1
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE ENGENHARIA DE SÃO CARLOS DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO
RELATÓRIO 1 PERÍODO: 01/03/2010 a 10/08/2010
Título O Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes – Pedregulho de Affonso Eduardo Reidy
Bolsista Paula Garcia Jareta Santos
Orientador Prof. Dr. Joubert José Lancha
Relatório de Iniciação Científica Essa pesquisa se insere no âmbito das pesquisas desenvolvidas pelo Grupo
Quadro cuja pesquisa principal é financiada pela Fapesp sob o n: 06/57683-9
2
Sumário
1. RESUMO. 4
2. RESUMO DAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS. 4
2.1.PESQUISA BIBLIOGRÁFICA. 4 2.2.PESQUISA ICONOGRÁFICA 5 2.3.PLANO DE 10 DE AGOSTO DE 2010 A 28 DE FEVEREIRO DE 2011. 5 2.4.CRONOGRAMA. 6
3. AFFONSO EDUARDO REIDY. 7
4. ANTECEDENTES. 10
4.1.LE CORBUSIER. 10 4.1.1.POR UMA ARQUITETURA. 10 4.1.2.OS CIAM E A CARTA DE ATENAS. 18 4.1.3. PRECISÕES SOBRE UM ESTADO PRESENTE DA ARQUITETURA E DO URBANISMO. 24 4.1.4.UNIDADES DE HABITAÇÃO – UNITÉS D’HABITATION. 28 4.1.5.LE CORBUSIER NO RIO DE JANEIRO. 29
5. A CONSTITUIÇÃO DA ARQUITETURA MODERNA BRASILEIRA. 32
6. A POLÍTICA HABITACIONAL: A TRAJETÓRIA DA QUESTÃO DA HABITAÇÃO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA E O ESTADO NOVO. 34
7. O DEPARTAMENTO DE HABITAÇÃO POPULAR DA PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL: PEDREGULHO – INSERÇÃO NO QUADRO DA ÉPOCA E DESCRIÇÃO DO PROJETO. 37
7.1.BLOCOS DE HABITAÇÃO 41 7.1.1.BLOCO A: 41 7.1.2.BLOCOS B1 E B2: 44 7.1.3.BLOCO C: 45 7.2.ESCOLA. 46 7.3.POSTO DE SAÚDE. 47 7.4.MERCADO. 48 7.5.LAVANDERIA MECÂNICA. 48 7.6.GINÁSIO, PISCINA, CAMPOS DE JOGOS AO AR LIVRE E VESTIÁRIOS. 49 7.7.QUESTÕES IMPORTANTES AO PROJETO. 49
8. PEDREGULHO – ANÁLISE DAS INFLUÊNCIAS E CONCLUSÕES. 50
9. BIBLIOGRAFIA. 56
10. ICONOGRAFIA. 58
3
Foi concedido o 1º. Prêmio da Bienal de São Paulo para o conjunto residencial Prefeito Mendes de Morais(sic) (Pedregulho) como projeto de organização de grandes áreas, conferido por um júri internacional, presidido pelo prof. Sigfried Giedion, que assim se manifestou:
“O júri, ao conferir o prêmio ao arquiteto Affonso Eduardo Reidy pelo Conjunto Residencial de Pedregulho, considerou essa realização como um exemplo ao Brasil e como uma audaciosa solução de habitação, onde já realizou uma obra social. Essa solução de conjunto constitui um simples exemplo de como toda cidade deveria ser formada. O júri lamenta que a obra fique isolada, surgindo entre os bairros formados anarquicamente”.
(Ata do Júri da 1ª. Bienal Internacional de São Paulo, 1953)
4
O Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes – Pedregulho, de Affonso Eduardo Reidy.
1. RESUMO.
Essa pesquisa propõe-se como investigação do Conjunto Residencial
Prefeito Mendes de Moraes – Pedregulho, projetado pelo arquiteto Affonso
Eduardo Reidy, situado na cidade do Rio de Janeiro, concluído em 1950. A
idéia é trabalhar na compreensão da linguagem utilizada perante a realidade de
sua produção, no contexto de uma leitura onde o edifício, como objeto central,
possa ser criticamente analisado em seus vários aspectos. Texto e desenhos
são as grandes escrituras intelectuais da arquitetura, mas são os desenhos que
modificam a obra, desenhos que podem ser aqueles que precedem a obra,
aqueles do projeto, mas podem ser também aqueles que o seguem e que o
comentam, e podem ser os desenhos do autor mas também os desenhos no
tempo longínquos. Nessa pesquisa nos debruçaremos sobre os textos e os
desenhos na tentativa de construir um panorama sobre o qual surge o edifício
de Reidy. Compreender os pressupostos e a lógica adotada no
desenvolvimento desse Conjunto, mas também identificar, através da pesquisa
bibliográfica e iconográfica, as origens e recorrências dos elementos utilizados
por Affonso Eduardo Reidy na composição dos edifícios do Pedregulho.
2. RESUMO DAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS. 2.1.Pesquisa Bibliográfica.
A primeira fase da pesquisa consistiu na leitura de textos e elaboração
de resumos a fim de compor uma revisão da bibliografia básica, para uma
primeira compreensão e contextualização do arquiteto e da obra estudada.
Dessa maneira, a bibliografia estuda até o presente momento, comparece
comentada no texto que compõe este primeiro relatório, consiste nos títulos
discriminados no item 9 - Bibliografia desse relatório.
5
2.2.Pesquisa iconográfica
Iniciou-se, também, uma pesquisa iconográfica, a partir de
levantamentos de documentos e imagens, tais como plantas, cortes, elevações
e fotos não só do Conjunto do Pedregulho, como também de obras que lhe
serviram de referência ou com as quais identificamos determinadas afinidades.
Essas imagens, contabilizadas até o presente momento em 150 itens,
foram digitalizadas a fim de formarem um banco de imagens para servir à
presente pesquisa e também a futuras investigações. Esse banco de imagens
permite um trabalho ágil de relacionar e manipular tais imagens para uma
melhor compreensão da obra analisada.
A partir da leitura de textos e do levantamento de imagens, pôde-se
iniciar as análises em torno do Pedregulho, que deverá tomar grande parte do
próximo período de pesquisa..
Dessa maneira, foram cumpridas até agora as seguintes etapas
discriminadas no plano de pesquisa inicial:
Etapa 1 – Revisão bibliográfica; atualização e organização de leituras que se
iniciam com a bibliografia apresentada.
Etapa 2 – Revisão iconográfica: pesquisa, organização e sistematização dos
documentos (plantas, cortes, vistas e imagens) do Conjunto Residencial do
Pedregulho, assim como dos edifícios que identificaremos como referência.
Etapa 3 – Leitura do projeto do Conjunto do Pedregulho, desenvolvimento de
análise gráfica: coleta e análise de material, identificando os elementos
principais, sua procedência e sua contribuição para a forma final do edifício
(etapa em andamento).
Etapa 4 – Elaboração do relatório parcial. 2.3.Plano de 10 de agosto de 2010 a 28 de fevereiro de 2011. A partir da finalização desse relatório parcial, as atividades de trabalho
referentes à pesquisa continuam seu andamento, sendo previsto a finalização
da etapa 3 e o cumprimento das seguintes etapas:
Etapa 5 – Visita e levantamento fotográfico e de detalhes. Essa etapa é
fundamental para a compreensão do edifício, sua implantação e organização
6
espacial, como também para dirimir eventuais dúvidas surgidas na etapa
anterior (3) quando se iniciou o desenvolvimento dos modelos. Etapa 6 – Sistematização do material levantado e continuação da análise e
finalização dos desenhos e modelos
Etapa 7 – Elaboração do relatório final. No entanto, as etapas 1, 2 e 3, ou seja, levantamento bibliográfico,
levantamento iconográfico e leitura do projeto estarão sempre em curso, sendo
constantemente revisadas e atualizadas até o cumprimento da pesquisa.
2.4.Cronograma. Etapa 5 – Visita
Etapa 6 – Sistematização
Etapa 7 – Elaboração do relatório final
Meses 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Etapa 4
Etapa 5
Etapa 6
Etapa 7
7
3. AFFONSO EDUARDO REIDY.
Affonso Eduardo Reidy (Paris, França 1909 - Rio de Janeiro, Brasil,
1964), fez parte do grupo de proa que colocou a arquitetura moderna brasileira
em posição de destaque no cenário internacional. Formado com Lúcio Costa e
Oscar Niemeyer, é destacado pela crítica como aquele que melhor trabalhou
com o enquadramento urbanístico da arquitetura e com a feição social da
arquitetura e do urbanismo, presente, principalmente nos projetos do Conjunto
Habitacional Prefeito Mendes de Moraes (Pedregulho) e no Conjunto
Habitacional da Gávea.
Graduado pela Escola Nacional de Belas Artes (1926-1930), teve
seus trabalhos escolares marcados por uma feição acadêmica, pela simetria e
pela monumentalidade, como é o caso do projeto da “Escola de Arquitetura na
Serra dos Órgãos” (1929) e da “Residência para um Milionário” (1929), ambos
desenvolvidos em sua graduação. Durante sua formação, inicia um trabalho
com Agache no Plano Urbanístico do Rio de Janeiro, estagiando de 1929 a
1931, e, posteriormente, ocupa a função de arquiteto municipal encarregado de
projetos de edifícios públicos, planos urbanísticos e conjuntos residenciais
coletivos; exercendo atividade na prefeitura de 1929 a 1964. Essa formação já
indica uma trajetória marcada pela preocupação social seguida pelo arquiteto
ao longo de sua carreira.
Reidy foi muito influenciado por Le Corbusier, com quem teve a
oportunidade de conviver; por Gropius, com sua sobriedade formal e ausência
de elementos decorativos; e por Mies Van der Hore, de quem admirava as
estruturas audaciosas e a pureza. Preservou, no entanto, características
próprias, marcadas por sua personalidade fantasiosa, pelo culto da forma e por
sua preocupação com as necessidades da sociedade da época, principalmente
com a classe trabalhadora.
Seu trabalho está situado nos anos entre a Revolução de 1930, que
levou Getúlio Vargas ao poder, e o Golpe Militar, em 1964; período em que a
arquitetura brasileira pôde contribuir para o projeto de desenvolvimento
nacional que buscava compatibilizar a industrialização e a modernização do
país, marcado por uma preocupação de ampliação do acesso à cultura e à
8
educação. Desse modo, sua obra deve ser vista como parte de um esforço
coletivo para edificar um país novo.
Ainda, foi buscar complementos para conseguir melhor se inserir na
realidade brasileira e na arquitetura moderna, tendo seu primeiro contato com a
arquitetura racionalista através da leitura do livro “Por uma Arquitetura”, de Le
Corbusier. Trabalhou como assistente de Gregory Warchavchik, “contratado
para dar nova orientação ao curso de Arquitetura da ENBA1” (BONDUKI, 2000,
p.27) entre os anos de1931 e 1933. Embora tenha havido a reação acadêmica
que destituiu tanto Lúcio Costa do cargo de Diretor da Escola Nacional de
Belas Artes quanto o próprio Warchavchik, Reidy permaneceu como docente
no período de 1931 a 1933, assumindo a Cadeira de Pequenas Composições.
Obteve sua posição na Prefeitura do Distrito Federal (àquela época, o
Rio de Janeiro) através de concurso público, onde conheceu a engenheira
Carmen Portinho, que se tornaria, então, sua esposa e companheira de
trabalho.
No sentido da arquitetura com feição social, Reidy desenvolveu dois
trabalhos de grande importância e repercussão não apenas no Brasil, mas
também no cenário internacional: o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de
Moraes (Pedregulho) e o Conjunto Residencial Marquês de São Vicente, sendo
pioneiro na original experiência da habitação social. Em 11 de março de 1961,
em entrevista realizada por Ferreira Gullar e Alfredo Brito, para o Jornal do
Brasil, ao ser indagado sobre o papel do arquiteto brasileiro naquele momento
sócio-econômico do país, responde:
O arquiteto tem um papel importantíssimo a desempenhar. Deverá intervir em um planejamento, influenciando decisivamente na solução dos problemas vinculados ao bem-estar social. O elemento humano deverá ser o centro de todas as preocupações e o módulo a que deverá se referir todas as medidas. Compete ao arquiteto criar ambientes físicos que facilitem o pleno desenrolar das atividades relacionadas à vida comunitária, proporcionando condições adequadas para habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito e recrear-se. (REIDY. 2003, p.6, a tradução é nossa).
1 Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), no Rio de Janeiro, efetivada em 8 de novembro de 1980.
9
Outro aspecto marcante na sua carreira foi sua participação em
concursos, nos quais teve suas primeiras grandes oportunidades de trabalho,
sendo vencedor , em 1931, no concurso para o “Albergue da Boa Vontade” em
parceria com o colega de Escola, Gerson Pinheiro; participou, ainda, do famoso
concurso para o MEC, do qual não saiu ganhador, mas, no entanto, foi
convidado por Lúcio Costa a fazer parte do grupo que, posteriormente, realizou
o projeto definitivo.
