Representações arqueoastronômicas brasileiras: a supernova de1054
Rundsthen Vasques de Nader
UFRJ/HCTE
Cíntia Jalles
MAST/MCTIC
Todos os povos, em maior ou menor escala, sempre demonstraram reverência
pelo céu e pelos objetos nele observados, tanto durante o dia quanto à noite. O
movimento cíclico do Sol, a variação das fases da Lua, as trajetórias dos planetas se
movendo entre as estrelas, que se sucediam e assinalavam as épocas certas para
celebrações, atividades cotidianas e agrárias. Estas observações de acontecimentos, que
se repetiam e eram previsíveis, representavam a perfeição e a harmonia do Cosmos e
davam algo seguro e ordenado onde apoiarem seus conhecimentos e entendimento dos
fenômenos que os influenciavam. Dependendo, fundamentalmente, da compreensão da
terra e do céu para a sobrevivência, as diversas culturas espalhadas pelo planeta
escolheram diferentes formas de entender esta complexa correlação. Todavia, às vezes
alguns fenômenos celestes ocorriam de forma inesperada, e alguns eram especialmente
espetaculares, tais como uma chuva de meteoros, um cometa ou uma nova estrela no
céu. Este último fenômeno, chamado de supernova, é um evento astronômico resultante
da explosão catastrófica de uma estrela, que às vezes aparece com um brilho muito
intenso durante um período, declinando sua luminosidade com o tempo. Um fenômeno
assim ocorreu em 1054 e foi registrada em vários locais na Terra. Em particular, um
documento escrito na China (Figura 1) registra a data do aparecimento deste objeto, por
ele chamado de estrela maligna, e que foi um evento tão intenso que era visível
inclusive durante o dia por vários meses. A partir desta citação, várias outras narrativas
e registros pictográficos sobre este específico aparecimento têm sido encontradas em
locais tão variados como Austrália, Europa e Américas. Este trabalho pretende, por
análise comparativa, demonstrar que um registro deste fenômeno também foi feito no
Brasil, e foi encontrado no estado da Bahia, durante estudos feitos dentro do Projeto
Central, que tem por objetivo reconstruir a ocupação humana na região arqueológica de
Central, Bahia. A grande quantidade de representações rupestres nesta região, algumas
com fortes indicações de referências a objetos e eventos celestes, fazem da região que
abrange este Projeto o local ideal para que sejam feitas buscas sistemáticas a procura de
outras representações da supernova de 1054 (SN 1054), entre outras representações de
cunho astronômico. Esta abordagem poderá ser utilizada como uma forma de datação
indireta de sítios com registros rupestres com tais eventos.
Figura 1: Uma 'estrela convidada' identificada como a supernova de 1054 nas páginas da Lidai
mingchen zouyi (歷代 名臣 奏議), que data de 1414. As passagens em destaque referem-se à
supernova.1
Em 1928, Hubble (1928) sugeriu que o que foi chamado por astrônomos
chineses de “estrela convidada”, um objeto celeste de brilho intenso observado em
1054, estaria associado ao que hoje conhecemos como Nebulosa do Caranguejo (ou
1https://fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:Chinese_report_of_guest_star_identified_as_the_supernova_of_105
4_(SN_1054)_in_the_Lidai_mingchen_zouyi_(%E5%8E%86%E4%BB%A3%E5%90%8D%E8%87%A
3%E5%A5%8F%E8%AE%AE).jpg
Messier 12). Este objeto é o remanescente de uma supernova3, e está localizado na
constelação do Touro, sendo primeiramente observada por John Bevis4 em 1731.
Na tentativa de encontrar outras referências na literatura mundial, muitos
trabalhos têm sido publicados. Dentre eles podemos citar Ho et al (1972), que relata,
além de referências chinesas, também na japonesa. Já o trabalho de Brecher et al. (1978)
identifica uma citação do médico iraquiano Ibn Butlan (1001-1066 dC). O artigo de
Brandt e Williamson (1979) relata uma pintura rupestre que parece representar uma
explosão estelar que poderia ser associada à SN 1054. Na literatura europeia não se tem
notícia, até o presente momento, de referência a este evento, e algumas especulações
têm sido aventadas para explicar tal lacuna. Williams (1981) sugere que uma possível
explicação para esta ausência de registros poderia ser atribuída a condições
meteorológicas desfavoráveis, o que não se sustenta, pois a SN 1054 foi extremamente
brilhante e visível por mais de um ano, além de não ser aceitável que o céu estivesse
encoberto por toda a Europa.
