REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA MEDIEVAL EM DUNGEONS &
DRAGONS
Giovanna Martelete do Amaral
Doutoranda PUCRS
Nykollas Gabryel Oroczko Nunes
Mestre PUCRS
Introdução: história e D&D
A história medieval tem-se feito presente no cotidiano contemporâneo na forma
de lazer e divertimento, notadamente em filmes, seriados e jogos como o Role Playing
Game (RPG) Dungeons & Dragons (D&D). Esses medievalismos expressam a forma
como as pessoas se recordam da Idade Média, mesmo que de forma imprecisa
(MARSHALL, 2007a). Todavia, são essas expressões culturais populares as formas
majoritárias pelas quais as pessoas em geral têm acesso ao passado, mais do que por
produções acadêmicas (SANCHÈS MARCOS, 2012).
Dungeons & Dragons é um jogo de interpretação para dois ou mais jogadores, no
qual um jogador é o “mestre” da aventura, responsável por descrever situações e locais,
e apresentar tramas e desafios para os demais, que controlam personagens individuais no
cenário. Para jogar, são necessários ao menos três elementos: os livros de regras, que
descrevem a mecânica do jogo; papel e caneta, para anotar as estatísticas de cada
personagem; e um conjunto de dados com número variado de faces, para introduzir, por
meio da aleatoriedade, o elemento do “jogo” em si. Livros suplementares, mapas,
miniaturas e aplicativos de celular estão entre os muitos elementos extras hoje
pertencentes ao hobby.
O típico mundo fantasioso de D&D tem suas referências ancoradas na Europa
medieval e abrange aventuras com criaturas mágicas e elementos do imaginário sobre a
Idade Média. Uma parte importante do jogo é o local onde se passam as aventuras, como
espaços naturais que, mesmo marcados por elementos fantasiosos, fazem referência ao
período histórico que estrutura o jogo, o medievo europeu. Ou seja, têm por base um
imaginário contemporâneo sobre a natureza na Idade Média. O objetivo deste trabalho é
analisar qual representação do ambiente natural medieval é incentivada no RPG
Dungeons & Dragons.
D&D tem como base três livros que guiam a construção dos personagens (Livro
do Jogador), do mundo em que se passa a aventura (Guia do Mestre) e dos monstros que
serão enfrentados (Manual dos Monstros). Selecionamos o Guia do Mestre para esta
análise por ser o livro que explora e indica a criação do mundo. Suas instruções e
recomendações aos mestres contêm noções — sobre a Idade Média e sobre o espaço —
que os autores propuseram como base para as narrativas que cada grupo ao redor do
mundo viria a performar. Um exemplo é a concepção sobre o espaço, que apresenta-se
dividido em settlements (assentamentos), dungeons (masmorras) e wilderness1.
Uma das primeiras seções do livro estabelece premissas-base, concepções sobre o
mundo do jogo com as quais o livro trabalhará. Uma delas estabelece que o mundo da
narrativa é em grande parte selvagem. O livro informa ao leitor: “wild regions abound”
(DUNGEON, 2014, p. 9), e assim wilderness assume um caráter de pano de fundo para
toda a ação. Isto sugere a relevância de se analisar a natureza medieval em D&D à luz do
conceito de wilderness, como estabelecido na história ambiental a partir do trabalho de
Roderick F. Nash.
Desde seu lançamento em 1974 nos Estados Unidos, o jogo acumula 5 edições. A
última, lançada em 2014, ainda não tem tradução oficial completa no Brasil. Ainda assim,
D&D 5 se tornou tão popular no Brasil que pelo menos desde 2015 já existe uma tradução
feita por um fã. Este fã era membro de um grupo de Facebook exclusivamente dedicado
à 5ª Edição, que soma mais de 39 mil membros, demonstrando a grande penetração do
jogo entre o público brasileiro.
História Pública e Medievalismo
1 Optamos por não traduzir wilderness, uma vez que o termo em inglês não possui uma tradução que dê
conta ao mesmo tempo de seus múltiplos usos (em determinada situação, “ambiente selvagem” é uma
solução, enquanto em outra o mais apropriado seria “deserto”). Além disso, o uso do termo original em
discussões historiográficas envolvendo o conceito é bem estabelecido.