Passou por diversas fases, diversos concursos e cargos públicos, como
o de chefe do setor de planejamento do Departamento de Habitação Popular,
dirigido por Carmen Portinho, mostrando sempre sua preocupação com o
social e tentando levar as questões da habitação digna para trabalhadores ao
cenário nacional. Ele acreditava que
a arquitetura existe em função do homem. Ele é o centro de todas as preocupações e o módulo de todas as medidas. Seu passo determina relações de tempo e de espaço nos locais onde vivemos. Suas necessidades físicas e espirituais geram os programas que os arquitetos devem atender (REIDY. 1955)
e essa visão foi estendida para todos os seus projetos, fossem eles privados ou
de habitação social. Afinal, embora sua carreira tenha sido marcada pela
participação no serviço público, não se absteve de realizar encomendas
privadas como residências, sendo sua maneira de trabalhar marcada, sempre,
pelo minucioso estudo do sítio, do meio urbano e da paisagem, pelo rigor
construtivo e pela preocupação com detalhes e conforto.
Houve o episódio do concurso para a construção de Brasília, do qual
não participou por não concordar com o edital apresentado, embora fosse
considerado, pelos próprios arquitetos da época, o mais qualificado para a
função devido a seu longo contato com urbanismo.
A última tarefa pública da qual participou foi a de Urbanização do Aterro
da Glória-Flamengo, para o qual projetou o Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro (MAM), marcando o momento auge de sua carreira com um projeto
considerado pela crítica como audacioso e monumental.
Reidy morreu aos 55 anos, em 1964, antes do término da construção do
MAM, que projetou com tanta paixão e lucidez. Mas
10
O homem ficará sempre na lembrança dos que o conheceram, trataram com ele, com ele colaboraram. Correção, cavalheirismo, finura e sensibilidade – e tudo com uma franqueza de palavras e gestos, uma contida maneira de estar sempre entre os humildes e os poderosos, sem causar ressentimentos a uns ou demonstrar submissão a outros. O gentil-homem da arquitetura brasileira, eis o que ele era. (FERRAZ. 1964)
4. ANTECEDENTES.
4.1.Le Corbusier.
4.1.1.Por uma arquitetura. O livro “Por Uma Arquitetura” (Vers Une Architecture), nasceu da
reunião, em 1920, de alguns artigos sob a assinatura de Le Corbusier, desde o
primeiro número da revista l’Esprit Nouveau. Foi publicado em 1923, abrindo a
coleção “Collection de l’Espirit Nouveau”, da qual várias outras obras de Le
Corbusier fazem parte, tais como Urbanisme (1924), Une Maison – Um Palais
(1928), Précisions sur um Etat Présent de l’Architecture et de Urbanisme
(1930), entre outras. Ele é tido (por Le Corbusier) como um livro-manifesto, que
“testemunha um espírito próprio” (LE CORBUSIER, 1973). Naquela época,
arquitetos estavam ocupados
em pesquisar uma arquitetura, um urbanismo, um quadro de vida, uma ética e uma estética da arte de construir, em reconhecer tecnicidades novas e as expressões válidas dessas técnicas animadas de espírito novo, uma coisa excluindo a outra, a ameaça hitleriana emergindo, a guerra chegando, as batalhas da reconstrução começando, uma lenda se estabelecia, sem base sólida, em torno da obra empreendida, deformando talvez seu princípio e seu espírito... 1923/1958 ou 1931/1958, trinta e cinco ou vinte e sete anos tinham se passado, - o ante-guerra, a guerra e o pós-guerra [...]. Durante tão longo silêncio, a execução de uma arquitetura de espírito novo se tornava um fato graças ao esforço surgido no mundo inteiro [...]. (LE CORBUSIER. 1973, p.XX)
Dessa maneira, era necessário estudar a casa e as cidades para o novo
homem. Uma nova maneira de habitar uma casa, que, para Le Corbusier, era
11
uma “máquina de morar”, e de habitar todo um espaço. Era necessário
encontrar “a escala humana, a necessidade-tipo, a função-tipo, a emoção-tipo”
(LE CORBUSIER, 1973, p.XVII). Mas seria “algo diferente de ‘estudar a casa
para o homem comum’, ‘qualquer um’, será algo mais que reencontrar as
bases humanas, a escala humana, a necessidade-tipo, será outra coisa que
reencontrar a emoção-tipo? A emoção arquitetural ‘é o jogo sábio, correto e
magnífico dos volumes sob a luz’”(LE CORBUSIER,1973, p. XXVII). Afinal, a
sociedade moderna estava em constante transformação, numa evolução
movida pela máquina que seguia em ritmo alucinante. Assim, passado o
tempo, “Por Uma Arquitetura” continuava seu trabalho, para o espanto de seu
próprio mestre “Este manifesto, ai de mim! ainda é atual.” (LE CORBUSIER,
1973, XXVIII)
O livro segue um roteiro, constituído por capítulos e sub-capítulos, a
saber: “Estética do Engenheiro, Arquitetura”; “Três Lembretes aos Senhores
Arquitetos: o Volume, a Superfície, a Planta”; “Os Traçados Reguladores”;
“Olhos que não Vêem: os Transatlânticos, os Aviões, os Carros”; “Arquitetura:
A Lição de Roma, A Ilusão das Plantas, Pura Criação do Espírito”; “Casas em
Série”; “Arquitetura ou Revolução”. Desses, discorreremos sobre os mais
importantes para os objetivos da presente pesquisa.
TRÊS LEMBRETES AOS SENHORES ARQUITETOS
Essa parte do “Por Uma Arquitetura” diz respeito àquilo que devia ser
levado em consideração no momento do projeto, com relação a três pontos
fundamentais da arquitetura: o volume, a superfície e a planta. “Nossos olhos
são feitos para ver as formas sob a luz” (LE CORBUSIER, 1973, p.11). O
volume e a superfície são os elementos através do qual a arquitetura se
manifesta, determinada pela planta, que é geradora.
O Volume.
Para Le Corbusier, as formas primárias seriam as mais belas, na medida
em que se deixariam ler claramente. Os claros e as sombras revelariam tais
formas geométricas, “que satisfazem nossos olhos pela geometria e nosso
espírito pela matemática” (LE CORBUSIER, 1973, p.11). Portanto, cubos,
cones, esferas, cilindros, pirâmides, seriam as mais belas formas primárias
12
reveladas pela luz. Dessa maneira, “elementos primários, coordenados
segundo regras, provocam em nós emoções arquiteturais, fazendo ressoar a
obra humana com a ordem universal” (LE CORBUSIER, 1973, p.17).
A Superfície.
“Um volume é envolvido por uma superfície, uma superfície que é
dividida conforme as diretrizes e as geratrizes do volume, marcando a
individualidade desse volume [...] Os grandes problemas da construção
moderna serão realizados sobre a geometria”. (LE CORBUSIER, 1973, p.19)
Assim, era necessário dar vida às superfícies que envolveriam os
volumes, de maneira que não se tornassem parasitas que devorariam o próprio
volume. Afinal, as superfícies não poderiam encobrir as linhas reveladoras que
geram as formas. Tais observações sobre as superfícies deveriam ser situadas
no terreno das necessidades da época, tais como a necessidade de
cidades com espírito utilitário e cujo volume seja belo [...] ruas onde a limpeza, a adequação às necessidades da habitação, a aplicação do espírito de série na organização das obras, a grandeza da intenção, a serenidade do conjunto encantam o espírito e proporcionam o charme das coisas nascidas com a felicidade (LE CORBUSIER, 1973, p.21).
Portanto,
Modelar a superfície contínua com uma forma primária simples é fazer surgir automaticamente a própria concorrência do volume: contradição de intenção [...] Modelar a superfície com volumes complicados e posto em sinfonia é modular e permanecer no volume: problema raro [...] A superfície fendida pelas necessidades de destinação, deve seguir as geratrizes reveladoras dessas formas simples. Essas linhas reveladoras são na prática o xadrez ou reticulado – fábricas americanas. (LE CORBUSIER, 1973, p.24)
As fábricas americanas eram, para Le Corbusier, as primícias
reconfortantes daqueles novos tempos.
A Planta.
“A planta é a geradora. Sem planta há desordem, arbitrário. A planta traz
em si a essência da sensação [...] A vida moderna pede, espera uma nova
planta, para a casa e para a cidade”. (LE CORBUSIER, 1973, p.25)
13
Segundo Le Corbusier, ao se mover pelo espaço de ruas e casas, o olho
do espectador receberia o choque dos volumes elevados. Se esses volumes
fossem formais, se a ordenação que os agrupasse exprimisse um ritmo claro, e
não incoerente, se as relações entre os volumes e o espaço fossem de
proporções justas, o olho transmitiria ao cérebro sensações coordenadas e o
espírito retiraria delas satisfações de ordem superior. Isso seria a arquitetura.
A planta seria a base, coordenando tudo: ritmo, volume, coerência. Seria
o momento decisivo da determinação do todo. Seria um tipo de “lei da boa
planta”, uma lei simples, infinitamente modulável. A planta traria consigo um
ritmo primário determinado, a partir da qual a obra se desenvolveria em
extensão e altura.
A unidade de objetivo seria o ritmo: “estado de equilíbrio procedente de
simetrias simples ou complexas ou procedente de sábias compensações. O
ritmo é uma equação: igualação, [...] compensação, [...] modulação, [...]”. (LE
CORBUSIER, 1973, p.32)
Portanto, para Le Corbusier, a planta traria consigo a própria essência
da sensação. Assim, as reformas necessárias reclamariam novas plantas e o
concreto armado permitiria conduzir essa nova estética da planta,
desconhecida até então.
CASAS EM SÉRIE.
Dizia Le Corbusier (1973): “O problema da casa é um problema de
época. O equilíbrio das sociedades hoje depende dele”. Para ele, a arquitetura
deveria operar na revisão dos valores e dos elementos constitutivos da casa.
Dessa maneira, a grande indústria se ocuparia do estabelecimento em série
dos elementos da casa.
É preciso criar o estado de espírito da série. O estado de espírito de construir casas em série. O estado de espírito de residir casas em série. O estado de espírito de conceber casas em série.
(LE CORBUSIER, 1973, p.159 – o grifo é nosso)
As casas em série deveriam ser feitas a partir dos novos materiais, tais
como: cimento e cal, ferros perfilados, cerâmica, materiais isolantes, canos,
utensílios metálicos, produtos impermeáveis, etc. O material artificial, com
14
comportamento fixo, substituiria o natural, variável ao infinito. Assim, a pedra
natural de 1m de espessura seria superada por paredes leves e duplas, feitas
com escória de ferro e etc, conseguir-se-iam paredes “delgadas como
membranas”(LE CORBUSIER, 1973, p.165). Os telhados não mais precisariam
ser pontiagudos, uma vez que novas soluções para o escoamento de água
estavam sendo elaboradas.
Mas
a casa em série implica traçados automaticamente amplos e grandes. Porque a casa em série necessita o estudo aprofundado de todos os objetos da casa e a busca do padrão, do tipo [...] a casa em série imporá a unidade dos elementos, janelas, portas, procedimentos construtivos, matérias. Unidade de detalhes e grandes traçados de conjunto [...] (LE CORBUSIER, 1973, p.168).
Dessa maneira, o espírito daquele momento seria o espírito das casas
produzidas em série.
Outra grande inovação que permitiria esse “espírito da produção em
série” foi, a partir de 1915, o importante emprego do concreto armado.
Assim, Le Corbusier discutiu o tema das casas em série, a partir de um
grande conjunto de projetos:
• Ossatura dominó/ casas dominó/ loteamento dominó (1915):
procedimento construtivo que autorizaria disposições largas e
ritmadas, a partir do qual uma casa para um rico seria concebida
ao preço do cubo da casa simples operária. Esse era o valor
moral das casas em série: um ponto de encontro entre a
habitação do rico e a do pobre. Nesse momento, também
desaparecem as paredes de sustentação, o que permite o
emprego de grandes panos de vidro. Forte presença dos
elementos em série, módulo e proporção.
• Casas em concreto líquido (1920): tais casas seriam
“derramadas” no local de sua implantação, como um líquido cai
de uma garrafa; dessa maneira, seriam construídas em três dias.
15
• Casa de artista (1922): tal casa foi concebida a partir de uma
ossatura de cimento armado e paredes em dupla separação de
cemente-gun.
• Casa operária em série (1922): tais casas poderiam se apresentar
sob diversos ângulos, tendo colunas de concreto e paredes em
cement-gun. “Estética? A arquitetura é assunto de plástica, e não
de romanstismo”. (LE CORBUSIER, 1973, p. 169)
• Casas em concreto grosso (1919): num terreno formado por
camadas de cascalho seria instalada uma pedreira diretamente
no solo, a partir da qual o cascalho seria derramado com a cal em
uma armação de 10cm de espessura, tendo o piso em cimento
armado. “É preciso limpar de nossos espíritos as aranhas
românticas” (LE CORBUSIER, 1973, p.169)
• Casas em série “Citrohan” (1921): a casa seria concebida e
organizada como um automóvel, um ônibus ou uma cabine de
navio. As casas não mais poderiam organizar mal o espaço,
portanto, a disposição dos lugares seria conforme a utilização das
famílias, sendo a higiene favorecida e os domésticos cuidados
respeitosamente. Sendo a questão em voga o preço de custo, a
casa deveria ser tida como uma “máquina de morar”.
