mestiçagem (Idem, ibidem)8, alguns intelectuais brasileiros, no final do

século XIX e início do XX, passaram a entender as políticas de “branqueamento”

como a solução possível para o objetivo de se garantir, no futuro, um país partícipe

da moderna “civilização européia”.

Silvio Romero, por exemplo, entendia a existência de uma hierarquia racial

(“escala etnográfica”), entre o branco europeu, o negro africano e o índio nativo

(nesta ordem), afirmando que essa mistura é que apontava o caráter particular do

Brasil, dando origem a “uma sub-raça mestiça e crioula” – porém, sob o predomínio

dos brancos, em razão da sua cultura mais desenvolvida (cf. SKIDMORE, op. cit., p.

50-51). Dentre as contribuições das “raças” subjugadas, o preto trazia o importante

componente de adaptação dessa nova raça ao clima tropical. Mas, apesar da

mestiçagem quase completa que Romero chega a descortinar no horizonte da

História futura do Brasil, ele não apresenta conclusões enfáticas, variando entre da

tese da “vitória do branco” à de “uma mescla áfrico-indiana e latino-germânica”,

desde que se priorize a imigração alemã (ver SKIDMORE, 1989, p. 51-53). Em

1888, contudo, Romero se mostrava mais confiante:

“O povo brasileiro, como hoje se nos apresenta, se não constitui uma só raça compacta e distinta, tem elementos para acentuar-se com força e tomar um ascendente original nos tempos futuros. Talvez tenhamos ainda de representar na América um grande destino histórico-cultural” (ROMERO, 1888, p. 66 apud SKIDMORE, 1989, p. 53).

Apesar desse tipo de visão de caráter racista – descontando-se, é claro, a

relação entre o pensamento social predominante e o contexto histórico –, como é o

caso das idéias defendidas por Silvio Romero, surpreende, na obra clássica de

Skidmore, a revelação de que, já no século XIX, “os abolicionistas partilhavam da

crença geral de que a sociedade brasileira não abrigava preconceito racial”, ao

contrário do que ocorria nos Estados Unidos (1989, p. 38). O brasilianista cita, como

exemplo, um deputado escravagista de Minas Gerais, indignado com “injustificadas

e caluniosas críticas à harmonia racial brasileira” (1989, p. 39. Grifos meus), assim

8 Registre-se que Gobineau não estava sozinho na defesa dessas idéias: outros observadores estrangeiros que aqui aportaram ainda no século XIX, tais como o argentino Inginieros e os franceses Louis Couty e Louis Agassiz, entendiam que os males do Brasil eram causados pela sua colonização pelos africanos escravizados ou pela mistura de raças (cf. SKIDMORE, 1989, p. 47).

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31

como a seguinte afirmação de Joaquim Nabuco em O Abolicionismo, também

bastante significativa:

“A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor, falando coletivamente, nem criou, entre as duas raças, o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos” (NABUCO, 1883, p. 22-3 apud SKIDMORE, 1989, p. 39).

Essas ideias não impediram, no entanto, a defesa da tese do

“branqueamento” também entre os abolicionistas, através da imigração européia,

que deveria ter o seu processo “evolutivo” acelerado. O triunfo gradual do branco

também contribuiria, segundo os abolicionistas, para resolver o problema da

escassez de mão-de-obra, resultante do fim da escravidão. Skidmore cita mais uma

vez Nabuco, para ilustrar sua defesa de um projeto de país,

“(...) onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberdade do nosso regime, a imigração européia traga sem cessar para os trópicos uma corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo...” (NABUCO, 1883, p. 252 apud SKIDMORE, 1989, p. 40).

Para complementar o que se expôs acima, Skidmore cita também José do

Patrocínio, que afirmou, comparativamente, ser o Brasil “mais abençoado” que os

Estados Unidos,

“(...) podendo fundir em massa popular indígena todas as raças, porque a civilização portuguesa, em vez de haver procurado destruir as raças selvagens, as assimilou, preparando-se assim para resistir à invasão assoladora do preconceito de raças” (PATROCÍNIO, 1887 apud SKIDMORE, 1989, p. 40).

Essa ideia de “fusão” de raças, desde que sob a supremacia branca

européia, e a tal harmonia racial propalada pelas elites, se inserem num processo

de construção de uma história do Brasil impermeável a conflitos de quaisquer

espécies, como que se pudesse ignorar as diversas lutas travadas nas províncias

imperiais, que ocorreram nesse mesmo século, acirradas pelo processo de

emancipação política, assim como o genocídio da população indígena, que teve

início já no século XVI, e toda a violência inerente à escravidão, desde o outro lado

do Atlântico.

A Lei Áurea, no entanto, logo seguida pelo advento da República,

impulsionou o debate iniciado pelos abolicionistas e por Silvio Romero, exigindo da

elite intelectual uma redefinição da presença do negro na sociedade brasileira,

visando a definição de uma almejada identidade nacional.

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32

Um dos autores que discute a questão acima com bastante propriedade é o

professor da Universidade de São Paulo – USP, o antropólogo Kabengele

Munanga. No seu concurso de livre-docência, esse autor formula hipótese e tese

que seguem na linha das reflexões apontadas por Skidmore, no sentido de que “o

processo de formação da identidade nacional no Brasil recorreu aos métodos

eugenistas, visando o embranquecimento da sociedade” (MUNANGA, 2004, p. 15).

Embora tenha fracassado em seu principal objetivo, essa idéia, segundo Munanga,

teria vingado por meio de mecanismos psicológicos, que permaneceram intactos

“no inconsciente coletivo brasileiro, rodando sempre nas cabeças de negros e

mestiços”, que desejam “ingressar um dia na identidade branca, por julgarem

superior” (Idem, ibidem, p. 16). O fracasso concreto do branqueamento físico,

portanto, na opinião do autor, não destruiu a ideologia do branqueamento.

Discutindo o tema “A mestiçagem no pensamento brasileiro”, Munanga

discorre sobre a recepção, entre intelectuais brasileiros, do determinismo biológico,

que acreditava “na inferioridade das raças não brancas, sobretudo a negra, e na

degenerescência do mestiço” (MUNANGA, op. cit., p. 55). Como membros da elite

dirigente do fim do século XIX e início do século XX, tais pensadores foram

diretamente influenciados pela ciência européia ocidental, no debate intelectual a

respeito da construção da nacionalidade brasileira. Citando um artigo da

antropóloga Giralda Seyferth, Munanga afirma que

“O que estava em jogo (...) era fundamentalmente a questão de saber como transformar essa pluralidade de raças e mesclas, de culturas e valores civilizatórios tão diferentes, de identidades tão diversas, numa única coletividade de cidadãos, numa só nação e num só povo” (Idem, ibidem, p. 55).

Assim, Kabengele Munanga destaca que, enquanto Silvio Romero – apesar

das inconsistências apontadas por Skidmore (cf. 1989, p. 53), como se viu acima –

defendia a “homogeneização da sociedade brasileira” através da mestiçagem,

apostando, com “otimismo”, no futuro de uma nação brasileira branca, quase todos

os outros pensadores de destaque nessa época, tais como Nina Rodrigues,

Euclides da Cunha e Oliveira Vianna, seguiam linhas diferentes de análise. Entre

eles, Nina Rodrigues, ao contrário de Romero, destilava “pessimismo” com a

possibilidade de construção de uma identidade nacional única. Diagnosticando

características raciais inatas e imutáveis, de cunho hierárquico, Rodrigues defendia

uma institucionalização das diferenças que, segundo Munanga, poderia ter

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33

construído no Brasil uma espécie de regime de apartheid (MUNANGA, op. cit., p.

60). Euclides da Cunha, famoso pela obra Os Sertões, filiava-se à corrente

“pessimista” em relação à identidade nacional, não acreditando em uma nação

etnicamente branca no futuro, mas sim mestiça – e, por isso, degenerada, “sem a

energia física dos ascendentes selvagens e sem a atitude intelectual dos ancestrais

superiores” (Idem, ibidem, p. 62).

Já outro intelectual desse período, João Batista de Lacerda, diferentemente

dos anteriormente citados, considerava os mestiços como física e intelectualmente

superiores aos negros. Apostava, porém, como Silvio Romero, numa futura

composição racial de maioria absoluta branca, com base na mestiçagem – mas,

diferentemente de previsões de outros autores, somente no Brasil do século XXI (cf.

MUNANGA, 2004, p. 67-69).

Paralelamente às questões citadas, uma determinada corrente teórica terá

intersecção nesse debate, principalmente durante a primeira metade do século XX:

os defensores das idéias eugenistas, que constituíram um movimento internacional

“em defesa da pureza e da limpeza da raça”. Representados no Brasil pelo médico

Renato Kehl e com apoiadores entusiasmados, como o escritor Monteiro Lobato,

além de diversos políticos e intelectuais, o movimento eugenista brasileiro foi

“isolado” e “esquecido” a partir de 1942, com a entrada do país na Segunda Guerra

Mundial, ao lado das tropas norte-americanas (cf. DIWAN, 2007).9

Vozes radicalmente discordantes da época, influenciados pelos estudos

antropológicos de Franz Boas e de outros intelectuais, Alberto Torres e Manuel

Bomfim rejeitaram as idéias que defendiam a inferioridade étnica do Brasil, focando

o problema do país na alienação das elites e na exploração estrangeira [Torres], e

em causas históricas relacionadas ao caráter predatório da colonização ibérica,

como sendo as responsáveis pelo relativo atraso cultural, científico, político e de

organização social dos países latino-americanos [Bomfim] (cf. MUNANGA, 2004, p.

67-68).

Outro pensador destacado por Munanga foi Francisco José de Oliveira

Vianna, em razão da sua capacidade de sistematização e de difusão das idéias de

9 Além de Kehl e Lobato, a historiadora Pietra Diwan relacionou diversos intelectuais como defensores das idéias eugenistas no Brasil, entre os quais Oliveira Vianna, Roquette-Pinto, Fernando Azevedo, o sanitarista Arthur Neiva e o psiquiatra Francisco Franco da Rocha (ver DIWAN, op. cit., p. 92-100). A partir de 1942, segundo Diwan, os adeptos brasileiros da eugenia “desapareceram da cena política ou trataram de reorientar suas histórias omitIndo sua participação nesse movimento” (p. 121). A exceção foi o médico Kehl, que virou uma voz isolada.

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34

caráter racista no Brasil – apesar da sua aparente superação teórica, nessa época,

proporcionada pelos estudos desenvolvidos por Boas, citados acima, acolhidos no

país por Torres e Bomfim. Oliveira Vianna formula uma verdadeira hierarquização

da mestiçagem ocorrida no país, com a produção de mestiços “superiores” e

“inferiores”. Concorda com Nina Rodrigues, quando afirma que a mistura entre

negros e brancos apresentaria um caráter degenerescente; mas se aproxima

também de Euclides da Cunha, quando defende que a mistura entre brancos e

índios resultaria num mestiço fisicamente superior ao mulato (cf. MUNANGA, op.

cit., p. 71-76). De qualquer forma, a principal tese de Oliveira Vianna – que ele

procura demonstrar através de estudos de projeção demográfica – é a futura

arianização do Brasil, seja pelo aumento quantitativo da população branca “pura”,

em razão do estímulo governamental à imigração européia, seja pela crescente

mestiçagem, que reduziria o coeficiente dos sangues negro e índio (cf. MUNANGA,

op. cit., p. 80-87). Vale a pena reproduzir um fragmento da interessante formulação

de Oliveira Vianna, citada por Munanga, comparando a situação do negro e as

relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos – questão, como se vê, há muito

tempo na pauta dos debates sobre essa temática:

“Não há perigo de que o problema negro venha a surgir no Brasil. Antes que pudesse surgir seria logo resolvido pelo amor. A miscigenação roubou o elemento negro de sua importância numérica, diluindo-o na população branca. Aqui o mulato, a começar da segunda geração, quer ser branco, e o homem branco (com rara exceção) acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio. Como nos asseguram os etnólogos, e como pode ser confirmado à primeira vista, a mistura de raças é facilitada pela prevalência do “elemento superior”. Por isso mesmo, mais cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui. É óbvio que isso já começou a ocorrer. Quando a imigração, que julgo ser a primeira necessidade do Brasil, aumentar, irá, pela inevitável mistura, acelerar o processo de seleção” (VIANNA, 1899 apud MUNANGA, 2004, p. 86).

Como concluiu Munanga, a citação, por si só, dispensa outros comentários a

respeito da ideologia do “branqueamento” presente no processo de miscigenação,

conformando, no Brasil, a construção de uma identidade nacional baseada na

herança branca européia, e negando qualquer possibilidade de se pensar em

alguma identidade alternativa, fundamentada na herança negra de origem africana

(cf. MUNANGA, 2004, p. 87).

A partir dos anos 30 do século XX, no entanto, esse debate vai assumir

outras características, como se verá a seguir.

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2. Século XX: o mito da “democracia racial”

A busca de uma identidade nacional, sob o ponto de vista da questão racial,

assume outro caráter nos anos 1930 e 1940, com especial destaque a partir de

1933, com a publicação de Casa-grande & senzala, do sociólogo pernambucano

Gilberto Freyre. De acordo com Maria Luiza Tucci Carneiro, Gilberto Freyre, ao

contrário do pensamento anteriormente em voga, defendeu a idéia que o país havia

resolvido seu problema racial, através do encontro das três raças:

“Em vez de ameaça, a mestiçagem foi transformada por Gilberto Freyre em solução para os problemas do Brasil, graças ao legado cultural português. O brasileiro estaria a caminho de produzir uma nova raça através do processo de miscigenação, que (...) possibilitou ao mulato – que atendia aos padrões estéticos e eugênicos do senhor branco – melhores condições de vida e ascensão social” (CARNEIRO, 1995, p. 35-36).

Para corroborar a afirmação de Carneiro, nada melhor do que reproduzir,

juntamente com a autora, dois trechos inteiramente esclarecedores da própria obra

de Gilberto Freyre:

“O intercurso sexual de brancos dos melhores estoques – inclusive eclesiásticos, sem dúvida nenhuma, dos elementos mais seletos e eugênicos na formação brasileira – com escravas negras e mulatas foi formidável. Resultou daí grossa multidão de filhos ilegítimos – mulatinhos criados muitas vezes com a prole legítima, dentro do liberal patriarcalismo das casas-grandes; outros à sombra dos engenhos de frades; ou então nas “rodas” e orfanatos. Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se construiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado; no máximo da contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador com a do conquistado” (FREYRE, 1987, p. 91; 442-443 apud CARNEIRO, 1995, p. 36. Grifos meus).

Assim, como se depreende dos pequenos fragmentos acima, Gilberto

Freyre, segundo Renato Ortiz (1994), “desloca o eixo da discussão, operando a

passagem do conceito de ‘raça’ ao conceito de cultura”, permitindo “um maior

distanciamento entre o biológico e o cultural” (MUNANGA, 2004, p. 87). No

entendimento de Kabengele Munanga, Freyre, ao contrário dos autores anteriores,

que viam a mestiçagem como um processo extremamente negativo, vinculado à

degenerescência, apresenta uma nova formulação para a construção da identidade

nacional, inaugurando o “mito originário” da três raças constituintes da sociedade

brasileira. Esta é a base para a construção do mito da “democracia racial”, como

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36

afirma Renato Ortiz: “somos uma democracia porque a mistura gerou um povo sem

barreira, sem preconceito” (ORTIZ, 1994, p. 41 apud MUNANGA, op. cit., p. 89).

No entendimento de Munanga, o mito da democracia racial brasileira, ao

exaltar a harmonia entre as três raças, penetra profundamente na sociedade,

encobrindo as desigualdades sociais e facilitando a alienação dos não-brancos, ou

seja:

“(...) encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma identidade própria. Essas características são ‘expropriadas’, ‘dominadas’ e ‘convertidas’ em símbolos nacionais pelas elites dirigentes’” (MUNANGA, 2004, p. 89).

Segundo Thomas Skidmore, ao valorizar o papel cultural específico do

africano, principalmente, mas também do indígena, no processo de construção da

identidade nacional, Gilberto Freyre contribuiu para a interpretação do Brasil como

uma sociedade multirracional, em que as contribuições das três raças eram

“igualmente valiosas” (SKIDMORE, 1989, p. 211. Grifos no original). Na verdade,

observa o próprio Skidmore, a análise apresentada por Freyre, ao contrário da idéia

de se promover um pretenso “igualitarismo racial”, reforçava

“(...) o ideal de branqueamento, mostrando de maneira vívida que a elite (primitivamente branca) adquirira preciosos traços culturais do íntimo contato com o africano (e com o índio, em menor escala)” (SKIDMORE, op. cit., p. 211).

Segundo o antropólogo Roberto Da Matta, essa “fábula das três raças”,

inspirada nas idéias de Freyre, deu origem a uma mistificação do racismo numa

sociedade completamente hierarquizada e anti-igualitária como é o Brasil,

“impedindo o confronto do negro (ou do índio) com o branco colonizador ou

explorador de modo direto”. A intermediação e o sincretismo, segundo esse autor,

além de impedir o conflito, tem o papel de obliterar a “percepção nua e crua dos

mecanismos de exploração social e política“, referendando a idéia de predomínio da

“harmonia” nas relações raciais (DA MATTA, 1981, p. 83).

As críticas apontadas acima foram formuladas pelos meios acadêmicos em

anos mais recentes. Historicamente, no entanto, as teorias do “branqueamento”

passaram a ser duramente questionadas após a Segunda Guerra Mundial, quando

a Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura, em função das conseqüências provocadas pela expansão das teorias e

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37

dos regimes nazi-fascistas, preocupou-se com o encaminhamento de ações de

combate a políticas e ideologias baseadas em discriminações raciais. Nesse

sentido, a anunciada “democracia racial brasileira”, inspirada pela obra de Gilberto

Freyre, ganhou notoriedade e interesse acadêmico, como um estudo de caso que

deveria ser investigado, por oposição não só às ideologias racistas citadas, como

em relação aos conflitos violentos que caracterizavam as relações raciais norte-

americanas. Dessa forma, na década de 1950, a Unesco patrocinou uma pesquisa

das relações raciais no Brasil, a partir da Universidade de São Paulo – USP,

coordenada pelo pesquisador francês Roger Bastide e pelo sociólogo brasileiro

Florestan Fernandes. Estes e outros pesquisadores – tais como Oracy Nogueira,

Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, entre outros –, a partir desse grande

projeto da Unesco, negaram empiricamente a tese de Gilberto Freyre que

identificava as relações raciais brasileiras como sendo “harmoniosas” – pelo

contrário, apontavam a existência de uma clara desigualdade e de um intenso

preconceito racial, que acompanhava a desigualdade social brasileira.

Para ilustrar o alcance dessas pesquisas, vale a pena citar o comentário de

Lilia Moritz Schwarcz, na apresentação da reedição de uma das obras produzidas

por Florestan Fernandes no contexto do projeto Unesco, O negro no mundo dos

brancos. Citando as pesquisas de Fernandes, Schwarcz afirma que

“O autor notava (...) a existência de uma forma particular de racismo: ‘um preconceito de não ter preconceito’. Ou seja, a tendência do brasileiro seria continuar discriminando, apesar de considerar tal atitude ultrajante (para quem sofre) e degradante (para quem a pratica)”. O conjunto de pesquisas do autor apontava, dessa forma, para novas facetas da ‘miscigenação brasileira’. Sobrevivia, enquanto legado histórico, um sistema enraizado de hierarquização social que introduzia gradações de prestígio a partir de critérios como classe social, educação formal, origem familiar e de todo um carrefour de cores. Quase como uma referência nativa o ‘preconceito de cor’ fazia as vezes da raça, tornando ainda mais escorregadios os mecanismos de compreensão da discriminação. Chamado por Fernandes de ‘metamorfose do escravo’, o processo brasileiro de exclusão social desenvolveu-se de modo a empregar termos como ‘preto’ ou ‘negro’ – que formalmente remetem à cor de pele – em lugar da noção de classe subalterna, nesse movimento que constantemente apaga o conflito. Invertia-se, pois, a questão: a estrutura social brasileira é que era um problema para o negro, uma vez que bloqueava sua cidadania plena” (SCHWARCZ, 2007, p. 18-19).

Para o que nos importa no escopo deste trabalho, a citação acima cumpre a

função de identificar, tomando o pensamento de Fernandes como referência, o

posicionamento dos pesquisadores da USP e da Escola Paulista de Sociologia –

também integrante do projeto Unesco – no debate a respeito do mito da

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38

“democracia racial brasileira”, através da afirmação da permanência da

hierarquização, dos conflitos e de uma forma particular de racismo.

Nos anos 1970, na trilha aberta pelos pesquisadores paulistas, os sociólogos

Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, entre outros, ampliam os estudos

desenvolvidos em São Paulo, apresentando análises que apontavam para diversas

características do racismo no Brasil, fundamentadas em análises de pesquisas

quantitativas, a partir dos dados apurados pelos Censos Demográficos oficiais e

outras estatísticas populacionais, empreendidas pelo IBGE – Fundação Instituto

Brasileiro de Geografia e de Estatística. Tais análises revelavam, por exemplo, que

o racismo brasileiro poderia ser mensurado no maior percentual de vitimização de

agressão física sofrida por pretos e por pardos, em comparação com os brancos,

assim como, da mesma forma, por outros indicadores, tais como posse de

documentos oficiais de identificação; escolaridade e freqüência à escola, em todos

os níveis de ensino; acesso ao mercado de trabalho; abordagem policial etc. (ver, a

título de exemplo, HASENBALG, 2005; HASENBALG, SILVA e LIMA, 1999).

Por fim, deve-se registrar o grande embate no desmascaramento do mito da

“democracia racial” promovido pelo Movimento Negro brasileiro, no contexto da

redemocratização pós-ditadura militar de 1964.10 O movimento, de uma certa forma,

complementou politicamente e foi complementado pelas pesquisas acadêmicas que

se iniciaram nos anos 1950, que serviram de suporte teórico e estatístico à

denúncia do preconceito racial existente no Brasil – na contramão do que

afirmavam as elites intelectuais até então. Em um artigo a respeito do movimento

negro, Amauri Mendes Pereira assinala que, durante o regime autoritário, a

ascensão do nível de instrução e de acesso ao emprego, por parte da população

negra – uma conseqüência do chamado “milagre econômico” –, trazendo

“possibilidades de mobilidade ascendente, principalmente nos centros urbanos”,

favorece a presença de negros em espaços (bairros, locais de trabalho, culturais e

de lazer) até então “reservados” às elites brancas:

“Com este novo quadro, os conflitos étnicos eram inevitáveis. Começava o desmascaramento (tanto para quem vivenciava as situações, como para a população em geral, através das sucessivas denúncias de discriminação racial nos meios de comunicação) das aparentes tranqüilidade e justeza das relações raciais no Brasil” (PEREIRA, 1999, p. 95-96).

10 Não cabe aqui a apresentação e a discussão sobre o movimento negro brasileiro, sob o risco de escapar aos objetivos mais imediatos deste trabalho.

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39

Joel Rufino dos Santos, por sua vez, afirma, muito apropriadamente, que “o

movimento negro, no sentido estrito, foi uma resposta, em condições históricas

dadas, ao mito da democracia racial”. Esse mito, segundo ele, elaborado “no bojo

da Revolução de Trinta”, não se referia simplesmente em uma tese acadêmica:

“(...) a crença na democracia racial decorria do senso-comum brasileiro, naquelas circunstâncias históricas; e, ao mesmo tempo, estava entretecida a outros conjuntos de imagens idealizadas, como o da história incruenta, o da benignidade da nossa escravidão, o da cordialidade inata do brasileiro, o do destino manifesto etc.” (SANTOS, 1985, p. 287).

Assim, identificando-se o movimento negro brasileiro contemporâneo do

ponto de vista das entidades que se organizaram na luta anti-racista, o surgimento

da Frente Negra Brasileira, em 1931, pode ser entendido no contexto como parte de

uma reação ao senso-comum que acreditava no mito da “democracia racial”, citado

acima por Santos.

Da mesma forma que o “milagre econômico” dos anos 1970, apontado por

Pereira, a Revolução de Trinta, segundo Santos, também teria significado

mudanças e oportunidades de ascensão a uma parte da população negra urbana

brasileira, permitindo-lhe alguma forma de mobilidade social. Essa população negra,

no entanto, deparava-se com anúncios ostensivos do tipo “não aceitamos pessoas

de cor” – em clubes, serviços, moradias, empregos etc. (SANTOS, 1985, p. 287-

288). No entanto, Santos observa que o movimento negro, nesse período,

diferentemente dos anos 1970, apresentou “uma resposta canhestra à construção”

do mito da democracia racial, pois não conseguia vê-lo “de fora”:

“Na sua visão – comprovando a eficácia do mito – o preconceito era ‘estranho à índole brasileira’; e, enfim, a miscigenação (que marcou o quadro brasileiro) nos livraria da segregação e do conflito (que assinalavam o quadro norte-americano), sendo pequeno aqui, portanto, o caminho a percorrer” (SANTOS, 1985, p. 289).

Por isso, tratava-se de um movimento, à época, de caráter “integracionista”,

que organizava atividades de recreação e “clubes de negros”, promovia campanhas

para o ingresso de pretos na polícia e o apelo pelo fim da discriminação policial. Não

é difícil entender porque, entre 1937 e 1950, no contexto do mito da “democracia

racial”, o movimento, segundo Santos, refluiu como um todo (cf. SANTOS, op. cit.,

p. 289).

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3. Século XXI: por que a ideia de “divisões perigosas”?

O debate anunciado como pertencendo ao século XXI, na verdade, tem

início no final do século XX. Podemos identificar a sua “gênese” em 1995 quando,

no primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso – sociólogo ex-

estudioso das relações raciais no Brasil, que participou do projeto Unesco –, foi

criado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra.

No ano seguinte, em 1996, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)

estabeleceu uma série de ações governamentais voltadas para a valorização da

população negra, tais como a criação e a instalação de Conselhos da Comunidade

Negra, o apoio a ações de discriminação positiva por parte de empresas privadas e

o desenvolvimento de ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos

profissionalizantes e universidades.

Em outubro de 2001, o Brasil participou, em Durban, África do Sul, e foi

signatário da III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo,

Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.

Em 2002, o segundo governo FHC lançou o segundo PNDH, instituindo por

decreto, em 13 de maio, o Programa Nacional de Ações Afirmativas.

Finalmente, com a vitória de Luís Ignácio Lula da Silva, nas eleições

presidenciais de 2002, foi criada a Secretaria de Promoção de Políticas para a

Igualdade Racial – SEPPIR, elaborado o Estatuto da Igualdade Racial e foram

lançadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações

Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.11

A relação de ações e políticas governamentais voltadas para “a promoção da

igualdade racial”, citadas acima, provocaram um intenso e polêmico debate nos

meios acadêmicos, na imprensa e na sociedade brasileira. Uma das razões para

isso foi a idéia, defendida por intelectuais, jornalistas e cidadãos, de que essas

medidas têm o objetivo de instaurar um “abrangente processo de racialização das

políticas sociais” (LAMOUNIER, 2007, p. 9. Grifo meu). Isso significa afirmar que o

Estado brasileiro, segundo esses estudiosos, pretende apostar na “regulamentação

‘racial’ da cidadania”, no combate das desigualdades, do preconceito e da

discriminação, provocando “efeitos colaterais sumamente indesejáveis no que toca

11 Aproveitamos, no início desta seção, a relação de iniciativas e de políticas governamentais enumeradas por Kamel (2006, p. 34-39).

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41

à sociabilidade e à concepção política da nação brasileira”, impondo “uma

dicotomização ‘racial’ e potencialmente rancorosa a um país mestiço“ (Idem, ibidem,

p. 9-10).

Diversos jornalistas e estudiosos participam desse embate contra a

“racialização das políticas públicas”, desde o executivo das Organizações Globo, Ali

Kamel – ex-estudante de Ciências Sociais na UFRJ –, até estudiosos e militantes

políticos de movimentos sociais, pertencentes a todo o espectro ideológico e

político, da direita à esquerda. Grande parte dos artigos publicados na imprensa

foram reunidos, em 2007, na coletânea organizada pelos professores Peter Fry,

Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo Ventura Santos,

sob o sugestivo título Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo.

Além da principal acusação, sintetizada acima pelo sociólogo Bolívar

Lamounier, pode-se destacar questões, críticas e afirmações do seguinte naipe

(todas retiradas da coletânea citada):

- “Nenhuma pessoa de hoje tem culpa do que ocorreu no país há séculos. Não se pode punir os que não têm acesso a cotas ou ficará implícito que os brancos pobres são escravocratas. Temos que acabar com o racismo de um lado e de outro” (Ferreira Gullar, p. 23); - “O Brasil pode vir a se tornar um país dividido entre negros e brancos, sim, trocando a valorização da mestiçagem pelo orgulho racial” (Pinto de Góes, p. 59); - “Os revisionistas escreveram (...) que a Lei Áurea foi a conclusão de um programa das elites, pontuado pelas leis do Ventre-Livre e dos Sexagenários, para a plena implantação do capitalismo no Brasil” (Magnoli, p. 65); - “Está em andamento no Brasil uma tentativa de genocídio racial perpetrado com a arma da estatística” (Carvalho, p. 113); - “O Brasil não tem cor. Tem um mosaico de combinações possíveis” (Lessa, p. 123); - “Diferenças étnicas causam os mais horrorosos conflitos e guerras pelo mundo afora. Não é razoável que aprendizes de feiticeiro os tragam para o Brasil” (Zarur, p. 131); - “A genética desmoralizou o ‘racismo científico’, provando que a espécie humana não se divide em raças. Para preencher o formulário do ministro da Classificação Racial, os pais deviam ignorar a ciência e eleger o preconceito como guia” (Magnoli, p. 135); - “A criação de cotas, no Brasil, representa um retrocesso na medida em que, pela primeira vez na República, se distinguem, na lei, brancos e negros” (Goldemberg e Durham, p. 171); - “Não se pode cair na esparrela da dívida histórica para tornar mais deserdados ainda os simplesmente pobres” (Nassif, p. 176); - “(...) que a antropologia racial de nossos personagens repouse em paz; afinal, são idéias de outros tempos. O difícil é acreditar que está ressurgindo com vigor no Planalto Central brasileiro na aurora do século XXI” (Santos, p. 187); - “Espanta mesmo é o modo como vão ser reeducados os nossos jovens para que se tornem ‘cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial’” (Pinto de Góes, p. 197);

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42

- “O estatuto suprime o conceito de igualdade política e jurídica dos cidadãos” (Magnoli, p. 286).

Como se pode depreender da seleção de fragmentos dos artigos da

coletânea, realizada pelos próprios organizadores (fiz um “recorte” da tal seleção),

percebe-se a quantidade de questões que estão envolvidas nesse debate: a já

citada acusação de “racialização” das políticas de Estado; a acusação explícita de

racismo aos defensores das políticas de promoção da igualdade racial; a “denúncia”

do uso das pesquisas quantitativas como manipulação estatística; a idéia de se

buscar a construção um país dividido e, possivelmente, apostar-se numa futura

guerra civil entre negros e brancos...

No meu entendimento, não há a necessidade de se ater à discussão de

cada uma dessas e de outras acusações apresentadas pela coletânea Divisões

perigosas. Uma leitura mais atenta dos artigos revela que, com uma ou outra

exceção, mesmo os textos produzidos por acadêmicos de renome, em linguagem

jornalística, acabam resvalando para argumentos superficiais ou simples

reproduções do senso comum – o que é um completo contra-senso daqueles que

se dizem preocupados em aprofundar o debate sobre esse tema.

De qualquer forma, a proposta é a de retomar-se, aqui, elementos

levantados anteriormente neste trabalho, travando-se um diálogo com algumas

questões mais relevantes, apontadas no livro citado.

Alguns autores qualificados apontam elementos importantes nessa

discussão. Nesse sentido, pode-se citar o artigo do historiador Ronaldo Vainfas, que

afirma:

“Creio ser inútil (...) reeditar o debate sobre se a nossa escravidão foi mais adocicada que a norte-americana, como sugeriu Gilberto Freyre. Aliás, nem ele nem qualquer historiador negariam a violência do escravismo em qualquer tempo ou lugar” (VAINFAS, 2007, p. 85).

Gilberto Freyre, de fato, como afirma outro historiador, Manolo Florentino, “é

o interlocutor oculto da maioria dos defensores das cotas raciais” (FLORENTINO,

2007, p. 91). Florentino, no entanto, preocupa-se em destacar a seguinte questão:

“Gilberto de Mello Freyre é autor da mais revolucionária tese produzida pelo pensamento social brasileiro no século XX – a de que somos o resultado da mistura ‘vitoriosa e quase livre’ entre o aborígene despreparado para resistir ao contrato dissolvente com o europeu, o português mestiço e plástico antes mesmo da aventura atlântica e o africano escravizado, este o molde mais perene de nossa civilização mestiça. De seu enraizamento é prova o que hoje dela se diz: que a tese é óbvia”.

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43

(...) Por meio da prosa desconcertante e bela de Gilberto Freyre, de abastardante a miscigenação virou elemento civilizacional positivo e válido. E além de válido, valioso. Tão valioso que é no seu uso que reside a origem do mito da democracia racial brasileira e da escravidão leniente. (...) Deveríamos ser, ou acreditar que éramos, uma democracia racial de idílicas raízes (...). Logo, a grande utilidade dos escritos freyreanos para os interessados em fundar uma identidade brasileira esteve em que, sob esse tentador invólucro, podia se esconder a tão almejada paz social, o outro elemento dito fundamental de nossa identidade” (FLORENTINO, 2007, p. 93-94).

Apesar do poético texto de Manolo Florentino sobre a importância da tese de

Freyre, seu artigo se confronta exatamente com a questão fundamental que se

pretende levantar nesta seção – e percebida com propriedade por Vainfas: os

ferozes ataques desferidos por intelectuais acadêmicos, jornalistas e outros

cidadãos às políticas de promoção da igualdade racial, através do Estado, se

traduzem, no fundo, como uma recuperação, em pleno século XXI, do mito da

democracia racial de Gilberto Freyre.

Entende-se aqui que não há qualquer necessidade de se discutir

exaustivamente os vários textos de onde se pode depreender a idéia supracitada,

porém, a agressividade e o tom dos argumentos daqueles contrários “à política de

cotas” ou ao Estatuto da Igualdade Racial denota uma inquietude incomum com a

possibilidade de se quebrar a harmonia sob a qual se assenta não somente as

relações raciais no Brasil, como também conflitos de quaisquer tipos, incluindo a

questão da terra, a emancipação da mulher ou a (ultrapassada?) luta de classes.

Isso talvez explique a defesa apaixonada que o “geógrafo, cientista social e

jornalista” Demétrio Magnoli, da USP, elabora a respeito da data da Lei Áurea e do

papel histórico da princesa Isabel e “os personagens públicos e milhares de heróis

anônimos”, em detrimento da instituição do Dia da Consciência Negra. Escrevendo

sobre o dia 13 de maio, afirma que

“(...) É uma tragédia que essa data tenha sido praticamente enterrada sob a narrativa revisionista fabricada na linha de montagem da ‘história dos vencidos’” (MAGNOLI, 2007, p. 65).

Magnoli “esquece-se” de anotar, não se entende bem o porquê, que o 13 de

maio também foi uma “data fabricada”, como tantas outras na História do Brasil –

exatamente por se tratar da “história dos vencedores”, ou seja, da classe

dominante. Trata-se, talvez, de uma opção política, a respeito de que lado se deseja

Page 44: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

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ficar. Em seus artigos em O Globo, esse autor deixa bem claro de que lado da

história ele se coloca.

Este é o caso também do já citado ex-estudante de Ciências Sociais, Ali

Kamel, hoje um jornalista transformado em um bem-sucedido executivo das

Organizações Globo, também presença freqüente nas colunas do jornal citado.

Apesar de não apresentar qualquer artigo na coletânea acadêmica de Fry, Maggie

et al., seu livro, Não somos racistas, produzido com base nos artigos que redigiu

sobre a questão racial, e lançado em 2006, transformou-se rapidamente num

verdadeiro best seller, para os padrões editoriais brasileiros. Mais de um autor da

coletânea acadêmica em tela indica, entusiasticamente, a sua leitura, como é o

caso de José Roberto Pinto de Góes (2007, p. 61) e de Carlos Lessa. Este último a

recomenda “a todos os brasileiros de boa vontade” (LESSA, 2007, p. 126).

Realmente, somente com muita “boa vontade” se pode levar a sério as

digressões de Kamel. No seu livro, após algumas afirmações pertinentes sobre o

caráter da obra de Gilberto Freyre, contextualizando-o, com base em Yvonne

Maggie, no “ideal de nação expresso pelo movimento modernista, que via na nossa

mestiçagem a nossa virtude” (KAMEL, 2006, p. 19), e de se admitir a existência de

racismo no Brasil (Idem, ibidem, p. 20), o jornalista:

1) desqualifica todas as pesquisas sociológicas realizadas a partir dos anos 1950,

como foi o caso do projeto Unesco (cita nominalmente Florestan Fernandes,

Fernando Henrique Cardoso e Oracy Nogueira), e os trabalhos fundamentados

com base nas estatísticas oficiais, nos anos 1970, com destaque para a obra

de Carlos Hasenbalg (Idem, ibidem, p. 20-22);

2) considera o racismo norte-americano “mais duro, mais explícito, mais direto” do

que o brasileiro, chegando a cunhar a seguinte frase, no mínimo infeliz: “não

tenho dúvidas de que um arranhão dói menos do que uma amputação” (p. 22);

3) ataca as ações do movimento negro brasileiro, acusando-o de efetuar “a

importação acrítica de uma solução americana para um problema americano”

(p. 23);

4) também comparando a realidade brasileira com a norte-americana, afirma que

“nossa especificidade não é o racismo. O que nos faz diferentes é que aqui,

indubitavelmente, há menos racismo e, quando há, ele é envergonhado,

porque tem consciência de que a sociedade de modo geral condena a prática

como odiosa” (Idem, ibidem, p. 23); e

Page 45: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

45

5) investe contra uma sociologia “que dividiu o Brasil entre negros e brancos”,

chancelando, segundo ele, “a construção racista americana segundo a qual

todo mundo que não é branco é negro. É usar uma metodologia racista para

analisar o racismo” (p. 23-24).

A partir de então, afirma que é uma “tragédia” que essa sociologia tenha

ganho espaços e encontrado eco no movimento negro brasileiro, desde os anos

1970, e passa a atacar todas as políticas de promoção da igualdade racial, listadas

no início desta seção (cf. KAMEL, 2006, p. 24-41).

Retomando o alarmante e ameaçador título “Divisões perigosas”, talvez

deva-se concluir com uma breve reflexão a respeito dos conflitos declarados e

latentes, envolvendo “vencedores” e “vencidos”, entre as classes sociais que se

enfrentam no cotidiano da história, e os processos de “construção de identidades”.

Aparentemente, no caso em questão, as tais “divisões perigosas” camuflam mais do

que espelham determinados interesses. Da mesma forma, pode-se dizer que o mito

da “democracia racial”, na verdade, não corresponde a uma determinada “igualdade

de oportunidades”, onde todos participam democraticamente, mas a afirmação de

um mundo marcado pela “ausência de conflitos” – desde que hegemonizado por

uma elite branca de origem européia, que se impõe cultural, política e

economicamente. O “perigo” da anunciada “divisão” está claramente dado quando

se aponta para a possibilidade de quebra desse padrão europeu, pretensamente

universalista e homogeneizador.

4. Um debate inconcluso e insuficiente...

Cento e vinte anos após a Abolição no país, podemos constatar a

persistência do racismo e da desigualdade racial, um problema atacado apenas

tangencialmente pelas políticas sociais levadas a cabo pelo Estado brasileiro. Um

estudo recente do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, por exemplo,

revela que, entre 1976 e 2006, apesar da acentuada diminuição da diferença nas

taxas de alfabetização entre brancos e negros, resultante da universalização do

acesso à educação básica, o hiato entre aqueles que haviam completado o ensino

superior, no mesmo período, triplicou a favor da população branca. Outro dado

relevante diz respeito à desigualdade de renda: embora a implementação de

Page 46: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

46

políticas distributivas, tais como a expansão da aposentadoria rural e o aumento

real do salário mínimo, e programas como o Benefício de Prestação Continuada e

Bolsa Família, tenham atingido principalmente a população negra, por ser

quantitativamente majoritária entre os mais pobres, projeções estatísticas apontam

que a queda da desigualdade de renda, mantendo-se o ritmo atual – por sinal,

impensável em um contexto de crise capitalista, com possível depressão econômica

–, levaria 32 anos até que as populações negra e branca brasileiras tivessem, em

média, a mesma renda (cf. IPEA, 2008, p. 7-13).

Como observa Marcelo Badaró Mattos, as análises das séries estatísticas

históricas produzidas pelo IBGE “demonstram o caráter duradouro da

discriminação” racial brasileira, com

“a superposição do que (...) chamamos de desigualdade secundária sobre a desigualdade primária, agravando para um setor da classe trabalhadora a já profunda iniqüidade a que toda a classe esteve(á) submetida” (MATTOS, 2007, p. 192).

Estas últimas observações têm a intenção de direcionar o debate para um

outro caminho, não trilhado pelo “academicismo vulgar” criticado na seção anterior

deste artigo: a necessidade de fazermos uma profunda discussão sobre as relações

de desigualdade de classe produzidas historicamente no Brasil, com a devidas

contribuições dadas pela escravidão e pelo racismo na conformação do nosso

“exército industrial de reserva” (cf. MATTOS, op. cit.; ver também ARCARY, 2007).

As questões que procuramos destacar pretendiam, na verdade, ressaltar o

anacronismo de grande parte da nossa intelectualidade que, para combater

politicamente as ações afirmativas e o estatuto da igualdade racial, envereda pela

reciclagem de idéias originárias dos anos 1930, já suficientemente desmistificadas

desde a segunda metade do século passado. Uma ideologia que, por sua vez,

como assinalamos, operou numa linha de continuidade e complementaridade com o

racismo presente nas políticas oficiais de “branqueamento” da população, que

vinham desde o século XIX.

Caberia, talvez, perguntar o que estaria escondido sobre o véu da

“denúncia”, revestida por um discurso pseudo-acadêmico, e do alerta quase

dramático para as tais “divisões perigosas”. Por outro lado, como resposta, caberia

também inserir no debate o conceito marxiano de luta de classes, tornando as tais

“divisões” mais explícitas e qualificadas.

Page 47: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

47

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49

Reflexões educativas sobre o ensino da História da África

Aderaldo Pereira dos Santos12

Na Introdução Geral do primeiro volume da monumental História Geral da

África, J. Ki-Zerbo afirma que a história da África necessita ser “reescrita”, isto

porque, segundo este historiador africano, “até o presente momento, ela foi

mascarada, camuflada, desfigurada, mutilada” (KI-ZERBO, 2010, p. XXXII) pela

força dos preconceitos e dos interesses, que projetaram uma imagem negativa

deste continente, ainda com grande presença na atualidade. Creio que de braços

dados com o desafio de reescrever a história africana deve estar, também, o

desafio do ensino de uma nova história da África, fundamentado com mais precisão

e rigor histórico. Para tanto é preciso que os educadores da história deste

continente mantenham-se informados a respeito da produção historiográfica que

busca resgatar a importância da história dos africanos para a humanidade. A

tradução para o português e a disponibilidade através do site da UNESCO, para

toda pessoa interessada, dos oitos volumes da História Geral da África, sem dúvida

é um marco no sentido de uma maior democratização dos conhecimentos sobre a

história do referido continente. Além desta fundamental fonte de informação, outras

obras precisam ser consultadas e estudadas, dentre elas eu destacaria o livro de

Paul Lovejoy, Escravidão na África – uma história das suas transformações, e o de

Carlos Lopes, Compasso de Espera – o fundamental e o acessório na crise

africana. Neste artigo procuro apresentar algumas reflexões a respeito destas duas

obras que considero fundamentais para os professores de História que assumem o

desafio de ensinar história africana em suas aulas.

Ao investigar a dimensão e complexidade do fenômeno da escravidão no

continente africano, Lovejoy aborda assuntos importantes que nos permitem

compreender de modo mais aprofundado o que foi a escravidão na África, e a partir

dos conteúdos desenvolvidos na obra, temos condições de trabalhar com nossos

educandos diferenças e semelhanças entre a escravidão praticada pelos africanos

com àquela que foi implantada na América. O livro também nos ajuda a refletir 12 Mestre em Educação pela UERJ, Especialista em História da África e do Negro no Brasil pela UCAM, Especialista em História do Século XX pela UCAM, Graduado em História pela UFF, Professor de História da FAETEC e do DEGASE.

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50

sobre outra questão que está no âmbito de minhas preocupações como educador.

Ao trazer à tona o tema da escravidão, tenho o interesse de pensar este assunto

considerando não apenas a escravidão em si, mas, sobretudo, o processo

contrário, ou seja, o de resistência e luta pela libertação dos escravos. Entendo que

ensinar escravidão, sem considerar a luta contra ela, constitui numa atitude que,

além de reforçar a idéia de escravidão “pacífica” e “natural”, limita a compreensão

do próprio fenômeno, não só porque uma coisa nunca existiu sem a outra, mas

também por entender que a forma como o fenômeno se constituiu na sociedade se

relacionou com o processo de enfrentamento contra a própria escravidão. O livro

de Carlos Lopes, por sua vez, apresenta uma abordagem crítica importante de

temas e aspectos que ajudam a ampliar nosso entendimento sobre a dinâmica da

História da África Contemporânea, sobretudo, no que se refere à região que se

convencionou chamar de “África subsaariana”. Sendo assim, espero que tais

reflexões contribuam no sentido de despertar em outros professores de História e

demais educadores, o desejo de agirem como sujeitos do processo de

descolonização da educação brasileira, aberto pelas leis 10639/2003 e 11645/2008.

Escravidão e luta contra escravidão na África, debate necessário.

Philip. D. Curtin disse certa vez que para os africanos, “o conhecimento do

passado de suas próprias sociedades representa uma tomada de consciência

indispensável ao estabelecimento de sua identidade em um mundo diverso e em

mutação” (CURTIN, 2010, p. 37), entendo que a “tomada de consciência

indispensável” à qual se refere Curtin, também diz respeito às diversas sociedades

que sentiram a ação política e cultural da diáspora africana no processo histórico de

suas formações. Sendo assim, considerando a sociedade brasileira fruto, em

grande parte, do trabalho econômico, político e cultural de africanos e seus

descendentes nascidos aqui, presumo ser no mínimo necessário conhecermos e

pensarmos mais sobre a África, para conseguirmos realizar o que Curtin disse

acima. Isto nos coloca de imediato um desafio: ampliarmos o “espaço da África” na

sociedade. A busca desta ampliação implica, de forma dialética, na ampliação do

espaço da África dentro de nós. Este raciocínio se inspira nas reflexões de Franz

Fanon acerca do fenômeno da “descolonização” (Os Condenados da Terra) e na

“Arma da Teoria” de Amílcar Cabral. Um conhecimento histórico da África

Page 51: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

51

consistente é uma “arma teórica” fundamental em prol da “descolonização” da

educação brasileira. Neste sentido, a complexidade da escravidão na África precisa

ser compreendida com mais profundidade. O livro de Paul E. Lovejoy sobre a

escravidão na África é obra que ajuda qualquer professor de História entender o

complexo fenômeno da escravidão ocorrido no continente africano.

O livro de Lovejoy foi revisado pelo historiador Manolo Florentino, e se

estrutura em doze capítulos, mais dois prefácios, lista de mapas, lista de tabelas,

notas sobre moedas, pesos e medidas, além de apêndice com cronologia de

medidas contra a escravidão, notas, bibliografia e índice. O autor é um norte-

americano naturalizado canadense. Ele trabalha o assunto articulando uma

abordagem mais panorâmica, no que diz respeito à escravidão em geral na África, a

uma abordagem específica, sobretudo, para apreender os processos que

possibilitaram as transformações da escravidão nas diversas regiões e tipos de

sociedades. As divisões internas dos capítulos desenvolvem questões de caráter

teórico e conceitual, assim como analisa os processos históricos dos povos

africanos entre si e suas relações com povos de outros continentes. Em termos

cronológicos, o autor define como marcos o fim do século XIV e início do XX.

A tese principal do autor consiste em desenvolver uma análise da história da

África tomando por base o estudo das transformações que a escravidão sofreu no

continente, e considerando a dinâmica desempenhada por “influências externas” e

“forças internas” neste processo de transformação. Ele parte do pressuposto de que

tal processo de transformação foi bastante influenciado pelo fato determinante de

que “a escravidão era uma instituição central em muitas regiões da África”

(LOVEJOY, 2002, p.14). Sua perspectiva consiste não em determinar à maior ou

menor importância de fatores externos ou internos, mas procurar entender como

tais fatores “afetaram o curso da história” (LOVEJOY, 2002, p.20). O autor investiga

no livro transformações sofrida na economia política de sociedades escravistas na

África considerando o impacto do Islã, dos mercados internos e externos, e das

ações dos “escravos e ex-escravos no debate sobre abolição e emancipação”

(LOVEJOY, 2002, p. 21). Em termos teóricos, o autor argumenta que é preciso se

ater ao que ele chama de “diferença fundamental” entre a escravidão em espaços

de diáspora e a escravidão na África. Segundo ele, “as características específicas

da escravidão como um modo de produção na África atrelavam os mecanismos da

escravização ao tráfico de escravos e à utilização de escravos” (LOVEJOY, 2002,

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52

p.22). Isto significa que na África a escravidão foi um processo que articulou três

dimensões, ou seja, a dimensão comercial, a produtiva e de serviços, e a que

envolvia captura e deslocamento de escravos. É neste sentido que o autor afirma

que “na África, a estrutura da escravidão que sustentava as formações sociais e

econômicas dos maiores estados e sociedades estava intimamente ligada à própria

escravização” (LOVEJOY, 2002, p.22).

Ao trabalhar o aspecto propriamente conceitual do fenômeno da escravidão,

o autor explora três conjunturas: a que se refere ao âmbito de sociedades africanas

tradicionais, a que sofreu influência do “fator islâmico” e a que teve a ação marcante

do “comércio transatlântico”. Sua análise privilegiou observar como se deu o

fenômeno da expansão da escravidão no continente africano, buscando destacar o

impacto do comércio exterior no processo de expansão da escravidão, que, de

maneira geral, desenvolveu-se num nível geográfico, proporcionando a difusão da

escravidão para várias regiões do continente; e num nível sócio-econômico, em que

constatou o crescimento da importância da escravidão nas sociedades africanas.

Além de ser um modo de exploração, em que o escravo era propriedade e

possível mercadoria, estando completamente a mercê da vontade do seu dono e

senhor, Lovejoy destaca que um aspecto peculiar da escravidão na África, consistiu

no fato de ser “fundamentalmente um meio de negar aos estrangeiros os direitos e

privilégios de uma determinada sociedade, para que eles pudessem ser explorados

com objetivos econômicos, políticos e/ou sociais” (LOVEJOY, 2002, p.31). Neste

sentido, ser estrangeiro era ser “etnicamente diferente”, sem vínculo de parentesco,

portanto, com mais possibilidade de ser escravizado. Tal análise nos leva a pensar

sobre o significado da “liberdade” nas sociedades escravistas africanas. Segundo

Lovejoy, “o termo é realmente relativo”. As próprias palavras do autor esclarecem

este ponto de vista:

“No contexto das sociedades escravocratas, a liberdade envolvia uma

posição reconhecida numa casta, numa classe dirigente, num grupo de parentesco

ou algum tipo de instituição. Uma tal identificação incluía um conjunto de direitos e

obrigações que variavam consideravelmente de acordo com a situação, mas ainda

eram distintos daqueles dos escravos, que tecnicamente não tinham direitos,

apenas obrigações. O ato de emancipação, quando existia, transmitia um

reconhecimento de que escravo e homem livre eram opostos. A emancipação

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demonstrava dramaticamente que o poder estava nas mãos dos homens livres, não

dos escravos”( LOVEJOY, 2002, p.31).

Sendo assim, estar na condição de escravo significava carregar um estigma

que marcava profundamente a vida do grupo étnico escravizado, pois ser escravo

não era apenas pertencer a um senhor, mas subordinar-se a vigilância e controle do

grupo escravizador. Tal realidade estabelecia em poder coletivo que dificultava a

capacidade reativa do escravo à condição da escravidão. Além disso, um outro fator

deve ser considerado. No contexto da escravidão africana, em muitos casos, a

estratégia utilizada era de obediência e não de rebeldia. Para muitos escravos, ter

uma condição melhor significava assumir funções e responsabilidades que em

grande parte exerciam papel fundamental na própria sustentação e reprodução da

sociedade escravista. Portanto, um fenômeno “contraditório” se estabelecia: muitas

vezes, para ter benefícios e deixar de sofrer os tormentos mais duros da condição

de escravo, alguns escravos assumiam funções mais privilegiadas (ex:

militar/comércio/burocracia), que no quadro africano, eram funções que davam

sustentação a própria formação social e econômica de determinadas sociedades

escravistas na África.

No entanto, em que pese às dificuldades, a resistência e rebeldia dos

escravos à escravidão existiram. Como escreve Lovejoy, havia limites:

“Em geral era alcançada alguma espécie de acomodação entre senhores e

escravos. O nível sociológico dessa relação envolvia um reconhecimento por parte

dos escravos de que eles eram dependentes, cuja posição requeria subserviência

ao senhor, mas igualmente necessitava da aceitação por parte dos senhores de

que existiam limites até onde os escravos podiam ser forçados” (LOVEJOY, 2002,

p.36).

Existia uma relação de força certamente desigual para o escravo, diante da

violência empregada como forma de controle social, porém, lembra Lovejoy que tal

violência produzia nos escravos “tanto uma psicologia de servidão quanto o

potencial para a rebeldia” (LOVEJOY, 2002, p.36). O aspecto da rebeldia se

acentua se considerarmos o que disse o autor de que “é incorreto pensar que os

africanos escravizaram os seus irmãos” (LOVEJOY, 2002, p.55), segundo ele, “na

verdade, os africanos escravizaram os seus inimigos” (LOVEJOY, 2002, p. 55).

Sendo assim, a fuga coletiva, tanto na América com os quilombos, quanto na África

com diversas formas de ação grupal, foi sempre uma tática a ser colocada em

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prática para conseguir algum objetivo. Lovejoy cita um exemplo ocorrido na região

da Gâmbia na década de 1730, em que os escravos ameaçaram com a fuga em

massa se o senhor quebrasse a regra de vender escravo de família “sem o comum

acordo” (LOVEJOY, 2002, p. 181) dos demais escravos, caso o fizesse todos

fugiriam até serem “protegidos pelo próximo reino para o qual eles escaparem”

(LOVEJOY, 2002, p. 181). Visualizo uma espécie de “quilombo” ambulante,

guardando as devidas proporções, nesta imagem que expressa um movimento que

envolve “fuga”, “acordo”, “proteção”. Todo esse potencial de rebeldia maturado pela

prática da escravidão veio a explodir no decorrer do século XIX. As contradições

vieram à tona, e os europeus souberam usá-las em prol dos seus interesses

colonialistas. Entretanto, a despeito do papel exercido pelas “missões cristães” no

combate à escravidão, diz o autor que, “registros mostram claramente que os

próprios escravos eram fundamentalmente responsáveis por tomar a iniciativa que

começou a destruir a escravidão” (LOVEJOY, 2002, p.380). Portanto, precisamos

conhecer melhor esta história, e assim contribuir para uma visão crítica a uma ideia

a muito questionada, que pode muito bem está se reforçando, mesmo sem querer,

pelos diversos cursos de história da África que estão sendo ministrados por este

Brasil a fora, ou seja, a velha ideia de que na África a escravidão foi algo mais

“natural”, e que, portanto, a opção pelo escravo africano na formação das

sociedades escravistas da América, deveu-se ao fato do africano ter uma

propensão mais “natural” à escravidão. Quando se ensina escravidão sem enfatizar

o contraditório, pode-se estar contribuindo para o retorno desta velha ideia sem se

dar conta.

Os educadores e o Movimento Negro brasileiro não devem temer o debate

“espinhoso” sobre a questão da escravidão na África. Tanto é ruim não tratar da luta

dos escravos africanos contra a escravidão na África, quanto é tapar os olhos para

este fenômeno histórico de escala mundial que foi o processo das transformações

da escravidão no continente africano. Uma perspectiva de ensino de história que

articule história da África, história do Brasil e história de outros continentes, pode

muito bem ser pensada a partir desta temática. O livro de Paul Lovejoy demonstrou

ser fonte fundamental neste propósito. Além disso, a obra é bastante convincente

no tocante a complexidade e a dimensão que a escravidão tomou no continente

africano.

