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RELAÇÕES DE TRABALHO E PATRIARCADO EM SANTA MARIA-RS NA
DÉCADA DE 1950
NARA ZARI LEMOS BUDIÑO
Universidade Federal de Santa Maria-RS
1. Introdução
Através da análise de processos judiciais trabalhistas encontramos relações de
gênero que permeavam as relações de trabalho. Nesse sentido abordamos a violência
nas relações de trabalho, porém com fulcro na violência física contra a mulher. Outra
questão abordada é a visão do trabalho feminino como libertação e/ou necessidade
econômica. Sempre com vistas àquilo que a sociedade da época pensava do trabalho
feminino, com vistas a “duas mulheres” da época estudada.
2. Gênero ou patriarcado?
Para alguns autores o conceito de gênero é aberto, pois quando se fala em
violência, afirmam que ela se dá entre homens e mulheres independente do autor(a) da
violência. Ou seja, quando um homem é vitimado por uma mulher há uma violência de
gênero. Diante disso defendem que a violência contra a mulher advém do patriarcado,
que sob o ponto de vista histórico vem da antiguidade (Roma).
A sociedade na qual vivemos é patriarcal, logo o mais correto seria afirmar que
a violência provém do patriarcado. Patriarcado que se consolidou ao logo da História.
Ainda que não haja preocupação em falar sobre violência doméstica, convém referir que
muitas vezes ela advém de um comportamento incentivado e consentido dentro do lar.
Logo, os comportamentos de homens que enxergam a mulher como um ser inferior não
inicia no ambiente de trabalho, mas é a reprodução das vivências do lar.
A expressão violência doméstica costuma ser empregada como sinônimo de
violência familiar e, não raramente, também de violência de gênero. Esta,
teoricamente, engloba tanto a violência homens contra mulheres quanto a de
mulheres contra homens, uma vez que o conceito de gênero é aberto, sendo
este o grande argumento das críticas do conceito de patriarcado, que, como o
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nome indica, é o regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens.
(SAFFIOTI. 2007, p.44).
Não podemos deixar de concordar com a autora no que diz respeito ao conceito
de patriarcado e de como ele se estruturou ao longo da história. Porém, o termo
“gênero” representou um avanço nas pesquisas históricas, mormente naquelas que
diziam respeito à História das mulheres. Louise Tilly, citando Davis na “Conferência de
Berkshire sobre a História das Mulheres” afirmou que nascia ali uma nova forma de ver
a significação dos sexos no passado histórico. A utilização conceitual de “gênero”
passou a ser feita com uma abordagem sócio-histórica com vistas a um engajamento
político promovendo a igualdade dos gêneros e o acesso das mulheres à sua autonomia
individual e ao poder político e econômico (1994, p.42). Diante disso concluímos que
os dois termos tem sua importância, entretanto o termo “gênero” constituiu um avanço
para as mulheres. Além do que este é o termo mais utilizado nos trabalhos acadêmicos,
demonstrando que, de forma majoritária a palavra “gênero” foi acolhida pelos
historiadores.
3. Violencia moral nas relações de trabalho, imaginário e construção social de
identidades.
As mulheres trabalhadoras, especialmente quando vitimadas pela violência, na
época abordada (1950), eram invisíveis aos olhos da sociedade, e tal violência
justificada diante de uma sociedade patriarcal. A violência contra a mulher perpassa por
uma análise histórica, não só justificando o porquê da sua existência, mas também
pensando na conivência da sociedade como um todo. Ela advém da inferiorização de
uma classe social pela outra: a classe dominante sobre a classe dominada. Nesse
sentido, não se pode dizer que a luta das mulheres se dá apenas enquanto trabalhadoras,
dentro das relações de trabalho, mas dentro de um todo social, inclusive no lar. Sendo
assim, trata-se de uma luta de classes.
