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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Renato de Lima da Costa
Ética e religião em Gilles Lipovetsky: uma análise da obra
“A sociedade pós-moralista”
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SÃO PAULO2012
8/18/2019 Renato de Lima Da Costa
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Renato de Lima da Costa
Ética e religião em Gilles Lipovetsky: uma análise da obra
“A sociedade pós-moralista”
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Ciências da Religião, sob a
orientação do Prof. Dr. João Décio Passos.
SÃO PAULO
2012
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ERRATA
Agradeço também à “Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior”
(CAPES), pela bolsa de estudos a mim conferida durante 4 semestres deste curso, permitindo-
me a continuidade dos meus estudos.
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Banca Examinadora:
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______________________________
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Dedico este trabalho ao meu Senhor e Salvador Jesus
Cristo, cujo sublime amor para comigo foi demonstrado em
sofrimento voluntário numa cruz.
“As palavras que eu lhes disse são espírito e vida”
(João 6.63b).
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Agradecimentos
Agradeço primeiramente a Deus reconhecendo a sua bondade para comigo me ajudando no
desenvolvimento de cada etapa desta pesquisa.
Agradeço à minha querida esposa Silvia pelo amor, companheirismo e pelas palavras de
encorajamento durante todo o curso.
Agradeço aos meus pais por tudo o que me ensinaram e pelo que representam para mim.
Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. João Décio Passos pela excelente orientação cujo fruto
se vê na finalização deste trabalho.
Agradeço também aos irmãos da Igreja Evangélica Batista em Vila Antonieta pela
compreensão, orações e apoio nas fases finais da escrita deste texto.
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Resumo
A presente dissertação expõe o pensamento de Gilles Lipovetsky, analisando de formaespecífica a obra A sociedade pós-moralista, na qual o autor trata detalhadamente da questão
ética na contemporaneidade. No âmbito da tradição filosófica francesa, Lipovetsky propõe um
estudo de fenômenos sociais mais específicos, tendo como objeto central a sociedade
hipermoderna. Nesta sociedade determinada pelo consumo, a ética coloca-se sob novos
parâmetros. Na obra supracitada, o autor dedica-se a compreender os paradoxos que circulam
as discussões em torno da questão ética, constatando que uma ética do pós-dever, cujo
propósito se volta para a satisfação plena dos desejos subjetivos dos indivíduos nas mais
variadas ações, determina hoje as relações sociais dos indivíduos nas esferas sociais. A teoria
do autor a respeito da ética do pós-dever traz elementos significativos para uma melhor
compreensão da questão religiosa, sobretudo em sua dimensão ética. As contribuições do
autor apontam para a emergência de uma religião secularizada a gravitar no cenário socialdado, cujas características são expostas nesta dissertação. Ao contrapor as considerações de
Lipovetsky com as teorias de outros autores, é possível perceber a existência de pontos
convergentes e divergentes nas propostas éticas que eles apresentam. A análise de Lipovetsky
se mostra pertinente para a discussão de uma possível ética global, comum a todos os povos.
Palavras-chave: ética, consumo, individualismo, modernidade, religião.
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Abstract
The present dissertation exposes the thought of Gilles Lipovetsky by examiningspecifically his book The post-moralistic society, in which the author treats in detail the
ethical issue in contemporaneity. Under the French philosophical tradition scope, Lipovetsky
proposes a study of more specific social phenomenons, by having as central object the
hypermodern society. In this society determined by consumption, the ethics puts itself under
new parameters. In the book mentioned above, the author is dedicated to understanding the
paradoxes that circulate the discussions around the ethical issue, he notes that an ethics of
post-obligation, whose purposes is the full satisfaction of the subjective desires of individuals
in the most variety of actions, today determines the social relations of individuals in the social
spheres. The author's theory concerning to the ethics of post-obligation brings significant
elements for a better understanding of the religious issue, especially in its ethical dimension.
The contributions of the author pointed to the emergence of a secularized religion to gravitatein the given social setting, whose characteristics are exposed in this dissertation. By opposing
the considerations of Lipovetsky with the theories of other authors, it is possible to realize the
existence of convergent and divergent points in the ethical proposals that they present.
Lipovetsky's analysis shows itself pertinent to the discussion concerning to the possibility of a
global ethics, common to all peoples.
Key-words: ethics, consumption, individualism, modernity, religion.
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Sumário
Introdução............................................................................................................................11
Capítulo I: Lipovetsky: um olhar sobre a sociedade atual.................................15
1. A França e a Filosofia do Iluminismo...................................................................................16
2. A filosofia francesa e a crítica da sociedade contemporânea................................................19
3. O debate em torno das categorias propostas como definição da contemporaneidade..........24
4. Situando o pensamento de Gilles Lipovetsky.......................................................................32
5. Categorias principais da filosofia de Gilles Lipovetsky.......................................................39
5.1. A emergência dos tempos do hiper : a hipermodernidade..................................................40
5.2. O individualismo consumado: o hiperindividualismo.................................................. .....44
5.3. Para além da exibição social: o hiperconsumo..................................................................50
Capítulo II: A ética na sociedade pós-moralista.....................................................56
1. A constatação do movimento ético na sociedade atual.........................................................57
2. As matrizes clássicas da ética...............................................................................................61
2.1. Primeira matriz: a ética subordinada à religião..................................................................62
2.2. Segunda matriz: a ética civil..............................................................................................65
2.2.1. O surgimento da modernidade........................................................................................65
2.2.2. A sacralização do dever..................................................................................................68
2.2.2.1. Os reflexos da ética do dever na esfera sexual............................................................70
2.2.2.2. Os reflexos da ética do dever na esfera familiar..........................................................71
2.2.2.3. Os reflexos da ética do dever na esfera do trabalho social..........................................72
3. A ruptura com as matrizes anteriores: a ética do pós-dever e a sociedade pós-moralista....74
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3.1. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera sexual............................................................78
3.2. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera do consumo..................................................81
3.3. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera da saúde........................................................84
3.4. Os reflexos da ética do pós-dever na relação entre o indivíduo e seus deveres para
consigo mesmo..........................................................................................................................86
4. Proposições éticas para os tempos do hiper ..........................................................................89
4.1. Rumo a uma nova moral?..................................................................................................90
4.2. Rumo a um mundo sem valores?.......................................................................................95
4.3. Rumo a uma ética de responsabilidade?............................................................................99
Capítulo III: Elementos sobre religião no pensamento de Lipovetsky.........103
1. A religião na contemporaneidade.......................................................................................105
2. Uma religião secularizada...................................................................................................110
2.1. A espiritualidade do consumo..........................................................................................112
2.2. O fim de um altruísmo de sacrifício e a emergência de um altruísmo indolor de
massa.......................................................................................................................................116
2.3. O trabalho voluntário cujo fim é o indivíduo que o realiza.............................................122
2.4. A tolerância indiferente....................................................................................................125
2.5. Um pluralismo religioso ou uma busca plural do indivíduo religioso?...........................128
2.6. A manifestação de um neofundamentalismo?.................................................................131
2.7. O culto ao ego..................................................................................................................133
2.8. O retorno da moral sexual de tradição ou sexo comedido?.............................................136
3. Questões a se considerar.....................................................................................................140
Capítulo IV: Contribuições de Lipovetsky para a compreensão da relação
entre ética e religião nos tempos atuais....................................................................143
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1. Uma religião hipermoderna do pós-dever, é possível?.......................................................144
2. Um projeto de ética mundial num universo pós-moralista, é possível?..............................156
2.1. A proposta de um conjunto de valores globais estruturado sobre um referencialambiental.................................................................................................................................156
2.2. Uma ética global a partir de um diálogo entre as religiões..............................................162
2.3. Para além do individualismo: uma ética global a partir do sujeito..................................172
3. A sociedade pós-moralista e seu futuro..............................................................................177
Considerações finais........................................................................................................181
Bibliografia.........................................................................................................................187
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- Introdução -
A obra de Lipovetsky se mostra relevante para o estudo de questões relacionadas ao
campo da ética. Em A sociedade pós-moralista, o autor rompe com um paradigma já
estabelecido que relacionava a ética às prerrogativas do dever, da obrigatoriedade, do
comprometimento e engajamento de causas com fins comuns, enfim, à necessidade de
considerar o modo como o semelhante será afetado a partir de ações e práticas individuais e
posturas assumidas pelos indivíduos em seus mais variados campos de atuação. Na
perspectiva do autor, este paradigma marcado por uma lógica do dever está consumado,
prevalecendo agora, em tempos hipermodernos, come ele prefere denominar a configuração
social e cultural presente, uma lógica do pós-dever, refletindo a emergência de um
hiperindividualismo social desconhecido em épocas anteriores.
As correntes campanhas sociais e publicitárias cujo foco de atuação se volta para a
conscientização das massas quanto à necessidade de responsabilidade ambiental e social, bem
como de respeito ao próximo em sua liberdade de expressão, pensamento e escolha, para o
autor, apenas atestam para o imperativo da lógica do pós-dever se impondo em todas as
esferas sociais nas quais os indivíduos constroem suas relações, uma vez em que apesar da
intensificação de campanhas que promovem mensagens desta natureza, ainda assim ohiperindivíduo não se vê obrigado a se comprometer com o bem estar alheio, a se engajar em
favor de causas comuns. À época moralista, dos bons costumes e dos valores partilhados,
sobrepõe-se a época pós-moralista, onde indivíduos se engajam sem o estabelecimento de
vínculos permanentes, contribuem sem que se sintam obrigados a isso.