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55

Que compasso é este? – o Compasso de Espera de Carlos Lopes

Refletindo sobre a conjuntura caribenha no livro Da Diáspora, Stuart Hall

afirma que retrabalhar a África “tem sido o elemento mais poderoso e subversivo de

nossa política cultural no século vinte” (HALL, 2003, p. 40). Penso que com o

advento da lei 10639/2003 e de toda a conjuntura que está propiciando a expansão

do debate sobre a temática da África e do ensino da história africana na sociedade

brasileira, o prognóstico de Hall cabe para o Brasil neste século XXI. Isto porque

sabemos o quanto a “África” foi esquecida e desprestigiada em nosso país, ao

mesmo tempo em que sabemos também o quanto ela é importante para os

processos de valorização cultural e política de parcela majoritária da sociedade, ou

seja, nós, os afro-descendentes. Como professor de História que busca contribuir

para ampliar o ensino da história africana nas escolas, creio ser necessário ter a

preocupação de desfazer os estereótipos e mitos sobre este continente, tendo o

cuidado de não criar outros, de modo a tornar a História da África não apenas uma

ferramenta contra o racismo e eurocentrismo, que ainda persistem sobre diversos

aspectos na educação brasileira, mas por compreender que devemos entender a

História da África por ela mesma, conhecer seus processos e contradições, que

existem na história de todos os povos, seja qual for o continente analisado, e por

saber que abrir os olhos para a complexidade da história deste continente é uma

das condições para entendermos em sua plenitude a história da humanidade e, em

particular, a história do Brasil. O livro de Carlos Lopes nos ajuda neste propósito.

Nascido na Guiné-Bissau e realizando sua formação acadêmica na Suíça e

França, o autor atuou em universidades de diversos países, a exemplo de Guiné-

Bissau, Alemanha, México, Portugal e Brasil, além de ter também participado como

economista do desenvolvimento junto às Nações Unidas (PNUD). Sua obra versa

sobre um conjunto de questões que segundo Boaventura de Sousa Santos, que

assina o prefácio, constitui-se num significativo “programa de reflexão” para se

pensar criticamente sobre problemas africanos contemporâneos, vistos numa

perspectiva complexa e como parte de “um problema mundial”.

Considerando o limite deste tipo de trabalho, optei a seguir por apresentar

uma síntese do panorama teórico que pude apreender da análise do livro, e

destacar a discussão que o autor desenvolve em relação à temática da

historiografia sobre a História da África, visto que tal assunto corresponde uma das

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56

minhas preocupações enquanto pesquisador e educador do tema. No entanto,

perante a riqueza e complexidade de cada ponto destacado por ele, convém dizer

que esta opção também se baseou na compreensão de que teria dificuldade de

refletir, com profundidade, mais aspectos, em um texto de número pequeno de

páginas. Diante do relevante roteiro de discussão que trata a obra, creio que as

questões destacadas pelo autor, a meu ver, podem contribuir para pensarmos

sobre uma plataforma de ensino da História da África Contemporânea dentro de um

ponto de vista que considere à relação entre fatores internos e externos interferindo

na dinâmica histórica do continente.

O livro é dividido em oito capítulos e trata, sobretudo, de aspectos políticos e

econômicos referentes à África subsaariana. O autor também incluiu anexos com

gráficos estatísticos de dados do continente africano a respeito de dívida externa,

investimento estrangeiro, recursos financeiros, comércio, produção alimentar, taxa

de mortalidade infantil, crescimento do Produto Interno Bruto, crescimento

populacional, despesas governamentais, acesso aos serviços básicos e freqüência

ao ensino primário. Os números apresentados privilegiam o período das duas

últimas décadas do século XX, segundo o autor, reveladores de “duras realidades”

que “desencadearam a visão fatídica de África” (LOPES, 1997, p.32). Lopes se

preocupou em pensar sobre esta conjuntura a partir da noção de “crise africana”,

entendida por ele como expressão de um processo de mudança em que fatores

externos e internos precisam ser pensados de forma articulada, para se

compreender os possíveis sentidos da crise, assim como, as possíveis saídas. O

alvo do autor consistiu em ir além de entender com mais profundidade o fenômeno,

ele buscou também com sua análise atacar o que denomina de “determinismo

pessimista”, que ainda paira sobre as compreensões que se tem sobre o continente

africano. Ao invés do pessimismo quanto à crise e, por conseguinte, a mudança,

Carlos Lopes adverte aos apressados que “a mudança veio para ficar” e conclui:

“Devido a um número crescente de fatores, que convém analisar, a estabilidade, tal como a definíamos até bem recentemente, vai transformar-se num mito. A mudança é a nova constante” (LOPES, 1997, p.13). Entender a crise e as mudanças que a constitui, implica para o autor,

“conhecer o melhor possível os fenômenos globais” (LOPES, 1997, p.14), pois

segundo o ponto de vista que buscou fundamentar no corpo do texto, “crise,

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57

mudança e globalização tendem a tornar-se sinônimos na terminologia e

epistemologia nascentes” (LOPES, 1997, p.14).

Sendo assim, para refletir sobre problemas que se manifestam no contexto da

África subsaariana, o autor de Compasso de Espera esclarece que é necessário

realizar a análise a partir de uma perspectiva teórica que relacione o “global” e o

“particular”. Neste sentido, o trato com o conceito de globalização aparece como

central nas reflexões do autor. A maneira como define este conceito, revela a rica

realidade dinâmica e complexa que o termo expressa:

“É importante entender que a globalização está em processo e é um processo. Iniciou-se antes do nosso tempo e, inevitavelmente, continuará para além deste. A sua compreensão exige uma combinação da nossa memória, do presente e da imaginação. É um fenômeno que tanto pode produzir integrações como marginalizações, tanto tem poderes hegemônicos como contra-hegemônicos, tanto é marcado por continuidade como por crises e mudança” (LOPES, 1997, p.14). Para dar conta do desafio de compreender teoricamente a crise africana,

Carlos Lopes propõe “uma análise sistemática da globalização”, de modo a evitar

uma visão fragmentada do problema e possibilitar o discernimento do que seria

“fundamental” e “acessório” no entendimento do fenômeno. Tal feito só seria

possível a partir de uma perspectiva sistêmica e histórica:

“O pensamento sistêmico desconfia das soluções simplistas e tenta a busca de conexões entre os eventos que o discurso convencional ignora; e solicita o aprofundamento de tópicos que podem estar além do nosso conhecimento ou da nossa experiência direta” (LOPES, 1997, p. 14/15). (...) É meu propósito demonstrar que o recurso à História é indispensável neste empreendimento. Tanto do ponto de vista endógeno como do exógeno é necessário poder apreender o caráter sistêmico da crise de valores, que é tão importante como à crise pura e simples” (LOPES, 1997, p.16). Utilizando a expressão usada por Boaventura no prefácio para qualificar o

conjunto de discussões que o livro trata, o “programa de reflexões” do autor

consistiu em refletir sobre as questões e temáticas da “inferioridade africana”, de um

“diagnóstico alternativo da crise”, do “afro-pessimismo versus afro-otimismo”, da

“cooperação técnica”, o problema da “governabilidade” e a questão da

“africanização da democracia”.

Ao desenvolver uma análise que objetivou, dentre outras coisas, refletir sobre

o posicionamento do continente africano no cenário mundial, a meu ver, as

abordagens do autor a respeito de cada um dos pontos que ele trabalhou, fornecem

elementos importantes para o professor de História pensar uma plataforma de

ensino da história contemporânea da África subsaariana, que busque articular e

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esclarecer a complexidade da relação desta região com outras partes do mundo e

com a “globalização”: “O futuro da globalização e da África estão intrinsecamente

conectados. Ambos simbolizam construções complexas, irremediavelmente ligadas”

(LOPES, 1997 p.16).

Uma interrogação dá título ao capítulo que trata do tema sobre a possível

inferioridade dos povos da África subsaariana. Carlos Lopes nos propõe pensar

então a seguinte questão: “inferioridade africana?” A dúvida levantada tem para ele

sentido, uma vez que considerando as três grandes linhas historiográficas que se

debruçaram sobre a História da África, o autor apresenta uma questão fundamental

para quem pretende pensar (como eu) a respeito do papel da História e da

historiografia na construção e desconstrução da idéia de inferioridade africana. A

questão vem no afirmativo: “foi através da História e da historiografia que se

construiu a imagem da inferioridade africana” (LOPES, 1997, p.17), diz o autor.

Perseguir o entendimento desta afirmativa constitui um dos meus interesses

acadêmicos.

Entretanto, meu foco também está voltado para pensar o que o ensino da

História pode fazer para “desconstruir” a idéia de inferioridade e ao mesmo tempo

construir outras que busquem reforçar princípios de respeito às diferenças,

liberdade, igualdade, justiça, democracia e de respeito aos direitos humanos. Como

o ensino da História pode contribuir para educar em direção a tais princípios sem se

deixar cair na armadilha de criar mitos? É necessário ficar atento ao que nos ensina

Marc Bloch,

“Sempre que as nossas sociedades estritas, em perpétua crise de consciência, se põem a duvidar de si mesmas, verificamos que se perguntam sobre se fizeram bem em interrogar o seu passado ou se o interrogaram bem”(Introdução à História, p. 12) Interrogações sobre o passado, como diz Marc Bloch acima, sempre surgem

em sociedades que vivem “em perpétua crise de consciência”. O exemplo da

sociedade brasileira é emblemático no que diz respeito à característica marcante de

desigualdade racial que persiste ao tempo. A questão do ensino da história da

África, por exemplo, expressa claramente este aspecto, à medida que não há

dúvida quanto o tratamento desigual que a História da África tem no campo do

ensino da História. Muito desta situação se fundamenta na concepção de

“inferioridade africana”, que segundo Carlos Lopes pauta-se, por um lado, no

“desconhecimento” da História da África; por outro, na idéia de “marginalização” da

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África “na história universal” (LOPES, 1997, p.18). Apesar do autor está se referindo

a uma determinada linha historiográfica africana, penso que o argumento

apresentado ajuda a refletir sobre tal ponto no âmbito do ensino da História da

África no Brasil. Vejamos a argumentação do autor:

“O desconhecimento da História do continente é patente em qualquer significativa amostragem literária, dentro e fora do continente, com exemplo até nas luxuosas enciclopédias universais ou outros tomos de referência cartesiana do saber ocidental. Apesar de historiadores como Fernand Braudel terem conseguido imprimir uma nova dinâmica de interpretação histórica com as noções de interdepedência, integração e relacionamento de espaços na economia-mundo, e de ser sobejamente conhecida a presença do valor do trabalho e da riqueza africanas, por exemplo no comércio transatlântico, continua a imperar esta marginalização da contribuição africana na história universal”( LOPES, 1997, p.18) Em outro momento, quando aborda sobre o período colonial, Carlos Lopes

ressalta o aspecto de que a “inferioridade africana” foi alicerçada na colonização.

Segundo ele, “a inferioridade africana foi fortificada pela estrutura da colonização”,

que apresentava pelo menos três formas de exercer o poder, ou seja, “a dominação

física, humana e espiritual”. Este último, inclusive, visto pelo autor como sendo

“sumamente importante uma vez que esteve na origem de uma regeneração da

mentalidade africana”( LOPES, 1997, p.20). Regeneração esta que visava como

queria os “primeiros ecos protonacionalistas”, a defesa da reivindicação de

“igualdade dos africanos regenerados em relação aos seus mentores europeus”

(LOPES, 1997, p.20). Carlos Lopes vai mais longe e revela o surgimento de um

dualismo propiciado pela experiência colonial:

“A estrutura colonial vai dicotomizar a sociedade africana: tradicional versus moderno, oral versus escrito, direito consuetudinário versus administração, subsistência versus produtividade, segmentarismo versus centralismo. Uma panóplia de dualismos regedores da extensão de marginalidade que se vai instalar como interpretação corrente das sociedades africanas. E é claro que a historiografia africana não escapa a esta lógica implacável da dualidade. Como tão pouco escapa à nova configuração social, política e econômica introduzida pelo dualismo global integração-marginalização”( LOPES, 1997, p.20). O olhar a respeito da África vai se revestir, portanto, em um “simbolismo da

inferioridade” que afeta os processos de identidade através da “recusa da

alteridade”, manifestada pela vontade de “civilizar o africano modelando-o, mesmo

esteticamente, ao que é considerado superior”( LOPES, 1997, p.21). De acordo

com o autor de Compasso de Espera, “esta corrente da inferioridade continua a

dominar uma larga parte das interpretações sobre África feita por não africanos”

(LOPES, 1997, p.21).

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O movimento de contraponto à tendência da “inferioridade africana” se

expressa, no que se refere ao campo da historiografia africana sobre História da

África, na corrente defensora da idéia de uma “superioridade africana”. Tal corrente

é qualificada por Carlos Lopes como sendo “corrente da pirâmide invertida”, que

segundo ele, gerou “uma História que vai suscitar excessos” (LOPES, 1997, p. 23).

Lopes reivindica, então, o balançar do “pêndulo da História”, anunciando o

ajuste histórico a partir do surgimento de cientistas sociais e do “nascimento dos

novos historiadores africanos, libertos da necessidade de impor uma superioridade

africana” (LOPES, 1997, p.23). Esta nova geração vem se pautando numa

perspectiva pluridisciplinar e de “longa duração”, de inspiração braudeliana, que seja

capaz de realizar a “relação e conexão entre os vários níveis da realidade social:

global, regional, nacional e local” (LOPES, 1997, p.26). Sendo assim, o autor

conclui da seguinte forma a visão que apresenta desta nova perspectiva histórica

sobre a história da África:

“Surge, finalmente, ‘nova escola’ de pensadores africanos, despojados das cargas emocionais dos seus predecessores, e igualmente preocupados com a previsão. Alguns deles encontrando mesmo dificuldades (...) em centrar as suas análises apenas na História. Os desafios contemporâneos impõem uma leitura multifacetada, pluridisciplinar e despojada de complexos arcaicos. São estes novos intérpretes da realidade que vão conectar a interpretação histórica à crise do continente” (LOPES, 1997, p.25).

Conclusão

Os estudos sobre África tendem a ganhar maior dimensão em nossa

sociedade a partir da aprovação da Lei 10639/2003, sobretudo, porque deu

“munição” aos educadores e políticos que assumem o ofício-militância de contribuir

para a “descolonização” da educação e para o combate ao racismo. Ampliar o

saber sobre África contribui neste sentido, pois ajuda a “mexer” com a base deste

ensino eurocêntrico que impera em todos os níveis da educação brasileira. A

conjuntura atual, a meu ver, está favorecendo a ampliação da temática africana na

educação, e, por conseguinte, também na sociedade. Vejamos o quadro: uma lei

que estabelece o racismo como crime, outra que determina a obrigatoriedade do

ensino sobre África e da diáspora africana, outra que garante o direito de

propriedade para descendentes de quilombolas, e ainda as que definem políticas de

ação afirmativa, são exemplos de conquista do Movimento Negro brasileiro que

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apontam para um longo percurso de uma conjuntura de “reparação histórica” em

que, a meu ver, cria a possibilidade de nos colocarmos diante da questão levantada

por Stuart Hall em seu livro Da Diáspora – identidades e mediações culturais.

Refletindo sobre determinados movimentos político-culturais no Caribe, Hall os

entende, em certa medida, como tentativas de lidar com a “questão de interpretar a

‘África’, reler a ‘África’, do que a ‘África poderia significar para nós hoje, depois da

diáspora” (HALL, 2003, p.40). Tal questão também se coloca no contexto brasileiro,

e é neste campo que envolve a questão expressada nas palavras de Stuart Hall,

que se situa minha reflexões. Para poder pensar qual o significado da “nossa África”

é preciso conhecer o que está sendo e o que foi a África, e isto quer dizer, conhecer

mais sobre história da África. E parafraseando o dramaturgo Nelson Rodrigues que

escreveu sobre “a vida como ela é”, devemos conhecer a história da África como

foi, de fato, pelo menos conhecer sem temer pensar sobre o conhecido.

No tocante a questão da escravidão é preciso apresentar mais alguns

argumentos a título de conclusão. Começo, então, lembrando o que disse Joel

Rufino dos Santos ao tratar sobre o tema dos “quilombos” em programa da TV

Escola (DVD – Pluralidade Cultural, Vol. II/MEC), segundo ele “a história da

escravidão é inseparável da história da luta contra a escravidão”, concluindo em

seguida que “não há escravidão pacífica”. Orientando-me por esta perspectiva, o

que pretendi aqui diz respeito a um assunto que me parece pouco explorado no

tocante a história da África, ou seja, à temática das estratégias de luta e resistência

de escravos africanos contra a escravidão na África. Percebo a necessidade de

pensar esta temática, diante de uma conjuntura nacional favorável a proliferação do

ensino da História da África, a partir da aprovação da lei 10639. Meu olhar se volta

para um problema que ando visualizando a título de hipótese. Minha observação

indica que grande parte dos cursos de História da África enfatiza o aspecto da

importância da escravidão no continente africano. No entanto, é perceptível que

pouco se trata, para não dizer quase nada, das formas de resistência e luta de

escravos africanos contra a escravidão a que foram submetidos. Sendo assim, a

base do ensino assume uma configuração que privilegia uma perspectiva de quem

está no poder. São os grandes e diversos reinos africanos que dominaram e

escravizaram povos africanos, participando inclusive e, sobretudo, do comércio de

escravos. Gosto de olhar, no entanto, para o que é contraditório ao poder. No

tocante a temática da escravidão, o que me mobiliza como historiador e professor é

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investigar o que foi possível o escravo fazer para tentar romper, equilibrar ou

atenuar a condição de escravo imposta pelo poder. Isto vale para o Brasil, para a

África, ou onde quer que tenha ocorrido escravidão.

Neste sentido, entendo que não basta focalizarmos a luta do africano contra

o colonizador europeu, é preciso também olhar para as formas de luta e resistência

daqueles milhares escravos que foram escravizados por africanos na própria África,

de compreender melhor os processos e ações em que os escravos foram

protagonistas na busca por liberdade, ou pelo menos para minimizar sua condição

de escravizado. E de onde vem esta minha perspectiva no tocante à temática da

escravidão? Não há nada de novo no que estou falando, apenas procuro levar para

o estudo da escravidão na África àquilo que aprendi com a historiografia brasileira

que se colocou de forma crítica frente à ideia do “escravo coisa”. Criticando esta

ideia, a historiografia a que me refiro buscou pensar o escravo como sujeito.

Gostaria de frisar, também, que meu foco de interesse se pauta, também,

numa perspectiva teórica de pensar para “além da escravidão”, considerando, neste

sentido, a argumentação apresentada pela historiadora Hebe Mattos13, ao prefaciar

o livro Além da Escravidão, de Frederick Cooper, Thomas C. Holt e Rebecca J.

Scott. Dentre outras coisas, Hebe trata da relação entre “escravidão” e “cidadania”,

e destaca como “questão crucial” em todas as sociedades escravistas, “as

possibilidades de alforria e as formas de integração do ex-escravo à sociedade em

que foi cativo” (MATTOS, 2005, p.15). Considerando a perspectiva da autora,

acrescentaria também como fatores cruciais enfrentados pelas sociedades

escravistas, as ações de rebeldia individual ou coletiva, as diversas formas de

pressão usada pelo escravo para minimizar, remediar ou extinguir os variados

meios de intimidação e maus tratos aos quais estavam submetidos. Hebe destaca

também a repercussão do discurso liberal, com seu suposto direito a liberdade

universal, que ganhou corpo no século XIX atuando como “fermento” para tornar a

emancipação “questão ainda mais central nos contextos históricos, surgidos nas

Américas e também na África desde o século XIX até meados do XX” (MATTOS,

2005, p.15). Sobre este aspecto, Lovejoy se debruça no capítulo 11, em que analisa

o “impulso abolicionista” que se expandiu pelo continente africano a partir do século 13 Hebe Mattos escreveu um artigo que deveria ser leitura obrigatória para todo professor de História, trata-se de “O ensino da História e a luta contra a discriminação racial no Brasil”, neste artigo ela pontua as questões centrais para se compreender o quanto o ensino da História, e em especial o ensino da História da África se constitui num instrumento fundamental para se superar o problema do racismo na sociedade brasileira.

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XIX, juntamente com o liberalismo, o imperialismo, etnocentrismo europeu e o

“racismo científico”, todos “ventos” do século XIX que prepararam o terreno para a

ocupação européia na África.

Logo, os educadores e o Movimento Negro brasileiro não devem temer o

debate “espinhoso” sobre a questão da escravidão na África. Tanto é ruim não tratar

da luta dos escravos africanos contra a escravidão na África, quanto é tapar os

olhos para este fenômeno histórico de escala mundial que foi o processo das

transformações da escravidão no continente africano. Uma perspectiva de ensino

de história que articule história da África, história do Brasil e história de outros

continentes, pode muito bem ser pensada a partir desta temática. O livro de Paul

Lovejoy demonstrou ser fonte fundamental neste propósito. Além disso, a obra é

bastante convincente no tocante a complexidade e a dimensão que a escravidão

tomou no continente africano.

Em relação ao livro de Carlos Lopes busquei destacar o quanto esta obra é

fonte importante para o pesquisador e professor que queira compreender a História

Contemporânea da África subsaariana de forma crítica, com base numa perspectiva

sistêmica, que trabalhe a relação entre a região e os processos globais aos quais a

África foi envolvida pelo movimento da História. As demais questões desenvolvidas

pelo autor e que não puderam ser aprofundadas aqui, em virtude do limite do texto,

também trazem para discussão pontos fundamentais para quem deseja entender

melhor o que se passou e se passa na África subsaariana em termos políticos,

econômicos e culturais nas sociedades pós-coloniais. Operando com uma

abordagem mais geral que não teve como foco analisar um país específico da

região, penso que a análise de Lopes é leitura obrigatória para todo e qualquer

estudioso da temática, não só pelo cuidado com que trata o conteúdo dos assuntos,

mas também como modelo metodológico de argumentação teórica e histórica.

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65

Da África visões da Europa ou Exemplos de re-apoderação do discurso literário em Angola e

Moçambique

Marcelo Pacheco Soares14

1. A Angola de Pepetela

O espantoso Jaime Bunda Jaime Bunda estava sentado na ampla sala destinada aos detetives. Havia três secretárias, onde outros tantos investigadores lutavam contra os computadores obsoletos. Havia também algumas cadeiras encostadas à parede. Era numa destas, a última, que Jaime pousava a sua avantajada bunda, exagerada em relação ao corpo, característica física que lhe tinha dado o nome. O seu verdadeiro era comprido, unindo dois apelidos de famílias ilustres nos meios luandenses. Mas foi numa aula de educação física, mais propriamente de vôlei, que surgiu a alcunha. Às tantas, o professor, irritado com a falta de jeito ou de empenho do aluno, gritou: — Jaime, salta. Salta com a bunda, porra! A partir daí, ficou Jaime Bunda para toda a escola. De fato, as suas nádegas exageravam. Ele, aliás, era todo para os redondos, até mesmo os olhos que gostava de esbugalhar à frente do espelho, treinando espantos. A mãe é que não gostou nada quando ouviu colegas tratarem-no assim, és um mole, não devias deixar que te chamassem um nome ofensivo, mas ele encolheu os ombros, a minha bunda é mesmo grande, vou fazer mais como então? (PEPETELA, 2003, p. 11)

Eis a apresentação ao leitor do personagem elaborado pelo angolano

Pepetela para (anti-)protagonizar dois romances: Jaime Bunda - agente secreto

(publicado originalmente em 2001) e Jaime Bunda e a morte do americano (editado

pela primeira vez em 2003). As relações intertextuais que essas duas obras

estabelecem com um repertório literário exterior são bem evidentes, porque bebem

em fontes da Literatura Inglesa de massa, cujos personagens-símbolo e estruturas

narrativas já estão enraizados no imaginário universal. Assim, o nome Jaime Bunda

remete imediatamente aos escritos de Ian Fleming, que trouxe a público em

meados do século XX um dos mais famosos personagens da ficção

contemporânea, James Bond, agente a serviço de Vossa Majestade britânica muito

conhecido pela alcunha de 007 e cuja notoriedade foi definitivamente consolidada

pelo cinema hollywoodiano, essa genuína e eficiente máquina pós-moderna de

difusão de imagens. Jaime Bunda comporta ainda características inerentes aos 14 Professor de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro; Mestre e Doutorando em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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detetives particulares das novelas policiais clássicas — por exemplo: “Era muito

observador, não deixava escapar nenhum gesto ridículo, por minúsculo que fosse.”

(PEPETELA, 2003, p. 12) Largamente praticada, produzida, ambientada e

consumida na Inglaterra em seus primórdios no século XIX, quando Londres ainda

possuía atmosfera deveras propícia a crimes em função do seu crescimento como

metrópole alvo de fortes processos migratórios e também da névoa constante sob a

qual se escondia, resultados das recentes Revoluções Industriais, essa disposição

literária do mundo moderno para tais textos, de forte apelo mercadológico, traz

como representante ilustre Hercule Poirot, o detetive belga criado por Agatha

Christie (cerca de três décadas mais antigo do que Bond), e encontra sua gênese

especialmente nas narrativas oitocentistas de Arthur Conan Doyle, estreladas por

Sherlock Holmes.15

Poirot e, mais notadamente, Holmes e Bond são ícones incontestáveis da

cultura ocidental, de largo alcance popular, de modo que funcionam como modelo

para muitas criações da ficção contemporânea. Todavia, é evidente que não será

esse exatamente o caso de Jaime Bunda; os traços que compõem o personagem

criado por Pepetela não permitem que possamos vislumbrar entre ele e os demais

alguma relação de especularidade precisa, já que, pelo contrário, as referências

surgem aqui em um registro de paródia. Aquilo que encontramos em Jaime Bunda

é um arcabouço dos populares personagens europeus manipulado para, no

entanto, abarcar um conteúdo distinto das figuras heróicas tradicionais. Assim,

Jaime Bunda expõe-se por vezes indolente, conformista, megalomaníaco, pouco ou

nada hábil, ridicularizado ao invés de respeitado pelos que o rodeiam, embora tenha

o ar presunçoso e superior dos holmes e dos poirots que se multiplicam em

literatura dessa natureza, o que, dada a sua real situação, apenas torna o

personagem ainda mais caricato. A forma burlesca como Jaime Bunda nos é

oferecido sugere já desde as linhas iniciais do seu primeiro romance um anti-herói.

E essa sua categoria será potencializada por um ambiente instrumentalizado por

aparelhos obsoletos que contrastam com os de tecnologia de ponta de que James

Bond normalmente usufruiria; além dos citados computadores arcaicos do 15 É evidente que deveríamos enumerar ainda os três contos do americano Edgar Allan Poe, que tanto tempo viveu e produziu na Inglaterra, os quais deram origem às narrativas policiais modernas (“Os crimes da Rua Morgue”, “A carta furtada” e “O mistério de Maria Roget”), mas referimo-nos aqui à cultura de massa e, sob essa ótica, podemos considerar a popularidade de Auguste Dupin, o detetive idealizado por Poe, bastante reduzida, apesar de (ou quiçá em função de) — e não nos furtaremos de tecer aqui um juízo de valor — o nível de elaboração da poética poeana se revelar mais significativa do que os das práticas literárias de Doyle e, principalmente, de Agatha Christie.

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67

departamente de polícia, a viatura designada ao personagem, sem sirene e com o

carburador sustentado por um barbante, igualmente bem ilustra sua condição

diversa (e adversa) à das de que Bond gozaria:

[...] a nuvem negra de fumaça que saiu do escape não enganava ninguém, era mesmo um carro vulgar, ótimo para não despertar suspeitas em Luanda. Jaime rebuscou o cofre do tablier, onde encontrou uma escova de dentes usada, camisas-de-vênus, papéis, notas de 500 mil kwanzas fora de circulação, um resto de sabonete, uma meia com buracos, duas balas 7.65, um velho cartão dando acesso ao talho nos tempos do socialismo esquemático, uns recibos antigos todos amassados, dois rebuçados, um bloco de notas, uma esferográfica partida, e finalmente um resto de fio [...] (PEPETELA, 2003, p. 20)

E a atitude conformista do personagem ganha relevo na elaboração de um

discurso ilusório que ele usará para justificar suas precárias condições de trabalho:

“Certamente tinha o motor a funcionar à perfeição, o aspecto exterior era apenas

para disfarçar, pensou o agente.” (PEPETELA, 2003, p. 19)

Mas o caráter parodístico que identificamos nos dois romances lega às

narrativas outra possibilidade de análise. Assim, vejamos: sobre a paródia, Linda

Hutcheon tece pertinente consideração, ao afirmar que os textos paródicos são uma

apologia à subversão, uma vez que abrigam um paradoxo central: “sua

transgressão é sempre autorizada” (HUTCHEON, 1985, p. 39). A dissonância

estabelecida entre Jaime Bunda e os modelos europeus (nos quais se baseia, ao

mesmo tempo em que os renega) impulsionará um discurso transgressor impetrado

pela poética pepeteliana, que se voltará contra o conformismo quase ingênuo do

seu protagonista, a fim de denunciar as mazelas de um país ainda assolado por

décadas de guerras de motivações distintas.

Passada a euforia do fim da lógica colonial na qual ficara mergulhada até

meados da década de 1970, alcançado o término da Guerra Civil em que se

embrenhara após a sua independência, Angola é um país que deve reconhecer as

devastadoras conseqüências das últimas décadas e os ônus que tal conjuntura lhe

deixa de herança. Com isso, os dois romances revelam-se tão somente narrativas

pseudo-policiais, espécie de gênero relativamente recente que, travestindo-se de

história de detetive, rediscute os seus mecanismos (O nome da rosa, do italiano

Umberto Eco, talvez seja o seu apogeu), como reconhece também Carmen Lucia

Tindó Secco:

Elegendo para protagonista do livro de trama aparentemente policial um personagem kitsch, o romance Jaime Bunda estabelece, de início, com os leitores, um pacto carnavalizador de sátira à sociedade angolana. [...] Jaime Bunda, desviando-se dos

Page 68: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

68

cânones tradicionais do gênero policial, realiza uma dessacralização do investigador clássico, comportando-se como um James Bond à angolana. [...] Em Jaime Bunda, ao contrário do romance policial convencional, o que o leitor encontra o tempo todo é justamente a desmontagem irônica dos clichês característicos desse tipo de narrativa. Há duas estórias: a do crime e a do inquérito; porém, esta não é narrada por um amigo do detetive, e, sim, por uma polifonia discursiva que alterna as vozes de quatro narradores, todos falseadores e despistadores do assassinato inicial. A estória deste é apresentada no Prólogo por um pseudo-autor, ou seja, um autor ficcional que comanda os quatro narradores e, ao mesmo tempo, se esconde e se revela, sendo marcado o seu discurso em itálico e entre colchetes, toda vez que faz uso da palavra. O primeiro narrador se mostra ingênuo e imprudente, logo sendo demitido pelo pseudo-autor; o segundo, Milika, é quem escreve o relatório do crime, não o da morte da menina de quatorze anos, porém o da corrupção e contrabando disseminados em Angola, principalmente após o ingresso desse país na economia transnacional de livre mercado; o terceiro narrador é o mais ferino e mordaz, possuindo um humor cético e corrosivo como o de Machado de Assis; emite sarcásticas críticas, funcionando como um duplo autor ficcional; o quarto narrador retoma a função do relatório e tenta unir tudo, no entanto, também não consegue deslindar nada. O grande enigma, no fundo, é o desvendamento pelo leitor da enunciação polifônica do romance que, operando com o fingimento escritural, sinaliza com o cinismo social, para a descrença no poder instituído em Angola, atingido também pelas leis do FMI e Banco Mundial. O pseudo-autor aparece no Prólogo, no Epílogo e faz recorrentes intromissões aos discursos dos quatro narradores, atuando como um autor intruso, semelhante aos dos romances de Machado de Assis. (SECCO, 2008, p. 148-50)

Somente leitores incautos lêem narrativas dessa envergadura crendo se

tratarem de enredos de mistério, porque, na verdade, seus autores aproveitam a

franca potencialidade desses produtos para alcançar determinado público para que,

a partir do pré-texto de construir uma simples e vulgar história de crime e

investigação policial, acender outros efeitos em seus leitores, tornando secundário o

próprio segredo que moveria a trama. Os dois romances que patenteiam Jaime

Bunda como protagonista são, em verdade, ensejos para que Pepetela, sociólogo

por formação, traga à discussão temas relevantes da história contemporânea de

Angola: a denúncia da falta de engajamento político dos angolanos em um contexto

posterior à Revolução Colonial, a exacerbada influência das culturas estrangeiras

no país, as conseqüências da intervenção sul-africana em Angola na década de

1970, os abusos de poder das autoridades instituídas oficialmente, a questão do

subdesenvolvimento do país e da corrupção que impera nas suas práticas político-

administrativas.

Mas, na opção de Pepetela, reside também outra pretensão. Ora, a África

habituou-se a ver a África interpretada pela arte de seus colonizadores europeus,

sob a pena de seus poetas e prosadores — de Portugal, por exemplo, surgiram

Page 69: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

69

desde Luís Vaz de Camões (e sua visão quinhentista inevitavelmente legitimadora

do domínio português sobre os outros povos) no épico maior da língua portuguesa

que são Os Lusíadas até posicionamentos de escritores do século XX

representantes de uma intelectualidade disposta a colocar em questão os

problemas africanos, como a lúcida reflexão política e anti-colonial de Helder

Macedo sobre Moçambique no romance Partes de África e a exposição de

experiências coloniais em Angola e Moçambique no romance A costa dos

murmúrios, de Teolinda Gersão, e em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe em

contos de Jorge de Sena como “Duas medalhas imperiais, com Atlântico”.

Ensaístas também portugueses como Alfredo Margarido, Pires Laranjeira e Manuel

Ferreira, todavia, observam já na década de 1960 movimentos artísticos que

buscam legitimar, nas ainda então colônias portuguesas, a identidade desses

países, o que levou à concepção de nomenclaturas para descrevê-los como

angolanidade, moçambicanidade, cabo-verdianidade, são-tomensidade e

guineidade. Assim, ao escrever romances em que se apropria de personagens

europeus, recriando-os sob a atmosfera angolana, Pepetela inverte esse

mecanismo que traz uma visão exterior para ler o país e toma posse do discurso

para promover, em contrário, uma discussão legitimamente angolana sobre Angola

— daí o jogo polifônico que permeia o texto, sob a batuta de um autor-ficcional

hierarquicamente superior que, a certa altura, dispensa os serviços de um narrador,

digamos, bem-comportado de procedência clássico-européia para dar voz a outros

de matizes nacionais.

Em suma: os dois romances de Jaime Bunda, ao mesmo tempo em que

trazem à tona o debate sobre as condições sócio-políticas angolanas, apropriam-se

da cultura importada para lançarem seus olhares sobre ela e ainda sobre si

próprios, libertando-se do acentuado domínio dessa mesma tradição estrangeira.

2. A Moçambique de Mia Couto

Sob essa mesma dupla função (discutir os problemas da nação enquanto se

apropria de discursos externos que, via de regra segundo seus próprios interesses,

tradicionalmente desempenhavam essa tarefa) se desenvolverá também um conto

do moçambicano Mia Couto intitulado “Sidney Poitier na barbearia de Firipe

Beruberu”, o qual apresenta como personagem central um barbeiro de origem

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humilde que, na década de 1960, em virtude das reclamações de alguns clientes

insatisfeitos, para comprovar seu talento, lança mão de um postal com a foto do ator

americano negro Sidney Poitier, na época, um dos nomes mundialmente

conhecidos do cinema de Hollywood. Firipe Beruberu, o barbeiro em questão,

alega que o corte de cabelo de Poitier é obra sua e, numa relação jocosa com seus

clientes, que fingem dar crédito à história, pretensamente recupera o seu prestígio.

A narrativa se divide em três partes: a primeira apresenta o barbeiro Beruberu

e expõe as circunstâncias que o levam à mentira; a segunda é responsável pela

inclusão na narrativa do assistente do barbeiro, Gaspar Vivito, e evidencia a boa

relação entre o mestre e o ajudante; e a terceira traz à tona a conseqüência da

mentira criada pelo barbeiro: os agentes da Pide (Polícia Internacional de Defesa do

Estado) confundem Beruberu com um politizado envolvido com Eduardo Mondlane,

fundador da Frelimo (Frente de Libertação Moçambicana) e prendem o barbeiro.

Será ao término da sua segunda parte que o conto de Mia Couto fornecerá o

trecho que desperta a nossa atenção para diálogos com o ilustre romance

setecentista do escritor espanhol Miguel Cervantes, Dom Quixote (personagem-

título que, como Bond e Holmes, permeia o imaginário mundial):

E corriam os dois atrás de imaginários inimigos. Acabavam por se tropeçarem, sem jeito para se zangarem. E cansados, ofegavam um ligeiro riso, como se perdoassem ao mundo aquela ofensa. (COUTO, 1998, p. 158) (Grifos nossos)

Os imaginários inimigos em questão são supostos morcegos que comem

frutos na maçaniqueira16. Ora, o personagem mundialmente conhecido por correr

atrás de inimigos imaginários é Dom Quixote, sempre sob a escuderia do fiel Sacho

Pança. E se tropeçarem é um fato corriqueiro nas peripécias dessa dupla nos dois

volumes do romance de Cervantes. Ademais, os dois personagens do fragmento

acima são o barbeiro e seu assistente; não é casual que apresentem a mesma

relação mestre/aprendiz encontrada entre Quixote e Sancho. O trecho que

destacamos no conto, portanto, obriga o leitor a reinterpretar os dois primeiros

movimentos da narrativa, que se mostrarão em diversos aspectos uma releitura do

clássico de Cervantes, e o prepara para um entendimento mais amplo da terceira e

última parte do texto.

Ora, a atitude de reimaginar o real (a qual, aliás, também observamos no

angolano Jaime Bunda) é a particularidade fundamental do personagem de

16 Árvore da flora local, cujo fruto é vulgarmente designado por maçã-da-índia.

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71

Cervantes. E no que diz respeito ao barbeiro Beruberu cujo primeiro nome,

Firipe, modificado em relação ao que seria o seu original em espanhol, Felipe,

transfigura-se em mais um indício do diálogo deformante que promove a recriação,

pelo conto moçambicano, de sua matriz espanhola, fornecendo-lhe cor local

constata-se que essa transformação da realidade também lhe é latente. A

barbearia é quase imaginária, se considerarmos que o tecto era a sombra da

maçaniqueira e que paredes não havia. Tal qual, o que Beruberu faz com a foto de

Poitier, tentando enganar os clientes e até certo ponto a si mesmo, nada mais é do

que reorganizar a realidade conforme a sua conveniência, segundo, na verdade,

fazia Quixote.

Outra característica comum a ambos os personagens o moçambicano e o

espanhol encontra-se em seus discursos imodestos: enquanto Dom Quixote se

apresenta como o último representante digno dos membros da cavalaria andante

(porque, segundo alega ele, os demais de sua época apenas se molestam com os

damascos), Beruberu (ainda menos discreto do que o personagem espanhol) se

intitulará mestre dos barbeiros.

Além disso, ao fim da segunda parte do conto miacoutiano, dá-se ênfase a um

sentimento de tristeza que Firipe procurava esconder, mas que, em certos

momentos, revelava ao seu assistente. Referimo-nos mais precisamente às

ocasiões em que Beruberu se confessava triste para Vivito; e vale lembrar que Dom

Quixote enverga o epíteto de cavaleiro da triste figura. Um dos motivos dessa

tristeza desenvolve-se no nível das relações amorosas. E, nesse âmbito, o amor

platônico, tão ao gosto do maneirismo europeu, também marca presença na

narrativa de Mia Couto, representado na aparição da vendeira Rosinha, que atiça o

olhar ansioso de Beruberu ao passar na rua todas as tardes: essa mulher, com

quem o barbeiro trava nada mais do que um cotidiano contato visual, evidenciando

o platonismo dessa relação, representaria a sua idealizada Dulcinéia.

Do mesmo modo, a ética romântica e caricaturada que se divisa nas atitudes

de Dom Quixote no romance de Miguel de Cervantes, a contrastar com a sociedade

espanhola do século XVI em que o autor da obra está inserido, igualmente é, de

certa determinada maneira, observável no barbeiro criado por Mia Couto. Firipe

Beruberu, diante de eventuais reclamações da clientela, preferia não receber

pagamento, mostrando certo desprendimento material que por vezes caracterizara

Page 72: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

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Dom Quixote: “E era assim: cliente descontente ganhava direito de não pagar. O

Beruberu só cobrava satisfações.” (COUTO, 1998, p. 156)

Para além do nível da narração, averiguamos ainda algumas características

comuns às estruturas dessas duas obras aqui comparadas. Uma delas se refere à

citada divisão do texto de Mia Couto, que, desse modo, apresentada saltos que

podemos identificar como cinematográficos, semelhantes aos que Arnold Hauser,

importante historiador da arte, observara surgir prematuramente em Dom Quixote.

Além do mais, Mia Couto baseia os diálogos do conto nas conversas de todos os

dias e quiçá Cervantes tenha sido o primeiro romancista a fazer uso de tal

estratagema. Por fim, é inevitável pensar que em ambos os textos descobrimos o

inusitado surgimento do trágico dentro cômico.

O trágico que permeará o cômico nessa narrativa de Mia Couto refere-se,

especialmente, ao resultado do chiste criado pelo barbeiro. Logo percebemos que

o conto em análise e a obra maior de Cervantes apresentam semelhante caráter

social, uma vez que, ainda para Hauser, o romantismo cavaleiresco, que Dom

Quixote ironiza, “é essencialmente um sintoma do incipiente predomínio das formas

de governo autoritárias” (HAUSER, 1972, p. 527). Pois é justamente o sistema de

repressão, que violentamente rege o comportamento das autoridades

moçambicanas, aquilo que será denunciado na parte final do conto de Mia Couto,

quando a Pide impõe o seu injusto julgamento e prende não apenas o barbeiro,

mas também o seu assistente e, ainda, Jaimão, o vendedor de tabaco a que Firipe

pagara para confirmar a mentira sobre a foto de Sidney Poitier. O trecho em que as

circunstâncias fazem a Pide concluir o envolvimento político de Beruberu com a

Frelimo está longe de ser um julgamento reto e, em verdade, o direito à defesa que

o barbeiro parece creditar a si mesmo se revela mais uma das suas ilusões

quixotescas.

— Onde está a fotografia do estrangeiro? Estrangeiro? Sim, desse estrangeiro que você recebeu aqui na barbearia. O Firipe duvida primeiro, depois sorri. Entendera a confusão e prontificava-se a explicar: — Mas senhor agente, isso do estrangeiro é história que inventei, brincadeira... O multato empurra-o, fazendo-lhe calar. — (...) Então explica lá o que é isso aqui: “Cabeçada com dormida: mais 5 escudos”. Explica lá o que é essa dormida... — Isso é por causa de alguns clientes que dormecem na cadeira. O polícia já cresce na sua fúria. Dá-me a foto.

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O barbeiro retira o postal do bolso. O polícia interrompe o gesto, arrancando-lhe a fotografia com tal força que a rasga. — Este aqui também adormeceu na cadeira, hein? — Mas esse nunca esteve aqui, juro. Fé-de-Cristo, senhor agente. Essa foto é a do artista do cinema. Nunca viu nos filmes, desses dos americanos? — Americanos, então? Está visto. Deve ser companheiro do outro, o tal Mondlane que veio da América. Então este também veio de lá? — Mas esse não veio de nenhuma parte. Isso tudo é mentira, propaganda. — Propaganda? Então deves ser tu o responsável da propaganda da organização... (COUTO, 1998, p. 159-61)

E os equívocos prosseguem, incriminando cada vez mais Beruberu e os que o

rodeiam. É o fim da ilusão do barbeiro, o que o condena à morte (apenas

subentendida ao término do conto), tal qual acontece com o fidalgo espanhol, que

mortalmente adoece quando recupera a sanidade e perde de vista a miragem que

era sua vida de cavaleiro andante.

Por fim, a partir de seu final trágico, que denuncia as injustiças e truculências

promovidas por um governo de exceção, o conto “Sidney Poitier na barbearia de

Firipe Beruberu” consegue, assim como Dom Quixote, conciliar a cor local de seu

país de origem com uma inegável (e lamentável) dimensão universal, apropriando-

se de um ícone estrangeiro para adaptá-lo à realidade de Moçambique, a fim de

que a nação possa dar cabo de um processo de institucionalização de um discurso

legitimamente moçambicano para discutir Moçambique. Assim, essa leitura

comparativa, em que a literatura espanhola surge como matriz de um texto

moçambicano, até pareceria descabida se pensarmos que Mia Couto

manifestamente busca uma moçambicanidade para seu fazer literário (assim como

Pepetela, indubitavelmente, sói instituir a angolanidade em sua poética). No

entanto, escolher justamente o maior nome da ficção da Espanha, nação que

mantém uma eterna rivalidade com o país que foi por séculos para a terra natal de

Mia Couto o dominador (Portugal), é reafirmar com boa dose de ironia a ainda

relativamente recente independência de Moçambique.

E, além disso, conforme buscamos demonstrar, recriar um personagem

clássico estrangeiro aos moldes da cultura de um país é já naturalizá-lo nesse país,

e assim ocorre tanto com o James Bond transmudado em Jaime Bunda quanto com

o Dom Quixote que se manifesta em Firipe Beruru.

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74

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76

Educação étnico-racial brasileira: uma forma de educar para a cidadania

Maria Elena Viana Souza17

1. Introdução

Sou coordenadora de um projeto de pesquisa, na instituição em que trabalho -

UNIRIO, intitulado O preconceito racial nas entrelinhas das diferentes práticas

educativas escolares. Esse projeto tem como objetivos analisar a prática cotidiana

de escolas da Educação Básica do município do Rio de Janeiro, mais precisamente

Educação Infantil e primeiro segmento do Ensino Fundamental, através,

principalmente, das suas manifestações culturais-pedagógicas relacionadas aos

alunos negros e mestiços afro-descendentes18; analisar os conteúdos de formação

e informação que poderiam estar privilegiando certos aspectos étnicos em

detrimento de outros; analisar experiências do trabalho educativo que estariam

voltadas para a valorização de alunos negros e mestiços afro-descendentes e,

consequentemente, a valorização dessa parcela populacional da sociedade

brasileira.

Coordeno esse projeto desde 2005 e, desde então, eu e as bolsistas do curso

de Pedagogia, estivemos presentes em quatro escolas do primeiro segmento de

Ensino Fundamental e três escolas de Educação Infantil. Dentre os vários

resultados provenientes das pesquisas já feitas, detenho-me aqui em um deles: ao

fazer atividades pedagógicas que valorizam aspectos culturais relacionados à

cultura africana e afro-brasileira, contribui-se para uma educação étnico-racial

brasileira e, nesse sentido, valoriza-se as crianças negras e mestiças afro-

descendentes, provocando nelas um sentimento maior de pertencimento social,

histórico e cultural, trabalhando-se, portanto, em prol da construção de uma

cidadania para todos, mas, em especial, para esse segmento da população

brasileira.

17 Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Unirio, pesquisadora das questões étnicorraciais. 18 Utilizo a expressão mestiços afro-descendentes para diferenciar aqueles que têm o fenótipo bem negro de outros tipos mestiços, com fenótipos indígenas, orientais, europeus etc.

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Com base nesses pressupostos, este trabalho tem como objetivo principal

trazer para o debate as relações que podem ser feitas entre uma educação étnico-

racial e alguns elementos constitutivos para a construção da cidadania, no contexto

escolar de educação básica. Para tanto, utilizo o pensamento de alguns autores

como Corrêa (2000), Cuche (2002), Ferreira (2004), Gomes (2001), Hasenbalg

(1979, 1988, 1992), entre outros. Recorro também à lei 10.639/03 que estabeleceu

as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

2. Sobre a cidadania

Educar para a cidadania já se tornou palavra de ordem nas escolas do Rio de

Janeiro. Nos documentos curriculares oficiais, nos projetos pedagógicos das

escolas, nas falas dos professores é comum encontrarmos tal expressão. Por ser

algo já corriqueiro, fala-se em cidadania sem refletir sobre o seu significado e a

importância de tal significado.

Aqui neste trabalho, entende-se cidadania como o estatuto do cidadão numa

sociedade, estatuto baseado na regra da lei e no princípio da igualdade

(DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS SOCIAS, 1987, p.187). Mas, a qual concepção de

igualdade estamos nos referindo? Não à noção de igualdade que herdamos da

Revolução Francesa, do século XVIII, fortalecida até os dias de hoje por alguns

preceitos cristãos. Essa noção de igualdade é abstrata e é um dos princípios

básicos para o fortalecimento de um estado individualista porque quando dizemos

que somos todos iguais queremos dizer com isso que basta nos esforçarmos que

conseguiremos conquistar tudo aquilo que almejamos, principalmente, se o que

almejamos estiver relacionado a bens materiais.

Começamos a questionar essa noção de igualdade quando percebemos

que ela por si só não é suficiente para tornar as oportunidades acessíveis para

quem é socialmente desfavorecido. De uma noção abstrata de igualdade, então,

passa-se para uma concepção substantiva de igualdade, de forma que as

desigualdades ou as situações desiguais sejam tratadas de forma não semelhantes.

Portanto, da concepção liberal de igualdade que trata o ser humano de

forma genérica e abstrata, destituído de cor, raça, credo, classe social gênero etc,

passa-se a percebê-lo como um ser específico, dotado de características

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singulares, um sujeito de direitos, situado historicamente, com especificidades e

particularidades. (PIOVESAN, 1998, apud GOMES, 2001). A igualdade, então,

deixa de ser simplesmente um princípio abstrato e passa a ser um objetivo concreto

a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade.

Pode-se, então, falar de cidadania como a representação universal do homem

emancipado, fazendo emergir a autonomia de cada sujeito histórico, como a luta por

espaços políticos na sociedade a partir da identidade de cada sujeito. (TEIXEIRA,

1986, apud CORRÊA, 2000, p. 217)

É nesse sentido que entendemos a educação étnico-racial como forma de

educar para a cidadania, ou seja, a partir do momento em que a identidade das

crianças negras e mestiças afro-descendentes são valorizadas para que esse

segmento populacional possa se emancipar cada vez mais e lutar por sua inclusão

nos espaços políticos, sociais e econômicos da sociedade brasileira.

3. Educação Étnico-Racial

3.1 Ideologia racial brasileira

Há muito tempo todos os homens eram pretos. Certo dia, Deus resolveu compensar a coragem de quatro irmãos. Sem lhes dizer nada, ordenou-lhes que cruzassem um rio. O que tinha mais fé e era mais ligeiro, rapidamente, obedeceu à Deus cruzando o rio a nado. Ao sair do outro lado do rio, estava completamente branco e muito bonito. O segundo, ao ver o que tinha acontecido com o irmão, imediatamente correu para o rio e fez o mesmo. Só que a água já estava suja e ele saiu amarelo. O terceiro também quis mudar de cor e fez o mesmo que seus irmãos. Mas, como a água já estava bem suja, chegou à outra margem mulato. O quarto, o mais lento e preguiçoso, quando chegou ao rio, Deus já o tinha secado. Então, ele pode somente pressionar os pés e as mãos contra o leito do rio. Daí o negro ter apenas as solas dos pés e as palmas das mãos brancas.

O pequeno conto popular do folclore de São Paulo, relatado por Florestan

Fernandes19 revela que grande parte do povo brasileiro refere-se ao negro de forma

jocosa ocultando, na verdade, o preconceito que sempre perpassou pelo

pensamento brasileiro. Essa forma de pensar, que coloca o negro de forma social e

etnologicamente inferior ao branco, constitui-se numa ideologia racial que foi usada

como fator seletivo, colocando os negros à margem da sociedade brasileira. Mas,

essa explicação não fez parte apenas do ideário popular brasileiro. 19 Este conto popular, cujo título é Origens das Raças foi extraído de Florestan Fernandes, Mudanças Sociais no Brasil, São Paulo. 1937. p.357.

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79

As tendências políticas e culturais estabelecidas pelos colonizadores

portugueses, que prevaleceram até o final do século XIX, permitiram que fosse

criada uma ideologia baseada no encontro de três raças: branca, negra e indígena.

Mas, à época da Abolição, a elite brasileira, minoria educada do país, vivia um

momento de dualidade. Ao mesmo tempo que suas idéias moldavam-se pelas

tradições culturais e jesuíticas vindas de Portugal, modificavam-se pela cultura

francesa, iluminista e laica e pelas concepções liberais trazidas da Inglaterra e dos

Estados Unidos. Havia a vontade de se construir uma nação mais moderna, mais

desenvolvida e isso significava um país mais livre.

Joaquim Nabuco, o mais influente teórico abolicionista, redige um manifesto

em 1880 onde condena a escravidão pois esta "fizera um Brasil vergonhoso e

anacrônico, face ao mundo moderno, e fora de compasso com o "progresso de

nosso século"... Só pela abolição da escravatura poderia o Brasil gozar os "milagres

do trabalho livre" e colaborar "originalmente para a obra da humanidade e para o

adiantamento da América do Sul"20.

Nessa mesma época, as teorias racistas estavam em pleno apogeu na

Europa. Os europeus, reforçados intelectualmente com o prestígio das ciências

naturais, acreditavam ter atingido a superioridade econômica e política devido à

hereditariedade e ao meio físico favoráveis. Implicitamente, raças mais escuras ou

climas tropicais seriam incapazes de produzir civilizações mais evoluídas. Como

destaca Skidmore (1976), os europeus não hesitavam em expressar-se em termos

pouco lisonjeiros à América Latina e ao Brasil, em particular, por causa de sua vasta

influência africana.(p.13) Tinha-se uma visão pessimista do Brasil pois ele era tido

como um lugar grandioso por sua natureza e pequeno pelos homens que o

habitavam - em meio a essa pompa e fulgor da natureza, nenhum lugar é deixado

para o homem. Ele fica reduzido à insignificância pela majestade que o circunda. (

BUCKLE, 1872, apud SKIDMORE, p.44)

A vontade de se criar uma sociedade mais branca era tão grande que

quando um grupo de fazendeiros e políticos propôs, em 1870, a importação de

trabalhadores chineses para o Brasil, a reação foi muito negativa. Joaquim Nabuco

argumentava que a imigração chinesa serviria apenas para "viciar e corromper mais

a nossa raça" .

20 Confere em Skidmore (1976) p. 34-35.

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Sylvio Romero (1888) foi um dos primeiros cientistas sociais brasileiros que,

influenciado por autores evolucionistas europeus ( GOBINEAU, HAECKEL, LE

PLAY e SPENCER entre outros), tentou uma interpretação do Brasil com base na

tese do "branqueamento". Acreditava que toda nação era o produto da interação

entre a população e o seu habitat natural. O Brasil seria, então, o produto de três

raças: o branco europeu que sendo do "ramo greco-latino" era inferior ao "ramo

anglo-saxão", o negro africano que jamais havia criado uma civilização e o índio

aborígene que era de baixo nível cultural.

Quando os primeiros sociólogos e antropólogos brasileiros elaboraram

teorias sobre a questão da raça já o fizeram sob uma perspectiva que colocava o

mestiço como realidade do "caos étnico" brasileiro21.

Mas, o primeiro estudo etnográfico e sistematizado do negro e do índio

brasileiro, onde o preconceito ficava explícito, foi feito na década de 1890, por um

mulato, jovem professor catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia: Raimundo

Nina Rodrigues . Ele tentou fazer uma cuidadosa e exata catalogação das origens

etnográficas dos africanos trazidos para o Brasil. Além do folclore, das festas

populares e da religião africana procurou estudar suas línguas e suas influências na

Língua Portuguesa do Brasil. Esses estudos - dados baseados em testemunhos

orais - o levaram a acreditar que o africano era, sem qualquer dúvida científica, um

ser inferior.

Baseado nessa crença, nos seus estudos sobre raça e Código Penal (1894),

defendia que o comportamento social dos negros, índios e mestiços, era afetado

pelas características raciais inatas, não podendo, dessa forma, ter o mesmo

tratamento no Código, fato que deveria ser relevado pelos policiais e legisladores.