A sociedade é machista e sexista, por essa razão as ideologias machistas são e
foram lançadas desde sempre, sem que a sociedade percebesse tal coisa. Ideologia que
vemos presentes entre homens e mulheres, por isso poucas mulheres questionavam sua
inferioridade social. Havia, portanto, uma gama de mulheres machistas. O sexismo
refletia uma estrutura de poder, onde a distribuição era desigual (SAFFIOTI, 2007,
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p.35). Por tal motivo entendemos que a violência encontrada nos processos judiciais
advém de algo maior do que simples discussões entre colegas de trabalho e seus
empregadores. Tratava-se de uma ideologia que pairava sobre toda a sociedade da
época.
Ideologias e identidades culturais são construídas ao longo do tempo, onde há
um processo de assimilação/submissão de um sujeito a outro ou de uma comunidade
sobre outra. A comunidade “maior” assimila a “menor” que se apropria dos valores do
grupo dominantes (MARTINS, 2007, p.40). Talvez isso explique a razão de algumas
mulheres acharem “normal” viverem sob a chancela masculina, aceitando e
reproduzindo imagens construídas ao longo do tempo.
As imagens construídas pela sociedade sempre foram e são muito fortes, na
década de 1950 se construía uma imagem de mulher, que na verdade eram “duas
mulheres”. Aquela para a qual o trabalho era imposto pelas condições socioeconômicas
da época e, outra cujo destino seria o casamento tradicional. A imprensa da época,
representada nacionalmente pela revista “O Cruzeiro”, trazia anúncios de cosméticos
para moças casadoiras e mulheres casadas; matérias sobre como seria difícil manter o
casamento e a vida profissional, alertavam as jovens sobre os ‘impulsos” de seus
namorados, sem, porém, falar da sexualidade feminina (MARTINS, 2011, p. 156).
O surgimento de uma mulher mais independente e as ideias feministas, que
chegavam de outros recantos do mundo surgido com o fim da Segunda Guerra, parecia
aterrorizar a sociedade brasileira como um todo.
No Brasil estava sendo construído um novo ideal feminino. A mulher havia
conquistado o direito ao voto em 1934, e o viu de fato implementado a partir das
eleições de 1946, ela buscava ser, também, senhora do seu destino. Apesar da forte
estratégia da imprensa era o momento de pretender mais, e nesse sentido havia uma
mulher consciente de seus direitos. Era o momento de se emancipar, e o trabalho que
outrora era uma questão de sobrevivência tornou-se um fator de liberdade. Entretanto,
há quem defenda que as relações de trabalho nem sempre abriram as portas para a
emancipação feminina, existindo um efeito contrário: As relações de trabalho no
capitalismo são permeadas de ideias onde se defendia que ele abriria as portas para a
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emancipação feminina, porém para Saffioti era o contrário do que ocorria. Seguindo tal
entendimento Renata Gonçalves faz a seguinte referência:
Na contramão dos que entendiam que o capitalismo abria portas para a
emancipação feminina por meio da entrada das mulheres no mercado de
trabalho, Saffioti advertiu que era o contrário que ocorria. O modo de produção
capitalista alija força de trabalho do mercado, especialmente a feminina. Os caracteres raciais e de sexo operam como “ marcas sociais que permitem
hierarquizar, segundo uma escala de valores, os membros de uma sociedade
historicamente dada (p.60). Isto não significa que estes caracteres contém em si
a explicação da totalidade ou as determinações de um sistema. São subalternos.
E, como tais, “operam segundo as necessidades e conveniências do sistema
produtivo de bens e serviços, assumindo diferentes feições de acordo com a
fase de desenvolvimento do tipo estrutural da sociedade (p.60).
(GONÇALVES, 2013, p.17)
A mulher ao ingressar no mercado de trabalho o fazia por dois motivos:
complementar a renda familiar e/ou tornar-se mais independente, emancipar-se. Ocorre
que a visão da mulher reclusa no lar, cuidando da casa e dos filhos foi bastante
valorizada na década de 1950. Por tal motivo a mulher trabalhadora foi amplamente
marginalizada, e, de forma contrária, se deu uma valorização/idealização daquela que
ficava em casa. Vários grupos sociais como sindicalistas, industriais, assistentes sociais
contribuíram ativamente para a criação dessas duas imagens antagônicas da mulher
(WENSTEIN, 1995, p.143).