“O coração só será tocado se a razão estiver satisfeita e isto pode
ocorrer quando as coisas são calculadas. [...] o que pode nos
deixar orgulhoso é ter uma casa prática como sua máquina de
escrever” (LE CORBUSIER, 1973, p. 170). As casas “Citrohan”
teriam a ossatura em placas de concreto fundidas no momento e
levantadas por guindastes; dessa maneira, as paredes seriam
membranas de 3cm em cimento projetado sobre folha de zinco
estendida, que deixaria um vazio de 20cm; lajes e pisos seriam
feitos sobre o mesmo módulo, bem como as aberturas úteis,
tendo seus caixilhos projetados em série.
• Casas em série, 72m2 (1922): ossatura em cimento e cement-gun.
• Casa “Monol” (1919): Foi colocado um problema da casa ordinária
fabricada: seu peso, demasiado para ser transportado. Dessa
16
maneira, a casa deveria ser pensada de modo que fosse feita
com o mínimo necessário de corporações profissionais e de
transporte de materiais. Também, a questão das casas em série
era uma questão de loteamento. Se a unidade dos elementos
construtivos seria uma garantia de beleza, um conjunto bem
loteado e construído em série deveria passar uma impressão de
ordem e limpeza, que imporia uma certa disciplina aos seus
moradores; a supressão de muros, o respeito pela propriedade de
outrem. Dessa maneira, para Le Corbusier (1973), tudo ganharia
“sol e liberdade”.
• Casa à beira- mar, construída com elementos de série (1921):
Essa casa teria uma ossatura como as dos edifícios industriais,
com planta de disposição fácil e divisões leves, a partir vigas
espaçadas regularmente, de colunas de concreto armado
dispostas de 5 em 5 metros em ambos os sentidos e forros em
abóbodas chatas de cimento armado. Dessa maneira, a partir de
uma unidade modular de primeira importância, a estética sairia
privilegiada.
• Grande edifício de aluguel (1922): tais edifícios consistiriam na
disposição de cem casas de dois andares, cada qual possuindo
seu jardim, superpostas em cinco alturas. Uma organização
hoteleira geriria os serviços. Os “edifícios-casas” surgiriam a partir
da construção em série de lajes e colunas e do emprego de
paredes em dupla separação.
• “Novos bairros Frugès”, em Bordeaux.
• Loteamento em “alvéolos” para cidades-jardins.
• “Bairros modernos Frugès” (1924): aqui, fixou-se minuciosamente
um tipo de elemento, o qual se multiplicou e se combinou das
maneiras mais variadas, constituindo uma verdadeira
industrialização da construção.
• Casas em série para artesãos (1924): nesse caso, um problema
havia sido fixado, o de alojar artesãos em uma grande oficina bem
iluminada. Os gastos foram diminuídos a partir da supressão de
17
portas e divisões, a partir da redução das superfícies e alturas
habituais dos quartos. Por fim, toda a casa seria, então, apoiada
sobre uma única coluna oca, em cimento armado. As paredes
seriam isotérmicas, a partir da utilização de “solomite”2, revestida
em seu exterior por uma camada de 5cm de cimento projetado,
com gesso em seu interior.
• Loteamento ortogonal (1924): projeto em parceira de Le Corbusier
e Pierre Jeanneret. Nesse loteamento, foram propostas casas
construídas, todas, a partir de elementos-padrões, constituindo
uma “célula-tipo”. A ordenação seria regular, para os lotes que
seriam iguais. Dessa maneira, a arquitetura poderia se exprimir
com toda a precisão e facilidade.
• Casa de Bourdeaux (1925): projeto em parceira de Le Corbusier e
Pierre Jeanneret. As casas seriam construídas em série, pois
seria ela que daria a unidade e a perfeição aos detalhes,
propondo a variedade dos conjuntos.
• Cidade Universitária (1925): projeto em parceira de Le Corbusier
e Pierre Jeanneret. Todos os estudantes, ricos ou pobres, teriam
direito ao mesmo tipo de célula no alojamento da Universidade.
Sendo que cada célula teria a sua cozinha, o seu banheiro, a sua
sala, o seu espaço para dormir e, também um jardim suspenso
próprio. Os estudantes seriam isolados por paredes, mas se
reencontrariam nas salas comuns ou nos terrenos de esporte. A
cidade universitária seria, ainda, construía em “shed”, o que
garantiria uma iluminação ideal, mesmo a partir de extensões
indefinidas, suprimindo as massas de sustentação.
Assim, estavam postas as idéias de Le Corbusier para o habitar
moderno. As casas deveriam ser feitas a partir dos novos materiais
industrializados, seguindo assim a lógica da indústria e sendo consideradas
“máquinas de morar”. Os gastos deveriam ser reduzidos, e tanto as casas dos
ricos quanto as dos pobres deveriam ser concebidas a partir dos mesmos
2 Palha comprimida, servindo como isolante térmico.
18
preceitos. A série e a modulação permitiriam a ordem e a limpeza necessária
para os olhos e o espírito humano, a partir dos cálculos matemáticos e das
geometrias puras. Não seriam tolerados exageros. Dessa maneira, o mestre
suíço criou suas células de habitação, partindo de um minucioso estudo dos
claustros e das células das cartuxas dos monges - habitações mínimas e no
entanto confortáveis, onde, ainda, era possível um equilíbrio entre o viver
individual e o coletivo. Essas questões não estavam presentes apenas nas
casas, mas também em grandes loteamentos e cidades inteiras. Eram
necessários traçados reguladores, clareza, limpeza e higiene. E isso tudo seria
possível através do estudo, compreensão e perfeita manipulação dos volumes,
das superfícies e da planta.
Após toda a trajetória do livro “Por Uma Arquitetura”, pode-se, então,
compreender o capítulo final e a inevitável conclusão de que o equilíbrio da
sociedade seria encontrado a partir da questão da construção. Seria
necessário, portanto, “arquitetura ou revolução” (LE CORBUSIER, 1973, p.168)
Esse “livro-manifesto” foi de extrema influência para o desenvolvimento
de um pensamento e de um modo de projetar dos arquitetos do Modernismo,
não apenas internacionais, mas também (e em grande escala) os brasileiros ,
sendo para muitos o momento decisivo da mudança de ideário ou o primeiro
contato com as questões nele impostas. Entre os grandes nomes da
arquitetura moderna brasileira que, em seus depoimentos, apontam a
importância da leitura de “Por Uma Arquitetura” para a sua formação, podemos
citar Affonso Eduardo Reidy e Lúcio Costa.
4.1.2.Os CIAM e a Carta de Atenas. O “Congresso Nacional de Arquitetura Moderna” teve sua fundação em
1928, quando um grupo de arquitetos se reuniu na Suíça a fim de colocar a
arquitetura diante da sua verdadeira tarefa, a partir da firmação de um ponto de
vista comum e sólido. Dessa maneira, os CIAM tinham como objetivo a
formulação dos problemas arquitetônicos da época, a apresentação da ideia do
que seria a arquitetura moderna e a penetração da mesma nos círculos
técnicos, econômicos e sociais, bem como a intenção de zelar pelas soluções
dos problemas da arquitetura. Essas reuniões sempre foram assembléias de
19
trabalho, em diferentes países, animadas a cada vez por novas questões, a
partir das quais a arquitetura avançou pelo caminho das realizações práticas.
Ao todo, foram 10 os encontros.
A Carta de Atenas foi um dos produtos do IV CIAM (Congresso Nacional
de Arquitetura Moderna), em novembro de 1933, o qual tratava da questão da
habitação popular. Naquele momento, as cidades não estavam preparadas
para abrigar a grande massa de trabalhadores que chegava, movidos pelas
novas perspectivas de emprego que o desenvolvimento da indústria trazia.
Com isso, consolidou-se um quadro de profunda insalubridade nas cidades,
devido ao aglomeramento humano em locais sem o mínimo de insolação e
ventilação. Nesse sentido, a Carta de Atenas é uma espécie de ata do que foi
discutido no Congresso. Escrita por Le Corbusier, foi dividida em três partes:
Primeira Parte – Generalidades, A Cidade e sua Região; Segunda Parte –
Estado Atual Crítico das Cidades, Habitação – Observações, Lazer –
Observações, Trabalho – Observações, Circulação – Observações, Patrimônio
Histórico das Cidades; Terceira Parte – Conclusões, Pontos de Doutrina, Notas
– Sobre os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, Declaração de
La Sarraz, Economia Geral, Urbanismo, A Arquitetura e a opinião pública, A
Arquitetura e o Estado, Objetivos do CIAM, Os Congressos do CIAM.
Habitação – Observações.
Estava posta uma questão muito própria daquele momento, a questão
da densidade populacional. “A densidade, relação entre as cifras da população,
e a superfície que ela ocupa, pode ser totalmente modificada pela altura dos
edifícios” (LE CORBUSIER, 1933). A densidade admissível era de 250 a 300
habitantes por hectare. No entanto, em vários bairros, essa cifra chegava até a
1000 habitantes por hectare – era o problema dos cortiços. Esses locais eram
incapazes de oferecer um tanto aceitável de superfície habitável por pessoa,
bem como não dispunham de uma quantidade adequada de janelas para a
ventilação e de instalações sanitárias. Isso, somado à ausência de insolação
adequada, fazia com que a presença de doenças fosse constante,
principalmente da tuberculose. Ainda, as disposições internas, a vizinhança
desagradável e a má orientação da moradia, acarretava a presença da
20
promiscuidade no local. Ou seja, estava posto que “altas densidades significam
o mal-estar e a doença em estado permanente” (LE CORBUSIER, 1933).
Mas era o estado interior da habitação, com sua miséria, que constituía
o cortiço, uma vez que essa situação era prolongada ao exterior para as ruas
sombrias e sem vegetação. Infelizmente, a legislação permitia a imposição de
tais moradias às populações pobres.
Há uma série de “condições naturais” que deveriam ser respeitadas não
apenas nas moradias, mas também nas cidades. São uma série de elementos
indispensáveis aos seres vivos, tanto para a ordem psicológica quanto para a
fisiológica: o sol, o espaço e a vegetação. No entanto, quanto mais a cidade
crescia, menos essas condições naturais eram respeitadas. Dessa maneira, o
primeiro dever do Urbanismo seria recolocar o homem em contato com esses
elementos. O sol deveria penetrar o interior de cada moradia, espalhando seu
calor, sem o qual não há vida. O ar teria sua qualidade assegurada pela
presença da vegetação. O espaço deveria ser distribuído com liberdade. Dessa
maneira, o IV CIAM, em Atenas, “chegou ao seguinte postulado: o sol, a
vegetação, o espaço são as três matérias-primas do urbanismo”. (LE
CORBUSIER, 1933 – o grifo é nosso).
Deveria ser feito, então, o zoneamento, a “operação feita sobre um plano
de cidade com o objetivo de atribuir a cada função e a cada indivíduo o seu
justo lugar” (LE CORBUSIER,1933). Dessa maneira, deveria ser acessível para
todos, através da legislação, e independente de qualquer questão de dinheiro,
uma determinada parcela de bem-estar, impedindo que famílias inteiras fossem
privadas de sol, de ar e de espaço.
A circulação deveria ser dividida em duas vias, uma de percurso lento
para uso do pedestre e outra de percurso rápido para os veículos.
Outras necessidades das famílias deveriam, ainda, ser levadas em
consideração: “centros de abastecimento, serviços médicos, creches, jardins
de infância, escolas, às quais se somariam organizações intelectuais e
esportivas destinadas a proporcionar aos adolescentes a possibilidade de
trabalhos ou de jogos adequedos à satisfação das aspirações próprias de tal
idade e, ainda, ‘equipamentos de saúde’, as áreas próprias à cultura física e ao
esporte cotidiano de cada um”. Dessa maneira, as proximidades deveriam ser
um verdadeiro prolongamento da moradia. A situação das escolas era a mais
21
problemática, uma vez que, devido à grande distância das casas, as crianças
seriam colocadas em contato com os perigos da rua.
Os subúrbios eram constituídos de casebres mal construídos, barracos e
galpões, misturando os materiais mais imprevistos, domínio dos pobres que
oscilavam no turbilhão de uma vida sem disciplina. A feiúra e a tristeza eram a
vergonha da cidade que circundavam. Era preciso exigir. Assim, os bairros
habitacionais deveriam ocupar as melhores localizações no espaço urbano,
observando-se o clima e aproveitando-se da topografia, utilizando-se da
insolação mais favorável e de superfícies verdes adequadas.
O problema da habitação, da moradia, prevalece sobre todos. Dessa
maneira, era “preciso buscar, para as moradias, as mais belas paisagens, o ar
mais saudável, levando em consideração os ventos e a neblina, os declives
melhor expostos, e, enfim, utilizar as superfícies verdes existentes, criá-las, se
não existem, ou recuperá-las, se foram destruídas”.