Os trabalhos de Thomas (1979) e Zalcman (1979) levantam a hipótese de que
esta ausência de registros seria devida à uma censura da Igreja Católica Romana, por
conta do Cisma do Oriente5 no século XI dC.
Todavia, Williams (1981) também descreve o que parece ser uma alusão ao
fenômeno nas Crônicas de Rampona.6, citada no trabalho de Newton (1972). Nessas
crônicas há a descrição de uma estrela brilhante aparecendo na época da supernova:
Tempore huius stella clarissima in circuitu prime lune ingressa est, 13 Kalendas in
nocte inito (Durante esse tempo [reinado de Henrique III – Figura 2] uma estrela
2 O Catálogo Messier é um catálogo astronômico composto por 110 objetos do céu profundo, compilado
pelo astrônomo Charles Messier (1730-1817) entre 1764 e 1781, com o nome "Catalogue des Nébuleuses
et des amas d'Étoiles, que l'on découvre parmi les Étoiles fixes sur l'horizon de Paris" (Catálogo de
Nebulosas e Aglomerados Estelares Observados entre as Estrelas Fixas sobre o Horizonte de Paris), foi
construído com objetivo de identificar objetos que poderiam ser confundidos com cometas, objetos de
brilho fraco e difusos no céu noturno. 3 Evento astronômico que ocorre durante os estágios finais da evolução de algumas estrelas, e é
caracterizado por uma explosão muito intensa com um aumento abrupto da sua luminosidade. 4 Astrônomo inglês (1695-1771) 5 Evento que causou a ruptura da Igreja, separando-a em duas: Igreja Católica Apostólica Romana e Igreja
Católica Apostólica Ortodoxa, a partir de 16 de julho de 1054, quando os líderes da Igreja de
Constantinopla e da Igreja de Roma excomungaram-se mutuamente. 6 O Corpus Chronicorum Bononiensium é uma coleção de crônicas da era renascentista que trata da
história de Bolonha. Esta coleção inclui a Cronaca Rampona e a Cronaca Varignana.
extremamente brilhante apareceu no circuito da lua nova [no local da lua nova, ou seja,
a leste, próxima do Sol] no início da noite do dia 13 do calendário). A escolha da
expressão latina stella clarissima para descrever o objeto é tão enfática, indica que esta
era de fato uma estrela muito brilhante.
Em McCarthy e Breen (1997) citam referências nos anais irlandeses que
parecem se aludir a fenômenos astronômicos, possivelmente incluindo a SN 1054
(COLLINS II et al., 1999).
Figura 2: Rei Henrique III apontando uma “nova estrela”7.
Excetuando-se a referência chinesa, até agora todas as informações que podemos
ter acesso são oriundas de fontes que foram escritas, na maioria das vezes, séculos após
7https://en.wikipedia.org/wiki/SN_1054#/media/File:Heinrich_III._sieht_den_neuen_Stern_%C3%BCber
_der_Stadt_Tivoli_(Tyburtina).jpg
o evento. Assim sendo, não é de estranhar que inconsistências nas narrativas sejam
facilmente observadas nos diferentes relatos. Para que se possa avaliar essas
informações, deve-se levar em conta o contexto sócio cultural em que foram produzidas.
Como bem lembram Guidoboni et al. (1992), devemos estar atentos aos anacronismos
introduzidos na transcrição das fontes primárias para a linguaguem da época em que
foram feitas. Neste trabalho eles lembram que algumas fontes são metafóricas e até
mesmo antropomórficas, o que não ocorre com as fontes orientais.
Todavia, devemos ter em mente que existem problemas culturais e
cosmogônicos a serem considerados. Para os orientais, a principal função da observação
e registro de fenômenos celeste estava focada em procurar por ‘sinais’ (presságios), mas
tendo como importante consideração medidas posicionais tão precisas quanto seus
intrumentos de medição permitissem. No trabalho de Ho et al. (1972) é citado que os
chineses não consideraram as estrelas como fixas. porém, é muito provável que eles
fizessem uma associação de uma evento celeste que ocorrese ao entardecer com um
outro semelhante ao amanhecer em uma data posterior. É pouco provável, pelo que
sabemos do modo de contagem de tempo utilizado no ocidente, que isso seja verdade na
Europa medieval.