Existindo duas imagens femininas há margem para a violência, seja moral ou
física. Ora, se existia uma imagem “cultuada” daquela mulher que ficava em casa,
qualquer violência praticada contra a mulher trabalhadora era justificável e aceita pela
sociedade. Tratava-se de simbologia oriunda de uma sociedade patriarcal, símbolos
aceitos e difundidos pela imprensa da época, como na revista feminina “Revista
Querida”. Lá encontramos frases que condenavam o empoderamento da mulher. Sendo
assim, pode-se dizer que toda violência se justificava ou se justifica, no momento em
que o ‘outro” era ou é visto como “menor”.
Obviamente não se está dizendo que a mulher que não estava no mercado de
trabalho não sofria violência. A violência doméstica fez parte, e faz parte da vida da
mulher, e, naquele momento, não era diferente para aquelas que trabalhavam dentro do
lar. Porém, o que se afirma é que a violência, oriunda do patriarcado, deixava os lares e
se reproduzia no ambiente de trabalho. A violência que nos referimos tem sentido
amplo, logo nas relações de trabalho ela é de ordem moral, pois, neste trabalho
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utilizamos processos judiciais trabalhistas. A violência física foi encontrada contra as
trabalhadoras em processos criminais, porém eles serão analisados em um trabalho
futuro. Naquele momento não se pensava na questão da violência moral nas relações de
trabalho, este tema é novo para aqueles que operam o Direito e atualmente recebe o
nome de “assédio moral”. Porém, tentamos demonstrar que embora sem nomenclatura
própria, o assédio moral já ocorria nas relações de trabalho. Contra a mulher tratava-se
de uma violência de gênero, com origem no patriarcado.
A ideologia dominante estava presente sobre as questões referentes ao
patriarcado, e a forma que as relações de gênero eram colocadas para a sociedade da
época. Porém, a história das mulheres não deve ser vista apenas como uma história de
opressão seja qual for o recorte escolhido pelo historiador. Nesse sentido não
concordamos com Saffioti, pois a conscientização da mulher como sujeito de direitos a
torna protagonista de sua história. Embora o capitalismo tenha trazido para a mulher um
acúmulo de tarefas diárias, não podemos vê-las, tão somente, como um ser oprimido.
Historiadores como Thompson e Hobsbawn se preocuparam em analisar as
relações sociais de baixo para cima, abandonando o enfoque opressor-oprimido, e
pensando os sujeitos da história. Nesse sentido a história das mulheres, sua luta e suas
conquistas devem ser vistas além da opressão, pura e simples, mas a partir das
estratégias pensadas para vencer a opressão (MARTINS, 1997/98, p.141). Tratava-se da
palavra, da luta e das ações das mulheres para viverem sob os sistemas opressores. A
Historiadora citada entende que o trabalho de Thompson foi bastante importante para
entender a questão do trabalho da mulher e sua importância no processo de formação da
classe operária.
O trabalho histórico-conceitual de Thompson deu suporte teórico para
os estudos sobre a participação política das mulheres no processo de formação
da classe operária, assim como contribuiu para o alargamento da noção de
política, com seus estudos sobre a racionalidade das ações coletivas e de
práticas culturais, que até então eram consideradas reações instintivas ou
exemplos do atraso e da barbárie das classes baixas- como os motins de
subsistência e venda de esposas, por exemplo. As historiadoras marxistas viam
no trabalho de Thompson um grande aliado para o entendimento das
experiências femininas na história, bem como um efetivo aporte teórico para analisar os sistemas de exploração sem cair no determinismo econômico (idem,
p.146).
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Quando se escolheu abordar o trabalho feminino, o patriarcado e a violência
houve o seguinte pensamento: nem todas as mulheres que trabalhavam o faziam apenas
por necessidade material. Afinal o mundo não se move apenas por questões econômicas,
existe a consciência do ser humano, e, sobretudo o direito de ser protagonista da sua
história.