Seguramente, essa mudança no cenário social concernente ao campo da ética, da moral
e dos valores privados e coletivos, afeta também o campo religioso em toda a sua dimensão
ética. A obra em questão traz uma contribuição significativa para uma melhor compreensãoda questão religiosa em tempos hipermodernos.
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grandes movimentos sociais em prol de causas solidárias com a hipótese que de que se
presencie hoje um individualismo mais hiperindividualista do que em tempos passados.
Há ainda alguns problemas acerca de qual seria o reflexo das mudanças correntes no
campo da ética no universo das religiões. Em que a lógica do pós-dever, com os seus
imperativos e prerrogativas singulares, e sobre a qual Lipovetsky fundamenta a razão das
mudanças no campo ético da contemporaneidade, implica também no campo religioso?
Lipovetsky considera ser possível encontrar no universo destas mudanças sociais elementos
que permitam identificar na sociedade um retorno do sentimento de responsabilidade para
uma prática solidária mais consistente, cujos reflexos também possam ser encontrados na
religião? É possível, a partir desta suposta constatação, dizer da manifestação de um
sentimento religioso voltado para uma dimensão prática solidária mais que dogmática nacontemporaneidade? Ou pelo contrário, presencia-se exatamente o seu oposto, ou seja, uma
intensificação do sentimento de aversão à prática religiosa?
Essas e outras questões são levantadas pelo próprio objeto desta pesquisa quando
colocado em questão, e pretende-se ponderar a respeito delas de forma coerente a fim de se ter
considerações que possam apontar para descobertas relevantes.
Como hipótese, essa pesquisa pretende constatar se o pensamento de Lipovetsky,
sobretudo em sua análise precisa da questão ética atual, pode fornecer elementos para umamelhor compreensão também das mudanças inferidas no campo religioso contemporâneo.
Como sub-hipótese, pretende-se constatar se as mudanças, deslocamentos e rupturas com
paradigmas passados para a emergência de novos paradigmas no campo ético atestam para a
manifestação de uma religião secularizada permeando o cenário social contemporâneo.
A pesquisa bibliográfica está disposta no seguinte percurso metodológico. Num
primeiro momento, tornou-se imprescindível uma leitura mais precisa do conjunto de obras de
Lipovetsky a fim de que um melhor entendimento do todo do seu pensamento fosse possível.A partir disto, foi feito também um levantamento de outros autores que trabalham com
conceitos e teorias que contribuem para uma melhor compreensão acerca da questão ética. A
partir disto, optou-se pelos títulos que mais se aproximam dos objetivos a que este estudo se
propõe. Por fim, os textos levantados foram lidos e avaliados em vista de uma melhor
compreensão das principais considerações dos autores.
Pensadores como Hans Kung, Leonardo Boff e Alain Touraine, entre outros, trazem
uma contribuição significativa para os fins desta pesquisa. Suas considerações a respeito da
modernidade e dos desafios que elas impõem à questão ética, bem como à questão religiosa
são consideradas e confrontadas com as colocações de Lipovetsky. Entre os aspectos tratados
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por estes autores, destacam-se as suas colaborações no intuito de despertar as consciências
para a necessidade de elaboração de um projeto de ética global, a saber, um conjunto de
valores mínimos que possam ser compartilhados por indivíduos de contextos sociais, culturais
e de crenças distintos, em virtude de grandes problemáticas, como a questão ambiental e os
conflitos armados, que colocam em dúvida a possibilidade de sobrevivência da humanidade
nos tempos futuros. Tais propostas, seguramente relevantes, são confrontadas com as
constatações de Lipovetsky a respeito da sociedade contemporânea.
O capítulo primeiro apresenta um panorama histórico da tradição filosófica francesa,
na qual Lipovetsky se encontra inserido, bem como as principais categorias de seu
pensamento. Segue-se a este capítulo uma descrição precisa do objeto de pesquisa proposto, a
saber, as constatações do autor acerca da questão ética em sua obra A sociedade pós-moralista. O terceiro capítulo situa a questão religiosa na contemporaneidade e ressalta
também como as análises do autor são relevantes para se pensar também a respeito da questão
religiosa na contemporaneidade. Por fim, o quarto capítulo apresenta as contribuições do
pensamento do autor para a compreensão da questão religiosa contemporânea.
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- Capítulo I -
Lipovetsky: um olhar sobre a sociedade atual
O primeiro capítulo dessa dissertação apresenta primeiramente um panorama histórico
da tradição filosófica francesa, pontuando suas principais contribuições para o
desenvolvimento da disciplina, bem como para promover mudanças e rupturas no cenário
social, cultural e político não somente no seu universo de atuação particular, ou seja, a própria
França, mas também em todo o Ocidente, e também apresenta de forma breve quais foram os
seus principais representantes, bem como as teorias que propuseram.
Após um breve olhar acerca da filosofia do iluminismo, cujo centro e auge ocorreram
na França, e cuja prática de elaboração e aplicação dos conceitos a apresentava como uma
disciplina filosófica mais voltada para uma análise e crítica do contexto histórico-social do
que para a elaboração de grandes teorias, há também um tópico dedicado a uma análise do
modo como se constituiu a crítica à modernidade que a filosofia francesa produziu durante
todo o século XX, com pensadores como Foucault, Sartre, Lyotard e Baudrillard, entre outros.
Esse panorama mostrará que a filosofia de Lipovetsky se enquadra dentro de uma
tradição filosófica marcada pela crítica ao contexto histórico social de seu tempo. Lipovetsky
é influenciado por pensadores que o precederam, como Lyotard e Baudrillard, mas também os
ultrapassa quando propõe como objeto de estudo acadêmico fenômenos sociais até então
renegados pela filosofia, pelo menos quanto à necessidade de uma abordagem filosófica mais
rigorosa que ofereceria as condições básicas para uma compreensão séria da complexidade
desses fenômenos.
Uma introdução ao pensamento de Lipovetsky é apresentada considerando elementos
como a formação acadêmica do autor, sua militância política, os principais autores e textos
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que o influenciaram e, por fim, uma síntese das principais categorias de análise de sua
filosofia, como a hipermodernidade, o hiperindividualismo e o hiperconsumo.
1. A França e a filosofia do iluminismo
A França possui uma tradição filosófica relevante tendo sido o país que serviu como o
centro da filosofia do iluminismo. Alguns nomes, em especial, tiveram uma participação
direta no estabelecimento deste movimento cultural e intelectual iniciado no final do século
XVII, e que tinha como objetivo principal enaltecer a razão e suas potencialidades à categoria
de entidade humana provedora de liberdade de reflexão e pensamento, a despeito dos
pressupostos determinantes da religião. Foi a filosofia do iluminismo a corrente filosófica
responsável pela exaltação de novas possibilidades de concepção e interpretação do mundo
daquela época.
Para que se compreenda em que consistiu a filosofia do iluminismo, bem como sua
origem e propósito, faz-se necessário atestar para o fato de que ainda que o seu início seja
localizado historicamente a partir das últimas décadas do século XVII ou início do século
XVIII, muitas de suas concepções foram, de fato, pensadas e questionadas previamente ao seu
estabelecimento, já no emergir da idade moderna. O iluminismo, portanto, representou uma
fase histórica em que essas concepções foram desenvolvidas em construções teóricas mais
bem elaboradas. Comentando acerca da Filosofia do Iluminismo, Cassirer considera
Os resultados decisivos, verdadeiramente duradouros, que ela produziu não consistem
num conteúdo doutrinal que ela teria tentado elaborar e fixar dogmaticamente. E mais do
que isso: ainda que não tenha tomado plena consciência desse fato, a Época das Luzes
permaneceu, no tocante ao conteúdo de seu pensamento, muito dependente dos séculos
precedentes. Apropriou-se da herança desses séculos e ordenou, examinou, sistematizou,
desenvolveu e esclareceu muito mais do que, na verdade, contribuiu com idéias originais e
sua demonstração.1
À luz das considerações de Cassirer, a filosofia de Descartes (1596-1650), nesse
sentido, representa um tipo de pensamento que, embora tendo influenciado diretamente a
corrente filosófica do iluminismo, o precedeu historicamente. Na perspectiva de Descartes,
todo indivíduo detinha a capacidade de duvidar e refletir acerca de qualquer objeto,
1 Ernst CASSIRER, A filosofia do Iluminismo, p. 9.
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capacidade esta que lhe fora atribuída inerentemente, virtudes que lhe conferiam a
possibilidade de alcance da verdade e do sentido presente nas coisas e nos fatos que delas
decorriam. Descartes, com a instituição do método cartesiano e a elaboração de outras teorias,
é reconhecido como um dos pensadores responsáveis pela revolução científica, cujo ápice
culminaria num rompimento, nominal e formal, com as prerrogativas impostas pela igreja,
instituição dominante na regulação das relações sociais, da moral e do pensamento daquela
época.