A História Pública tem ganhado espaço no Brasil e muito se discute sobre a
atuação do historiador neste campo e sobre a produção realizada fora da academia. Não
apenas a apresentação do passado para um leque mais amplo de audiências, o estudo da
história pública se debruça sobre a forma como “adquirimos nosso senso de passado - por
meio da memória e da paisagem, dos arquivos e da arqueologia (e por consequência, é
claro, do modo como esses passados são apresentados publicamente)” (LIDDINGTON,
2011, p. 34). História Pública comporta a história feita para um público mais amplo, a
história colaborativa, feita em conjunto com o público, a história feita pelo público e o
exercício de reflexividade entre a história e o público (SANTHIAGO, 2016). Dentro
desses engajamentos vemos florescer as produções na cultura popular que mobilizam a
história, geralmente sem intenção, mas que acabam por agregar e relacionar
representações ao saber histórico do público que as consomem. Neste sentido, sobre o
cinema, Santiago Júnior afirma que:
[...] o filme não precisa se propor como narrativa explicitamente histórica para
que o senso de passado esteja presente. Se o sentido de passado é construído
em narrativas e imagens, isso significa que o discurso não precisa ser dotado
ele próprio da intenção de encenar o passado, embora possa fazê-lo. A
espessura de tempo de uma imagem cinematográfica pode vir de seu diálogo
com outras imagens e discursos de história pública que permitem a indexação
da historicidade no filme. (SANTIAGO JÚNIOR, 2018, p. 52)
Filmes são capazes de criar poderosas imagens de representação histórica, mesmo
se tratando de uma produção de fantasia. O cinema promove “immediacy and
simultaneously appeals to the imagination, engaging the viewer in the past and involving
him emotionally and imaginatively in the action on screen” (DRIVER, 2004, p. 19). Aos
filmes se vinculam outras produções, como a literatura e jogos, seja ele inspirando-se
nelas ou servindo como fonte de inspiração para novas produções. Essa relação se
exemplifica com as obras de J. R. R. Tolkien, que foram escritas nos anos 1930-50,
adaptadas para o cinema nos anos 2000-2010 e depois para diversos outros produtos
culturais. O mesmo se deu com os livros de George R. R. Martin, adaptados para a série
Game of Thrones, que se multiplicaram em jogos e todo tipo de merchandising. Um
caminho semelhante teve a série de jogos Assassin’s Creed, adaptada para literatura e
posteriormente para o cinema.
Essas produções mobilizam o imaginário do público, compartilhando
representações e ideias sobre a história ou aspectos da história, e se desdobram nas mais
variadas formas de manifestações culturais. Jogos de RPG são um dos muitos pontos de
encontro possíveis das representações da Idade Média, conjugando e atualizando
estereótipos presentes no cinema e na literatura com informações sobre armamentos e
vestimenta, e a criação de narrativas sobre natureza e ambiente presentes nos livros de
RPG. Segundo Mônica Nunes:
A prática de consumo midiático, como assistir a filmes, séries e videogames,
ler livros, HQs, ou se entreter com algum produto da cultura pop que tematize
o medieval fantástico, a era vitoriana, o universo samurai de alguns animes e
mangás, [...], promove o acesso simbólico e imaginário a outras camadas de
tempo. (2017, p. 33)
Isso ocorre especialmente quando envolve a teatralidade e o afeto. Esse acesso
simbólico ao passado ocorre no D&D em meio a elementos de fantasia e dentro das regras
da própria linguagem do jogo (MARSHALL, 2007b).