Ainda, não bastava sanear a moradia; era preciso, também, criar e
administrar os prolongamentos exteriores, os diversos locais para esporte,
inserindo, no plano geral, as áreas que lhes seriam reservadas. Do mais, o sol
deveria penetrar em toda moradia suficientes horas por dia, pois a tuberculose
se instalava onde o sol não penetrava. Assim, o novo dever do arquiteto era o
de “introduzir o sol”.
A questão da densidade poderia ser resolvida através da verticalização,
o que começou a ser possível a partir do século XX, através das construções
homogêneas de aço ou cimento armado, o que permitiu erguer prédios de mais
de seis pavimentos. Mas as novas construções, mais altas, deveriam, ainda,
ser situadas a distâncias adequadas umas das outras, para que sua altura não
agravasse ainda mais o mal existente.
Portanto, construir cidades seria decidir a maneira como o solo seria
ocupado, estabelecendo relações entre as superfícies livres e construídas,
dividindo o terreno necessário tanto para as moradias particulares quanto para
seus diversos prolongamentos, fixando uma superfície para a cidade que não
poderia ser ultrapassada, constituindo essa grave operação, inerente à
autoridade: a promulgação do “estatuto do sol”.
Lazer – Observações.
22
“O Urbanismo é chamado para conceber as regras necessárias a
assegurar aos citadinos as condições morais de vida que salvaguardem não
somente sua saúde física mas, também, sua saúde moral e a alegria de viver
delas decorrente”.
Dessa maneira, as horas de trabalho deveriam ser seguidas por um
número suficiente de horas de lazer, todos os dias. São essas horas que
constituiriam uma reconfortante permanência junto aos elementos naturais.
Assim, dever-se-ia existir uma justa proporção entre volumes edificados e
espaços livres, cuja manutenção seria, portanto, uma necessidade e questão
de saúde pública para o homem.
Devia-se classificar as horas livres em três categorias: cotidianas,
semanais ou anuais. As horas de lazer cotidianas deveriam ser passadas nas
proximidades da moradia. As semanas permitiriam a saída da cidade e
deslocamentos regionais. Já as anuais, ou seja, as férias, permitiriam
verdadeiras viagens.
Com isso, estabelecia-se a necessidade da criação de áreas verdes ao
redor das moradias, na região e no país. Sendo que todo bairro residencial
deveria compreender uma superfície verde necessária para a prática de jogos
e esportes, distribuída levando-se em consideração o tempo necessário para o
deslocamento entre elas e as áreas edificadas. Ainda, os antigos quarteirões
insalubres deveriam ser demolidos e substituídos por áreas verdes e parques,
sendo os bairros limítrofes saneados.
As novas superfícies verdes devem, ainda, ter objetivos claramente
definidos: “acolher jardins da infância, escolas, centros juvenis ou todas as
construções de uso comunitário ligadas intimamente à habitação”. Elas teriam
um papel útil, uma vez que instalações de caráter coletivo ocupariam seu
espaço. Dessa maneira, seriam como um prolongamento da habitação,
estando subordinas ao estatuto do solo e seguindo um programa estabelecido
de entretenimento abrangendo atividades diversas.
“Uma destinação fecunda nas horas livres forjará uma saúde e um
coração para os habitantes da cidade” (LE CORBUSIER, 1933).
Trabalho – Observações
23
Outrora, a moradia e a oficina estavam unidas por vínculos
permanentes, e situadas uma perto da outra. Naquele momento, os locais de
trabalho não estavam mais dispostos racionalmente no complexo urbano,
sendo instalados nas periferias, longe dos bairros. Sendo assim, condenavam
os trabalhadores a percorrer longas distâncias diariamente, em condições
cansativas de pressa e agitação, prejudicando inutilmente suas horas de lazer.
Terceira Parte – Conclusões.
Pontos de doutrina.
No jogo da vida, liberdade individual e ação coletiva são os dois pólos
nos quais as ações se desenrolam.
A escala do homem, sua medida natural, deve servir de base a todas as
outras escalas que estejam relacionadas à vida e às diversas funções do ser.
Essa escala de medidas deve se aplicar às superfícies e às distâncias, que
serão consideradas em sua relação com o ritmo natural do homem, que deve
ser determinado levando-se em consideração o trajeto cotidiano do sol.
“As chaves do urbanismo estão nas quatro funções: habitar, trabalhar,
recrear-se (nas horas livres), circular” (LE CORBUSIER, 1933).
Dessa maneira,
o urbanismo tem quatro funções principais, que são: primeiramente, assegurar aos homens moradias saudáveis, isto é, locais onde o espaço, o ar puro e o sol. Essas três, condições essenciais da natureza, lhe sejam largamente asseguradas; em segundo lugar, organizar os locais de trabalho, de tal modo que, ao invés de serem uma sujeição penosa, eles retomem seu caráter de atividade humana natural; em terceiro lugar, prever as instalações necessárias à boa utilização das horas livres, tornando-as benéficas e fecundas; em quarto lugar, estabelecer o contato entre essas diversas organizações mediante uma rede circulatória que assegure as trocas, respeitando as prerrogativas de cada uma. (LE CORBUSIER. 1933)
Portando, esse ciclo das funções cotidianas seria regulamentado pelo
Urbanismo, visando-se a mais rigorosa economia de tempo e tendo a
habitação como o centro das preocupações urbanísticas e ponto de articulação
de todas as medidas. O zoneamento ordenaria o território urbano. A circulação
deveria estabelecer uma comunicação favorecida entre o habitar, o trabalhar e
o recrear-se, sendo regulamentadora e não impondo incômodos às estruturas
24
de habitação ou dos locais de trabalho. Ainda, o urbanismo intervindo no
elemento altura, dar-se-á uma solução para a circulação moderna e, também,
para os lazeres, através da exploração de espaços livres assim criados. As
quatro chaves do Urbanismo Moderno, deveriam de desenvolver, portanto, no
interior de volumes submetidos às três mais importantes necessidades:
espaço suficiente, sol e ventilação.
Ainda, o número inicial do Urbanismo é uma “célula habitacional”
(moradia) e como se dá sua inserção num grupo onde se forma uma unidade
habitacional de proporções adequadas. Dessa maneira, a casa constituiria uma
célula social. Com isso, seria a partir dessa unidade-moradia que as relações
entre a habitação, os locais de trabalho e os locais destinados às horas livres
se articularia.
Assim, o papel do arquiteto urbanista naquele momento seria
proporcionar uma boa maneira de habitar o espaço, a partir da escala humana,
das condições naturais e das quatro funções básicas necessárias na cidade,
numa junção de espaço suficiente, insolação adequada, ar puro, habitações
decentes, espaços para a recreação, a fim de se cultivar corpo e espírito,
circulações satisfatórias e seguras e proximidades das moradias com os locais
de trabalho. Tudo isso numa perfeita harmonia e na melhor articulação do
espaço com o tempo, num ambiente onde o interesse privado estaria
subordinado ao interesse coletivo. Afinal, era a arquitetura que presidiria os
destinos da cidade e que ordenaria as células habitacionais, a fim de
proporcionar, para cada indivíduo, os acessos ao bem-estar da moradia e às
belezas da cidade: a arquitetura seria a chave de tudo.
4.1.3. Precisões sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. Esse livro, originalmente sob o título de “Précisions sur um Etat Présent
de l’Architecture et de l’Urbanisme”, foi publicado em 1930 e reúne a série de
palestras que Le Corbusier ministra ao chegar em Buenos Aires, trazendo as
bases do que seria a nova arquitetura para o novo homem naquele momento
de transformações. Sob diversos títulos e temáticas que o mestre suíço vai,
então, introduzindo o novo ideário aos novos arquitetos.
25
Quinta Conferência.
Sexta-feira, 11 de outubro de 1919.
Amigos da Arte.
“O Plano da Casa Moderna”
Nessa conferência, Le Corbusier expôs as soluções para o novo plano a
casa moderna, superando o plano “paralisado” da casa feita de pedra, através
da casa feita em ferro ou concreto armado.
Dessa maneira, estavam impostos os chamados “cinco pontos da
arquitetura moderna”:
• Planta livre e fachada livre;
• Esqueleto independente;
• Janelas corridas ou pano de vidro;
• Pilotis;
• Teto-jardim.
Ao fazer uma analogia com a biologia, o esqueleto seria “para sustentar,
enchimentos musculares para agir e vísceras para alimentar e fazer funcionar”.
(LE CORBUSIER, 2004, p.127)
Na ossificação das casas feitas em pedra, os elementos seriam todos
superpostos de um andar para o outro. Já, na casa com esqueleto
independente, a disposição interna seria livre, independente de um andar para
o outro.
Dessa maneira, seria preciso tirar partido dessas novas liberdades,
beneficiando a economia, a eficiência, a resolução das várias funções
modernas e a beleza.
Assim, a revolução arquitetônica implica diversos fatores:
• Classificação;
• Dimensionamento;
• Circulação;
• Composição;
• Proporcionamento.
I. Classificação.
Há dois fatores que se encontram presentes, simultâneos e
inseparáveis: um fenômeno biológico, o objetivo proposto ou o problema
26
apresentado, e um fenômeno plástico, ou a sensação fisiológica, uma
“impressão”.
O biológico diria respeito ao nosso bom senso e o plástico afetaria nossa
sensibilidade e razão. Reunidos, el es realizaria a emoção arquitetônica, seja
ela boa ou má.
II. Dimensionamento [dos cômodos de uma residência].
As construções de pedra impediam inovações, opondo-se à busca da
economia que, naquele momento, era a base fundamental.
“Hoje, podemos introduzir na casa, como bem quisermos, a maior
diversidade de cômodos, sem nos preocupar com a sobreposição dos andares
[...]”. (LE CORBUSIER, 2004, p.130).
Analisando essas dimensões dos cômodos e submetendo-as a cálculos
minuciosos, teríamos uma operação racional semelhante às que distribuíam os
espaços das fábricas modernas.
Portanto, para a resolução do problema da habitação moderna, dever-
se-ia, antes de qualquer coisa, estudar o terreno para traçar um plano de
acordo com ele, para a elaboração exata de uma planta. Esse seria o método
corrente, ou seja, “antes de mais nada, morar segundo o encadeamento das
funções razoáveis”. (LE CORBUSIER, 2004, p.131)
III. Circulação.
Este era o grande termo moderno. “Tudo é circulação na arquitetura e no
urbanismo”. (LE CORBUSIER, 2004, p.131)
Afinal, para que serviria uma casa? Para entrarmos e nela exercermos
funções metódicas. Portanto, os elementos necessários para o desenrolar
dessas funções deveriam estar alinhados em um circuito.
Já, as janelas corridas seriam os elementos que fariam entrar a
grandiosidade da paisagem na casa, numa ligação do interior com o exterior.
IV. Composição.
O homem, ao entrar na casa, vai descobrindo tamanhos, formas, luz. Há
um “ritmo, devido ao volume e à luz [...] faço uso abundante da luz [...] base
27
fundamental da arquitetura. Componho com a luz”. (LE CORBUSIER, 2004,
p.135)
O pano de vidro seria feito de cristais ou vidros especiais, com valor
isotérmico de paredes espessas que quebrariam os raios solares; vidros
armados, foscos ou tijolos de vidro. Os panos de vidro ou diafragmas seriam os
novos termos que passariam a fazer parte da linguagem arquitetônica.
V. Proporcionamento.
“Para os olhos tudo é geométrico [...] A composição arquitetônica é
geométrica. É, antes de mais nada, um acontecimento de ordem visual; é um
acontecimento que implica julgamentos de quantidades, relações, apreciações
de proporções. Estas provocam sensações, a seqüência das sensações é
como uma melodia na música”. (LE CORBUSIER, 2004, p.136)
Seriam, então, criados quatro tipos de plantas, cada qual exprimindo
características preocupações intelectuais:
• Auteil (primeiro tipo): “cada órgão surge ao lado de seu vizinho, de
acordo com um motivo orgânico: o ‘interior alarga seu espaço e empurra
o exterior, que forma diversas saliências’ [...] composição piramidal, que
pode tornar-se complicada [...]”. (LE CORBUSIER, 2004, p. 138)
• Garches (segundo tipo): “[...] compressão dos órgãos no interior de um
envoltório rígido, absolutamente puro [...]”.(LE CORBUSIER, 2004, p.
138)
• Tunis (terceiro tipo): “proporciona, como um esqueleto aparente, um
envoltório simples, claro, transparente, com uma pequena rede; permite
que se instalem diversamente, em cada andar, os volumes úteis dos
quartos, em forma e quantidade [...] tipo engenhoso, apropriado a certos
climas; composição fácil, plena de recursos”. (LE CORBUSIER, 2004, p.
138)
• Poissy (quarto tipo): exteriormente, apresenta “aquela forma pura do
segundo tipo; no interior, comporta as vantagens e qualidades do
primeiro e do terceiro. Tipo puro, muito generoso, também repleto de
qualidades”. (LE CORBUSIER, 2004, p. 138)
28
Por fim, Le Corbusier finaliza sua conferência concluindo que se deveria
tirar, portanto, proveito da poesia e do lirismo proporcionados pelas novas
técnicas, no que diria respeito à casa moderna.
