UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
KLEBER VINICIUS GONÇALVES FEIO
RESPONSABILIDADE OBJETIVA E DIREITOS FUNDAMENTAIS:
UMA REFLEXÃO SOBRE O PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 927 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO A PARTIR DE PAUL RICOEUR
BELÉM 2011
KLEBER VINICIUS GONÇALVES FEIO
RESPONSABILIDADE OBJETIVA E DIREITOS FUNDAMENTAIS:
UMA REFLEXÃO SOBRE O PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 927 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO A PARTIR DE PAUL RICOEUR
Dissertação apresentada para a obtenção do grau de Mestre ao Programa de Pós-graduação em Direito do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará. Orientado pela Profª Drª Pastora Leal (ICJ – UFPA).
BELÉM 2011
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Jurídicas da UFPA
Feio, Kleber Vinicius Gonçalves Responsabilidade objetiva e direitos fundamentais: uma reflexão sobre o parágrafo únicodo artigo 927 do Código Civil Brasileiro a partir de Paul Ricoeur / Kleber Vinicius Gonçalves Feio; orientador Pastora Teixeira Leal.-Belém, 2011.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Belém, 2011.
1. Responsabilidade (Direito). 2. Direitos fundamentais. 3. Ricoeur, Paul. I. Leal, Pastora Teixeira. II. Universidade Federal do Pará. Instituto de Ciências Jurídicas. Programa de Pós-Graduação em Direito. I
CDD: 342.151
KLEBER VINICIUS GONÇALVES FEIO
RESPONSABILIDADE OBJETIVA E DIREITOS FUNDAMENTAIS:
UMA REFLEXÃO SOBRE O PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 927 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO A PARTIR DE PAUL RICOEUR
Dissertação apresentada para a obtenção do grau de Mestre ao Programa de Pós-graduação em Direito do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará.
Avaliado em:____/____/____
Banca examinadora:
______________________________________ - Orientadora Pastora do Socorro Teixeira Leal Pós-doutora em Direito Universidade Federal do Pará
______________________________________ Pedro Paulo da Costa Corôa Doutor em Filosofia Universidade Federal do Pará ______________________________________ José Cláudio Monteiro de Brito Filho Doutor em Direito Universidade Federal do Pará
AGRADECIMENTOS
• Aos colegas da minha turma de mestrado, pelas discussões instigantes;
• A Dra. Pastora Leal, pela orientação paciente, pelos preciosos conselhos
acadêmicos, e pela amizade;
• Ao PPGD, por todo apoio recebido.
Noch suchen die Juristen eine Definition zu ihrem Begriffe von Recht.1 KANT
1 Ainda procuram os juristas uma definição para o seu conceito de Direito
RESUMO
Este trabalho versa sobre responsabilidade objetiva. Trata-se, mais especificamente, de uma análise do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil Brasileiro, interpretado como cláusula geral de responsabilidade objetiva. A metodologia investigativa adotada centrou-se na pesquisa bibliográfica. Como fundamentação teórica, o trabalho baseia-se na coletânea “O Justo”, de Paul Ricoeur. Por isso mesmo, este trabalho tem clara interseção com o pensamento ético e com as teorias da justiça. O trabalho destaca a interpretação de Ricoeur a respeito da Teoria da Justiça de John Rawls. Em termos estruturais o trabalho divide-se em quatro capítulos, o primeiro apresenta o estado da arte e indica os rumos da nossa investigação. O segundo trata da evolução do conceito de responsabilidade, tal como exposto por Ricoeur. O terceiro trata do nosso fundamento: a teoria da justiça de Rawls, reinterpretada por Ricoeur e, o quarto, encaminha nossas observações finais.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil – Responsabilidade Objetiva – Direitos Fundamentais – Ricoeur.
ABSTRACT
This work focuses on strict liability. It is, more specifically, an analysis of the sole paragraph of Article 927 of the Brazilian Civil Code, read as a general clause of strict liability. The research methodology adopted focused on the literature search. As theoretical framework, the work is based on the compilation "Le Juste" by Paul Ricoeur. Therefore, this work clearly has ties to the ethical thought and theories of justice. This work, moreover, emphasizes the interpretation of Ricoeur about the Theory of Justice by John Rawls. Structurally the work is divided into four chapters, the first presents the state of the art and indicates the direction of our investigation. The second deals with the evolution of the concept of responsibility, as outlined by Ricoeur. The third is our foundation: the Rawls’ theory of justice, reinterpreted by Ricoeur. The fourth, our concluding remarks.