Assim como a filosofia de Descartes, os experimentos de Newton (1643-1727)
também contribuíram diretamente para a formação do pensamento iluminista. Suas
descobertas acerca de fenômenos naturais desacreditavam o discurso religioso que, por sua
vez, atestava para uma regulação e ação divina presente em cada fenômeno manifesto pela
natureza. Newton demonstrou empiricamente que cada fenômeno seguia um curso natural,
lógico e, portanto, desprovido de manipulação de divindades. Os absolutos impostos pela
igreja, bem como o seu reconhecimento social como instituição provedora de sentido para a
vida começavam a ser questionados.
Mediante o benefício da dúvida, da observação, do experimento e da reflexão, além de
outras virtudes outorgadas pela razão, muitos pensadores foram influenciados a crer na
suficiência da razão para a regulação e manutenção da vida em todas as suas esferas, como
nas relações sociais, na esfera política, da economia e das relações de classes, enfim, a razão
desmistificou as respostas limitadas que a religião oferecia e, em fazendo isso, lhe expropriou
o potencial de instituição orientadora das massas. Neste sentido, a filosofia de Locke (1632-
1704) também foi precursora do Iluminismo. Em sua obra Primeiro tratado sobre o governo
civil (1689), Locke critica diretamente a concepção corrente de que os reis detinham direitos,
autoridade e benefícios que lhes foram outorgados mediante o querer divino manifestado pelo
reconhecimento da igreja. Na segunda parte deste texto, Segundo tratado sobre o governo
civil (1689), Locke expõe a sua teoria sobre a criação de um Estado liberal. Foi a criação do
Estado o fator determinante para a desvalorização do papel do monarca como representante
divino na sociedade e para a conseqüente desestruturação do absolutismo na Inglaterra. Para
Locke, todo indivíduo detinha o direito à vida e à liberdade, direitos esses conferidos desde o
nascimento.
Para os iluministas, a religião não poderia interferir nas questões políticas da
sociedade. Seguindo as teorias de Locke, Montesquieu (1689-1755) em Do espírito das leis
(1748), contribuiu para o estabelecimento do pensamento de Locke ao propor a criação de um
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governo cujos poderes não fossem concentrados em um representante único, mas sim que
fossem divididos, compartilhados, sendo o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Além de
Locke e Montesquieu, Voltaire (1694-1778) também argumentou de forma contrária ao
regime monárquico, sustentando seus argumentos a partir da contestação de uma lógica de
interesses particulares presente em toda ação e dominação monárquica. Era o escopo de
interesses privados presente na política realizada pelos monarcas que comprometia o
desenvolvimento social em seu todo.
Estabelecendo também uma crítica à sociedade de seu tempo, outro nome relevante na
filosofia do Iluminismo foi o de Rousseau (1712-1778). Seu pensamento alcançou relevância
ao afirmar que a sociedade era a responsável por extrair a bondade inerente de cada homem,
por corrompê-lo em sua natureza e essência.
Descartes, Locke, Voltaire, Montesquieu e Rousseau contribuíram diretamente na
concretização dessa corrente filosófica que dominou a França a partir dos fins do século XVII
e início do século XVIII. No entanto, foi com a obra Enciclopédia (1751-1772), editada por
Diderot (1713-1784) e com a contribuição de muitos outros pensadores, que as suas
prerrogativas principais foram difundidas alcançando popularidade em todo o ocidente.
Foram as idéias iluministas que atuaram como fatores determinantes para que novasconcepções acerca do governo e da economia, bem como de suas atribuições, fossem
levantadas, fazendo da filosofia francesa um instrumento prático de contestação do universo
social dado, desde o seu nascimento, auge e também no decorrer de todo o século XIX,
quando novas correntes filosóficas surgiram, como o utilitarismo, o marxismo, o positivismo
e também o pragmatismo. No entanto, foi principalmente nas últimas décadas do século XIX
e durante todo o século XX, que a filosofia francesa produziu uma crítica bastante
contundente à modernidade, quando seus principais teóricos apresentaram contestações bem
localizadas que apontavam para uma tentativa de abrangência do fenômeno moderno em seu
todo, considerando benefícios e malefícios, causas e conseqüências. Evidentemente, dar conta
de um fenômeno de tão grande amplitude e de complexidade singular como a modernidade
constituiu-se tarefa sobremodo pesarosa e, de fato, sobraram ainda lacunas carentes de
observação e análise críticas.
Os principais representantes da filosofia francesa no século XX, bem como suas
principais teorias, são colocados abaixo.
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2. A filosofia francesa e a crítica da sociedade contemporânea
Um dos pensadores que se destacou no cenário filosófico francês em virtude doestabelecimento de uma crítica consistente à modernidade foi Michel Foucault (1926-1984),
nascido em Paris, França. A obra foucaultiana é bastante complexa e difícil de ser
compreendida sem que se leve em conta o panorama histórico social no qual o filósofo se
encontrava inserido. De forma sucinta, pode-se afirmar que os seus escritos se concentram em
maior parte numa análise crítica das práticas e das relações de poder oriundas e necessárias
com o advento da modernidade. No entanto, Foucault não dirige o seu foco de pesquisa para
categorias mais teóricas de análise do poder, ou seja, não faz parte de sua preocupação os
temas que dizem respeito à origem do poder, ao seu surgimento e outras questões localizadas
apenas no universo teórico da pesquisa, pelo contrário, o filósofo volta o seu olhar para os
locais onde as ações práticas do poder são aplicadas de forma mais direta e efetiva, enfim,
onde o poder exerce dominação de forma incontestável. É nesta perspectiva que se
compreende o desenvolvimento de uma crítica constante em relação às práticas de algumas
instituições sociais modernas, como os hospitais psiquiátricos e os presídios, na relação com
indivíduos marginalizados pela dinâmica social moderna, doentes mentais, prisioneiros e
estrangeiros, entre outros. Para Foucault, que estabelece uma análise em um contexto
histórico social bem localizado, a saber, o Ocidente, este grupo de pessoas representa uma
ameaça em graus diversos para o padrão social pretendido pela modernidade, sendo
necessária a sua exclusão e confinamento em locais que ele denomina de “instituições
disciplinares”, como citado anteriormente, os presídios, manicômios, asilos etc.
É em virtude deste foco específico de pesquisa que Foucault cria conceitos como o de
“biopoder” ou “biopolítica”, que para ele diz respeito ao controle exercido pelo poder
soberano, ou seja, de quem o detêm socialmente, sobre o âmbito dos processos relacionados à
natalidade social. Na perspectiva de Foucault, esse controle é exercido a partir de critérios não
apenas sociais, mas também relacionados a questões políticas e econômicas, definindo-se,
portanto, como mais uma forma de controle e domínio social.
Foucault, no início de 1980, também se deteve numa linha de pesquisa e crítica acerca
de questões relacionadas à “verdade”. É colocado por ele em questão, por exemplo, os atos a
que se propõem certos grupos de indivíduos, como os grupos cristãos ascéticos, a fim dealcançarem a verdade presente nos fatos, significados e relações do cotidiano.
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O rompimento com o modo como as noções de poder, saber e sujeito social eram
concebidos pela modernidade, fez com que alguns teóricos considerassem Foucault como um
pensador pós-moderno, ainda que o próprio Foucault guardasse ressalvas quanto à
aplicabilidade do termo, preferindo antes se dispor a uma discussão mais precisa a respeito de
seus significados, questionando também se era plausível uma possibilidade de rompimento
com um momento histórico social definido como a modernidade, cujas prerrogativas ainda se
faziam ver e ainda influenciavam as relações sociais em seu todo. De fato, a obra foucaultiana
é muitas vezes descrita como pós-moderna ou pós-estruturalista, sobretudo em virtude da
publicação de trabalhos como História da loucura na idade clássica (1961), O nascimento da
clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber (1969), e ainda que
Foucault tivesse se filiado ao termo pós-estruturalista, posteriormente ele o renegouafirmando não estar adaptado a uma abordagem formalista.
Além de Foucault, Jean Paul Charles Aymard Sartre (1905-1980), nascido também
Paris, França, se destacou no cenário filosófico francês como um dos críticos da modernidade.
Em sua perspectiva, os teóricos precisavam atuar de forma mais ativa na sociedade,
pensamento este que levou Sartre a se colocar como um filósofo e escritor militante apoiando,
sobretudo, causas de esquerda. Nascido em 1905, Sartre se tornou um dos representantes
principais do existencialismo ateu. Dentre seus conceitos principais, destaca-se a questão da
existência, que de seu ponto de vista, precede a essência quando o ser em questão é o ser
humano, e também a questão da liberdade vista como algo para o qual todo homem está
condenado.
Para Sartre, ainda que um objeto qualquer, como uma caneta, tenha a sua essência
precedendo a sua existência, ou seja, antes de se tornar o objeto como tal, este mesmo objeto
fora concebido para então ser construído para fins previamente propostos, tal lógica se inverte
quando aplicada ao ser humano. Em sua perspectiva, não há uma suposta essência humana
pré-concebida ou pré-determinada, portanto, Sartre nega a possibilidade de existência de um
Deus que estaria a definir a essência e o destino do homem como advogava o existencialismo
cristão. “Para-si” é o termo usado por Sartre para dizer que a consciência humana difere das
demais por deter consigo a capacidade de conhecimento acerca de si próprio e do ambiente
em seu entorno, portanto, conclui Sartre que o “Para-si” não tem essência definida, sendo
somente ao longo de sua vivência, ou de sua existência, que a sua essência será
compreendida. É este o aspecto principal que a difere dos seres “Em-si”, os demais seres no
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mundo que não possuem a mesma capacidade de conhecimento acerca de si próprios e que,
portanto, possuem essência definida, como uma caneta ou qualquer outro objeto.