4.1.4.Unidades de habitação – Unités d’habitation. Le Corbusier criou as chamadas “Unidades de Habitação”, a partir do
estudo das necessidades do homem moderno e das células que esses
abrigariam de maneira boa e coerente. Elas seriam verdadeiros
acontecimentos revolucionários, proporcionando de maneira adequada as
“condições naturais” citadas na Carta de Atenas: o espaço, o sol e o ar puro
proporcionado a partir das áreas verdes. Seriam locais agradáveis para as
famílias, com privacidade. Seria um local que proporcionaria a solidão e o
silêncio necessários no interior e, no entanto, permitiriam um contato com o
exterior de maneira rápida. Ganhariam altura para vencer a densidade e, ao
mesmo tempo, proporcionarem o espaço necessário para os habitantes. Ao
redor, parques e locais de recreação e prática de esportes para todas as
idades. Ainda, seriam providas de escolas e outros instrumentos necessários
para o cotidiano, nas suas proximidades, evitando, assim, que seus habitantes
tivessem que percorrer longos percursos até terem acesso ao necessário para
suprirem suas necessidades.
Foram várias as Unidades de Habitação propostas por Le Corbusier, tais
como:
• Unité d’habitation en Marsella (1946)
• Unité d’habitation de Nantes-Rezé (1952);
• Unité d’habitacion de Briey-em-Firêt (1957);
• Unité d’habitation en Meaux (1957);
• Unité d’habitation en Berlin (1957);
• Unité d’habitation en Firminy (1962);
Havia um plano de “apartamentos-tipo” comum a todas as Unidades,
compreendendo: rua interna; entrada; sala com cozinha; quarto dos pais, sala
de banhos; armário, roupeiros, armários embutidos, pranchas para passar,
duchas para crianças; quartos de crianças; espaços disponíveis.
29
O desenvolvimento das células habitacionais e, portanto, das Unidades
de Habitação, tem sem dúvida inicio a partir dos estudos que desenvolve nas
visitas que realiza em 1907 e 1911 , às cartuxas de Ema e Pavia. Le Corbusier
impressionado com a solução da célula e dos clautros, imagina que essa
solução possa ser adotada para a casa operária.
Dentre todas as Unidades de Habitação, a que mais influenciou a obra
do Pedregulho, de Reidy, foi a “Unidade de Habitação de Marsella”, pois,
enquanto Reidy escrevia para Le Corbusier contando dos progressos de sua
obra, esse lhe respondia mandando os desenhos de tal Unidade.
4.1.5.Le corbusier no Rio de Janeiro. Le Corbusier veio duas vezes ao Brasil, aportando no Rio de Janeiro: em
1929 e em 1936. Em ambas as viagens, ministrou conferências e fez parcerias,
ajudando os arquitetos brasileiros daquela geração, influenciando
profundamente o desenvolvimento da arquitetura moderna brasileira.
Na visita de 1929, teve o primeiro contato com uma série de arquitetos e
estudantes de arquitetura, dentro os quais grandes nomes, como Oscar
Niemeyer, Lúcio Costa e Affonso Eduardo Reidy.
Ficou encantado com as belezas naturais da cidade do Rio e Janeiro,
com a vegetação e os morros, propondo-lhe, então, um novo plano de
urbanização. Tal plano propunha um grande “edifício-autovia”, uma “auto-
estrada habitável”: edifício que, sobre si, receberia uma via de tráfego de
automóveis, acompanhando o desenho da costa ,“abraçando a paisagem [...]
‘serpente’ diante do mar” (TSIOMIS, 1998, p.13), todo sobre pilotis para não
impedir a visão da paisagem pelos pedestres. Esse plano não foi levado
adiante, sendo considerado uma utopia. No entanto, Le Corbusier elaborou
uma série de croquis, desenhos e anotações sobre a cidade que mostravam
seu profundo conhecimento sobre os lugares.
30
Figura 1: Croqui do Projeto 1 do edifício-viaduto proposto por Le Corbusier para o Rio de Janeiro em 1929, um desenho inicial de uma estrutura urbana com quatro ramificações. (FLC 30091)
Le Corbusier retorna ao Rio pela segunda vez em 1936, a fim de
ministrar seis conferências (“A Civilização das Máquinas”, “A desnaturalização
do fenômeno urbano e sua conseqüência: o grande desperdício”, “O lazer
como a ocupação verdadeira da civilização das máquinas”, “A moradia como
prolongamento dos serviços públicos”, “Os tempos novos e a vocação do
arquiteto: programa de uma faculdade de arquitetura” e “Os Congressos
Internacionais de Arquitetura Moderna legislam sobre bases novas”) e dar seu
parecer em dois projetos correntes: a sede do Ministério da Educação (MESP)
e a Cidade Universitária da Universidade do Brasil. Ambos os projetos estavam
sob a direção de Lúcio Costa e seus colaboradores, tais como “Oscar
Niemeyer, Affonso Reidy, Jorge Moreira, Carlos Leão e Ernani Vasconcellos no
Ministério; Reidy, Firmino Saldanha, Souza Reis, Ângelo Bruhns e Paulo
31
Fragoso na Cidade Universitária, que viam em Le Corbusier o ‘Brunelleschi do
século XX’”. (TSIOMIS, 1998, p.26)
Conferência de 10 de agosto de 1936
“A moradia como prolongamento dos serviços públicos”.
Le Corbusier inicia sua palestra dizendo que “a organização da
produção industrial e o fim do desperdício” trariam como conseqüência para a
vida pública, um espaço de tempo desconhecido até então: o espaço destinado
ao lazer.
Os serviços públicos, como eletricidade, adução de água, etc, deveriam
abastecer todas as residências, chegando através de canalizações. Ainda, a
isso tudo, deveriam ser acrescentados os serviços de transporte público e a
rede de esgoto, responsabilidades do governo.
Se isso ainda não era possível, era porque os urbanistas estavam
trabalhando apenas no solo trivial, bidimensional, quando o Urbanismo era um
problema que deveria ser tratado em três dimensões.
Conferência de 14 de agosto de 1936
“Os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna legislam sobre bases
novas”.
A partir daquele momento, o Urbanismo deveria estabelecer um
planejamento. “[...] A razão de ser da autoridade é de legislar [...]”. (LE
CORBUSIER, 1998, p.50)
Le Corbusier descrevia o Rio de Janeiro que conhecera em 1929: as
baías, o mar, os fenômenos topográficos, os espigões rochosos, que aos
poucos se encheram de casas. Considerava o Rio uma cidade feliz, em 1929.
No entanto, os privilegiados apropriaram-se dos melhores locais, enquanto os
outros partiram para os subúrbios, com isso, os pobres passariam a viver em
condições de extrema precariedade. Portanto, dever-se-ia salvar a cidade do
Rio de Janeiro: ela estava ameaçada.
Para ele, a cidade oferecia uma natureza espetacular, incomparável,
com um horizonte belo e radioso, que deveria ser considerado patrimônio
público. Portanto, as construções não deveriam se desenvolver como muralhas
egoístas. O Urbanismo deveria desenvolver circulações que permitissem que
32
se tomassem posse daquela magnífica paisagem, “instalando em cada baía
grandes viadutos, que serviriam de meio de comunicação de um ponto a outro”.
(LE CORBUSIER, 1998, p.50)
Dessa maneira, essa reforma que ocorreria no Rio de Janeiro poderia se
expressar através de novas formas arquitetônicas, tais como: “grandes edifícios
em altura, outros edifícios que casam bem com as necessidades paisagísticas,
enfim, a construção das auto-estradas tomando posse da paisagem, com as
habitações dando suporte à sua própria auto-estrada.” (LE CORBUSIER, 1998,
p. 51)
Figura 2: Recorte do croqui desenhado por Le Corbusier na Conferência de 14 de agosto, realizada no Rio de Janeiro, na qual propunha a construção de auto-estradas projetadas a partir das imposições paisagísticas, com habitações dando suporte à própria auto-estrada, na reforma celular que deveria ocorrer no Rio de Janeiro. (Coleção P. M. Bardi, MNBA, Rio, no do inv.: 13728)
5. A CONSTITUIÇÃO DA ARQUITETURA MODERNA BRASILEIRA.
A partir da Revolução Francesa (1789) tiveram início as invasões
napoleônicas, que acabaram por acarretar a transferência da corte lusitana
para o Brasil, que trouxe consigo o estilo Neoclássico. Mais tarde, em 1850, a
Revolução Industrial trouxe a desnaturalização do tempo e do espaço, a
33
introdução de novos materiais, o êxodo rural e a necessidade de adaptação a
um novo estilo de vida - isso implicou a necessidade de uma nova organização
da cidade a fim de atender à nova demanda. Entre 1914 e 1918, a Primeira
Guerra Mundial causou uma grande destruição no território europeu,
acarretando a necessidade de sua reconstrução, o que deu abertura para o
desenvolvimento da arquitetura moderna européia, que viria a influenciar a
arquitetura moderna brasileira.
No Brasil, a Semana de Arte Moderna, em 1922, teve o intuito de
mostrar a transformação modernista que estava ocorrendo na arte. Entretanto,
no âmbito arquitetônico, não conseguiu apresentar uma produção moderna. No
ano seguinte à primeira vinda de Le Corbusier ao Brasil, houve a Revolução de
1930, golpe de Estado por parte de Vargas, impulsionando a industrialização e
a modernização do país.
Mais tarde, em 1939, explode a Segunda Guerra Mundial, novamente
trazendo grande destruição.
Todas essas mudanças acarretaram transformações ideológicas e a
nova arquitetura deveria funcionar segundo a lógica internacional da indústria.
Assim, na virada do século XIX para o XX, os europeus buscavam a
recuperação dos estilos históricos autênticos nacionais. Essa busca, no
Brasil, apareceu na constituição da sua arquitetura moderna que, na linha
nacionalista, encontrou referência nos estilos colonial, barroco e indígena.
Para muitos, o arquiteto brasileiro Lúcio Costa é considerado o
inaugurador da arquitetura moderna no Brasil, uma vez que foi quem primeiro
tentou criar uma identidade arquitetônica no país. Nesse sentido, a aspiração
era a de voltar à arquitetura colonial, trazida pela coroa lusitana e adaptada às
condições próprias do território brasileiro. No entanto, naquele momento, essa
escolha não seria favorável, uma vez que não conseguia se ligar ao processo
corrente de industrialização. A arquitetura adotada passou a ser a arquitetura
moderna, ainda nos moldes europeus. Mas assim como a arquitetura colonial,
a arquitetura moderna européia, ao chegar ao Brasil, teve que sofrer
34
adaptações, devido às diferenças de clima, técnicas construtivas e nível de
industrialização. Com isso, uma nova arquitetura foi criada, com feições
próprias. Não obstante, houve uma aceitação muito ampla desse novo tipo de
arquitetura por todo o país, chegando a ser tomada como símbolo naquela
época, estando presente tanto em construções públicas quanto em privadas.
Por outro lado, há uma corrente que elege Warchavchik como o pioneiro da
arquitetura moderna no Brasil. Segundo Aluízio Teixeira “Warchavchik é russo
e nunca tive uma impressão mais forte da casa brasileira”.
Com isso, foi a partir da realização do pavilhão brasileiro na Feira
Internacional de Nova York, em 1939, e a construção do edifício do MESP
(Ministério de Educação e Sáude Pública), em 1942, que a arquitetura
brasileira despertou o interesse internacional.
Após 1937 houve uma grande demanda de construções para novos
edifícios públicos, baseados nas novas linguagens arquitetônicas.
Várias análises críticas foram feitas por historiadores, discutindo essa
constituição e o reconhecimento da arquitetura moderna brasileira,
configurando uma verdadeira trama. No entanto, algumas questões ainda se
mostravam contraditórias, tais como a ausência de relação cronológica entre a
arquitetura e a arte moderna no âmbito nacional; o fato de as condições
encontradas no Brasil, país de base agrária e pouco industrializado, não serem
aquelas consideradas necessárias para a constituição da arquitetura moderna
internacional; e, ainda, a cisão da relação entre a arquitetura e a cidade, uma
vez que as cidades eram muito precárias perante uma arquitetura muito
elaborada.
6. A POLÍTICA HABITACIONAL: A TRAJETÓRIA DA QUESTÃO DA HABITAÇÃO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA E O ESTADO NOVO.