A reação ao pensamento racista veio com a idealização de uma democracia

racial através das influências da obra de Gilberto Freyre (1933) - Casa Grande e

Senzala - que de acordo com Skidmore virou de cabeça para baixo a afirmativa de

ter a miscigenação causado dano irreparável. (p.210)

Hasenbalg em Relações Raciais no Brasil Contemporâneo (1992) afirma

que

21 Seyferth (1989) postula que as primeiras teorias elaboradas por antropólogos e sociólogos brasileiros foram elaboradas de forma ensaística e pouco rigorosa em seus pressupostos científicos porque foi produzida uma falsa questão racial, baseada na crença da inferioridade das raças não brancas. (Confere p. 13)

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Os anos de 1930 nos oferecem pela pena de Gilberto Freyre, a versão acadêmica do que hoje chamamos de mito da democracia racial brasileira. Durante algumas décadas, essa concepção mítica prestou inestimáveis serviços à retórica oficial e até mesmo à diplomacia brasileira.(...) Seduzia simultaneamente os brasileiros brancos com a idéia da igualdade de oportunidades existente entre pessoas de todas as cores, isentando-os de qualquer responsabilidade pelos problemas sociais dos não-brancos. (p.140)

A "pena de Gilberto Freyre", no prefácio à primeira edição de Casa Grande e

Senzala (1964), escreve que

A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações - as dos brancos com as mulheres de côr - de "superiores" com "inferiores" e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro dessas circunstâncias e sôbre essa base. A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. (p. XXXIV)

Gilberto Freyre ainda postula que o povo português, pelas qualidades de seu

caráter, demonstrou que somente ele seria capaz de obter sucesso na colonização,

principalmente por adotarem a estratégia da miscigenação. Afinal, foi o branco

português que relacionou-se sexualmente , primeiro, com a índia e depois com a

negra, propiciando o aparecimento do mestiço o qual viria a se constituir como o

tipo mais adequado para construção da nação brasileira. O negro e o índio,

portanto, teriam contribuído igualmente para o sucesso da colonização.

Em meados da década de 1940 foi feita uma ampliação dos estudos das

relações raciais no Brasil por militantes e cientistas negros tais como Guerreiro

Ramos (1950, 1957) e Abdias do Nascimento (1982)22. Eles tinham como finalidade

o desmascaramento da democracia racial brasileira. Mas, pela denúncia da

existência do preconceito racial no Brasil, alguns autores serão acusados de

burgueses intelectuais e que estariam americanizando as relações raciais

brasileiras e praticando um racismo às avessas.

Mas, a partir da década de 1950 que a questão racial, no Brasil, passa a ser

melhor analisada. Em 1951, a UNESCO patrocina um amplo projeto sobre o negro

que tornou-se objeto de pesquisa de vários cientistas sociais brasileiros, norte-

americanos e franceses, tais como: Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Roger

Bastide, Marvin Harris, entre outros. Eles realizaram trabalhos de campo no 22 Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento, além de cientistas eram militantes e estavam mobilizados em torno do Teatro Experimental do Negro, instituição tida como uma das organizações do Movimento Negro.

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Nordeste, São Paulo e Rio de Janeiro. Pelos resultados obtidos constatou-se que o

Brasil não era um paraíso racial como haviam imaginado. Verificou-se que a

estética branca predominava na sociedade brasileira e que havia discriminação com

base na cor da pele. Porém, mesmo havendo indícios da existência desse tipo de

discriminação, os autores reduziram-na a uma questão de classes. Acreditavam

provar, através das evidências de ascensão social dos mestiços, que no Brasil não

existiam barreiras raciais rígidas, já que seria permitido ao negro competir com os

brancos por um lugar na sociedade. A sociedade brasileira seria uma sociedade

multirracial de classes e não de castas. (SEYFERTH, 1989. p.28)

Foi nessa época, 1951, que o Congresso Brasileiro viu-se obrigado a votar

uma lei contra a discriminação racial, a Lei Afonso Arinos. Esse fato aconteceu após

um episódio explícito de discriminação contra uma bailarina negra norte-americana:

sua hospedagem foi recusada num hotel em São Paulo. Mas, essa lei ficou sendo,

na verdade, um belo gesto simbólico já que nenhum grande esforço foi feito, por

parte do governo, para investigar possíveis discriminações desse tipo.

Na década seguinte, cientistas sociais que trabalharam na missão

patrocinada pela UNESCO, ampliam suas pesquisas sobre as relações raciais.

Florestan Fernandes foi um deles23. Para o autor, a aquisição e a melhoria das

condições de ganho dos brasileiros tenderiam a criar uma situação mais favorável "

à absorção do negro e do mulato na ordem social competitiva". Este fenômeno

constituiria-se numa "manifestação pura de mobilidade social vertical". Certas

barreiras que impediam ou dificultavam a classificação social do negro ou do mulato

deveriam desaparecer, pelo menos, no que se refere à proletarização.

Para Florestan (1965), essa parcela da população poderia "lançar-se no

mercado de trabalho e escolher entre algumas alternativas compensadoras de

profissionalização". À medida que essa tendência se concretizasse, o negro

superaria, graças ao seu esfôrço, a antiga situação de papeurismo e anomia social,

deixando de ser um marginal (em relação ao regime de trabalho) e um dependente

(em face do sistema de classificação social). (p.134)

23 Devem ser lembradas também as pesquisas de Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso - Cor e Mobilidade Social em Florianópolis (1960) que versava sobre a história e a situação do negro em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. Aí é apresentado um quadro muito diverso do que havia sido tradicionalmente descrito. Também são importantes As Metamorfoses do Escravo - Octavio Ianni (1962) e Capitalismo e Escravidão - Fernando Henrique Cardoso (1962).

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Essas interpretações sugeririam um modelo abstrato de sociedade industrial

onde o único fator considerado como determinante de vida seria o mérito individual

dentro de um mercado competitivo. Na opinião de Hasenbalg (1992)

Revisando criticamente estas perspectivas teóricas, sugeri em outro lugar que o racismo como ideologia e conjunto de prática que se traduzem na subordinação social dos não-brancos, é mais do que um reflexo epifonomênico da estrutura econômica ou um instrumento conspiratório usado pelas classes dominantes para dividir os trabalhadores. A persistência histórica do racismo não deve ser explicada como mero legado do passado, mas como servindo aos complexos e diversificados interesses do grupo racialmente dominante no presente. (p.11)

Nesse outro lugar - Estrutura Social, Mobilidade e Raça (1988) - Hasenbalg

esclarece que uma parcela majoritária da população de cor já tinha uma experiência

prévia na condição de livre, ao longo do século XIX. Essa população cresceu,

portanto, à margem da economia escravista dominante. As desvantagens sociais

da população de cor livre acumularam-se durante e após a escravidão. Não será,

portanto, a mudança da situação econômica dos não brancos que terminará com os

mecanismos racistas de discriminação24.

O que provocou e provocará uma condição de vida desfavorável, a esse

grupo, será a mentalidade racista dos brasileiros herdada dos europeus e

disfarçada pela classificação social hierárquica que prevaleceu no Brasil desde a

época da chegada dos portugueses. Por causa disso, a população discriminada

não criou uma identidade própria que pudesse valorizá-la. Terminou-se por

considerar que no Brasil existem negros não assim tão negros e brancos não assim

tão brancos. Uma inocente visão que vai servir de base para a tão defendida

democracia racial.

Em suma, no Brasil, o determinismo racial importado da Europa serviu aos

interesses daqueles que apostavam numa elite branca para conduzir essa

sociedade. Mas, as relações que se estabeleceram entre brancos e negros, desde

o início da colonização, permitiram uma grande mestiçagem no Brasil, provocando

várias discussões que relacionavam raça e nacionalidade. Foi dado, enfim, um valor

positivo à mestiçagem pois, ela levaria ao "branqueamento" da população brasileira.

Esse valor dado à miscigenação, não modificou as concepções negativas

que existiam sobre o negro. Seria exatamente a "inferioridade do negro" que o faria

24 Em outro estudo - Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil (1979) - Hasenbalg reserva seis páginas para uma crítica à Florestan Fernandes ( p. 72-77).

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sucumbir perante à "raça superior". Criou-se, portanto, uma identidade nacional

negativa pela presença da "raça inferior" em nossa população.

Com Casa Grande & Senzala a identidade brasileira é definida

positivamente, acentuando-se aí o nacionalismo brasileiro. O negro não é mais tido

como pertencente a uma "raça inferior" e é apontado, juntamente com o índio, como

um grande colaborador do português na construção da sociedade brasileira.

Gilberto Freyre, enfim, recupera de forma positiva, as representações acerca das

raças formadoras do povo brasileiro, sintetizando, dessa forma, o "mito das três

raças"ou o "mito da democracia racial".

A reação a esse mito vem, de início, com Guerreiro Ramos e Abdias do

Nascimento que denunciam a existência do preconceito racial no Brasil. Mais tarde,

Lambert e Florestan Fernandes relaciona a existência do preconceito à situação de

classes.

Estudos mais recentes (Hasenbalg) comprovaram que o racismo e a

discriminação não se limitam a uma questão de classes. O que limita o acesso do

negro a um melhor nível de vida, no Brasil, é a mentalidade racista existente até os

dias de hoje.

3.2 A ideologia racial brasileira e o contexto escolar

A responsabilidade do Estado com a educação não é um fato assim tão

recente, pois, a consciência da educação como direito de todos e como dever do

Estado torna-se forte no final da década de 1920, e, especialmente, na primeira

metade da década de 1930. De acordo com Buffa e Nosella (1991)

Grosso modo, trata-se de um grande momento educacional em que se começam a negar formas arcaicas e persistentes do ensino e se propõe uma modernização da administração, dos conteúdos e dos métodos escolares, no esteio, aliás, de um processo de modernização geral da sociedade brasileira. É um grande debate que se avoluma ao longo dos anos 20 e 30. (p. 59)

Ao final do século passado, só tinham acesso às poucas escolas públicas

existentes, os filhos da elite branca dominante. De acordo com Carvalho (1988)

foram inúteis os apelos de André Rebouças no sentido de ser estabelecido um

programa de assistência aos ex-escravos. (p.21) o que incluía terras e educação

para os libertos. Uma ou outra organização criou escolas para esse segmento da

população, mas, esse fato não chegou a alterar o quadro educacional.

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Com o advento da República a elite intelectual brasileira começa a discutir

temas importantes para a modernização do país e dentre eles a educação popular.

Mas, durante o período que vai de 1894 ao início dos anos 1910, esse tema deixa

de ser prioridade pois o poder agora centra-se nas mãos de uma oligarquia cafeeira

que estava interessada somente no comércio do café e na manutenção do poder.

Aqui no Brasil, os obstáculos ao acesso à formação escolar destinaram para os

negros as tarefas de poucas qualificações e baixa remuneração - mascateio nas

ruas e virações de pequenos serviços. (Moura, 1988)

O nacionalismo suscitado pela Primeira Guerra Mundial, o relativo

crescimento industrial e a consequente urbanização da sociedade brasileira

despertaram a intelectualidade, novamente, para a questão educacional. Em 1920,

75% da população era analfabeta. Esse fato provoca uma intensa campanha de

erradicação do analfabetismo.

Nos anos de 1920, surge um novo movimento educacional caracterizado por

Cury (1988) como uma fase de otimismo pedagógico, que se expressa na proposta

de reforma das escolas, baseada na versão norte-americana do Movimento Escola

Nova cujos ideais identificavam-se com o liberalismo, ou seja, com a defesa da

individualidade, com a igualdade perante a lei e a liberdade de iniciativa.

Esses profissionais acabam publicando nos anos 30, mais precisamente em

1932, o Manifesto dos Pioneiros de Educação Nova. Esse Manifesto ao defender

uma escola pública obrigatória, gratuita e laica provoca uma acirrada discussão

entre leigos e católicos. Mas, mesmo assim, a Constituição de 1934 determina o

ensino primário obrigatório e totalmente gratuito, instituindo ainda a tendência à

gratuidade para o ensino secundário e superior. Para contrabalançar, o ensino

religioso foi inserido na escola pública e as escolas particulares foram reconhecidas.

Com a educação em alta, acreditava-se que o negro venceria na medida em

que conseguisse firmar-se nas ciências, nas artes e na literatura. Havia, portanto,

preocupação com a necessidade, tanto das crianças quanto dos adultos, de

frequentarem a escola. Em A Vóz da Raça, jornal oficial da Frente Negra

Brasileira, uma organização do Movimento Negro, essa preocupação é revelada:

Tambem o adulto vai a escola - A escola é o recinto sagrado onde vamos em comunhão buscar as ciencias, artes, música, etc. É na escola que encontramos os meios precisos para nos fazer entendidos pelos nossos irmãos. Somos seus fiéis discípulos e os mestres sacerdocios amaveis que nos dão a luz do saber. Para eles devemos a nossa educação em geral. Esta é a perfeição da educação. A perfeição da educação é a instrução combatida com polidez, é o bem viver e a ciencia unida a

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virtude. Oh paes! Mandae vossos filhos ao templo da instrução intelectual - “a escola” não os deixeis analfabetos como dantes! Hoje temos tudo, aproveitai as horas noturnas se os trabalhos vos impedem. Ides à escola. Aproveitai o precioso tempo para engrandecer a nossa raça e o nosso querido Brasil”. (Editorial “Rumo à escola”. A Vóz da Raça. Ano I, no 13, junho/1933. p.3 - citado por SISS, 1994. p.35)

Nos anos 1940 e 1950, a rede pública de ensino cresceu de forma

substancial, sendo defendida pelos setores mais democráticos da sociedade. Mas,

as oportunidades educacionais para os negros não melhorou muito. Hasenbalg

(1979), ao fazer uma análise sobre o comportamento das desigualdades raciais no

que se refere à participação na educação formal chega às seguintes conclusões:

entre 1940 e 1950, os não-brancos acompanharam a expansão do sistema

educacional, elevando sua taxa de alfabetização. No entanto, os progressos

educacionais dos não-brancos foram mais lentos que os do grupo branco. (p.185)

Hasenbalg faz essa análise baseando-se em dados do Censo Demográfico

de 1940 e 1950 que entre outras coisas fornece os seguintes resultados: em 1940,

os brancos tinham uma possiblidade 3,8 vezes maior que os não brancos de

completar a escola primária, 9,6 vezes maior de completar a escola secundária e

13,7 vezes maior de receber um grau universitário. Em 1950, as possibilidades

passam a ser de 3,5 vezes maior na escola primária, 11,7 vezes maior na escola

secundária e 22,7 vezes maior no nível universitário. Em suma, em 1950, os

brancos que representavam 63,5% da população total, detinham 97% dos diplomas

universitários, 94% dos secundários e 84% dos diplomas da escola primária. De

acordo com Hasenbalg (1979), estes dados sugerem que a discriminação

educacional, juntamente com a discriminação racial exterior ao sistema

educacional, atuaram para produzir a exclusão virtual dos não-brancos das escolas

secundárias e universidades (p.186).

Em 17/11/1994, o jornal O Estado de São Paulo, 25 informa que segundo o

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, o número de negros e pardos

alfabetizados no país é de 37% contra 60% de brancos e na USP - Universidade de

São Paulo - os negros não são mais do que 2% dos alunos34. No Rio de Janeiro, de

acordo com o jornal Folha de São Paulo, de 07/06/1996, o analfabetismo é 2,5

vezes maior entre negros que entre brancos e no acesso ao ensino superior, 12,5%

25 Luiz Claudio Barcelos (1992) em seus estudos sobre educação e desigualdades raciais informa que, pela PNAD/1987, “apenas 0,5% de pretos de 20 a 24 anos e 0,4% entre 25 e 29 anos têm curso superior completo. Para os pardos esses números são 1% e 2,9% respectivamente. (p. 55)

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dos brancos concluem os estudos universitários contra 2,5% dos negros. Na pós-

graduação encontra-se 2,5% de brancos contra 0,1% de negros.

Os dados referem-se ao Censo de 1991 que pela primeira vez mediu , de

modo cruzado, o grau das desigualdades raciais e sociais no Brasil. Ainda, segundo

o IBGE, a maioria absoluta (59%) da população negra com mais de 10 anos só tem

o nível elementar de escolaridade, ou seja, até a 4a série do primeiro grau.

Em 1999, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE informa que

segundo o PNAD/ 1998, a taxa de analfabetismo para brancos é de 8, 4%; para os

negros é de 21,6% e para os pardos26 é de 20,7%. O analfabetismo funcional, isto

é, pessoas com, somente, até 3 anos de estudo, atinge 22,7% da população branca

contra cerca de 40% da população preta e parda. A população branca de 10 anos e

mais de idade tem uma escolaridade média de 6,5 anos completos de estudo,

enquanto as populações preta e parda têm uma escolaridade média de 4,5 anos.

Segundo dados do IBGE/ PNAD- 1999; 2003; 2008 - tem havido quedas

significativas do analfabetismo em todos os grupos de cor e em todas as regiões do

Brasil. Mas, as desigualdades raciais são marcantes. Em 2008, a população branca

residente no país apresentava uma taxa de 6,2%; já os grupos de pretos e pardos

apresentavam, respectivamente, 13,2% e 13,5%. Ao analisarmos tais informações,

levando em conta os aspectos regionais, observa-se que tanto nas regiões mais

prósperas quanto nas regiões mais pobres, a maior incidência de analfabetismo

recai para pretos e pardos.

Percebe-se que apesar da educação escolar constituir-se num dos degraus

para a mobilidade ascendente dos brasileiros, o negro pouco ascendeu no sistema

educacional formal e ainda está muito pouco representado nessa instituição. Com o

abandono da escola antes mesmo de completar o Ensino Fundamental, fica

reforçado o estereótipo “negro sem instrução”, quando o ingresso e a permanência

na escola estão intimamente relacionados a fatores econômicos, sociais e étnicos.

O papel da educação, tradicionalmente, cabia à família. Mas, com a

crescente complexidade das sociedades modernas, tornou-se necessário apelar

para o auxílio de outras instituições civis nessa tarefa. A escola foi uma delas. E é

no processo de educar-se que as pessoas constróem sua identidade e, portanto,

reconhecem a sua cor. Cor que, de acordo com Hasenbalg (1979) opera como um

26 As nomenclaturas preto e pardo são utilizadas pelo IBGE.

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elemento que afeta negativamente o desempenho escolar e o tempo de

permanência na escola. (p.181)

É evidente que a educação, escolar ou não, está sempre vinculada à

ideologia que perpassa pela sociedade na qual ela está inserida.

Consequentemente, então, temos, no Brasil, uma educação escolar ainda

influenciada por uma ideologia racial que vê o negro como inferior. E como essa

ideologia vai influenciar os alunos negros na construção de sua identidade?

3.3 O conceito de identidade

Quando falamos a palavra identidade, geralmente, vem-nos às idéias a

carteira de identidade, um documento de identificação que nos registra sob um

número, representando algo material, palpável, estático, imparcial e neutro, sendo,

na verdade, uma das formas que o Estado tem de controle e organização social. No

dicionário, a palavra identidade traz como significado “qualidade de idêntico”, tendo

idêntico o significado de “perfeitamente igual”. Por dedução, identidade, então, seria

qualidade do perfeitamente igual. Nada mais reducionista pensar identidade dessa

forma. Identidade é uma expressão polissêmica que envolve muitos sentidos e

significados.

Ferreira (2004) considera identidade como

uma referência em torno da qual o indivíduo se auto-reconhece e se constitui, estando em constante transformação e construída a partir de sua relação com o outro. Não é uma referência que configura exclusivamente uma unidade, mas, simultaneamente, unidade e multiplicidade, e, como sugere Coelho Jr. (1996)27, ela seria mais bem compreendida se considerada como uma “identidade em crise”. Portanto, não uma simples representação do indivíduo, mas, qualidade submetida a uma tensão. (p.47)

A constituição da identidade do indivíduo é una e múltipla, simultaneamente,

porque trata-se de um processo dinâmico que reflete uma constante transformação

em que o eu e o outro mantém uma interação dialética, responsável por organizar

cada experiência pessoal que tem como representação de um mundo simbólico, ou

seja, essa experiência se dá através de construções sobre o real.

Nesse sentido, as experiências pessoais que resultam de construções sobre

um real que acarretam um mundo simbólico não favorável às pessoas,

27 COELHO Jr., N. A identidade (em crise) do psicólogo. Cadernos de Subjetividade, v. 4, p-302-304, 1996.

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89

evidentemente que a identidade delas será construída com uma grande carga de

negatividade. E essas experiências são resultados da cultura estabelecida pelo

grupo do qual as pessoas fazem parte. Portanto, identidade e cultura são conceitos

intimamente relacionados.

3.4 Identidade e cultura

Quando nos referimos à identidade, fatalmente, nos remetemos ao conceito de

cultura porque a cultura é o referencial para a construção da identidade. Nesse

sentido, pode-se falar de uma identidade cultural que se constituiria em uma

modalidade de categorização da distinção nós/eles, baseada na diferença cultural.

(CUCHE, 2002, p.177)

Existem várias maneiras de se conceber uma identidade cultural. Numa visão

“naturalizada”, a identidade cultural remeteria o indivíduo ao grupo original de

vinculação, sendo a identidade vista como essência, algo imutável sobre a qual

“não há nada a fazer”. É a famosa índole ou “pau que nasce torto morre torto”. É

como se a identidade estivesse inscrita no patrimônio genético. Já numa visão

culturalista, não tão menos naturalizada, o determinante não é a herança biológica,

mas, a herança cultural. A identidade é definida como preexistente ao indivíduo que

interioriza os modelos culturais que lhe são impostos: “filho de peixe, peixinho é”.

Uma terceira visão seria a que reduz identidade a uma questão de escolha

individual e arbitrária (CUCHE, 2002).

Essas três concepções não permitem entender identidade numa concepção

relacional, vista como construção elaborada relacionalmente entre grupos, e numa

concepção situacional à medida em que há sempre uma situação - de poder, de

ideologia , de valores etc – a configurar essa relação.

Para se pensar a problemática racial brasileira no contexto da educação básica,

é necessário perceber identidade tanto em uma concepção relacional como em

uma concepção situacional, pois, o preconceito racial28 contra a população negra

brasileira, responsável por construir uma identidade negativa para a população que

o sofre, não existe de forma absoluta, ou seja, os brasileiros não nascem

28 Entende-se preconceito como “um julgamento negativo e prévio dos membros de um grupo racial de pertença, de uma etnia ou de uma de uma religião ou de pessoas que ocupam outro papel social significativo. Esse julgamento prévio apresenta como característica principal a inflexibilidade pois, tende a ser mantido sem levar em conta os fatos que o contestem.” (GOMES, 2005, p. 54)

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90

predispostos biologicamente e nem culturalmente para sentir o preconceito. Ele é

uma construção relacional, construído socialmente, provocando hierarquizações de

poder, de valores etc, estando a maioria da população negra em patamares

inferiores.

3.5 Identidade colocada em prática

Em 2006, uma bolsista do grupo de pesquisa fez seus estudos de campo29

em uma escola situada em um determinado município da Baixada Fluminense30.

Na sala de aula em que foi realizada a pesquisa, podiam ser vistos murais com

muitos desenhos, sílabas, palavras, alfabeto, vogais, números, um quadro de giz,

jornais e revistas, por tratar-se de uma turma de progressão31.

Nessa turma havia uma média de vinte alunos, com idade entre 9 e 13

anos. A maioria era composta de meninas negras e mestiças afro-descendentes.

Havia também crianças com deficiência auditiva ou estrabismo acentuado. Várias

crianças vinham de outras escolas por não apresentar um rendimento satisfatório

nas mesmas e outras que apresentavam distorções entre idade e série. Ainda havia

outras que estavam na turma de progressão, em seu segundo ano consecutivo sem

alcançar o objetivo, pois, não conseguiam ser alfabetizadas. A professora da turma

fazia alguns relatos e entre eles, o relato sobre um menino tido pela escola como

menino-problema. Esse menino tinha o fenótipo de um mestiço afro-descendente,

estava na faixa dos 13 anos e segundo a professora, era um menino com uma

história complicada.

Esse daí, coitado! Estou tentando salvar. Mas está difícil. A mãe tem problema de mente, o irmão já teve até preso por roubo, e foi aluno daqui da escola, mais daqui a pouco matam! E este está indo pelo mesmo caminho, não quer nada! Só quer saber de cantar funk!

Funk! Foi a partir daí que a bolsista, sob minha coordenação, passou a

fazer um trabalho que nos levou a buscar fundamentos teóricos para o

enriquecimento de nossa pesquisa. Esse aluno era repetente e a professora

29 Tratava-se de uma pesquisa-ação em que as pesquisas são “concebidas como meio de favorecer mudanças intencionais decididas pelo pesquisador. O pesquisador intervém de modo quase militante no processo, em função de uma mudança cujos fins ele define como a estratégia”. (BARBIER, 2002, p.42) 30 Baixada Fluminense é o nome que se dá a municípios próximos, periféricos, ao Rio de Janeiro. 31 Turma de progressão era a denominação dada àquelas turmas cujos alunos não haviam sido alfabetizados dentro do período considerado regular. Hoje, as turmas de progressão não mais existem.

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91

confidenciou à bolsista que naquele ano letivo teria que aprová-lo mesmo que ele

não soubesse ler ou escrever.

A bolsista tentou estabelecer contato com o menino perguntando se era

verdade que ele não gostava de estudar. E ele lhe respondeu que estava cansado.

Então, a bolsista perguntou se ele não gostaria de cantar um funk para ela

aprender. Ele a olhou um pouco espantado e desconfiado, abaixou a cabeça na

carteira e, junto com outro menino, também considerado problema, começou a

cantar, escondendo a face, como se estivesse envergonhado do que estava

fazendo. Ambos cantaram e depois ela perguntou se eles não poderiam escrever

para ela treinar em casa para aprender melhor a música e fez um desafio: “ a não

ser que vocês não saibam escrever”.

Os alunos arrancaram uma folha do caderno e juntos escreveram a letra,

como aprendizes, demonstrado aspectos de uma escrita pré-alfabética. Tentaram

correlacionar a fala com a escrita e discutiram entre si a forma correta dessa escrita

e, algumas vezes, perguntavam se “três” era com “T” ou “V”. Neste movimento, os

meninos escreveram boa parte da música. Também contaram a história da música,

quem cantava e o que queria dizer.

Na verdade, os alunos dialogavam com uma realidade muito próxima da

deles e o funk tornava-se uma forma de desabafo social e grito de socorro. Dentre

tantos funks escolheram um que chamava a atenção para o contexto em que

viviam32.

Essa situação mostra como a escola ainda desvaloriza os saberes populares

e afro-descendentes em função de um conhecimento centrado em uma cultura

branca.. Talvez, fosse uma tentativa melhor sucedida alfabetizar a turma através

das letras de funk, pois, além de serem úteis nas discussões sobre aspectos sócios,

geográficos, históricos, biológicos, os professores poderiam ainda debater temas

sobre a ética, pluralidade cultural e violência urbana. Acreditamos que as tentativas

dos professores refletem a vontade de acertar, mas não sabem como e nem por

onde começar.

32 O funk cantado pelos meninos é uma versão denominada “Proibidão” e faz apologia à criminalidade, drogas, sexo, não tendo sido gravada ou cantada oficialmente, apenas tocada nos bailes: “Bota a cara, porque a bala vai come. Pra tentar tu tem que ta maluco. Quem tentar na Prover vai comer chumbo.” (Trecho musical atribuído a MC Sabrina).

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92

Normalmente, muitas manifestações culturais afro-descendentes são

consideradas inferiores. Numa visão contrária, entendemos que o rap, o funk e

muitas outras formas de expressão dessa cultura devem ser valorizadas e

trabalhadas na escola. Mas, essa valorização exigirá da escola uma nova postura

curricular que possibilite às crianças um reconhecimento de sua cultura para que ela

se valorize nos saberes escolares. Não defendemos que as crianças fiquem

restritas ao seu meio de produção cultural. Ao contrário, defendemos que tenham

acesso a todas expressões culturais existentes em nossa sociedade.

Mas, já não é mais novidade dizer que os processos pedagógicos não são

neutros e, por isso, devem ser consideradas as relações que se estabelecem

nesse espaço porque como diz Certeau ( 1994) espaço é um lugar praticado (p.

202). No espaço escolar, os embates entre os diferentes sujeitos que o compõem

são frequentes. Vivenciando o dia a dia escolar, percebe-se o quanto as diferenças

culturais entre alunos e professores influenciam nas relações estabelecidas em tal

espaço. Ora são as diferenças provocadas pela diferentes faixas etárias, ora são

aquelas provocadas pelo tipo de religião exercida, ora são os valores internalizados

que cada sujeito expressa.

Isso quer dizer que as contradições culturais, econômicas e sociais atingem

os sujeitos sociais em suas vidas, em seus objetivos, em seus cotidianos. Mas, a

escola, em nome de uma educação universal para todos, esquece de tais

contradições. Por esta razão, encontram-se em jogo, suas identidades individuais e

coletivas.

Conforme nos diz Cuche (2002), a identidade é sempre uma negociação

entre uma “auto-identidade” – definida por si mesma e uma “hetero-identidade”33 -

definida pelos outros. A situação relacional é que vai legitimar, de forma positiva ou

negativa, a auto-identidade. Ou seja, numa relação de força entre os grupos , a

auto-identidade fica em desvantagem quando a hetero-identidade estigmatiza o

grupo dominado. Essa estigmatização dos grupos minoritários leva tais grupos a um

reconhecimento para si de uma identidade negativa. Desenvolve-se entre eles um

fenômeno de desprezo por si mesmo que está ligado à interiorização de uma

imagem construída pelos outros (hetero-identidade).

Essa explicação de Cuche (2002) nos permite melhor entender o sentimento

de desvantagem de muitos alunos negros e mestiços afro-descendentes. A escola 33 Cuche toma emprestado de Simon (1979) essas expressões.

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93

reforça a idéia já tão propagada pela mídia e outros meios de que a cultura a ser

valorizada é aquela entendida pelo grupo dominante como a melhor.

Evidentemente que tal cultura não é a que valoriza a população negra e mestiça

afro-descendente. Não é de se estranhar, portanto, que haja preconceito do negro

contra o próprio negro. Quem quer se identificar com algo que é considerado

inferior?

Quando na escola um aluno chama o outro – o aluno negro - de macaco,

tição, que tem um cabelo ruim, vai se construindo e se reforçando uma auto-

identidade negativa, pois, o que se interioriza é uma hetero-identidade considerada

superior. Evidentemente que o portador dessa auto-identidade negativa,

dependendo dos mecanismos desenvolvidos até então para lidar com maior ou

menor segurança com tal desvalorização, procurará negar essa identidade. Um

aluno da Educação Infantil, ou do Ensino Fundamental, não teve ainda a

oportunidade de ter acesso a certos conhecimentos que poderiam os levar a um

melhor entendimento dessa questão. É a partir daí fica muito propício ao aluno

negro desenvolver um sentimento de rejeição contra si mesmo, provocando-lhe

inseguranças que vão trazer prejuízos para o seu rendimento escolar.

Apesar do funk ser muito tocado em rádios e TV, periodicamente, ele é

também alvo de notícias envolvendo violência, participação de bandidos e

confrontos policiais, criando, assim, uma atmosfera negativa da sociedade,

consequentemente, entre os professores, sobre ele. Mas, o funk está presente na

vida cotidiana da maioria dos alunos pobres e a situação da grande maioria dos

alunos das escolas públicas brasileiras é de pobreza e, principalmente, os negros e

mestiços afro-descendentes são os que mais se inserem em tal situação. Isso não

quer dizer que todos têm a mesma identidade. Existem especificidades que

precisariam ser abordadas e trabalhadas para serem respeitadas. Porém, essas

especificidades são, na maioria das vezes, "esquecidas" em prol de uma sociedade

"harmônica", homogênea, onde as individualidades são igualadas por um modelo

comum de cultura, em nome de uma pretensa ordem social.

A escola, portanto, de forma geral, não considera a diversidade de pessoas

e, portanto, de culturas. Assim, o real não é apresentado como heterogeneidade,

como processo que faz variar o que existe; o real é apresentado como se fosse

estável (ITURRA,1997). Homogeneiza-se as diferentes culturas e a riqueza de

relações que podem ser estabelecidas entre e com elas. Tantas cumplicidades que

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94

escapam em nome dessa dominação cultural que sufoca e limita, pois, a escola

constitui-se num terreno cultural onde ocorrem embates, transgressões,

contestações, ambiguamente superpondo reprodução e resistência. (LOPES, 1997,

p.64)

Pode-se dizer que o preconceito racial interfere na busca do negro pela sua

identidade, levando-o a viver, constantemente, com pensamentos de desprazer.

Passa a acreditar que assumindo certos comportamentos, que julga ser exclusivos

do branco, será aceito pela sociedade. Não percebe que formas de comportamento

não são características de tipos de raça. E, para evitar mais sofrimentos, ele termina

por se privar de confrontos com pensamentos racistas. Aceita como verdadeira

aquela realidade que lhe é imposta, desistindo, de antemão, de encontrar saídas e

soluções para os seus problemas.

Faz-se urgente, então, que uma educação étnico-racial seja implementada

como contribuição para a cidadania. Essa é uma das propostas das Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, estabelecidas pela lei

10.639/03.

4. Algumas propostas das diretrizes curriculares estabelecidas pela Lei

10.639/03

A lei 10.639/ 2003 estabelece Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-

brasileira e Africana. Essa lei altera a lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, nos

seus artigos 26, 26A e 79B. Trata de uma política curricular apoiada em diversas

áreas do conhecimento, buscando combater o racismo e a discriminação contra a

população negra brasileira. Nesse sentido, propõe a divulgação e produção de

conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos

orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial, descendentes dos diferentes grupos

étnicos que compõem a sociedade brasileira, para interagirem na construção de

uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos

garantidos e sua identidade valorizada.(BRASIL, 2005, p.10)

Quando se trata de diretrizes curriculares, não podemos deixar de perceber

que trata-se também de orientações e princípios, ou seja, diretrizes não são apenas

Page 95: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

95

conteúdos e objetivos que orientam atividades pedagógicas. No caso específico

dessas diretrizes, elas trazem princípios que orientam não somente para

procedimentos pedagógicos que permitem a aplicabilidade da lei como também

procuram chamar a atenção para a necessidade de mudanças nas maneiras de

pensar e agir dos indivíduos.

O direito dos negros de se reconhecerem na cultura nacional e poderem

manifestar seus pensamentos com autonomia é uma das metas do parecer e está

diretamente relacionada com a idéia de construção de uma nação democrática e

cidadã. Não se pode acreditar na existência de uma verdadeira nação democrática

e cidadã enquanto houver segmentos populacionais alijados do contexto sócio-

político e econômico.

Uma outra meta diz respeito ao direito dos negros e de todos cidadãos

brasileiros em cursarem todos os níveis de ensino, em instituições bem equipadas,

com professores qualificados para lidar com diversas situações decorrentes do

racismo entre os diferentes grupos. Essa qualificação passa pela formação para

trabalhar com os mais variados saberes que vão permitir o entendimento e a

sensibilidade indispensáveis para trabalhar a questão. Acreditamos que tais

conhecimentos colaborarão para a valorização da identidade desse segmento

populacional.

As diretrizes apontam três princípios para orientar, de forma geral, as ações

dos sistemas de ensino e dos professores: 1. consciência política e histórica da

diversidade; 2. fortalecimento de identidades e de direitos e 3. ações educativas de

combate ao racismo e discriminações. Esses princípios trazem orientações para

posturas a serem adotadas pela escola. São sugeridas vinte posturas e

destacaremos algumas delas para fazermos alguns comentários .

Um trabalho mais reflexivo sobre o preconceito e a discriminação contempla

os princípios da “consciência política e histórica da diversidade” e do “fortalecimento

de identidades e de direitos”, pois, entre outras coisas, devem orientar para:

- à igualdade básica de pessoa humana como sujeito de direito.

Não se pode pensar em igualdade apenas em termos formais, ou seja,

levando-se em consideração a igualdade prescrita em lei, conforme já descrito

anteriormente.

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96

– à desconstrução, por meio de questionamentos e análises críticas, objetivando

eliminar conceitos, idéias, comportamentos veiculados pela ideologia do

branqueamento, pelo mito da democracia racial[...]34

A concepção de que vivemos numa verdadeira democracia racial é antiga e

baseia-se principalmente em dois fatos: na miscigenação que no Brasil aconteceu

em grande escala e na comparação que se fazia e se faz até hoje – em menor

intensidade - com a segregação racial e conflitos raciais nos Estados Unidos35.

Essa concepção não surgiu por acaso e a sociedade brasileira ainda traz em

seus pensamentos uma ideologia racial que foi construída a partir de teorias

racistas que estavam em pleno apogeu na Europa, no final do século XIX. Os

europeus, reforçados intelectualmente com o prestígio das ciências naturais,

acreditavam ter atingido a superioridade econômica e política devido à

hereditariedade e ao meio físico favoráveis. Implicitamente, raças mais escuras ou

climas tropicais seriam incapazes de produzir civilizações mais evoluídas36.

Esse mito ainda é reforçado na escola porque a minimização da questão

racial no Brasil leva os professores a não questionarem certas situações de conflito

existentes em nossa sociedade, provocando nos alunos o sentimento de que o

sucesso escolar deve-se exclusivamente ao esforço individual. Como os alunos

não brancos são os que mais engrossam as fileiras dos "mais atrasados", estes

acabam por interiorizar o fracasso, legitimando, assim, a idéia de que essa parcela

da população não consegue melhorar sua situação de vida porque não se esforça.

- o esclarecimento a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana

universal.

Esses equívocos estão relacionados à idéia de que raça é uma só, a

humana. Não cabe polemizar a questão racial brasileira partindo do argumento de

que raças não existem, porque concordamos com esse argumento, porém, não

podemos reduzir nosso entendimento a esse discurso ingênuo. Seria muito 34 O mito da democracia racial surgiu na elite, nos meios acadêmicos e, apesar de se ter em Gilberto Freyre, leia-se Casa Grande & Senzala (1933), o mais importante referencial, na verdade, ele está presente no pensamento racial brasileiro desde o século dezenove. 35 Cf em Skidmore, 1976. 36 Idem

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97

tranqüilo não adotar o termo raça como forma de neutralizar o racismo, no entanto,

a questão é muito mais complexa porque conforme Gomes (2005), é no contexto da

cultura que nós aprendemos a enxergar as raças.(p.49). Portanto, raças são, na

realidade, construções sociais, políticas e culturais produzidas nas relações sociais

e de poder ao longo do processo histórico. Não significam, de forma alguma, um

dado da natureza. (idem).

Nesse sentido, não existe uma identidade humana universal. Mesmo com o

processo de globalização em que a homogeneização cultural tenta se fazer

presente, as identidades nacionais e locais se reforçam em atos de resistência a

esse processo. (HALL, 2006)

- o desencadeamento do processo de afirmação de identidades, de historicidade

negada ou distorcida.

A afirmação de identidades de sujeitos que tiveram sua historicidade negada ou

distorcida passa pela desconstrução de algumas concepções enraizadas em nossa

sociedade como: o mito da democracia racial; o ‘medo” de se tocar no assunto para

não provocar o preconceito racial – como se ele não existisse; o racismo como

somente um problema econômico e não também cultural; a existência do

preconceito racial estar somente na escravidão. Se o professor buscasse

conhecimentos sobre essas concepções e sobre a ideologia que elas acarretam,

perceberia a complexidade do tema, contribuindo para o desencadeamento do

processo de afirmação de identidades e da cidadania da população negra e mestiça

afro-descendente brasileira.

5. Considerações finais

As situações vivenciadas por toda minha trajetória profissional, reforçadas

pelo que foi vivido nas escolas pesquisadas, nos revelam a importância dos debates

sobre a problemática racial da população negra brasileira para que seja possível

refletir sobre a situação desvantajosa em que se encontra essa população em

relação à população branca, revelando que mais do que o preconceito há uma

discriminação, um preconceito nada velado contra esse segmento populacional.

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98

Um professor quando revela desconhecer a existência do preconceito racial

em sala de aula, reforça tal preconceito e corrobora para uma ideologia que ainda

está muito presente em nossa sociedade. E nesse caso, concordamos com

Gramsci ao definir ideologia como concepção de mundo que se manifesta em todos

os setores da vida (econômico, artístico, jurídico, ...), tanto individual quanto

coletivamente. Dessa forma, ideologia está relacionada à capacidade de inspirar

atitudes concretas e provocar a ação. Ora, se é fato que muitos professores,

mesmo sem ter consciência disso, vêem seus alunos negros e mestiços afro-

descendentes de forma inferiorizada, obviamente, que não vão perceber a

existência do preconceito racial e se não o percebem, nada vão fazer para

minimizá-lo, considerando, muitas vezes, que atitudes preconceituosas não passam

de “intriguinhas”.

Luiz Alberto de Oliveira Gonçalves (1985) ao discorrer sobre os rituais

pedagógicos37 a favor da discriminação racial, destaca que a agressão às crianças

negras vem acompanhada de um silêncio dos professores, sob a alegação de que

um dia aprenderão e que o que importa é o caráte”. (p.314) O autor ainda afirma

que

os professores tendem a transmitir estereótipos humilhantes acerca dos grupos étnico-raciais negros. Dificulta, assim, às crianças negras a formação de um ideal de Ego negro, e, em relação às crianças, de uma forma geral, estes conteúdos racistas acabam reforçando atitudes discriminatórias entre segmentos sociais significativos desta sociedade”. (p.324)

O mito da democracia racial, um dos aspectos de nossa ideologia, teve,

como causa principal, o medo da classe dominante em ceder às exigências de

cidadania à população negra. Evidente que aceitar democraticamente as diferenças

significa aceitar também a igualdade de oportunidades. Como o sistema econômico

e político brasileiro não permite essa relação de igualdade, destrói-se a identidade,

a auto-estima e o reconhecimento dos valores do grupo oprimido, que no caso

desse estudo é o negro.

As possibilidades de construção de uma auto-identidade positiva da

população negra e mestiça afro-descendente no contexto escolar e as de

conquistar, de fato, a condição de cidadãos, passam por alguns desafios:

37 Gonçalves usa a expressão “rituais pedagógicos” emprestada de Cury (1985). Para esse autor “ritual pedagógico” seria o “funcionamento da formação pedagógica” e nele se expressam as práticas escolares que por sua vez expressam uma concepção de mundo. E, quanto mais burocratizada a instituição mais coercitivo o “ritual pedagógico” será.

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99

. É necessário buscar formas de trabalhar contra o preconceito e a favor da

cidadania tanto de forma contínua quanto pontualmente.

. Necessita-se, urgentemente, buscar conhecimentos sobre a problemática racial

brasileira.

. É preciso trabalhar em prol de uma identidade positiva para as crianças negras e

despertar nos professores, alunos e responsáveis o entendimento sobre a situação

das crianças negras no cotidiano escolar.

No ano de 2000, ao entrevistar uma colega professora com fins de obter

dados para a minha tese de doutoramento, perguntei-lhe se ela fazia alguma

atividade com os alunos, que trabalhasse a temática racial. Ela me respondeu que

sim e deu como exemplo a exibição de um filme sobre o apartheid sul-africano. Ao

final, ela diz: “Meus alunos ficaram muito aliviados em perceber que aqui no Brasil o

racismo não existe”. Percebe-se, nesse depoimento, o desconhecimento da

professora em relação a certos tipos de conhecimentos necessários à

desconstrução e nova construção de um saber necessário para se começar a

desconstruir certas idéias que ainda estão arraigadas no pensamento da população

brasileira.

No que se refere à população negra, uma educação para o século XXI

precisará passar, portanto, por um conhecimento que permita a desconstrução de

falsas verdades sobre a população brasileira negra e mestiça afro-descendente. A

ideologia racista que ainda povoa a cabeça de muitos professores e alunos tem

uma história. Seu surgimento não foi por acaso. O sentimento de inferioridade que

muitos ainda possuem, por terem uma ascendência africana ou indígena, que lhes

dá uma aparência não europeizada dentro dos padrões “ideais” do que seria a

população brasileira, termina por formar uma identidade negativa nessas pessoas,

prejudicando sua forma de viver e de construir o mundo. Esse artigo buscou,

portanto, provocar formas de refletir e sensibilizar para uma luta que ainda se faz

muito necessária porque todo conhecimento tem como objetivo último o

crescimento pessoal e profissional de quem o procura.

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102

Nos deram um espelho e vimos um mundo doente.

Marcia Gomes de Oliveira Suchanek38

Introdução

"Se você não educar o seu filho,

você está morto" Doethiró, junho 200839

Utilizei como epígrafe40 deste artigo uma curta, mas substancial, fala de meu

amigo Doethiró, líder político do povo Tukano, habitante do Alto Rio Negro, no

Amazonas. São palavras de uma pessoa que conhece o valor da educação dos

antepassados, de uma educação para a Vida.

Quando perdemos esta referência ancestral e deixamos para as instituições

formais toda a tarefa da educação, estamos perdendo os nossos filhos. Estamos

mortos, porque deixamos de transmitir-lhes quem somos e, por isso,

desaparecemos.

A Lei Nº. 11.465/08 alterou o Artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional, em 10 de março de 2008, para incluir a obrigatoriedade do

estudo da História e Cultura dos Povos Indígenas, além da História e Cultura Afro-

Brasileira já anteriormente exigida (Lei Nº. 10.639/03), no currículo oficial da Rede

de Ensino, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e

particulares.

O que a alteração da LDB trás para nós é, sobretudo, a oportunidade de

aprender com os povos indígenas o que perdemos: um saber que vem do espírito.

Muitos filósofos já falaram sobre este saber. Mas, chegou a hora de conhecermos

os "filósofos" indígenas, os sábios desta terra, e aprendermos que História e Cultura

indígenas não fazem parte de um capítulo do folclore brasileiro, mas de um rico

saber das centenas de culturas indígenas existentes no Brasil.

38 Mestre em Sociologia e Direito (UFF), Especialista em Planejamento Ambiental (UFF), Graduada e Licenciada em Ciências Sociais (UFRJ) e Professora de Sociologia da FAETEC. Realiza trabalhos e pesquisas com povos indígenas desde 1989. 39 Frase extraída de conversa informal com Doethiró, em minha residência no Rio de Janeiro, quando em visita, junho de 2008. Doethiró, cujo nome em português é Álvaro Sampaio, é conhecido como Álvaro Tukano e luta pela causa indígena em todo o Brasil desde os anos 1970. 40 Índios. Renato Russo.

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103

A Lei 11.465/08 exige que os professores tenham a capacidade de combater

o desconhecimento, a intolerância e o preconceito em relação aos povos indígenas.

Antes de mais nada é preciso conhecer a História que o Brasil fez com os nativos.

Esta História é o princípio de uma reformulação do pensamento e o principal

instrumento de combate aos pré-conceitos fixados ainda hoje em nossos livros

didáticos.

O começo

As primeiras explorações portuguesas no território brasileiro ocorreram

através de negociações comerciais com vários povos indígenas, em sua maioria

pertencente ao tronco lingüístico Tupi, como por exemplo, Carijó, Tamoio,

Tupinambá, Tupinaki, Guayanã, Waytaká, Aimoré e Caeté. Eles viviam ao longo da

faixa litorânea que se estendia do Rio da Prata até o Pará (NIMUENDAJU, 1987).

O comércio já era intenso em 1501. Neste ano, a Coroa Portuguesa deu a

Fernão de Noronha o direito, com exclusividade por três anos, de explorar a

madeira que daria nome à colônia, o pau-brasil (MAURO, 1989, p. 163).

O nascimento do "índio manso" e do "índio bravo"

Na guerra pelo monopólio comercial e territorial, os portugueses

estabeleceram alianças para combaterem os franceses. Os Temiminó e os

Tupinikim eram os principais aliados dos portugueses e, por isso, chamados de

índios mansos ou gentios. Os Tupinambá eram aliados dos franceses, sendo

inimigos dos portugueses, foram imediatamente identificados como índios bravos,

perseguidos e massacrados.

Os aliados aos portugueses forneciam alimentos, couro, ervas e, sobretudo,

pau-brasil. Serviram como soldados contra o invasor não português e construíram

as fortalezas portuguesas.

Quando o território passa a ser propriedade portuguesa

Em 1534, foi introduzido o sistema de capitanias hereditárias, iniciando uma

nova forma de relação com a terra e consequentemente com os seus habitantes.

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A Coroa Portuguesa dividiu o território em quatorze lotes e deu o direito de

usufruto de 20% de cada lote a um capitão-donatário. Os 80% restantes deveriam

ser transferidos a terceiros, através do sistema de sesmarias41.

A Carta de Doação foi o primeiro documento de expropriação das terras

indígenas expedido pela Coroa Portuguesa.

Os povos indígenas foram escravizados

A Carta de Doação dava direito ao capitão donatário escravizar índios em

número ilimitado e autorizava a sua venda no mercado de Lisboa.

Neste primeiro momento, só era permitido escravizar os índios aliados aos

franceses. Mas, em 1565, ampliou-se a forma de captura, permitindo a escravidão

de índios apreendidos nas “guerras justas”.

A doutrina da guerra justa surgiu em Portugal no século XIV. Ela servia para

legitimar a guerra quando um povo recusava a evangelização ou quando cometia

práticas de hostilidades contra vassalos e aliados dos portugueses.

No Brasil, a guerra justa ocorreu com a invasão armada às comunidades

indígenas para capturar e transformar em escravo o maior número de pessoas

possível, incluindo mulheres e crianças. Estas invasões exterminaram parte

significativa da população do litoral, inclusive povos aliados aos portugueses. Em

consequência disso, a Lei de 20 de março de 1570 regulamentou as guerras justas,

autorizando a escravidão de prisioneiros somente com a permissão do Governador

Geral.

A captura sem permissão continuou sendo permitida nos casos de resistência

à evangelização. Portanto, permaneceram livres somente os índios que aceitaram a

conversão à religião cristã. Um paradoxo: a liberdade estava condicionada à

aceitação da submissão.

41 Sesmaria é um lote de terra com superfície muito variável cedida ao colono português, nomeado sesmeiro. Este recurso jurídico foi criado em 1375 para solucionar a grave crise de abastecimento alimentar que havia em Portugal. Na Colônia, mais do que para promover o cultivo à terra, serviu para dominá-la enquanto área colonial. Para maiores esclarecimentos sobre o sistema de sesmaria no Brasil ver Motta (1998).

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Táticas para transformar os nativos em escravos

Tática 1: resgate de prisioneiros. Os portuguêses ofereciam mercadorias

européias (ferramentas, miçangas e roupas) ao grupo inimigo em troca do

prisioneiro. Como pagamento da salvação, o índio passava a trabalhar como

escravo para quem o resgatou.

Tática 2: missionários cooptavam para o trabalho aldeias inteiras através do

convencimento. Eles realizavam expedições (conhecidas como descimentos) com o

objetivo de convencer os índios a descerem de suas aldeias de origem sem

oferecer resistência armada. Os índios descidos deveriam desistir do seu modo de

vida tradicional e passar a viver em novos aldeamentos administrados pelos

missionários - as aldeias de repartições. Os índios descidos eram catequizados e

orientados para o trabalho de acordo com a quantidade e potencialidade da terra.

Havia, por exemplo, povoado missioneiro essencialmente pecuário, outros

dedicados à produção de ervas, de algodão ou à especialização de ofícios

artesanais. Em princípio, os índios das aldeias de repartição trabalhavam em um

sistema rotativo (período de dois a seis meses) nas roças da aldeia missionária e

depois iam trabalhar para os fazendeiros e para a Coroa.

O objetivo principal dos missionários era manter o monopólio sobre a

administração dos índios, garantindo poder exclusivo sobre o fornecimento de mão-

de-obra para toda a Colônia. Este monopólio esbarrava no interesse dos

fazendeiros, já que eles haviam arrendado as terras dos sesmeiros e estavam

imensamente necessitados de escravos.

Tática 3: fazendeiros invadiam as áreas agrícolas e de criação do gado para o

sustento da aldeia, provocando a destruição da autonomia econômica indígena.

Sem economia, os sobreviventes se rendiam a quem lhes oferecia trabalho, se

reorganizando em uma nova aldeia, criada pelo fazendeiro administrador particular

de índios.

Tática 4: alguns fazendeiros organizavam expedições, denominadas

bandeiras, para capturar índios nas regiões mais distantes do Brasil, da Argentina e

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do Paraguai. Ao final de uma expedição, os índios eram divididos entre os

bandeirantes42, ficando a maior parte para o chefe da bandeira.

Índios alugados

Como uma forma de escamotear a escravidão dos povos nativos, foi criado o

termo “índios alugados”. Para fazer jus ao nome, a pessoa recebia pelo trabalho

executado alguns metros de pano de algodão, tecido pelas próprias índias.

Os índios alugados também estavam obrigados ao aprendizado da doutrina

cristã, recebiam alimentação insuficiente e castigos pesados. O trabalho nas

fazendas variava por setor, ocupação, etnia e sexo. Os homens carregavam

produtos do interior para o comércio do litoral. Comandados pelos sertanistas

(chefes das expedições para o sertão), faziam a abertura das matas como

soldados, eram os guias das expedições para o interior e responsáveis pela

alimentação dos sertanistas, fornecendo o que eles mais cobiçavam: as carnes.

Também foram mercadores de produtos de couro em vilas do interior e vaqueiros,

principalmente a partir do final do século XVII.

As mulheres cuidavam das roças e das lavouras de trigo e algodão, além de

serviços domésticos, como acompanhantes, babás e cozinheiras nas moradas dos

colonizadores (fazendeiros e funcionários da Coroa).

Os fazendeiros criavam mecanismos para reter os índios permanentemente

em seus estabelecimentos particulares, usando como principal recurso o

casamento de uma índia escrava de sua propriedade com um índio alugado.

Trabalho como mercadoria

O poder de gerar riquezas na Colônia dependia, em primeiro lugar, do poder

de capturar índios e controlar a distribuição de sua força de trabalho. Por isso, havia

uma forte disputa entre missionários (jesuítas, franciscanos e carmelitas) e

fazendeiros.

42 Monteiro (2002, p. 497, nota 3) observa que o termo bandeirante é um anacronismo no século XVII. A palavra só foi utilizada no século XVIII, inicialmente para designar expedições punitivas contra os índios em Goiás.

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No final do século XVII, com a descoberta das minas de ouro nos estados de

Goiás, Minas Gerais, Bahia e Mato Grosso, os principais fazendeiros da região sul

deslocaram seus escravos indígenas para a região das minas.

Os fazendeiros que permaneceram em São Paulo, por exemplo, preferiram o

lucro imediato do comércio de escravos africanos e de gado do que investimentos

menos rentáveis na própria terra - justamente os que mais utilizavam o trabalho

indígena. Deste modo, a procura da mão-de-obra indígena caiu com a decadência

geral da lavoura paulista. Mas este fato não significou a completa substituição da

força de trabalho indígena pela africana. Desde o século XVI, a escravidão africana

foi concomitante à escravidão indígena.

O aumento do uso da mão-de-obra escrava oriunda do continente africano

não foi causado por carência de mão de obra nativa. Tratou-se de uma opção

geopolítica do governo central e atendeu aos interesses do comércio negreiro

(ALENCASTRO, 2000).

Em 1730, foi oficialmente extinta a administração particular sobre a vida dos

nativos. Entretanto, o sequestro e a escravidão continuaram através do programa

administrativo desenvolvido pelo Império português.

Extermínio cultural

O ministro português Marquês de Pombal criou, em 1757, uma lei conhecida

como Diretório dos Índios (ou Diretório Pombalino). Esta lei tinha o objetivo de

eliminar uma série de tradições e costumes dos nativos da Colônia, como por

exemplo:

- Proibia o uso das línguas indígenas, inclusive nas aldeias;

- Obrigava as crianças indígenas a frequentarem a escola;

- Obrigava os pais colocarem sobrenomes portugueses em seus filhos;

- Proibia o uso dos roupas e acessórios tradicionais indígenas;

- Proibia as habitações coletivas;

- Incentivava o processo de mestiçagem;

- Estimulava a ocupação de colonos europeus, transformando muitas aldeias

em povoados e vilas.

Em 1758 - um ano após a implementação do Diretório dos Índios - foi

decretada a extinção da escravidão indígena em todo o Brasil. Mas isto só

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aconteceu na lei, porque na prática não foi o fim da escravidão, mas uma mudança

de interpretação jurídica: a partir daquele momento, os índios escravos não foram

mais reconhecidos como índios.

A situação pós-colonial

Quando o Brasil se tornou independente de Portugal (1822) buscou suas

bases de sustentação ideológica em uma imagem unificada de povo brasileiro, a

saber: cristão e mestiço.

Os diversos povos indígenas foram reduzidos a uma única imagem figurada:

"o índio"43. Imagem folclórica, sem referência à complexa realidade das centenas de

línguas e formas de vida que sobreviveram aos 300 anos de colonização. Povos

sem história, sem nome próprio, sem respeito.

O sentimento de nacionalidade brasileira foi construído passando por cima

dos direitos dos nativos.