Mesmo que a representação da Idade Média em D&D não se prenda ao
conhecimento histórico do período e flua em direção a fantasia e referências da cultura
popular, o Guia do Mestre cria algumas “âncoras” no “mundo real” ao longo das
instruções para criação de mundos nos jogos. Uma grande seção do Guia fala sobre
assentamentos, locais onde as pessoas vivem e que ajudam a definir a natureza da
civilização do mundo em que o jogo vai se passar. O detalhamento vai do tipo de governo
até especificações sobre as habitações, e varia dependendo da vontade de quem está
“mestrando” e criando o mundo do jogo. Sobre o tipo de governo, o Guia do Mestre dá a
seguinte descrição:
In the feudal society common in most D&D worlds, power and authority are
concentrated in towns and cities. Nobles hold authority over the settlements
where they live and the surrounding lands. They collect taxes from the
populace, which they use for public building projects, to pay the soldiery, and
to support a comfortable lifestyle for themselves (although nobles often have
considerable hereditary wealth). In exchange, they promise to protect their
citizens from threats such as orc marauders, hobgoblin armies, and roving
human bandits. (DUNGEON..., 2014, p. 17-18)
O trecho evidencia que o modelo para o jogo é a sociedade feudal, entretanto
descreve uma perspectiva que se concentra na relação de poder e autoridade, onde nobres
coletam impostos para manter um determinado estilo de vida, construir prédios públicos
e garantir a segurança das pessoas. A seção segue discorrendo sobre quem detém o poder
e o que faz com ele, limitando neste tema o que se sabe sobre a sociedade feudal. Diversas
formas de governo são indicadas como possibilidade, mas novamente o Guia se vincula
à Idade Média, e o feudalismo é apontado como o modelo:
The typical government of Europe in the Middle Ages, a feudalistic society
consists of layers of lords and vassals. The vassals provide soldiers or scutage
(payment in lieu of military service) to the lords, who in turn promise
protection to their vassals. (DUNGEON..., 2014, p. 18)
O feudalismo é delineado pelo Guia do Mestre como uma forma de organização
militar: o único aspecto relevante a ser descrito é como se mantêm a segurança da
população frente a um possível ataque. O que é o feudalismo e como a sociedade se
organiza, ainda que seja um aspecto que poderia enriquecer as histórias narradas nos
jogos, é suprimido frente a uma representação voltada para a questão do poder e do
combate.
David Marshall (2007b) aponta como o D&D mantém a sua própria lógica como
um sistema autopoiético abarcando elementos externos na sua composição. A Idade
Média funcionaria como um repositório de ingredientes, juntamente com a literatura
fantástica, para a criação do mundo de D&D. Ao analisar como o jogo reconfigura a
imagem do clérigo para incorporar a classe no jogo, Marshall afirma que “those historical
organizations influence the image of the cleric, but autopoietic closure is maintained by
reconstructing them in the game’s own language of fantasy. The game effectively works
in analogy rather than influence” (2007b, p. 181).
Ainda que existam outras opções indicadas no Guia do Mestre, a fundação na qual
a narrativa e a ideia dos jogos se baseiam é uma evocação da sociedade feudal. É a partir
dela que os outros detalhes que compõem o mundo onde a aventura se passa serão criados.
Quando o mestre descrever o lugar onde os jogadores vão entrar, por onde vão andar, em
que mundo está se passando a aventura, o ponto de referência será algo visto como
medieval.
Natureza medieval no Guia do Mestre
“Between the dungeons and settlements of your campaign world lie meadows,
forests, deserts, mountain ranges, oceans, and other tracts of wilderness waiting to be
traversed” (DUNGEON..., 2014, p. 106). Essa frase abre a sessão do Guia do Mestre
sobre wilderness, localizada ela própria entre as sessões sobre masmorras e assentamentos
no quinto capítulo do livro: Adventure environments. Há diversas concepções possíveis
para wilderness: ela pode ser (e foi) compreendida como, por exemplo, uma natureza em
um estado idealizado de ausência de ação humana, como uma natureza selvagem
particularmente inóspita, ou ainda como “the place where, symbolically at least, we try
to withhold our power to dominate” (CRONON, 1996, p. 93).
Em D&D, no entanto, sua definição é diferente, de forma a atender necessidades
do jogo: wilderness define-se de acordo com a liberdade de movimento que proporciona.
Desta forma ela se distingue da masmorra, espaço composto de salas e corredores
delimitados e finitos, e do assentamento, espaço por definição sob o controle da
“civilização”. É desta forma que o jogo ao mesmo tempo inclui como wilderness
simultaneamente selvas remotas, fortes habitados por criaturas com traços bestiais e
chácaras que estejam sob o ataque de ogros; e exclui da abrangência do conceito um
complexo de cavernas.