Muito se descobriu sobre os mecanismos de formação de uma supernova nas
últimas décadas e isso nos permite atualmente determinar que, pelo estudo da
velocidade de expansão da Nebulosa do Caranguejo, há consistência em datá-la como
tendo ocorrido no século XI, como cita o trabalho de Nugent (1998).
Na Tabela I podemos visualizar uma cronologia de possíveis
avistamentos da supernova de 1054, local, fonte e aparência narrada.
Tabela I – Cronologia de possíveis avistamentos da supernova de 1054
DATA LOCAL FONTE APARÊNCIA
11 de abril Constantinopla Diário de Ibn Butlan Estrela
19 de abril Flanders Tractus de ecclesia Estrela brilhante
24 de abril Irlanda Irish Annals Pilar flamejante
Fins de abril Roma De obitu santi Leonis ppIX Estrela brilhante
10 de maio China Sung-shih hsin-pien Estrela
14 de maio Armênia Hayton de Corycus Estrela
20 de maio Italia Crônica de Rampona Estrela muito brilhante
Fins de maio Japão Mei Getsuk Nova estrela
Junho Japão Mei Getsuk Estrela
04 de julho China Sung hui-yao Estrela/Cometa
27 de julho China Sung hui-yao Estrela
Abril de 1055 Constantinopla Diário de Ibn Butlan Estrela
17 de abril de 1056 China Sung hui-yao Estrela
É interessante notar-se que durante os primeiros dias da supernova uma fonte
pontual de cerca de, pelo menos, -6 de magnitude visual8 seria uma visão surpreendente
(como comparação podemos usar Vênus, que em seu brilho máximo teria magnitude de
- 4,8). Perto do amanhecer, o brilho e a variação de cor devido à refração atmosférica
teriam feito o objeto parecer ainda mais ativo. Não seria surpreendente se fosse
interpretado como mostrando um disco que pode explicar o uso da palavra “po”
geralmente reservada aos cometas pelos chineses. Mais tarde, quando diminuiu, se
tornaria uma “estrela convidada”. Finalmente, depois de quase dois anos, a estrela não
seria mais visível no céu noturno, levando à entrada final dos relatórios chineses.
Quando analisamos a tabela, há uma clara prevalência de uma data para a
explosão no meio da primavera, para o hemisfério norte, de 1054 dC. No entanto, todos
os relatórios europeus referem-se a eventos no céu noturno durante a primavera de 1054
dC, enquanto nenhum encontrado até agora se refere a eventos no céu da manhã de
meados de junho e além. Esta ausência é realmente de se estranhar, visto tais
intercorrências celestes serem de especial interesse para os habitantes da Europa
8 A magnitude visual, ou aparente,(m) de um corpo celeste é um número que mede o seu brilho como
visto por um observador na Terra. Quanto mais brilhante um objeto parece, menor é o valor de sua
magnitude (relação inversa). O Sol, com magnitude aparente de -27, é o objeto mais brilhante do céu.. A
escala da magnitude é logarítmica: a diferença de uma unidade na magnitude corresponde a uma mudança
no brilho por um fator de aproximadamente 2,512.
medieval. Estas evidências parecem corroborar a hipótese sugerida por Thomas (1979) e
Zalcman (1979), e desenvolvida por Lupato (1995) de que tais escritos foram
suprimidos pela Igreja Católica Romana, por conta do já citado Grande Cisma, que
coincidiu com o aparecimento da SN 1054. Embora isto fosse praticamente irrelevante
no Oriente, no Ocidente, predominantemente Católico, isto assumia um papel de grande
importância simbólica. Conquanto esse argumento sej, basicamente, circunstancial, não
podemos ignorar o fato de que nos dá pistas para o entendimento da dificuldade de
encontrarmos referências, na literatura europeia, sobre (fundamentalmente calcada nos
dogmas da igreja católica) a SN 1054. Esses trabalhos nos levam a concluir que se
quisermos encontrar mais citações ao evento, devemos procurar na literatura secular e
nos relatos históricos não provenientes de fontes da Igreja Romana.
É interessante notar o protagonismo da SN 1054 história da Astronomia
contemporânea.