Em meados do século XIX, com o florescimento das atividades urbanas
associadas ao complexo cafeeiro e à indústria, observou-se uma extraordinária
expansão do mercado de trabalho e, com isso, uma grande leva de
trabalhadores chegou às cidades, que não contavam com infra-estrutura
35
necessária para recebê-los e abrigá-los adequadamente. Em 1880, essa
situação culminou num grande problema de saúde pública, devido à
aglomeração e à insalubridade gerada nas cidades, principalmente pela
construção de cortiços sem qualquer estrutura, quase sempre desprovidos de
condições adequadas de ventilação e insolação, e com precária rede de
serviços de água e esgoto. Foi nesse primeiro contexto que o autoritarismo de
ordem sanitária apareceu pela primeira vez, fazendo com que a questão da
habitação social viesse à tona. A partir de então, essa questão passou a
receber tratamento primordial do Estado, e a ação estatal na Primeira
República permaneceu quase sempre voltada para esse problema, já que a
situação problemática os levou a agir de forma rigorosa, uma vez que houve a
atuação intensiva de higienistas, médicos e engenheiros clamando, nos últimos
anos do século XIX, pela criação de leis sanitárias. Assim, “O poder público
atacou em três frentes: a do controle sanitário das habitações; a da legislação e
código de posturas e a da participação direta de obras de saneamento das
baixadas, urbanização da área central e implantação da rede de água e
esgoto” (BONDUKI. 1998, p.29). Para o controle das epidemias e manutenção
da salubridade, várias medidas governamentais foram tomadas, tais como a
criação da Diretoria de Higiene e a promulgação de vasta legislação de
controle sanitário, bem como obras de saneamento e abastecimento de água
potável. A epidemia do cólera foi uma grande oportunidade para os higienistas
aplicarem todo o seu arsenal de esquadrinhamento de disciplina nas cidades.
Portanto, já nessa época, iniciou-se a intenção de eliminar os cortiços – ou, ao
menos, regulamentar sua construção. O ideal a ser atingido passou a se
basear nas vilas operárias (vilas muitas vezes promovidas pelas próprias
indústrias para abrigar seus trabalhadores), de casas unifamiliares: modelos de
habitação econômica e higiênica. Sendo assim, do final do século XIX até
1930, o Estado, então liberal-oligárquico, passou a tratar a questão de maneira
repressiva, utilizando-se da ordem sanitária, num período em que surgiram
várias modalidades de moradia por parte da iniciativa privada, para alojar os
setores sociais de baixa e média renda – quase todas, moradias de aluguel,
com muito pouca infra-estrutura e conforto.
36
Em 1930, com a Revolução na qual Getúlio Vargas assumiu a
presidência, consolidou-se uma situação em que o poder do mercado passou a
impregnar a política. Isso fez com que, em 1937, fosse estabelecida uma
situação perfeita para que Vargas implantasse o Estado Novo e governasse de
maneira ditatorial. Nesse período, ocorreram muitas transformações
econômicas e o desenvolvimento industrial foi incrementado. Ainda, foi em tal
conjuntura que houve o surgimento das favelas em São Paulo e o
adensamento das do Rio de Janeiro, enquanto a habitação social estava nas
mãos dos empregadores, que transformavam a terra em mercadoria. Getúlio
Vargas, então, transformou a habitação social em instrumento do Estado;
afinal, ele percebeu que precisava de mais apoio social, e a construção de
habitações mais dignas elevaria sua popularidade entre as classes menos
abastadas. É importante ressaltar que Vargas foi conhecido, nessa época,
como o “pai dos pobres”. Assim, desenvolveu até 1946 uma estratégia para
que o Estado produzisse habitação social, começando, a partir de 1931, com o
congelamento dos aluguéis – o que já significou um apoio popular intenso –
passando pela autoconstrução da casa própria em loteamentos periféricos –
solução funcional, uma vez que a produção estatal não seria suficiente para
todos. Naquele momento, tínhamos um país que estava crescendo muito no
sentido urbano, o que podia ser mais observado nas cidades capitais e,
também, iniciava-se a formação de pólos políticos, principalmente São Paulo e
Rio de Janeiro. A política de habitação se tornou uma política pública, muito
controversa e complexa, contando com a criação de órgãos como a Fundação
da Casa Própria e os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) – com isso,
Vargas conseguiu o apoio popular que almejava. Os operários dessa época se
organizavam em sindicatos, os quais tinham seus próprios IAPs. Vargas
obrigou que todos fossem sindicalizados, pois o imposto sindical recolhido
geraria uma manutenção permanente para o sindicato, e iria para diversas
direções; assim, os IAPs puderam promover a habitação e fortaleceram-se. Por
outro lado, a produção dos IAPs foi desigual, uma vez que contou com projetos
de grande qualidade ao lado de empreendimentos bastante ruins.
37
7. O DEPARTAMENTO DE HABITAÇÃO POPULAR DA PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL: PEDREGULHO – INSERÇÃO NO QUADRO DA ÉPOCA E DESCRIÇÃO DO PROJETO.
Até hoje, na história da arquitetura moderna brasileira, é possível dizer
que apenas dois conjuntos habitacionais se destacaram por suas qualidades: o
Conjunto Residencial do Pedregulho e o Conjunto Habitacional da Gávea,
situados no Rio de Janeiro. Ambos foram projetados pelo arquiteto Affonso
Eduardo Reidy, sob a direção da engenheira Carmen Portinho, para o
Departamento de Habitação Popular da Prefeitura do Distrito Federal, à época
o Rio de Janeiro, com o objetivo de abrigar funcionários municipais.
Claramente, Pedregulho foi o de maior destaque nacional e internacional, por
uma série de razões, acabando por mandar para segundo plano outras
realizações importantes no campo da habitação social da época, conhecida
como “ciclo de projetos habitacionais”, do qual Pedregulho não foi nem obra
isolada, nem ponto de partida.
Grande parte dos arquitetos que estavam trabalhando nessa época para
os IAPs ou para o Departamento de Habitação Popular da Prefeitura do Distrito
Federal vincularam-se aos procedimentos da arquitetura moderna, que nos
anos de 1920 estava muito preocupada com uma produção em larga escala de
moradias para trabalhadores, tentando compatibilizar “economia, prática,
técnica e estética” (BONDUKI, 1998). No entanto, a incorporação dos princípios
da arquitetura moderna foi apenas parcial, perdendo-se os desafiadores
horizontes sociais, onde “o resultado econômico não deveria se desligar da
busca de qualidade arquitetônica e urbanística, e da renovação do modo de
morar, com a valorização do espaço público” (BONDUKI, 1998, p.134), o que
acabou por empobrecer os projetos de habitação social. A busca de métodos
de produção em grande escala para a habitação social acabou sendo tema do
segundo CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), em 1929,
uma vez que a arquitetura moderna do pós-guerra estava preocupada com a
problemática desse tipo de moradia, uma das questões centrais dos anos 20,
onde era concebida uma arquitetura como arte social. Em 1933, no quarto
CIAM, Le Corbusier publica a Carta de Atenas, um relatório das necessidades
básicas que deveriam ser respeitadas a fim de garantir dignidade às habitações
38
dos trabalhadores e das quatro funções principais que deveriam ser permitidas
a partir do urbanismo: habitar bem, circular com segurança, trabalhar em locais
próximos à habitação e recrear-se, cultuando o corpo e o espírito nas horas
vagas.
Na produção habitacional dos anos 30 a 50, permeava a ideia européia
dos anos 20 e 30, que pregava que a arquitetura não deveria ser apenas
técnica, mas deveria, sobretudo, tentar participar da transformação da
sociedade a partir da construção do ambiente. O problema da moradia tornou-
se tamanho que, logo após a Revolução de 30 ocorreram transformações na
Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), do Rio de Janeiro, que surgiu como
um símbolo de mudança.
Já na década de 40, predominava a ideia de que a principal tarefa da
arquitetura seria a de levar adiante a modernização, num projeto de
“modernização social”, por meio de um espaço racionalizado e de um novo
modo de morar – eram esses os desafios enfrentados ao construírem
habitações sociais.
A influência da arquitetura moderna nas origens da habitação social no
Brasil foi muito importante e expressiva, contribuindo em diversas áreas, como
a renovação da tipologia de projeto, do processo construtivo e da implantação
urbanística.
No entanto, muito mais poderia ter sido feito em habitação social àquela
época, mas a recusa em pesquisar, analisar e incluir essas obras,
predominantes na arquitetura moderna brasileira, contribuiu para reforçar a
separação entre arquitetura e habitação social que aconteceu a partir de 1964.
Nessa conjuntura, foi em Reidy e Portinho, na obra do Conjunto
Residencial Prefeito Mendes de Moraes - Pedregulho (viabilizada pelo
Departamento de Habitação Popular do Distrito Federal), que a relação entre
habitação social, modernização, educação popular e transformação da
sociedade, aparece mais bem articulada e resolvida. O Conjunto dispunha de
serviços que lhe permitiam certa autonomia e o diferenciavam dos demais, tais
como: escola primária; ginásio, piscina, vestiários e campos de jogos ao ar
livre; posto de saúde, mercado e assistência social. Os autores defendiam que,
39
sem esses recursos, o Conjunto tenderia a transformar-se em uma favela;
afinal, pontuavam que a função de habitar não se resumia apenas à vida dentro
de casa, devendo ser estendida às atividades externas. Assim, da mesma
maneira como deveriam ser previstos o abastecimento de água, o sistema de
esgoto, a iluminação e etc, também deveriam ser considerados o
abastecimento de gêneros alimentícios, ensino, lazer, assistência médica e
esportes, seguindo àquilo que foi colocado por Le Corbusier na sua Carta de
Atenas.
É importante citar que a origem da criação do Pedregulho data de 1945,
ano em que a engenheira Carmen Portinho regressou da Inglaterra, onde havia
colaborado com arquitetos e engenheiros britânicos na reconstrução das
cidades no pós-Guerra. Foi ela que propôs ao secretário de Obras e Viação da
Prefeitura do Distrito Federal a criação do Departamento de Habitação Popular,
uma vez que o problema da moradia no Brasil era de tão difícil solução quanto
na Europa (embora estivessem em situações diferentes), sendo a idealizadora
do projeto do Conjunto do Pedregulho. A ideia era a de construir um novo tipo
de moradia, direcionada à população de baixa renda: habitações localizadas
próximas aos locais de trabalho, o que diminuiria o tempo excessivo e
desgastante de deslocamento entre a moradia e o trabalho, onde os moradores
vivessem com dignidade, em habitações de dimensões mínimas, mas
razoáveis, com ventilação, insolação e áreas verdes suficientes para a
proteção contra a proliferação de doenças, onde pudessem desfrutar das
comodidades da vida moderna (no caso do Pedregulho, a grande inovação foi
a instalação da lavanderia com lavadoras de roupa mecânicas) e praticar
esportes ou atividades de recreação, tendo, ainda, acesso às artes, como
contato com painéis e murais feitos por artistas da época. Sendo assim,
Pedregulho está localizado no bairro industrial de São Cristóvão, projetado
para proporcionar aos servidores municipais de baixa renda habitação barata
próxima ao trabalho. Devido ao exagerado crescimento linear que a cidade do
Rio de Janeiro sofreu, agravado pela deficiência das vias de circulação e
precário sistema de transportes, os deslocamentos diários da população eram
penosos e tomavam muito tempo. A localização da habitação próxima ao
40
trabalho era sinônimo de conforto, economia e uma melhor qualidade de vida
para o trabalhador.
O terreno onde o Conjunto foi implantado contava com área total de
52.142m2, situado na encosta oeste do morro do Pedregulho, onde se
localizavam os reservatórios de distribuição de água da cidade. A topografia do
terreno era irregular e muito acidentada, sofrendo um desnível de 50m. O local
contava com uma vista magnífica da Baía de Guanabara, no sentido da
Avenida Brasil, principal rodovia da cidade, que o ligava ao centro.
Figura 3: Corte do terreno.
O início da configuração do programa para o Pedregulho se deu a partir
de um censo dos futuros moradores e um levantamento minucioso das
condições existentes, realizado pelo Departamento de Habitação Popular.
Houve a inscrição de 570 famílias, cujas condições sociais e econômicas foram
analisadas, incluindo a visita de uma assistente social às famílias a fim de
verificar a veracidade das informações, para, então, constituir-se a base de
elaboração do projeto. A partir de um estudo de dados, verificou-se a
necessidade de lançar mão de diversos tipos de apartamentos, dadas as
diferenças existentes entre as famílias. Por fim, a densidade demográfica
atingida foi de 500 habitantes por hectare, bem acomodados O censo também
permitiu que a criação do programa de serviços complementares fosse feita
com mais cuidado, proporcionando, também, a divisão da capacidade dos
estabelecimentos de assistência à infância de acordo com as diferentes idades,
sendo: creche (0 a 2 anos), escola materna (2 a 4 anos), jardim de infância (4 a
7 anos) e escola primária (7 a 11 anos).
41
Figura 4: Vista aérea do conjunto.
7.1.Blocos de habitação
Quanto aos apartamentos, o projeto compreendia quatro blocos, todos
com estacionamento, divididos em:
7.1.1.Bloco A:
Tal bloco atingia a extensão de 250 metros, contando com 272
apartamentos, estando situado na parte mais alta do terreno, seguindo a forma
sinuosa da encosta do morro, numa curva de nível mediana do talude.
42
Essa implantação tinha o sentido de reconhecer e enfatizar a
característica natural existente, dando origem ao prédio curvo e serpenteante,
numa relação de complementação entre edificação e natureza. Assim, a
natureza ganhava status de elemento de composição de projeto.