Na década de 1950 o trabalho fora do lar, apesar da manipulação midiática da
época, também era um fator de liberdade, de determinação. Era um desejo que ia além
das necessidades econômicas. Perrot ao analisar o movimento operário e as greves
femininas na França do século XIX comprovou que a mulheres estavam presentes nas
greves buscando direitos, apesar de serem taxadas de loucas ou devassas pela sociedade
de época (PERROT, p.164). Ora, embora Perrot tenha seu trabalho em outro recorte de
tempo, pode-se comparar a luta das mulheres no que tange a busca por direitos e a luta
por reconhecimento como sujeitos da sua história. Nesse sentido abordaremos duas, de
muitas histórias, que encontramos nos processos judiciais trabalhistas em Santa Maria-
RS da década de 1950.
4. O cantar e a opressão!
Ela era jovem, tinha dezenove anos. Trabalhava como chapeleira, no mesmo
lugar desde 1953, e gostava de cantar! Cantava enquanto se debruçava sobre a máquina
de costura da confecção na qual trabalhava. Isso de nada atrapalhava o seu trabalho,
pois estava com as mãos livres e estas continuavam a trabalhar, a produzir mais e mais
chapéus. Nesse processo, que tramitou entre os anos de 1958/1959, vemos uma jovem,
que trabalhava por um parco salário, reprimida por um “chefe” que lhe impunha o
silêncio, impedindo-a de cantar. Ora, mas se ela usava as mãos para trabalhar, por que
não poderia cantar? O chefe da sua secção era implacável e lhe deu duas suspensões
sendo a primeira por quinze dias e a outra por trinta dias sem direito à remuneração.
Retornou ao trabalho após a segunda suspensão e foi demitida sem nada receber,
ingressou na Justiça do Trabalho, no mesmo ano.
A reclamante alegava que não havia justificativa para a sua demissão, porém
durante a instrução processual sua superior imediata alegou que após retornar da
primeira suspensão a jovem passou a chamá-la de “velha”. Afirmou que a moça
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cantarolava: “a velha não quer que eu cante”. Disse ainda que a reclamante teria
ficado insuportável, pois além de cantar e, cantava muito mal, lhe ofendia, chamando-a
de velha. A decisão da Justiça do Trabalho foi contrária à reclamante, mantida a
demissão e os dias suspensos não lhe foram pagos. O juiz entendeu que ela dera causa à
demissão, forte no art. 482, h, da CLT, pois a empregada havia infringido o artigo já
mencionado, agindo com indisciplina ou insubordinação. Em 2ª instância teve ganho de
causa e recebeu pelos dias suspensos, férias vencidas e salários impagos.
Ao analisar a fonte verificamos que a indisciplina ou insubordinação se deram
após a proibição de cantar enquanto trabalhava. Claro que uma pessoa jovem iria se
rebelar contra a atitude do patrão e de sua superior. Mas, sobretudo devemos lembrar
que independente de ser jovem, havia na reclamante a consciência de seus direitos, uma
consciência de classe. Ela não só se via trabalhadora, mas sentia-se dessa forma. A
reclamante sabia que não podia ser tratada assim, e por isso afrontou sua superior
imediata.
A verdade é que houve uma sucessão de erros por parte de todos, que culminou
com a demissão da jovem. Salientando que o comportamento da jovem foi de reação, ou
seja, reagir contra aqueles que a oprimiam. Porém ao rebelar-se no trabalho, talvez de
forma incorreta, ofendendo sua superior imediata, o fez isentando o empregador de
culpa. Expressando toda a sua indignação contra outra trabalhadora, tão subordinada
quanto ela. Nesse sentido se depreende que as relações patriarcais estavam presentes de
forma a dominar, simbolicamente, a sociedade da época.
Os fatos devem, portanto, receber uma análise mais pontual, senão vejamos: A
primeira suspensão se deu pelo fato dela cantar, e a segunda por ofender sua superior.
Mas, por que não deixar a moça cantar? Cantar durante o trabalho não poderia ser visto
como indisciplina. Suspender o empregado era uma forma de “preparar” uma futura
demissão por justa causa ou fazer com que o empregado se adequasse às normas
impostas pelo patrão. No caso em tela o objetivo precípuo foi fazê-la mudar de atitude.