Foi procurando sem sucesso pelo cometa Halley, na constelação do Touro, que
Charles Messier pensou descobri-lo, enquanto ele realmente observava a nebulosa do
Caranguejo. Depois de algum tempo, notando que o objeto que não estava se movendo
no céu, Messier conclui que aquele objeto não era o cometa, e percebeu a utilidade de
criar um catálogo de objetos celestes (Catálogo de Messier) de aparência nebulosa, mas
fixos no céu, para evitar confundi-los com cometas.William Herschel (1738-1822)9,
após várias observações, conclui que seria composto de uma aglomeração de estrelas.
Em 1844, William Parsons (1800-1867)10 foi o primeiro a fazer um esboço da
nebulosa, que ele nomeia de "Nebulosa do Caranguejo" de 1848 (Figura 3), termo que
foi adotado rapidamente adotado na comunidade astronômica. Uma foto do objeto como
se encontra hoje pode ser vista na Figura 4.
9 Astrônomo e compositor alemão naturalizado inglês. Ficou famoso por sua descoberta do planeta
Urano, assim como de duas de suas luas, além de duas luas de Saturno e a existência da radiação
infravermelha. É também conhecido pelas vinte e quatro sinfonias que compôs. Foi o primeiro presidente
da Royal Astronomical Society 10 Astrônomo irlandês, foi responsável, na década de 1840, por construir um telescópio que foi, por
muitas décadas, o maior telescópio do mundo.
Figura 3: Desenho da Nebulosa do Caranguejo, feita por Parsons em 1848.11
Figura 4: Objeto resultante da explosão da supernova de 1054.12
11http://www.astronomyprojects.ie/birr.html 12https://www.nasa.gov/feature/goddard/2017/messier-1-the-crab-nebula
Em 1913, quando Vesto Slipher (1875-1969)13 registrou seu espectro, a
Nebulosa do Caranguejo foi mais uma vez o primeiro objeto com essas características
estudado.
O aspecto da nebulosa, sugerindo um pequeno objeto, é revelada por Carl Otto
Lampland (1873-1951)14 em 1921, mesmo ano em que John Charles Duncan demonstra
que ela está em expansão
Em 1921 Knut Lundmark (1889-1958)15 publica um artigo, em que faz um
inventário inventário dos fenômenos chamados "estrelas convidadas", catalogados pelos
astrônomos do mundo chinês, e que excluíam os cometas. Sua compilação corresponde
ao que eles foram chamados à época de novas e que eles eram realmente novas ou, mais
raramente, supernovas. Este trabalho permitiu que Edwin Hubble (1889-1953)16
identificasse a Nebulosa do Caranguejo como remanescente da explosão observada no
ano 1054 e seria correspondente à SN 1054.
Foi, em 1949, uma das primeiras nebulosas a terem a sua imagem no visível a
ser associada à uma radiofonte17.
Na década de 1960 foi levantada a hipótese teórica da existência de pulsares, e
novamente a SN 1054 tornou-se importante para validar essa teoria. Franco Pacini
(1939-2012)18 predisse em seu artigo de 1967, pela primeira vez, que somente a
existência de uma estrela de neutrons seria capaz de explicar a iluminação daquele
objeto. Essa estrela de nêutrons foi observada logo após, em 1968, confirmando a teoria
da formação desses objetos durante certas explosões de supernovas. A descoberta do
13 Astrônomo americano; mediu pela primeira vez a velocidade radial de uma galáxia e descobriu a
existência de gás e poeira no meio interestelar 14 Astrônomo americano; construiu telescópios e projetou câmeras para astrofotografia, inclusive, um
termopar para medir temperaturas em outros planetas. 15 Astrônomo sueco, conhecido por ter realizado os primeiros estudos sobre a natureza das galáxias. Foi
também o principal incentivador da Astronomia popular na Suécia na década de 1930 e nos anos
seguintes 16 Astrônomo americano, identificou que o que até então se conheciam como nebulosas, na verdade eram
galáxias fora da Via Láctea, e que estas afastam-se umas das outras a uma velocidade proporcional à
distância que as separa. 17 Estela que emite radiação na frequência das ondas rádio, que abrange, aproximadamente, de 3 kHz a
300 GHz. 18 Astrônomo italiano, trabalho principalmente no estudo de pulsares e estrelas de neutrons.
pulsar do Caranguejo foi possível graças ao conhecimento do momento de seu
nascimento, o que possibilitou verificar as considerações básicas sobre a física desses
objetos (idade característica, taxa de diminuiçao da luminosidade,tamanho, campo
magnético etc). Nesse aspecto, a SN 1054 foi crucial, pois nenhuma outra supernova
histórica deu origem a um pulsar cuja idade poderia ser conhecida de maneira precisa.