As teorias de Sartre trazem implicações diretas no campo das ações humanas. Sendo o
homem o único ser detentor de uma consciência capaz de refletir e pensar a respeito de si
mesma e do mundo à sua volta, cabe a si mesmo a responsabilidade única por suas ações, por
suas escolhas, opções e por escrever um futuro pretendido. O homem traz consigo a
responsabilidade por suas próprias ações e decisões, bem como pelas conseqüências que delas
resultam para si mesmo e para o contexto social no qual ele se encontra inserido. Em certo
sentido, cada indivíduo torna-se também, então, responsável pela construção do mundo no
qual manifesta a sua existência. São estes pressupostos que estarão a definir o conceito de
liberdade em Sartre, para quem o homem é responsável pelo seu passado, presente e futuro.
Para Sartre, o “homem está condenado a ser livre”.
É este também o fundamento de toda angústia atribuída aos existencialistas, ou seja,
um sentimento oriundo da consciência de liberdade de ação, de escolhas, de posturas,
portanto, de existência, que cada indivíduo carrega consigo, bem como a consciência de que o
exercício desta liberdade afetará diretamente o mundo no qual se vive e os outros também
inseridos neste mesmo universo. Segundo Sartre, os conflitos existentes entre os seres
humanos são oriundos das escolhas, portanto, das existências individuais manifestas
socialmente. Cada indivíduo manifesta a sua existência em virtude de projetos singulares,
privados e nos quais se encontra engajado. No entanto, tendo em vista a singularidade dos
interesses de cada indivíduo e a liberdade de escolher livremente, interesses privados
esbarram no escopo de interesses privados alheios, surgindo daí o conflito. No entanto, o
filósofo considera necessário o conflito, portanto, a convivência com o semelhante, afirmando
que somente pela convivência mútua um indivíduo pode enxergar-se por inteiro.
Sartre militou em favor da Resistência francesa durante a segunda guerra como
meteorologista e durante a ocupação de Paris pelos alemães, porém, sua arma era a palavra
mais do que as armas propriamente ditas. Ele fez uso também do teatro para transmitir seus
conceitos e manifestar a sua militância. Nos anos 50, no entanto, Sartre tornou-se um
militante político cuja postura se mostrava mais comprometida. Engajou-se publicamente em
defesa da libertação da Argélia do colonialismo francês e abraçou as idéias comunistas.
Apesar de ter recebido o prêmio Nobel de literatura de 1964, Sartre o negou por afirmar
categoricamente que nenhum escritor poderia ser transformado em instituição.
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Jean François Lyotard (1924-1998), nascido na cidade de Versalhes, França, é um dos
nomes exemplares da filosofia francesa no estabelecimento de uma análise crítica à
modernidade no século XX. Sua principal publicação, A condição pós-moderna, de 1979,
expressa uma condição de vivência a que se encontram sujeitos os indivíduos no final do
século XX. A primeira tradução para o português propunha como título desta obra a expressão
O pós-moderno, no entanto, esta se mostrava ineficaz e limitada no intuito de transmitir com
clareza a proposta central do livro, ou seja, de que a pós-modernidade é uma condição e não
um estado dado. A falta de correspondência com o título original da primeira tradução para o
português poderia sugerir que seu autor se identificava com o suposto fenômeno pós-
moderno, assumindo consigo uma postura apologética de suas prerrogativas. No entanto, tal
sugestão nunca faria justiça às propostas de Lyotard, pelo contrário, no todo de sua crítica eanálise do fenômeno social produzida posteriormente ao lançamento do texto em questão,
percebe-se a postura de um filósofo cuja crítica à sugestão pós-moderna se apresenta de forma
bastante consistente.
Fazendo uso de um método proposto por Ludwig Wittgenstein, “os jogos de
linguagem”, Lyotard considera que o “vínculo social observável é feito de ‘lances’ de
linguagem”.2 A partir desta e de outras premissas, Lyotard constrói a sua teoria e a aplica no
universo social posto da segunda metade do século XX, mostrando, entre outros
levantamentos, as mudanças que estavam em curso na modernidade de seu tempo. Lyotard
considera este tempo como aquele que estava a testemunhar do fim da credibilidade antes
atribuída aos grandes discursos científicos e políticos, o fim das paixões nacionalistas, dos
engajamentos de massa, enfim, é o tempo da desconfiança para com os grandes discursos e
promessas antes tão comumente proferidos como ferramentas de engajamento social e
unificação das massas. Como resultado deste desencantamento social para com as promessas
proferidas, bem como em relação aos grandes ideais proferidos pela modernidade em suaépoca clássica, Lyotard vê emergir a pluralidade de centros provedores de significação social
e a relativização dos absolutos. A sociedade moderna, em sua condição pós-moderna, é aquela
cujos atores interpretam vidas isoladas dentro de um contexto social comum. A condição pós-
moderna confere aos seus indivíduos essa possibilidade singular e inédita de exibição de
narrativas de vida distintas e fragmentadas em um ambiente social único. Mais do que a
expressão de uma identidade singular de um grupo, com hábitos, crenças e valores em
comum, a sociedade moderna, em sua condição pós-moderna, apresenta um grupo de
2 Jean François LYOTARD, A condição pós-moderna, p. 17-18.
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indivíduos que assimilam e interpretam de forma divergente hábitos, crenças e valores
comuns, criando possibilidades para a exposição de identidades correspondentes mais a
aspirações de foro íntimo do que coletivo.
Além de Foucault, Sartre e Lyotard, muitos outros nomes importantes compuseram a
escola filosófica francesa em seu espectro de análise e crítica histórico social durante o século
XX, como Morin, Castoriádis, Lefort, Camus, Ricoeur e, entre eles também o do filósofo e
sociólogo Jean Baudrillard (1929-2007). Baudrillard desenvolve o conceito de “hiper-
realidade”, ou seja, de uma realidade construída socialmente a partir do impacto constante dos
veículos midiáticos e de comunicação na sociedade e cultura contemporâneas, conceito este
diretamente inferido em outro tema abordado pelo autor, o do simulacro, cuja explanação
precisa se encontra em sua obra Simulacros e simulação, de 1981. O conceito de simulacro
serviu aos propósitos dos irmãos Wachowski na criação da trilogia Matrix, embora o próprio
Baudrillard tenha afirmado posteriormente que o filme não reflete em si a sua teoria por
apresentar duas realidades distintas em seu enredo, a realidade propriamente dita e a realidade
virtual. Na perspectiva de Baudrillard, ambas as realidades se misturam no universo das
relações sociais em que os indivíduos convivem.
Em sua obra, O sistema dos objetos, publicada em 1968, Baudrillard coloca como
objeto de sua análise, entre outros elementos, o poder da mídia, da comunicação e da
publicidade em sua ação coercitiva sobre os indivíduos levando-os à aquisição de objetos de
consumo. Ele pretende mostrar a complexidade de um sistema simbólico existente e
determinante nas relações dos indivíduos com os objetos, e entre os conceitos expostos em
seu texto, desenvolve o da “lógica do Papai Noel”, afirmando
Os que negam o poder de condicionamento da publicidade (dos mass media em geral) não
aprenderam a lógica particular de sua eficácia. Não mais se trata de uma lógica do
enunciado e da prova, mas sim de uma lógica da fábula e da adesão. Não acreditamos nela
e, todavia a mantemos. No fundo a “demonstração” do produto não persuade ninguém:
serve para racionalizar a compra que de qualquer maneira precede ou ultrapassa os
motivos racionais. Todavia, sem “crer” neste produto, creio na publicidade que quer me
fazer crer nele. É a velha história do Papai Noel: as crianças não mais se interrogam sobre
a sua existência e jamais a relacionam com os brinquedos que recebem como causa e
efeito – a crença no Papai Noel é uma fabulação racionalizante que permite preservar na
segunda infância a miraculosa relação de gratificação pelos pais [...]. Esta relação
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miraculosa, completada pelos fatos, interioriza-se em uma crença que é o seu
prolongamento ideal.3
Nem o caráter normativo da publicidade que, de fato, se faz de modo muito precário,
tampouco as potencialidades do produto em si, são os responsáveis pela decisão de compra do
indivíduo, mas sim os benefícios simbólicos agregados à mercadoria e veiculados nas
mensagens publicitárias. Para Baudrillard, o indivíduo “não ‘acredita’ na publicidade mais do
que a criança no Papai Noel. O que não o impede de aderir da mesma forma a uma situação
infantil interiorizada e de se comportar de acordo com ela”.4 Essa temática compreende todo o
enredo de O sistema dos objetos, no qual Baudrillard explora as suas infinitas possibilidades
abordando ainda questões relacionadas ao que ele denomina de “milagre da compra”, “o
objeto abstraído de sua função”, “o objeto-paixão”, “o objeto personalizado”, “o festival do
poder da compra”, e outras abordagens.