A primeira Constituição do Império do Brasil, em 1824, ignorou completamente

a existência dos povos indígenas. “O Brasil independente marca um retrocesso no

reconhecimento dos direitos indígenas: no mesmo período em que o índio se torna

o símbolo da nova nação nega-se-lhe tanto a soberania quanto a cidadania”

(CUNHA, 1987, p. 63).

O Ato Adicional de 1834 determinou que as Assembléias das Províncias

legislassem os assuntos indígenas. Porém, os legisladores eram associados aos

poderes locais e permitiram invasões de terras e o extermínio de vários povos.

Lei de Terras

Em 1850, mesmo ano em que foi proibido o tráfico de escravos da África para

o Brasil, também foi criada a Lei de Terras (Lei 601 de 18/9/1850) - a primeira lei a

regulamentar o uso da terra em todo o território brasileiro.

Esta Lei oficializou o latifúndio e eliminou o direito de posse. Isto provocou a

extinção de dezenas de aldeias indígenas (DARELLA; LITAIFF, 2000).

43 Somente é correto dizer “o índio” quando se trata de uma determinada pessoa nativa. Sendo incorreto o uso do termo “o índio” ou “os índios” para se referir aos povos nativos.

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É nesta lei que nasce o conceito jurídico de Reserva Indígena, depois amplamente utilizado, e que significava nada mais do que uma porção de terra pública separada (reservada) de uma gleba maior, que não era destinada à colonização, mas ao uso de um grupo indígena enquanto não fosse definitivamente "civilizado". Isto quer dizer que não era um reconhecimento dos direitos indígenas sobre as terras que ocupavam, mas a separação de uma terra qualquer para ser ocupada pelos índios, independentemente de seu direito (SOUZA FILLHO, 1993, p. 65).

A partir de 1887, as terras das aldeias extintas foram transferidas para o

domínio das Províncias, podendo ser aforadas pelas câmaras municipais (Lei 3348

de 20/10/1887, art. 8, § 3). Em 1889, o Brasil tornou-se uma República e a primeira

Constituição Federal, de 1891, “ratificará esse estado de coisas, atribuindo aos

estados as terras que eram das províncias” (CUNHA, 2002, p. 146).

O direito a sua própria terra

Existe um tipo de direito especial para definir o direito dos povos nativos a

suas próprias terras, chama-se indigenato. De acordo com o direito do indigenato,

as terras dos povos indígenas são reservadas ao seu usufruto exclusivo. O direito à

terra não é concebido ao índio como se ele a tivesse adquirido por simples

ocupação ou conquista, mas porque lhe é um direito congênito e primário. Não é

um simples ato de posse, mas de um título imediato de domínio. Não há, portanto,

posse a legitimar, mas domínio a reconhecer.

O Jurisconsulto João Mendes Junior dá uma aula magistral ao defender o

direito do indigenato em uma Conferência realizada em 190244:

“Não quero chegar até o ponto de affirmar, como P.J. Proudhon, nos Essais d’une philos.populaire, que - o indigenato é a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial; mas, sem desconhecer as outras fontes, já os philosophos gregos affirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Conquanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1º de Abril de 1680, a primaria, naturalmente e virtualmente reservada, ou na phrase de Aristoteles (Polit., I, n.8), - um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento. Por conseguinte, o indigenato não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem. O indígena, primariamente estabelecido, tem a sedum positio, que constitue o fundamento da posse, segundo o conhecido texto do jurisconsulto Paulo (Dig.titul. de acq. vel. Amitt. Possess., L. 1), a que se referem Savigny, Molitor, Maiz e outros romanistas; mas, o indígena, além desse jus possessionis, tem o jus possidendi, que

44 Terceira Conferência de João Mendes Junior, na Sociedade de Etnographia e Civilisação dos índios de São Paulo, sob o título “Situação dos indios depois da nossa independência”, apresentada em 1902 e publicada no livro “Os indigenas do Brazil seus direitos individuaes e políticos”, publicado originalmente em 1912 e em 1988, republicado em Edição Fac-Similar, pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, Págs. 58 e 59 (GRAU, 2008).

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já lhe é reconhecido e preliminarmente legitimado, desde o Alvará de 1º de Abril de 1680, como direito congenito” Mas na prática, através da Lei de Terras, foram doadas a alguns povos

indígenas somente as terras que não interessava a mais ninguém.

Século XX

Em 1910, o governo brasileiro criou o Serviço de Proteção aos Índios e

Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN). Subordinado ao Ministério da

Agricultura, este órgão federal tinha a função de localizar os índios que viviam

livremente e os caboclos dispersos pelo território brasileiro, transformá-los em

trabalhadores rurais e operários nas construções das estradas, linhas telegráficas e

demarcações das fronteiras do território brasileiro - ações estratégicas para a

consolidação do Estado Nacional (OLIVEIRA, 2003, Capítulo 3).

Lima (1995, p. 11) esclarece que o SPILTN foi “o primeiro aparelho de poder

estatizado a estabelecer relações de caráter puramente laico com os indígenas,

tanto no que tange aos seus quadros quanto à sua ideologia de ação”, dando início

ao monopólio do exercício do poder estatal sobre os povos nativos.

A tutela

A política do Estado em relação aos povos indígenas foi estabelecida com

base no recurso jurídico da tutela (LIMA, 1995). A tutela civil é um mecanismo de

proteção e defesa, válido para todos os cidadãos brasileiros.

Mas o Código Civil de 1916 criou um suporte legal para uma tutela especial

aos nativos (MAGALHÃES, 2005). Ao invés da defesa ser garantida pela

intervenção do Estado, determinando que o tutor aja sempre em defesa do tutelado,

no caso dos povos indígenas a tutela é exercida pela União que está obrigada a

agir sempre em defesa do que considera o bem comum – o que nem sempre

coincide com os interesses dos povos indígenas.

O Código Civil também fazia uma classificação entre os povos indígenas, de

acordo com o nível de contato estabelecido com a sociedade brasileira. O regime

de incapacidade relativa para viver no seio da sociedade nacional era aplicado

somente aos povos identificados como silvícola, isto é, os habitantes da selva. E

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devido a esta incapacidade eles teriam o direito de proteção e defesa de suas terras

e culturas.

A tutela aos silvícolas era análoga ao instituto dispensado aos maiores de 16

anos e menores de 21 anos e aos pródigos (indivíduos que dilapidam o seu

patrimônio e, por isso, devem ser interditados pela família). Já os índios que se

acham confundidos na massa geral da população passam a ser regidos pelo direito

comum (Artigo 147, I, Código Civil de 1916), sendo, portanto, ignorado o direito

coletivo à terra e à vida de acordo com suas tradições e costumes (MAGALHÃES,

2005).

Em 1918, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores

Nacionais (SPILTN) passou a ser denominado apenas de Serviço de Proteção aos

Índios (SPI).

Atração fatal

O principal projeto dos idealizadores do Serviço de Proteção era fazer o

contato com os povos isolados antes das frentes de expansão econômica, dando

um suporte educacional para estes povos se integrarem à sociedade nacional. Não

havia um projeto para os índios em contato permanente, porque eles eram

considerados corrompidos pelos maus hábitos da população brasileira. A tática do

Serviço de Proteção consistia em criar uma sede administrativa em cada local de

atuação, denominada Posto Indígena45.

Fase 1: Atração

Os funcionários do Posto Indígena, conhecidos como sertanistas, indigenistas

ou pacificadores, colocavam presentes em locais estratégicos, onde os índios

transitavam em seu cotidiano. Estes presentes eram produtos industrializados,

como pentes, espelhos, miçangas e facões. Quando os índios começavam a pegar

estes presentes e a deixar igualmente outros como retribuição (artesanatos e

alimentos), estava estabelecida a fase denominada “atração dos índios isolados”.

45 Os Postos Indígenas existem até hoje em áreas indígenas reconhecidas pelo Governo Federal. A principal diferença é que atualmente os chefes dos Postos possuem, de um modo geral, uma postura menos autoritária e, em alguns casos, o chefe é indígena.

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Fase 2: Comércio

Depois o Chefe do Posto introduzia a relação de troca, estimulando os índios

a trazerem seus produtos para então obterem os artigos industrializados.

Estabelecida a relação de troca, iniciava-se a estratégia para mantê-la. Nesta

segunda fase, a tarefa dos funcionários do Posto era a de introduzir o valor do

dinheiro. Tudo o que os índios inicialmente recebiam e davam como presente

passava a ser anotado em um caderno e colocado um valor estipulado pelo chefe

do Posto. Os produtos industrializados sempre valiam no mínimo duas vezes mais

do que os produtos indígenas.

A arma de fogo era um dos principais instrumentos para a criação do vínculo

com o Posto. A antropóloga Carmen Junqueira relata esta experiência entre os

Cinta-Larga, ocorrida na década de 1970:

As primeiras armas de fogo são emprestadas aos índios. Parte da caça que conseguem é necessariamente deixada para o Posto, acarretando uma melhoria da dieta dos funcionários que em outras circunstâncias devem se contentar com o arroz e feijão usual. A atração que a espingarda exerce sobre os caçadores é irresistível e em pouco tempo procuram obter a sua própria arma. Mesmo que tenham sucesso, não se rompe o vínculo com o Posto e tampouco o compromisso de ceder parte do produto das caçadas, pois dependem do fornecimento de munição (JUNQUEIRA, 1984, p. 1286).

Fase 3: Endividamento

Na terceira fase, o Posto Indígena funcionava como escola para ensinar o

português, técnicas de agricultura, pecuária, indústria e comércio, de acordo com a

vocação de cada região. Os funcionários do Posto obrigavam os índios a

trabalharem em atividades estabelecidas dentro do próprio Posto como pagamento

pelos produtos recebidos. Porém, como o trabalho indígena valia sempre menos do

que os produtos industrializados, os índios se endividavam constantemente. Parte

ou aldeias inteiras eram deslocadas para áreas próximas ao Posto, com a finalidade

de trabalharem por mais tempo para pagarem suas dívidas.

A atuação indigenista governamental mapeou e controlou as vidas dos povos

nativos retirando a sua autonomia. A maioria dos Postos Indígenas se transformou

em centros produtivos, rendendo lucros extraordinários a alguns de seus

funcionários e aos cofres públicos.

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Ao final de 50 anos de atuação, o SPI estava envolvido em acusações de

corrupção administrativa, em escândalos de repercussão internacional. A melhor

forma que o Governo encontrou para eliminar as graves denúncias, sem solucionar

o problema, foi declarando a extinção do SPI, em 1966. No ano seguinte, surgiu a

Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

Na Lei de Criação da FUNAI (Lei nº5.371/67), em seu Artigo 1º, fica exposto o

mesmo propósito do SPI de proporcionar a “aculturação espontânea do índio”,

promovendo sua evolução socioeconômica sem mudanças bruscas por intermédio

de uma “educação de base apropriada”, visando a sua progressiva integração na

sociedade nacional. Esta política deu continuidade à ruptura da vida autônoma dos

povos indígenas, gerando, em alguns casos, massacre e extermínio, e em outros a

miséria.

Em 1973, em plena ditadura militar, após várias denúncias internacionais

sobre maus tratos sofridos pelos índios no Brasil, foi criada a Lei nº. 6.001/73,

conhecida como Estatuto do Índio. Em vigor até hoje, reconhece a necessidade de

preservar as características culturais dos grupos étnicos e de promover o

“desenvolvimento” das comunidades indígenas, “no sentido de elevar o padrão de

vida do índio com a conveniente adaptação às técnicas modernas” (Artigo 53 do

Estatuto do Índio).

A terra indígena não é do índio

Em relação ao reconhecimento formal da terra, no Estatuto do Índio foi

reconhecida a posse e o usufruto permanente da terra, mas não foi dado o pleno

direito de sua propriedade.

A terra indígena é domínio da União e, mesmo no caso da aquisição por

compra, doação ou permuta, a terra continua sob o controle do Patrimônio Indígena

(Artigo 39 do Estatuto do Índio), gerenciado pela FUNAI (Fundação Nacional do

Índio).

O índio só tem o direito de administrar os seus próprios bens quando

demonstrar capacidade para o seu exercício (Artigo 42 do Estatuto do Índio). E ele

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só pode ter plena propriedade da terra em caráter individual e quando somente se

for considerado integrado (Artigo 33, caput), ou seja, quando a propriedade deixar

de ser na prática uma terra indígena.

A diferença entre proteção e tutela

Em 1987, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) criou o Departamento de

Índios Isolados. Finalmente foi estabelecida uma nova forma de relação com os

povos que não mantêm relação permanente com a sociedade brasileira: a missão

de demarcar os seus territórios sem realizar o contato46.

Ficou entendido que o reconhecimento oficial da existência de povos isolados,

não significaria tutela, mas a responsabilidade do Estado de protegê-los em sua

decisão de viver como desejassem. Cabendo ao Governo a função de reconhecer

os seus territórios e seus direitos humanos, individuais, coletivos e ambientais. Esta

foi a primeira demonstração de respeito do Estado brasileiro aos povos não

subordinados à tutela.

Em 2003, a FUNAI permanece com a finalidade de “preservação da

aculturação espontânea do índio, de forma a processar-se sua evolução sócio-

econômica, a salvo de mudanças bruscas” (Decreto nº 4.645/03, Estatuto da

FUNAI, Capítulo I, Art. 2º, II, d). Reforçando, portanto, os mesmos propósitos

indigenistas do início do século passado.

Somente em 2009, a FUNAI faz uma revisão de suas finalidades. Baseada na

Constituição Federal de 1988, o Decreto nº. 7.056/09 estabelece que a missão da

FUNAI é exercer, em nome da União, a proteção e a promoção dos direitos dos

povos indígenas.

Cabe à FUNAI garantir o cumprimento da política indigenista do Estado

brasileiro, baseada nos seguintes princípios (FUNAI, 2011):

a) garantia do reconhecimento da organização social, costumes, línguas,

crenças e tradições dos povos indígenas;

b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações ;

46 A FUNAI contabiliza a existência de 63 povos sem contato com a sociedade brasileira (http://www.funai.gov.br/ Acesso em 14 mar. 2008).

Page 115: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

115

c) garantia ao direito originário e à inalienabilidade e à indisponibilidade das

terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas

existentes;

d) garantia aos povos indígenas isolados do pleno exercício de sua liberdade

e das suas atividades tradicionais sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los;

e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas;

f) garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos

indígenas;

g) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações em

instâncias do Estado que definem políticas públicas que lhes digam respeito;

h) e administrar os bens do patrimônio indígena, exceto aqueles bens cuja

gestão tenha sido atribuída aos indígenas ou suas comunidades.

A política de não interferência demonstra o amadurecimento alcançado pela

FUNAI ao longo de sua história, reconhecendo seus erros do passado quando

interferia autoritariamente na vida dos povos nativos.

Conclusão

As populações indígenas foram escravizadas tanto quanto as populações

vindas da África, no entanto, ainda vigora nos livros didáticos e no imaginário social

brasileiro a crença de que a mão-de-obra indígena foi integralmente substituída pela

força de trabalho africana.

A dificuldade da sociedade brasileira em aceitar a presença dos povos

indígenas é tão grande que até o reconhecimento da escravidão indígena é

negligenciado. “A mulher pega a laço” (frase popular) deixou de ser prova de

estupro e escravidão e passou a ser romance.

O governo português desenvolveu, desde o início da colonização, um aparato

jurídico-administrativo para escravizar as populações nativas. A prática da

escravidão em todo o período colonial causou o extermínio de centenas de povos e

a perda da identidade étnica por decreto legal de tantos outros.

O país independente não reconheceu a independência de seus povos. O

processo de construção da identidade nacional foi autoritário e não reconheceu a

pluralidade político-cultural dos povos nativos.

Page 116: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

116

O Estado Nacional separou a política da cultura, destruiu a autonomia

sócioeconômica e transformou a identidade de cada povo em folclore nacional.

O Serviço de Proteção ao Índio atuou em todo o território brasileiro,

identificando povos indígenas até então desconhecidos pelo Estado. Introduziu o

valor do dinheiro e a dependência ao consumo de produtos industrializados -

sobretudo alimentos ricos em sacarose, armas de fogo, utensílios domésticos de

plástico e alumínio.

O interesse por conhecer novos instrumentos de trabalho, novos objetos de

arte e prazer, novos sabores e gostos em alimentos e bebidas, sempre fez parte

das relações interculturais estabelecidas durante a história da Humanidade. Os

objetos, presenteados aos índios, foram retribuídos com presentes igualmente

cobiçados pelos colonizadores (e mais tarde, funcionários públicos). Entretanto, não

se tratou de troca de presentes, como comumente se faz a quem se tem respeito.

Por trás deste gesto estava o projeto de dominação: o que era presente passou a

ser mercadoria.

As crianças, obrigadas a irem para a escola, aprenderam o valor do dinheiro e

absorveram novos desejos que somente o dinheiro seria capaz de realizar.

Enquanto isso, os adultos trabalhavam para pagarem a conta que faziam no posto

indígena, o centro administrativo do órgão tutor que funcionava (e em algumas

regiões ainda funciona) como o único posto comercial - subvalorizando os produtos

e trabalhos indígenas e supervalorizando os produtos industrializados. Deste modo,

os povos indígenas foram introduzidos no mercado consumidor de uma forma

particular: sem direito à escolha do que consumir. Esta prática se perpetua na

atualidade através das doações de cestas básicas: consomem os produtos

determinados pelos programas de assistência social públicos e privados.

O Estado existe para garantir a vida. Isto significa atenção e respeito às

especificidades culturais de cada povo e de cada pessoa. Diante de um Estado

omisso com a sua obrigação de proteção à vida (em todos os setores da

sociedade), os povos indígenas estão reféns das políticas assistencialistas. Eles

mesmos alimentam a relação de tutela que, em alguns casos, garante a

sobrevivência. Foram “pacificados”, ou seja, educados a aceitarem o mínimo.

Aprenderam a reconhecer a falta, a necessidade e a dependência como inevitáveis.

O maior indicativo de que a Lei 11.465/08 cumpriu a sua função social será no

dia em que poderemos passar a ler “a sigla FUNAI como Fundação das

Page 117: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

117

Nacionalidades Indígenas, sugerindo a substituição deste Colonialismo interno por

uma Diplomacia interna” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988, p. 48).

As principais ações da Diplomacia Interna são: o respeito ao direito nativo à

terra (o indigenato) e o impedimento da existência de usinas hidrelétrica e nuclear,

mineração, gado, latifúndio, queimada, extração de madeira e destruição das

nascentes em todas as áreas indígenas e regiões do seu entorno.

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Page 119: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

119

“A sala de aula é o último lugar onde ocorrerão mudanças”. A lei 11.465: suas implicações teóricas e

práticas na recente produção acadêmica.

Luiz Fernandes de Oliveira47

A frase que compõe o título deste texto foi expressa por uma professora de

língua portuguesa num seminário sobre a Lei 10.639 promovido por uma secretaria

de educação de um município do interior do estado do Rio de Janeiro.

Na ocasião, estavam presentes diversos docentes, principalmente da área

de história, e se debatia as grandes dificuldades de implementação da referida lei

nos espaços escolares e na sala de aula. Essas dificuldades se referiam desde a

falta de material didático sobre a história da África e dos negros no Brasil, o racismo

presente entre crianças e jovens, certa dificuldade dos docentes em discutir um

tema gerador de “muitos conflitos”, a falta de apoio pedagógico dos sistemas de

ensino, até a defasagem na formação de professores sobre a problemática das

relações raciais e educação.

Após tantas “evidências” levantadas no grupo sobre os desafios e as

dificuldades de ter esta lei cumprida nas escolas, a professora declarou que “a sala

de aula é o último lugar onde ocorrerão mudanças”.

Para alguns estudiosos da questão, presentes no seminário, esta frase

pareceu sintomática naquilo que percebemos atualmente nas discussões sobre a

implementação da Lei 10.639 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de

história e cultura afro-brasileira e africana em todo o currículo do ensino básico48, ou

seja, as implicações curriculares e pedagógicas suscitadas pela nova legislação vão

percorrer um longo caminho até chegar efetivamente nas salas de aula.

A professora não fez uma declaração em tom pessimista, mas tentando

demonstrar que a superação e o combate ao racismo que esta lei apresenta

implícita e explicitamente, estão mobilizando questões muito além de uma

especificidade temática no campo educacional brasileiro.

47 Doutor em Educação pela PUC – Rio, Mestre em Sociologia pela UERJ e Especialista em História da África e do Negro no Brasil pela UCAM. Professor Adjunto do Instituto de Educação da UFRRJ. 48 Em 10 de março de 2008, foi sancionada a Lei 11.465/08 que substitui a Lei 10.639. Esta nova lei acrescenta apenas a inclusão do ensino da história e cultura dos povos indígenas. Portanto, a partir desse momento do texto, faremos referência a nova Lei que substitui a 10.639/03.

Page 120: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

120

De fato, analisando os estudos e pesquisas acadêmicas desde a instituição

desse dispositivo legal – em 2003 - até o presente momento, podemos observar

que as diversas considerações teóricas e práticas perpassam questões como:

identidade negra, democracia racial, diferenças, igualdade, identidade, cultura,

multiculturalismo, livros didáticos, movimento negro, políticas de ações afirmativas,

formação docente, interculturalidade, exclusão, evasão escolar, repetência,

formação docente e outros.

O objetivo deste texto é sintetizar algumas discussões que vêm se

desenvolvendo em pesquisas e reflexões acadêmicas sobre a questão da

implementação da Lei 11.465 nos sistemas de ensino, no currículo e nas escolas

brasileiras, e identificar alguns limites dessas discussões a luz da complexidade e

tensões que se apresentam entre um dispositivo legal - que estabelece a

obrigatoriedade de certos conteúdos históricos e culturais - e as práticas e visões

pedagógicas e curriculares tradicionais que têm fortes inserções nas escolas e nas

salas de aula.

As razões que motivam a reflexão das tensões e complexidade desta

relação são, em primeiro lugar, as recentes produções acadêmicas desde o ano de

2003 sobre a Lei 11.465 que, mas do que tentar formular propostas pedagógicas

para implementação da lei, ainda não estão dialogando com experiências concretas

e bem sucedidas no que diz respeito a real inserção das propostas declaradas na

lei e, em segundo lugar, na necessidade de contextualizar as dificuldades dessas

mesmas produções que se apresentam concomitantemente as iniciativas oficiais de

implementação da lei. Ou seja, parece que de um lado há um esforço muito positivo

de propor iniciativas de reflexão teórica, e por outro, uma dificuldade significativa de

interpretar a real dimensão teórica e prática que esta lei mobiliza na perspectiva de

incluir temas, conteúdos e novos paradigmas teóricos, nada comuns no campo das

práticas pedagógicas e curriculares.

As pesquisas e reflexões acadêmicas que nos referenciamos para nossa

análise se encontram em algumas publicações significativas na literatura

educacional brasileira, a saber, os textos de: Nilma Lino Gomes, Educação,

identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o

cabelo crespo da revista Educação e Pesquisa; Anderson Ribeiro Oliva, A História

da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na literatura didática

da revista Estudos Afro-Asiáticos; Fúlvia Rosemberg, Chirley Bazilli e Paulo Vinícius

Page 121: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

121

Baptista Silva, Racismo em livros didáticos brasileiros e seu combate: uma revisão

da literatura da revista Educação e Pesquisa; Ana Lúcia Valente, Ação afirmativa,

relações raciais e educação básica da Revista Brasileira de Educação; José

Ricardo Oriá Fernandes, Ensino de história e diversidade cultural: desafios e

possibilidades do Caderno Cedes; o texto do Núcleo de currículo do CEAFRO e da

Secretaria Municipal de Educação de Vitória-ES, A Educação Anti-Racista; Luciane

Ribeiro Dias Gonçalves e Angela Fátima Soligo, Educação das relações étnico-

raciais: o desafio da formação docente, apresentado na 29ª Reunião da ANPED no

Grupo de trabalho Afro-brasileiros e Educação e o texto de Maria Cristina Rosa, Os

professores de arte e a inclusão: o caso da lei 10639/2003, apresentado também na

29ª Reunião da ANPED no mesmo Grupo de Trabalho.

As categorias de análise, os acordos quanto à importância da lei e os temas

abordados.

A maioria dos textos que iremos analisar possui algumas categorias de

análises em comum como: identidade negra, representações, igualdade e

diferença, diversidade cultural, educação multicultural e multiculturalismo, currículo e

racismo. Algumas dessas categorias são bastantes presentes em outras temáticas

abordadas no campo educacional, mas aqui, elas se inserem nas reflexões que os

autores realizam acerca da Lei 11.465 e das relações étnico-raciais e educação.

Entretanto, há um acordo sobre duas questões que são focos de reflexão de

quase todos os autores: a questão da formação docente necessária para a

implementação da Lei 11.465 nas escolas e nos currículos do Ensino Básico e

sobre a importância social da escola no combate ao racismo estrutural brasileiro.

Cabe ressaltar também, que grande parte dos autores considera que a

discussão sobre educação e relações raciais no Brasil não deriva somente da

produção acadêmica, mas principalmente de um histórico de lutas do movimento

negro, principalmente a partir do final da década de 1970, que propiciaram o

surgimento não somente da referida lei, mas de uma série de legislações, como a

LDB, alguns artigos da constituição que reforçam uma identidade pluricultural da

nação brasileira e alguns dispositivos legais que intimidam atitudes,

comportamentos e publicações racistas e discriminatórias no campo educacional

contra afrodescendentes e minorias étnicas.

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122

No texto de Gomes (2003) Educação, identidade negra e formação de

professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo, publicado quatro

meses após a Lei 11.465 ter sido sancionada, propõe-se uma reflexão sobre as

particularidades e possíveis relações entre educação, cultura, identidade negra e

formação docente.

Através de relatos e experiências sobre o corpo e o cabelo de pessoas

negras que freqüentam salões étnicos em Belo Horizonte, a pesquisadora

apresenta a questão da estética negra como elemento que está sempre presente

na vida escolar. A partir desses relatos, questionam-se as razões destes aspectos

não serem ainda discutidos nas escolas e na própria formação docente. Por outro

lado, vincula a questão da identidade negra com a formação docente, ou seja, de

que esta discussão deveria ser um dos aspectos da formação profissional dos

professores.

Suas afirmações se baseiam nos diversos relatos de pessoas negras que

descrevem o lugar que seus professores ocupavam em suas experiências

escolares, por exemplo, na afirmação positiva de uma identidade negra ou no

reforço dos estereótipos e da discriminação racial no espaço escolar e nas

interações pedagógicas em sala de aula.

Afirma ainda, que no aspecto da identidade negra, o corpo e o cabelo crespo

são dimensões bastante presente na memória escolar dos freqüentadores de

salões étnicos. Neste sentido, faz uma crítica as práticas docentes que não

percebem que o fracasso, a timidez e os conflitos, revelam tensões raciais no

espaço escolar e interferem na auto-estima de estudantes negros.

Nesta pesquisa, a autora aponta possibilidades, através da estética negra,

da escola e dos professores criarem situações positivas de aprendizagem a partir

da própria diferença negra, sendo os salões étnicos um possível aliado nesta tarefa

educativa.

Nesta perspectiva, a autora identifica a importância da lei 11.465, ou seja,

um dispositivo legal que pode contribuir para que escolas e professores possam

construir estratégias didáticas junto com outros espaços não escolares,

possibilitando inclusive, enfrentar os desafios da formação docente, já que a lei

inclui um novo olhar sobre a diferença e a identidade étnica, ausente por longos

anos na formação profissional dos docentes.

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123

Os dois textos seguintes, de Oliva (2003) e de Rosemberg, Bazilli e Silva

(2003), tratam de uma temática semelhante: os livros didáticos e a questão racial no

Brasil. O primeiro, com o foco na questão da história da África, e o segundo, sobre a

presença do discurso racista em livros didáticos.

O texto de Anderson Ribeiro Oliva, A História da África nos bancos

escolares. Representações e imprecisões na literatura didática, que foi publicado no

segundo semestre de 2003, apresenta a discussão sobre as representações sobre

a África e os africanos em alguns livros didáticos, como reflexos de uma ampla

historiografia construída pelo ocidente.

O autor inicia a discussão com a constatação de que a lei 11.465 gerou uma

inquietação e muitas dúvidas, principalmente sobre o que pensamos e sabemos

sobre a África e os africanos, e mais, que a lei, apesar de ser justa, chegou

tardiamente e encontrará muitas dificuldades para implementação, por haver na

maioria dos livros didáticos de história, um caráter eurocêntrico. Além disso, falta

uma formação histórica dos professores no trato com a História da África, não

estereotipada e não permeada de visões de senso comum, expressos na questão

da AIDS, da fome, da violência, dos safáris ou dos animais exóticos.

Nas analises que o autor desenvolve sobre as representações da África e

dos africanos nos poucos livros didáticos que tratam do assunto, percebe-se que

esta discussão perpassa as grandes tendências historiográficas defendidas por

longos anos. O texto se divide em três partes, a primeira, numa breve descrição do

déficit na formação acadêmica dos historiadores e professores sobre a história da

África, a segunda, sobre as leituras históricas sobre a África produzidas no ocidente,

e a terceira, na análise de um específico livro didático que trata do assunto.

Na primeira parte, o autor considera que a formação dos historiadores e dos

professores de história se caracteriza, em relação à África e os africanos, na

perspectiva de um olhar que silencia, desconhece e é marcado por uma visão

eurocêntrica. Esta caracterização, segundo o autor, está na contramão daquela

perspectiva que entende a Africa e os africanos como campo de pensamento

humano e que, como outras partes do mundo, nos explicam e estão muito próximos

da história do Brasil.

Na segunda parte, se descreve as diversas visões que o ocidente forjou

sobre o continente africano, baseado em primeiro lugar na inferioridade dos povos

fora da Europa, que vem desde a antiguidade greco-romana até o início do século

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124

XIX, em segundo lugar, pelo silêncio e pelas teorias racialistas construídas em

meados do século XIX até os anos pós-segunda guerra mundial, em terceiro, por

novas visões que ressaltam a importância do continente, no período dos processos

de independência nacional de diversos países africanos, e por último, a partir do

final da década de 1970, por uma nova escola de historiadores africanos. Com

exceção desses dois últimos períodos, todas as outras representações sobre a

África e os africanos, ainda são muito fortes entre historiadores, e que destorcem,

estigmatizam e simplificam os processos e dinâmicas históricas do continente.

Na última parte do texto, o autor vai tecer algumas considerações sobre o

livro de Mario Schimidt, Nova História Crítica. Neste, é avaliado um conjunto de

imagens e contradições no texto, nos quais, apesar do aspecto positivo e pioneiro

da proposta didática, se encontra ainda permeado por noções, conceitos e

anacronismos históricos que não representa, segundo o autor, alguns processos

históricos vividos pelos povos africanos.

Apesar da presença hegemônica, nos textos de história, do silenciamento,

do desconhecimento e do eurocentrismo sobre a África e os africanos, e de um

certo avanço de algumas poucas publicações, o autor considera que a Lei 11.465

contribui para uma redefinição das representações sobre a África, mas pensa que

vai demorar um pouco para que a referida lei responda com desenvoltura a questão

do que sabemos sobre a África e os africanos, pois existem ainda muitas lacunas e

silêncios sobre o tema.

Já o texto de Rosemberg, Bazilli e Silva (2003), publicado cinco meses após

a lei 11.465, faz um visita a produção acadêmica sobre o discurso racista nos livros

didáticos produzidos nos último 50 anos no Brasil. Os autores procuram revisar a

produção sobre livros didáticos e racismo e dividem o texto em duas partes: uma

análise da produção que enunciam o racismo nos livros e outra sobre aqueles livros

que o combatem. Ao final, mapeiam as ações do movimento negro e dos órgãos

oficiais no combate ao racismo neste âmbito.

Apesar de identificarem uma produção acadêmica desde a década de 1950

sobre o racismo e os livros didáticos, o texto considera que há uma produção

reduzida e incipiente além de uma desvalorização acadêmica sobre a temática. A

evidência disto é descrita quando se constata que, na revisão de dados de

produção da ANPED de 1981 a 1998, de 114 títulos sobre o tema do livro didático,

somente quatro são relacionados à questão do racismo.

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125

A principal categoria de análise do texto é o “discurso racista”. As razões da

opção por esta “expressão” resultam da consideração de que o racismo se

caracteriza pela sua dimensão ideológica e simbólica. Ou seja, são entendidos

como processos ideológicos e simbólicos que estruturam as relações sociais

brasileiras.

Neste sentido, os autores identificam que o discurso racista ainda é muito

presente nos livros didáticos de história e língua portuguesa e que o foco de analise

das produções acadêmicas se concentram nos textos e nas imagens. Além disso,

no contexto das questões de relações raciais no Brasil, quando ainda é forte o mito

da democracia racial, o texto identifica três momentos de pesquisa sobre o tema: a

busca do preconceito nos livros didáticos, o desvelamento dos preconceitos nos

livros e uma análise mais apurada e a preocupação de que o livro visa também

preferencialmente o público branco.

Outra questão constatada, é uma certa contradição curiosa entre a pouca

reflexão acadêmica sobre o tema e um certo alarde em torno das ações oficiais e do

movimento negro que se desenvolvem atualmente. Para os autores, essas ações,

referentes às discussões e polêmicas sobre o Programa Nacional do Livro Didático

– PNLD -, ainda não suscitaram sistematizações teóricas sobre a questão do

racismo nos livros didáticos. Caracteriza ainda que as discussões estejam

permeadas por um anti-racismo diferencialista, advindo da agenda aberta pelo

Movimento Negro Unificado desde 1979. Entretanto, consideram que há uma

grande base objetiva para o crescimento desta discussão devido as ações

permanentes do movimento social negro, da constituição brasileira e do resultado

das discussões da III Conferência Mundial da ONU sobre racismo realizada em

2001, na Cidade de Durban – África do Sul.

Por fim, o texto identifica no PNLD, um espaço importante para o avanço

desta questão. Mas constata que, entre os livros avaliados pelo PNLD e menos

recomendáveis, são, numa pesquisa levantada pelo próprio MEC, aqueles mais

escolhidos pelos docentes.

A partir da Lei 11.465, os autores consideram também que está se abrindo

um espaço de discussão e muitos avanços, não restritos somente ao

questionamento de expressões grotescas de racismo nos livros didáticos, mas

sobre aspectos mais profundos e desafiadores. Entretanto, levam em conta, ao

mesmo tempo, os riscos que se tem em termos de aplicação real da lei, diante de

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126

uma formação docente precária e de uma possível “enxurrada” de produção de

livros didáticos sem nenhum compromisso com questões históricas e teóricas.

Outros três textos que analisamos, referem-se as questões de ações

afirmativas na educação básica, a diversidade étnica na educação e a educação

anti-racista como política pública nacional específica.

O primeiro é de autoria de Ana Lúcia Valente, Ação afirmativa, relações

raciais e educação básica, publicado em outubro de 200449. O texto discorre sobre

a constatação, em diversos estudos, da grave situação das crianças negras no

ensino fundamental, da necessidade de políticas de ações afirmativas neste nível

de ensino para reverter situações de discriminação racial e de considerações sobre

a formação docente.

Com base em estudos sobre as questões raciais na educação básica, a

autora levanta as reflexões sobre os rituais pedagógicos que reforçam as

discriminações dentro do espaço escolar, mas também sobre o papel dos livros

didáticos e dos docentes neste processo.

Entretanto, o destaque maior, é a consideração de que há uma necessidade

de iniciativas pedagógicas que estabeleçam novas relações de socialização anti-

discriminatórias, evidenciando ao mesmo tempo o envolvimento de professores e

comunidade escolar.

Segundo a autora, não é possível pensar em novas metodologias, sem levar

em consideração, aquilo que ela denomina de “impasse pedagógico”, ou seja, uma

intervenção positiva da escola nas questões raciais diante de práticas e noções

racistas entranhadas e não combatidas por longos anos de socialização de crianças

e jovens.

O exemplo disto está na discussão que a autora apresenta sobre as

possíveis metodologias que podem ser aplicadas nas escolas no trato pedagógico

da questão, como palestras e utilização de novos recursos didáticos. Segundo a

autora, essas possibilidades são bem factíveis, entretanto, é necessário uma

profunda reflexão sobre as noções de igualdade e diferença.

Segundo a autora, a escola deveria assumir a mediação do reconhecimento

positivo da diferença, mas reconhece que é uma proposta teórica que exige ser

49 Cabe lembrar que em julho de 2004, a Lei 10.639 é regulamentada pelo Conselho Nacional de Educação, instituindo as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das relações Étnico-raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.

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127

experimentada, já que, em algumas práticas pedagógicas a questão da diferença se

esbarra com o princípio da igualdade tão cara a cultura escolar.

Descrevendo algumas iniciativas de professores que obtiveram fracassos e

sucessos, o texto destaca a questão do efeito professor, ou seja, um elemento

substancial na condução de ações pedagógicas que podem, ou não, construir

situações de aprendizagem positivas em relação ao combate ao racismo na

educação básica.

Na parte final do texto, a autora vai propor algumas reflexões a respeito da

formação docente, retornando a questão da igualdade e da diferença. Segundo a

autora, para enfrentar os desafios da formação docente, faz-se necessário superar

a dicotomia entre uma suposta questão social desvencilhada da questão racial no

Brasil. Pois, na sua opinião, a questão social no Brasil só pode ser compreendida

corretamente a luz do contexto racial brasileiro, pois trata-se de articular valores

universais com as especificidades étnico-culturais.

Para a autora, a formação docente, para o enfrentamento da questão racial

na educação, não se resolve com capacitações de “finais de semana”, pois a

formação, principalmente a partir da Lei 11.465, precisa repensar as políticas sobre

a “capilaridade” nas relações pedagógicas e uma mudança de olhar sobre o

racismo nos espaços escolares. Para a autora, é necessário pensar a formação

docente no contexto da problemática da formação em geral, superar o dualismo

entre prática e teoria e politizar o debate, já que esta questão envolve relações de

poder e conflitos históricos nas relações sociais brasileiras.

Especialmente na formação de professores em geral, a autora nos afirma

que falar em superação do senso comum racial brasileiro, é fazer um “acerto de

contas” com a formação docente recebida ao longo de toda uma trajetória

acadêmica e profissional.

O texto seguinte é de José Ricardo Oriá Fernandes50, Ensino de história e

diversidade cultural: desafios e possibilidades. O tema do texto traz a discussão

sobre diversidade cultural e ensino de história, afirmando que a Lei 11.465 contribui

para os debates sobre o tema e possibilita uma ruptura com o modelo eurocêntrico

no ensino de história e para uma educação multicultural.

50 Destacamos que este autor acompanhou todo o processo de aprovação da Lei 10.639 no Congresso Nacional, pois era, na época, um dos consultores legislativo da Câmara dos Deputados na área de educação e Cultura.

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128

O texto faz uma crítica ao modelo dominante de ensino de história, que

apesar de tentar apagar outras culturas, ainda não conseguiu silenciar a presença

da alteridade. Por outro lado, afirma que as escolas e os livros didáticos seguem o

esmo rumo, considerando que especialmente os currículos, contribuem para a

evasão escolar e a repetência de negros e mais pobres.

Para o autor, as escolas não sabem lidar com a diversidade cultural, e as

razões disto, se expressam em conteúdos eurocêntricos e um corpo docente que

não tem atitudes positivas diante de milhares de crianças negras e brancas.

Inventariando diversos dados estatísticos da desigualdade racial produzidas

no país e as ações do movimento negro nos últimos anos, o autor considera

importante o surgimento da Lei 11.465 pelo papel que a escola pode cumprir na

formação de atitudes e valores essenciais a formação cidadã.

Por outro lado, esta lei não se constitui enquanto um parâmetro normativo

isolado, mas se insere ao lado de outros como a LDB, o Programa Nacional dos

Direitos Humanos e o reconhecimento oficial do 20 de novembro com data histórica,

não só dos afrodescentes, mas de toda a nação brasileira.

O autor ainda considera que a Lei 11.465 representa a possibilidade de

construção do multiculturalismo crítico nas escolas brasileiras, se referenciando na

perspectiva descrita por Gadotti (1992), ou seja, “a diversidade cultural é a riqueza

da humanidade. Para cumprir sua tarefa humanista, a escola precisa mostrar aos

alunos que existem outras culturas além da sua.” Entretanto, o autor, assim como

outros, identifica um “gargalo” para tal proposta: a formação docente.

Apesar de identificar este gargalo, o autor se limita a propor soluções para a

má formação docente na perspectiva de realização de cursos de extensão e

produção de novos materiais didáticos, considerando, mesmo assim, que há um

longo caminho para que as escolas se transformem num instrumento de afirmação

de uma identidade pluricultural nacional.

O texto produzido pelo Núcleo de currículo do CEAFRO e da Secretaria

Municipal de Educação de Vitória-ES, A Educação Anti-Racista, se constitui

enquanto produção coletiva a partir de uma experiência de política pública na

questão racial em educação no município de Vitória – ES, produzido no ano de

2006.

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129

No início do texto, a Lei 11.465 é caracterizada como política pública que

trata as desigualdades raciais como questão nacional específica e como política de

reparação.

Em seguida, cita uma série de iniciativas legislativas do estado e do

município de Vitória, apesar de constatar que as propostas formuladas não se

constituem em tarefas fáceis de serem aplicadas, pois se trata de pensar questões

complexas como currículo, diferença e identidades.

Após a citação de leis estaduais e municipais, o texto faz uma breve

descrição das pesquisas acadêmicas que apontam pistas e evidências sobre a

discriminação racial nas escolas e confirmam a extrema exclusão racial no processo

de escolarização.

Em seguida problematiza o que considera como armadilhas perigosas, as

discussões em torno do multiculturalismo e da diversidade étnica, ou seja, muitas

dessas questões, se não forem aprofundadas, podem levar a uma mera celebração

das diferenças e da tolerância, sem problematizar as relações de poder

historicamente construídas no Brasil.

O texto faz uma aposta numa educação intercultural e anti-racista, onde a

questão da identidade e da diferença sejam discutidas e entendidas no contexto das

relações de poder dentro e fora da escola. Entretanto, mais uma vez, surge uma

contradição: na experiência de tentativa de aplicação da Lei 11.465, se constata,

por exemplo, nas escolas de Vitória, a contradição entre uma concepção de

educação anti-racista imaginada e o vivido por alunos e professores, ou seja, entre

uma aposta e a realidade do racismo e discriminações praticadas, existe uma

distancia a ser superada. O texto por fim, aponta somente proposições teóricas,

considerando que as ações afirmativas devem se constituir enquanto proposição de

justiça social, por meio de uma pedagogia interétnica.

Os dois últimos textos vão fazer uma reflexão explícita sobre a formação

docente no contexto da Lei 11.465 e foram produzidos para serem apresentados na

29ª Reunião da ANPED no Grupo de trabalho Afro-brasileiros e Educação em 2006.

O primeiro texto é de Luciane Ribeiro Dias Gonçalves e Angela Fátima

Soligo, Educação das relações étnico-raciais: o desafio da formação docente. As

autoras iniciam a discussão constatando o crescente número de publicações e

estudos sobre a discriminação racial e educação. Porém, constata também que a

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130

situação dos negros desde o início do século XX pouco mudou, principalmente na

área de educação.

Diante deste quadro, o texto acredita na “suma importância da formação

docente” como elemento para mudança desta situação, destacando o papel da Lei

11.465 neste aspecto. Entretanto, do ponto de vista das reflexões teóricas, as

autoras situam um dado relevante: o surgimento nas legislações educacionais

brasileiras do conceito de diferença. Apesar disto, afirmam que, no caso da lei

11.465, esta questão ainda é incipiente e não provoca inserções significativas no

âmbito do espaço escolar.

As autoras identificam na herança da escravidão e nos materiais didáticos,

as causas dessas ausências e pouca inserção, por outro lado, apostam numa

possível solução, sintetizada nos aspectos de revisão dos currículos, dos materiais

didáticos e, principalmente, num investimento na formação de professores.

As autoras defendem a idéia de que por longos anos, os educadores tiveram

suas formações profissionais permeadas por concepções homogeneizadoras,

eurocêntricas e de orientação masculina e cristã. Neste sentido, caracterizam a

formação docente como prioritária para a construção de mudanças em direção ao

reconhecimento da diversidade nas práticas educativas. Aqui, se constata que as

autoras vinculam uma política formativa de reconhecimento da diversidade como

capacidade de transformação.

Alguns aspectos destas questões são aprofundados pelas autoras, com: a

valorização da cultura européia e as imagens da África, mas no texto se fazem mais

perguntas do que apresentação de respostas.

No aspecto da formação docente, elas destacam que este processo de

mudança não se efetiva de forma linear e determinista, pois constatam que há

necessidade de um processo de “reapropriação e reinvenção do conhecimento”.

Mas, se questionam como isto é possível na perspectiva de criar situações de

aprendizagem ou “ações criadoras”.

Por fim, destacam que apesar da questão da diferença estar ganhando força

nas pesquisas educacionais, ainda assim, identificam a existência de tensões entre

igualdade e diferença, na medida em que estas noções são vistas como

contrapostas.

O outro texto que analisa a questão da formação docente é de Maria Cristina

Rosa, Os professores de arte e a inclusão: o caso da lei 10639/2003. A intenção

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131

deste é problematizar uma investigação realizada com professores de artes

plásticas da cidade de Florianópolis. A discussão teórica enfatiza a formação de

professores nesta área de conhecimento.

A partir do referencial teórico do multiculturalismo crítico de Peter MacLaren

(1999), o texto é dividido em três partes: os aspectos teóricos, o estudo de caso

sobre os professores de artes e a Lei 11.465 e propostas de diretrizes para a

formação de professores de artes em sintonia com a referida lei.

O objetivo do texto é sintetizar fundamentos para uma educação multicultural

crítica no ensino de arte. Mas, o aspecto interessante da proposta da autora, é a

interpretação de que a Lei 11.465 e as Diretrizes Curriculares que regulamentam a

obrigatoriedade do ensino de história e culturas da África e dos negros no Brasil,

contextualizam os conceitos que ela vai utilizar no texto, ou seja, diversidade

cultural, currículo, racismo, etnicidade e raça.

No campo das artes, a autora afirma que o maior problema no

enfrentamento destas questões é o enfoque eurocêntrico encontrado na produção

sobre história da arte, e uma visão dominante que identifica a arte africana como

exótica ou folclorizada.

Entretanto, ressalta que o ensino de arte tem um grande potencial para a

compreensão das diferenças, baseado nos fundamentos críticos do

multiculturalismo, na perspectiva de autores como MacLaren (1999), Gomes e Silva

(2002) e Hall (2003).

Em seguida expõe sua pesquisa com quinze professores de arte na cidade

de Florianópolis. Relata que sua intenção inicial era de identificar os professores e

suas aproximações com a Lei 11.465. Entretanto, ao longo das entrevistas,

constatou que esta aproximação não existia, ou seja, muitos desses docentes, ou

não conheciam a lei, ou tinham visões estereotipada sobre discussão étnico-racial

no campo das artes plásticas.

Neste sentido, a pesquisadora reorienta sua investigação na perspectiva da

pesquisa-ação. Ou seja, parte da premissa de que primeiro fazia-se necessário

identificar o nível de interação dos professores com a lei para, em seguida, propor

uma articulação entre a sua investigação e a pretensão de preparar uma formação

continuada docente para o enfrentamento dos desafios de implementação da lei

11.465.

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132

A partir de então, o texto descreve algumas questões encontradas nas

entrevistas como: a percepção dos professores com uma visão estereotipada do

escravo, a falta de material didático, a fragilidade da formação docente que impedia

os professores darem conta de uma discussão profunda sobre o tema e a presença

numericamente pequena de crianças negras nas escolas de Florianópolis, como

argumento de que esta discussão não caberia nas escolas.

Com esses dados em mãos, a pesquisadora pretende construir bases

teóricas e práticas para o desafio da especificidade de formação dos professores de

arte, que ela denomina de diretrizes para aplicação da Lei 11.465.

Estes novos rumos para sua pesquisa são justificados pela constatação do

afastamento dos professores da lei, expresso em desinformação e declarações de

que esses não se sentiam aptos. Portanto, tendo em vista também a dificuldades

teóricas destes professores, já que a matriz teórica dominante nas artes é

referenciada no eurocentrismo, procura-se fundamentar uma formação docente

estreitamente vinculada com o diálogo interdisciplinar, com a antropologia e a

educação inclusiva, além das questões que envolvem as tendências que discutem

a prática reflexiva dos professores.

Por fim, discute a possibilidade de uma formação docente diferenciada

baseando-se no fato de que, atualmente, existe uma nova realidade docente diante

da diversidade de sujeitos que se apresentam no interior das escolas, e que,

portanto, justifica a necessidade do redimensionamento do olhar, uma mudança de

linguagem, a reflexão da prática, uma ação interdisciplinar e a construção de um

perfil docente vinculado à pesquisa no espaço escolar. Na especificidade dos

professores de artes, a autora corrobora esta perspectiva, acrescentando, que

estes, na vivência da própria arte, podem construir poderosas ferramentas

simbólicas para a educação do olhar para a diferença.

As contribuições, os limites e as implicações teóricas e práticas no campo

educacional diante da Lei 11.465.

Fazendo um passeio por estes textos, podemos perceber que o simples fato

de termos uma legislação que estabelece uma obrigatoriedade de um conteúdo

pedagógico nos sistemas de ensino, principalmente um tipo de conteúdo que inclui

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133

uma perspectiva nada tradicional como a questão da diversidade étnica, não é

suficiente para uma serena aplicação.

Por ser uma legislação que aborda uma temática altamente controversa – as

relações étnico-raciais no Brasil -, no campo educacional, ela vem mobilizando

questões que se referem à desconstrução de noções e concepções apreendidas

durante os anos de formação dos professores e vão enfrentar preconceitos raciais

muito além dos muros escolares.

Não é por menos que a maioria dos autores destaca alguns pilares de

enfrentamento para a possibilidade, - e não a garantia – de aplicação efetiva da lei

11.465 como: a aliança de professores e escolas com outros espaços educativos

para uma afirmação positiva da diferença, o enfrentamento teórico contra visões

eurocêntricas arraigadas no senso comum, o combate à fortaleza do discurso

racista hegemônico na sociedade brasileira, a superação de um quase inevitável

impasse pedagógico que as escolas e os professores enfrentam, mesmo com

práticas pedagógicas anti-racistas, e a constatação que até uma reinvenção do

conhecimento humano se faz necessário.

Diante deste trabalho de Sísifo, a pequena contribuição que podemos dar

neste texto, é uma reflexão crítica sobre estas louváveis produções acadêmicas

descritas acima. Pois, mesmo identificando a relevância das diversas contribuições,

poderíamos acrescentar outras, na perspectiva de um aprofundamento e avanço

das tentativas de teorizações e analises de uma legislação, recém saída do forno,

mas que tem uma longa história de lutas no movimento negro, e que por sua vez,

de certa forma, não se constitui como mais um modismo acadêmico, mas pode

abalar as reflexões tradicionais no campo da educação, principalmente, no campo

da formação docente e da produção do conhecimento.

Afirmamos no início deste texto que nosso objetivo, através da sintetização

das questões acima descritas, era identificar alguns limites das discussões a luz da

complexidade e tensões que se apresentam entre um dispositivo legal e as práticas

e visões pedagógicas e curriculares tradicionais que têm fortes inserções nas

escolas e nas salas de aula.

O que nos move, após a leitura dessas reflexões, é que essas se

apresentam num contexto ainda incerto de implementação da lei 11.465. Como

observamos, não existem ainda experiências concretas e bem sucedidas no que diz

respeito a real inserção das propostas declaradas na lei. Os textos parecem realizar

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134

um esforço muito positivo de propor iniciativas de reflexão teórica, entretanto, nota-

se, da parte de alguns autores, a dificuldade de interpretar a real dimensão teórica e

prática que esta lei mobiliza na perspectiva de incluir temas, conteúdos e novos

paradigmas teóricos, nada comuns no campo das práticas pedagógicas e

curriculares. Porém, não queremos desmerecer as iniciativas, pois, entendemos

que a formulação de novos enfoques teóricos e práticos, principalmente diante de

um dispositivo legal ainda em vias de aplicação, requer certos cuidados analíticos

para não se incorrer em visões apaixonadas e conclusões apressadas.

Afirmávamos inicialmente que um dos pontos em comum nos textos

apresentados é a questão da formação docente diante da Lei 11.465. Em todos os

textos há uma preocupação quanto às tarefas e iniciativas que devem ser

concretizadas para a aplicação da lei. Entretanto, alguns autores abordam aspectos

específicos tentando constatar desafios, tensões e impasses.

Na questão dos livros didáticos, nos chama atenção o artigo de Rosemberg,

Bazilli e Silva (2003), quando destacam que professores, na pesquisa de Ana Célia

Silva (2001), não percebem indícios de discriminação racial nos livros didáticos. Por

outro lado, os autores consideram “curioso”, as escolhas dos professores daqueles

livros menos recomendados pelo MEC no quesito preconceito.

Uma outra constatação dos autores são as dificuldades dos professores

perceberem os “discursos racistas” no âmbito escolar e nos livros didáticos.

Entretanto, sem analisar mais aprofundadamente, até porque não era um ponto de

reflexão, os autores apontam pistas importantes quando descrevem que os

professores escolhem mais, aqueles livros menos recomendados no quesito

preconceito. Esta constatação pode demonstrar, por exemplo, que a escolha de um

certo livro e não de outro, possui fortes correlações com a formação docente. Esta é

uma dimensão pouco estudada.

Nos textos de Fernandes (2005) e Valente (2004), há um acordo e um

desacordo. Por um lado, Valente, após delimitar bem a questão da diversidade

étnica na formação docente, afirma que esta não se realiza com “capacitações nos

finais de semana”, e que se faz necessário, pensar na capilaridade das relações de

aprendizagem na sala de aula, promover uma mudança de olhar sobre o racismo

nos espaços escolares e fazer um “acerto de contas” com a formação docente

anteriormente recebida.

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135

Fernandes (2005), por sua vez, tem a mesma preocupação, afirmando que,

para a Lei 11.465 não “virar letra morta”, é necessário enfrentar o “gargalo” da

formação docente, com cursos de extensão e o incentivo a criação de novos

materiais didáticos. O autor não aprofunda mais sobre o que seria este “gargalo”,

mas limita-se a propor soluções ainda mais genéricas do que esta expressão

utilizada.

Ao contrário deste autor, Valente (2004) vai mais fundo quando fala na

“capilaridade” das relações de aprendizagem, “mudança de olhar” e um “acerto de

contas” com a formação docente inicialmente recebida pelos professores.

Entretanto, na tentativa de formular uma proposta, a autora peca pela abstração e

ingenuidade, pois sugere, dentre outras coisas, uma espécie de troca, ou seja, os

governos investiriam na formação dos professores, e estes, se comprometeriam a

aderir aos programas oficiais, dentre eles, a aplicação da Lei 11.465. O que

realmente significaria isto? Será que o próprio Estado já teria resolvido a questão

das políticas de reconhecimento das diferenças sem contrapô-las as políticas de

igualdade, como a autora já criticara em parágrafos anteriores?

Ainda sobre a formação docente, por outro lado, nos textos apresentados

para a 29ª Reunião da ANPED, de Gonçalves e Soligo (2006) e Rosa (2006),

percebe-se que existe uma abstração em excesso e a possibilidade de perda da

capacidade analítica do atual momento de implementação da Lei 11.465.

Gonçalves e Soligo (2006) pecam pelo excesso de abstração quando

caracterizam a formação docente como prioritária para a realização de mudanças

na perspectiva do reconhecimento da diversidade e da diferença.

Apesar de situar muito bem o que está em jogo nas discussões sobre a lei

11.465, ou seja, as tensões entre igualdade e diferença e o papel político da lei em

pautar a diversidade no campo educacional, a autora levanta somente perguntas:

“Como lidar com a diversidade cultural em sala de aula?” “É possível escapar de um

modelo monocultural de ensino?” “Poderão professores incluir a eqüidade de

oportunidades educacionais entre seus objetivos?” “Como socializar, através do

currículo e de procedimentos de ensino, para atuar em uma sociedade

multicultural?”

Ao final, suas respostas são ainda mais genéricas: “novas metodologias”,

“reformulação dos currículos”, “criar oportunidades de sucesso escolar”, etc. Ou

seja, uma reflexão abstrata que pouco responde a uma de suas próprias questões:

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136

intervir na formação docente na perspectiva de “reapropriação e reinvenção do

conhecimento”.

Mas, é no texto de Rosa (2006) que surge um aspecto sobre a formação

docente que muito nos preocupa: a possibilidade da perda de capacidade analítica

e sua substituição por uma ansiedade política de intervenção.