Keywords: Liability - Strict liability - Fundamental Rights - Ricoeur.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO....................................................................................................10
2. CAPÍTULO I – SOBRE A RESPONSABIIDADE CIVIL OBJETIVA GENÉRICA
NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002: EXCURSO INTRODUTÓRIO......15
2.1. FUNDAMENTOS DA RESPONABILIDADE CIVIL........................................15
2.2. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA....................................................28
2.3. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA......................................................30
2.3.1. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA GENÉRICA..................................33
2.4. UM SISTEMA MISTO....................................................................................35
2.5. ATIVIDADE DE RISCO..................................................................................35
2.6. RESPONSABILIDADE E TEORIAS DA JUSTIÇA........................................44
3. CAPÍTULO II – A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE RESPONSABILIDADE:
UMA REFLEXÃO A PARTIR DE RICOEUR.......................................................48
3.1. IMPUTAÇÃO E RESPONSABILIDADE: A HERANÇA KANTIANA...............48
3.2. A IDEIA CONTEMPORÂNEA DE RESPONSABILIDADE.............................51
3.3. CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM...................................52
3.4. A REFORMULAÇÃO DO CONCEITO DE RESPONSABILIDADE...............54
4. CAPÍTULO III – RESPONSABILIDADE OBJETIVA E TEORIA DA JUSTIÇA: A
PROPÓSITO DAS OBSERVAÇÕES DE RICOEUR A RESPEITO DE
RAWLS...............................................................................................................65
4.1. RAWLS E RICOEUR.....................................................................................65
4.2. A REGRA MORAL E O DIREITO CIVIL: RIPERT.........................................68
4.3. SOBRE A INFLUÊNCIA DAS LIBERDADES CIVIS NA SEPARAÇÃO
ENTRE MORAL E DIREITO..........................................................................69
4.4. AUTONOMIA E CONTRATO.........................................................................70
4.5. PETIÇÃO DE PRINCÍPIO?............................................................................70
4.6. JUSTIÇA COMO EQUIDADE........................................................................72
4.7. A POSIÇÃO ORIGINAL E OS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA............................73
4.8. CONVICÇÕES BEM PONDERADAS E DEBATE INTERSUBJETIVO.........76
5. CAPÍTULO IV – EM BUSCA DE UM CRITÉRIO GENÉRICO DE
RESPONSABILIDADE OBJETIVA....................................................................79
5.1. PEQUENO ESBOÇO DO PROBLEMA.........................................................79
5.2. BECK E A SOCIEDADE DO RISCO.............................................................84
5.3. UM ESBOÇO DE SOLUÇÃO........................................................................85
5.4. DERRADEIRA REFLEXÃO SOBRE A TEMÁTICA.......................................88
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................90
REFERÊNCIAS........................................................................................................94
10
1. INTRODUÇÃO
Na obra Dialektik der Aufklärung: philosophische Fragmente (Dialética
do esclareciemento: fragmentos filosóficos), Adorno e Horkheimer abrem o
capítulo intitulado Begriff der Aufklärung (conceito de esclarecimento) dizendo o
seguinte:
Seit je hat Aufklärung im umfassendsten Sinn fortschreitenden Denkens das Ziel verfolgt, von den Menschen die Furcht zu nehmen und sie als Herren einzusetzen. Aber die vollends aufgeklärte Erde strahlt im Zeichen triumphalen Unheils. (ADORNO; HORKHEIMER, 2009, p. 9).1
O Esclarecimento, tal como apresentado pelos filósofos frankfurtianos, é
o projeto de desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt). Sua meta
era dissolver os mitos, consolidar a experimentação, tornar a equação o
referencial do conhecimento, afinal, o número tornou-se o cânon do
esclarecimento (die Zahl wurde zum Kanon der Aufklärung). Por meio do
conhecimento, que é poder, pretendia-se explicar a natureza, dominá-la e, por
isso mesmo, desencantá-la. Tudo isso tinha um objetivo: livrar os homens do
medo e investi-los na posição de senhores.
Contudo, hoje vivemos em uma Terra totalmente esclarecida, conforme
o excerto acima, e as promessas do esclarecimento não se concretizaram.