Sem dúvida, a imagem mais forte e representativa relacionada com o projeto é a desse edifício. O seu valor arquitetônico está presente tanto de maneira isolada, quanto perante o conjunto edificado, criando, assim, uma espécie de dualidade nas relações compositivas com as demais edificações. Analisando-se as plantas de implantação do conjunto, fica evidente o protagonismo exercido pelo grande edifício curvo em relação aos demais objetos. O caráter monumental aliado à originalidade do seu desenho conferem ao bloco A um destaque formal que não vislumbramos nas demais edificações. Por outro lado, ao analisarmos o conjunto a partir de sua volumetria, centrando nossa atenção nos edifícios que complementam o programa, a barra ondulada adquire uma importância compositiva secundária, transformando-se num grande pano de fundo e transmitindo seu protagonismo aos objetos estudados. Reidy busca com essa ação o típico efeito dos espaços barrocos dos santuários religiosos do Brasil colonial, onde objetos menores e de cota inferior vão mudando de proporção em relação aos objetos mais distantes e mais altos, à medida que nos aproximamos na subida, proporcionando um inteligente jogo de hierarquias tipológicas que muda constantemente de acordo com o ponto de vista do espectador. (SILVA, 2005, pág.80)
O acesso aos diversos pavimentos era feito por escadas, dispostas de
50 em 50 metros, sendo que, nos dois pavimentos inferiores (1o e 2o
pavimentos) situavam-se apartamentos de apenas um quarto, enquanto os
superiores (4º, 5º, 6º e 7º pavimentos) abrigavam apartamentos duplex de um a
quatro dormitórios (a solução do apartamento duplex foi escolhida por
apresentar um melhor rendimento e, portanto, viabilizar um maior número de
unidades no bloco). Entre os pavimentos de apartamentos, o terceiro andar era
livre, abrigando os equipamentos sociais como a creche e o serviço social. Era,
ainda, através desse andar que se dava o acesso ao conjunto, dispensando,
assim, a necessidade de elevadores e tirando proveito do desnível natural do
terreno.
43
Figura 5: corte e vista parcial do Bloco A.
44
Figura 6: Planta geral dos diversos pavimentos do Bloco A.
Com o objetivo de facilitar a higiene, a solução de banheiros e
corredores internos foi abolida, com a opção por corredores de circulação
externos, por onde as cozinhas eram iluminadas e ventiladas, enquanto os
banheiros tinham janelas com abertura direta para o exterior.
7.1.2.Blocos B1 e B2:
São dois blocos em lâminas retangulares paralelos entre si,
apresentando duas ordens de apartamentos duplex, de dois, três ou quatro
dormitórios, com plantas flexíveis (os apartamentos de três dormitórios
poderiam se tornar apartamentos de quatro dormitórios se o apartamento
45
vizinho de três dormitórios perdesse um dormitório e ficasse apenas com dois),
somando 56 apartamentos, atingindo cerca de 80 metros de comprimento.
Figura 7: Planta geral dos diversos apartamentos do Bloco B.
Figura 8: Vista parcial do Bloco B.
7.1.3.Bloco C:
Esse bloco é apenas um projeto e não foi iniciado, mas previa 12
pavimentos, contando com apartamentos de dois, três ou quatro dormitórios,
sendo necessária a instalação de um elevador.
46
7.2.Escola.
É fato que a escola primária é um dos elementos mais importantes da
comunidade, considerada um “centro de influência atuando na formação do
caráter e das personalidades das gerações futuras” (REIDY, 1955). A presença
da escola no Conjunto foi, também, de extrema importância para que os
adultos também pudessem estudar, devido à aproximação com os professores
e o ensino. Isso fazia parte da ideia de que, uma vez que se mostrava à
sociedade um novo modo de morar no mundo moderno, era necessário
reeducá-la para essa nova maneira de viver. No caso, as crianças estavam
aprendendo, além de tudo, a se portarem em comunidade. O ensino havia
passado por transformações radicais, acarretando a necessidade de novos
planos de edifícios escolares.
Surgiram as salas de classe, unidades individuais, que permitiam uma
maior proximidade entre mestres e alunos, uma maior flexibilidade na
disposição do mobiliário e maior contato com o exterior, o que fazia dessas
salas os elementos mais básicos de uma escola moderna. No terreno, o lado
de sombra era o Sul, portanto as salas de classe deveriam estar orientadas
nessa direção, sendo projetadas na forma quadrada. O norte abrigava o
corredor de circulação, tratado com cobogós de terracota, a fim de amenizar a
insolação direta mas permitir constante ventilação cruzada, propiciada pelas
aberturas altas nas paredes das classes. Ainda, essas salas se prolongavam
até terraços ao ar livre, que poderiam ser utilizados para a realização de
trabalhos escolares. A escola contava, por fim, com: cinco salas de classes,
realizadas em um bloco sobre pilotis (o que propiciava um local para recreação
coberto); instalações sanitárias; vestiário; administração; biblioteca; sala de
estar; cantina e uma pequena cozinha; sendo o acesso às salas de classes
feito por meio de uma rampa coberta.
47
Figura 9: Vistas e planta da escola, ginásio e vestiários.
Para a escola, Burle Marx produziu um mosaico para o pátio e um mural
para a Diretoria, sendo que Portinari realizou um painel de azulejos na fachada
do ginásio, utilizando-se de azulejos desenhados por ele e encomendados
apenas para a obra do Pedregulho, chamados de “crianças pulando carniça”.
7.3.Posto de saúde.
Como apoio às famílias, também foi construído um posto de saúde,
destinando-se, principalmente, à profilaxia do conjunto, contando com
assistência médica, dentária e pronto socorro. Através do controle sanitário,
muitas doenças seriam evitadas ou, então, poderiam ser tratadas. O posto
48
contava com um sistema completo, apresentando: serviço de matrícula,
triagem, salas médicas, farmácia, salas de repouso e curta internação, sala
para pequenas intervenções cirúrgicas, pequeno laboratório de análises; sala
de esterilização; consultório dentário com sala de prótese e câmara escura;
cozinha; rouparia; despejo; instalações sanitárias; sala dos médicos; posto de
enfermaria e sala de administração.
7.4.Mercado.
Havia um pequeno mercado, cujo eixo de direção maior era no sentido
leste-oeste, com acesso ao público pela face norte, parcialmente protegida por
brises-soleil móveis, de eixo horizontal. Além do local de vendas, o mercado
dispunha de boxes para armazém, açougue, peixaria, quitanda e laticínios,
além de uma padaria equipada com forno elétrico. Assim, abasteceria não
apenas o conjunto, mas também os bairros vizinhos.
7.5.Lavanderia mecânica.
A lavanderia mecânica, outra facilidade proporcionada aos habitantes,
se encarregava da lavagem de toda a roupa dos moradores, sem qualquer
outra despesa além do aluguel do próprio apartamento. Esse foi um modo de
tentar proporcionar às donas de casa mais tempo para a realização de outras
atividades. A construção da lavanderia mecânica também diminuiu o custo da
construção dos apartamentos, uma vez que não foi necessária a introdução da
área de serviço interna, evitando, também, o desfile de roupas penduradas
encharcando as fachadas – o que era encontrado até em habitações de luxo. A
lavanderia dispunha de locais para a marcação das roupas (a fim de evitar que
se misturassem), desinfecção, lavagem, secagem, passagem e
armazenamento – tudo feito por serviço mecanizado. Essa lavagem coletiva de
roupas, que a princípio causou constrangimento nas famílias que não queriam
expor sua pobreza, explícita nas vestimentas, acabou sendo considerada uma
das maiores conquistas que o Departamento de Habitação conseguiu ao
implementar o Conjunto. Isso porque a lavanderia se tornou um valioso auxiliar
no serviço social, produzindo uma sensível modificação no aspecto e modo de
49
vida dos moradores, que passaram a se apresentar mais limpos e bem
vestidos, principalmente as crianças, cujas mães, antes, não dispunham de
tempo para lavar e passar com freqüência suas roupas, além de fazerem todo
o serviço doméstico.
7.6.Ginásio, piscina, campos de jogos ao ar livre e vestiários.
Junto à escola, encontravam-se o ginásio, a piscina, os vestiários e
campos de jogos ao ar livre: um conjunto completo para a prática da cultura
física, uma das necessidades básicas do homem, enfatizada na Carta de
Atenas, de Le Corbusier, que contava com instrutores para dirigirem as
atividades esportivas. O fato de o bairro ser quente e afastado das praias fez
necessária a construção de uma piscina de 12m por 25m. Ainda, o lado do
ginásio que dava para a piscina recebeu portas basculantes que, quando
abertas, viravam marquises transformando toda a área em um só ambiente,
provido de uma área de sobra.
7.7.Questões importantes ao projeto.
As questão da ventilação e da insolação foram muito importantes no
projeto e estiveram em pauta a todo momento, uma vez que o terreno se
encontrava em uma orientação desfavorável. Assim, para conter o excesso de
incidência solar foram usados diversos dispositivos, inclusive o brise-soleil,
tipicamente moderno, sendo móvel de eixo horizontal ou de eixo vertical,
conforme a fachada (norte ou oeste); também, cobogós de terracota de
diferentes tipos e, ainda, blocos de cimento auxiliavam nessa função. Já, “para
corrigir o excesso de insolação dos compartimentos situados na face oeste dos
blocos A e B, foram usadas venezianas de madeira, tipo guilhotina equilibrada,
no bloco A, e basculante no bloco B1 e B2” (REIDY, 1955). No sentido da
ventilação, a escolha da construção sobre pilotis, além de propiciar espaços
cobertos para a recreação das crianças e estares protegidos para os
moradores, assegurava uma boa circulação de ar para o conjunto. A ventilação
cruzada foi sempre observada. Na circulação, a ideia era a separação dos
caminhos de pedestres e automóveis, fazendo com que os moradores não
50
precisassem atravessar as ruas de tráfego de veículos, proporcionando-lhes
uma maior segurança.
Um aspecto muito importante presente no Pedregulho era a vontade de
uma integração entre a pintura, a arte, os jardins e a arquitetura, a chamada
“síntese das artes”, propiciando um incremento à vida dos moradores. Assim,
foi confiado a Burle Marx o paisagismo da área, e a Anísio Medeiros e Cândido
Portinari, os desenhos dos azulejos que revestem as paredes dos vestiários, do
posto de saúde e do ginásio, e do mosaico de vidro da escola.
O Conjunto ainda contava com uma regulamentação, que estabelecia
que os apartamentos seriam alugados e destinados exclusivamente a
servidores municipais de baixa renda e suas famílias, cujo aluguel seria pago
através de folha de pagamento. Os futuros moradores deveriam ser
submetidos a exames no Serviço de Biometria Médica da Prefeitura – sendo
vetados aqueles que apresentassem doenças infecto-contagiosas. Ainda, ao
assinar o contrato de locação, o locatário se comprometia a, periodicamente,
permitir a visita de funcionários do Departamento de Habitação Social, para
uma vistoria em todas as dependências de seus apartamentos; além das
regras de uso da lavanderia e da coleta de lixo, enquanto o Serviço Social se
incumbia da recuperação dos problemas individuais, familiares, médicos e
sociais.
8. PEDREGULHO – ANÁLISE DAS INFLUÊNCIAS E CONCLUSÕES.
A Arquitetura Moderna Brasileira é muito marcada pela doutrina
funcionalista européia, dos anos 1910 a 1930, trazida principalmente por Le
Corbusier, difundida em sua visitas ao Brasil (1929 e 1936).
Dentre os jovens arquitetos que se formavam naquele momento, tais
como Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, Reidy foi o mais fiel ao espírito de Le
Corbusier, e provavelmente o que mais foi influenciado pelo mestre franco-
suíço.
O ano de 1950 foi um marco na carreira do arquiteto, pois foi quando a
crítica internacional se debruçou sobre seu trabalhou, graças à sua realização
do Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, conhecido como
51
Pedregulho. Nesse Conjunto, revelam-se influências variadas, que também
moldaram sua formação. O contato direto com Le Corbusier, bem como a
leitura de seu livro Por Uma Arquitetura, permitiram que seu trabalho sofresse
uma mudança significativa, revertendo o aspecto plasticamente uniforme e
monótono que marcavam seus projetos até 1936 - tal reversão pode ser
observada, por exemplo, nas três propostas que elaborou para a Sede da
Prefeitura do Distrito Federal: a primeira, de 1932, apresenta uma planta
simétrica e fachadas monótonas; a segunda, de 1934 já apresenta mudanças
na planta, mas no tratamento das fachadas permanece um aspecto monótono;
já a terceira, de 1938, apresenta nitidamente influências de Le Corbusier e um
maior dinamismo tanto na organização do espaço quanto no tratamento dado
às fachadas. Essa presença de Le Corbusier pode ser observada também na
minúcia com que foram realizados os estudos preliminares do projeto.