Se esta é a forma pela qual pode-se definir o que é ou não wilderness no Guia do
Mestre, as maneiras de representá-la giram basicamente em torno do perigo e da aventura
romântica. Roderick Nash, autor do clássico Wilderness and the American Mind (1967),
identificou a associação wilderness–perigo como pervasiva no Ocidente desde a
sedentarização, assim como a associação oposta que a acompanha, civilização–proteção.
Até mudanças ocorridas na modernidade, com o movimento romântico e a contemplação
do sublime kantiano na natureza, desvios desta visão negativa são apresentados por Nash
como exceções a uma regra.
Dos componentes culturais do medievo europeu, compreendido neste intervalo, o
cristianismo, em continuidade à tradição judaica, associou a wilderness ao Diabo e lhe
designou características terríveis, enquanto a cultura popular a ela relegou criaturas como
o homem selvagem e outros entes assustadores, estes últimos muitas vezes associados a
anjos caídos e demônios. A wilderness era em grande parte desprezada, temida e
vinculada ao perigo, como seguiu sendo por muito tempo. No Guia do Mestre, ela abriga
perigos representados por muitas criaturas presentes no folclore europeu, às quais é
atribuído um caráter maligno, ao encontro da associação cristã wilderness–diabo.
Uma ilustração de página inteira apresenta em primeiro plano um grupo de
pequenos humanóides com traços bestiais, portando armas rudimentares e adornos de
ossos - goblins, na lógica do jogo - espreitando em meio a rochas em algum local elevado,
entre árvores retorcidas sem folhas, troncos podres e um entalhe de uma serpente com
chifres em uma grande pedra. A cena inteira é composta em frios tons arroxeados, e o
fundo - uma floresta escura - se dissolve em névoa. Esta imagem é a primeira da sessão
do livro sobre wilderness, e expressa bem a ideia de ambiente natural ameaçador, domínio
de criaturas não-humanas. A ilustração ressoa com as caracterizações que Nash percebe
e encontra no poema épico Beowulf para as regiões desabitadas: “dank, cold, and gloomy
[...] wolf-haunted hills, windswept crags, and perilous fen-tracks [...] a dismal grove of
mountain trees” (NASH, 2014, p. 12).
Imagem 1: Wilderness no Guia do Mestre
Fonte: (DUNGEON..., 2014, p. 107)
No entanto, a maneira como Nash caracteriza a percepção da wilderness perigosa
durante a Idade Média poderia sugerir que este aspecto perigoso só possui um caráter
negativo, o que não é o caso. Em seu artigo La percepcion de la naturaleza en la Alta
Edad Media (2007), a historiadora Adeline Rucquoi dá bastante ênfase à função de palco
para a salvação que a natureza podia desempenhar na Idade Média europeia. A narrativa
bíblica de que Deus teria criado todas as coisas conferia à natureza uma primeira camada
de sacralidade como “obra divina”.
A narrativa, contudo, indicava que a natureza terrena precedia a humanidade na
ordem da criação, e não havia sido criada para ela: a natureza que Deus criou para o ser
humano foi o jardim, o paraíso. A wilderness terrena era o espaço de seu banimento,
escapava ao seu controle, era ocupado pelo demônio. Uma das fontes utilizadas pela
autora, Martinho de Dume, escrevia no século VI que os demônios desde o dilúvio
enganavam os homens exigindo-lhes sacrifícios no alto dos montes e nas profundezas dos
bosques.
Esse perigo representado pela wilderness, entretanto, podia ele próprio ser útil à
humanidade, contrasta Rucquoi. A autora apresenta como seu papel como espaço de
penitência - e logo de salvação - persistiu ao longo da alta Idade Média ibérica. Vários
ermitãos escolheram recolher-se ao “desierto” ao longo do período estudado pela autora,
até o século X, onde buscavam resistir à tentação do Diabo, passar por penitência e
alcançar a salvação. De maneira distinta, Rucquoi argumenta que as cavernas (que em
D&D seriam masmorras, mas na concepção ambiental são componentes da wilderness)
aparecem em uma versão das Crônicas de Alfonso III como um local para cristãos se
refugiarem de muçulmanos, e então de lá saírem para obter a vitória. Neste caso, a caverna
“evoca también los antiguos mitos de muerte y renacimiento, de ocultación del héroe
dentro de una montaña de donde resurge para dar la victoria a su pueblo, de Cristo bajando
a los infiernos antes de resucitar” (RUCQUOI, 2007, p. 11).