Uma vez que podemos encontrar registros de fenômenos celestes não
previsíveis, como cometas e meteoros, em tradições orais e materiais por culturas em
todas as partes do mundo, é provável que supernovas também tenham sido registradas.
Mas identificar objetivamente um exemplo claro é tarefa difícil. Basicamente temos
duas dificuldades para fazer uma associação objetiva entre, por exemplo, uma arte
rupestre ou uma tradição oral a um evento como uma supernova. Primeiro, descrições
passadas por tradições orais costumam ser ambíguas. Segundo, representações
rupestres, tais como pinturas ou gravações, podem ser interpretadas de acordo com o
viéz da área de atuação do pesquisador. Um astrônomo e um antropólogo poderiam ter
interpretações completamente diferentes de uma mesma representação. Assim, fica
evidente que erros de identificação e interpretações de supernovas na cultura
principalmente de povos ágrafos são bastante comuns. Para que se possa interpretar
essas representações seria necessário que fosse criada uma lista de critérios objetivos,
todavia esta não é a proposta de trabalho.
Quando consideramos as Américas, encontramos artigos que se referem a
representações rupestres ameríndias no sudoeste dos Estados Unidos. Uma das mais
famosas interpretações dessas representações (e também a que gera maior controvérsia)
é a que é associada à SN 1054. Ela é atribuída à cultura Anasazi e está localizada em
Chaco Canyon, no Novo México e é analisada nos trabalhos de Brandt e Williamson
(1979) e Brecher et al. (1983) (Figura 5). É proposto que a imagem representa uma Lua
crescente com um objeto de grande brilho bem próximo a ela e com o decalque de uma
mão esquerda, que seria uma espécie de assinatura do artista. Esta hipótese seria
fundamentada nas datações efetuadas no sítio onde se encontra a pintura e com a
configuração que é relatada pelas observações feitas na China e o mapa de como seria
visível o fenômeno no céu, obtido pelo software para PC Starry Night (Figura 6) para o
dia 5 de julho de 1054. Esta seria uma forte evidência de que esta seria realmente a
representação da SN 1054. Todavia também sabemos que a datação de pinturas
rupestres normalmente são feitas de forma indireta e têm um grande erro associado. Em
adição, alguns pesquisadores, tais como Koenig (1979) e Shaefer (2006), afirmam que
na realidade o objeto brilhante ao lado da Lua poderia ser Vênus ou Júpiter. Estas
hipoteses são validas, porém este não é um fenômeno incomum e a representação em
questão parece querer registrar que algo inédito estava ocorrendo no céu e que precisava
ser registrado.
Figura 5: Pintura rupestre em Chaco Canyon representando a supernova que criou a
Nebulosa do Caranguejo em 4 de julho de 1054.19
19https://listoffigures.wordpress.com/tag/william-parsons/
Figura 6: Mapa de como seria a configuração do ceu no dia 5 de julho de 1054, data
obtida dos registros chineses (imagem obtida através do software Starry Night).
No Brasil, os trabalhos relacionados a Arqueoastronomia começaram a ser
abordados com mais consistência quando, a partir de 1982,20 uma equipe de
pesquisadores do Museu Nacional/UFRJ, coordenada pela arqueóloga Maria da
Conceição de Moraes Coutinho Beltrão21, através do Projeto Central, trazia à tona uma
série de descobertas feitas no município de Central, na Bahia, sendo que uma
quantidade significativa relacionada a eventos celestes. Essas informações recuperadas
por esse Projeto arqueológico têm servido de base para o estudo e respostas a questões
levantadas por outros projetos de pesquisa feitos no Brasil.
O Projeto Central pode ser considerado pioneiro na pesquisa arqueoastronômica
brasileira. Nas diversas publicações resultantes das pesquisas desenvolvidas na região,
podemos encontrar diversas possíveis interpretações de registros rupestres com viés
notadamente astronômico, como pode ser visto em Tavares e Beltrão (2014).