Para tanto foi tomada contra ela uma atitude disciplinadora para não dizer repressora
e/ou punitiva.
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A demissão é uma forma de punir, realmente tem o caráter punitivo. Resta saber
se a moça foi demitida por que cantava ou pela afronta aos demais, que, no
entendimento do patrão, merecia uma punição. Lembrando, ainda que a jovem foi
suspensa sem perceber o salário, ora essa é a forma mais vil de tratar o trabalhador,
pois, lhe tiram do trabalho e lhe retiram a forma de sustento. Infelizmente não se pode
afirmar com base na fonte pesquisada qual era a situação dessa jovem, ou seja, se era a
única responsável pelo sustento de seu lar ou não. Porém o caráter punitivo da demissão
e o fato da norma legal ser exemplificativa, dava e dá margens para várias
interpretações.
As normas contidas na CLT, em seu artigo 482, tinham por objetivo moldar o
trabalhador, determinando como ele deveria se comportar no ambiente de trabalho.
Gize-se que o texto legal tem caráter exemplificativo, afinal quando a lei usa a
expressão “ato de indisciplina ou insubordinação”, quem determina quais atos se
enquadram nesse artigo de lei é o empregador, ou seja, ele poderia desconsiderar a
cantoria, mas não o fez. Esses enunciados legais eram vistos de forma mais ou menos
fortes conforme as tensões sociais do tempo no qual eram aplicados pelos juízes. O
objetivo era moldar um trabalhador padrão, um “bom trabalhador” (SCHMIDT, 2013,
p. 174).
Aqui vemos como as relações de gênero tem importância para a história da
Justiça do Trabalho, pois vemos um homem determinando a uma mulher operária, o que
seria bom ou não para o trabalho. Lembrando que em nenhum momento foi feito
referência à falta de rendimento no trabalho da reclamante, apenas alegavam que era um
ato de insubordinação. Tratava-se, portanto, de uma forma de repressão.
A mulher sempre sofreu as condições impostas por uma sociedade patriarcal, ou
seja, o modo de ser, viver ou pensar imposto pelos homens, considerados seres
superiores desde sempre. A violência era comum, vista como algo justificável, e,
infelizmente ainda hoje nos deparamos com atitudes similares, mas nos anos de 1950
poucas mulheres tinham coragem de se levantar contra isso. Fazemos tal afirmação com
base no número de processos trabalhistas movidos por mulheres, que são inferiores
àqueles movidos por homens.
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A moça que gostava de cantar, embora tenha buscado seus direitos e isso deve
ser visto como consciência de classe, não se rebelou contra aquele que o oprimia, ou
seja, seu “chefe” (palavra utilizada na fonte pesquisada). Promoveu, sim, um ato de
rebeldia, porém escolheu outra mulher, silenciando com relação ao chefe de secção, que
era um homem. A reclamante se negou a resiliência, mas atacou outra mulher. Como se
pode ver, as relações de patriarcado estão inseridas em nossa sociedade. O patriarcado
tem seu apoio nas relações familiares onde um homem é hierarquicamente superior a
qualquer mulher da casa, e tais relações de subordinação ultrapassam as relações
domésticas e contaminam toda a sociedade. Trata-se de um tipo de relação que invade
todos os espaços da sociedade (SAFFIOTI, 2007, p. 40).
Quando analisamos o processo da “moça que cantava” verificamos que as
relações de poder iam além da luta de classes, por excelência, ou seja, da relação
patrão/empregado. Como já dissemos existia algo muito maior, qual seja a subordinação
que era imposta à mulher em relação à figura masculina. Relação que ultrapassava
aquelas impostas dentro do lar, da casa das pessoas, por que homens, geralmente,
detinham a maioria dos postos de comando. Como já citamos relações de natureza
patriarcal contaminavam a sociedade como um todo. No mais verificamos, ainda, que as
relações opressão eram incentivadas pelas outras mulheres, e pela própria reclamante,
pois ao afrontar alguém superior a ela o fez contra outra mulher.