O próprio Nash já havia ressaltado na década de 1960 estas utilidades da natureza
deserta, que se manifestaram desde o êxodo bíblico, onde serviu de refúgio aos hebreus,
até os espaços utilizados por eremitas ao longo da Idade Média, passando pelos quarenta
dias que Cristo passa no deserto (wilderness) na Bíblia. A wilderness como refúgio ou
local de contemplação, embora sem dúvida pudesse fazer parte de uma narrativa de jogo,
não recebe atenção no Guia do Mestre. Seria possível considerar, portanto, que em D&D
as funções positivas que a wilderness medieval podia assumir desaparecem por completo?
Não seria o caso, uma das razões para tal é a caça, também explorada por Rucquoi.
A caça, aponta a autora, era uma oportunidade de triunfo da humanidade sobre
uma natureza selvagem e diabólica. Por proporcionar tal enfrentamento com as bestas, a
wilderness era uma vez mais útil ao ser humano e palco de uma vitória do bem contra o
mal. A narrativa mais estimulada no Guia do Mestre, dos jogadores interpretarem heróis
que adentram a wilderness em busca de combate contra monstros e conquista de
masmorras (também povoadas por monstros e bestas), ecoa fortemente esta função
histórica da caça no imaginário medieval.
O romantismo, contudo, opera outras mudanças: o próprio “homem selvagem”,
por exemplo, dá lugar ao “bom selvagem” dentro desta tradição, difunde-se (até certo
ponto) a paixão pela beleza que a natureza selvagem pode abrigar. Estas perspectivas
positivas e românticas também aparecem em D&D: outra das ilustrações de página inteira
apresenta um cavaleiro em seu cavalo branco, ambos com armaduras prateadas e
douradas, saltando por cima de um tronco em meio a uma floresta. O cavaleiro tem seu
escudo erguido, no qual uma flecha está alojada, na outra mão empunha uma espada. O
tronco sobre o qual o animal salta é tomado por vegetação de um verde vibrante, que
também aparece nas copas das árvores ao fundo, iluminadas pela luz do sol.
Imagem 2: Adventure Environments no Guia do Mestre
Fonte: (DUNGEON..., 2014, p. 98)
A mesma variedade de ambiente daquela anteriormente apresentada - uma floresta
- agora evoca um sentimento de aventura e heroísmo. Este potencial múltiplo é destacado
pelos autores, que sugerem que o Mestre o explore ao descrever o cenário para os outros
jogadores:
Use the landscape to set the mood and tone for your adventure. In one forest,
close-set trees shroud all light and seem to watch the adventurers as they pass.
In another, sunlight streams through the leaves above and flower-laden vines
twine up every trunk. (DUNGEON..., 2014, p. 106)
A ideia contemporânea de wilderness, no entanto, não é restrita a espaços de
perigo ou espaços de heroísmo. A partir da virada do século XVIII para o XIX, com a
vida e obra de Humboldt como marco importante, a ecologia começou a tomar forma
como ciência, e logo havia outros interesses na wilderness, que ao longo do século XIX
e do começo do XX se converteram em desejo de protegê-la. A preservação da
wilderness, o valor intrínseco na biodiversidade, na diferença, no que cada ecossistema
traz de único é um componente essencial do pensamento ecológico contemporâneo sobre
a wilderness.
A ecologia hoje postula, como o vem fazendo há décadas, que um pântano
habitada por serpentes, artrópodes e rãs é um ecossistema valioso, que deve ser estudado
e preservado, que cada um desses seres vivos é importante para a manutenção do todo e
que a perda de qualquer um deles seria lamentável. Ela vê na composição do lodo indícios
de como a vida ali se mantém, em cada um dos fungos, insetos e répteis as suas posições
na teia alimentar do ambiente, e assim retorna à defesa da preservação do pântano, ele
próprio relacionado aos biomas que o cercam.