Na perspectiva de analisar a formação dos professores de artes plásticas e

suas aproximações com a Lei 11.465, a autora logo constata uma distancia

avassaladora, ou seja, os professores por ela entrevistados, não conhecem a lei,

reconhecem a má formação, têm visões estereotipadas sobre a escravidão e os

afrodescendentes no Brasil e ainda consideram que a pouca presença de negros

nas escolas de Florianópolis, servem como argumento para problematizar a

proposta de inclusão étnico-racial nos currículos.

Com base nos referenciais do multiculturalismo crítico, a autora opera uma

conclusão que nos parece bastante perigosa do ponto de vista analítico e político:

após constatar a distancia entre a formação docente desses professores de arte e a

Lei, ela procura apontar diretrizes tendo em vista a formação crítica reflexiva desses

mesmos professores. Para tentar cumprir seus objetivos, a autora se utiliza da

metodologia da pesquisa-ação.

A pesquisa ação é bem definida como uma operação em que

“pesquisar é uma atividade que corresponde a um desejo de produzir saber, conhecimentos (...) Conhecer não é descobrir algo que existe de uma determinada forma em um determinado lugar do real. Conhecer é descrever, nomear, relatar, desde uma posição que é temporal, espacial e hierárquica” (Costa, 2001 p. 248.) E ainda

“Esta perspectiva se insere numa concepção de pesquisa participativa capaz de produzir saberes com alguma chance de se chegar a uma proposta educacional alternativa, que postulem currículos centrados nas várias tradições culturais dos docentes investigados. Possibilitando inclusive, a perspectiva de mudanças curriculares concretas” (Thiollent, 2004).

Ou seja, a pesquisa da autora se propõe, ao mesmo tempo, contribuir para

construção de novos saberes no campo da formação docente e ser peça relevante

nas transformações do campo de investigação.

Nada mais interessante do que uma pesquisa-ação que se proponha, além de

investigar e analisar um objeto dado, criar soluções a certas contradições

verificadas pelo pesquisador e pela própria pesquisa. Entretanto, no caso da autora,

para uma pesquisa que pretende investigar a formação docente inicial, as

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137

impressões teóricas sobre novos dispositivos legais e as perspectivas pensadas e

elaboradas para a aplicação de um dispositivo de legislação educacional que

envolve muitas tensões e desafios, a pesquisa-ação pode limitar um olhar mais

apurado, já que o pesquisador tem uma intenção clara de modificar a constituição

do real. Portanto, mesmo que ela venha a servir de suporte para os próprios sujeitos

envolvidos, o olhar, a análise e as inferências, serão realizadas somente pelo

pesquisador.

Neste sentido, o que nos preocupa em suas intenções é a perda da

capacidade analítica das próprias dinâmicas que poderão possibilitar uma

mudança. Afinal, seria somente uma pesquisa acadêmica que poderia contribuir

para uma aproximação dos professores de arte em direção a Lei 11.465? Não

existem outros fatores que também podem contribuir para esta aproximação? Será

que é somente uma pesquisa-ação que tem a capacidade ou o fôlego de mudar

paradigmas e matrizes teóricas dominantes no ensino de artes?

Estes questionamentos nos remetem àquilo que consideramos o grande

desafio para a implementação da lei 11.465, ou seja, a questão que perpassa a

maioria dos textos analisados acima e que diz respeito à presença das reflexões e

embates teóricos sobre a diferença e as concepções eurocêntricas.

Nos textos, identificamos algumas reflexões neste sentido, como por

exemplo, quando Gomes (2003) afirma que professores e escolas constroem

situações de aprendizagem para produzir identidades positivas a partir da própria

diferença. O que ocorre realmente nesta ocasião? Ou, no texto de Oliva (2003), o

que significa romper, em termos teóricos e pedagógicos, com o silenciamento, a

inferioridade e o eurocentrismo nas representações sobre a África e os africanos?

Na mesma perspectiva, por que, segundo Rosa (2006), também nas artes é

necessário enfrentar o eurocentrismo?

Num outro aspecto, segundo Rosemberg, Bazilli e Silva (2003), em alguns

momentos, “a crítica ao racismo produzido e sustentado pelos livros didáticos

suscitou intensa reação de defesa, especialmente quando a representação criticada

era da lavra de notáveis no panteão da literatura infanto-juvenil brasileira”. Ou seja,

sua descrição é no sentido de que havia uma reação poderosa de autores

eminentes, que certamente representam vozes de uma visão de mundo

reconhecida, inclusive, mundialmente. Por que esta dificuldade?

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138

No mesmo texto, as autoras se preocupam com a possibilidade de uma

enxurrada produção de livros didáticos sem nenhum compromisso com questões

teóricas e históricas.

Numa perspectiva diferente, mas que pode nos remeter a um mesmo ponto,

é o fato de Valente (2004) ressaltar que a implementação da lei necessita repensar

profundamente a “capilaridade” das relações de aprendizagem. Questão que nos

parece semelhante quando o texto do CEAFRO manifesta a contradição entre uma

proposta anti-racista na educação – o imaginado – e as condições objetivas de

sociabilidade que crianças negras e brancas são submetidas sob a ótica das

discriminações raciais - o vivido -, que é denominado por Valente (2004), de

“impasse pedagógico”. Na constatação dessas contradições, o texto do CEAFRO

se questiona como é difícil formular novas propostas para uma pedagogia

interétnica.

Por fim, Gonçalves e Soligo (2006) formulam a idéia que toca no cerne de

nossas indagações: é necessário uma “reapropriação e reinvenção do

conhecimento”.

Na perspectiva de contribuir para um debate teórico e pedagógico para

implementação da Lei 11.465, consideramos que estas questões que os autores

levantam como eurocentrismo, impasse pedagógico e o enfrentamento do racismo

na capilaridade dos processos de aprendizagem, há a necessidade de um

redimensionamento do olhar que envolve dois aspectos.

O primeiro aspecto envolve um processo de redimensionamento de certos

paradigmas amplamente consolidados no conhecimento histórico. Esse processo,

no nosso entendimento, requer aquilo que a estudiosa Catherine Walsh, do

Programa de Doutorado em Estudos Culturais Latino Americanos da Universidade

Andina Simon Bolívar, no Equador, defende: um projeto voltado para o

repensamento crítico e transdisciplinar, caracterizando-se também, como força

política para se contrapor as tendências acadêmicas dominantes de perspectiva

eurocêntrica de construção de conhecimento.

Para Walsh (2005), faz-se necessário a construção de um paradigma distinto

do pensamento crítico, que é denominado “um pensamento outro” ou “de outro

modo”, e que tem como propósito, não a simples descolonização, mas também a

decolonialidade, que implica partir da desumanização e considerar as lutas dos

povos historicamente subalternizados pela existência, para a construção de outros

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139

modos de viver, de poder e de saber. Portanto, decolonialidade é visibilizar as lutas

contra a colonialidade a partir das pessoas, das suas práticas sociais, epistémicas e

políticas.

A questão central é a coexistência de diferentes epistémes ou formas de

produção de conhecimento entre intelectuais, tanto na academia, quanto nos

movimentos sociais, colocando a questão da geopolítica do conhecimento. Aqui,

entende-se geopolítica do conhecimento como a estratégia modular da

modernidade. Esta estratégia, de um lado, afirmou suas teorias, seus

conhecimentos e seus paradigmas, como verdades universais e, de outro,

invisibilizou e silenciou os sujeitos que produzem “outros” conhecimentos. Foi este o

processo que constituiu a modernidade, cuja raiz se encontra na colonialidade.

Implícita nesta idéia está o fato de que a colonialidade é constituída pela

modernidade, e esta, não pode ser entendida sem tomar em conta os nexos com a

herança colonial e as diferenças étnicas que o poder moderno/colonial produziu.

Daí surge a perspectiva de introduzir epistémes invisibilizadas e

sublternizadas, fazendo a crítica ao mesmo tempo da colonialidade do poder, ou

seja, a utilização da raça como critério fundamental para a divisão dos povos em

níveis, lugares e papéis sociais e com uma ligação estrutural à divisão do trabalho.

Colonialidade do saber é outra noção utilizada. Ou seja, uma noção entendida

como a repressão de outras formas de produção do conhecimento e legitimadora

da perspectiva eurocêntrica.

A colonialidade do poder e do saber são conceitos centrais dentro do projeto

voltado para o repensamento crítico e transdisciplinar.

Outro conceito central é a diferença colonial, ou seja, pensar a partir das

ruínas, das experiências e das margens criadas pela colonialidade do poder na

estruturação do mundo moderno/colonial, como forma não de restituir

conhecimento, mas de fazê-los intervir em um novo horizonte epistemológico

transmoderno e pós-ocidental. Este, por sua vez, tem uma utilidade estratégica e

política.

A perspectiva da diferença colonial requer um olhar sobre enfoques

epistemológicos e sobre as subjetividades subalternizadas e excluídas. É o

interesse por outras produções de conhecimento distintos da modernidade

ocidental. Diferentemente da pós-modernidade, que segue pensando a partir do

ocidente moderno, a construção de um pensamento crítico alternativo, parte das

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140

experiências e histórias marcadas pela colonialidade. O eixo que se busca é a

conexão de formas críticas de pensamento na América Latina, na África, assim

como de outros lugares do mundo, enfim, a decolonialidade da existência, do

conhecimento e do poder. Walsh cita também outros conceitos como: “pensamento

- outro” e “pensamento crítico de fronteira”.

“Pensamento - outro” parte do princípio da possibilidade do pensamento a

partir da decolonização, ou seja, a luta contra a não existência, a existência

dominada e a desumanização. É uma perspectiva semelhante ao conceito de

“colonialidade do ser”, ou seja, uma categoria que serve como força para questionar

a negação histórica dos afrodescendentes e indígenas, por exemplo.

O “posicionamento crítico de fronteira” é um processo onde o fim não é uma

sociedade ideal, como abstrato universal, mas o questionamento e a transformação

da colonialidade do poder, do saber e do ser, sempre consciente de que estas

relações de poder não desaparecem, mas que podem ser reconstruídas ou

transformadas de outra forma.

O pensamento de fronteira significa fazer visível outras lógicas e formas de

pensar, diferente da lógica eurocêntrica e dominante. O pensamento de fronteira se

preocupa com o pensamento dominante, mantendo-o como referência, mas

sujeitando-o ao constante questionamento e infectando-o com outras histórias e

modos de pensar. Walsh considera esta perspectiva como componente de um

projeto intercultural e decolonizador, permitindo uma nova relação entre

conhecimento útil e necessário na luta pela descolonização epistémica.

Por fim, este (re) pensamento crítico, que pode se constituir desde a

colonialidade incluindo os novos movimentos sociais e a intelectualidade, tem

também como idéia, criar novas comunidades interpretativas e que ajude a ver o

mundo de outra forma.

Nesta perspectiva, concordamos com Walsh e, o que se evidencia para

estudiosos, historiadores e professores, é um redimensionamento epistemológico

de suas formações teóricas, na medida em que, novas “epistémes” se insurgem

teimosamente no cenário acadêmico, principalmente a partir da mobilização forjada

com o surgimento da obrigatoriedade do ensino de história da África nos currículos

do ensino básico.

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141

Entretanto, para tal finalidade, faz-se necessário pensar num segundo

aspecto, ou seja, uma nova perspectiva pedagógica e didática, através de uma

política de formação continuada docente.

Percebemos nos textos algumas tensões didáticas e pedagógicas, nos quais

é possível inferir que os autores conhecem de perto os problemas advindos da

presença das questões raciais no processo de ensino-aprendizagem. Essas

problemáticas levam a percepção de que há questões além da aplicação normativa

da Lei 11.465, ou seja, as concepções subjetivas docentes em relação às questões

raciais no Brasil que mobilizam uma reflexão sobre o elemento conflitual inter-racial

e que se estabelece quando este se evidencia nos espaços educacionais.

Boaventura de Souza Santos no texto, Para uma pedagogia do conflito

(1996), defende a idéia de uma educação que parta da conflitualidade dos

conhecimentos, ou seja, um projeto educativo conflitual e emancipatório, onde o

conflito sirva, antes de tudo, para vulnerabilizar os “modelos epistemológicos

dominantes”.

Boaventura fundamenta esta posição política e epistemológica,

argumentando que em tempos de globalização, da sociedade do consumo e da

informação, a burguesia internacional tem na tese do fim da história, seu referencial

epistemológico de celebração do presente e da idéia da repetição, que permite ao

presente se alastrar ao passado e ao futuro, canibalizando-os. Com a derrota do

“socialismo” e a consolidação da vitória da burguesia, para o autor, o espaço do

presente como repetição foi se ampliando e, “hoje a burguesia sente que sua vitória

histórica está consumada e ao vencedor consumado não interessa senão a

repetição do presente. Daí a teoria do fim da história” (Santos, 1996:16).

O autor afirma ainda que essa mesma teoria “contribuiu para trivializar,

banalizar os conflitos e o sofrimento humano de que é feita a repetição do presente”

(Santos, 1996:16). Este sofrimento, por sua vez, é mediatizado pela sociedade de

informação, se transformando “numa telenovela interminável em que as cenas dos

próximos capítulos são sempre diferentes e sempre iguais às cenas dos capítulos

anteriores” (Santos, 1996:16). E mais: “Essa trivialização traduz-se na morte do

espanto e da indignação. E esta, na morte do inconformismo e da rebeldia” (Santos,

1996:16).

Quando examinamos as contradições pedagógicas e formativas de docentes,

que os autores traduzem em seus textos, percebemos concepções e saberes

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142

práticos que aceitam o que existe de relações raciais no Brasil, que não percebem a

trivialização de sofrimentos, mobilizados por brincadeiras e constantes posturas

omissas e discriminatórias e que olham posturas, gestos e concepções

preconceituosas como fatalidades humanas.

Boaventura nos permite perceber estas questões de conflitualidades étnico-

raciais dentro das escolas como elementos históricos mais amplos, que devem ser

evitados, pois, tratar-se-iam de questões “retrogradas”, já que na concepção do

pensamento social hegemônico, o passado, os sofrimentos humanos, as injustiças,

as opressões, o racismo, são vistos como elementos que devem ser evitados e que

seriam superáveis num futuro próximo e radioso, ou seja, um futuro como sinônimo

de progresso.

Entretanto, Boaventura nos informa outro aspecto dessa discussão, ou seja,

atualmente as energias do futuro parecem desvanecer-se, pelo menos enquanto o

futuro continuar “a ser pensado nos termos em que foi pensado pela modernidade

ocidental, ou seja, o futuro como progresso” (Santos, 1996:16). Ele nos diz, que os

vencidos da história “descrêem hoje do progresso porque foi em nome dele que

viram degradar-se as suas condições de vida e as suas perspectivas de libertação”

(Santos, 1996:16).

Neste sentido, consubstanciado pelo mito da democracia racial, parece ser

esclarecedor o entendimento de concepções docentes que evitam a manifestação

da conflitualidade que surge ou possa surgir quando da discussão em sala de aula

sobre relações étnico-raciais no Brasil. Evita-se falar com os alunos sobre racismo

no Brasil, procura-se de antemão afirmar que os conflitos raciais no Brasil não

existem, e quando se manifestam, são localizados, individualizados ou fazem parte

do repertório de outras pessoas que são preconceituosas.

Parece que a perspectiva inicial de argumentação seria prevenir um conflito

latente e evitar a revelação das discriminações no espaço escolar. Neste sentido, a

professora que afirmou que “a sala de aula é o último lugar onde ocorrerão

mudanças”, está nos informando que nos debates sobre conflitos raciais, os

aspectos conflituais se revelam fortemente, mas o enfoque epistemológico,

expresso na evitabilidade do conflito, se transforma numa perspectiva de dúvida e

incapacidade teórica e prática de enfrentar a conflitualidade iminente nas

discussões étnico-raciais e educação.

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143

Estas questões, parecem mesmo revelar o que Boaventura (1996) diz sobre a

morte da indignação, do espanto, a trivialização das conseqüências perversas da

sutilidade das discriminações raciais no Brasil.

O autor nos convida a reflexão sobre a necessidade de uma pedagogia e uma

didática que promovam a conflitualidade dos conhecimentos, ou seja, questionando

a idéia do fim da história, afirma a possibilidade de uma outra teoria da história, que

devolva ao passado “sua capacidade de revelação”, isto é, um passado reanimador

que, através de “imagens desestabilizadoras” e da conflitualidade, nos faça

potencializar e recuperar nossa capacidade de espanto e indignação perante o

“apartheid global” e os sofrimentos humanos.

Este é o projeto educativo emancipatório enunciado pelo autor. Ou seja,

produzir imagens desestabilizadoras a partir de um passado concebido não como

fatalidade, mas como produto da iniciativa humana. Para o autor, a sala de aula

teria que se transformar em campo de possibilidades de conhecimentos dentro do

qual há que optar. Ele esclarece melhor está formulação afirmando:

“As opções não assentam exclusivamente em idéias, já que as idéias deixaram de ser desestabilizadoras no nosso tempo. Assentam igualmente em emoções, sentimentos e paixões que conferem aos conteúdos curriculares sentidos inesgotáveis.” (Santos, 1996:18)

Ou seja, através de imagens desestabilizadoras, se tece a esperança e se

alimenta o inconformismo e a indignação, mas sem renunciar a proposição de

estabelecer a conflitualidade de conhecimentos, isto é, professores e alunos

discutindo duas ou mais concepções de mundo, suas diferenças e semelhanças e

suas possibilidades de experimentação social.

Portanto, numa nova proposta pedagógica e didática, faz-se necessário um

debate permanente entre os docentes, pois, num projeto educativo conflitual, que

faz do conflito de conhecimentos um modelo pedagógico, ou como diz Boaventura,

uma “pedagogia das ausências” que possibilite a imaginação de modelos

curriculares que nunca existiram, os professores deveriam exercitar novas

sociabilidades étnico-raciais e novas posturas nas suas subjetividades.

As questões étnico-raciais que a Lei 11.465 suscita na educação, geram

desafios e tensões na dimensão cognitiva e subjetiva dos docentes e nos espaços

escolares. Por outro lado, a lei não é de fácil aplicação, pois trata de questões

curriculares que são conflituais, desconsiderados como relevantes ou questionam e

desconstroem saberes históricos considerados como verdades inabaláveis. A

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144

questão curricular se desdobra também na necessidade de uma nova política

educacional de formação inicial e continuada, para reverter positivamente às novas

gerações, uma nova interpretação da história e uma nova abordagem da

construção de saberes.

Por fim, a aprendizagem que podemos tirar dessas visitas aos textos

acadêmicos, é a necessidade de mobilizar constante e cotidianamente essas

discussões, desconstruir paradigmas e enfrentar inevitáveis conflitos na sala de aula

para articular e promover uma perspectiva intercultural, baseada em negociações

culturais, favorecendo um projeto comum, onde as diferenças sejam patrimônios

comuns da humanidade.

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Page 146: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

146

A união pelo traço: caminhos de leitura para a poesia de João Maimona

Otavio Henrique Meloni51

Ao lermos a obra de João Maimona, percebemos um amadurecimento natural,

desde sua primeira publicação Trajectória Obliterada (1985) até seu livro mais

recente O sentido do regresso e a alma do barco (2007). Porém, para nosso

propósito acadêmico, fez-se necessário encontrar um recorte específico, para uma

obra composta, até agora por dez livros52 de poemas. Nesse sentido, tomamos

como ponto de partida para nossas reflexões o livro de 1987, Traço de união. Nele

percebemos um Maimona preocupado com o contexto social angolano e com as

mazelas que sobre ele – e ainda sobre a própria natureza em si – recaem e que

tanto são heranças da já finda guerra de libertação nacional quanto, e

principalmente, da guerra civil, então em pleno desenvolvimento.

O poeta reconfigura, nos textos, a situação social e política de seu país,

recriando-a em um universo poético que recebe os estilhaços de um real fracionado

pela violência e pela pobreza, e que é transformado em fraturas textuais e

temáticas, para além de se desenhar na própria depuração da linguagem. Para

Dufrenne, “o poetizável, com efeito, é o que, num mundo poético, pela virtude da

linguagem poética, se presta a ser ilimitado”(DUFRENNE, op. cit, p.94). Assim o

mundo poético de João Maimona se constrói sobre os alicerces de uma linguagem

em constante ebulição de sentidos. Ela é pensada e utilizada como instrumento

tradutor de uma realidade paradoxal de ruínas e esperanças, o que torna a escrita

poética ilimitada, como adverte Dufrenne.

É em Traço de união que João Maimona esboça temáticas e questões que o

vão acompanhar em todo seu trajeto literário, seja quanto à força representativa de

imagens constantemente reiteradas ou quanto à reconfiguração de toda a

paisagem da escrita. São essas imagens reiteradas os verdadeiros núcleos

51 Professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro e Doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense (UFF). 52 A obra poética de João Maimona é composta por um grupo de dez livros, sendo eles: Trajectória Obliterada (1985); Lês Roses perdues de Cunene (1985); Traço de União (1987); As abelhas do dia (1988); Quando se ouvir o sino das sementes (1993); Idade das palavras (1997); No útero da noite (2001); Festa de Monarquia (2001): Lugar e origem da beleza (2003); e O sentido do regresso e a alma do barco (2007).

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semânticos de sua poética. Podemos assinalar, como exemplos iniciais, imagens

como a do “caminho”, da “sombra”, das “aves” e do “sonho”. Tais representações

serão fundamentais para que possamos entrar no “mundo poético” de Maimona,

pois é através desses pontos de força que o angolano apresentará sua poesia.

Também nesse livro de 1987 encontramos os traços mais significativos de um João

Maimona leitor e de sua experiência literária como tal. Destacamos, nessa leitura, a

constante referência ao brasileiro Carlos Drummond de Andrade, assim como a

exploração do social imbricada ao estético, o que nos remete ao angolano

Agostinho Neto.

O livro reserva algumas surpresas ao leitor que acompanha os poemas por

uma ordenação em números romanos e se surpreende ao encontrar, em um índice

localizado na última página do volume, seus respectivos títulos – o que, certamente,

demanda a necessidade de uma nova leitura. A organização efetuada por Maimona

deixa clara sua intenção de dar seqüência à recepção dos poemas sem subordiná-

los uns aos outros ou provocar as interrupções da leitura do todo pela inserção dos

títulos. Assim, o poeta abdica da nomeação direta dos textos como forma de

interligar ou promover um traço de união – pelo que tais textos dizem e pelo diálogo

que produzem entre si. O próprio título do livro já nos mostra que Maimona busca

um momento poético de conciliação entre o homem e o mundo; a palavra e os

sentidos e entre o real e o possível. Traço de união pode, portanto, possibilitar

várias interpretações como, por exemplo, a união através e pela escrita, a união do

povo angolano que vive um momento de guerra civil, e/ou a união literária de suas

grandes referências com a geração atual.

Eleger Traço de união como mote para nossas reflexões sobre a escrita de

João Maimona é assinalar que seu universo poético se encontra em constante

formação e que, através do olhar do poeta, se traduz a realidade por meio de

campos paradoxais, formados pela constatação de uma realidade em ruínas –

físicas, geográficas, psicológicas e morais – e pela possibilidade de mudança do

quadro por ele vivido, naquele momento. Sobre isso, o próprio escritor nos fala em

entrevista concedida a Aguinaldo Cristóvão:

O testemunho da degradação ou de ruína reencontra seu lugar na linguagem do olhar. As outras linguagens (a dos valores, da acção, do espírito e do desejo) dispõem de imagens para tonificar a démarche susceptível de debelar o estado de degradação e de ruína. (MAIMONA, 2007, 91)

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148

A resposta de Maimona atende à pergunta feita pelo entrevistador sobre um

ensaio da pesquisadora brasileira Maria Nazareth Fonseca53 acerca de sua obra,

vista por ela como espaço de ruína, assinalando a impotência da poesia perante a

realidade angolana. Cito a ensaísta:

Já no primeiro livro Maimona deixa transparecer sua visão sobre a impotência da

poesia diante da realidade angolana em ruínas. Seus versos constroem um perfil do

poeta, do artista da palavra, como aquele que se vale da literatura para expressar

um modo particular de refletir sobre o mundo em que vive. (FONSECA, 2000,

p158).

Mesmo considerando válida a análise da pesquisadora, Maimona revela, em

sua resposta, que vê o mesmo livro como “um conjunto de sinais de esperança”, o

que se reforça – inclusive no ensaio de Maria Nazareth Fonseca – na percepção de

que o poema se faz um espaço em constante transformação. Essa teia de sentidos,

palavra e realidade, transforma o espaço poético deste angolano, dele fazendo um

verdadeiro campo de batalha de significados no qual não lemos o todo e, sim, o

cada.

Iniciando nossas reflexões sobre Traço de união, percebemos que na obra já

se evidencia a força que o poeta confere à palavra dentro de seu universo de

criação. Nesse sentido, vale convocar a voz de Octavio Paz, que nos ensina:

Mal o homem adquiriu consciência de si, separou-se do mundo natural e construiu outro no interior de si mesmo. A palavra não é idêntica à realidade que nomeia porque entre o homem e as coisas – e, mais profundamente, entre o homem e seu ser – se interpõe a consciência de si mesmo. A palavra é uma ponte através da qual o homem tenta superar a distância que o separa da realidade exterior. (PAZ, op. cit, p.43) A relação homem/palavra/mundo talvez seja o grande cerne de todo e

qualquer grande poeta. Porém, o que salta aos olhos na escrita de Maimona é

como articula esses três elementos para criar um espaço fraturado e ao mesmo

tempo conciliador. Dizemos conciliador, pois o trabalho com a linguagem em

Maimona pretende restaurar uma ordem que possa equilibrar as tensões e

desenganos do homem no mundo, através de uma tênue, mas indelével esperança.

Neste contexto, a linguagem poética e, nela, a força atribuída à palavra assumem

papel central, pois é a partir delas que o poeta pode e vai estruturar seu “mundo

poético”, ainda dizendo com Dufrenne. Já agora, pensando com Paz, podemos

53 O ensaio em questão é: “João Maimona: uma poética em desassossego” In: África & Brasil: letras em laços. Rio de janeiro, ed. Atlântica, 2000, pp.157 – 174.

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afirmar que a construção desse mundo paralelo ao “mundo natural” surge e se

realiza a partir dos anseios do individuo que o recria. As palavras, então, constituem

uma ligação entre os dois mundos: o natural e o criado pelo poeta. Surgem, desse

modo, os campos semânticos e os locais de força pelos quais ganham densidade

as imagens recorrentes dos poemas e sua forte carga de sentido. Vejamos o

poema I:

Hei-de perder o meu sonho nos sonhos da sombra

onde as lágrimas d’árvore espreitam a minha pele

Hei-de juntar o meu passo aos passos do mar

que apenas inspira os aromas da dor e do frio da memória

Hei-de desenhar o meu perfil nos perfis do céu

onde sou a folha do mundo que o mundo prometeu par’árvore da sombra.

(MAIMONA, 1987, p.11)

Notamos, neste texto, alguns indícios que já apontam para os principais

campos semânticos da poesia de Maimona, como “os passos”, que representam a

forte metáfora do caminho e da trajetória a serem seguidos; e a sombra que

assume – na relação feita por ele entre dia/noite, luz/sombra – importante papel na

constituição da paisagem da escrita. O poema nos mostra, ainda, um jogo entre

singular e plural que já aponta para um sujeito poético dividido entre o pessoal e o

coletivo, entre o seu ser íntimo e a realidade social. No campo do social,

percebemos, soterrado no texto acima, o poema “Havemos de voltar” de Agostinho

Neto e explicamos o porquê. Eis o poema de Neto:

Às casas, às nossas lavras às praias, aos nossos campos

havemos de voltar Às nossas terras

vermelhas do café brancas do algodão verdes dos milheirais havemos de voltar

Às nossas minas de diamantes ouro, cobre, de petróleo

havemos de voltar Aos nossos rios, nossos lagos

às montanhas, às florestas

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havemos de voltar À frescura da mulemba

às nossas tradições aos ritmos e às fogueiras

havemos de voltar À marimba e ao quissange

ao nosso carnaval havemos de voltar Havemos de voltar à Angola libertada

Angola independente. (NETO, 1976, p128)

O título do poema serve de guia para as estrofes em que se expressa o

desejo de retornar para Angola e, principalmente, para um momento de felicidade.

No texto do líder do MPLA (Movimento Pela Libertação de Angola) e do futuro

presidente da Angola liberta, ainda percebemos uma idéia temporal muito

interessante, pois notamos um encontro de tempos na deliberação do sujeito de

regressar a algo que ainda não havia acontecido. Em sua última estrofe, Agostinho

Neto diz: “havemos de voltar / à Angola libertada / Angola independente”(NETO,

1972, p.128). Neto promove, assim, um encontro entre o presente da escrita, o

passado da memória e o futuro representado no desejo de liberdade, tudo isso dito

por uma voz plural, mas de que o sujeito nunca se exclui, pois que nunca abdica de

sua condição de ser “aquele por quem se espera”54. Já no poema I, que abre Traço

de União e no índice é chamado de “O que há-de ser meu”, Maimona cria uma

estrutura estrófica toda composta por dísticos, nos quais reveza a visão intimista do

sujeito poético com a sua vivência em um ambiente coletivo. Dessa maneira, as

intenções do sujeito acabam por se integrar às imagens plurais que cria. Por isso o

seu “sonho” se perde nos ‘sonhos da sombra”, de uma sombra na qual “lágrimas

espreitam a pele”. No segundo bloco de dísticos o movimento é parecido, porém, no

terceiro, o plural vai sendo abolido até restar somente o sujeito em sua unidade:

“onde sou a folha do mundo / que o mundo prometeu par’árvore da sombra”. Nesse

momento Maimona se aproxima mais uma vez das palavras de Agostinho Neto em

“Adeus à hora da largada”, quando se anuncia como a “folha do mundo que o

mundo prometeu par’árvore da sombra”. Aqui, o poeta de Traço de união se coloca

como metonímia do mundo, isto é, do coletivo que se constrói durante todo o

poema. Com isso, o sujeito poético assume sua responsabilidade perante a

54 O verso em questão faz parte do poema “Adeus à hora da largada”, primeiro texto do livro Sagrada Esperança, de 1975.

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151

comunidade em que se insere, dizendo-se aquele que vem para restaurar (“folha”) a

realidade social (“árvore de sombra”). Encontramos o mesmo tom, por exemplo, no

sujeito poético que fala no poema XIX, posteriormente intitulado de “voto II”: “Eu

quero inspiração imensa / que traga às pétalas do caminho / versos de cor verde”

(MAIMONA, 1987, p.32). Notamos que o mesmo sujeito que se anuncia como a

“folha do mundo”, mais tarde quer uma inspiração que o faça produzir, dentro de

seu caminho, “versos de cor verde”. É o próprio sentimento de recriação, de

renovação da vida, da presença de um caminho que metaforiza não só o trajeto

pessoal do poeta, mas a necessidade de, como cidadão, continuar a escrever, a

acreditar e a ter esperanças. Maimona assinala que sua poética pretende, sim,

trazer o real para o poema, mas deixa claro que o poema está em constante

formação, sempre aberto a mudanças e transformações.

Esse “espaço aberto” é o ponto de partida para começarmos a pensar no

outro forte campo semântico da poesia de João Maimona: o do caminho. Antes,

será necessário considerar algumas questões pertinentes à eleição de tal imagem

para representar o fazer poético e o instante de materialização da poesia em

poema. Convocamos, outra vez, a figura de Carlos Drummond de Andrade, que

tem fundamental importância na formação literária do produtor angolano. Em

entrevista ao suplemento literário do Jornal de Angola, em 1986, João Maimona fala

dessa importância:

Das leituras de Carlos Drummond de Andrade, pude extrair um caudal de

idéias que me leva a privilegiar no conjunto dos meus poemas a qualidade e o valor

da existência humana. Quando leio Drummond, sinto-me participante de uma

autêntica festa espiritual. Drummond influenciou bastante a minha obra. A sua

poesia é para mim uma escola. Com ela apaixonei-me pelos traços lingüísticos tais

como o enjambement, a repetição, a enumeração, o estrangulamento. Com

Drummond cheguei a conclusão de que para se fazer poesia era necessário

agrupar num cesto três coisas fundamentais: o ritmo, a metáfora/metonímia e a

mensagem. E o meu poema “Poema para Carlos Drummond de Andrade” surge

como a única forma, singela e amiga, de homenagear o maior Poeta brasileiro da

atualidade. (MAIMONA, 1986, s/p)

Como vemos, Maimona é enfático ao dizer que foi através das leituras que fez

de Drummond que se descobriu poeta. Palavras como “influenciou”, “homenagem”

e “maior poeta”, demonstram bem a devoção que o angolano tem para com o

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brasileiro. Além disso, a breve análise que faz da poética drummondiana nos mostra

algumas de suas próprias características estéticas e temáticas, o que acentua a sua

admiração pelo outro que, em um segundo estágio, é transformada em matéria

poética pelo angolano em seu poema VIII:

No meio do caminho tinha uma pedra. C.D.A.

É útil redizer as coisas

as coisas que tu não viste no caminho das coisas

no meio do teu caminho.

Fechaste os teus dois olhos ao bouquet de palavras

que estava a arder na ponta do caminho o caminho que esplende os teus dois olhos.

Anuviaste a linguagem de teus olhos

diante da gramática da esperança escrita com as manchas de teus pés descalços

ao percorrer o caminho das coisas.

Fechaste os teus dois olhos aos ombros do corpo do caminho

e apenas viste uma pedra no meio do caminho.

No caminho doloroso das coisas.

(MAIMONA, 1987, p.19)

Como referência para o momento da análise vale lembrar os versos de

Drummond:

No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.

nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.

(DRUMMOND, 2002, p.16)

Ao recuperar o poema “No meio do caminho”, Maimona promove uma

recriação do espaço elaborado pelo poeta brasileiro, transpondo, para seu universo

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153

literário, a imagem da pedra, imortalizada por Drummond. Pensando ainda sobre a

importância que a imagem da pedra adquire para o poeta brasileiro, Marlene de

Castro Correia fala que “o verso-núcleo de ‘No meio do caminho’ extrapolou o

poema e penetrou nos mais variados tipos de discurso (político, jornalístico,

esportivo etc.), adquirindo vida autônoma e transformando-se em propriedade

coletiva” (CORREIA, 2002, p.39). Para ela, tal utilização indiscriminada do verso em

questão deixou em Drummond uma profunda mágoa, revelada posteriormente em

outros poemas do autor, em declarações e testemunhos (Idem). Porém, em

Maimona o movimento é inverso ao drummondiano, já que a imagem da pedra

como metáfora dos obstáculos e dos percalços da vida perde seu protagonismo

para a imagem do caminho. Com isso, o poeta angolano se propõe a “redizer as

coisas” que não foram vistas no percorrer do caminho. A pedra, que aparece sete

vezes no poema de Drummond, tem uma única ocorrência no texto de Maimona e

serve como referência para que o leitor lembre, mais uma vez, o do brasileiro. Isso

demonstra que para este a ação principal é assinalar a presença de um obstáculo,

enquanto para o angolano a importância está na necessidade de percorrer o

caminho, independente dos percalços que o mesmo apresente. Será à imagem do

caminho que o sujeito poético de Maimona relacionará suas ideias principais, como:

“a linguagem de teus olhos”; “gramática da esperança”; “pés descalços”; e “bouquet

de palavras”. Por isso, ao invés de apenas reavivar o poema “No meio do caminho”

e seu verso-núcleo, Maimona promove um salto e extrapola a idéia drummondiana

de estar no meio do caminho, sempre a esbarrar nos obstáculos, propondo um

“caminho doloroso das coisas”55 que precisa ser trilhado. Com isso, estabelece-se

um contraponto à proposta de Drummond, tal como bem analisado por Carmen

Tindó Secco:

Tanto em Carlos Drummond de Andrade como em João Maimona, a pedra

alegoriza as dificuldades da vida, mas o poeta angolano ressignifica o uso dessa

alegoria, propondo que os obstáculos e os sofrimentos não impeçam o caminhar.

Das entrelinhas de seu poema, depreendemos que o redizer poeticamente o

“caminho doloroso das coisas” é uma forma de resistir às tragédias do cotidiano de

Angola. (SECCO, 2006, p.150)

55 O verso final do poema VIII, posteriormente intitulado de “Poema para Carlos Drummond de Andrade”, recebe grande atenção da crítica e da comunidade literária angolana. Lopito Feijoó, ao organizar sua antologia de jovens poetas angolanos a intitula de “No caminho doloroso das coisas” (1988), por exemplo.

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Concordando com a ensaísta brasileira, reiteramos que tal ressignificação

justifica o enfoque maior na imagem do caminho do que no da pedra. Por outro

lado, não é apenas na recriação do poema de Drummond que o caminho assume

seu protagonismo. Esta é uma imagem que se tornará recorrente na poesia do

produtor angolano e servirá de metáfora de seu próprio processo de escrita, em

constante formação. Outro poema de Traço de união que trabalha tal metáfora de

maneira incisiva é o poema VII, que antecede o referente a Drummond e que será

posteriormente chamado de “Luz”:

Não atirem para o meu peito palavras sórdidas palavras velhas

para o meu peito não atirem palavras velhas palavras sórdidas

inventarei as minhas

no piso da cidade no chão do campo

na escuridão da solidão.

Para o meu caminho não atirem palavras velhas palavras sórdidas

irei à busca da palavra onde os homens desconhecem o grito

irei à busca da palavra onde os homens cultivam no peito as palavras que hão de ser ditas:

ditas à janela da cidade irei à busca da palavra

e direi o que se diz entre as paredes para que da palavra nasça a luz.

Não me atirem palavras sórdidas

palavras velhas inventarei as minhas

e serei um pedaço de palavra. (MAIMONA,1987; p.17)

A grande preocupação do poeta está em não contaminar seu caminho com

“palavras velhas” nem com “palavras sórdidas”. Tal preocupação se intensifica

quando demonstra o desejo de encontrar uma nova forma de elaboração para o

modo como percebe a realidade e a tentativa de transpô-la para o espaço do

poema. A imagem do caminho se associa diretamente à escrita do poeta, que

prossegue, através do sujeito lírico, dizendo que irá “à busca da palavra”, de

“palavras que hão de ser ditas”, isto é, há um forte indício de que ele busca um

caminho renovado, no qual as palavras possam adquirir a liberdade de seus

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155

sentidos originais. O poema se encerra com uma afirmação reveladora, feita pelo

mesmo sujeito lírico, ao dizer que será, ele mesmo, “um pedaço de palavra”. Tal

afirmativa nos remete, novamente, às formulações de Octavio Paz:

O poeta não escolhe suas palavras. Quando se diz que um poeta procura sua linguagem, não se quer dizer que ande por bibliotecas ou mercados recolhendo termos antigos e novos, mas sim que, indeciso, vacila entre as palavras que realmente lhe pertencem, que estão nele desde o início, e as outras aprendidas nos livros ou na rua. Quando um poeta encontra sua palavra, reconhece-a: já estava nele. E ele já estava nela. A palavra do poeta se confunde com ele próprio. Ele é sua palavra. (PAZ, op. cit, p.55) Tal reconhecimento do poeta em sua própria palavra poética demonstra o

comprometimento com seu projeto literário. Buscar os vocábulos capazes de “dizer”

as imagens de seu mundo poético é reconhecer que há uma linguagem que precisa

ser reconstruída. Este trabalho, tão comum aos grandes poetas, se apresenta de

maneira diferente, de acordo com a necessidade de cada um. No caso presente,

vemos que João Maimona instaura seu momento de criação nos alicerces de uma

realidade social em ruínas e/ou estilhaçada. Quando diz querer ser ele mesmo um

pedaço de palavra, o que almeja é encontrar/ser uma palavra poética que consiga

representar os conflitos de um sujeito poético e civil fracionado pelo agravamento da

miséria humana, da guerra entre os próprios angolanos e da falência do projeto de

independência. “Caminho” e “sombra” retornam para afirmar as palavras de Octavio

Paz. O caminho, apresentado como doloroso, faz parte do poeta e do homem

Maimona, pois metaforiza a necessidade de prosseguir, ainda que em meio a tantas

tragédias. E a sombra, por ser representação de um encobrimento da luz, se faz a

metáfora daquele momento em que algo se interpõe entre o homem e sua

esperança, causando o sentimento de ansiedade e incompletude. Outra vez

convocamos Marlene de Castro Correia: “se a apreensão do mundo se realiza pela

linguagem, o poeta – como operador que é da linguagem – maneja a poesia como

instrumento de uma percepção mais aguda do real e como matriz instauradora de

‘uma ordem nova’ ou ‘uma nova desordem’”(CORREIA, 2002, p.13). Mesmo

falando diretamente do universo poético de Drummond, as considerações da

ensaísta tocam no cerne da poesia de uma maneira geral. A “apreensão do mundo”

e a “percepção mais aguda do real” nos mostram que o trabalho do poeta, mesmo

em seus momentos mais intimistas, não se afasta tanto do coletivo. Segundo

Octavio Paz “as palavras do poeta são também as palavras de sua comunidade. Do

contrário não seriam palavras. Toda palavra implica dois elementos: o que fala e o

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156

que ouve.” (PAZ, op.cit , p.55). Maimona tem a consciência de tal processo

comunicativo inerente à palavra poética, apesar de ser rotulado por alguns críticos

como “hermético demais”. Podemos perceber a sua preocupação com essa

questão quando institui seu sujeito poético, o que se dá, muitas vezes, quando

convoca a presença de um interlocutor a quem ele se dirige, responde, indaga ou a

partir de quem reflete sobre determinada situação:

Acordaste como os primeiros passos do comboio. Pelo vidro do muro viste o medo da madrugada.

Mijaste no limiar do primeiro passo. E quiseste dar passos rápidos.

(Os homens quando acordam passam em revista

os sonhos da noite.)

Quiseste ser o dia em vez de estar no dia. E não viste a fala dos sonhos.

Nem sequer a memória da noite. Num minuto só viste o vazio dos sonhos.

Nas gavetas da tua cabeça só existe O vazio do tambor vazio. Só. Agora.

Este teu sonho é a tela de dores que se infiltram nas tuas pernas.

- não deixa crescer os teus lamentos – No limiar do primeiro passo

faltou passar a mão esquerda pela paisagem do cabelo.

Assim vias o corpo dos teus sonhos.

- não deixa crescer os teus lamentos – Pela próxima noite talvez. As noites

passam como a urina na bexiga. (MAIMONA, 1987, pp.24-25)

O uso da segunda pessoa do singular convoca o interlocutor, presentificando-

o. No entanto, apesar de ser responsável por todos os movimentos do texto, não

assume a voz no poema em nenhuma ocasião. O sujeito poético fala para e desse

interlocutor de maneira imperativa, direcionando os sentidos do que quer dizer,

sempre de acordo com as ações realizadas pelo “personagem”. Atrás desta

máscara textual, o sujeito poético questiona suas próprias atitudes, sua maneira de

agir, sempre em tom de reprovação, deflagrando a idéia de que algo poderia ter

sido, mas não foi. Assim, percebemos uma voz principal que se mascara muitas

vezes dentro dos versos, já que não quer ou não pode ser reconhecida diretamente.

A discussão sobre o existencial e a constituição do sujeito em uma sociedade

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157

fraturada pela guerra fratricida que se abate sobre uma nação só recentemente

desvinculada do colonizador transporta, para o poema, suas tensões e o desejo

coletivo de denunciá-las e contra elas lutar.

O João Maimona poeta é, ao mesmo tempo, o homem público que participa

dos quadros do governo na câmara dos deputados e o cidadão crítico que observa

os rumos da sociedade e os problematiza em sua produção literária. Talvez assim

comecemos a entender a necessidade da presença dos imaginários interlocutores,

que funcionam como vozes de apoio, se assim podemos dizer, que o poeta

convoca para seus textos. Ao estabelecer um diálogo com outras vozes, o poeta

demonstra que há uma necessidade de não fechar o poema em uma monologia

qualquer. Por isso, cria um sujeito poético que insiste em intensificar o trânsito entre

o singular e o plural, o eu e o tu e, assim sendo, estabelece pontes entre ele e os

outros que também sofrem com a situação adversa do país.

Alguns versos e indícios do poema VII nos levam a pensar que a figura

soterrada sob o tu seja a do místico poeta Agostinho Neto. Tal constatação nos

permite intuir que Maimona, neste texto, esteja relendo o “sonho” da independência,

tal como projetado e construído por Neto, e que se afasta da euforia do primeiro

instante da libertação. Não são poucos os contatos entre este poema de Maimona e

a poesia e o ideário de Agostinho Neto. Logo no início, no primeiro verso, Maimona

convoca a imagem do comboio, dizendo que o interlocutor “acordou com os

primeiros passos do comboio”. Podemos remeter aos de “Comboio africano”: “Um

comboio / subindo de difícil vale africano / chia que chia / lento e caricato // grita e

grita // quem esforçou não perdeu / mas ainda não ganhou” (NETO, 1975, p.48). O

diálogo prossegue nos versos seguintes da mesma estrofe. Quando Maimona diz:

“Mijaste no limiar do primeiro passo. / E quiseste dar passos rápidos.”, podemos

remeter ao poema “Depressa” de Agostinho Neto: “ Impaciento-me nesta mornez

histórica / de esperas e de lentidão.” (NETO, 1975, p.124). Notamos que se trata de

um processo de releitura crítica, já que os versos de Maimona revêem os de Neto

apontando o que de “impossível” havia neles. Devemos reiterar, no entanto, que

Maimona não está preocupado em culpar ninguém, mas, sim, em repensar um

processo histórico e social que acabou contribuindo para a situação vivida no

momento em que escreve, quando não há como fazer da literatura um veículo

político-ideológico.

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Saltamos para a terceira estrofe na qual encontramos o verso inicial “Quiseste

ser o dia em vez de estar no dia.”, que ecoa o talvez mais conhecido e impactante

dístico de Agostinho Neto, que se encontra no poema “Adeus à hora da largada”:

“Eu já não espero / sou aquele por quem se espera” (NETO, 1975, p.35), já por nós

em parte citado. Ainda na mesma estrofe, o poeta da geração de oitenta chama o

poema “Na pele do tambor” para a discussão, ao dizer que “Nas gavetas da tua

cabeça só existe / o vazio do tambor vazio. Só. Agora.” Assim, João Maimona

transforma o sentido da imagem do tambor tal como trabalhada por Neto e por

outros poetas. Ela deixa de ser convocação para a luta para fazer-se canto solitário

e vazio. Aliás, o termo “vazio” será posteriormente título do poema XIII de Traço de

união. Enquanto os versos de Agostinho Neto dizem: “mas não tão longe / nem tão

pervertido / quanto as vibrações / da pele do meu cérebro / esticada no tambor das

minhas mãos / pela África humana” (NETO, 1975, p. 89), Maimona demonstra que

as “vibrações cerebrais” ficaram guardadas nas gavetas da cabeça, como um som

surdo e sem grande significado diante da situação angolana. Por fim, podemos

ainda pensar na imagem da “noite”, muito recorrente nas páginas de Sagrada

esperança (1975) e que se faz presente em poemas como: “Sábado nos

musseques”; “Crueldade”; “Noite”; “Desfile de sombras”, dentre tantos outros. Nesse

caso, o que temos é um Maimona preocupado em não marcar a “noite” pelo viés

negativo como faz Neto nos poemas de seu livro de 1975, mas, sim, colocá-la como

espaço de renovação e esperança, o que faz através da imagem do sonho e da

necessidade de sonhar. Vemos, com isso, que a renovação e a ligação do poeta

João Maimona com a história literária e política de seu país são pontos

fundamentais para compreendermos a sua maneira de olhar e a própria

constituição de seu sujeito poético. Este diálogo, elaborado por ele com os poemas

e a figura histórica de Agostinho Neto, revela ser ele um sujeito que se afirma para

além de si mesmo e a partir do dizer e do agir do outro, deixando para o leitor um

rastro de citações e o convívio de vozes dentro do espaço do poema.

Outra forma utilizada pelo poeta de Traço de união para anunciar essas

“vozes” é o encontro de tempos distintos dentro do poema. O crítico brasileiro

Alfredo Bosi nos diz que “a poesia dá voz à existência simultânea aos tempos do

tempo, que ela invoca, evoca e provoca” (BOSI, 1997, p.121). O “encontro de

tempos” proposto por Bosi é parte de uma reflexão sobre o momento da escrita, a

época que ela retrata e as lacunas que só poderão ser preenchidas em um passo

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159

adiante, isto é, na reescrita ou na leitura. Pensar que os desdobramentos temporais

assumem importante papel na constituição do poema é considerar a memória como

articuladora de imagens e vozes e potencializadora da palavra poética. Já vimos

que o instante da poesia é um momento abstrato que espera pelo labor do poeta

para transformar-se em poema, isto é, materializar-se. Essa poesia, inerente ao

homem, segue com ele até o presente da escrita. Podemos ver isso na voz de

Drummond:

Gastei uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair.

Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira.

(DRUMMOND, 2002, p.21)

Ao se tornar poema, a poesia se torna autônoma e realizadora de sentidos,

como bem já nos falou Octavio Paz. Portanto, a memória, o presente da escrita e as

lacunas deixadas entre versos se unem e passam a constituir um sujeito poético

dividido entre o voltar ao passado, o olhar para o presente e o pensar no futuro:

I Diz o que pensas do meu aroma.

Azul, verde, branco, estranho: é o aroma d’árvore

que alumia o teu campo. II

Sou mais uma árvore do campo que cresce à tua volta. E penetra o teu coração.

Nele brilha o meu olhar. Nos meus olhos que os teus olhos não querem atravessar nos meus ouvidos que os teus ouvidos não querem cruzar

sinto as dores da distância que vais criando na noite dos teus vôos.

III

Queria tanto ver o sol da tua pele penetrar os meus pés. Os meus braços. Os meus olhos.

Queria tanto ouvir a tua tempestade bater à janela dos meus desejos. Dos meus sentimentos.

Queria. Queria ver o teu corpo sentado nas minhas mãos. Ver a tua fronte na minha trajectória.

E abraçar os pontos de vista do teu sangue.

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IV

Olha, quando passares pela boca da multidão deita tua mão nos gritos d’ervas.

(MAIMONA, 1987, pp. 26-27)

O poema XIV, posteriormente intitulado “Se as nossas almas juntassem seus

vértices” vem com uma dedicatória muito importante: “a todas as vozes de minha

geração”. Vemos, por ela, que o mesmo Maimona que se mostrara disposto a

dialogar com grandes referências literárias como Drummond e Neto, quer também

falar com as “vozes de sua geração”, isto é, com os que escrevem e atuam na

sociedade no mesmo instante que ele. Encontramos novamente o estabelecimento

de uma relação entre o sujeito poético e seu (s) interlocutor (es), relação marcada

pelos pronomes pessoais e possessivos de primeira e segunda pessoas,

respectivamente (“meu aroma... teu campo” ; “sou mais uma árvore do campo / que

cresce à tua volta” ; penetra o teu coração. Nele brilha o meu olhar”)56. O jogo ainda

revela o encontro do presente da escrita, tempo em que se faz o poema, e um

porvir que só se realiza no plano dos desejos do sujeito poético empenhado em

estabelecer um “traço de união” entre as vozes de sua geração. A intenção do

poeta de convocar as vozes dessa geração reforça a importância da metáfora do

caminho e a necessidade de prosseguirem juntos, em vértice – para utilizar o termo

do próprio poeta –, em um único trajeto, mesmo que este seja doloroso: “queria ver

o teu corpo sentado / nas minhas mãos. Ver a tua fronte na minha trajectória. / E

abraçar os pontos de vista do teu sangue.” Não há como não lembrar novamente o

brasileiro Carlos Drummond de Andrade: “Estou preso à vida e olho meus

companheiros. / Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. / entre eles,

considero a enorme realidade. / o presente é tão grande, não nos afastemos. / Não

nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” (DRUMMOND, 2002, p.80). Com

isso, o desejo expresso no poema XIV se alia ao texto drummondiano para

demonstrar e ressaltar a necessidade de caminhar junto com os outros, unindo as

vozes de todos, para que se instaurem novos espaços, novas maneiras de olhar,

enfim, uma nova realidade.

Se os contatos literários com obras de outros autores evidenciam a

necessidade do poeta em seu trabalho com a palavra, é, porém, na tentativa de

retratar a terra angolana da maneira que deseja que Maimona dá um salto sobre a

56 Grifo nosso.

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161

ressignificação dos vocábulos. Falamos de “Canto Vernacular”, o segundo e último

bloco do livro Traço de União. O bloco, que aparenta ser independente do primeiro,

porém, após uma cuidadosa leitura, percebemos que há um diálogo direto com os

poemas que compõem a primeira parte da coletânea de 1987. Ao observar versos

como: “irei à busca da palavra” (p.17); “serei um pedaço de palavra” (p.18)”; “ –

Escutai e cantai comigo / os olhos de amanhã” (p.30) ; e “ Eu quero a inspiração

imensa / que traga às pétalas do caminho / versos da cor verde.” (p.32) notamos

que anunciam, ainda na primeira parte do livro, as intenções que serão diretamente

representadas no segundo segmento. “Canto Vernacular” é constituído por apenas

dois poemas, porém é extremamente significativo para o desfecho da leitura que

propomos de Traço de União. Já no título deste novo bloco de poemas,

percebemos uma inclinação para a elaboração de uma escrita voltada para a

formação de uma nova língua, de novos e possíveis vernáculos que possam povoar

o canto. Reinventar e/ou buscar uma nova possibilidade de dizer é uma obsessão

do poeta, como já apontamos, porém o que percebemos, nesses dois poemas, é

um compromisso abertamente declarado não apenas com o trabalho linguístico,

mas com a realidade da inscrição poética e os conturbados espaços de escrita que

se sobrepõem para o autor – língua portuguesa; passado e tradições locais;

metalinguagem; formação de um sujeito poético capaz de dizer-se uno e outrar-se

na linguagem, etc.

É nesse universo de anunciação, no qual o poeta insiste em assumir

compromissos de cidadão angolano, que João Maimona escreve o poema I, depois

“Esperança dos passos”, no índice, poema que abre “Canto Vernacular”.

Encontramos aqui um sujeito poético ligado à terra angolana e preocupado com a

realidade social que reflete um passado recente de dominação e um presente

desanimador. Porém, esse mesmo sujeito poético nos demonstra que só é possível

deflagrar essa realidade, denunciar a desilusão e o desengano, apresentando a

terra angolana através de uma palavra nova, reconfigurada. A palavra, portanto, se

torna a única capaz de realizar a mudança, a transfiguração de sentidos e

realidades, pois é a ela que o poeta atribui a potência necessária para tanto:

Ó Angola meu berço do Infinito meu rio da aurora

minha fonte do crepúsculo Aprendi a angolar

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pelas terras obedientes de Maquela (onde nasci)

pela árvores negras de Samba-Caju pelos jardins perdidos de Ndalatandu pelos cajueiros ardentes do Catete

pelos caminhos sinuozos de Sambizanga pelos eucaliptos das Cacilhas

Angolei contigo nas sendas do incêndio onde os teus filhos comeram balas

e regurgitaram sangue torturado

onde teus filhos transformaram a epiderme [em cinzas

onde das lágrimas de crianças crucificadas nasceram raças de cantos de vitória

raças de perfumes de alegria (...) (MAIMONA, 1987, p.35)

Percebemos que o poeta diz ter aprendido a angolar. Com a utilização desse

verbo, associado diretamente ao exercício da linguagem e do dizer, vemos que as

impressões do autor sobre a terra angolana, suas regiões e paisagens naturais vão

surgindo seqüencialmente por intermédio de tal descoberta. Aqui associamos a

idéia de angolar convocada por Maimona nesse poema ao título do bloco final de

Traço de União. O verbete do dicionário destinado ao vocábulo vernáculo indica três

possibilidades de leitura e aplicação. A primeira fala em próprio da região em que

existe. O segundo fala de linguagem pura, sem estrangeirismo. E o terceiro aponta

para o idioma de um país. Portanto, o canto vernacular proposto por Maimona

começa com a afirmativa: “aprendi a angolar.” Entendemos, então, o “angolar”

como instituir uma nova maneira de dizer/ser, diferente das outras e afirmada

através do seu local de escrita. Com esse contexto, o poeta introduz, no corpo do

poema, um panorama do cenário angolano, tanto por seus aspectos naturais

(“pelas terras obedientes de Maquela / pelos caminhos sinuosos do Sambizanga /

pelos eucaliptos das Cacilhas”) e quanto pelos sócio-históricos (“onde teus filhos

comeram balas / e / regurgitaram sangue torturado / onde teus filhos transformaram

a epiderme em cinzas’). O surgimento de tais elementos no poema só se faz

possível por intermédio dessa nova língua recriada por Maimona, pois ela é o

espaço de inscrição e de escrita, no qual ganha corpo o seu projeto poético.