Podemos dizer ainda que ingressar com o processo foi um ato de coragem e
rebeldia por parte da jovem. Processos vistos sob o ponto de vista da História devem ser
analisados segundo o momento vivido pela sociedade, e o Brasil havia saído de um
período ditatorial, a mulher teve o direito ao voto efetivado, enfim era a busca pela
cidadania, um exercício de cidadania.
5. A mulher e o trabalho, uma relação contraditória: As duas mulheres da época.
Durante a década de 1950 surgem publicações com reportagens direcionadas ao
público feminino, todos girando em torno da mulher esposa/mãe/dona de casa. A
sociedade se esforçava para reforçar tal padrão, incentivando a mulher a ler, aprender a
tocar piano, bordado, casar-se e ser uma ótima esposa. De outra banda as mulheres das
classes mais pobres eram incentivadas a trabalhar devido à sua condição
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socioeconômica, muitas delas eram as únicas responsáveis pela manutenção dos filhos.
Sendo assim temos duas mulheres em nossa sociedade (GOMINHO, 2009).
Quando dizemos que há uma relação contraditória entre a mulher e trabalho nos
referimos ao entendimento antagônico sobre o tema. A sociedade ao mesmo tempo em
que incentivava o trabalho da mulher, também o reprimia com os conceitos ou
preconceitos da época.
No caso de São Paulo, entre as décadas de 1910 e 1950, se pode observar uma
diminuição de papéis trabalhistas aceitáveis com relação às mulheres,
ativamente promovida por representantes de diversos grupos, a tal ponto que só
permanece legítimo o papel de "dona de casa". Ainda que os empregadores,
dirigentes sindicais, educadores e assistentes sociais, não sejam aqueles que
inventaram a categoria "mulher trabalhadora", é evidente que contribuíram
ativamente para a criação de duas imagens antagônicas da mulher: a imagem
marginalizada da mulher que trabalha por dinheiro e a idealização da dona de
casa. Os industriais e particularmente os educadores desempenharam um papel
ativo na formulação dos programas e regulamentações que serviram para
estabelecer definitivamente os papéis adequados à mulher. (WEINSTEIN, 1995, P.144)
Exemplos como esse também foram encontrados nos processos pesquisados,
senão vejamos: A bordadeira e a mulher “bem casada”. A bordadeira foi admitida, pela
mulher “bem casada” em fevereiro de 1953, trabalhava em domicilio e por produção,
em abril de 1954 foi demitida sem receber indenização e o salário mensal. Ingressou
com o pedido na Justiça do Trabalho de Santa Maria no mesmo ano. Após a primeira
audiência a reclamante, depois de ouvir a defesa proferida pelo Advogado da reclamada
desistiu do processo, não esclarecendo o motivo.
O processo não foi adiante, porém dele se pode extrair a visão de parte da
sociedade sobre a mulher e o trabalho. O advogado da reclamada disse que a sua cliente
era esposa de um renomado médico da cidade, por tal motivo “a sua função era no
recesso do lar” e, se fosse trabalhar como comerciante seria imprescindível a
autorização do marido. Realmente a autorização do marido era requisito legal para o
exercício do comércio, porém a forma como foi colocado nos autos nos leva a crer que
o trabalho fora do lar era motivo de desonra para mulheres “bem casadas”. Cruzando as
fontes pesquisadas fica claro que o trabalho feminino era visto de forma ambígua.
Ao se referir às bordadeiras o advogado afirma que todas eram tarefeiras
desqualificando a mulher trabalhadora e a relação de trabalho, tornando-a ocasional de
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forma a descaracterizar a existência de vínculo trabalhista. A defesa apresentada vai
além das questões jurídicas, refletindo o pensamento da elite sobre o trabalho e as
mulheres. No caso analisado o exercício de uma profissão por parte da “mulher bem
casada” parece ser ofensivo a ela, e à sua condição na sociedade. O trabalho para a
“mulher bem casada” era motivo de desonra, e a venda de artigos bordados era visto
como um passatempo, jamais como um trabalho.