Pelo contrário, o saber, que é poder, serviu, de fato, para consolidar poderes,
sobre a natureza e sobre os próprios homens e, por meio dessas relações de
poder, aumentar o medo e criar novas formas de sofrimento humano. Segundo
Adorno e Horkeimer, o esclarecimento trouxe der Fluch des unaufhaltsamen
Fortschritts ist die unaufhaltsame Regression2 (ADORNO; HORKHEIMER,
2009, p. 42).
Dentre as conseqüências deste irrefreável progresso, destacado pelos
frankfurtianos, estão novos problemas com os quais nunca as sociedades
humanas tinham se deparado. O Esclarecimento possibilitou o avanço técnico-
1 No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido
sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores. Mas a Terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. 22
A maldição do progresso irrefreável e a irrefreável regressão
11
científico, pelo qual a Revolução Industrial se tornou possível. Além dos
benefícios do avanço tecnológico, que nos trazem, sem dúvida, muito conforto,
há uma contrapartida: a natureza e a magnitude dos danos tornou-se
potencialmente mais agressiva ao homem e ao meio-ambiente como um todo.
Por exemplo, na madrugada de 3 de dezembro de 1984, uma nuvem de gás
altamente toxica vazou das instalações da Union Caribe na cidade de Bophal,
Índia, o que provocou mais de quatro mil mortes, fora os danos à saúde dos
milhares de sobreviventes. Esse é um claro exemplo da magnitude potencial
dos riscos criados pelo modus operandi das sociedades de modernidade
avançada (termo usado por Ulrich Beck). Mas ao lado dos danos de grande
proporção estão os milhares de “pequenos” danos que fazem parte da rotina da
sociedade tecnológica contemporânea. Os riscos estão em todo lugar: no
sistema elétrico, no uso de veículos automotores, na alimentação, na qualidade
da água, no ar que respiramos, etc. Daí Ulrich Beck dizer que “a única coisa
que nos protegeria de uma maneira realmente efetiva seria não comer, não
beber, não respirar” (BECK, 1998, p. 42).
Tornou-se, por isso mesmo, imperativo que todos os homens de ciência
reflitam sobre um problema contemporâneo axial: como conciliar o
desenvolvimento técnico-científico com o desejável progresso ético-político da
humanidade? Na verdade, a crença dos filósofos iluministas no progresso,
incluía o progresso moral e político. Kant, por exemplo, o maior representante
do Iluminismo alemão, acreditava no progresso humano em todos os âmbitos:
basta lembrar do opúsculo da Paz perpétua. Contudo, quem mais se beneficiou
do Aufklärung (Esclarecimento ou Iluminismo) foi o conhecimento técnico-
científico e as formas de dominação a ele vinculadas. Por isso mesmo Adorno
e Horkheimer dizem que Aufklärung ist totalitär3 (ADORNO; HORKHEIMER,
2009, p. 12).
Contudo, mesmo após a trágica constatação de que a Modernidade não
cumpriu as suas promessas e que, pelo contrário, “a Terra totalmente
esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”, o discurso
dos direitos humanos ganha um espaço sem precedentes. Norberto Bobbio,
3 O Esclarecimento é totalitário.
12
por exemplo, sustenta que vivemos na Era dos direitos. De fato, em termos de
reconhecimento positivado de direitos vivemos na melhor época da história
humana. Bobbio acredita que a Declaração Universal dos Direitos do Homem,
aprovada pela Assembléia Geral da Nações Unidas em 10 de dezembro de
1948, foi um divisor de águas. Embora haja países não signatários da
declaração, teríamos, segundo Bobbio, a maior prova histórica de um certo
consensus omnium gentium sobre um determinado sistema de valores
(BOBBIO, 2004).
Bobbio acredita, a nosso ver com razão, que a Declaração Universal dos
Direitos do Homem abriu caminho para medidas mais concretas de proteção
dos direitos humanos. É curioso que após a denúncia pós-moderna do fracasso
do Esclarecimento, a crença de que a humanidade pode melhorar do ponto de
vista ético, político e jurídico não foi abandonada. O otimismo de Bobbio é
encorajador: podemos viver em um mundo melhor e, para isso, precisamos nos
mobilizar em torno da causa dos direitos do homem. Afinal, “para protegê-los,
não basta proclamá-los” (BOBBIO, 2004, p. 36)
Contagiados com o mesmo otimismo histórico de Bobbio, embora nem
sempre com suas premissas, tratamos, nesta dissertação, da reflexão em torno
da busca de um fundamento genérico de responsabilidade objetiva.