Percebemos isso de maneira ainda mais clara na continuação do poema,

principalmente em sua penúltima estrofe: “A resposta está no meu olhar / e / nos

meus braços cheios de sentidos” (p.36). Maimona se projeta assim, como o

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anunciador de uma nova proposta de escrita e de olhar, que se faz projeção de

novos sentidos, estabelecendo “traços de união” dentro e fora do texto.

O segundo bloco de Traço de união se encerra com uma nota que informa

sobre um prêmio concedido aos dois poemas que nele se encontram. Tal

premiação foi outorgada pela “Juventude do partido da Província do Huambo”. O

envolvimento político não faz com que Maimona perca sua sensibilidade para o

social e sua poesia, ancorada em uma linguagem renovada, consegue isentá-lo de

uma postura totalmente crítica, deixando-o como um observador atento do cotidiano

da sociedade angolana dos anos 80. Traço de União e, por ventura, “Canto

vernacular” são, por isso, um espaço de afirmação da poética de João Maimona, o

que já nos mostra um poeta integrado ao seu discurso e leitor de um porvir que não

esquece a realidade do presente, nem os acontecimentos do passado. É a sua “voz

(verde)” que anuncia ao leitor que vai “angolar”, com “palavras novas”, seguindo o

doloroso, porém necessário, “caminho das coisas”.

Referências bibliográficas

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165

A poética do Jongo: tradição e reinvenção

Renato de Alcântara57

Cláudia Cristina dos Santos Andrade58 Oh, lua Desce pra quem veio te cantar (Oh, lua, vai) Olha o sol já vai saindo E quem é que vai chegar? Lua cheia vara a noite Me chamando pra cantar (Jongo Folha da Amendoeira)

O batuque do tambor chama para a roda, enquanto jovens de uma

universidade marcam, cada um a seu jeito, o ritmo com o corpo. É o Jongo

Folha da Amendoeira, iniciativa de estudantes universitários que inauguram,

naquele espaço, uma prática tradicionalmente nascida em comunidades

quilombolas. Assim, reinventam a prática, e paradoxalmente, perpetuam a

tradição.

O paradoxo nos chamou para o grupo. A pesquisa que vínhamos

desenvolvendo buscava instituições que promoviam acesso a diferentes formas

de cultura, e estávamos acompanhando as atividades do Centro Cultural Jongo

da Serrinha, em Madureira, no município do Rio de Janeiro. Em uma ida à

UFF, o som do tambu nos chama a atenção:“Isso é jongo!”. E era, promovido

por Rodrigo Rios e Elias Rosa, o primeiro estudante de Serviço Social da

UFF(Universidade Federal Fluminense), bolsista do Projeto de Extensão

Pontão do Jongo Caxambu e assessor do Quilombo São José e da

Comunidade de Pinheiral, todos no estado do Rio de Janeiro.

A partir das primeiras rodas fomos surpreendidos pelo inusitado da

situação: uma roda de jongo promovida por universitários, em uma praça de

encontro, a Praça de São Domingos (conhecida como Cantareira, lugar de

encontro dos universitários da UFF), como outras existentes nas grandes

cidades, em que diferentes músicas, diferentes grupos convivem, nem sempre

57 Mestre em Literatura Comparada(UFRJ). Professor da FAETEC, atualmente na direção do CETEP Imbariê. 58 Doutora em Educação(USP). Professora do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp/UERJ)

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harmoniosamente. Chamamento que encantou a tantos outros, principalmente

os jovens que não conheciam o jongo, como Daline Gerber(2011):

Há pouco tempo conheci o Jongo através da minha amiga Carolina Oliveira. A principio estranhei um pouco a dança e a música, afinal, não faziam parte de algo com que convivia, não era algo de que tinha conhecimento pleno e embasado. Em sua casa, Carol ligou o som e começou a me passar os primeiros passos da dança. Me pareceu difícil a princípio, mas com o tempo fui me envolvendo de tal modo com o tambor e com a diversão de jogar com o corpo que pretendi ir mais além, e fui. Numa quinta-feira, eu e Carol, com saias rodadas fomos à Cantareira (Gragoatá - Niterói - RJ) participar da Roda de Jongo Folha de Amendoeira. Dancei pouco e desengonçada. Mas fiquei encantada com a solicitude dos dois rapazes de garra que tiveram a iniciativa de fazer uma roda de jongo aberta, em plena praça, de quinze e quinze dias na praça: Rodrigo Rios e Elias Rosa. Enfim, toda gente reunida numa roda, olhando um ao outro, contemplando um ao outro, com sorrisos, com alegria verdadeira. Hoje faço parte do grupo com muito orgulho e - é verdade - com muito pouco tempo para me dedicar mais.

Assim, após o acompanhamento do grupo por um quase um ano,

organizamos nossa análise a partir de duas cenas, acontecidas em agosto de

2010 e em maio de 2011, com o objetivo de compreender a construção da

poética dos pontos de Jongo nesse cenário, analisando o material coletado nas

rodas de Jongo a partir dos estudos de Alcântara(2008), e sob elementos

teóricos advindos da teoria da enunciação de Bakhtin e o conceito de

experiência de Benjamin. O objeto de análise, o Jongo, é discutido a partir da

“Cena 1”, em que destacamos as definições de jongo e sua relação com a

territorialidade, com a cultura do terreiro, culturas necessárias, ou seja, que só

existem enquanto há necessidade de sua existência: a tradição. Refletimos

sobre como o caminho de nossa pesquisa sobre o Jongo encontra o grupo e

nele se fixa: reinvenção. Nesse movimento, discutimos a questão da identidade

que surge no encontro, na experiência: identidade nova construída sobre

elementos tradicionais.

A “Cena 2” nos leva à poética do Jongo, aos textos criados pelo grupo, e

os sentidos deles emanados, assim como sua relação com a prática cultural

em si: o gestual, o ritual, o vestuário.

A lei 10 639 nos impele a compreender as manifestações culturais de

origem africana como parte inerente de uma sociedade que se quer pluriétnica.

Para tal, é preciso recuperar a memória étnica, em especial elementos culturais

historicamente marginalizados. O Jongo foi registrado no Livro das Formas de

Expressão do Patrimônio Imaterial do Iphan e inventariado. Sua riqueza

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expressiva nos remete a aspectos fundamentais da identidade das populações

afrodescendentes, de nossa história e saberes. Educar para as relações étnico-

raciais é, no entender de Silva(2007, p.43):

fomentar práticas sociais voltadas para a convivência plena dos cidadãos; incentivar programas de inclusão socioeducacional, desenvolver políticas de reparação, por meio de ações afirmativas diversas, valorizar o patrimônio histórico –cultural das etnias marginalizadas, enfim, implementar ações que, superando os preconceitos historicamente forjados, e as discriminações tradicionalmente toleradas, resgatem a auto-estima, o universo simbólico, a cidadania e a identidade racial das comunidades que compõem a sociedade brasileira, particularmente os afrodescendentes”. Consideramos que a força da palavra cantada faz emergir o orgulho de

pertencer e recupera a história, retomando, na atividade jongueira, a (re)inauguração

de identidades, produzindo experiências que se contrapõem à massificação cultural

homogeneizante, descaracterizante e advinda de minoria étnica dominante.

O objeto: Cena 1

Agosto de 2010. É uma praça, em frente a uma universidade pública federal, no estado do Rio de Janeiro. Jovens em círculos, bebendo, conversando, dançando reggae, samba, comendo pizza em mesas espalhadas no entorno. Embaixo de duas grandes amendoeiras, em um dos cantos da praça, três tambores são tocados por diferentes rapazes, que se revezam. Dois deles se destacam, tiram pontos de jongo, dançam, chamam as pessoas para a roda. Estão criando a Comunidade Jongo da Amendoeira, como diz o panfleto distribuído por eles. Olhamos para cima e compreendemos o porquê do nome. Um rapaz, estudante de geografia, chega para perto da roda, timidamente aponta e diz: “Eu morei em Guaratinguetá, e conheci o jongo de lá. Eu não podia ir, minha mãe não deixava, mas eu consegui aprender. Morei no Tamandaré, mas lá só tinha jongo uma vez por ano... em festas... Aqui é sempre.” Demonstra surpresa e alegria. Entra na roda e dança.

Originário dos batuques e danças de rodas da tradição Bantu, o Jongo

apresenta-se como dança comunitária de origem rural que remonta à época da

escravidão. Manifestação cultural complexa, transita no campo do sagrado e do

profano, o Jongo é uma instituição social na medida em que o conceito

abrange, simultaneamente, a prática divinatória de seus versos cifrados, dança,

canto, canções, melodia, instrumentos, o momento da confraternização e o

grupo social dos jongueiros59. Através dos Jongos os negros tiveram que pôr

em prática suas habilidades de dizer de modo indireto. Nas metáforas 59 Para marcar essas diferenças semânticas, grafamos a palavra com maiúscula quando nessa abrangente significação. No plural enfatizam-se tanto os aspectos particulares quanto gerais.

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percebidas por seus iguais, os antepassados e as forças metafísicas eram

reverenciados, encontros e fugas eram planejados:

Junta, junta mosquito-polva Marimbondo chegou agora.

Era desse modo que os escravos sabiam que algum outro cativo estava

sendo castigado e corriam para acudi-lo, conforme relatou uma jongueira de

Santo Antônio de Pádua aos pesquisadores do Instituto do Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional – IPHAN, no ano de 2004, durante os registros de campo

para o Inventário do Jongo do Sudeste, requisito para seu tombamento como

patrimônio Imaterial Brasileiro, ocorrido em 2006.

Sempre situado num panorama adverso, o negro brasileiro guardou um

traço fundamental das culturas africanas e que lhe garantiu a possibilidade de

reconstruir novos laços identitáros e de solidariedade: a relação coletiva com a

terra.

Conforme já dissemos, para os povos de África, a relação entre a o

homem e a terra se dá de modo coletivo. Na diáspora a posse da terra é

vedada, mas os cativos constroem, tomam posse e defendem o terreiro,

espaço de chão batido enfrente às senzalas, onde se canta e dança.

O terreiro difunde e recria, através de suas atividades, conhecimentos,

concepções filosóficas e estéticas, formas alimentares, música, dança: um

patrimônio de mitos, lendas, refrões, em constante recriação, pois são

respostas às demandas da realidade vivenciada por negros reunidos no

cativeiro.

É pólo irradiador de complexo sistema cultural no qual as manifestações

orais, histórias sagradas, contos, adivinhas, lendas, expressões do canto,

constituem um de seus elementos, que deve ser compreendido em função do

todo, isto é, do momento em que ocorrem, dos partícipes, os instrumentos

utilizados e demais nuances.

À medida que as repressões aumentam, o negro abriga-se na roda para

cantar, dialogar, e discutir a reconquista do terreiro e da liberdade, como

mostra esse ponto de Guaratinguetá:

Na cultura ancestral africana, o universo articulava-se de modo

cosmogônico, isto é, em autocriação integrada: suas partes respondendo pelas

relações entre os homens, a natureza e os Deuses. De maneira oposta, a

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tradição judaico-cristã, da qual somos herdeiros, dualmente faz a separação

matéria-espírito. Na tradição estudada, essa dicotomia inexiste: céus, terras,

natureza, trabalho, homens, ancestrais e Deuses, todos interagem e se

complementam ou, nas palavras de Dias, (2001, p. 866):

Num universo sacralizado, qualquer ação do homem ganha caráter ritual, direcionando-se para equilibrar a sua força vital com as demais energias do cosmo. E convivem em continuum o mundo dos homens, da materialidade, e o mundo invisível, dos ancestrais e divindades. Sendo, pois, a vivência do sagrado total e cotidiana, ela não exclui as emoções humanas, o prazer e a alegria: a fé com festa que tanto intrigava os cronistas. A terra é lugar da celebração entre homens, ancestrais e natureza.

Conforme nos diz Silva (2006, p. 41), “era guardiã dos mortos, a servidora dos

vivos e a promessa dos vindouros. Pertencia a todos eles, no tempo e na

eternidade.”

As cerimônias dos candomblés da Bahia e do Rio de Janeiro iniciam-se

pela saudação aos orixás africanos e aos caboclos, considerados como donos

da terra. Na Umbanda ocorrem ritos iniciais semelhantes e no Jongo, temos os

chamados pontos de abertura, no qual os antigos jongueiros, os santos, a

comunidade e a própria terra são reverenciados.

Saravá toda essa terra Folha de Amendoeira Saravá mestre jongueiro E o povo da cantareira

Assim que as rodas do Jongo da Cantareira iniciam, pedindo licença à

terra aos jongueiros e ao povo do lugar.

As culturas de terreiro narram, segundo princípios de uma estética

singular, as transformações sofridas nas suas realidades particulares. Na

comparação entre elas pode-se perceber as semelhanças e diferenças de seus

processos de identificação e resistência. Teobaldo (2003, p. 11) ao notar que, a

partir de 1970, ocorre a fragmentação na vida social das comunidades do

trecho entre Campos e Paraty, desalojadas por conta da especulação

imobiliária, mostra que tal fato “exigiu das culturas orais-rítmicas como Jongos -

que têm seus fundamentos assentados nos laços familiares - uma reavaliação

urgente de seus códigos de comunicação”.

A migração para a cidade provoca, nestas culturas, a incorporação de

novos temas no seu universo, a fim de serem mantidas as suas funções:

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170

Não há outra forma de compreender as culturas de terreiro, se não pela sua utilidade. Cantos de trabalho, terços cantados, rodas de Jongo, tudo isso é utilitário. Simplesmente porque é necessário. Socializa ações. Comunga identidades. (...) a cultura oral sobreviveu e ainda sobrevive, como no caso do Jongo rural de Angra dos Reis, porque aprendeu a superar os limites geográficos ou políticos que poderiam enfraquecer a sua resistência. (TEOBALDO, 2003, p. 12) A apropriação/reinvenção de elementos culturais constitui o eixo de

reflexão deste trabalho, em que a cultura é caracterizada não “apenas pela

gama de atividades ou objetos tradicionalmente chamados culturais, de

natureza espiritual ou abstrata, mas apresenta-se sob a forma de diferentes

manifestações que integram um vasto e intricado sistema de

significações”(COELHO, 2004, p 103). A cultura é, portanto, o que fazemos e o

que significamos, sendo um elemento mediado pela ação e reflexão humanas,

e, dialeticamente, delas faz parte, sendo responsável pelo que de humano

temos.

Partimos do pressuposto de que nosso olhar é constituído pelas

experiências culturais vividas nas relações sociais, e que quanto mais

reflexivos e rico de experiências somos, maior criticidade imprimimos ao olhar.

A constituição de experiência carrega o que é meu e o que é nosso, elementos

que se tocam e se modificam em uma relação dialógica. O olhar constitui uma

das portas de entrada de nossas experiências, no sentido que Benjamin

concede ao termo, um “fato de tradição, tanto na vida coletiva quanto na

particular. Consiste não tanto em acontecimentos isolados fixados exatamente

na lembrança, quanto em dados acumulados, não raro inconscientes, que

confluem na memória” (BENJAMIN, 1980, P. 30). Ao discutir o conceito de

memória involuntária em Proust, o filósofo se refere à experiência como algo

que conjuga conteúdos do passado individual com os do passado coletivo.

Os cultos, com os seus cerimoniais, com as suas festas (sobre as quais talvez nunca se fale em Proust), realizavam continuamente a fusão entre esses dois materiais da memória. Provocavam a lembrança de épocas determinadas e continuavam como ocasião e pretexto dessas lembranças durante toda a vida. Lembrança voluntária e involuntária perdem assim sua exclusividade recíproca. (BENJAMIN, 1980, p. 32) Assim, o material que significa o olhar carrega a historicidade em que

estamos imersos, que, por sua vez, devolve ao coletivo os significados que

construímos, pois o olhar expressa e capta. Ao captar fatos da tradição

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ancestral nosso olhar se municia de uma compreensão mais arraigada dos

elementos constitutivos de uma cultura negada, no caso dos elementos

culturais de raiz africana, desvelando-a.

Neste sentido, o jovem grupo Jongo Folha da Amendoeira parte da

teoria à ação, ao propor a experiência de jongar, aqui compreendida a partir

dos estudos de Benjamin (1991) que faz uma importante distinção entre as

ideias de vivência e experiência. Enquanto essa se caracteriza por permitir a

apropriação de conhecimentos, que passam a fazer parte da constituição

psíquica do sujeito, de sua memória, aquela permite o desaparecimento do

vivido, por não ter sido ele incorporado à memória, pela supremacia da

captação do choque, do acúmulo de informações, em relação ao

armazenamento de impressões. Para Souza (1997), com essas reflexões

Benjamin mostra como a forma de produção capitalista e as transformações

técnicas interferem nas formas de sentir, deixando marcas não só no fazer

individual cotidiano como também na produção cultural coletiva. Há, desta

forma, uma degradação da experiência agravada pela aceleração do ritmo da

produção.

Ao propor a “experiência do jongar” os jovens buscam um dado

engajamento individual na direção de uma ação coletiva, indo na contramão da

degradação da experiência denunciada por Benjamin, e favorecendo o diálogo

constante com as diferenças, que se opõe à vivência individualista, tão cara em

nossos tempos de capitalismo avançado.

Bauman (2000), ao analisar o que ele chama de modernidade líquida,

explica a falta de engajamento como uma das consequências da estrutura

societária atual. Para o autor, há um atomismo das relações, nas quais o

indivíduo figura como responsável pelas decisões, fracassos e sucessos.

Bauman (2000) nos fala desta sociedade, percebendo que, em nossa época, a

individualidade se constitui como característica inexorável. Para ele, o tempo

da modernidade líquida é o tempo da total liberdade de escolha e de se

suportar sozinho suas consequências, em que o processo de identidade passa

de “grupos de referência” à “comparação universal”, já que os moldes são

muitos, variados, dados pelos exemplos vindos de outros indivíduos, e

efêmeros.

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As pessoas não se identificam com o grupo dos liberais ou dos caretas,

mas com exemplos individuais. Essa ideia de identidade parte da análise da

globalização como fenômeno que mudou radicalmente a estrutura das

“condições de trabalho, as relações entre os Estados, a subjetividade coletiva,

a produção cultural, a vida quotidiana e as relações entre o eu e o outro”, como

alerta Vecchi no prefácio ao texto de Bauman (2005, p.11). Nesse, o sociólogo

traz algumas questões importantes para o desenho da sociedade atual. A

primeira é que a identidade é algo a ser construído, e não descoberto, ou seja,

não existe a priori e sim em um processo de construção contínuo. É inconcluso,

portanto.

O conceito de identidade tem intrínseca relação com o de comunidade.

Para Bauman (2000) existem comunidades, mas são, também, efêmeras e não

definidoras da identidade. Há um impulso modernizante que busca, o tempo

todo, destruir o velho para construir o novo. Fica-se sem referências sólidas. A

identidade constitui-se como um projeto sempre a realizar-se, porque os

objetivos sempre se modificam. Não há quem nos molde e sim o desejo

individual.

Porém, a ampliação da esfera da liberdade individual, paradoxalmente,

gera a rigidez da ordem estabelecida, resultado da desregulamentação, da

fluidez. O fluido é a metáfora escolhida porque garante a imagem perfeita:

ocupa todos os espaços, se molda a todos os corpos e, por isso, se mantém.

Não se deforma, conforma-se. Não há líderes e sim conselheiros que indicam

como fazer, e, por isso, a nossa competência poderá nos levar ao sucesso e a

incompetência, ao fracasso.

Bauman considera irreversível o processo de individualização, fazendo

com que o espaço da política, público, portanto, seja objeto de re-construção, o

que seria possível pelo compartilhamento de intimidades, ideia que ele

empresta de Sennett (1998 apud Bauman, 2000:46 –grifo do autor) porque “o

que nos leva a aventurar-nos no palco público não é tanto a busca de causas

comuns e de meios de negociar o sentido do bem comum e dos princípios da

vida em comum, quanto a necessidade desesperada de fazer parte da rede”.

É possível afirmar que as transformações que deram origem à

sociedade moderna e o avanço dos ideais burgueses propiciaram o

aguçamento do individualismo até chegar ao ponto alcançado em sua

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configuração atual, em que fica patente a provisoriedade e a multiplicidade

inerente ao sujeito moderno. Em outra direção, Hall (2003) acrescenta a essa

discussão a ideia de que o conforto com uma identidade unificada é fruto de

uma história narrada por nós. É o sujeito que constrói uma trama sobre si, que

garante a unidade. Para o autor

à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidade possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2003, p. 13) O caráter de mudança que acompanha a globalização seria responsável

pela fragmentação e dispersão das identidades na pós-modernidade,

contestando e deslocando as identidades fechadas de uma cultura nacional. A

dispersão e a fragmentação, ao mesmo tempo em que dilui, recupera, porque

se podemos ser múltiplos, temos a “liberdade de ser”, ideia que se limita pelas

relações sociais, pelo que podemos ser.

Os jovens reunidos na Cantareira exercem esse direito, e, na difusão

buscam reintegrar mais uma identidade, aquela que está sob o acúmulo

advindo da mídia, na memória que quase se perdeu, na ancentralidade: a de

jongueiro. Uma construção identitária que se re-inaugura no encontro, na

formação de experiências comuns. A cada roda, elementos do ritual tradicional

é revisitado e incorporado à vida dos jovens que dela participam.

A poética: Cena 2

É uma festa. Os jovens participantes do Jongo Folha de Amendoeira comemoram um ano da roda, iniciada em 13 de maio de 2010. Há uma mesa redonda, coquetel, e a roda. Toda a organização é feita pelo grupo, que arrecadou dinheiro com vendas de rifas. O tema da mesa é “A construção das ideias racistas no pensamento brasileiro” e dela participam dois professores. Os jovens ouvem, atentos, as falas e, nas suas, contam suas experiências de vida. Depois do lanche, a roda, lá na praça. O espaço está enfeitado com folhas das amendoeiras e, dentro delas, as letras dos jongos. As moças estreiam suas saias floridas, usadas com camiseta branca e um lenço da mesma cor. Os rapazes, a camisa do grupo com calça clara. Rodrigo reza junto ao tambu, o jongo começa, todos cantam os pontos e dançam, com alegria.

A linguagem explicita as relações entre a subjetividade humana e os

produtos culturais. Apoiando-nos em Bakhtin (1997, p. 117) pensamos que

aquilo que é expresso pelo sujeito nasce de um território social, como um

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produto desta inter-relação, da mesma forma que esta atividade mental é parte

constituinte do território. Nessa relação são fundamentais os conceitos de

diálogo e de alteridade, que nos ajudam a compreender como as mensagens

são compartilhadas e como sua circulação faz parte da formação subjetiva, de

forma a construir significados relativamente estáveis que compõem uma

ideologia do cotidiano. Neste sentido, Wersch(1991) chama atenção para a

matriz bakhtiana como fonte de conceitos que explicitam como as relações

sociais se organizam na constituição de sentidos individuais.

Para tal, Bakhtin traz como pressuposto básico a afirmação de que "todo

signo ideológico, e, portanto também o signo lingüístico, vê-se marcado pelo

horizonte social de uma época e de um grupo social determinados". E de que

forma isto se constrói? O processo de formação do signo parte da ideia de que,

para que um objeto da realidade possa se configurar semiótico-

ideologicamente, ele precisa adquirir uma significação interindividual,

constituindo-se como um índice de valor a partir de um dado "consenso social".

Porém, há uma dialética interna do signo, pois em seu interior se confrontam

"índices de valor contraditórios". O signo ideológico se constitui como uma

arena de lutas, da qual emergem os sentidos.

O vestuário utilizado pelos jovens, os gestos e o ritual, ensinado por eles

aos participantes da roda de tempos em tempos, fazem parte de um conjunto

de signos constitutivos da “experiência de jongar”. Bakhtin (1997, p.46) permite

a compreensão de que a construção subjetiva nasce do complexo social, e,

assim, como diz Wersch(1991), traz subsídios que fundamentam a ideia de que

a formação da mente carrega componentes construídos socialmente. Os

construtos bakhtianos focalizam o enunciado verbal, mas apontam, no que diz

respeito aos textos não-verbais, a insuficiência do signo para a apreensão dos

sentidos. Ou seja, existem elementos presentes nos textos não-verbais que

não são plenamente traduzidos pelos enunciados verbais. A forma de entrar na

roda, a reverência ao tambu, a marcação das palmas, o sorriso, as cores,

compõem um todo sem o qual a tradição não se mantém.

Bakhtin (1997) ao se referir aos textos não-verbais sinaliza a complexa

relação entre esses e as palavras, considerando a imagem um signo e,

portanto, uma construção ideológica. Para o autor

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[...]Todas as manifestações da criação ideológica - todos os signos não-verbais - banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele. Isso não significa, obviamente, que a palavra possa suplantar qualquer outro signo ideológico. Nenhum dos signos ideológicos específicos, fundamentais, é inteiramente substituível por palavras. É impossível, em última análise, exprimir em palavras, de modo adequado, uma composição musical ou uma representação pictórica [..] Todavia, embora nenhum desses signos ideológicos seja substituível por palavras, cada um deles, ao mesmo tempo, se apóia nas palavras e é acompanhado por elas[...] (BAKHTIN, 1997, p, 38) Assim, nenhum signo se encontra isolado na consciência, que a ele se

referencia verbalmente. Apesar de não considerar que o signo verbal suplante

os demais signos, Bakhtin oferece lugar privilegiado à palavra no ato

consciente, por sua presença constante em todos os atos de compreensão e

de interpretação. Quando percebemos algo nem sempre conseguimos explicar

a percepção, o que ela representa naquele ato (e nem sempre é necessário,

basta sentir). Porém se queremos compreender conscientemente, nossa

interpretação passa pela expressão verbal.

Dispostos em círculo, os jongueiros movimentam-se no sentido anti-

horário. O primeiro passo sempre é dado com o pé direito acompanhando a

batida do tambu.

Os dançarinos, conforme observa Ribeiro (1960, p.47), “fazendo um

balance de dois ou três passos e viram à direita e esquerda” numa espécie de

simulação de abraço. Um casal realiza, no centro da roda, um solo até que seja

substituído por outro.

O cântico entoado pelo jongueiro chama-se ponto ou simplesmente

jongo. Falado ou cantado primeiramente pelo solista, possui versos livres

improvisados é respondido por todos. A voz, coletiva, irmana e une a todos.

Por isso os jongueiros utilizam as expressões "tirar" ou "jogar" um ponto

quando se referem a iniciar o canto. Tal procedimento situa-se no código de

coletividade que a roda exige: Ninguém faz o ponto. Fazer situa-se no plano

individual e a dinâmica do Jongo reforça a coletividade que reconhece na

palavra a força de fazer a roda girar.

Além disso, quando se “tira” algo é porque ele já existia, era imanente à

comunidade que comunga, toma parte do que é dito. Jogar está no campo

semântico da diversão e, ao mesmo tempo da destreza. Só joga aquele que

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bebeu bastante da tradição jongueira, aprendendo e apreendendo seus

mistérios, preceitos, metáforas e malícias.

Saravá toda essa terra Folha de Amendoeira Saravá mestre jongueiro E o povo da cantareira

Os jongueiros da Amendoeira abrem assim suas rodas. Avisam que

chegaram para o Jongo e pedem licença ao mais velho. É um ato de respeito

às regras de comportamento, aprendido e apreendido no contato com os

pontos de outras comunidades:

Bendito, louvado seja É o Rosário de Maria, Bendito pra Santo Antônio Bendito pra São João Senhora Sant’Ana Saravá meus irmãos (JONGO DA SERRINHA, 2001, p. 46) Peço licença a Deus Nesta terra que eu piso Nesta terra que eu piso, (Jongo de Pinheiral. In: JONGO DO SUDESTE, 2004, p. 39) Saravá São Benedito Nossa Senhora do Rosário, (JONGO DO QUILOMBO DE SÃO JOSÉ, 2004, p. 52) Cheguei na angoma Tinha muita diferença Quero cantar meu pontinho E meus pais velhos dão licença. (Tia Maria Luíza, de Angra dos Reis In JONGO DO

SUDESTE, 2004, p. 39) Quando eu aqui cheguei Padre, Filho, Espírito Santo Se eu me benzer primeiro Por causa de algum quebranto. Um quebranto, Se eu me benzer primeiro Por causa de algum quebranto (idem, p. 41)

Durante as rodas na Cantareira, Rodrigo Rios as interrompe para

ensinar aos expectadores as regras do jongo. Diz ele "quando algum jongueiro

deseja cantar outro ponto, interrompendo o anterior, grita: “Machado!” ou

“Cachuêra!” Fala da tradição negra, preconceito, convida e ensina a dançar.

Em uma comunidade tradicional isso não ocorreria, pois esses ensinamento

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177

são efetuados através de jongos. Em sua fala, no debate que iniciou a

comemoração do aniversário, Rios esclarece que os elementos religiosos

encontrados no Jongo são importantes que se combatam preconceitos e

intolerâncias. O contato com diversidade rítmica, religiosa, temática se faz

fundamental para o grupo, em uma atitude de resistência e diálogo.

Do ponto de vista da dinâmica da roda de jongo, os pontos podem ser

classificados em: de licença e louvação entoados no início do jongo ou da

chegada de um jongueiro a este. Os pontos de visaria, que alegram e divertem

os participantes expressando o cotidiano da comunidade se seguem60. Os

pontos de demanda, gurumenta, gromenta ou gorumenta, corruptela de

argumento (DIAS, 2001, p. 878), incluem os de encante e vêm a seguir. Sua

diferenciação estaria apenas calcada na intenção do jongueiro em

ensinar,desafiar ou enfeitiçar alguém61.Por último, pontos de despedida.

Na Amendoeira pontos oriundos de diversas comunidades jongueiras

são cantados. Mas eles também tiram seus pontinhos, que podem ser

classificados por suas temáticas.

A primeira temática observada diz respeito ao orgulho e a identificação com a terra:

A semente pra crescer Quer água pra germinar Saravá mestre jongueiro

Que veio a semente regar

A benção do criador Eu quero agradecer

Da terra nasceu a mata Me deu água pra beber

O sol é quem me faz rocha Vento pra eu semear

Deu tambor pra dançar Jongo em noite que tem luar

Esses pontos indicam com exatidão o procedimento inovador utilizado

na Amendoeira: no primeiro, a comunidade sabe que seus laços ancestrais são

diferentes das demais comunidades. Assim, se vê como uma semente, o novo,

o vir a ser. Sua existência necessita da presença do Mestre jongueiro ou

Cumba aquele que ensina, o feiticeiro da palavra. Sua missão é perpetuar a

60 Essa seqüência é feita sem pausas ou explicações que rompam a unidade da roda. 61 Acreditamos que dificilmente uma pessoa mal intencionada ficaria impune em uma roda de jongo. Alguém acudiria o injustiçado.

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tradição jongueira com a inseminação do seu conhecimento ancestral, a água.

O segundo já mostra a comunidade em consonância com os elementos

naturais,que permitem seu fortalecimento. Uma vez reatados os laços entre o

velho e o novo, os jovens jongueiros podem se mostrar e convidar a todos para

a sua roda:

Olha o jongo caxambu oi folha de amendoeira Olha o jongo caxambu

Convidando todo mundo Pra cantar a noite inteira

Os versos cantados nem sempre utilizam metáforas, representando o

sentimento de pertencimento,quando são autorreferentes:

Descalço debaixo da Amendoeira Eu danço jongo de frente pro mar

Eu me senti na mama África

Ou até mesmo a visão compartilhada pelo grupo sobre a situação

histórica do negro, consolidando uma interpretação dos fatos históricos a partir

da situação do negro. São jongos de resistência, sem os volteios que os

marcavam nos momentos em que a expressão era proibida. No início do século

XXI, eles são cantos de denúncia e afirmação de uma outra forma de ver a

história

Isabel libertou preto Quem foi que te falou? Ela não libertou preto Preto é que se libertou

13 de maio princesa Isabel

Assinou papel de carta Que preto não escreveu

Eu não sei ler, também não sei escrever Mas sei que a liberdade branco não vai fazer

Atualizam as formas de discriminação, questionando as posições

reveladoras dos preconceitos arraigados:

Eu perguntei ao céu Eu perguntei à lua

Porque o Branco me vê Me olha e atravessa a rua?

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Assim, bebendo na água da tradição, pedindo licença aos ancestrais, os

jovens jongueiros da Folha da Amendoeira, revelam nos versos emprestados e

nos tirados por eles, sua percepção do mundo, seu desejo de pertencer a um

manancial cultural que fale de nossas raízes afrodescendentes.

Considerações finais

Adeus, adeus Eu vou embora Fica com Deus

E Nossa Senhora

A lei 10 639/03 representa um marco na história da resistência cultural

dos negros trazidos para o Brasil em sua diáspora, porque exige a recuperação

de um patrimônio fundamental para o ser humano: sua história e sua cultura.

Nas rodas de jongo, o sentido é o oposto ao do realizado no ritual da árvore do

esquecimento: nos portos de embarque de escravos para a diáspora, havia a

árvore ou portal do esquecimento. Homens e mulheres eram obrigados a dar,

respectivamente, 9 ou 7 voltas ao redor deste e em sentido horário. As

memórias, o passado, a cultura e a identidade eram ritualisticamente

esquecidas, rompendo todos os vínculos, todos os laços de pertencimento.

Deste modo, os cativos perdiam a condição de viventes, convertendo-se em

mortos em vida. Se o “esquecimento” permitiu a sobrevivência em solo

estrangeiro, foi a lembrança que garantiu a dignidade, preservada na memória

oral dos afrobrasileiros.

Os jovens, em sua prática, nos educam, fazendo-nos compreender que

é preciso conhecer para reconhecer-se.

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Page 181: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

181

Parte 2

Práticas pedagógicas

Page 182: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

182

Além do Jonny Quest: a utilização de dois clássicos cinematográficos como recursos didáticos no ensino de

história da África.

Walter Angelo Fernandes Aló62

Os contemporâneos da geração Hanna-Barbera certamente irão se lembrar

de um desenho animado chamado Jonny Quest, que retratava as aventuras de

uma turma de cientistas high tech nos mais remotos cantos do planeta.

Em minha memória afetiva ainda ecoa a frenética música de abertura do

desenho, tendo como pano de fundo os flashes dos episódios anteriores, sobretudo

na cena em que Jonny e sua turma, composta pelo Dr.Benton Quest (o pai do

protagonista), o fortão Roger Bannon, o amigo hindu Hagi e o frenético cachorrinho

bandit, um intrépido buldogue, aparecem fugindo de um bando de furiosos Pigmeu.

Caricatamente retratados, esses habitantes da floresta tropical africana

aparecem com suas pinturas e brandindo lanças para capturarem e, quem sabe,

cozinharem os intrusos brancos em seus imensos caldeirões.

Na verdade, poderíamos também estar falando de outros heróis ocidentais

das histórias em quadrinhos e do cinema, como o Fantasma, o imortal ”espírito que

anda”, senhor das florestas e “amigo” dos nativos, bem como do musculoso negro

Lothar, servo fiel do mágico Mandrake, personagens que como Jonny Quest foram

construídos a partir de uma visão eurocêntrica.

Cristalizada nas últimas décadas do século XIX, essa concepção colonialista

estereotipou a diversidade cultural de centenas de povos africanos, moldada em

uma experiência histórica de mais de 5000 anos, que forjou genuínos sistemas de

organização política e social, utilizando preconceitos como “inferioridade” e

“selvageria”, conforme já observou Leila Leite Hernandez:

O termo africano ganha um significado preciso: negro, ao qual se atribui um amplo espectro de significações negativas tais como frouxo, fleumático, indolente e incapaz, todas elas convergindo para uma imagem de inferioridade e primitivismo (...) nessa perspectiva a África ao sul do Saara, até hoje conhecida como África negra, é

62 Mestre em História Política e das Relações Internacionais / UERJ, Especialista em História da América / USU, Colaborador do PROEALC / UERJ, Membro da Coordenação de Projetos dos CVTs / FAETEC e Professor de História da ETE República / FAETEC e das redes pública e privada de ensino do Estado do Rio de Janeiro.

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identificada como um conjunto de imagens que resulta em um todo indiferenciado, exótico, primitivo, dominado, regido pelo caos e geograficamente impenetrável.63

Deixando as evocações juvenis de lado e desde 1987 lecionando a disciplina

História, com passagens pelos níveis fundamental, médio e superior, me vejo ainda

indagando como construir estratégias letivas que possibilitem aos alunos

“descortinarem” uma nova concepção de África, compreendida a partir de uma

abordagem “descolonizada”, explorando a riqueza histórico-cultural de um

continente que abarca como nenhum outro uma grandiosa variedade humana:

Mesmo antes da chegada dos colonizadores brancos, a África já não abrigava somente negros, mas cinco das seis principais divisões da humanidade, e três delas restringem-se aos nativos na África. Um quarto das línguas do mundo é falada apenas na África. Nenhum outro continente abrange esta diversidade humana (...) a diversidade dos povos da África resultou de sua geografia variada e de sua longa pré-história. A África é o único continente que se estende da zona temperada do norte a do sul, também abrange alguns dos desertos mais secos do mundo, as maiores florestas tropicais e as montanhas equatoriais mais altas. A África era habitada por humanos muito antes do que qualquer lugar: nossos ancestrais remotos originaram-se de lá há sete milhões de anos, e o homo sapiens anatomicamente moderno pode ter surgido lá desde então.64

Por outro lado, a despeito de uma prévia intuição professoral que me inclina a

empreender algumas abordagens mais sofisticadas (ou menos alienadas) de

temáticas pontuais de história da África e ou afro-brasileiras, limitadas, entretanto, a

uma esgotável relação de itens (“a África no contexto das grandes navegações”; “a

natureza do tráfico negreiro”, “a formação social do Brasil colônia”; “a luta

abolicionista no Brasil das últimas décadas do século XIX”; a Descolonização do

pós II Guerra Mundial e poucas mais), ainda me sinto de certa forma limitado

qualitativamente para materializar na prática letiva cotidiana um enfoque renovado e

crítico dos conteúdos de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

O motivo? Pertenço a uma geração de docentes, graduados antes de 2000,

notadamente em disciplinas como História, Geografia, Sociologia, Filosofia e

Literatura, praticamente “órfãos” das temáticas de matrizes africanas nas

respectivas formações acadêmicas.

Para ser fiel à verdade, recentemente soubemos que já em 1997 a professora

Leila Leite Hernandez ofereceu pioneiramente na Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo (PUC / SP) alguns cursos de História Contemporânea da África e no

63 HERNANDEZ, 2005, p. 18 e 21. 64 DIAMOND, 2001, p.378.

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184

ano seguinte passou a ministrar a disciplina História da África na graduação e na

pós-graduação em História Social da mesma instituição.

Por força da promulgação da Lei Federal nº 10.639 / 2003, que altera a Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabelece as Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, as instituições de ensino brasileiras, em

seus diversos níveis, viram-se obrigadas a promover as adequações curriculares

necessárias, bem como a estimular a conseqüente atualização pedagógica dos

docentes.

No âmbito dos desdobramentos da referida lei, as editoras, inclusive as de

didáticos, reorientaram-se para a nova demanda de temáticas afro-brasileiras e

africanas65, enquanto as Universidades, as Secretarias Estaduais e Municipais de

Educação e os órgãos de classe passaram a promover cursos de atualização para

os professores e os educadores, nos níveis de extensão e de pós-graduação lato-

senso66.

Após essas considerações iniciais, gostaríamos de compartilhar com os

colegas professores e educadores uma recente e bem sucedida experiência letiva,

vivenciada com os alunos do ensino médio a partir da utilização de um mesmo

recurso didático: a exibição e a análise contextualizada de dois filmes históricos.

Ressalte-se que a referida experiência letiva foi concebida a partir da

convergência de duas áreas de interesse histórico, afortunadamente interligadas:

África e Islã. 65 Até aproximadamente 2000, minha lembrança (ou ignorância) de utilização de livros didáticos com abordagens “descolonizadas” e mais abrangentes nas temáticas africanas e afro-brasileiras resumia-se às obras do Professor Joel Rufino dos Santos. Já após 2003, no contexto da adaptação do mercado editorial à nova demanda acadêmica e escolar impulsionada pela Lei 10.639, merecem destaque, publicações como HERNANDEZ, Leila Leite- A África na Sala de Aula. São Paulo: Selo Negro, 2005; SCHMIDT, Mário Furley. Nova História Crítica. São Paulo: Nova Geração, 2005; AZEVEDO, Campos Gislane & SERIACOPI, Reinaldo- História. São Paulo: Ática, 2005, os dois últimos voltados para o ensino médio, com capítulos específicos sobre história da África e editados em 2005, e SOUZA, Marina de Melo e. África e Brasil Africano. São Paulo: Ática. 2008. 66 Ainda dentro do nosso universo de conhecimento e atuação, o Rio de Janeiro, destacamos, sob o risco de negligenciar a atuação de outras instituições, iniciativas como a da Universidade Cândido Mendes, promovendo cursos de especialização lato-senso e mantendo uma excelente biblioteca temática, a do Afro-Asiático; da Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC), da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Governo do Estado do Rio de Janeiro, pela criação do Núcleo de Estudos Étnico-Raciais e Ações Afirmativas (NEERA), vinculado ao Programa de Inclusão da mesma Fundação, que nos dois últimos anos vem patrocinando , entre outras iniciativas, encontros docentes, palestras, cursos de extensão e publicações referentes à temática afro-brasileira e promovendo ainda a discussão para a formulação de ações pedagógicas cidadãs de superação da discriminação e do racismo nas unidades escolares da rede, e do SEPE, que em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF) / Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC) realizou algumas edições de cursos de extensão em História da África. Merece destaque especial ainda as diversas iniciativas do Ministério da Cultura, da Fundação Palmares, da Universidade Federal da Bahia, da Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racial e do Projeto A Cor da Cultura / Canal Futura.

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185

Vale destacar que a nossa intenção não é “contar os filmes”, estragando o

prazer de quem se disponibilizar a vê-los, nem muito menos tornar “hegemônicas”

as visões que serão expressas a partir de alguns pontos ressaltados para análise.

De que filmes estamos falando?

O primeiro é o clássico Maomé, o mensageiro de Alá (Líbia, Líbano e

Inglaterra, 1976. 220 minutos), produzido e dirigido por Mousthaph Akkad, com

música de Maurice Jarre e estrelado por nomes como Anthony Quinn, Irene Papas,

Johnny Sekka e Michel Ansara.

O segundo é o recente 10.000 a.C. (2008, EUA, 108 minutos), dirigido por

Roland Emerich, tendo Steven Strait e Camile Belle nos papéis principais.

1º Sugestão - Filme: Maomé, o mensageiro de Alá

Uma ressalva oportuna: logo nos créditos iniciais os produtores advertem que,

em respeito ao Corão e de acordo com a interpretação teológica de autoridades

Islâmicas, Maomé não será personificado, evitando assim ofender a espiritualidade

do Profeta e de sua mensagem divina.

Quais as conexões do filme com a construção de uma abordagem diferenciada da

temática africana?

Procuraremos mostrá-las a partir de agora, elencando e posteriormente

comentando alguns dos referidos tópicos de reflexão e debate, com a vantagem

que os mesmos poderão ser contextualizados visualmente pelo aluno, sempre

ressalvando para os discentes os limites ficcionais de um roteiro cinematográfico,

mesmo quando centrado em temáticas históricas:

a) A gênese do Islã e a expansão pela África;

b) A intensa vida comercial na região entre a costa oriental africana e a Península

Arábica; a naturalidade da instituição escravista;

c) A corte do Rei Cristão da Abissínia;

d) A mensagem presente na trajetória do personagem Bilal (escravo).

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a) A gênese do Islã e a expansão pela África

Nessa abordagem, o professor poderá comentar acerca do período entre os

anos de 610 e 632, marcado: pelas primeiras revelações presenciadas por Maomé;

a consolidação do status de Profeta de Alá; o politeísmo e o panteão da Kaaba na

Península Arábica (Meca); o suplício e o martírio dos primeiros mulçumanos; os

conflitos com a elite governante de comerciantes de Meca; a expulsão de Meca e o

exílio em Medina; “as espadas de Alá”, com destaque para o personagem Hanza,

interpretado por Anthony Quinn, naquilo que seria a gênese do conceito de jihad ou

guerra santa, móvel ideológico para a grandiosa expansão geográfica do Islamismo,

bem como ainda o retorno do Profeta à Meca.

É significativo ressaltar para os alunos que tal período preparou as condições

para a posterior islamização da África, iniciada a partir de 640 com a conquista do

Egito e progressivamente do norte do continente, desdobrando-se nos séculos

posteriores para o Sudão ocidental e central, o Chade, a Nigéria, o Mali, etc.

b) A intensa vida comercial na região entre a costa oriental africana e a

Península Arábica e a naturalidade da instituição escravista

Nesse ponto o docente terá condições de destacar a intensa vida comercial

ligando as cidades de Meca e Medina, na Península Arábica, às cidades do “chifre

da África”, estabelecidas através do Golfo de Aden e do Mar Vermelho.

Ali, onde entre outros atuais países localiza-se a Etiópia (Abissínia),

desenvolveu-se no início da era Cristã o Reino de Axum, que através do porto de

Adules, comercializava produtos da Índia, Arábia, África, China e Mediterrâneo.

Entre as mercadorias africanas destacavam-se o marfim, as plumas, o ouro

e o sal. Progressivamente, Axum passou a controlar as rotas comerciais do interior

para o litoral do Mar Vermelho e entre o vale do rio Nilo e Adules.

Os Axumitas empreenderam a conquista de territórios da Península Arábica

e do Império Kusch (Núbia), sendo que no século III já cunhavam moedas de ouro,

prata e bronze. No século IV converteram-se ao Cristianismo e aproximadamente

quatrocentos anos depois foram subjugados pela expansão mulçumana.

A maior parte das ações do filme ocorre nas ricas cidades comerciais de

Meca e Medina, ocasião em que os alunos poderão verificar diversas passagens

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onde africanos negros aparecem na condição de cativos, inclusive em cenas

ambientadas no Império Bizantino e no Império Persa.

Acreditamos que o professor pode aproveitar a oportunidade para

contextualizar a questão da prática da escravidão entre os próprios africanos, com

possíveis analogias com o processo americano e brasileiro dos séculos XVI até

XVIII, a partir da visão panorâmica empreendida por Marina de Melo e Souza:

Desde os tempos mais antigos alguns homens escravizam outros homens, que não eram vistos como seus semelhantes, mas sim como inimigos ou inferiores. A maior fonte de escravos sempre foram as guerras, com os prisioneiros sendo postos a trabalhar ou sendo vendidos pelos vencedores. Mas um homem podia perder seus direitos de membro da sociedade por outros motivos, como condenação por transgressões e crimes cometidos, impossibilidade de pagar dívidas, ou mesmo de sobreviver independentemente por falta de recursos. Pelo menos era assim na África, onde acontecia de pessoas se entregarem como escravos a quem pudesse salvar a si e a sua família da morte por falta d alimentos, caso a seca ou os gafanhotos tivessem arruinado toda a colheita. Nos reinos que reuniam várias aldeias e federações de aldeias e nos quais o rei vivia numa capital, cercado de sua corte, de suas mulheres e de seus soldados, era maior e mais freqüente a presença de escravos (...) as mulheres, além dos trabalhos rurais e domésticos, também eram recrutadas para aumentar o harém do rei; os homens, além de trabalhar no campo, engrossavam os exércitos e faziam parte das caravanas como carregadores ou remadores. Havia uma hierarquia dentro da condição de escravo que ia desde o mais desprezado, como aquele que fazia serviços desagradáveis extenuantes, como trabalhar no campo e carregar cargas, até o que ocupava postos de responsabilidade e era admirado pelos seus talentos. O que fazia deste último um escravo, apesar do seu prestígio, era o fato de, por ser estrangeiro, não ter laços de parentesco ou de solidariedade na sociedade em que vivia, na qual só era reconhecido como membro na qualidade de subordinado a um senhor. Se traísse o seu senhor e escapasse com vida, seria reduzido ao último nível da escala social. A escravidão estava mais presente nas capitais dos reinos, nas cidades-estado e nos grandes centros de comércio, onde havia maior circulação de riqueza (...) além dos escravos serem integrados nessas sociedades, também eram uma mercadoria importante nas rotas do Saara (...) os que não ficavam trabalhando no norte da África, podiam ser mandados para o outro lado do Mediterrâneo, mas iam principalmente para a Península Arábica, sendo preferidas as mulheres (...) além de serem comerciados entre as sociedades africanas não islamizadas, os escravos estavam entre as mercadorias exportadas para a Arábia pelos portos da costa africana oriental, pelos quais podiam ser levados para a Pérsia e para a Índia, junto com mercadorias de luxo, como marfim, ouro, peles e essências naturais. Assim, quando os primeiros europeus chegaram à costa atlântica africana, e entre outras coisas se interessaram por escravos, abriu-se mais uma frente de comércio de gente, mas este já era velho conhecido de muitos povos africanos.67

Acreditamos que o professor consiga uma oportunidade ímpar para mostrar

que os componentes de cor e de raça, atribuídos à escravidão e à condição de

escravo, que legaram ao Brasil e aos EUA uma ideologia de pretensa inferioridade

67 SOUZA, 2008, p. 47 a 49.

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dos africanos, expressa em comportamentos e atitudes racistas, é uma criação do

tráfico de escravos da idade moderna, realizado pelos europeus na costa atlântica

africana desde o início do século XV.

Todavia, o escravismo europeu da época do antigo sistema colonial não foi

igual, como vimos, ao tipo de escravidão vivida e praticada pelos diversos povos

africanos em seu próprio continente, realidade engendrada por uma série de

singularidades culturais, delimitadas no tempo e no espaço.

Conforme já destacamos, existem no filme várias cenas onde os africanos

negros são retratados na condição de escravos, propiciando ao docente a

oportunidade para esclarecer que nem todos os africanos são negros, bem como

ainda que as próprias idéias de uma África “una” e de “negro” são construções

teóricas européias do século XIX.

Nesse sentido, é fundamental o auxílio da geografia, explicando que ao sul

do deserto do Saara floresceram vários povos antropologicamente pertencentes ao

grupo humano negro devido a um pré-histórico processo de expansão e hegemonia

dos Bantos (provavelmente a partir dos atuais Camarões e Nigéria), explicando

assim como a África tornou-se majoritariamente negra.

No caso brasileiro, a transplantação de africanos escravizados ocorreu

nessas áreas de supremacia de povos negros, delimitada no vasto litoral atlântico.

Ou seja, para explicar o predomínio da escravização de africanos negros,

quer no âmbito do próprio continente como no contexto do tráfico atlântico da idade

moderna, não podemos desconsiderar a relevância dos fatores pré-existentes: a

geografia, a supremacia militar e a força da miscigenação (antropologia). Para

concluir esse tópico, alguns links com o filme.

Em determinada cena, na rica cidade mercantil de Meca, um dos abastados

senhores pune o seu escravo negro (personagem cujo nome é Bilal) em virtude do

mesmo ter se negado a açoitar um “rebelde” islâmico, cuja ofensa foi proclamar Alá

como “o único e verdadeiro deus”, o que então desafiava a tradição politeísta da

cidade, traduzida nos 360 deuses abrigados na Kaaba68.

No auge da ira com o escravo Bilal, o seu senhor proclama: “... eu comprei a

tua humanidade! Os teus deuses são os deuses do seu senhor!”. 68 Relembrando, a Kaaba (que significa casa de Deus) era na Arábia pré-islâmica um santuário em forma cúbica, situado na cidade de Meca, que dava guarida a cerca de 360 divindades das tribos do deserto, que em peregrinações anuais deixavam seus ídolos sob custódia da casa, ativando uma grande movimentação comercial na região. Alguns desses principais deuses foram Hubal (protetor de Meca), Al Lat (deusa do sol) e Al Manat (deusa do destino).

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Em outra cena, já na corte do Rei negro da Abissínia, por ocasião do diálogo

deste com um enviado da cidade de Meca, que vinha reclamar a custódia dos

escravos fugidos, o monarca respondeu: “... devolveremos os seus escravos como

vocês certamente devolveriam os nossos, pois o corpo dos escravos pertence ao

mundo e podemos dispor deles...”.

c) A corte do Rei Cristão da Abissínia

Neste tópico desenrola-se uma das mais impactantes e reflexivas cenas do

filme, que entre as várias nuances interpretativas suscitadas ( colega professor,

sinta-se a vontade...) possibilita a desconstrução do estereótipo da África primitiva e

sem história, da “tribo, da tanga e do tambor”, em virtude da ambientação da

pomposa corte de um monarca africano do século VII, com toda a significação de

uma complexa organização política que enseja.

O soberano em questão era Annajashi, o “Leão de Judá”, rei cristão da

Abissínia (Etiópia) 69, região da África oriental, próxima da Península Arábica,

convertida ao Cristianismo no século IV, que recebe em sua corte um representante

de Meca, reclamando escravos fugidos.

Quando o rei percebe que além de escravos Meca também quer repatriar

“rebeldes religiosos”, o monarca profere uma contundente frase, afirmando “... que

em algum momento inicial todas as religiões representaram posturas de rebeldia...”,

conduzindo a questão, como mediador, para uma espécie de julgamento público,

ouvindo tanto as considerações do emissário de Meca como as dos primeiros

mulçumanos.

O debate travado é riquíssimo, enfocando questões teológicas convergentes

entre o Judaísmo, o Cristianismo e o nascente Islamismo, em meio a tradição

politeísta dos povos da Arábia pré-islâmica.

A eloqüência do representante dos “rebeldes”, afirmando que foi o próprio

Profeta Maomé que recomendou a eles procurarem refúgio da perseguição de

Meca na terra do sábio e justo rei cristão, enveredando pelos trechos primitivos das

palavras sagradas do Islã ( as revelações divinas ditadas pelo anjo Gabriel ), que 69 O termo etíope (Ityopya, cara queimada em grego) era aplicado na antiguidade a todos os africanos. O outro nome do país, Abissínia, derivaria da palavra árabe habbashat, uma das etnias do Iêmen que imigrou para a África por volta de 2000 a. C. O Geês, língua dos etíopes, pertence ao tronco semita e deriva do Sabeu, árabe do sul. Apud: Enciclopédia do Mundo Contemporâneo. São Paulo e Rio de Janeiro. Terceiro Milênio e PubliFolha. 2000. P. 270.

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seriam posteriormente compiladas no Corão, especialmente no tocante a questão

do reconhecimento da significação profética de Jesus Cristo, alçado ao mesmo

patamar de Abraão, Noé e Moisés, é arrebatadora.

Ainda sob o impacto da força e da beleza do discurso do orador do Islã, o rei

Annajashi anuncia a decisão de prover abrigo, por tempo indeterminado, aos

fugitivos mulçumanos na Abissínia.

Aliás, algumas versões históricas dão conta que um pouco antes da fase das

revelações (610 a 632), Maomé teria mantido contatos de aprofundamento

teológico na própria Abissínia.

d) A mensagem presente na trajetória do escravo Bilal

Ao compartilhar essa última indicação para reflexão, gostaria de assumir o

risco de estar de alguma forma construindo uma hipótese que pode vir a ser

futuramente questionada por você, colega professor, visto que nunca conversei com

o Diretor do filme para saber se na concepção original da obra haveria a

intencionalidade de uma mensagem política qualquer.

A minha especulação centra-se na sensibilidade e na observação de quem

já assistiu ao filme diversas vezes, geralmente com a comodidade de estar com o

controle remoto nas mãos, realizando apontamentos para posterior checagem e

aprofundamento.

Por outro lado, sabemos que a partir de meados do século XX começou a

ruir academicamente o pressuposto da não-historicidade da África negra,

ocorrendo o reconhecimento de toda uma singularidade cultural e a difusão da

historicidade dos diversos povos subsaarianos, em seus variados e complexos

graus de organização social e política, possibilitando à pesquisa historiográfica e

antropológica sobre a África reativar as “vozes” de todas essas identidades

culturais soterradas pelo colonialismo europeu.

Já nas décadas de 1950/1960/1970 o sucesso das lutas de Descolonização

aflorou o orgulho de recuperação da identidade cultural (não necessariamente

nacional, entendida nos termos das fronteiras delimitadas pela Conferência de

Berlim), despertando a atenção mundial e aprofundando os processos de “reescrita”

da (s) história (s) africana (s), descolonizando mentalidades racistas e etnocêntricas,

inclusive a partir dos anos sessenta com a chancela da UNESCO.

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Assim, historiadores africanos, afro-americanos e europeus passaram a

empregar o rigor científico e metodológico da pesquisa acadêmica aos temas

africanos, utilizando, inclusive, o “diálogo” com a arqueologia e a tradição oral e, já

nos dias atuais, com a lingüística e a etnografia.