Com relação à tese apresentada pela defesa da reclamada no que tange a
autorização do marido para o trabalho pode-se dizer o seguinte: O Advogado da
empregadora ao afirmar que ela necessitaria da autorização marital para trabalhar ou
exercer o comércio tinha a sua tese amparada na legislação da época. Porém, a fonte
analisada nos leva a crer que a reclamada comercializava peças bordadas, e contratava
bordadeiras para a execução de tal trabalho. Ou seja, embora “bem casada” trabalhava e
pode-se arriscar a dizer que talvez o fizesse para exercitar a “liberdade” e não ser
dependente do marido. Ou movida pelas ideias feministas advindas do pós-guerra. Mas
havia a legislação que minorava a mulher, especialmente a “mulher casada”. O artigo 6º
do Código Civil de 1916 declarava a mulher relativamente incapaz para certos atos da
vida civil ou a maneira de exercê-los. Nesse sentido a mulher casada tinha o mesmo
status legal do maior de 16 anos e menor de 21 anos, tal aberração jurídica foi corrigida
somente em 1962 com a Lei n° 4121 de 27 de agosto daquele ano (REQUIÃO, 2005.p.
86). Ora, diante disso se depreende que as questões de gênero permeavam as relações
sociais como um todo e a legislação da época corrobora tal entendimento.
O exercício de uma profissão pela mulher casada passava pela autorização
marital, e no caso em tela fica claro que este era o pensamento da época. Ou seja,
embora exercesse função remunerada, ela o fazia dentro do lar sem prejuízo das suas
atribuições de esposa de um “renomado médico da cidade”, como é salientado pela
defesa. Não se pode afirmar, mas pode-se pensar que o comércio de bordado era uma
forma de buscar liberdade!
6. Conclusão
As relações trabalhistas, quando envolviam mulheres, estão permeadas pelas
ideias e ideais da sociedade patriarcal. O tratamento dado aos trabalhadores, mesmo
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após o advento da positivação da legislação trabalhista, sempre foi pautada no
autoritarismo. Os empregadores ao exercerem a sua autoridade o faziam com
autoritarismo, o texto legal dava margem para tanto. Isso ficou claro no processo da
moça que cantava, pois o seu canto em nada atrapalhava o trabalho, mas de certa forma
demonstrava liberdade por parte dela. A irritação do chefe se pautava na liberdade de
agir e de ser daquela moça.
A sociedade da época não via o trabalho da mulher com bons olhos, tanto que
aquelas que tinham boa situação financeira não trabalhavam fora do lar. Afinal o
trabalho masculinizava a mulher!
Não se pode pensar que as mulheres foram vítimas passivas, pois de alguma
forma tentaram subverter e modificar as estruturas patriarcais. Exercendo funções
decorrentes da vida doméstica ou partindo para a luta operária.
Na década de 1950 a Justiça do Trabalho era “jovem”, não existindo, ainda, um
repertório de jurisprudência que fundamentasse os julgados. Ora, o patriarcado era
antigo, velho e desbotado, e a Justiça do Trabalho jovem e por vezes inexperiente. Uma
Justiça que era “feita” por homens, aplicando uma lei feita por homens. O velho
patriarcado permeava as relações sociais, naturalizando as atitudes repressoras contra a
mulher, por isso trouxemos duas situações: o trabalho como necessidade, incentivado,
porém somente justificado para a mulher das classes baixas, bem como a visão do
trabalho para aquelas das classes sociais abastadas. As mulheres de classe média ou alta
tinham o trabalho como algo que masculinizava, apenas isso. As tarefas domésticas
eram sublimes, cuidar do lar e dos filhos pequenos era nobre. Esse era o imaginário da
época, que permeava a consciência da sociedade e as decisões judiciais nada mais são
que um reflexo do seu tempo. Ao final lembramos, ainda, que não havia nas fontes
pesquisadas nenhuma mulher Advogada ou que exercesse função no Poder Judiciário,
juízes, escrivães e membros do Ministério Público eram homens, bem como os
dirigentes e proprietários das empresas.
7. Fontes primárias
Fundo da Justiça do Trabalho de Santa Maria-RS: Br MJTSM RS FPJ 73; Br MJTSM
RS FPJ 70.
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8. Referências bibliográficas
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