A investigação tem como ponto de partida a formulação, positivada em
nosso ordenamento jurídico, de uma cláusula geral4 de responsabilidade
objetiva, a saber, o parágrafo único do art. 927 de Código Civil Brasileiro.
Contudo, nossa pesquisa tem certos contornos bem definidos: estamos
preocupados com a fundamentação teórica do instituto da responsabilidade
objetiva e, para isso, sustentamos nossa reflexão principalmente em Paul
Ricoeur, mais especificamente, em sua obra Le juste. Trata-se, portanto, de
uma investigação que se move no âmbito das Teorias da Justiça e, por isso
mesmo, a intersecção com o pensamento ético é fulcral.
4 Karl Engisch define cláusula geral como “uma formulação da hipótese legal que, em termos
de grande generalidade, abrange e submete tratamento jurídico a todo um domínio de casos” (ENGISCH, 1979, p. 189). A preocupação de Engisch refere-se ao recurso usado pelo legislador como tentativa de abranger, em uma única formulação, um expressivo número de casos a fim de evitar a tarefa hercúlea com tendência ad infinitum: a elaboração casuística de todas as hipóteses legais.
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Estamos em busca de um critério genérico de responsabilidade objetiva,
o que não implica dizer que já o tenhamos pronto e acabado. Trata-se de uma
necessidade contemporânea premente, que se impõe ao jurista, e que reclama
por solução. Além disso, nada no direito é pronto e acabado, como talvez em
nenhum âmbito do conhecimento humano. Se pudermos apontar rumos para o
encaminhamento da discussão, isso, por si só, já seria razoável para uma
dissertação de mestrado.
Além disso, nosso trabalho tem algumas ênfases prioritárias: a cláusula
genérica de responsabilidade objetiva, tal como recepcionada por nosso
ordenamento, refere-se aos danos provocados por atividades de risco. A
ênfase do nosso estudo, como já é patente inclusive nesta introdução, está nas
atividades criadoras de novos riscos, riscos estes fabricados pelo avanço
tecnológico. Até porque a chamada teoria do risco, que será, dentre outras
coisas, objeto de nosso estudo, surgiu com essa preocupação. De uma forma
geral é esse, também, o encaminhamento do debate doutrinário. Uma questão,
ora tácita, ora explícita em nosso trabalho é a de saber, uma vez constatado o
dano, de quem é a responsabilidade? Portanto, deve-se sublinhar que nos
ocupamos, nesta dissertação, mais com a questão da necessidade de
reparação do dano em função do respeito à dignidade humana que com os
mecanismos de prevenção.
Contudo, esta escolha tem uma razão de ser. Cremos que a efetiva
reparação, por si só, é um dos melhores mecanismos de prevenção. Além
disso, partimos da premissa de que estamos tratando de atividades lícitas, ou
seja, atividades que, por definição, devem atender a determinadas exigências
legais de segurança. Portanto, para efeitos de argumentação, partimos da
situação ideal de uma atividade que, apesar de respeitar, de boa fé, todos os
critérios de segurança, tal cuidado não se mostra suficiente para impedir o
dano. Por isso mesmo, nosso foco, para efeitos de argumentação, não é a
prevenção e sim a reparação. Contudo, a ideia de prevenção aparece no texto,
embora sem a atenção que mereceria em um trabalho cujo foco fosse outro.
Por fim, queremos sublinhar que, embora nosso referencial teórico seja
Ricoeur, este pensador francês não chega a elaborar uma Teoria da Justiça.
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Sua obra se comunica com outros teóricos, dentre os quais podemos citar
Hans Jonas, John Rawls e Habermas, que, por isso mesmo, ocupam algum
lugar no encaminhamento de nossa discussão. Cremos, contudo, que a
despeito de não elaborar uma Teoria da Justiça, as reflexões de Ricoeur têm
muito a contribuir com a nossa temática.
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2. CAPÍTULO I – SOBRE A RESPONSABIIDADE CIVIL OBJETIVA
GENÉRICA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002: EXCURSO
INTRODUTÓRIO
2.1. FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Se raciocinarmos apenas com base no sentido etimológico, partiremos
da constatação bastante conhecida de que responsabilidade vem do latim
spondeo (“responder a”; “comprometer-se”). A ideia básica seria a de que
alguém deve responder, perante outrem, pelo prejuízo que lhe causou.