De alguma forma, podemos dizer que a partir da década de 1960 do século

XX as questões políticas, econômicas e sociais africanas passaram a despertar

uma maior atenção da opinião pública internacional.

Mas, voltando ao ponto central, o que queremos dizer com a mensagem

presente na trajetória do escravo Bilal ?

Interpretado pelo ator Johnny Sekka, a saga de Bilal suscita algumas

conjecturas.

Estando em Meca no século VII, servindo a um rico comerciante,

provavelmente deve ter sido negociado no contexto dos diversos fluxos comerciais

orientais que ligavam o “chifre da África” à Arábia, oriundo bem possivelmente da

Núbia ou da Abissínia.

Ao se recusar a chicotear um mulçumano de primeira hora, endossa o valor

humanitário da compaixão, presente na mensagem do Islã.

Ao aderir aos que tinham fidelidade à mensagem do Profeta, os

mulçumanos, sofrerá o martírio como um igual, independente da condição

pregressa de escravo, acentuando a idéia de que todos são iguais perante Alá.

Ao padecer no deserto e no ostracismo de Medina, assumirá a condição de

líder político e de posterior “braço militar” na consolidação do Islã, com destacado

papel durante as guerras contra a rica cidade de Meca.

Quando ocorre a aceitação da mensagem de Alá pelos vários povos da

Arábia, Bilal será um dos protagonistas na preparação para o esperado regresso a

cidade sagrada de Meca, depois de dez anos de exílio (622-632).

Por ocasião da triunfal entrada do aparato militar islâmico em Meca, Bilal é a

voz proclamadora da não violência, do respeito às mulheres, aos fracos, aos

aleijados, aos órfãos e à própria natureza, perdoando inclusive os senhores de

Meca que expulsaram o Profeta e os mulçumanos (os fiéis à mensagem do Islã).

Talvez o maior dos simbolismos ocorra quando Bilal aproxima-se da Kaaba,

e antes de escalá-la, despe-se das armas, e de tronco nu, como o escravo de

outrora, silencia a multidão ao entoar os cânticos de louvor a Alá, proferindo as

orações que tão arraigadamente passariam a compor a liturgia islâmica.

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Toda essa glória concedida a um (ex) escravo, portador da palavra do Islã,

pode ter representado uma tentativa de emprestar “corpo e voz” a uma mensagem

(em qualquer época sempre bem vinda!) humanista, de tolerância e de paz para o

conflito Árabe-Israelense, que à época da realização do filme (1976), contava com o

distanciamento histórico de apenas vinte e oito anos da fundação do Estado de

Israel e com o acúmulo de uma escalada de violência que tinha gerado até então

três guerras entre os árabes e os israelenses, a última delas em 1973, conhecida

como do Yom Kippur.

Sem falar ainda do contexto do trauma mundial ocasionado após o atentado

terrorista contra os atletas israelenses nas olimpíadas de 1972 e do horror das

imagens da guerra civil libanesa, eclodida em 1975.

Tudo isso num mesmo momento histórico de valorização e de curiosidade

acerca das temáticas africanas, interesse impulsionado ainda mais nos anos

setenta com as independências das colônias portuguesas na África (Angola,

Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau), sobretudo após a Revolução dos

Cravos, de 1974.

2º Sugestão - Filme: 10.000 a. C.

Nessa segunda indicação, ratificamos o propósito inicial: Como o filme em

questão pode ser utilizado em sala de aula, constituindo uma original e renovada

ferramenta de abordagem de temas da história africana?

Partindo da mesma premissa proposta no 1º filme, destacamos os seguintes

itens para análise e reflexão:

a) O povo Yaghal e a vida em uma comunidade pré-histórica

b) A Odisséia do herói D’Leh: outros mundos e uma África agrícola

c) Na Montanha dos Deuses: o Egito negro

a) O povo Yaghal e a vida em uma comunidade pré-histórica

O professor poderá destacar alguns aspectos econômicos, sociais e mágico-

religiosos da vida de uma comunidade do período pré-histórico, focando nos

Yaghal, protagonistas do filme, que habitaram provavelmente a Europa do norte, já

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na fase final da última grande glaciação. Em meio a planícies, sobreviviam da coleta

e, principalmente, da caça ao mannak, uma espécie de mamute.

Para os Yaghal, a virtude e a coragem do caçador líder residiam no controle

da lança branca, que conduzia os demais guerreiros na busca de comida para todo

o povo, indicando relações comunistas de proteção e provimento da sobrevivência.

Como uma comunidade típica da transição entre o mesolítico e o neolítico, já

controlavam o fogo e vivenciavam suas experiências mágico-religiosas,

indissociáveis da pretensão de entender o mundo (a força da natureza).

Rogavam proteção ao Pai Mannak e tinham na figura da Mãe Velha uma

espécie de feiticeira ou sacerdotisa, que decodificava para a tribo as tramas do

plano divino e do destino.

Nas visões de Mãe Velha, o destino dos Yaghal seria alterado pelos

“demônios de quatro patas”. Todavia, residia em Evolet, a “menina de olhos azuis”

acolhida pela tribo, a “esperança de vida” para o povo.

Aqui caberia uma importante lembrança do docente aos alunos: Os Yaghal

então estariam em um estágio anterior ao sedentarismo, uma vez que não

dominavam ainda a técnica da agricultura e da domesticação dos animais.

b) A Odisséia do herói D’Leh: outros mundos e uma África agrícola

Nesse segundo tópico encontraremos um dos momentos mais significativos

do filme, conseqüentemente com diversos pontos de enfoque para o professor

interagir com a turma.

Destaque-se a travessia de grandes paisagens naturais, diferentes da

Europa do norte, berço dos Yaghal, bem como o contato com outros povos, com

diversificados níveis de organização social, política e econômica, notadamente os

africanos negros.

Ocorre que a tribo Yaghal é atacada pelos mercadores de escravos, que

capturam, além dos homens, a mística Evolet. É nesse momento que surge a figura

do nosso “Ulisses pré-histórico”, o caçador D’Leh, um jovem, que meio ao acaso,

tinha ganho a lança branca, e com ela a inesperada honra de liderar o povo.

A partir desse momento D’Leh reúne forças para resgatar a amada Evolet e

os demais irmãos Yaghal, em uma incrível jornada, que desembocará no Egito.

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194

Nessa odisséia, o portador da lança branca terá a companhia dos amigos

Tic-Tic (o último portador da lança branca), Ka’ren e do adolescente Baku,

atravessando o que acreditamos ser a cadeia montanhosa dos Alpes, além de uma

inóspita floresta e o próprio deserto do Saara, o “mar de areia”.

Dois momentos emblemáticos dessa jornada: o primeiro, quando D’Leh cai

em uma armadilha subterrânea de caçadores, ficando frente a frente com um

gigante tigre dente de sabre (“tigre dente de lança”, na linguagem do povo Naku), a

quem liberta, colhendo uma futura gratidão da fera, no enredo de uma heróica

profecia de liberdade.

O segundo, um dos momentos de maior potencialidade de discussão para o

professor, é quando D’Leh e Tic-Tic entram em contato com vários povos africanos

negros, da região nilo-saariana, se surpreendendo com o domínio que uma dessas

tribos, os Naku, já tinham da agricultura, inclusive armazenando sementes e

utilizando enxadas de madeira e pedra.

Há uma interessante seqüência, onde os Naku manifestam as boas vindas

a D’Leh e a Tic-Tic servido iguarias, basicamente grãos, com destaque para uma

espécie de pimenta, que provoca em nosso herói uma divertida e óbvia reação,

comum àqueles que degustam tal alimento: a “garganta em chamas” e a

necessidade de água.

Didaticamente, o colega professor pode enfatizar que os estágios de

desenvolvimento humano provavelmente foram diferenciados, aleatoriamente

vinculados às condições geográficas, e independentes de questões raciais.

Se não fosse assim, como nossa historiografia eurocêntrica, a mesma que

rotulou a África negra de primitiva e sem cultura, poderia reconhecer o valor

civilizatório do pioneirismo africano (e negro!) no domínio da técnica da agricultura e

dos instrumentos de plantio?

Voltando à profecia. A cumplicidade entre o “tigre dente de lança” e D’Leh

explicava tudo para os Naku e para os outros povos nilo-saarianos, como os Kula,

os Tutt-Tutt, os Hoda e os “Sangue na cabeça”, todos vítimas de seqüestros

praticados pelos “demônios de quatro patas”, os mercadores de escravos.

O guerreiro da lança branca, vindo de além das grandes montanhas, que

falava com o “dente de lança” era o herói esperado, que lideraria os vários povos

até a “montanha dos deuses”.

Page 195: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

195

Lá, teria que travar a maior batalha de sua vida: libertar os milhares de

homens e mulheres capturados e escravizados pelos deuses, como as de seu

próprio povo.

c) Na Montanha dos Deuses: o Egito negro

A “montanha dos deuses” ficava situada no Egito, especificamente na

planície de Giza.

Aqui, eu arriscaria dizer que encontraremos os momentos mais

espetaculares do filme, com inúmeras seqüências mostrando as grandes

edificações e as multidões de escravos, cortando e transportando blocos de pedra,

trabalhando na construção de obras públicas.

Para o professor abre-se a oportunidade para discutir uma série de

conceitos: o nascimento das primeiras civilizações na região do Oriente Próximo; o

modo de produção asiático; o Estado teocrático; a construção das pirâmides e da

esfinge; a importância histórica do Rio Nilo e a visão de um Egito negro.

Na seqüência, nosso herói e seus comandados se infiltram na cidade para

libertarem os irmãos, convivendo não apenas com as dificuldades do aparato militar

do regime da montanha dos deuses, como também com o controle ideológico que

os deuses mantinham sobre a consciência daquela massa de escravos.

O líder do regime era conhecido como o Todo Poderoso, uma espécie de

“primeiro faraó”, que personificava uma misteriosa civilização, em estágio superior

de desenvolvimento, oriunda, segundo os próprios escravos, “ ..das estrelas ou de

uma distante terra, engolida pelo mar...”.

Alguns traços dessa superioridade cultural aparecem, por exemplo, na

utilização de instrumentos de metais, na observação astronômica, na utilização de

cavalos, de mapas avançados e de grandes embarcações.

Aliás, muito da mística e do poder dos deuses vinha do impacto causado

pelas enormes embarcações, que utilizavam um sistema duplo de velas,

semelhantes a asas, chamadas pelo povo escravizado da montanha de grandes

aves.

O rio Nilo, via de comunicação natural na planície de Giza, que atracava e

conduzia as grandes embarcações, era conhecido como o ninho das grandes aves,

ou ainda denominado de serpente que se movia pela areia.

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196

Roland Emerich, o diretor do filme, em depoimento afirmou que buscou

retratar intencionalmente três estágios distintos e possivelmente concomitantes da

evolução humana: a comunidade dos coletores e caçadores, dos Yaghal; os

agricultores, dos povos nilo-saarianos e o Estado teocrático, de cultura sofisticada,

da montanha dos deuses.

Para atingir seu objetivo, D’Leh percebe que teria que ir além da estratégia

militar. Seria necessário convencer a massa escravizada que o Todo Poderoso não

era um deus, e que por isso não poderia dispor da liberdade dos homens.

Nesse sentido, as seqüências de batalha e de revolta total dos escravos são

eletrizantes, demonstrando a face majoritariamente negra dos cativos, constituindo

o que viria a ser a civilização Egípcia clássica.

Na prática, tal possibilidade, de um Egito negro, foi desde o século XIX

negada e manipulada pela historiografia européia. Nos dias de hoje, infelizmente,

essa perspectiva ainda não foi totalmente revertida do ponto de vista acadêmico, o

que aumenta ainda mais a responsabilidade política dos historiadores e dos demais

estudiosos da cultura africana e afro-brasileira na construção de uma cidadania

intercultural, que nos legará uma sociedade justa e racialmente igualitária.

Conclusão

Recentemente, vasculhando a grande rede, encontrei referência destacando

que o filme 10.000 a. C. foi eleito pelo portal Yahoo como um dos campeões de

anacronismos históricos, visto que as grandes embarcações, a domesticação dos

cavalos e a construção das pirâmides retratadas, entre outras citações,

cronologicamente somente teriam sido realidade alguns milênios depois.

Descontando-se as legítimas liberdades ficcionais promovidas pelo diretor do

filme na busca da ação-emoção, acho que tal “polêmica” também deveria ser objeto

de discussão do professor com a turma, enfatizando a instigante idéia da possível

ocorrência de um prolongado processo de intercâmbio cultural entre povos distintos,

no alvorecer da civilização, na transição da pré- história para a história.

Por último, ao compartilhar a utilização das duas sugestões cinematográficas

como recursos didáticos para as aulas, abordando de maneira crítica e

contextualizada conteúdos da cultura africana e afro-brasileira, espero sinceramente

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197

ter contribuído de alguma forma para o enriquecimento da prática profissional dos

colegas.

Sobretudo em uma área notadamente marcada por muitos campos de

pesquisa “em aberto”, com poucas experiências consolidadas e permeada pela

escassa produção de modelos aplicáveis no cotidiano do trabalho docente.

Até um próximo encontro, tomara que com a troca de novas experiências

(quem sabe ainda cinematográficas) nas temáticas africanas.

Prometo que não contarei mais o final dos filmes....

Referências bibliográficas

AZEVEDO, Campos Gislane & SERIACOPI, Reinaldo. História. São Paulo: Ática,

2005.

DIAMOND, Jared. Armas, Germes e Aço. Rio de Janeiro: Record, 1997.

HERNANDEZ, Leila Leite Lopes. A África na Sala de Aula. São Paulo: Selo Negro,

2005.

SOUZA, Marina de Melo e. África e Brasil Africano. São Paulo: Ática, 2008.

SERRANO, Carlos & WALDMAN, Maurício. Memória D’África. A temática africana

em sala de aula. São Paulo: Cortez Editora, 2008.

Page 198: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

198

Zumbi: herói ou vilão?

Leda Maria de Souza Machado70

Introdução

Com a promulgação da Lei Federal nº 10639/03 que torna obrigatório o ensino

de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no currículo escolar da rede oficial de

ensino, é que pude perceber a importância do negro na formação do povo

brasileiro. Até então, vivia num eterno ostracismo, pois passei todos esses anos de

minha vida só ouvindo falar mal do negro. Quando há referência sobre algum negro

é de modo pejorativo o que faz a não identificação com eles, por exemplo: “Negro

quando não caga na entrada, caga na saída”; “Cuidado para não denegrir a sua

imagem”; “Não tenho nada contra o negro, desde que ele saiba onde é o seu lugar”,

era o senso comum, isso me marcou tanto que resultou na falta de interesse de me

aprofundar em estudos sobre minhas raízes, sobre suas vidas.

A militância de alguns negros resultou na lei que tem-se intensificado as

pesquisas a procura de fatos das vidas de personalidades africanas trazidas para o

Brasil em condições de escravidão, como também dos afro descendentes.

Personalidades essas que com muita luta contribuíram para escrever a nossa

história. Um povo que foi sempre relegado a 2ª instância, no qual não se sabe sua

história, pois relevantes documentos da época foram destruídos a mando do

Ministro Rui Barbosa71 o que muito prejudica as pesquisas, tornando os relatos às

vezes um pouco folclóricos, a respeito desse personagem Zumbi.

Quando me propus a escrever este artigo, foi com o objetivo de fazer o leitor

refletir sobre a condição que vivia o negro no tempo da escravidão e também nos

tempos atuais. Essa reflexão passa pela vida do nosso ícone Zumbi.

O negro se auto desconhece por falta de referência, só conhece, como

personalidades de grandes feitos, os “heróis nacionais brancos”, que algumas das

vezes chegara a cometer atos violentos com os escravizados como fez Duque de

70 Formada em pedagogia pela FEBF/UERJ, Especialista em Ciências da Educação pelo ISEP, Psicopedagoga pelo Instituto Isabel, Especialista em Dinâmica DA/NA Sala de Aula pela UFF, Especialista em Orientação Educacional pela Fundação Getúlio Vargas. Diretora Adjunta na Escola Técnica Estadual Juscelino Kubitschek da FAETEC. 71 Rui Barbosa, advogado, jornalista, jurista, político, diplomata, ensaísta e orador, que na ocasião exercia o cargo de Ministro da Fazenda do Governo Provisório, com o propósito de ocultar o passado escravista.

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Caxias72. Olhando-se ao espelho o negro não consegue se ver nesses heróis, não

tem identidade, é preciso que mostremos as nossas crianças e aos jovens, os

líderes negros, sua trajetória de vida e o que realizaram para o bem comum,

aumentando a auto-estima e mostrando o cuidado que devemos ter, pois estamos

passando por um processo de transculturação. Vamos trabalhar no sentido de

construir coletivamente um novo paradigma, exercendo o olhar crítico sobre a

história dada pelos livros didáticos, se não continuaremos sem desvelar a outra

parte da real história, continuando obscura, com uma lacuna a ser preenchida.

Para melhor compreender e interpretar é preciso que cada um parta de sua

experiência, de seu ponto de vista, do modo como vê o mundo, por isso optei pelo

título do artigo: Zumbi: Herói ou Vilão? A resposta ficará a cargo da cosmovisão de

cada leitor.

A Escravidão

Nos porões do navio negreiro milhões de negros cruzaram o Atlântico, numa viagem sem volta, a partir do século XVI até o século XIX, quando se deu a abolição da escravatura. Enelita da Costa Correia (Guiné Bissau)

A escravidão teve início na Península Ibérica, nasceu na antiguidade, pode-se

dizer que é tão antiga quanto à humanidade.

A famosa Atenas, que tanto seduz ainda os intelectuais, conseguiu o seu esplendor à custa de dez escravos por cada cidadão, esclarecendo Platão que, no espírito dos escravos nada há de são nem de inteiro. (Verdasco, 1997, p.120)

Enquanto na antiguidade, em Atenas havia 10 (dez) escravos para cada

cidadão, dois mil anos depois em Portugal havia 1 (um) escravo para cada 10(dez)

cidadãos.

Na África também se fazia escravos como na antiguidade que eram os

prisioneiros de guerra, os condenados por transgressões, os que cometeram

crimes, os que não conseguiam liquidar as suas dívidas, os que não produziam o

suficiente para sua subsistência e de sua família, enfim pessoas vistas como

inferiores.

Já na África o ser escravo era resultado principalmente de guerras e de ataque

a aldeias desprotegidas, os vencidos tornavam-se escravos dos vencedores que

72 Duque de Caxias “Patrono do Exército Brasileiro”, que comandou um verdadeiro massacre aos quilombos, em 1838 a pedido dos fazendeiros e a mando do Imperador.

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tinha todo o direito sobre eles, e essa posição de vencedor proporcionavam-lhes

maior riqueza e poder.

Na segunda metade do século XVI, Portugal possuía em média um terço do

comércio mundial. As expedições portuguesas tinham vários objetivos, dentre eles a

propagação do cristianismo o que menos aconteceu, pois uma das estratégias

utilizadas era o rapto de pessoas que caminhavam distraídas no litoral, levando-as

para serem comercializadas como escravas.

Fonte: África e Brasil Africano, 2005.

Ainda no século XVI até as últimas décadas do século XIX foram realizadas

transações comerciais rentáveis entre comerciantes europeus de escravos

africanos e reis africanos, ou seus substitutos.

Há controvérsias sobre a origem e os números dos primeiros negros

escravizados chegados ao Brasil. Alguns historiadores relatam que vieram do Golfo

da Guiné e São Tomé. Outros que no século XVII os que aportaram vinham de

Angola e já encontraram residindo aqui negros da Costa Oriental.

Admite-se que as primeiras levas de escravo vindas da África, tenham chegado ao Brasil logo após Martim Afonso de Sousa, para trabalharem nos engenhos de açúcar de São Vicente, o que é verossímil, uma vez que antes da vinda do primeiro capitão donatário, não haveria necessidade de trabalhadores, até porque não existiam povoações ou quaisquer núcleos permanentes. (Verdasca, 1997, p.124)

Arthur Ramos nos esclarece que,

Não se sabe exatamente qual o ano em que foram introduzidos no Brasil os primeiros escravos. Já o mercado era intenso nas Índias Ocidentais e não possuíamos nenhum

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201

documento seguro provando a entrada de negros escravos em terras de Santa Cruz. (apud Verdasca, 1997, p.124)

Couto (1998) relata o parecer de alguns historiadores sobre o assunto:

Segundo um historiador francês, teria desembarcado na Província de Santa Cruz, nos últimos três decênios de Quinhentos, cerca de 50 000 negros, ou seja, uma média anual da ordem das 1667 unidades. Por seu turno, um reputado historiador da economia quinhentista, a partir do cálculo da participação do Brasil teria recebido à volta de 52 000 indivíduos da Guiné e idêntica soma de Angola o que totalizaria 104 000, a uma média anual da ordem dos 3467. Um historiador norte-americano, por seu lado, aponta para uma importação anual, nas últimas décadas do século XVI, da ordem dos 10-15 000 cativos etíopes. (p.305)

Não há entre os historiadores uma comunhão de idéias sobre o assunto, cada

um apresenta dados diferenciados uns dos outros. Dos sobreviventes do litoral

africano de onde aguardavam o embarque ao navio negreiro, do período inicial de

armazenamento do desembarque, da venda e da viagem até o local onde estariam

fixados, muitos morriam nas primeiras semanas, não chegavam a se aclimatar-se.

Os números eram alarmantes.

O Brasil em meados do século XVII era o “maior importador de escravos

africanos do Ocidente”. Era de Angola que vinha a maioria dos escravos, chamados

de “escravos Angola”, tinha também os da África supra equatorial que recebiam o

nome de “Costa da Mina”.

Os escravos Angola eram mais indicados para a lavoura e os Costa da Mina,

por serem mais fortes, iam para a mineração. Segundo alguns historiadores havia

escravos que dominavam as técnicas da agricultura, do uso do ferro e criação de

animais.

Outra região se destaca com “a mineração no centro-sul da colônia”, o Rio de

Janeiro que sendo modesta produtora de açúcar no segundo século da

colonização, mas com a descoberta e a exploração do ouro no século XVIII

transformou-se em grande importador de escravos, abastecendo Minas Gerais,

Goiás e Mato Grosso, por serem regiões mineradoras.

No século XVII a maior parte dos escravos supria as necessidades dos

engenhos pernambucanos que perdeu para os engenhos baianos com a invasão

holandesa. Os engenhos pernambucanos tinham como característica a mão-de-

obra escrava e a “exportação de mercadorias produzidas pelo trabalho escravo”.

Verdasca (1997) afirma que,

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202

Os negros africanos, à semelhança dos índios brasileiros (por alguns designados negros da terra), eram povos em estado primitivo, de cultura neolítica (pedra polida), que desconheciam os metais, alimentando-se da caça, da pesca e da coleta de frutos selvagens, e não possuíam hábitos de trabalho regular. Ainda como os índios, os africanos eram tidos por indolentes, se bem que fossem considerados mais dóceis, obedientes e pacíficos. (p.123)

Os escravizados rurais, se assim podemos chamar, tinham sob sua

responsabilidade o plantio, o corte, o transporte e a trituração na moenda da cana,

como também pelo clareamento, nos caldeirões por coar as impurezas e o seu

derrame em formas para cristalizar-se transformar-se em açúcar.

Era um trabalho especializado e necessitava de conhecimentos pré-

estabelecidos do que ia realizar. Portanto não se pode dizer que o negro era rude,

brutalizado, incapaz como nos fazem crer.

Os escravizados urbanos que viviam nas grandes cidades da colônia, como

Salvador, Recife e Rio de Janeiro exerciam atividades diferenciadas, sempre a

mando de seus senhores. Os escravizados eram carregadores, oleiros, sapateiros,

carpinteiros e domésticos que atuavam como acompanhante, levando as senhoras

em cadeirinhas à passeios. Uns eram “escravos de ganho”, trabalhavam com uma

meta de ganho, ao atingi-la, destinava-a ao senhor e o excedente com o seu

consentimento guardava formando um pecúlio para comprar a sua alforria.

Os escravizados executavam trabalho contínuo, sem autonomia, com feitores

os vigiando e castigando. Mesmo com tanta dificuldade havia possibilidades

negociação entre senhores e líderes. Os senhores tinham medo do engenho ir à

ruína, pois eles podiam sabotar o ritmo de trabalho, danificar propositalmente peças

do maquinário, cometer infanticídio, suicídio e tentativas de vingança contra os

senhores.

Com a relação de conflito e negociação os escravizados obtinham alguns

benefícios como:

terras para o cultivo próprio, folgas que iam além dos feriados religiosos, livre articulação dentro e fora do engenho, o direito de constituir família, até acúmulo de bens de forma a conseguir sua alforria e de seus familiares. (Santos, ano1. nº4, p.10)

Quando havia quebra ou falha na negociação, as fugas e a formação de

quilombos73 eram as alternativas, isso representava prejuízos e ameaça a estrutura

73 Quilombo significa comunidade de escravos fugidos, provém de kilombo, palavra de origem mbundu que quer dizer acampamento de guerra.

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econômica e social do regime escravocrata e para os escravizados um constante

perigo, pois havia risco constante de captura.

Fundação de Palmares

Alguns homens vêem as coisas como

elas são e perguntam: Por quê? Eu

sonho com as coisas e pergunto: Por que

não? (John Kennedy)

Os escravizados fugitivos buscavam refúgio nas florestas, onde ficou

conhecido com o nome de quilombos, estes espalharam-se pelo Espírito Santo,

Nordeste e Rio de Janeiro, eram locais onde tentavam resgatar suas raízes.

De acordo com pesquisadores, Palmares surgiu nos fins do século XVI, no sul

da capitania de Pernambuco, na parte superior do rio São Francisco, na serra da

Barriga, num pedaço da mata Atlântica. Para outros teve início em 1597, com a fuga

de 40 escravos de um engenho para uma região interiorana localizada na serra da

Barriga, local coberto por palmeiras de onde surgiu o nome Palmares. Ainda outros

acham que estava localizado entre Alagoas e Pernambuco, tendo uma visão

privilegiada da região.

Foi-lhe dado esse nome pelos negros que ali se estabeleceram, pois o solo

era fértil e íngreme com uma vegetação abundante e coberto por palmeiras, onde

atualmente é o estado de Alagoas.

Como toda organização, Palmares também tinha um líder, Ganga Zumba, que

comandava a capital do quilombo, que era chamado de mocambo74 do Macaco.

Seu governo era formado por um conselho, que tinha como conselheiros: Gana

74 Mocambo palavra de origem mbundu que significa esconderijo. Vários mocambos formam o quilombo.

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Zona, seu irmão e Zumbi, seu sobrinho ou seu protegido, ambos chefes de

mocambo, os pequenos mocambos eram liderados por chefes locais.

Em Palmares a população a princípio era formada por homens que cultivavam

e colhiam toda espécie de frutas: jaca, laranja, melancia, ananás, manga, banana,

goiaba, das quais algumas serviam para fazer vinho, do coco extraíam a manteiga ,

da terra tiravam também raízes comestíveis, caçavam a maneira africana, fazendo

alçapões e armadilhas, conseguindo assim carne para seu sustento.

Tudo que precisavam tiravam da mata. Com as folhas das palmeiras

confeccionavam chapéus, vassouras, cestos, leques, esteiras, cobriam as

choupanas que eram erguidas com o miolo da pininga, nome de uma árvore, o

azeite era extraído da palmeira pindoba, as vestimentas eram feitas da casca das

árvores.

O tempo passa e mais homens chegam ao quilombo. Com uma população

totalmente masculina, partem em expedição a busca de mulheres, que raptam nas

fazendas vizinhas, libertam escravos, roubam comida e armas. Havia possibilidade

de em Palmares existir poligamia75 e até poliandria76.

Surgem as primeiras aldeias, começam a plantar milho, feijão, cana, mandioca

e legumes e a criar animais como galinha e porco, assim perdem o medo da fome e

dão início ao comércio com os vizinhos, pois esses só se dedicavam ao plantio da

cana-de-açúcar .

Lá viviam negros nascidos de diversas tribos africanas, era o refúgio de muitos

marginalizados pelo sistema escravocrata, com costumes e dialetos diferentes;

como crianças nascidas no Brasil que já habituara a cultura do branco; índios que

muitas vezes haviam também sido escravizados; mulatos e até brancos,

provavelmente fugitivos da justiça, era uma sociedade multirracial.

Organização Econômica e Social de Palmares

Como já havia dito Palmares era composta por negros de diversas tribos,

índios e brancos fugidos da justiça colonial portuguesa, cada um com o seu modo

de vida, convivendo lado a lado. Era uma ameaça aos colonos, pois os

escravizados sonhavam com esse lugar, onde havia liberdade. 75 Poligamia matrimônio de um homem com muitas mulheres. 76 Poliandria regime que se observa em sociedades matrilineares e no qual diversos homens em geral irmãos ou primos participam de posse de uma mulher.

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205

Apesar dessa multirracionalidade havia a necessidade de se criar uma

organização social e esta se assemelhava com a de algumas tribos africanas, sem

deixar de ter influência dos palmarinos originários de vários outros grupos.

O quilombo de Palmares era formado por dezenas de mocambos, ou seja,

aldeias que tinham o seu próprio chefe e que mantinham certa distância uns dos

outros.

A princípio o critério adotado em Palmares para escolha do chefe era ser

descendente de nobres da África, por isso Aqualtune recebeu logo o governo de

um aldeia, com o passar do tempo outros critérios foram criados ser guerreiro e

guia religioso homens não nobres, mas que se destacavam na comunidade

transformavam-se também por mérito em chefes.

Deve-se levar em conta a realidade político-econômica e social na formação

do quilombo dos Palmares, e compreender a recusa diária dos escravizados em se

submeter à vontade do senhor.

A crise da década 1660 ocorrida em Pernambuco provocada pelos

holandeses, trouxe benefícios para os palmarinos pois, diminuiu a necessidade de

mão de obra nos engenhos, causada pela queda da produção. A vigilância e a caça

aos escravos fugitivos não se fazia necessário neste momento, ocasionando maior

poder de troca de caça, pesca e de produtos agrícolas por instrumentos usados na

agricultura, comercialização de armas de fogo e pólvora, como também de objetos

de cerâmica.

Declínio de Palmares

Como distorção do ser menos leva os oprimidos cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. (Paulo Freire)

Em 1602, Diogo Botelho na época governador-geral do Brasil, organiza a

primeira expedição contra os palmarinos. Os soldados destruíam as aldeias e

faziam prisioneiros, mas muitos conseguiam fugir e migravam para outros locais

onde reiniciava suas vidas, isso dificultava o crescimento dos mocambos.

Em 1630, Pernambuco encontrava-se em guerra com os holandeses, que

almejavam os lucros provenientes do açúcar, estes estavam nas mãos de

portugueses e espanhóis, ambos tinham o mesmo rei. Essa guerra proporcionou o

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206

aumento da população de Palmares, pois segundo uns historiadores os donos de

engenho alistavam escravos para lutar oportunizando as fugas. Entre os fugitivos

estava uma princesa negra de nome Aqualtune.

Tropas holandesas foram enviadas para acabar com o quilombo: a de Rodolfo

Baro, que saiu em retirada, antes de serem massacrados pelos quilombolas. A de

João Blaer, que durante três meses

Os holandeses foram expulsos em 1654, nesse período Palmares tinha se

transformado numa potência. Cercada por muralha e repleta de armadilhas,

chamadas pelos soldados coloniais de “Outeiro dos Mundéus”.

Os palmarinos também organizavam expedições de guerrilha, saqueavam

engenhos, fazendas e casas comerciais pegando entre outras coisas armas e

munições. Os engenhos atacados organizaram expedições, por volta de 1667 as de

Zenóbio Acioli de Vasconcelos, em 1673 de Antonio Jacome Bezerra, em 1675

para uns foi a de Manuel Lopes, para outros já foi a de Fernão Carrilho. Alguns

dizem que em 1675 sob o comando de Fernão Lopes Carrilho, um exímio caçador

de negros, que aprisionou ou matou inúmeros chefes quilombolas, inclusive nessa

empreitada feriu Ganga Zumba que mesmo ferido conseguiu fugir, sua mãe quase

foi capturada.

Anunciou que acabara com Palmares, mas não era verdade e Ganga Zumba

precisou negociar,

O acordo de paz previa que os nascidos em Palmares ficariam livres, ganhariam terra para cultivar, direito para comercializar com seus vizinhos e a condição de vassalos de Portugal. (Lopes, ed. 27, 2005, p.34)

Ganga Zumba aceitou o acordo após pensar nos combates travados, na

dificuldade de adquirir armas de fogo e nas possibilidades de viver em paz. Mudou

para Cacaú, ao sul de Pernambuco, com seu irmão Gana Zona e seus fiéis

seguidores, onde acredita-se ter morrido envenenado a mando de Zumbi,.

Zumbi não aceitou o acordo, para uns historiadores talvez ele tivesse que

voltar para seu senhor, para outros, não se tratava apenas de sua liberdade, mas

da liberdade de todos os escravizados, pois nem todos foram contemplados no

acordo.

Zumbi se auto denomina novo líder de Palmares, dando início a uma guerra

civil entre seus partidários e os de Ganga Zumba. Os portugueses intervêem nesta

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guerra e Cucaú foi extinta.. Após os fatos, todos os esforços foram feitos para

negociar igual acordo com Zumbi, mas ele não aceitou.

Como nada fora aceito, o bandeirante Domingos Jorge Velho recebeu a

missão de acabar de uma vez com Palmares. Na primeira tentativa que durou três

meses, os atacantes tiveram pesadas perdas. Segundo alguns pesquisadores

houve mais duas tentativas com a ajuda do Capitão-mor Bernardo Vieira de Melo,

sendo que na última com um exército de 9 mil homens e alguns canhões,

conseguiu chegar perto das muralhas de Macaco, Zumbi falhou nessa liderança e

morreu centenas de guerreiros, com a invasão Zumbi fugiu com alguns

companheiros que continuaram a atacar com escassez. Antônio Soares um dos

companheiros de Zumbi foi capturado e torturado para indicar onde era seu

esconderijo, chegando lá o matou traiçoeiramente com uma punhalada.

Zumbi foi decaptado, cortaram-lhe a mão direita, que não consta em todas as

pesquisas, arrancaram-lhe um dos olhos, teve o pênis decepado e introduzido em

sua boca, isso também não consta, a cabeça salgada e exposta em praça pública

em Recife.

Uma história muitos começos

A capacidade eurocêntrica de falsear fatos e evidências impossibilitou que se conhecesse a verdadeira história do povo africano e, por extensão, da própria humanidade... (Aroldo Macedo)

Todos os relatos que possuímos da vida de Zumbi foram feitos pelos olhos de

seus inimigos que formavam expedições para capturá-lo a mando de senhores

escravistas e assim tomar o quilombo. Inúmeras tentativas fracassadas de prendê-

lo criaram esse mito fundador da nossa identidade, ou seja, da identidade dos

descendentes africanos.

A historiadora Silvia Hunold Lara e a especialista Nina Rodrigues, ambas

questionam a grafia do nome do líder dos palmares. Zambi ou Zumbi ? Qual deve

Page 208: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

208

ser a grafia mais correta ? A primeira é a mais conhecida, mas não significa que

seja a mais correta. Temos que ter cuidado com as variantes da língua que de tanto

utilizar as formas incorretas, elas passam por transformações e são aceitas como

verdadeiras.

Há questionamentos sobre a procedência de Zumbi. Se nasceu em Palmares,

não foi escravo e não se descarta a possibilidade de ser mestiço, filho de pai

africano e mãe indígena, pois em Palmares havia poucas mulheres africanas.

Alguns historiadores relatam que Zumbi como ficou conhecido, nasceu em

1655 no quilombo de Palmares e era neto da princesa Aqualtune. Outros

mencionam fatos de sua família, como da avó princesa Aqualtune e de seus filhos

Ganga Zumba, Gana Zona e suas filhas, não sendo citado os nomes nem a

quantidade, pois não foram conhecidas, referem-se apenas a uma delas que teria

sido a mãe de Zumbi.

Outra versão dos fatos é que na época do seu nascimento aguardavam o

ataque dos holandeses ao quilombo, sendo neto de Aqualtune muita prece foi

proferida para que crescesse forte e fosse um bravo guerreiro, já que pela lei seria

herdeiro natural de Ganga Zumba. Deram-lhe o nome de Zumbi para agradar o

deus da guerra.

Conta-se que nasceu livre ao lado do irmão Andalaquitude seu companheiro

de folguedos. Outros pesquisadores introduzem em seus relatos os nomes de

Raimunda Conceição e Alfredo da Rocha Vianna, como seus pais.

Ainda tem aqueles que não precisão seu nascimento e contam que o nome

Zumbi, significa guerreiro, foi dado por ele mesmo aos 15 anos quando fugiu da

guarda do Padre Antonio Melo e voltou para Palmares, pois com poucos dias de

vida foi capturado pela expedição de Brás da Rocha Cardoso e levado à cidade

vizinha de Porto Calvo e presenteado para uns e vendido para outros ao Padre

Antônio, o qual o batizou com o nome de Francisco, o educou e criou para ser

coroinha. Ensinou-lhe português, latim e religião.

Com o seu retorno logo assumiu a chefia de um mocambo e o posto de chefe

das forças armadas de Palmares, onde era responsável pelo preparo e

organização das frentes de combate, pois era vigoroso e tinha uma vontade de

ferro, ele era o homem de confiança de Ganga Zumba.

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209

Não se tem relato se ele casou, única alusão que se tem notícia encontra-se

na carta de Dom Pedro II, rei de Portugal enviada a Zumbi em 1685, mas não se

sabe se ele recebeu e se recebeu, se foi aceito o convite. Eis o teor da carta:

El-Rei faço saber a vós Capitão Zumbi dos Palmares que hei por bem perdoar-vos de todos os excessos que haveis praticados (...) e que assim o faço por entender quem vossa rebeldia teve razão nas maldades praticadas por alguns maus senhores em desobediência às minhas reais ordens. Convido-vos a assistir em qualquer instância que vos convier, com vossa mulher e vossos filhos, e todos os vossos capitães, livres de qualquer cativeiro ou sujeição, como meus leais e fiéis súditos, sob minha real proteção. (Lopes, ed.27, 2005, p.29)

Provavelmente se chegou a receber, não deve ter aceito, pois era firme nas

suas convicções e ideais.

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Page 211: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

211

Ações pedagógicas e maiuêutica: trabalhando religião ludicamente

Ana Cláudia Diogo da Silva77

O tema religião, enquanto disciplina da escola laica, traz a discussão de

valores e instituições como diversidade religiosa, respeito, família, organização

política e social e diferenças que utilizando-se da liberdade criadora – peculiaridade

do docente das séries iniciais mas que não se distancia de quaisquer educadores -

sugere metodologias e estratégias para seu desenvolvimento. Em função da

carência significativa de transmissão de conhecimentos com as respectivas

explicações , teorias e comprovações durante as experiências que vivenciei, entendi

que a pedagogia poderia cumprir esse papel com literatura, artes, educação física,

entre outras, através do processo multi/inter transdisciplinar na sala de aula ou fora

dela.

Sempre fiz a seguinte comparação: aos adeptos do catolicismo e do

protestantismo, por exemplo, é oferecida a catequese, o candomblecismo como

prática usual e obrigatória, não. Meus vinte e oito anos de iniciação motivaram o

desejo de possibilitar a quem pudesse interessar (praticantes ou não) o acesso à

mitologia africana, no tocante à criação do mundo, suas personagens e arquétipos,

demais valores e patakins, a fim de viabilizar a compreensão da religião ancestral

africana, parte da história de todo ser humano, num formato que suscite a

curiosidade, a quebra de tabus gerados pela ignorância do tema e pela imposição

das religiões eurocêntricas, e a possibilidade de identificação com o candomblé, ou

não, fomentando severamente a compreensão religiosa do ponto de vista

ecumênico, antropológico e filosófico contemplando a diversidade de grupos que se

tem , excluindo o compromisso doutrinário confessional, ou seja propor a reflexão

na direção da reforma aplicada à Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDB, a

partir de janeiro de 2003 referente aos artigos 26 A, 79 A e 79 B, onde nos obriga a

trabalhar os conteúdos de história da África e cultura afrobrasileira em todos os

segmentos e esferas educacionais. A intenção é sugerir e refletir sobre o

77 Pedagoga, foi docente da rede privada de educação, trabalhou por onze anos na rede pública de educação como docente, orientadora educacional e supervisora pedagógica da Faetec, possui trabalhos alusivos à Lei 10.639/03 produzidos nesta rede, membro do grupo de pesquisa Linguagens Desenhadas e Educação do Proped/UERJ.

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212

pedagogisar desta disciplina em especial que é obrigatória na matriz curricular

mínima e mesmo que um dia deixe de fazer parte do currículo, ainda assim é tema

transversal do ponto de vista de lei 10.639 – e eletiva na prática (?) - num formato

prazeroso, gerador de resultados consistentes, uma vez que

por causa da Paz, o mundo pós-moderno necessita mais do que nunca, de um entendimento religioso global, sem o que o entendimento político não será possível... Deve-se fomentar energicamente o entendimento religioso em nível local, regional, nacional e internacional. Deve-se procurar o entendimento ecumênico com todos os grupos de todos os níveis (ROCHA, 2001).

Entendendo que a escola é um espaço onde é possível se aprender

brincando e criando (ou pelo menos é isso que se pretende nas séries iniciais

principalmente), sugerem-se atividades interdisciplinares (Língua Portuguesa, Artes,

História, Educação Física, Música, Religião, etc) que tornarão a ação educativa

mais cidadã, interessante e motivante através de jogos, construção de murais, feiras

de cultura, teatro de bonecos, documentários, por exemplo a fim de se tratar do

tema com o objetivo de conhecê-lo sem o compromisso de estar doutrinando, aqui

este dado é irrelevante.

Aqui, sugere-se propostas que podem ser desenvolvidas nas séries iniciais

com desdobramento mais aprofundado no segundo segmento, considerando a

fundamentação da maiêutica socrática que vem a ser dar à luz intelectual das

verdades do homem. Conduzindo os sujeitos interlocutores a conceber ideias novas

sobre assuntos já existentes de forma perspicaz, uma vez que o conhecimento é

latente na mente de qualquer aluno, o objetivo passa a ser pensar para fora do

ponto cego preestabelecido pelas culturas sedimentadas de forma criativa (deve

ficar clara a questão: cada unidade escolar define seu planejamento, logo a

continuidade do estudo dos conteúdos ministrados nas séries iniciais estar inserida

no currículo do segundo segmento e ensino médio caso a unidade o tenha, ficará

sob a decisão do pedagógico, não necessariamente poderá ocorrer, aqui faço

sugestões de ações pedagógicas):

Debate e pesquisa

• Discutir a diversidade religiosa: trazer para a sala de aula imagens que se

refiram às religiões; observar o vestuário e montar um mural precedido de

discussão sobre os locais onde são praticadas, usando mapas e vídeos.

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213

• Pesquisar a referência musical das religiões: para as aulas de música,

utilizar vídeos disponíveis na internet e entrevistas entre as pessoas da

escola sobre o canto em sua religião, após tê-los assistido e ouvido as

pessoas entrevistadas, cada um dirá o ritmo que mais o agradou

executando-o se a escola tiver instrumentos caso não, poder-se-á até

mesmo construí-los – o que talvez fosse mais interessante e produtivo.

• Identificar as religiões mais comuns no Brasil: com o mapa do Brasil,

cada um da turma poderá falar sobre sua religião – aquele que possuir

orientação religiosa – e marcar no mapa com alfinete colorido onde existe

representatividade mais expressiva.

Jogos

Amarelinha: a cada pulo dado que corresponderá a um número, o aluno

revelará o nome da religião de acordo com a imagem referente ao número da casa.

Material/ procedimento - amarelinha riscada no chão; preparar as imagens de

vestimentas das religiões previamente faladas em sala;

Adoleta: “adoleta, le peti peti polá, le café com chocolá adoleta!”

Conforme cantam em roda, batem na palma da mão do colega ao lado,

quando terminam a música o aluno que recebeu a última palma (toque) diz o nome

de uma religião – o interessante é não haver repetição.

Adedanha: todos silabam juntos em roda “ a-de-da-nha!” e sinalizam com as

mãos um número. Dizem o alfabeto até chegar o último aluno em sentido horário

(ou não). Nesse momento, a professora diz o nome de uma religião e o grupo diz o

lugar de origem ou onde é possível haver a sua prática.

Muitas brincadeiras e atividades podem ser adaptadas à aprendizagem e

reflexão complexa do tema. O que se faz relevante é propor a discussão sobre

diversidade religiosa, na perspectiva da compreensão de que são muitas e

carregam valores diferentes, que existe a liberdade de credo garantida a todo

cidadão pela Constituição, que ao falar sobre todas estar-se-á elevando a auto-

estima daquele aluno que tem orientação religiosa, em função da discussão prever

o ponto de vista inclusivo, ecumênico, antropológico e filosófico e não sob o juízo de

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214

valor da discriminação ou daquela ser melhor que a outra, pois em algum momento

se falará sobre a qual pertence, e terá se iniciado o processo de compreensão de

outros tantos valores como diferença, (in)tolerância, igualdade, fraternidade,

respeito, possibilitando o que se define como parir uma nova opinião, uma nova

ideia sobre a questão.

Um período do ano em que se sugere enfatizar mais esse tema, é o quarto

bimestre – aqui não importa a nomenclatura que a unidade escolar utiliza na divisão

temporal - (adequado ao calendário da escola, deve-se trabalhá-lo durante o ano

inteiro), onde poderá se considerar o dia 1º do ano – Confraternização Universal ,

como tema integrador e discutir o natal, por exemplo, como sendo uma data

comemorativa que não se apresenta em todas as religiões, mas que vem sob um

poder midiático muito fortalecido e por isso muito divulgado e consumido.

Sabendo que educar é entre outros um ato de amor e de coragem, faz-se

relevante não temer o debate seja ele de que ponta for. Vindo do aluno, da família

ou da escola é bem-vindo, pois sinaliza que algo tocou nas pessoas... É através da

discussão que se faz cidadania, não se pode fugir à discussão criadora,

transformadora sob pena de ser uma farsa (FREIRE,1986, p.96). Considerando a

pergunta: para quê serve a educação?, na verdade a pergunta é: o que queremos

da educação? Acho que não podemos considerar nenhuma pergunta sobre os

afazeres humanos, no que diz respeito ao seu valor, à sua utilidade ou àquilo que

se pode obter deles, se não se explicita o que é que se quer (...): o que queremos

com a educação? O que é educar? Para que queremos educar? E, em última

instância, a grande pergunta: que país queremos? (MATURANA,1998, p.29),

precisamos de fato saber o que estamos fazendo e para que fim, a fim de darmos

um fundamento à nossa ação de educador. Aqui se sugeriu a disciplina de religião,

mas se aplica a todas as outras. Toda informação passada ao aluno surtirá efeito –

até nenhum efeito é um efeito - cabe aos atores desse processo definirem a sua

fundamentação.

Existe um certo consenso quanto à existência de algumas religiões chamadas “grandes religiões”. São aquelas que atravessarem séculos de história, transpuseram fronteiras e permanecem, de certo modo, sedimentadas na vida de grupos, povos e comunidades. Podem ser destacadas neste âmbito as religiões como o Judaísmo, o Islamismo, o Hinduísmo,o Budismo e o Cristianismo. Existem ainda sedimentadas, mas de um modo marginalizado, as Religiões Tradicionais Africanas e as Religiões Indígenas, que dificilmente entram neste contexto (ROCHA, 2001).

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215

Muitas outras questões poderão surgir (e surgirão) durante as aulas como

racismo e condição social, por exemplo. Educadores e educadoras devem persistir

no debate trazendo à reflexão as bases históricas que nortearam a formação do

povo brasileiro, sempre lembrando de que esta história também é sua e para que

sua aula seja de fato real, deve olhar para si de forma que sua ação profissional

transcenda qualquer sensação que possa vir a ter, emoção é inevitável de certa

forma. O texto a seguir construído por mim, afirma que não se faz necessário utilizar

somente textos já editados, o educador(a) também pode e deve criar de acordo

com a sua realidade, no meu caso este compõe-se dos arquétipos do candomblé .

Se observarem as ilustrações deste texto foram feitas por crianças, minhas

sobrinhas de 10, 7 e 14 anos respectivamente, propositalmente. Meu objetivo era

investigar o olhar do leitor e o percurso de sua leitura acerca dos símbolos e

significados apresentados e de que maneira seria transcrito, contudo havia a

intenção de avaliar o processo à posteriori. De início era apenas uma sobrinha a

fazer, a de 10 anos, no decorrer do processo as irmãs se incluíram no projeto que

não teve a minha supervisão direta, indireta,

ou constante, apenas fiz o convite contando

a história resumidamente e este foi o

resultado. Logo é possível sim sair das

amarras pedagógicas tradicionais e realizar o

fazer pedagógico de modo sedutor e

prazeroso para os dois lados.

Nessa vertente incluímos os

quadrinhos... Por que não utilizar as HQs no

cotidiano pedagógico? Se em algum

momento as HQs foram marginalizadas, discriminadas e usadas para fins não tão

pedagogicamente corretos assim, hoje essa mentalidade tem um outro contorno.

Lembro-me de lê-las na infância e adolescência e gostar muito, achar dinâmico,

colorido e cheio de traços e rabiscos que até enfeiavam a ilustração, mas que não

me agredia o olhar e me entretinha, eram MAD, Turma da Mônica, Batman, X-Man

e Cebolinha as mais lidas. Nas provas, às vezes estavam presentes algumas

tirinhas que deixavam-nas mais leves, o que dava uma sensação de felicidade em

fazer o que sempre achei que nada media ou avaliava.

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216

Hoje no Brasil e na Europa, já há uma outra classificação para o papel das

HQs, por serem consideradas uma ponte para a saída da zona de conforto em que

alguns se encontram em relação à culturas das mais clássicas até as de cunho

orientador, educacional, etc.

Há registros de que o desenhista do Superman aprendeu a ler com histórias

em quadrinhos. O diálogo pode se estabelecer entre vários interlocutores seja

religião, filosofia, matemática, ciências, africanidade... na escola a partir do

momento em que haja a preocupação com os meios de comunicação e

transmissão do conhecimento, com os sujeitos do processo, com seus objetivos e

fins.

O MISTÉRIO DA PEDRA DO OURO

“A temática da ética religiosa permaneceu sempre como uma questão desafiadora em todos os tempos. Encontramos na história da humanidade, nos mais diversos tipos de sociedade, uma constante sede do sagrado. O ser humano busca compreender e explicar, pelo caminho da religião, três perguntas fundamentais: de onde veio? – a questão da origem; o que faz aqui? – a razão de sua existência terrena; e para onde vai? – o fim último de tudo. Mas afinal, o que se compreende como religião e ética?” (José Geraldo da Rocha)

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217

Certa vez minha família e um grupo de amigos planejaram um passeio numa

floresta em Mangaratiba, costa verde do Rio de Janeiro. Seria fazer uma trilha pela

mata até chegar a um quilombo, onde no caminho veríamos uma pequena

cachoeira (hoje pequena, pois com o desmatamento a água foi diminuindo). Era um

grupo de dezesseis pessoas, sendo quatro de nós crianças com idade entre seis e

dez anos.

Para realizar esse passeio precisaríamos de um guia experiente... Quem poderia

ser? Meu pai, que é um professor muito responsável e um ogã muito respeitado –

ogã é aquele homem que nas casas de candomblé toca os atabaques invocando os

orixás e os fazem dançar – logo disse:

- Precisamos pedir permissão aos orixás

da mata para fazermos esse passeio,

além disso, contratar um guia que nos

conte a história do quilombo, do lugar e

que conheça bem o caminho. O que

vocês acham de chamarmos a Oparana?

(que nome estranho, pensei.) - Ela é

experiente, especialista em eco passeios

de matriz africana. O que acham da

sugestão?

Todos concordaram, marcaram a data e

hora e lá fomos nós felizes e curiosos.

Oparana era uma moça linda, falante,

simpática, e muito doce. Assim que nos

encontramos, distribuiu para cada um do

grupo um chapéu daquele modelo balde

de cor amarelo ouro e para as crianças

deu também um saco com frutas. Eram

banana prata, pêssego, mamão papaia e

laranja lima. Ela nos falou assim:

Page 218: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

218

- Bom dia a todos! Como vão vocês?

Preparados para a caminhada? Será longa

e agradável com inúmeras surpresas.

Todos deverão permanecer juntos, por isso

dei-lhes o chapéu nessa cor forte assim

será fácil a identificação entre nós, e para as

crianças além do chapéu as frutas, pois aqui

não tem fast food! Ela era muito segura de

si. Todos riram e seguiram com grande

expectativa.

Oparana, porém, antes fez uma proposta:

que todos nós déssemos as mãos e

fizéssemos uma corrente de elevação do

pensamento, independente de sua fé e

crença, e pedíssemos proteção para o

passeio. Aí nesse momento me lembrei das

palavras de meu pai “temos que pedir

permissão para entrar na mata”. Na roda dei

a mão a ela e vou confessar que senti um

arrepio... Uma deliciosa sensação de paz e achei que já conhecia aquele lugar.

Achei estranho, mas não me assustei.

Chegamos à clareira, era hora do primeiro

descanso e de continuar a ouvir as

estórias de Oparana. O lugar fica junto a

um rio calmo de águas geladas e

transparentes, que formavam uma piscina

natural.

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219

Mas em certo momento, ouvi ao longe o barulho da cachoeira... Distanciei-me do

grupo e fui em direção ao som com uma imensa curiosidade! Saí e ninguém me viu.

Ainda bem. Passei por um caminho cheio de flores, borboletas, passarinhos

coloridos e vi logo ali bem pertinho uma linda queda d’água que brilhava como prata

por causa do sol. O dia estava lindo, quente e ensolarado.

- Que maravilha, que beleza! Se pudesse atravessava essa água linda!

Mais a minha frente, vi uma menininha negra com trancinhas no cabelo, toda de

branco acenando para mim, parecia me

chamar... Fui até ela sem pestanejar!

- Oi menina! – ela me disse. O que você

faz aqui sozinha? Onde está seu pai e a

sua mãe?

- Olá! Qual é o seu nome? Os meus pais

estão lá na clareira.

- Meu nome é Carê. Posso te mostrar a

minha casa?

- Onde fica a sua casa, Carê?

- É ali atrás da queda d’água.

Quase não acreditei! Ela morava dentro da cachoeira! Que maluco, que legal!

- Vou com você sim, agora mesmo! Meus pais não vão dar falta de mim se eu não

demorar...

- Então venha, será rápido.

Passamos por trás da água e nem me molhei. Fui seguindo de mãos dadas com

Carê bem forte, parecia um mundo mágico, um lugar encantado: tinha um lindo lago

cheio de peixes, uma vegetação muito rica, um delicioso perfume no ar. Tinham

muitas pessoas lá, andando de um lado para o outro apressadas e nervosas.

Perguntei à Carê o que estava acontecendo. Ela me disse que sua mãe estava

furiosa. Por quê? – indaguei.

- Minha mãe é a rainha daqui. Teve que lutar muito na semana passada contra os

Ionis, pois queriam tomar o seu reino. Mas com a ajuda de Orunmilá conseguiu

vencer. Mas hoje está havendo uma reunião só para os homens daqui e ela foi

barrada. Ela está enfurecida! Por causa disso, ela tornou todas as mulheres estéreis

Page 220: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

220

e falou que nenhuma decisão nessa reunião terá resultado positivo. Mas Orunmilá,

já ficou sabendo e mandou um mensageiro com a solução.

- Qual é o nome de sua mãe?

- Ela se chama Oxum.

- E quem é o mensageiro, qual é o nome dele, qual foi a solução?(eu fazia uma

pergunta atrás da outra, a curiosidade era imensa!!!)

- O nome dele é Exu, e Orunmilá mandou dizer que seja permitido que ela participe

dessa reunião e de todas as outras.

- Será que vão aceitar?

- Tomara que sim, pois minha mãe é a regente das águas doces que alimentam

todos os vegetais, é protetora das mulheres grávidas e de seus bebês, é dona de

todo o ouro que existe no mundo. Ela propicia o conhecimento aos homens e

mulheres da Terra, estimula o amor, a prosperidade, a caridade e o altruísmo.

Toda mulher que quer se casar e ter filhos e não consegue, vem falar com

ela. Ela é muito inteligente e respeitada por todos os orixás, é protetora de todas as

crianças, mas quando se zanga... Hum! Os rios ficam logo com as águas

tumultuadas e com muita correnteza forte, ninguém consegue atravessar.

Todos aqui a amam, pois divide tudo o que tem, compreende e tolera os

defeitos alheios, aceita as pessoas como são.