20 Cf. BOAVENTURA, Edivaldo (Org.) Maria Beltrão e a Arqueologia na Bahia: o projeto Central.
Salvador: Quarteto, 2014:41. 21 Profa. titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A região definida pelo Projeto é de 100.000 km² e engloba a Planície Calcária,
as Serras Quartzíticas da Chapada Diamantina e a região oeste do estado da Bahia.22
Após mais de 30 anos de pesquisas em diversos municípios da região, foram registrados
mais de 400 sítios arqueológicos e paleontológicos, distribuídos em abrigos, grutas,
canyons, boqueirões, etc. Como a maior concentração de sítios encontra-se na planície
calcárea da Chapada Diamantina, as escavações e levantamentos dos registros rupestres,
também foram ali centralizados inicialmente, sendo posteriormente expandidos para as
serras quartzíticas, a leste e a oeste da planície23 (Figura 7).
Figura 7: Delimitação da área de abrangência do Projeto Central.24
Nessa área abarcada pelo Projeto há uma grande profusão de registros rupestres,
especialmente no que toca as representações celestes, tornando essa região um local
22 Cf.: BELTRÃO, Maria. O projeto Central. In: BOAVENTURA, Edivaldo (Org.) Maria Beltrão e a
Arqueologia na Bahia: o projeto Central. Salvador: Quarteto, 2014. p.41. 23<http://www.mariabeltrao.com.br/portfolio-item/pesquisas-arqueologicas-no-interior-do-estado-da-
bahia/> (acesso em outubro de 2016). 24http://www.projetocentral.com/historico-de-criacao/
propício para a pesquisa de representações associadas a eventos astronômicos. Nela
podemos identificar diversas representações que podem ser interpretadas como cometas,
representações de ciclos temporais, como as fases da Lua e o movimento anual e do Sol,
agrupamentos de asterismos que parecem indicar agrupamentos de estrelas e um
provável local de observação do solstício de junho. Isto pode ser encontrado em
extensos painéis em cânions ou dentro de tocas.
Para que possamos avaliar com confiabilidade o conhecimento astronômico de
diferentes grupos humanos no Brasil pelas representações encontradas na arte rupestre,
é fundamental que um levantamento das representações astronômicas nas diversas
regiões brasileiras seja feito. Somente com um trabalho extenso e meticuloso será
possível termos um panorama geral da distribuição dessas representações. A partir
dessas informações, agrupar as imagens e correlacioná-las a fim de encontrar um padrão
que possa ser definido e comparado a imagens que tenha a sua interpretação bem
conhecida e embasada, sempre que possível, em documentação, escrita ou mesmo oral.
Não podermos, ainda na maioria dos casos, garantir a intenção dos povos que
produziram determinadas representações, mas isso não nos impede de especular,
baseados em informações colhidas de outras culturas ágrafas as intenções por trás de
representações que nos parecem estar associadas a eventos celestes. Ao contrário, é na
verdade um estímulo de exercício comparativo e analógico.
Nesse sentido, propomos interpretar, de forma comparativa com a representação
rupestre em Chaco Canyon (Figura 5), a representação encontrada na região do Projeto
Central conhecida como Fonte Grande I em imagem obtida em 1989 (Figura 8) como
sendo também uma representação da SN 1054. A imagem mostra notável semelhança
com a representação atribuída aos Anasazi. Infelizmente ainda não temos como fazer
uma datação direta da representação feita na Bahia, mas a semelhança entre as duas
pinturas nos parece evidente. Este tipo de comparação e associação pode, inclusive
servir como um modo de datação indireta não só para uma representação, mas de um
sítio inteiro.
Figura 8: representação encontrada na região do Projeto Central conhecida como Fonte
Grande I em imagem obtida em 1989 (foto do autor).
A ideia deste trabalho não é chegar a uma conclusão fechada sobre um assunto
que tem se mostrado tão controverso, mas sim despertar o interesse em uma ciência que
é relativamente nova, e que no Brasil tem sido relegada a poucos trabalhos acadêmicos.
A área da agora definida como Astronomia Cultural tem um forte apelo inter e
transdisciplinar, e tem crescido de forma muito consistente, principalmente na América
Latina. Certamente que no caso do Brasil este trabalho é mais difícil que em outros
países que abrigaram culturas mais avançadas tecnologicamente, mas é também um dos
locais com a maior concentração (se não o maior) de pinturas e gravações rupestres do
planeta. O desafio está aí para quem ficou interessado.
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