A obra foi definida por uma série de volumes simples e bem articulados,
a partir de uma regra compositiva simples, cujo aspecto formal acusava as
funções: o paralelepípedo para prédios residenciais; o prisma trapezoidal,
simples ou composto, aos edifícios públicos essenciais e a utilização de
abóbada para as construções esportivas, faziam parte de uma definição formal
bastante próxima a Le Corbusier. Essa regra compositiva previa também a
implantação dos blocos residenciais paralelos entre si e dos blocos de demais
funções implantados perperdicularmente entre si (exceto o posto de saúde que
resultou numa planta quadrada). Entre os edifícios residenciais, a escola e o
posto de saúde, formou-se o local de implantação da principal praça e local de
recreação do Conjunto. Ainda, ao lado de tal racionalismo, muito lhe agradava
a plasticidade alcançada por Niemeyer e, portanto, as descobertas desse
arquiteto, no momento da construção do Conjunto da Pampulha, e ele as
retoma, adaptando-as para aplicá-las, por exemplo, nos edifícios de serviços
comuns (a ideia era a de proporcionar a eles uma maior plasticidade, por
serem o ponto que distinguia Pedregulho de outros conjuntos habitacionais); no
entanto, seu emprego foi mais dosado de dinamismo e, portanto, mais discreto.
A obra também continha sutis significados, como por exemplo o fato de
a escola e suas dependências ocuparem uma posição central na implantação
do conjunto, destacando, assim, a sua importância. Além de ser a obra mais
52
original, para o arquiteto ela era o símbolo do progresso, num país onde quase
metade da população era analfabeta - e foi devido a isso tanto cuidado no
projeto desse edifício. Afinal, as crianças que tivessem a capacidade de
freqüentar essa escola, ocupariam, mais tarde, um lugar mais digno na
sociedade. Juntando-se isso ao ganho que os pais também tiveram, ao terem
contato direto com os professores e com a educação, que era recebida pelos
filhos, era conveniente dar à construção uma profunda riqueza plástica e
decorativa, para que ela se destacasse das demais e, assim, fizesse com que
os moradores tivessem por ela um profundo respeito. No âmbito arquitetônico,
a escola estava diretamente ligada às dependências esportivas, sendo tal
fusão marcada materialmente pelo jogo de rampas e marquises, que eram os
acessos comuns às duas obras e, no plano estético, por um equilíbrio baseado
numa série de oposições: os arcos tensos do ginásio e seu aspecto
enclausurante se contrapõem ao traçado retilíneo e transparente – ou
semitransparente – da escola. Apesar disso, esses contrastes não assumem o
caráter dramático das obras de Niemeyer.
Foi assim que, nos edifícios públicos, Reidy realizou uma síntese
brilhante, assimilando o vocabulário plástico de Niemeyer e o ideal racionalista
de Le Corbusier, onde a distinção entre razão funcional e estética se dissolviam
e se misturavam.
Também, o diálogo com Lúcio Costa, que acabava de construir um
conjunto residencial no Parque Guinle3, onde implantou um novo modelo de
fachada que casava admiravelmente com seu programa, a partir da utilização
de alguns tipos de elementos vazados, recortados por janelas nos corredores
de circulação e de brises-soleil para a contenção da insolação. No entanto,
embora as fachadas de Pedregulho devam muito ao modelo de Lúcio Costa, o
Conjunto Habitacional se abstém do requinte do Parque Guinle. Reidy evitou
motivos complicados para o desenho das grandes proteções e preferiu um
material mais bruto, o cimento, à elaboração da cerâmica, ainda limitando-se
às três cores primárias: azul, amarelo e vermelho. Essa adaptação indica o
3 O Parque Eduardo Guinle é um parque público localizado no Bairro das Laranjeiras, na zona sul do Rio de Janeiro, para onde Lúcio Costa projetou um conjunto de edifícios residenciais, construídos de 1948 a 1954.
53
encontro de uma linguagem adequada a um programa popular, que muito
conta a favor de Reidy.
Desse modo, nas grandes fachadas dos dois blocos B, do Conjunto do
Pedregulho, ocorre uma feliz alternância entre terraços ou galerias
parcialmente protegidos por brises-soleil móveis de um lado e, de outro, faixas
contínuas de janelas de venezianas corrediças e peitoris, resultando numa
multiplicação de planos pela sobreposição cuidadosamente estudada de cheios
e vazios, juntamente com a oposição entre cores quentes e cores vivas, que
permitiam, ao conjunto, um aspecto alegre, atenuando a dureza dos volumes
em paralelepípedo e até sua aparência um pouco tosca – vestígio da forte
influência de Le Corbusier. Nesse bloco, havia uma maior simplicidade aliada a
uma maior plasticidade.
Mas, sem dúvida, o marco de Pedregulho é o bloco residencial A, o
grande edifício serpenteante construído na parte mais alta do terreno. Embora
cronologicamente não se possa afirmar a prioridade de Reidy à invenção desse
tipo de construção – ela pode ser encontrada no pavilhão universitário do
Massachussets Institute of Technology, mas também é fato que o arquiteto só
teve conhecimento de tal obra depois de haver elaborado o seu projeto. No
entanto, as realizações são tão diferentes entre si que apresentam apenas
esse ponto em comum. No entanto, se quisermos uma verdadeira fonte de
inspiração do traçado do bloco A de Pedregulho, precisamos retornar muito
mais longe no tempo, na Inglaterra do século XVIII, nos “Crescentes” de Bath.
Ambos os locais apresentavam semelhanças, como as colinas dominando um
vasto panorama desimpedido, formando um pano de fundo. Ainda, sua curva
encontra um parentesco com o edifício-viaduto projeto por Le Corbusier para o
Rio de Janeiro, por exemplo
Mas, afinal, o que era almejado no projeto de Pedregulho? Nele, motivos
funcionais e estéticos estavam tão intimamente ligados que é difícil dissociá-
los. Manteve-se, sempre, a vontade de preservar a magnífica vista da Baía de
Guanabara, o que resultou no projeto de um prédio colocado no flanco do
declive, seguindo o contorno do mesmo, enquanto a adoção de pilotis permitiu
que se evitasse a necessidade de movimentação de terra para a contrução de
platôs. Já, uma entrada pelo terceiro andar do edifício, através de uma avenida
54
que corria ao longo de sua fachada posterior, no topo da colina, permitiu a
construção de um edifício de sete andares sem ser necessária a instalação de
elevadores.
Portanto, a planta serpenteante, de uma certa maneira, foi uma aposta
ao arquiteto através da exploração inteligente das condições naturais que, a
partir da integração de uma visão plástica, determinou o desenho de uma
curva elegante e equilibrada. O volume era, portanto, único e límpido, e a
constituição de zonas transparentes reforçava a sensação física de
tridimensionalidade. Nas suas enormes fachadas, que se estendiam por 250m,
apresentava-se uma superposição de longas faixas longitudinais, cada uma
correspondendo a um andar, tendo as diferenças de nível do chão
compensadas pelo emprego de pilotis. As imensas fachadas recebiam uma
quadriculação rigorosa, enquanto as divisões horizontais prevaleciam sobre as
verticais, conseqüência do imenso alongamento da obra, e o maior problema
era, portanto, lidar com a monotonia que resultaria da repetição dos mesmos
motivos de fechamento em cada andar devido à racionalização, visando a
economia. Assim, havia uma desigualdade entre as fachadas; a principal,
voltada para a Baía, não conseguiu escapar de uma sensação de tédio, devido
à semelhança muito acentuada; no entanto, a fachada posterior apresentava-
se resolvida de maneira brilhante, onde a curva se harmonizava perfeitamente
com a natureza, e a construção era cortada por grandes árvores em uma série
de vistas parciais muito felizes.
Portanto, em Reidy encontrava-se uma síntese muito segura de
preocupações estéticas e funcionais, aliadas ao desejo de uma pureza
clássica, e da pesquisa de efeitos de massa e continuidade espacial,
embalados por influências de alto grau, principalmente de Le Corbusier, e pela
preocupação social do arquiteto, no magnífico projeto do Conjunto Habitacional
do Pedregulho. Assim, Lúcio Costa escreveu sobre a obra, deixando-nos um
valioso depoimento:
[...] Construído em espaço restrito, de topografia ingrata e numa vizinhança arquitetônica desvalida, ele surge de repente à vista como uma revelação. Dominados pela linha sinuosa do corpo principal que se estende à feição da encosta, vazado a meia altura
55
(tal como sugeria Le Corbusier, em 1931, para Alger), os demais elementos do conjunto foram sabiamente dispostos no espaço arborizado, entabolando-se assim entre as várias formas desiguais que o constituem, o diálogo plástico necessário ao convívio harmonioso, - que a isto se reduz a arquitetura, por cuja graça o programa estritamente utilitário e funcional da habitação popular se transmuda em beleza, adquirindo sentido urbanístico e monumental. Monumentalidade prenunciadora de uma nova era, de maior equilíbrio, mais senso comum e lucidez.
O Pedregulho é, pois, simbólico – o seu próprio nome agreste atesta a vitória do amor e do empenho num meio hostil, e a sua existência mesma é uma interpelação e um desafio, pois o dinheiro do povo não foi gasto em vão: em vez de se diluir ao deus-dará, sem plano, foi concentrado, foi objetivado, foi humanizado ali para mostrar-nos como poderia morar a população trabalhadora.
Se tal não ocorre, nem parece tão cedo tornar-se possível, cabe-nos então perguntar – por quê?
Sim, por quê?
(COSTA. 1985, p.17)
56
9. BIBLIOGRAFIA.
1. ANDRADE, Geraldo E. de. Por toda a minha vida – depoimento de Carmen Portinho a Geraldo Edson de Andrade. Rio de Janeiro: EdUERJ,
1999.
2.BAKER, Geoffrey H. Le Corbusier – Analisis de la forma, tradução
de Santiago Castan. Barcelona: Gili, 1988.
3.BONDUKI, Nabil. Affonso Eduardo Reidy. Lisboa: Blau, 2000.
4.BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo:
Estação Liberdade, 1998.
5.BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo:
Perspectiva, 1981.
6.CORBUSIER, Le. Por uma Arquitetura. São Paulo: Perspectiva,
1973.
7.CORBUSIER, Le. Precisões sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
8.DORIGATI, Remo. Il Chiostro Grande Alla Certoza di Pavia.
Genova: Sagep Editrice, 1995.
9.DPA: Documents de Projects d’Architectura. Barcelona, Edicions UPC,
2003 – abril, mensal.
10.http://www.icomos.org.br/cartas/Carta_de_Atenas_1933.pdf, acesso
em 26/05/2010.
57
11.http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq040/arq040_03.asp,
acesso em 11/12/2009
12.http://www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc238/mc238.asp, acesso
em 11/12/2009.
13.MARTINS, Carlos A. Ferreira. Arquitetura moderna no Brasil: uma trama recorrente in Seminários do grupo de pesquisa em arquitetura e
urbanismo no Brasil.
14.MINDLIN, Henrique E. Arquitetura Moderna no Brasil. Rio de
Janeiro: Aeroplano Editora/IPHAN, 2000.
15.NASCIMENTO, Flávia. Entre a estética e o hábito: o Departamento
de Habitação Popular (RJ, 1946-1960). São Carlos: Escola de Engenharia de
São Carlos – USP.
16.NOBRE, Ana Luíza. Carmen Portinho: o moderno em construção.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
17.SEGAWA, Hugo M. Arquitetura no Brasil: 1900-1910. São Paulo:
EDUSP, 1997.
18.Solar Grandjean de Montigny – Centro Cultural da Pontifícia
Universidade Católica do Rid e Janeiro, Affonso Eduardo Reidy. Rio de Janeiro:
Index Promoções Culturais, 1985. – Catálogo da exposição realizada de 20 de
agosto a 21 de setembro de 1985.
58
19.www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp318.asp, acesso em
11/12/2009
20.YANNIS, Tsiomis. Le Corbusier – Rio de Janeiro: 1929, 1936. Rio
de Janeiro: Secretaria Municipal de urbanismo/Centro de Arquitetura e
Urbanismo. 1998.
10. ICONOGRAFIA. Figura 1: YANNIS, Tsiomis. Le Corbusier – Rio de Janeiro: 1929, 1936. Rio
de Janeiro: Secretaria Municipal de urbanismo/Centro de Arquitetura e
Urbanismo. 1998, pág.73
Figura 2: YANNIS, Tsiomis. Le Corbusier – Rio de Janeiro: 1929, 1936. Rio
de Janeiro: Secretaria Municipal de urbanismo/Centro de Arquitetura e
Urbanismo. 1998, pág 51
Figura 3: BONDUKI, Nabil. Affonso Eduardo Reidy. Lisboa: Blau, 2000, pág.
Figura 4: DPA: Documents de Projects d’Architectura. Barcelona, Edicions
UPC, 2003 – abril, mensal, pág.28.
Figura 5: BONDUKI, Nabil. Affonso Eduardo Reidy. Lisboa: Blau, 2000,
pág.90.
Figura 6: BONDUKI, Nabil. Affonso Eduardo Reidy. Lisboa: Blau, 2000,
pág.90.
Figura 7: BONDUKI, Nabil. Affonso Eduardo Reidy. Lisboa: Blau, 2000,
pág.94.
59
Figura 8: BONDUKI, Nabil. Affonso Eduardo Reidy. Lisboa: Blau, 2000,
pág.94.
Figura 9: DPA: Documents de Projects d’Architectura. Barcelona, Edicions
UPC, 2003 – abril, mensal, pág.33.
Top Related