Essa rápida passagem pela tradição crítica do pensamento francês expõe a
preocupação comum dos pensadores: construir uma crítica de sua época em nome da
liberdade e do compromisso social. Rompendo com a tradição clássica, o pensamento francês
contribuiu na teoria e na prática com a construção da modernidade, bem como com a crítica
da mesma em tempos mais recentes.
Lipovetsky é um autor que se localiza na mesma linha dessa tradição filosófica
francesa que, como já apontado anteriormente, se caracteriza por uma prática filosófica
voltada para uma análise crítica da contemporaneidade. O que o torna singular são as suas
abordagens de fenômenos até então considerados marginais pela filosofia, o luxo, a moda, a
feminidade, e também uma abordagem mais precisa do fenômeno do consumo e da sua
capacidade de inferência e de determinação das relações sociais como se dão.
Após localizar Lipovetsky na tradição filosófica francesa, será considerado a seguir a pessoa do filósofo, sua formação, suas influências e suas principais categorias de pensamento.
3. O debate em torno das categorias propostas como definição da contemporaneidade
Muitos autores têm proposto termos e elaborado categorias que possam definir com
maior precisão aquilo que a contemporaneidade tem manifestado e se permitido revelar como3 Jean BAUDRILLARD, O sistema dos objetos, p. 175-176.4 Ibid , p. 176-177.
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ordem social atual. Em virtude das correntes mudanças no cenário social, nas relações entre
os indivíduos em razão das mudanças e inovações tecnológicas, bem como das ferramentas de
comunicação, grande parte dos sociólogos e filósofos consideram que a modernidade atual é
diferente daquela conhecida em seu nascimento. Desta forma, este tópico pretende apresentar
quais são as principais categorias propostas como definição da contemporaneidade ao longo
dos séculos XX e XXI, termos que pretendem encerrar em seus significados a complexidade
do fenômeno moderno, ou pelo menos captá-lo com maior sensibilidade.
Modernidade é o termo empregado para classificar a contemporaneidade e cujos
representantes resistem à proposição de que haja elementos suficientes para afirmar a
emergência de um momento histórico social divergente daquele que nasceu em oposição à era
pré-moderna. Anthony Giddens é um dos que compartilham desta afirmação. Para este
sociólogo inglês, ainda que as correntes inovações tecnológicas, sobretudo a partir da segunda
metade do século XX, e o alargamento das capacidades de comunicação imponham uma
dinâmica social que possibilita um modo de organização de vida distinto daquele conhecido
em décadas e até mesmo em séculos passados, tais movimentos apenas fazem jus àquilo que a
modernidade vem representando desde o seu início, ou seja, uma fase histórica em que a razão
vem sendo empurrada para os limites de sua atuação, provendo aos indivíduos modernos
todas as condições necessárias para a construção e manutenção de um viver promissor, auto-
suficiente e, portanto, alheio às demandas imperativas da religião.
No entanto, ainda que Giddens não se familiarize com outras definições que sugerem
uma fase histórica pós-moderna como característica da contemporaneidade, ele reconhece o
tempo atual como singular e inovador e adota a expressão Modernidade tardia, ou Alta
modernidade para descrever com maior presteza os desencaixes sociais vistos e reconhecidos
nas últimas décadas. Como “desencaixes” compreendem-se as complexas mudanças
percebidas no cenário social, compreendendo desde as relações sociais entre os indivíduos,
incluindo a legitimação de comportamentos antes reprimidos e as novas formas de
organização da vida, as inferências da lógica de variação, inovação e exibição pertinentes à
lógica da moda nas relações dos indivíduos com os objetos, e as possibilidades de realização
social e significação existencial a partir dos engajamentos privados nos empreendimentos de
consumo massivos.
Giddens, tratando da proposta de uma modernidade tardia, considera a relevância de
uma abordagem reflexiva em relação ao objeto que é a própria sociedade em si, que a todos
está posta, a fim de que uma apreensão precisa e responsável pelos indivíduos seja possível
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Nas situações a que chamo de modernidade “alta” ou “tardia” – nosso mundo de hoje -, o
eu, como os contextos institucionais mais amplos em que existe, tem que ser construído
reflexivamente. Mas essa tarefa deve ser realizada em meio a uma enigmática diversidade
de opções e possibilidades.5
A tarefa reflexiva proposta por Giddens faz-se relevante também em virtude dos riscos
inéditos que incorrem aos indivíduos e que foram introduzidos pela alta modernidade. “O
mundo moderno tardio [...] é apocalíptico não porque se dirija inevitavelmente a calamidade,
mas porque introduz riscos que gerações anteriores não tiveram que enfrentar”.6 Há o risco da
não possibilidade de manutenção do eco sistema, apontando para o fim eminente dos
fornecimentos de vida abundante, há o risco de um colapso da economia mundial, do aumento
no número dos desfavorecidos e marginalizados pelo sistema moderno, de pequenas novasguerras e maiores e conhecidos grupos de indivíduos dizimados, enfim, riscos que fazem da
modernidade tardia um fenômeno paradoxal, pois na tentativa de criar condições para o seu
prolongamento pretendido, a modernidade fornece também elementos para que o risco de um
fim eminente seja plenamente possível. Giddens coloca que “na alta modernidade, a
influência de acontecimentos distantes sobre eventos próximos, e sobre as intimidades do eu,
se torna cada vez mais comum”.7
Em face dos riscos iminentes postos acima, Giddens afirma ser a modernidade “uma
ordem pós-tradicional, mas não uma ordem em que as certezas da tradição e do hábito tenham
sido substituídas pela certeza do conhecimento racional”.8 Tendo relativizado os absolutos, a
modernidade radicalizou o princípio da dúvida, do questionamento, das inseguranças, das
ansiedades e necessidades de se colocar em verificação toda e qualquer afirmação que se
pretenda ser categórica. Nas palavras de Giddens, “a modernidade institucionaliza o princípio
da dúvida radical e insiste em que todo conhecimento tome a forma de hipótese [...]”.9
Modernidade líquida é outra tentativa de dar um nome mais preciso e coerente àquilo
que os tempos contemporâneos têm revelado. Quem deste termo faz uso é o sociólogo
polonês Zygmunt Bauman. Fazendo uma analogia com a idéia de fluidez ou liquidez, ou seja,
se referindo a não consistência dos objetos desta natureza, de sua incapacidade de
solidificação, de resistência a intervenções externas, a pressões vindas de seu exterior, enfim,
de sua limitação e incapacidade de resistência temporal, Bauman busca compreender com
5 Anthony GIDDENS, Modernidade e Identidade, p. 10-11.6 Ibid , p. 12.7 Ibid , p. 12.8 Ibid , p. 10.9 Ibid , p. 10.
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maior clareza a natureza dos movimentos que a história moderna tem presenciado. Em suas
palavras
Concordo prontamente que tal proposição deve fazer vacilar quem transita à vontade no
“discurso da modernidade” e está familiarizado com o vocabulário usado normalmente
para narrar a história moderna. Mas a modernidade não foi um processo de “liquefação”
desde o começo? Não foi o “derretimento dos sólidos” seu maior passatempo e principal
realização? Em outras palavras, a modernidade não foi “fluída” desde sua concepção?10
Bauman desenvolve o seu argumento afirmando que a modernidade tratou de
provocar em seus próprios eixos de sustentação, a saber, suas instituições modernas
caracterizadas como centros plurais provedores de significação social e de normatização da
vida, e também o seu sistema de produção de mercado regido pelo modo econômico
capitalista, o derretimento dos sólidos. Como sólido, Bauman compreende todo e qualquer
elemento que resista aos chamamentos de mudança em virtude das transformações e
inovações no cenário moderno social. O “derretimento dos sólidos” significa a compreensão
de que o espírito era moderno “na medida em que estava determinado que a realidade deveria
ser emancipada da ‘mão morta’ de sua própria história”.11 Bauman ressalta ainda de forma
contundente que “os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as
lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos,impediam os movimentos e restringiam as iniciativas”.12
A modernidade em sua fase líquida, portanto, caracteriza-se como sendo o tempo dos
desprendimentos às noções de obrigações e determinações éticas nas relações sociais em
todas as suas esferas, sem, no entanto, estar alheio aos seus apelos. Em virtude da ausência de
absolutos, pluralizam-se as propostas de instituições que reivindicam para si a competência de
atuação como estruturas sociais provedoras de regulação e significação existencial. A
modernidade, seguindo seu curso natural, continua a provocar rupturas, inovações e novas
possibilidades, no entanto, se depara em sua fase líquida com o exílio de elementos que
proporcionem bases sólidas para a sua manutenção e para o estabelecimento de valores e
normas comuns. A ética em sua faceta ambiental, o respeito aos direitos e escolhas dos
indivíduos com os quais o espaço social é dividido, o apego a alteridade, a aceitação de
modos de vida divergentes dos modelos tradicionais, entre outros elementos, são estruturas
10 Zigmunt BAUMAN, Modernidade líquida, p. 9.11 Ibid , p. 9.12 Ibid , p. 10.
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muito rasas, sem sustentação e em constantes deslocamentos, pois são regidos pela lógica da
moda e do consumo.