O role-play de fantasia, por outro lado, que busca inserir os jogadores em um
mundo medieval, acaba por se desvencilhar deste paradigma ecológico contemporâneo,
e retorna a concepções pré-modernas sobre a wilderness. Desta forma, outra das
ilustrações de página inteira do Guia do Mestre representa a encosta de uma montanha
como a face de um monstro, uma caverna sendo sua boca escancarada. As formações
rochosas imitam dentes afiados e uma labareda em seu interior adicionando ameaça
imediata. Do lado de fora, um grupo de aventureiros armados se esconde atrás de grandes
rochas, espiando apreensivamente para a caverna, certamente a entrada de alguma
perigosa masmorra.
Imagem 3: Running the Game no Guia do Mestre
Fonte: (DUNGEON..., 2014, p. 234)
Esta outra maneira de encarar o ambiente vê certos aspectos da paisagem e formas
de vida como indesejáveis, e neles encontra evidências de ameaça ou literalmente
maldade. Mais uma vez, pode-se observar as sugestões para a condução do jogo contidas
no Guia do Mestre:
Signs of corruption-rotting wood, foul-smelling water, and rocks covered with
slimy brown moss-can be a signal that the adventurers are drawing close to the
site of evil power that is their destination or can provide clues to the nature of
the threats to be found there. (DUNGEON..., 2014, p. 106)
Madeira podre, água malcheirosa e rochas cobertas de “musgo marrom gosmento”
são listados como exemplos de características da paisagem que podem indicar
proximidade com poder maligno. Apresentados como sinais de “corrupção”, podem ser
compreendidos em oposição a seus correspondentes “imaculados”: madeira viva ou
tratada, água limpa e rochas livres de musgo. Estes últimos são elementos mais estéreis,
componentes de uma paisagem menos entrópica, mais ordeira e pronta para o uso. A
corrupção se manifesta no declínio da utilidade da paisagem, com a intrusão de elementos
que atrapalham sua manipulação pela humanidade.
Há um componente antropocêntrico nesta associação, que pode ser observado
também em posturas utilitárias, que veem no valor de uma paisagem o quanto ela pode
fornecer ao humano e se mantêm politicamente relevantes até o presente (NASH, 2014).
Na história do Ocidente, paisagens como desertos e selvas foram pensadas sob esse viés
de desviarem de um padrão (europeu) de ordem e utilidade. No século XIX elas foram
descritas por viajantes como locais de morte, monstruosidade e maldade (os desertos), ou
excesso, caos e luxúria (as selvas), e assim associadas ao mal e ao pecado (GREGORY,
2001). Como no Guia do Mestre os primeiros exemplos de wilderness apresentados no
capítulo são “Desert of Desolation” e “the jungles of the Isle of Dread” (DUNGEON...,
2014, p. 99), estes estereótipos parecem seguir tendo influência no imaginário sobre a
natureza, sendo transplantados para o cenário medieval de D&D como zonas hostis para
os personagens enfrentarem o mal e performarem atos de heroísmo e bravura.
Considerações finais
D&D promove uma representação da Idade Média voltada para as relações de
poder, conflito e proteção. Ao adentrar na mecânica de construção dos mundos,
fortemente inspirados na Idade Média, o Guia do Mestre por um lado sugere uma
wilderness hostil, local de maldade, mas também romântica, local de aventura e heroísmo.
Por outro lado, se descola de perspectivas ambientais contemporâneas, de preservação de
paisagens e valorização da biodiversidade, ao manter a noção de que certas características
naturais são sinais de corrupção ou presença maligna.
Ao considerarmos que D&D é um jogo de interpretação, de se colocar no lugar de
um outro imaginário, essa escolha na representação poderia sugerir (em um primeiro
olhar) uma grande adequação do jogo à produção historiográfica acadêmica sobre a
natureza na Idade Média. Não é, no entanto, a partir da historiografia sobre as percepções
medievais que D&D chega nessas representações da wilderness, mas sim a partir do
processo de significação que envolve camadas de medievalismos. Essas representações
se referenciam e se tornam elas próprias ponto de partida para novas representações,
atualizando a imagem da natureza medieval na cultura popular contemporânea. A
exclusão do elemento religioso–cristão da representação da wilderness como ameaçadora
ou redentora altera toda a lógica das motivações sócio-culturais de tais percepções. Seguir
questionando sobre esse universo cultural e sobre as formas como o público com ele se
relaciona ajudará a construir um entendimento mais profundo sobre como esse imaginário
se atualiza ao longo do tempo.
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