Responsabilidade, assim, seria uma espécie de contraprestação, compensação
ou reparação de dano. No caso específico da responsabilidade civil, o
esquema didático amplamente conhecido no Brasil sustenta, de forma
esquemática, que esta pode originar-se de uma obrigação legal ou da vontade
das partes (contratual), podendo-se operar em virtude de culpa do agente
causador do dano (subjetiva) ou prescindindo da mesma (objetiva). No capítulo
seguinte, contudo, mostraremos, a partir das considerações de Paul Ricoeur,
que o raciocínio etimológico é insuficiente para a correta compreensão da
genealogia do conceito de responsabilidade civil.
“Responsabilidade”, como grande parte dos conceitos jurídicos, tem
origem na reflexão moral5, embora o seu uso jurídico tenha, por outro lado,
impactado profundamente os rumos da reflexão moral, como veremos adiante.
5 Vários autores fazem diferenciação entre Ética e Moral. A conceituada obra de Adolfo
Sanchez Vázquez, por exemplo, sustenta que Moral seja “um sistema de normas, princípios e valores, segundo o qual são regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livre e conscientemente, por uma convicção íntima, e não de uma maneira mecânica, externa e impessoal.” (VÁZQUEZ, 1997, p. 84). Ética, por sua vez, conforme o mesmo autor, seria “a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade.” (VÁZQUEZ, 1997, p. 23). Embora essa diferenciação seja amplamente divulgada, estes conceitos têm, sem dúvida, outras aplicações, como é o caso, por exemplo, dos chamados “códigos de ética” profissionais. Neste trabalho, usamos os termos Ética e Moral em sentido kantiano, isto é, como reflexão prática sobre o dever-ser próprio do agir humano. Acreditamos que este uso seja suficientemente abrangente para nosso propósito. Kant não fez diferenciações entre “Eticidade” e “Moralidade” como, mais tarde, o fez Hegel. Portanto, para efeitos de argumentação e amparados na obra do filósofo de Königsberg, não estamos preocupados com estas diferenciações.
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Por isso mesmo, não se pode estudar o instituto da responsabilidade civil
ignorando-se suas raízes conceituais.
É claro que este não é o lugar para uma exposição detalhada dos
fundamentos da responsabilidade civil, até porque, para fins de sustentação de
nossa argumentação, o que nos interessa é a fundamentação filosófica, qual
seja, a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social. Contudo,
preliminarmente, cabe preparar o caminho para a apresentação destes
conceitos.
Na segunda dissertação da Genealogia da Moral, Nietzsche diz que com
ajuda da moralidade e da camisa-de-força social o homem foi tornado confiável
e é aqui que se encontraria a origem do que chamamos de responsabilidade,
ou, como Nietzsche prefere, “a longa história da origem da responsabilidade”
(NIETZSCHE, 2009, p.44). O homem moral, para Nietzsche, é o homem “capaz
de fazer promessas”, isto é, capaz de acordar, de comprometer-se e, por isso
mesmo, de “lembrar”. Isso significa que em algum momento pré-histórico o
bicho homem, que tinha uma inteligência voltada para o instante, desenvolveu
a memória. Ainda segundo Nietzsche, o desenvolvimento desta memória
sustentou-se no que ele considera “a mais antiga psicologia da terra”: a
memória é engendrada pela dor. A crueldade, segundo Nietzsche, foi o grande
prazer festivo da humanidade antiga. Os principais conceitos morais, em suas
raízes, estariam ligados à relação credor-devedor: o conceito moral de “culpa”,
por exemplo, teria uma forte ligação, em suas raízes, com o conceito material
de “dívida”. O não-pagamento de uma dívida, isto é, o descumprimento de uma
promessa, nesta relação, implicava certo direito de causar dor. O mais velho e
ingênuo cânon moral da Justiça não teriam sido a “bondade”, a “equidade” ou o
“respeito” e sim a máxima segundo a qual “cada coisa tem o seu preço”, ou
ainda, “tudo pode ser pago”.