Fazendo uso desta metáfora, Bauman constrói sua teoria aplicando-a a outros
elementos que também são afetados pelas novas imposições da modernidade em sua fase
atual. Obras como “Amor líquido”, “Vida líquida”, “Medo líquido” e “Tempos líquidos”,
além de outros títulos, expressam bem esse emprego.
Pós-modernidade é o termo empregado por Jean François Lyotard em seu livro A
condição pós-moderna para tentar encerrar num conceito único as mudanças presenciadas no
cenário cultural moderno. Na perspectiva de Lyotard, o termo pós-modernidade “designa o
estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da
literatura e das artes a partir do final do século XIX”.13
Lyotard é ainda mais perspicaz ao considerar que a idéia de pós-modernidade reflete
uma época em que as grandes narrativas perdem a credibilidade e a admiração dos indivíduos,
e com isso, a capacidade de domínio das consciências. As promessas enunciadas pela ciência
em razão de sua ilimitada capacidade de inovação, a incapacidade do Estado de provocar o
engajamento das massas a partir de um sentimento de paixão nacionalista, a incapacidade da
religião de promover ajuntamentos dentro de seus ambientes de atuação, as incertezas presente nas consciências em relação à capacidade da razão de organizar cenários culturais e
sociais ideais, em virtude da contemplação do cenário catastrófico do mundo pós-guerra,
enfim, a crise na crença aos grandes discursos de pretensão a uma aplicabilidade universal de
suas propostas, enunciados e articulados pelas grandes instituições modernas marca, na
perspectiva de Lyotard, o emergir do momento pós-moderno.
David Harvey faz uso do mesmo termo e justifica sua aplicabilidade à luz da mesma
hipótese de Lyotard. Segundo Harvey, “a fragmentação, a indeterminação e a intensadesconfiança de todos os discursos universais ou (para usar um termo favorito) ‘totalizantes’
são o marco do pensamento pós-moderno”.14
À luz das considerações de ambos os autores, compreende-se que a fase histórica que
o pós-guerra compreendeu desqualificou a credibilidade de que os metarrelatos desfrutavam,
bem como as instituições que os promulgavam. Dá-se início a uma fase de incertezas, de
desconfianças, de questionamentos da realidade dada. A partir desta crise, intensificou-se o
13 Jean François LYOTARD, A condição pós-moderna, p. XV.14 David HARVEY, Condição pós-moderna, p. 19.
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individualismo exacerbado, a crise dos absolutos, a relativização do agir e do pensamento
éticos, a intensificação do viver o tempo presente com intensidade máxima em virtude das
incertezas que um futuro reservava, a escassez de engajamentos de massa, os interesses
pessoais suplantaram o escopo de interesses coletivos, a religião viu-se desmanchando em
espiritualidades plurais, enfim, o mundo moderno do pós-guerra difere consideravelmente
daquele que estava posto em épocas passadas sendo, portanto, pós-moderno. Harvey coloca
que “o pós-moderno [...] privilegia ‘a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras
na redefinição do discurso cultural’”.15
Sendo o termo contestável, Harvey levanta questionamentos quanto à legitimidade de
seu emprego
O pós-modernismo, por exemplo, representa uma ruptura radical com o modernismo ou é
apenas uma revolta no interior deste último contra certa forma de ‘alto modernismo’ [...]?
Terá ele um potencial revolucionário em virtude de sua oposição a todas as formas de
metanarrativa (incluindo o marxismo, o freudismo e todas as modalidades de razão
iluminista) e da sua estreita atenção a ‘outros mundos’ e ‘outras vozes’ que há muito
estavam silenciados (mulheres, gays, negros, povos colonizados com sua história
própria)? Ou não passa de comercialização e domesticação do modernismo e de uma
redução das aspirações já prejudicadas deste a um ecletismo de mercado ‘vale tudo’,marcado pelo laissez-faire?16
Ainda que não haja um consenso quanto à aceitação do termo pós-moderno, mediante
os argumentos apresentados pelos expoentes acima, verifica-se evidentemente a existência de
uma ruptura significativa nos modos de vida e de organização da sociedade na segunda
metade do século XX em relação aos modos de vida em sociedade de épocas anteriores a este
momento. Como colocado anteriormente, ainda que a modernidade continuasse a seguir o seu
curso natural de inovação e de otimização das potencialidades da razão e da ciência,mudanças ocorridas no pensar e na postura dos indivíduos, ou seja, em seu foro íntimo mais
que coletivo, por razões diversas e complexas, são irrefutáveis. Mudanças estas que, de tão
relevantes, comprometeram todo o curso da história social, provocando novas rupturas e
novas diretrizes na continuidade da história moderna.
O antropólogo e etnólogo francês Marc Augé propõe o termo Supermodernidade
como designação ideal da contemporaneidade. Augé observa os constantes deslocamentos e
15 Ibid , p. 19.16 Ibid , p. 47.
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movimentos promovidos pelos indivíduos na sociedade atual para construir o conceito de
“não-lugares”, que são os espaços povoados por multidões de passagem, em constantes
deslocamentos, permitindo um fluxo contínuo de indivíduos em seus ambientes, porém, sem
permanência certa ou possibilidade de promoção de relacionamentos. Aeroportos com seus
restaurantes e lojas de conveniência, estações de trem, salas de espera e outros são exemplos
de espaços “não-lugares”.
São estes espaços bastante complexos, intensificam o individualismo, pois quaisquer
relações que ali se iniciem tendem a não se prolongar, refletem uma absorção do mundo e de
seus espaços pela inovação e desenvolvimento tecnológicos, diminuindo a quantidade de
espaços vagos para ocupação ao mesmo tempo em que estabelecem novos espaços povoados
de indivíduos vazios, são espaços que preenchem necessidades e elevam a efemeridade,
enfim, espaços em que o consumo de um tipo não fixado se manifesta. Antes encerrados em
lojas e locais específicos de compra, como os grandes centros comerciais, hoje, o consumo se
desprende desta estrutura sólida e se transporta a si mesmo para espaços tidos como “não-
lugares”, a fim de acompanhar os deslocamentos dos potenciais consumidores. Este tipo de
consumo inédito acompanha o indivíduo em aeroportos, no próprio tempo de viagem com as
possibilidades de compra oferecidas pelas companhias aéreas durante os trajetos dos vôos, em
sua descida ao local pretendido e também em sua própria residência, quando possibilidades de
consumo estão disponíveis através da internet.
São nos espaços “não-lugares” que o indivíduo moderno despende a maior parte de
seu tempo, podendo-se afirmar, portanto, que a sociedade com sua cultura Supermoderna
como Augé designa, vem sendo preenchida ou transformada em pequenos espaços “não-
lugares” fragmentados e desconectados entre si.
Na perspectiva de Augé, o termo Supermodernidade reflete a idéia de continuidade e
não de uma nova fase histórica se manifestando como implicada na idéia do “pós-moderno”.
Trata-se de um tempo em que os excessos têm se multiplicado e com os excessos a perda de
referenciais norteadores e de sentido para a vida. Novos espaços de circulação são criados, no
entanto, intensifica-se o individualismo, a efemeridade, o vazio e o imediatismo nas mais
variadas relações.
A Supermodernidade designa uma cultura paradoxal, com discrepâncias, contradições
em seus próprios valores e distâncias singulares.
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Ainda outros termos têm sido sugeridos como categorias que descrevam o que a
contemporaneidade representa, como o emprego de Ultramodernidade, que Jean-Paul
Willaime17 comenta da seguinte maneira
Passa-se das certezas modernas das sociedades nacionais às incertezas ultramodernas da
sociedade-mundo. A ultramodernidade representa um processo de secularização da
modernidade, de desmitologização dos ideais seculares, em nome dos quais, justamente, a
modernidade contribuiu para a secularização do religioso. É o desencantamento dos
desencantadores. O próprio movimento de modernização crítica que atingiu o religioso
alcança agora todas as esferas de atividade e todas as instituições, inclusive a própria
modernidade.18
Compreende-se, portanto, que para Willaime, o tempo atual denominado como a faseda Ultramodernidade tem como característica principal, diferentemente da proposta de Augé,
que ressalta as discrepâncias produzidas pelo fenômeno, a secularização da própria
modernidade, ou seja, desmanchar na e da própria modernidade os seus aspectos religiosos,
ou desvestir da modernidade de sua roupagem religiosa.
Desmodernização ou Modernidade dividida é empregado por Alain Touraine para
descrever a modernidade atual. Segundo o autor, a Modernidade dividida é a conseqüência
dos embates e imposições entre razão e sujeito, cada qual brigando por seus espaços e
liberdades de atuação, ambos interferindo nas estruturas sociais da modernidade conforme
seus interesses e provocando, conseqüentemente, rupturas de modo a comprometer o bem
estar e a vivência entre os indivíduos. A solução para a manutenção da modernidade dividida
seria a busca pela unificação entre as duas esferas, a saber, da razão juntamente com a esfera
do sujeito. Significaria unir ou diminuir as distâncias discrepantes entre a dimensão da
técnica, da razão, da ciência e de suas potencialidades com a dimensão humana que abrange
peculiaridades da cultura, da tradição, enfim, de tudo aquilo que expressa a riqueza presenteno universo da criação humana.