- Sua mãe Oxum é muito bela! Ela sempre anda assim arrumada cheia de jóias e

roupa chique? Parece que vai a uma festa! Que “perua”!- falei dando uma

gargalhada.

- A minha mãe é assim o dia todo! Respondeu Carê.

Segui conhecendo o reino, tudo era reluzente como o ouro, colorido como as

flores e perfumado como o colo da minha mãe. Carê me levou até Oxum, fiquei

assustada um pouco, pois se ela estava furiosa poderia não querer receber visitas.

Mas que nada, ela me abraçou forte, me pegou no colo e me falou olhando nos

meus olhos:

- Você é muito bonita, menina! Vejo que será muito feliz, forte e dará muita alegria

aos seus pais. Se algum dia se sentir em apuros, pense em mim e na minha filha

Carê, nós vamos em seu socorro imediatamente!

E por falar em seus pais, volte agora para a clareira, mas antes leve esta

pulseira de ouro. É para te proteger para sempre! Dê-me cá um abraço apertado e

vá embora.

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221

Assim fiz e Carê me levou de volta para a saída. Perguntei o nome daquele

reino e ela me disse:

- É o reino da Pedra do Ouro, é a casa de Oxum que fica às margens do rio.

- Carê, adorei conhecer sua casa e sua mãe Oxum, um dia quero te apresentar os

meus pais. Olha só, fique com esse saco de frutas como um presente meu para

você.

- Muito obrigada. Disse Carê.

Passei pela queda d’água, dessa

vez me molhei toda, que gostoso! Mas

lembrei que não havia dito meu nome...

Quando me virei ela já havia sumido. Ouvi

bem longe chamarem meu nome e de

repente, estava deitada no colo de

Oparana, ela me abanava com um leque

de metal dourado muito brilhante...

Estranhei tudo aquilo... Será que eu

sonhei? Será que eu caí no sono na

clareira?

- Acorde meu amor. Vamos caminhar mais duas horas até chegar no quilombo.

Disse Oparana.

- Oparana, então adormeci? Deixe eu te contar... Contei tudo o que se passou e ela

ouviu atentamente, me deu um abraço forte e me falou:

- Acredito em tudo o que me disse. Foi um lindo e maravilhoso sonho, cheio de

bênçãos e de luz! Mas agora vamos prosseguir.

Assim o fiz, levantei-me, meu pai me deu água geladinha e um quindim

delicioso, mas quando olhei para meu braço lá estava a pulseira que Oxum me dera

e estava sem o saco de frutas... Até hoje sinto aquela sensação gostosa de ter

conhecido o reino de Oxum e aquela paz. Mas terá sido um sonho? Olhei mais uma

vez para Oparana e ela me piscou o olho esquerdo. Nossa, mais uma surpresa: ela

tinha o rosto da mãe de Carê!

Até hoje acho que não foi sonho e sim uma realidade encantada.

Page 222: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

222

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223

Eu e o outro: o professor como artesão da interculturalidade

Luiz Fernandes de Oliveira78 Mônica Regina Ferreira Lins79

“Amar é quando a gente aprende a morar no outro”

Mário Quintana

Introdução

“Eu não sou chamada para brincadeira de menina bonita.”, essa frase foi dita

por uma menina de 9 anos de idade, moradora de uma região bem pobre e de difícil

acesso no Rio de Janeiro. Espevitada, decidida e alegre, quase sempre fala o que

pensa. Quase sempre ... Aluna do CAp da UERJ, inserida numa turma em que boa

parte das crianças são negras e moradoras do subúrbio, mas há quem já tenha

visitado a Disneylândia e tenha acesso a bens de consumo mais caros. No início, não

falava de questões que a incomodavam no relacionamento com a sua turma e

transmitia certa indiferença. Vítima de um tipo de manifestação que por vezes

teimava em comparecer na turma, foi chamada de “macaca”, enquanto sua

professora a fotografava para um projeto da turma, e toda a sua coragem e força para

dizer o que pensava não conseguiu ser mobilizada na Roda de Conversa chamada

pelas professoras para discutir o ocorrido.

O episódio ocorrido logo no início do ano letivo de 2006, assim como outros de

igual expressão de desrespeito ao outro, motivou uma sucessão de Rodas de

Conversa, que juntamente com as Rodas de Leitura e de Notícias, são atividades que

acontecem durante todo o ano em nossas turmas do CAp da UERJ e contribuem

com o desenvolvimento de procedimentos e atitudes. Segundo Cecília Warschauer

(2001) as rodas são espaços de trabalho coletivo e expressam uma concepção que

dá papel de centralidade à formação de uma comunidade de partilha de saberes

onde circulam idéias no ato de aprender a aprender e de formar-se com o outro. Na

concepção de partilha que as rodas trazem, temos a idéia de retorno à pessoa, onde

78 Doutor em Educação pela PUC – Rio, Mestre em Sociologia pela UERJ e Especialista em História da África e do Negro no Brasil pela UCAM. Professor Adjunto do Instituto de Educação da UFRRJ. 79 Doutoranda pelo Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ, Mestre em Educação Brasileira pela PUC – Rio e Professora Assistente do Departamento de Ensino Fundamental da UERJ.

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são produzidos significados e aprendizados. A partilha pode ocorrer via dois canais: o

oral, com o conversar, e o escrito, com registros do vivido que podem alargar as

possibilidades do compartilhar, além de oferecer uma condição privilegiada para a

reflexão.

As rodas são ricas experiências daquilo que nos acontece, com narrativas que

se renovam em contatos repetidos. A palavra conversar quer dizer “dar voltas”, as

idéias circulam e cada um dos parceiros pode mudar seu ponto de vista durante a

conversa.

Essa rede de conversas não só desenvolve a capacidade de argumentação lógica,

como implica em capacidades relacionais, em respeito, em saber ouvir, falar e

aguardar a vez. Ao inserir-se na malha da conversa a criança enfrenta as diferenças

e coloca-se diante do ponto de vista do outro. Para Maturana (1997) o conversar

caracteriza o humano, pois se realiza através da linguagem e no entrelaçamento do

emocional e do racional.

E muitas coisas nos aconteceram e foi preciso dar muitas voltas para que

aprendêssemos a morar no outro coletivamente. As experiências transformaram-se

num relato dirigido aos pais de três páginas, intitulado “A turma: aprendendo a morar

no outro”. Num dos trechos diziam as professoras,

Eles precisam gostar de si mesmos, já que enfrentam modelos de comportamento consolidados pela sociedade. Enfrentamos a discussão do preconceito a partir da analogia com a dor, pois é importante fazê-los refletir como dói fundo e “na alma”, como disse um aluno, sentir na pele o preconceito racial, de gênero e de condição social. Encaminhar essas discussões é garantir seres humanos mais felizes e autoconfiantes. Não deixamos passar nada sem discussão e estamos intervindo imediatamente nas situações em que um colega é desrespeitado. O bem-estar e a felicidade dos amigos vêm sendo tratados como uma responsabilidade de todos nós e é como destampar uma panela de pressão, pois várias situações antes silenciadas vêm aparecendo em nossas discussões. Os resultados também começam a aparecer. Algumas crianças reagiam chorando, outras com indiferença... Como professoras, nos colocamos como responsáveis por cada gesto do coletivo. A relação de confiança está crescendo e eles têm trazido tudo para as rodas. Os que mais sofriam estão se fortalecendo e estão rompendo o silêncio. Temos a hipótese que parte dos problemas que a turma enfrenta, inclusive no campo da aprendizagem, podem estar localizados nas relações interpessoais. Esse registro foi entregue antes da reunião acontecer e as professoras

pediram através de uma carta que os pais lessem com e para seus filhos o que havia

sido relatado. A reunião aconteceu com a presença de responsáveis de todas as

crianças e o impacto reflexivo abriu um importante campo de possibilidades para

enfrentar questões que eram delicadas e urgentes para aquele grupo de crianças.

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Contudo, todo o avanço alcançado nas relações com esse grupo apenas indicou que

o trabalho no campo da identidade e da diferença precisa ser permanente e que não

pode estar restrito a ações fragmentadas, mas deve estar presente no currículo

escolar.

No ano seguinte, após ter guardado em silêncio a inaceitável manifestação do

colega, a mesma criança proferiu a frase “Eu não sou chamada para brincadeira de

menina bonita“. Durante uma Roda em que as crianças se auto-avaliavam e

avaliavam todo o trabalho do bimestre, surgiu uma discussão sobre o desempenho

de uma menina da turma e algumas crianças diziam que ela nunca havia sido

inserida pelo grupo de meninas nas brincadeiras durante o recreio, isso a afastava da

turma e provocava certo desinteresse dela nas aulas também. Um dos meninos

trouxe a hipótese de que existia ali preconceito. Em resposta, uma das meninas

afirmou que não era preconceito e que elas eram, inclusive, amigas de X, a outra

menina negra da turma, e pela primeira vez a pequena quebrou o silêncio e a suposta

indiferença, apresentando, com lágrimas, em seu depoimento a frase já citada. Nesse

dia uma aluna do Curso de Pedagogia que estagiava na turma, surpresa com o

debate e com o que diziam as crianças, disse que havia visto ali uma situação limite.

Naquele momento, o investimento realizado permitiu que todos dissessem o que

estavam sentindo e refletia um crescimento do grupo.

Como já foi afirmado inúmeras vezes, o preconceito e as diferentes formas de

discriminações não nascem com a criança. Ao relatar experiências de uma turma dos

anos iniciais, a nossa pretensão é a de promover uma reflexão que contribua com

intensos debates em torno do processo histórico de exclusão do sistema educacional

brasileiro que tem cor, condição social e lugar de moradia. Consideramos que os

Colégios de Aplicação que atuam no ensino, pesquisa e diretamente na formação

dos futuros mestres, podem cumprir num importante papel nestas discussões.

Outra experiência com crianças desenvolveu-se em 2004 no Colégio de

Aplicação da UERJ com uma turma da então 2ª série. Ano de Olimpíadas em Atenas,

boa oportunidade para um projeto envolvendo a Grécia, suas mitologias e sua

influência histórica em todas as áreas do conhecimento. Os conteúdos específicos da

série e projetos paralelos desenvolveram-se a partir das discussões sobre as nossas

origens enquanto povo brasileiro e enquanto seres humanos. Como parte constitutiva

dessa abordagem, a chamada cosmovisão (lendas e mitologias) dos povos indígenas

e africanos; a origem dos números e das linguagens matemáticas; a alfabetização

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cartográfica, com o estudo da constituição do espaço geográfico e da história dos

bairros; a história de vida de nossas crianças, através da produção de auto-biografias.

Partindo de leituras como “Bisa Bia, Bisa Bel” de Ana Maria Machado, e

“Histórias de Avô e Avó” de Arthur Nestrovsk, trabalhamos com entrevistas e o

resgate da memória de outras gerações. O sub-projeto “Relíquias de família” com os

objetos, fotos, roupas antigas, contribuiu para desenvolver o conceito de tempo e

memória, mas também para estabelecer laços afetivos como podemos perceber no

dizer de algumas crianças: “Eu ganhei da minha mãe este objeto, que foi da minha

avó e vai ser dos meus filhos”.

Pensamos no lugar que a história de vida cumpre na formação de identidade.

Os objetos, as fotos, os dizeres dos avós materializam a herança de seus

antepassados num tempo histórico próximo, porém, do ponto de vista sócio-cultural

bastante diferente das experiências vividas pelas crianças. Quando a criança

pergunta sobre suas origens busca a compreensão sobre si mesma e na sabedoria

do passado oferecida nas vozes dos mais velhos, ressignifica o presente e reflete

sobre o futuro que brota do passado.

Preocupávamos em contribuir na construção de uma identidade individual e

social pautada no encontro de etnias, sociedades e visões de mundo. Para tanto,

trouxemos a literatura infantil e suas relações com o mundo e com a história,

entendida em sua dimensão formadora e enquanto construção ativa de uma

comunidade de leitores que acessou leituras das mitologias gregas, africanas e

indígenas. A valorização de conteúdos voltados para a história e cultura dos povos

africanos e indígenas contribuiu para que os pequenos leitores estabelecessem

relações, produzissem sentidos, e nessa interação com o texto, construíssem

conhecimento sobre as nossas origens e a formação cultural de nosso povo. Tal

experiência reforça o nosso entendimento de que certas leis podem contribuir no

desenvolvimento de práticas interculturais e de combate as discriminações raciais.

Pensando nossas experiências no contexto das discussões étnico-raciais em

educação

O ano de 2003 traz uma importante novidade para a legislação educacional

brasileira, a Lei 10.639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino de História da

África e da Cultura Afro-Brasileira, na forma do artigo 26 - A acrescido a Lei 9394/96

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Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em todo o currículo do

Ensino Básico. No rastro das políticas públicas de reparação e ação afirmativa, trata-

se de um marco na história das leis educacionais no Brasil e dá tratamento no campo

curricular a uma demanda histórica do movimento negro.

Ainda é cedo para avaliarmos a repercussão desta legislação nas práticas

escolares e na formação dos professores, entretanto, esta representa um avanço do

ponto de vista institucional, na direção de uma escola como palco de construção de

identidades individuais e sociais contempladas pela diversidade de contribuições

históricas de uma sociedade multicultural e pluriétnica. Já se reproduzem iniciativas

em território nacional de experiências educacionais voltadas para a ruptura com uma

transmissão da cultura nacional de forma universalizante e homogeneizadora.

Partindo desta perspectiva, o presente texto buscará refletir sobre a Escola como

instituição privilegiada para um outro tipo de sociabilidade de crianças e jovens

constituída à luz da diversidade das experiências humanas.

Em junho de 2004, a Lei foi regulamentada pelo Conselho Nacional de

Educação – CNE, instituindo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

das Relações Étnico-raciais e Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

Essas diretrizes foram fundamentadas a partir do Parecer do Conselho Pleno do

CNE, aprovado por unanimidade em março de 2004.

Este Parecer declara explicitamente que se fazem necessárias políticas de

ações afirmativas e de reparação na Educação Básica, na medida em que a

presença do racismo estrutural no Brasil, através de um sistema meritocrático,

“agrava desigualdades e gera injustiça”. E mais, que há uma demanda da

comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos,

no que diz respeito à educação.

Esse reconhecimento requer estratégias de valorização da diversidade. Esta é

entendida como aquilo que distingue “os negros dos outros grupos que compõem a

população brasileira”. Além disso, este reconhecimento passa pela ressignificação de

termos como negro e raça, pela superação do etnocentrismo e das perspectivas

eurocêntricas de interpretação da realidade brasileira e pela desconstrução de

mentalidades e visões sobre a história da África e dos afro-brasileiros.

As diretrizes formulam explicitamente uma perspectiva de inclusão de políticas

de reconhecimento da diferença, nos aspectos políticos, culturais, sociais e históricos,

mas também propõem – estabelecendo uma obrigatoriedade - conteúdos

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pedagógicos nos sistemas de ensino, que por sua vez, se caracteriza enquanto uma

perspectiva nada tradicional na educação brasileira.

Por ser uma legislação que aborda uma temática altamente controversa – as

relações étnico-raciais no Brasil -, no campo educacional, vem mobilizando questões

que se referem à desconstrução de noções e concepções apreendidas durante os

anos de formação dos professores e vão enfrentar preconceitos raciais muito além

dos muros escolares.

De fato, numa breve consulta pelas publicações acadêmicas em curso,

Gomes (2003), Oliva (2003), Valente (2004), Rosa (2006) e Gonçalves e Soligo

(2006), se destacam alguns pilares de enfrentamento para a possibilidade, - e não a

garantia – de aplicação efetiva da Lei 10.639 como: a aliança de professores e

escolas com outros espaços educativos para uma afirmação positiva da diferença, o

enfrentamento teórico contra visões eurocêntricas arraigadas no senso comum

acadêmico, o combate à fortaleza do discurso racista hegemônico na sociedade

brasileira e na educação, e a constatação que até uma reinvenção do conhecimento

humano se faz necessário.

A promoção de uma educação que estabelece a conflitualidade de

conhecimentos ou uma “pedagogia das ausências” (Santos, 2006), nos possibilita

experimentar uma reflexão coletiva para enfrentar aspectos conflitivos e tensões que

se apresentam nas relações entre intencionalidade da Lei 10.639/03 e a formação

docente que, por longos anos, apreenderam concepções, visões de mundo e

enfoques eurocêntricos, não somente por meio da escrita, mas também, por meio de

imagens, hipertextos, fotografias, charges, desenhos e áudios-visuais.

O que está em jogo, portanto, não se limita a disputa política no campo

ideológico e pedagógico, mas também, a partir de palavras e imagens, reforçar e

construir novas representações, novas memórias, novas identidades ou como diz

Boaventura, através de “imagens desestabilizadoras”, se tece a esperança e se

alimenta o inconformismo e a indignação para a construção de uma nova teoria da

história.

Por sua vez, o documento da Conferência Mundial contra o Racismo,

Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata da ONU, reconhece que a

escravidão e o tráfico de escravos foram crimes contra a humanidade, fontes de

racismo e discriminação e deveriam sempre ter sido considerados assim. Tais

injustiças históricas contribuíram inegavelmente para a pobreza e as desigualdades

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vividas pelos povos de origem africana. O termo “reparação” é carregado de sentidos

e foi utilizado e discutido nesse evento, realizado entre 31 de agosto e 8 de setembro

de 2001 na cidade de Durban na África do Sul, que motivou a apresentação de

inúmeras políticas compensatórias para os povos de ascendência africana. Algumas

políticas educacionais brasileiras têm levado em conta, em seus textos legais,

questões discutidas e transformadas em documentos pela Conferência de Durban

que indicou que as áreas da Diáspora africana deveriam reconhecer a população de

descendência africana e as suas contribuições culturais, econômicas, políticas e

científicas.

As desigualdades históricas produzidas em termos de acesso à educação, ao

sistema de saúde, à moradia tem sido uma causa profunda das disparidades

socioeconômicas que afeta as populações negras. Ao longo do século passado, os

movimentos negros defenderam o direito à educação com um fator determinante na

promoção, disseminação e proteção dos valores democráticos de justiça e de

igualdade, elementos essenciais de prevenção e chave para a mudança de atitudes e

comportamentos baseados no racismo e na discriminação racial.

A implementação de políticas de discriminação positiva como ação reparadora

por séculos marcados pela desigualdade social, caracterizados pela violação dos

direitos e interdição do povo negro no acesso à educação, traz para a temática da

cidadania e das políticas públicas atuais de inclusão da população afrodescendente,

a questão do acesso e da permanência desta nas instituições educacionais em todos

os níveis.

A noção de identidade nacional e de raça construídas no Brasil permitiu a

naturalização das desigualdades sociais, serviu para a restrição dos direitos de

determinados grupos e interferiu nos modelos discursivos e no sistema escolar do

pósabolição.

A Proclamação da República veio acompanhada de uma série de medidas

governamentais voltadas para a imigração européia, implementadas tanto para a

agricultura quanto para a indústria, que tinham como um de seus principais objetivos

o embranquecimento da população. Nina Rodrigues, citado por Schwarcz (2004),

acreditava que os negros eram oriundos de raça e cultura inferiores e tenderiam a

desaparecer na convivência com os brancos, porém, era necessário um ajustamento

das raças para que superássemos um fator que nos levaria a uma inferioridade como

povo.

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Schwarcz (2004) apresenta em seu estudo, como as teorias raciais

deterministas e evolucionistas consolidaram uma noção de superioridade racial que

serviria de modelo explicativo acerca das diferenças internas que conduziram o Brasil

para um atraso em relação ao mundo ocidental, pois uma nação de raças mistas

estaria fadada ao fracasso.

Essa concepção constituiu-se vitoriosa por uma larga margem histórica temporal e

norteou os discursos institucionais, os direitos sociais e as políticas públicas que

justificavam um acesso à educação pautado pela desigualdade.

Mattos (2005) ressalta que as teorias do branqueamento surgiram no Brasil

com base na tese de que o branco, “racialmente superior”, predominaria nos

processos de mistura de raças, o que resultou na crescente defesa de que a

imigração européia favoreceria o processo de branqueamento biológico e cultural da

futura população brasileira. A versão mais radical desses determinismos está na obra

do Conde Gobineau, autor do Ensaio sobre as Desigualdades das Raças Humanas,

que defendia a existência de uma hierarquia entre as raças e que as misturas destas

resultaria na degeneração das melhores características de cada uma das raças em

contato. Se por um lado quase todas as versões do “darwinismo social” valorizavam

os tipos puros, de outro, os intelectuais e políticos brasileiros tinham um problema a

resolver tendo em vista a secular mistura étnica que marcou a formação do Brasil.

Houve uma reconfiguração política da noção de “raça” que, segundo a pesquisadora,

interferiu nos modelos discursivos.

A instrução era vista como uma das principais estratégias civilizatórias do povo

brasileiro, para arregimentar pessoas para o projeto da independência. Nas décadas

iniciais do século XIX os governos estabeleciam ou mandavam criar escolas das

primeiras letras, momento inicial da estruturação do Estado imperial. A escola

proposta para as “classes inferiores da sociedade” deveria generalizar os rudimentos

do saber ler, escrever e contar.

Até o final da primeira metade do século XIX a freqüência de crianças negras,

mesmo as livres, é proibida. Porém, essa interdição no acesso às instituições

escolares em nada impedia que tivessem contato com as letras no universo familiar e

comunitário. Muitos escravos se alfabetizavam observando e acompanhando as

práticas de ensino no interior das famílias dos senhores ou aprendiam com os mais

velhos. Após a Lei do Ventre Livre de 1871, o governo imperial passou a exigir que os

senhores de escravos tomassem conta das crianças menores de oito anos de idade.

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A Constituição de 1824 manteve a escravidão respaldada no direito à

propriedade, embora trouxesse a assertiva liberal de que todos os homens nasciam

livres e iguais. A vida, a liberdade, a propriedade e a segurança são quatro direitos

básicos que compareceram ao texto da Carta de 1924. Entretanto, de pouco adianta

o direito à vida se a liberdade destes “nascidos em outros estados nacionais” era

tratada do ponto de vista da exclusão e os atributos ‘liberdade” e “propriedade”

regulavam as relações entre escravos e senhores.

Os pronunciamentos em favor de uma educação para o povo, entretanto, só

se intensificam a partir de 1870, quando ocorre um surto de progresso na economia

brasileira e aumenta consideravelmente a penetração das idéias liberais. O Decreto

7.031 de 06 de setembro de 1878 criou o ensino noturno. No ano seguinte, eliminou-

se a proibição de escravos de freqüentarem as escolas e instituía-se a

obrigatoriedade do ensino dos 7 aos 14 anos.

A educação sempre ocupou lugar de destaque no ideário de luta dos negros

brasileiros, como estratégia de equiparar negros e brancos, dando-lhes

oportunidades iguais e como veículo de ascensão social e integração. Em 1905, as

primeiras entidades negras em São Paulo organizavam escolas e tinham uma

repercussão imediata na sua qualidade de vida. Entre 1906 e 1940, foram registradas

em São Paulo várias associações de assistência, como: Flor de Maio, em São

Carlos, José do Patrocínio, em Rio Claro, Luiz Gama, em Jundiaí e outras. A Frente

Negra Brasileira surge com um programa de ação estruturado em três eixos: Agrupar,

educar e orientar.

Nos tempos atuais, discute-se e implementam-se políticas de discriminação

positiva como ação reparadora por séculos de discriminação. Quando pensamos no

tema cidadania e nas políticas públicas atuais de inclusão da população

afrodescendente, observamos o acesso e permanência nas instituições educacionais

em todos os níveis como uma questão que vem mobilizando intensos debates. O

campo da educação, enquanto um direito social, representa um espaço privilegiado

na luta pela superação das desigualdades.

O que a conferência de Durban considera uma tragédia do passado,

permanece na ordem do dia nos debates sobre a produção da exclusão da

população negra. As gerações que foram tragadas pelo racismo não representam

apenas um passado a ser lembrado, mas uma marca do presente. A igualdade, a

liberdade e a cidadania são reconhecidas pelo Estado como princípios

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emancipatórios, porém os processos de produção da desigualdade e da exclusão

permanecem como elementos estruturantes do desenvolvimento capitalista e não

são questionados.

As Declarações Internacionais e Nacionais que estabelecem princípios e

ações no campo da educação, não se pautam mais na interdição do povo negro, mas

disponibiliza para todos, um direito oferecido em parcelas desiguais. Para um setor da

população, a qualidade e a excelência na educação e, para o setor mais pobre, a

gestão controlada da desigualdade.

Entretanto, existem muitos críticos dessas legislações que defendem que tais

políticas romperiam com o direito à igualdade de oportunidades, trilhariam um

caminho de racialização da sociedade brasileira e acabariam por institucionalizar uma

discriminação. Essas reações geraram duas obras, “Não Somos Racistas, uma

reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor” de Ali Kamel (2006) e

“Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo” de Peter Fry e

outros (2007), somado a um manifesto de intelectuais brasileiros contra o sistema de

cotas que ocupou grande espaço na imprensa.

Peter Fry (2007) ao criticar a Lei das Cotas afirma que quando o Estado obriga

a pessoa a se auto classificar racialmente já celebra as divisões raciais,

“O acesso às universidades era legalmente determinado pela capacidade dos candidatos de chegarem a uma certa pontuação numa prova que ignorava o sexo e a cor (ou seja, as características adscritas pela “natureza”) dos candidatos”. (2007: 158) José Roberto de Pinto Góes (Fry e outros, 2007:61) indica a existência de

idealização caricatural e uma desinformação sobre o nosso passado e estaríamos

diante do risco de nos tornarmos um país de brancos e negros e trocando a

valorização da mestiçagem pelo orgulho racial. Já Demétrio Magnoli (Fry e outros,

2007:65) afirma que seria uma boa idéia ter atribuído ao 13 de maio, o Dia da

Consciência Negra, mas que ao contrário ocorreu uma difamação da Abolição que

“foi uma luta popular moderna, compartilhada por brasileiros de todos os tons de

pele”. E vai além,

“Os revisionistas que fingem celebrar a memória de Zumbi praticam um seqüestro intelectual, despindo a narrativa de seu contexto histórico para fazer do quilombo uma metáfora de seu programa atual de separação política e jurídica das “raças”. Esse é o motivo pelo qual decidiram abolir a Abolição.” (Fry, 2007:66) São muitos os intelectuais e os argumentos contra tais políticas. No que diz

respeito à obrigatoriedade do ensino da história e cultura da África e dos

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afrodescendentes no Ensino Básico brasileiro, as críticas partem de intelectuais e de

professores nas escolas. Algumas questões são levantadas: não seria essa uma

forma autoritária de imposição de conteúdos e de intervenção no currículo como nós

já vimos no período da Ditadura Militar? Os professores estariam diante de mais um

pacote que não construíram? E a história dos italianos, japoneses, árabes, índios e

outros povos que compareceram na nossa formação mestiça? De qual África

estamos falando? Não corremos o risco de perder de vista a heterogeneidade das

histórias e das culturas africanas?

De fato são muitas as Áfricas e os Brasis. A lei 10.639/03, não deve ser

somente um marco de abordagem multicultural e de combate a um tipo de exclusão

que não se faz explicito para todos. Na verdade, o que se espera é que novas visões

e versões sejam experienciadas de forma intercultural, baseadas no diálogo e

respeito mútuo de todas as diferenças étnicas encontradas no Brasil.

O receio da folclorização, da simplificação de abordagens históricas e culturais

acerca do povo africano e de uma racialização da sociedade brasileira, são questões

que precisam ser enfrentadas no debate que está aberto para toda a sociedade.

Porém, alguns intelectuais formam uma frente vigorosa em prol da tese de que “Não

somos racistas”, contestam inclusive as estatísticas que dão conta de uma

desvantagem entre negros e brancos, parecem colocar em segundo plano que a

desigualdade vivida por brancos, índios, negros e outros, reflete o tipo de sociedade

que temos que discrimina por status social, grau de instrução, cor da pele, aparência

física e sexo.

Possibilidades a partir da interculturalidade entre eu e o outro.

Quando um setor da sociedade se organiza e conquista espaços numa

sociedade desigual, alguns antes socialmente alocados podem perder um lugar

anteriormente garantido. Por que alguns brigam para que os “melhores” estejam nos

bancos universitários? Por que estes mesmos não brigam para que todos tenham

oportunidades de freqüentar a universidade? Por que assumir a cor da pele traz

incômodo? Por que não nos perguntamos sobre a necessidade que negros, índios,

portadores de necessidade especiais, homossexuais, mulheres tenham que assumir

uma determinada identidade?

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234

Para um professor não é fácil administrar essas delicadas faces da identidade

e da diversidade. Ao longo de muitos anos estamos sendo formados nos marcos das

desigualdades, dentro de uma ideologia que reforça a hierarquização das relações e

das oportunidades. Não é por menos que uma criança reclama que “eu não sou

chamada para brincadeira de menina bonita”. Assim, a não construção de um

repertório nos marcos da diversidade nos impede de tocar nas feridas das falas e das

brincadeiras preconceituosas de nossos alunos e de valorizar as diferentes

contribuições de povos de diferentes origens.

Antony Zabala (1998) certa vez afirmou que um bom profissional consiste em

ser cada vez mais competente em seu ofício e, para o professor alcançar este

objetivo, faz-se essencial o conhecimento das variáveis que intervém na prática e a

experiência para dominá-la. O autor ainda nos informa que, a concepção que se tem

sobre a maneira de realizar os processos de aprendizagem constitui o ponto de

partida para estabelecer os critérios que deverão nos permitir tomar as decisões em

aula. Por trás de qualquer concepção metodológica se encontra uma concepção do

valor que se atribui ao ensino, assim como certas idéias mais ou menos formalizadas

e explícitas em relação aos processos de ensinar e aprender.

Nesta perspectiva, parte-se da compreensão do fenômeno educativo

enquanto prática social que atua na configuração da existência humana individual e

coletiva, para realizar nos sujeitos humanos as características do “ser humano”. A

educação deve ser entendida em sua historicidade, como um produto das relações

sociais, como ação humana que envolve múltiplas dimensões; econômica, social,

ética, estética. Mas não serestringe a isto.

Vera Candau afirma:

“O multiculturalismo é um dado da realidade. (...). Pode haver várias maneiras de se lidar com esse dado, uma das quais é a interculturalidade. Esta acentua a relação entre os diferentes grupos sociais e culturais”. (CANDAU, 2001) Diante de conflitos, falas perturbadoras e angústias identitárias entre crianças,

o exercício da perspectiva intercultural não pode ser ingênuo. Devemos ter a

consciência de que nas relações sociais não existem somente diferenças, mas

também desigualdades, assimetrias de poder e conflitos. No entanto, a

interculturalidade como proposta pedagógica:

“(...) parte do pressuposto de que, para se construir uma sociedade pluralista e democrática, o diálogo com o outro, os confrontos entre os diferentes grupos sociais e culturais são fundamentais e nos enriquecem a todos (...)”. (CANDAU, 2001)

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235

Concordando com a autora e percebendo as falas infantis, consideramos que

esta é uma questão difícil, pois, como verificamos, tem-se muita dificuldade em lidar

com as diferenças. A sociedade, os professores e a escola estão informados por uma

visão cultural hegemônica de caráter monocultural. O diferente nos ameaça, nos

confronta, e os professores se situam em relação a ele muitas vezes de modo

hierarquizado.

Mas, conforme Candau:

“A interculturalidade aposta na relação entre grupos sociais e étnicos. Não elude os conflitos. Enfrenta a conflitividade inerente a essas relações. Favorece os processos de negociação cultural, a construção de identidades de ‘fronteira’, ‘híbridas’, plurais e dinâmicas, nas diferentes dimensões da dinâmica social”. (CANDAU, 2001) Não podemos esquecer também da contribuição de Bakhtin. Para este, a

linguagem tem dimensões dialógicas e ideológicas, construídas na história: para

entender o texto (o discurso), é preciso entender o contexto. Quando X chora por não

poder participar “da brincadeira de menina bonita” ela disse tudo que vive na pele. As

palavras contêm valores e forças ideológicas - aqui reside também a dimensão

histórica da linguagem. Além disso, comunicar significados implica em comunidade:

sempre nos dirigimos ao outro (no caso os alunos), e o outro não tem apenas um

papel passivo; o interlocutor participa ao atribuir significado à enunciação. Não é a

experiência que organiza a expressão: a expressão precede e organiza a

experiência, dando-lhe forma e direção.

Esses referenciais, para uma prática educativa intercultural num Colégio de

Aplicação, destinado à aplicação de novas metodologias de ensino e aprendizagem e

à promoção de intercâmbios de conhecimento e prática com os alunos das

licenciaturas de outras unidades da Universidade é vital, principalmente quando seus

objetivos referem se as expectativas que confundem-se com o que desejamos, em

suma, para nós mesmos.

Esperamos que as crianças tenham vontade de conhecer e prazer em

aprender, e que, dessa forma, saibam concordar, discordar, relativizar as questões

formuladas e, ainda, que saibam buscar novas informações em diferentes meios e

que possam trocar, através de fecundas relações interpessoais, o resultado de suas

pesquisas e descobertas.

Page 236: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

236

Enfim, desejamos que nossos alunos assumam seu lugar de cidadãos, que

saibam se adaptarem às novas situações e que sejam felizes, se possível. E que

aprendam a morar no outro.

Por outro lado, as questões étnico-raciais que a Lei 10.639/03 suscita na

educação, geram desafios e tensões na dimensão cognitiva e subjetiva dos docentes

e nos espaços escolares. A Lei não é de fácil aplicação, pois trata de questões

curriculares que são conflituais, desconsiderados como relevantes ou questionam e

desconstroem saberes históricos considerados como verdades inabaláveis. A

questão curricular se desdobra também na necessidade de uma nova política

educacional de formação inicial e continuada, para reverter positivamente às novas

gerações, uma nova interpretação da história e uma nova abordagem da construção

de saberes.

Por fim, a aprendizagem que podemos tirar dessas experiências com crianças

negras e brancas, é a necessidade de mobilizar constante e cotidianamente essas

discussões, desconstruir paradigmas e enfrentar inevitáveis conflitos na sala de aula

para articular e promover uma perspectiva intercultural, baseada em negociações

culturais, favorecendo um projeto comum, onde as diferenças sejam patrimônios

comuns da humanidade.

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Page 238: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

238

África e as relações étnicorraciais na educação de jovens e adultos.

Luiz Fernandes de Oliveira80.

Mônica Regina Ferreira Lins81

Introdução

Escrever e falar de racismo e de afrodescendentes no Brasil de hoje, parece

modismo acadêmico ou simplesmente manifestação militante da causa negra.

Principalmente quando diversos segmentos da sociedade brasileira entram numa

polêmica quase titânica sobre a aplicação das políticas de cotas nas universidades.

A intenção deste texto é descrever uma experiência de reflexão realizada no

curso de Extensão de Educação de Jovens e Adultos nos Anos iniciais – contexto

histórico cotidiano e currículo, durante os anos de 2008 a 2010, no Instituto de

Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp – UERJ). Essa reflexão, por sua

vez, gerou certos dilemas e desafios quando se apresentaram temáticas e

conhecimentos históricos acerca da implementação da Lei 10.639/03 que

estabelece a obrigatoriedade do ensino de História da África nos currículos da

educação Básica.

As Imagens desestabilizadoras e a pedagogia do conflito

Nos estudos históricos da civilização humana a ideia de um processo

civilizatório africano anterior ao europeu aparece como grotesco ou obtuso (Luz,

1995). É preciso ter coragem ou ter status acadêmico solidamente consolidado para

afirmar que a África, além de ser o berço da civilização humana, conheceu

processos sócio-culturais, econômicos e políticos muito antes do advento da

civilização ocidental europeia. Mas, este mesmo processo foi interrompido pela

80 Doutor em Educação Brasileira pela PUC – Rio. Ex-professor do Departamento dos Anos iniciais do Ensino Fundamental do CAp-UERJ e Professor Adjunto do Departamento de Teoria e Planejamento Educacional do Instituto de Educação da UFRRJ. 81 Doutoranda pelo Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ, Mestre em Educação Brasileira pela PUC – Rio e Professora Assistente do Departamento de Ensino Fundamental da UERJ.

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239

chegada dos europeus no continente africano e, a partir daí, inicia-se um extermínio

civilizacional que continua até os dias atuais.

As descrições realizadas neste texto versa sobre a utilização de imagens

que se fundamenta nas abordagens teóricas de Boaventura de Sousa Santos

(1996) sobre a pedagogia do conflito e o seu conceito de imagens

desestabilizadoras.

Este autor no texto, Para uma pedagogia do conflito (1996), defende a idéia de

uma educação que parta da conflitualidade dos conhecimentos, ou seja, um projeto

educativo conflitual e emancipatório, onde o conflito sirva, antes de tudo, para

vulnerabilizar os “modelos epistemológicos dominantes”.

Boaventura fundamenta esta posição política e epistemológica, argumentando

que em tempos de globalização, da sociedade do consumo e da informação, a

burguesia internacional tem na tese do fim da história, seu referencial

epistemológico de celebração do presente e da idéia da repetição, que permite ao

presente se alastrar ao passado e ao futuro, canibalizando-os. Com a derrota do

“socialismo” e a consolidação da vitória da burguesia, para o autor, o espaço do

presente como repetição foi se ampliando e, “Hoje a burguesia sente que sua vitória

histórica está consumada e ao vencedor consumado não interessa senão a

repetição do presente. Daí a teoria do fim da história” (Santos, 1996:16).

O autor afirma ainda que essa mesma teoria “contribuiu para trivializar,

banalizar os conflitos e o sofrimento humano de que é feita a repetição do presente”

(Santos, 1996:16). Este sofrimento, por sua vez, é mediatizado pela sociedade de

informação, se transformando “numa telenovela interminável em que as cenas dos

próximos capítulos são sempre diferentes e sempre iguais às cenas dos capítulos

anteriores” (Santos, 1996:16). E mais: “Essa trivialização traduz-se na morte do

espanto e da indignação. E esta, na morte do inconformismo e da rebeldia” (Santos,

1996:16).

Entretanto, Boaventura informa um outro aspecto dessa questão, ou seja,

atualmente as energias do futuro parecem desvanecer-se, pelo menos enquanto o

futuro continuar “a ser pensado nos termos em que foi pensado pela modernidade

ocidental, ou seja, o futuro como progresso” (Santos, 1996:16). Ele nos diz, que os

vencidos da história “descrêem hoje do progresso porque foi em nome dele que

viram degradar-se as suas condições de vida e as suas perspectivas de libertação”

(Santos, 1996:16).

Page 240: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

240

Neste sentido, nas discussões sobre relações raciais e educação, em muitos

espaços educacionais, a questão do conflito é evitada, promovendo o silenciamento

dos que sofrem discriminações e racismo no espaço escolar. Em vários momentos

em seminários e debates, ficam evidentes os relatos de docentes e alunos, que

evitam as discussões sobre racismo e discriminações, ora negando sua existência,

ora reafirmando o mito da democracia racial: “uma vez um aluno disse uma frase

em sala de aula: seu pai, aquele preto! E a professora calou-se” ou “as crianças

negras são chamadas de faveladas e o professor não intervém”.

Para nós, estas situações parecem revelar o que Boaventura (1996) diz sobre

a morte da indignação, do espanto, a trivialização das conseqüências perversas da

sutilidade das discriminações raciais no Brasil.

O enfoque teórico defendido nos debates do curso de extensão, com a

utilização de imagens, foi de um convite à reflexão sobre a necessidade de uma

pedagogia que promova a conflitualidade dos conhecimentos, ou seja,

questionando a idéia do fim da história, afirma a possibilidade de uma outra teoria

da história, que devolva ao passado “sua capacidade de revelação”, isto é, um

passado reanimador que, através de “imagens desestabilizadoras” e da

conflitualidade, nos faça potencializar e recuperar nossa capacidade de espanto e

indignação perante o “apartheid global” e os sofrimentos humanos.

Ou seja, um projeto educativo emancipatório enunciado pelo autor significa,

produzir imagens desestabilizadoras a partir de um passado do povo negro

concebido não como fatalidade, mas como produto da iniciativa humana. Para

Boaventura, a sala de aula teria que se transformar em campo de possibilidades de

conhecimentos dentro do qual há que se optar. Ele esclarece melhor está

formulação afirmando:

“As opções não assentam exclusivamente em idéias, já que as idéias deixaram de ser desestabilizadoras no nosso tempo. Assentam igualmente em emoções, sentimentos e paixões que conferem aos conteúdos curriculares sentidos inesgotáveis.” (Santos, 1996:18) Assim, através de imagens desestabilizadoras, se tece a esperança e se

alimenta o inconformismo e a indignação, mas sem renunciar a proposição de

estabelecer a conflitualidade de conhecimentos, isto é, professores e alunos

discutindo duas ou mais concepções de mundo, suas diferenças e semelhanças e

suas possibilidades de experimentação social.

Page 241: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

241

Imagens da África

Nos debates do curso de extensão com professores e estudantes, iniciamos

com o que já se tem de conhecimento na história oficial: o berço da civilização

ocidental nas suas manifestações artística, cultural, filosófica e política que se

encontra na Grécia Clássica. Mas, um aspecto é ressaltado: a manifestação

religiosa dos antigos gregos.

Esses possuíam uma religiosidade politeísta, onde vários deuses

representavam ou forças da natureza, sentimentos humanos ou heróis mitológicos.

Em muitas iconografias que chegaram até os dias atuais, vemos que na Grécia

clássica se realizavam diversos ritos para venerar os deuses. Dentre esses ritos,

encontramos sacrifícios de animais aos deuses, oferecimentos simbólicos de

comidas e outros objetos.

Porém, um elemento escapa a atenção de diversos estudiosos: um dos

símbolos de Zeus – deus da justiça, do trovão, deus dos deuses - tem como um de

seus símbolos um machado de duas pontas. Além disso, a pólis grega era, no seu

cotidiano, repleta de ritos, cerimônias e, digamos, vivenciada nos homens a

presença dos deuses. Os estudos históricos, já comprovadamente, dataram essas

manifestações em torno de 700 a 500 a.C.

Mas o que isso tem a ver com a África? Aparentemente nada, pois não

temos conhecimentos de que na África foram inventados os jogos olímpicos, a

filosofia, o termo democracia etc. Entretanto, num dos complexos civilizatórios mais

antigos do continente africano, chamado de yorubás, existia e existe, no aspecto

religioso, um entre os diversos deuses que tinha como símbolo um machado de

duas pontas, assim como Zeus. Seu nome é Xangô, deus do trovão e da justiça.

Nos estudos recentes de historiografia não encontramos registros de uma data

precisa da origem das práticas religiosas africanas, mas é majoritariamente datado

aproximadamente em 1000 a.C.

Não é uma coincidência. Diversos estudos, ricos em documentação

arqueológica, lingüística e histórica, divulgados por estudiosos como Ivan Van

Sertima (1985) e Cheikh Anta Diop (1959), registram a presença africana na Europa

antiga. Outro estudioso, Martin Bernal (1987), lingüista e cientista social, professor

da universidade de Cambridge, registrou a existência de raízes africanas e asiáticas

na civilização greco-romana.

Page 242: Relacoes etnicorraciais na_escola.livro_2011doc

242

Poderíamos citar vários elementos dessa influência e de aspectos históricos

negados, como os três papas negros que a história oficial do Vaticano omite e

dissimula82, a presença do metal estanho no norte da Europa, levado pelos

egípcios, as escavações de Schliemann em Tirins e Micena (Grécia) que o levou a

uma conclusão relatada aos seus colegas: “Parece-me que esta civilização

pertencia a um povo africano”. Enfim, a presença africana na Europa antiga é cada

vez mais difícil de ser negada.

Mas e a religiosidade? Será que poderíamos considerar os gregos como

autênticos “macumbeiros”? Eles praticavam ritos “diabólicos” também? Ou seja,

faziam oferendas aos deuses e sacrifícios de animais em plena pólis junto ao

espírito da democracia e da racionalidade filosófica?

Entretanto, a negação escandalosa da história oficial não se refere somente

a influência africana na Europa, mas ao fato histórico relacionado aos povos que

obtiveram os primeiros contatos com os nativos americanos.

Não é possível! Afinal de contas desde que o mundo é mundo, para nossos

estudantes, do ensino médio e fundamental, sempre se afirmou que os primeiros

homens a chegarem nas chamadas “índias ocidentais” foram os europeus. E

mesmo os mais críticos dos historiadores, que após tantas baterias de argumentos

contra o termo “descobrimento”, conclui que, toda a América, incluindo o Brasil, não

foi descoberta pelo europeu. Ela foi, isso sim, conquistada, invadida por ele.

Feita a crítica, segue-se, na maioria dos livros didáticos as diversas viagens

sucessivas de Vicente Pinzón, Vasco Nunez de Balboa, Fernão de Magalhães, etc.

Jamais ocorreu a curiosidade de investigar se outros homens não europeus tiveram

contatos com os nativos de nosso continente. E é um “pouco arriscado” reescrever

a história por causa das novas evidências científicas que afirmam que não foi

Cristóvão Colombo nem Pedro Álvares Cabral quem primeiro tiveram contatos com

os nativos das Américas.

Então vamos falar das identidades entre técnicas de engenharia e

arquitetura das pirâmides egípcias e mexicanas? Não. Com a palavra Elisa Larkin

Nascimento:

Talvez o testemunho mais eloqüente dessa presença africana nas Américas se encontre nas gigantescas cabeças da cultura olmeca, primordial entre as culturas mexicanas. Localizadas no centro do território sagrado desse povo, em La Venta, San Lorenzo e Três Zapotes, as esculturas pesam quarenta toneladas cada, feitas

82 Citado em Nascimento (1996).

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243

de um só pedaço de basalto. Reproduzem com exatidão o tipo étnico africano, a ponto de constituírem retratos perfeitos de guerreiros ou reis nubas. Van Sertima coloca lado a lado fotografias das esculturas e desses africanos, deixando clara a identidade entre ambos. Da mesma forma, justapõe retratos de reis mandingas com esculturas de barro pré-colombianas, representando deuses mexicanos de Vera Cruz e Oaxaca, mostrando a identidade não só dos traços físicos, mas de detalhes, como brincos e penteados. Esses "testemunhos visíveis" reunidos por Von Wuthenau e Van Sertima constituem retratos altamente sofisticados dos africanos nas Américas, imortalizados na finíssima escultura indígena da época. As cabeças africanas aparecem dentro de complexos arquitetônicos que constituem praças cerimoniais-religiosas ladeadas por pirâmides. Essas pirâmides mexicanas são construídas no estilo núbio, com as laterais em forma de escada. Surgem no México sem vestígios de precedente ou antecessor, enquanto na África o milenar processo de desenvolvimento dessa engenharia encontra-se concretamente manifestada nas formas predecessoras encontradas em sítios arqueológicos. Uma série de outras marcas rituais, arquitetônicas, simbólicas, artísticas, mitológicas e tecnológicas dessas praças cerimoniais constituem complexos de fenómenos culturais tão detalhados e específicos que sua comunalidade à África e Américas ultrapassa as possibilidades da mera coincidência. A partir do período de elaboração das gigantescas esculturas olmecas, entre 900 e 500 a.C., Van Sertima identifica os africanos retratados como possíveis integrantes da poderosa marinha mercante e bélica núbia, e propõe esse período de contato como sendo o mais importante entre uma série de visitas africanas às Américas. (NASCIMENTO, 1996:70)

O desconhecimento e a omissão de que os africanos conheciam as técnicas

de navegação resulta do preconceito eurocêntrico da existência de grandes

civilizações africanas anteriores às européias. A experiência de navegação, por

exemplo, em alto mar de algumas civilizações africanas, eram superiores à dos

europeus do século XV. Nascimento ainda cita:

Tecnicamente, os navios africanos eram sensivelmente superiores às caravelas européias de dois milênios mais tarde. Suas estruturas, em papiro ou madeira costurada, eram flexíveis e portanto agüentavam melhor o impacto das águas em tempestades. Utilizavam, ao mesmo tempo, o remo e a vela, o que permitia a propulsão do navio nas calmarias. Colombo e seus colegas, ao contrário, dependiam unicamente da vela, ficando dias ou semanas parados no meio do mar. (NASCIMENTO, 1996:70)

Outros registros da presença africana nas Américas vêm de tradições orais

dos Maias no México e do Império do Mali, no século XIV, este último relatando as

histórias de Abubakari II, conhecedor das correntes marítimas do oceano atlântico,

que os africanos chamavam de “rios dentro do mar” (Cunha Jr., 2000).

Um dos últimos registros históricos acerca da capacidade civilizacional de

algumas sociedades africanas foi divulgado por Alberto Costa e Silva (1996) em seu

livro – A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses, onde relata que várias

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244

civilizações, além do império do Mali, reino da Núbia e civilizações da costa oriental

da África, tiveram contatos com a Índia e a China, através do comércio marítimo.

Costa e Silva cita, por exemplo, os reinos e impérios de Gana (século VI ao

XIII), Napata e Méroe (sul do Egito na época dos Faraós) que conheciam as

técnicas de metalurgia, as armas de ferro, espadas de bronze, criação de gado, a

enxada, pequenas indústrias têxteis, comercializavam bijuterias, perfumes e panos

de algodão, fundição do ferro, plantação do arroz, etc. O império do Mali, por

exemplo, conhecia as estruturas de Estado com reis ou governantes. Existiam

grandes cidades-estados como Pemba, Zamzibar, Quiloa, todas na África oriental.

Tal idéia para uma visão histórica eurocêntrica é uma quimera, pois foi, e é mais

fácil afirmar que os africanos são uma “raça menor e carente de lei”, faltando-lhes

instituições de governo. Mesma idéia que tiveram quando do contato com os

nativos das Américas.

Nossa juventude em idade escolar, assim como grande parte de nossa

geração de historiadores e sociólogos, jamais soube desta outra história, pelo

contrário, o que é relatado, por exemplo, é que o mundo que era conhecido até

1490 se restringia a Europa, parte da Ásia, o Egito e o deserto do Saara. Expresso

em diversos Atlas geográficos, essas regiões são iluminadas em cores claras e o

resto do mundo na escuridão, desconhecida, sem história, sem homens de carne e

osso e quando foram “descobertas” eram “animistas”, “sem lei e sem governo”,

“sem fé”, muito semelhante aos macacos.

Nos debates do curso de extensão não nos limitamos somente à histórias

desconhecidas. A negação da história (que no nosso caso demonstra uma das

dimensões do racismo) se revela até mesmo no que há de mais evidente: a

iconografia do Egito antigo. Talvez com a exceção de alguns poucos livros

didáticos, o Egito não é descrito como uma grande civilização negra-africana. Mas

muitos docentes, mesmo os progressistas, não racistas, de esquerda, continuam a

divulgar o filme Cleópatra, estrelado por Elisabeth Taylor, no caso branca, para seus

alunos. Não é necessário citar também, por exemplo, outras dezenas de filmes

americanos ou a pintura do inglês Edwin Long, de 1885, onde retrata ao centro uma

mulher branca da nobreza egípcia e uma mulher negra à esquerda que é a escrava.

Na contramão do senso comum histórico poucos se arriscam a dizer que a

maioria dos egípcios era africana e tinha a pele negra ou “escura”, fato que fica

evidente em qualquer ilustração, figura ou desenho do Egito antigo.

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245

Alguns professores no decorrer dos debates afirmam: “Mas não é verdade

que a África não aparece na história!” Correto, mas seu aparecimento, quase que

por um milagre, ocorre somente no século XIX, sob o titulo “a partilha da África

pelas nações européias” e só retorna no capítulo da descolonização, resultado da

crise do colonialismo e do início da guerra fria. Ou seja, graças a processos

históricos eurocêntricos e norte-americanos a África toma seu posto na história de

forma subordinada.

Em livros didáticos de geografia e história, o continente africano sempre

apareceu como uma tragédia e território devastado por guerras interétnicas83.

Porém, mais uma vez se omite um processo histórico que afirmamos antes: o

extermínio deliberado da África que se inicia com a chegada dos europeus.

Conseqüência deste processo histórico, nunca na história da humanidade a

sobrevivência do povo negro esteve tão ameaçada quanto agora, tanto na África

como fora dela. Os índices abaixo explicitam esse extermínio:

No continente africano, quatro milhões de crianças morrem anualmente

vítimas de doenças endêmicas (sarampo, malária, cólera, etc.). Dois terços dos

portadores do vírus HIV de todo o planeta encontram-se na África (cerca de 34

milhões de pessoas). Estima-se que no decorrer da primeira década do terceiro

milênio dois milhões de homens, mulheres e crianças irão morrer vítimas da

doença. Somente em 1998, a AIDS vitimou os mesmos dois milhões de pessoas,

com a média de 5.500 mortes por dia.

Por imposição de séculos de dominação e do imperialismo a África negra

está na contramão da história. Enquanto nos países centrais a expectativa de vida

aumentou, em média, vinte anos, desde o início do século XX, na África a

expectativa de vida vem caindo de forma alarmante. Segundo projeção realizada

pela divisão de população da ONU, na primeira década do novo milênio, a

expectativa de vida no Zimbabwe vai cair em mais de um terço, de sessenta para

algo em torno de quarenta e um anos. Em Botswana a situação é ainda mais

dramática, com uma queda que atingirá a faixa dos vinte e nove anos. Este quadro

nos coloca diante de uma dura realidade: viver, para uma parcela significativa da

população do planeta, não passa de um pequeno lapso de tempo entre nascer e

morrer.

83 Esta prática vem paulatinamente mudando com as pressões dos movimentos negros e dos agentes que tentam interferir nas políticas públicas de promoção da igualdade racial na educação (Oliveira, 2010).

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246

No Brasil a realidade não é diferente. Estudos recentes apontam que o

Índice de Desenvolvimento (IDH) da população branca situa-se entre as populações

dos países de médio desenvolvimento; em contrapartida o IDH da população negra

situa-se atrás de muitos países africanos. Nem nos USA a realidade do povo negro

é diferente. O relatório da ONU de 1998, que mede o Índice de Pobreza Humana

(IPH) colocou os Estados Unidos na última posição entre os países de alto

desenvolvimento com um grau de pobreza entre afro-americanos semelhante ao

verificado na África e no Brasil.

Portanto, discutir racismo nas escolas de ensino fundamental e médio com

nossos estudantes é também reescrever a história mundial, é afirmar que a riqueza

das nações desenvolvidas, a chamada acumulação primitiva de capital, foi feita

graças ao extermínio de populações inteiras do continente africano. É também

perceber que a negação dos afrodescendentes, de sua identidade é a negação de

nossa história milenar.

Em um dos debates no curso de extensão, uma professora afirmou: “então

nós devemos estudar a história novamente.” A resposta era obvia: sim, porque se

aprendermos que nossos ancestrais estavam construindo grandes civilizações, que

dominavam técnicas de navegação, agricultura e de metalurgia, que tinham uma

relação com a natureza não predatória, que expressavam uma cultura

extremamente rica etc., talvez teríamos o orgulho de sermos a segunda maior

nação negra do planeta, e não estaríamos nos questionando quem é e quem não é

negro no Brasil. Enfim, teríamos nossa autoestima no posto que ela deveria estar, e

de consequência, talvez não brigaríamos por meras cotas que no fundo não nos

tornam totalmente visíveis na sociedade. Nossos estudantes teriam orgulho de

afirmar que também são filhos de nossos ancestrais africanos.

Concluindo

O problema da invisibilidade da história africana no ensino médio e

fundamental é mais de fundo. A Lei 10.639/2003 que institucionaliza o ensino

obrigatório de história e cultura afro-brasileira corre o risco de se tornar letra morta

se o currículo escolar não for efetivamente reescrito e repensado. Por sua vez, as

licenciaturas ainda não formam plenamente os professores para o conhecimento da

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247

história e das culturas africanas, que existe em poucos cursos na grade curricular

do ensino superior.

É comum o ensino sobre a “influência” africana na formação da população e

da cultura brasileira, pois para alguns se trata de fazer justiça para essa população

afrodescendente e, para outros, significa mostrar o sofrimento do povo negro, que

apesar de tudo, foram “capazes” de “contribuir com nossa cultura”. Mas o

sofrimento não é profissão de fé dos descendentes de africanos em nossas terras.

Como se sabe, em diversos estudos sócio-antropológicos, aqui no Brasil, culturas,

histórias, conhecimentos e resistências foram produzidas.

A proposta de inclusão do ensino de História e Cultura da África e dos

afrodescendentes nos currículos de ensino fundamental e médio, além da

Educação de Jovens e Adultos, acrescidos de livros, indicará uma necessária

mudança na formação dos professores e uma real concretização dos debates sobre

a aplicação do enfoque intercultural no campo educacional brasileiro.

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