Após esta breve contextualização daquilo que tem sido proposto a respeito de uma
nomenclatura que melhor descreva e compreenda a contemporaneidade em toda a sua
complexidade e inovação, há ainda a proposta trazida por Lipovetsky, a saber, de que a
17 Jean Paul Willaime é francês, sociólogo da religião, diretor da École Pratique des Hautes Études (Seção deEstudos da Religião), diretor do Institut Européen em Sciences des Religions, presidente da International Societyfor the Sociology of Religion, membro da Société Groupe, Religions, Laicités. Embora o termo
Ultramodernidade tenha sido empregado principalmente por Pierre Legendre, a referência a Willaime é feita emvirtude deste autor elucidar de forma mais prática o sentido do termo.18 Jean Paul WILLAIME, A favor de uma sociologia transnacional da laicidade na ultramodernidadecontemporânea, Civitas, v. 11, n. 2, p. 307.
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sociedade atual vê emergir uma fase inédita que ele denomina de hiper , cujos desdobramentos
se fazem ver num consumo de prática hiperconsumista, bem como num individualismo de
caráter hiper . São práticas que refletem a manifestação de uma sociedade hipermoderna.
Embora Lipovetsky já tenha sido adepto do termo pós-moderno, o autor agora o
considera limitado como categoria científica que dê conta de fenômenos tão singulares do
tempo presente. Em sua concepção, há novos paradigmas que estão a impor novas restrições e
concepções aos indivíduos, impelindo-os a reorganizarem suas vidas a partir de outras lógicas
de direção, como a lógica da moda e do consumo.
Os argumentos apresentados pelo autor como justificativas para o emprego do termo
hiper , bem como as características que, segundo ele, refletem um movimento social em
direção ao hipermoderno, são apresentados no próximo tópico, quando o pensamento de
Lipovetsky, bem como suas principais categorias de pensamento são situados.
4. Situando o pensamento de Gilles Lipovetsky
Nascido em 1944, na cidade de Millau, na França, Gilles Lipovetsky é atualmente um
dos principais pensadores e críticos da presente sociedade. É filósofo, doutor Honoris Causa
pela Universidade de Sherbrooke, no Canadá, e pela Nouvelle Université Bulgare, em Sofia,
na Bulgária. Lipovetsky é membro do Conselho Nacional dos Programas Educacionais e do
Conselho de Análise Social da França, e já foi condecorado como Cavaleiro da Legião de
Honra da França. Atualmente, Lipovetsky é pesquisador e professor da Universidade de
Grenoble, também na França.
No início de seus estudos de Filosofia na Sorbonne, Lipovetsky já assumia um realdesinteresse pelos textos clássicos e pelos filósofos fundadores da filosofia. Como ele mesmo
afirmou posteriormente, “o que me animava era não as grandes questões da metafísica ou da
moral, mas a interpretação do mundo moderno”.19 Como muitos estudantes de sua época, em
torno dos anos 60, Lipovetsky também se encontrava possuído pelas convicções marxistas.
Em 1965, as idéias do marxismo o levaram a participar de um grupo militante de esquerda,
cujo nome era Poder Operário, fundado por Lefort e Castoriadis, do qual também fazia parte
Lyotard, Veja e Souyri. O caráter do grupo era militante, marxista revolucionário, denunciava
19 Gilles LIPOVETSKY & Sébastien CHARLES, Os tempos hipermodernos, p. 110.
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o capitalismo e a formação de uma sociedade de exploração de classes não apenas no
ocidente, mas também na União Soviética. Sua participação no Poder Operário foi de apenas
dois anos, vindo após este tempo o afastamento do grupo. A militância de Lipovetsky era
inconstante, desinteressada e, portanto, limitada aos ideais antes propostos. Acerca deste
afastamento e da frustração em relação ao currículo disciplinar oferecido pela Sorbonne, o
autor comenta
Fiquei dois anos nesse grupo, mas, como eu freqüentemente saía de férias, questionaram
minha militância um pouco hedonista e descontraída demais!... A nova era do lazer já
exercia sua influência... O afastamento se deu sem crise pessoal, sem peso na consciência,
sem nenhum sofrimento. Para mim, a “vida de verdade” já estava em outro lugar. A bem
dizer, a questão da revolução não me preocupava quase nada, porque eu não acreditavarealmente nela – procurava sobretudo ferramentas de análise para compreender o real. E
os cursos propostos na Sorbonne não atendiam a essa expectativa.20
Nessa mesma época, os textos de Lyotard e Baudrillard influenciaram fortemente o
pensamento de Lipovetsky, fornecendo uma base teórica consistente cujo reflexo crítico seria
notado em seus textos futuros. As considerações de ambos os autores acerca do desejo, do
gozo, da mídia e do consumo, entre outras, esferas estas que despertariam o interesse de
Lipovetsky para uma análise mais minuciosa, foram por ele amplamente discutidas eexploradas em toda a sua complexidade, na medida em que esta se permitia compreender. Nas
palavras do autor
Aquelas análises do desejo e do gozo, do consumo e da mídia, tinham o mérito de
subverter os domínios teóricos separados, de revitalizar a crítica da economia política ou
libidinosa, de abrir um além-do-político ao compor como que odes a uma revolução
transpolítica. Desde essa época, julgo que o existencial, os modos de vida, o frívolo
devem ser levados em conta, e não ser de imediato considerados a ‘falsa consciência’.21
É a partir deste tempo que Lipovetsky rompe com um paradigma já estabelecido em
relação à influência da sociedade no comportamento dos indivíduos. Para ele, não é apenas a
lógica da alienação a chave interpretativa para se compreender o porquê de uma assimilação
passiva por parte dos indivíduos de conceitos e propostas de vida promulgadas pela
sociedade, pelo mercado e pela publicidade. Lipovetsky conseguiu se distanciar desta
premissa já inquestionável se mostrando incomodado com esta conclusão que, em sua análise,
se mostrava simplista: “... logo me incomodei com a noção de alienação: ela veiculava em20 Ibid , p. 110.21 Ibid , p. 112.
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demasia a idéia de que as pessoas eram mistificadas, passivas, manipuladas, hipnotizadas –
Debord –, incapazes de distanciamento crítico, de compreensão do que lhes acontecia”.22 Sua
percepção rompia com a análise marxista, o que se deu de modo mais incisivo ainda, quando
de suas leituras dos textos de Tocqueville, Marcel Gauchet, Louis Dumont e Daniel Bell.
Como fruto destas leituras, Lipovetsky comenta:
Nelas encontrei esquemas analíticos e ferramentas insubstituíveis, que devolviam um
papel de fato produtivo às ‘idéias’ na história: o indivíduo, a revolução democrática, o
direitos humanos, tudo isso, já não eram mais a superestrutura, simples “reflexo” da
economia. Essas problemáticas me deram maior liberdade para entender a sociedade nova,
na qual se observava um impulso de autonomia individual, uma sujeição menor aos
enquadramentos coletivos.23
Os autores que foram citados acima fazem parte de um grupo de teóricos que
influenciaram diretamente o pensamento de Lipovetsky. Foram estes que deram à Lipovetsky,
como ele mesmo atesta, as ferramentas essenciais para que os seus estudos pudessem ser
produzidos. Além disso, o contexto social em que o autor se encontrava inserido, preenchido
por uma revolução crescente nos modos de vida social, pela expansão das capacidades sociais
de comunicação e também pela legitimação de práticas constantes de consumo, entre outros
elementos, proporcionaram-lhe as condições necessárias para que as suas análises sobre oindividualismo democrático fossem relevantes.
Com análises que refletem uma percepção extremamente aguçada da sociedade e de
suas mudanças, Lipovetsky é singular por sustentar suas hipóteses a partir de uma análise
mais empírica do que apenas baseada em teorias já existentes. Neste aspecto, o próprio autor
estabelece uma crítica à tradição filosófica mais comumente conhecida, distanciando-se dela e
afirmando que “a maior parte dos filósofos, mesmo que digam o contrário, é platônica e busca
a Idéia atrás dos fatos”.24 Ele é ainda mais incisivo em sua crítica porque em sua perspectiva,aos filósofos, e não apenas aos atuais, faltou ou ainda falta um olhar mais cuidadoso para os
detalhes impregnados em cada fenômeno, os quais são percebidos e compreendidos a partir de
um estudo mais preciso de suas manifestações.
O apego ao empírico, a um olhar minucioso sobre os fatos como se dão, podendo-se a
partir disto compreendê-lo em toda a sua complexidade, aspecto este característico da
22 Ibid , p. 112.23 Ibid , p. 112.24 Sébastien CHARLES, Comte Sponville, Conche Ferry, Lipovetsky, Onfray Rosset, é possível viver o que eles pensam?, p. 148.
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metodologia de Lipovetsky, é atestado abaixo quando sua obra é analisada por Sébastien
Charles, que comenta
Um dos méritos das análises que Gilles Lipovetsky propõe há vinte anos é romper com
tais juízos excessivos, sempre demasiado elementares porque olham apenas um aspecto
das coisas, a fim de livrar-se de toda a complexidade do real e circunscrever as
contradições de que este está urdindo. [...] as análises de Lipovetsky não se contentam
com juízos apressados nem submetidos a ditames ideológicos; antes, seguindo um método
empirista ou indutivo, procuram partir dos fatos, e do estudo destes no tempo longo, para
propor um quadro de análise que possibilite fazê-los falar e dar-lhes sentido.25
Lipovetsky é também perspicaz por fazer de seu objeto de estudo fenômenos até então
desconsiderados, pelo menos em termos de um estudo sistemático sério e progressivo, pelaanálise filosófica. Propondo uma análise histórico-social crítica, apresentando quais foram os
elementos então responsáveis para a emergência da presente configuração atual dos
fenômenos estudados, bem como as implicações destes na vida social dos indivíduos,
Lipovetsky questiona e estuda a lógica da moda, as mudanças no pensar ético, o feminismo, o
luxo, o consumo, enfim, fenômenos que circundam a vida social de todo e qualquer indivíduo,
independentemente de sua faixa etária e condição sócio-econômica, mas que até então não
haviam ainda sido submetidos a uma análise acadêmica rigorosa. Faz-se importante enfatizarmais uma vez que, neste sentido, Lipovetsky é bastante peculiar em relação à grande parte dos
filósofos, distanciando-se da filosofia tradicional e rompendo com uma análise que, de seu
ponto de vista, não considera os detalhes dos fenômenos, mas o concebe apenas em sua
totalidade, em seu aspecto geral e universal, o que para ele, trata-se de uma análise bastante
limitada e comprometedora.
Em se tratando de sua paixão por questões diferentes das mais comumente conhecidas
e discutidas pela Filosofia, Lipovetsky, na perspectiva de Charles Sébastien, se assemelha ao pensamento de Foucault
O pensamento de Gilles Lipovetsky poderia ser facilmente aproximado ao de Michel
Foucault. De fato, nossos dois filósofos – e mesmo que Lipovetsky não recorra
exclusivamente ao pensar filosófico – empregam um método genealógico para
circunscrever domínios de estudo freqüentemente negligenciados pela confraria filosófica.
Assim, ambos evocam fenômenos muitas vezes qualificados de marginais (a loucura ou a
25 Gilles LIPOVETSKY & Sébastien CHARLES, Os tempos hipermodernos, p. 15.
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prisão por Foucault, a moda ou a feminidade por Lipovetsky), aos quais é recusada uma
análise conceitual rigorosa e histórica.26
Lipovetsky por si mesmo assume um pouco de afinidade com o pensamento de
Foucault
Aí está um ator com o qual, em compensação, eu me sinto em profunda afinidade quanto
ao método... mas não quanto ao fundo. O método é, de fato, similar. Quando Michael
Foucault fala da loucura, ele constrói seu objeto e dele tira a seguir sua conclusão. É no
trabalho de construção do objeto que a dimensão filosófica aparece e não a priori. É
também o que procuro fazer.27
Nas análises de Lipovetsky acerca de fenômenos como o feminino, a moda, o luxo e,
sobretudo, o consumo, percebe-se de forma mais clara esta construção de uma análise a partir
de uma construção do objeto em questão, pretendendo o autor dar conta de toda a
complexidade de seu objeto a partir da realidade social dada, para então, a partir disto,
estabelecer as suas considerações e verificar a validade de suas hipóteses.
Em virtude das conclusões simplistas proposta por muitos filósofos acerca de
fenômenos mais precisos da vida social, tais como a moda, o luxo, a feminidade e outros já
anteriormente citados, realidades que merecem um estudo mais aprofundado quanto à sua
concepção e expressão, o autor, como anteriormente apontado, critica diretamente a Filosofia
atual por este suposto descaso, rompendo com teorias simplistas que não consideram o objeto
em toda a sua complexidade e os detalhes a ele imbuídos, satisfazendo apenas em parte as
problemáticas levantadas. Quando questionado a respeito deste rompimento, Lipovetsky,
citando o exemplo da beleza feminina posta em análise e em foco de um estudo acadêmico
sério e crítico, diz
Eis o tipo de pergunta que me veio ao espírito e que não interessa ao filósofo: o que é a
beleza feminina? É um fenômeno universal ou trans-histórico? Todas as sociedades a
valorizaram? E da mesma maneira? E se não, quando isso se estabeleceu? Por quê? O
que esse fenômeno significa nas relações entre os homens e as mulheres? Que
orientação ele toma em uma sociedade igualitária? Como é possível que em uma
sociedade democrática com aspiração igualitária como a nossa se recomponha a
dissimetria dos homens e das mulheres no que se refere à aparência física? São questões
fundamentais, de cuja existência os filósofos nem sequer suspeitam. Para eles, isso não é
26 Sébastien CHARLES, Comte Sponville, Conche Ferry, Lipovetsky, Onfray Rosset, é possível viver o que eles pensam?, p. 140.27 Ibid , p. 150.
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nem mesmo uma questão, ainda que ponha em causa um valor filosófico essencial, o da
igualdade. Eles tendem antes a denegrir a questão, o que para mim é cegueira filosófica.
Não querem ver as coisas e não procuram dar-lhes uma compreensão e uma
inteligibilidade reais.28
O mesmo teor crítico é notado quando a questão da moda é posta em debate, a qual,
segundo Lipovetsky, tem escapado a uma avaliação crítica da filosofia. “Quando os filósofos
falam da moda, não conhecem nada sobre ela. Nem sequer vão ver os fatos, uma vez que
sabem já interpretá-los. [...] Pois bem, eles não sabem o que é realmente”.29
Em A era do vazio, ensaios sobre o individualismo contemporâneo, este que foi o
primeiro livro publicado por Lipovetsky em 1983, o autor ganha repercussão mundial ao
apresentar as suas teorias acerca do modo de funcionamento da sociedade pós-moderna, de
seus valores, das relações entre seus indivíduos, dos novos paradigmas que estavam a se
instituir de modo a redefinir as relações sociais em suas mais variadas esferas de vivência,
entre outros. O autor trata do individualismo social com uma percepção aguçada, afirmando
que a sociedade se encontra mergulhada num imenso vazio a abranger várias dimensões da
vida. Os valores de tradição mais comumente conhecidos estão comprometidos, os grandes
discursos da modernidade estão postos em dúvida, o consumo de massa direciona o indivíduo
a um comportamento individualista e irresponsável. Essas e outras realidades se manifestam
na obra A era do vazio e fazem parte do objeto de estudo proposto pelo autor.
Seis anos após a publicação de A era do vazio, Lipovetsky escreve O império do
efêmero, a moda e seu destino nas sociedades modernas , publicado em 1989. Neste texto, o
autor mostra como a lógica da moda, do frívolo e do efêmero, tem se manifestado também em
outras esferas sociais, reapropriando e redefinindo as relações sociais que se dão nestes
contextos a partir das prerrogativas desta nova lógica. Ainda que Lipovetsky tivesse
desfrutado de reconhecimento acadêmico meritório pela publicação de A era do vazio, o seu
segundo livro, O império do efêmero, foi alvo de críticas mais incisivas, tendo em vista uma
abordagem proposta pelo autor que não demoniza o fenômeno da moda. Quanto a isso, o
autor comenta dizendo
Ainda que seus múltiplos e negativos defeitos sejam reais, seus benefícios estão muito
longe de ser nulos. Eu simplesmente quis mostrar que a forma-moda não era sinônimo de
“barbárie”, de ruína do pensamento e da liberdade. A questão merece exame mais atento e
28 Ibid , p. 148-149.29 Ibid , p. 148.
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juízos mais contrastados do que esses que freqüentemente os “profissionais” da
conceitualização e outros minuciosos hermeneutas dos grandes textos canônicos nos
oferecem.30
Lipovetsky não faz uso da apologia ou da condenação em suas análises, mas se propõe
a expor as suas conclusões a partir das realidades postas.
Em A sociedade pós-moralista, o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos
tempos democráticos, de 1992, Lipovetsky se propõe a um estudo sistemático da questão
ética, tomando como ponto de partida a fase histórica pré-moderna, quando a ética estava
estritamente relacionada com preceitos de caráter religioso, sendo estes os pressupostos
determinantes para toda e qualquer ação ética dos indivíduos em suas mais variadas esferas
sociais de vivência. Num segundo momento, o autor estabelece os marcos que foram
fundamentais para que uma ruptura em relação ao paradigma anterior emergisse, sendo a
ética, a partir deste momento, concebida ainda de modo subordinado a uma lógica do dever,
da obrigação moral para com o semelhante, de ações responsáveis que sejam tomadas de
modo a levar em conta o outro que se apresenta perante o indivíduo e que precisa ser afetado
pelas ações deste de modo responsável, porém, toda essa dimensão ética impregnada pela
lógica do dever será imposta não mais pela instituição religião, mas sim, pelas instituições
próprias e oriundas da modernidade. Há, portanto, uma transferência de legislador ético, mas
não de preceitos propriamente ditos. É neste ínterim que o autor, ao observar as relações
sociais no tempo presente, denominado por ele de hipermoderno, apresenta uma nova
hipótese ética, a do pós-dever.
Para Lipovetsky, o indivíduo hipermoderno e hiperindividualista não conhece
quaisquer regras que o obriguem a uma vivência que corresponda aos imperativos da lógica
do dever. Suas ações são praticadas, mesmo aquelas consideradas como altruístas, tendo em
vista
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