De fato, o chamado período de Talião refere-se, justamente, a época em
que a ideia de justiça se materializava em diversas formas de vingança. Os
mais antigos códigos que chegaram até nós, como é o caso do Código de
Hamurabi (2000 a.C.), por exemplo, regulamentaram a vingança privada,
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estabelecendo equivalentes cruéis como compensação por danos. O devedor
que não paga, por este raciocínio, deve ser castigado.
Hoje, sem dúvida, a crueldade provoca horror e as penas cruéis são
veementemente rechaçadas nos acordos internacionais de direitos humanos.
Até mesmo a prisão, nos casos de dívida, é considerada um excesso
desnecessário e, a este respeito, basta citar o artigo 7º do Pacto de São José
da Costa Rica. Mas a gênese da justiça começa, sem dúvida, na crueldade.
Não por acaso, em muitas dentre as mais antigas religiões do mundo este
raciocino está presente, isto é, o raciocínio pelo qual dívidas se pagam com
sansões cruéis. No Cristianismo, por exemplo, conforme destaca Nietzsche, se
diz que os pecados da humanidade tiveram que ser pagos, de forma cruel e
sangrenta, por Jesus, afinal, “Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo
fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5:8) e,
assim, “(...) fomos reconciliados com Deus mediante a morte de seu filho (...)”
(v. 10). Por isso mesmo, Nietzsche diz com inegável ironia: “quanto sangue e
quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas boas’!...” (NIETZSCHE, 2009,
p.47).
Mas o problema, identificado também por Nietzsche, é que essa pré-
história sempre pode retornar, isto é, as antigas ideias de sanção como
pagamento por desvios de comportamento, por não cumprimento de
promessas e, por que não dizer, de contratos, de uma forma ou de outra,
ressurgem, ainda que, conforme comentaremos adiante, com nova roupagem.
Dado este antigo raciocínio presente na história humana, pelo qual as
ações consideradas ilícitas devem ser compensadas, muitos juristas dizem que
a responsabilidade civil é tão antiga quanto o direito. Mas isso é só em parte
verdade. Embora a ideia de compensação seja antiga, diversos paradigmas
orientaram o entendimento do que seja esta obrigação de reparar, a forma de
efetivá-la e os casos em que se aplica.
No caso do já mencionado Período de Talião, por exemplo, no qual
podemos incluir o aparecimento da lei mosaica, a fórmula “(...) olho por olho,
dente por dente (...)” (Gn 21:24), já esboçava uma forma de estabelecer
equivalências, de forma a se evitar os excessos da autotutela. A vingança
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privada na história dos hebreus, segundo a própria bíblia, antes da lei mosaica,
não tinha um critério de equivalência, qual seja: o causador do dano deve
sofrer um dano igual ao que provocou (pois é esta a regra implícita na máxima:
“olho por olho, dente por dente”). Por exemplo, quando Siquém violentou Diná,
Simeão e Levi, irmãos de Diná, conforme o capítulo 34 de Gênesis, “entraram
inesperadamente na cidade e mataram os homens todos” (v. 25). Simeão e
Levi consideraram justo seu comportamento de entrar na cidade onde morava
o agressor de sua irmã e matar todos os seus moradores. Eles, Simeão e Levi,
estavam indignados, não aceitaram de forma alguma que sua irmã, Diná, fosse
“abusada como se fosse prostituta” (v. 31). Contudo, o hebreu Moisés sequer
tinha nascido para estabelecer os limites da autotutela: um olho vale um olho e
um dente vale um dente. É cruel, sem dúvida, mas evita que se mate “todos os
homens da cidade”.
A ideia de compensação, contudo, teve que esperar a civilização grega
para ter uma conceituação mais refinada. Cabem, aqui, algumas palavras a
este respeito. Os filósofos gregos foram os primeiros a tematizar a justiça no
âmbito do que chamamos de pensamento racional. Uma das colunas no
pensamento grego, por exemplo, Aristóteles (século IV a.C.) dizia que “a justiça
é uma espécie de proporção” (ARISTÓTELES, 2009. p. 109), pela qual, do
ponto de vista aritmético, pessoas iguais têm e partilham partes iguais e, do
ponto de vista geométrico, pessoas desiguais têm e partilham partes desiguais.
Os debates filosóficos em torno do direito grego expunham, além disso, que há
um vínculo explícito entre direito, política e ética. Como a ética e a política eram
fundamentalmente teleológicas (tanto em Platão como em Aristóteles, por
exemplo, a ideia de Bem Supremo da comunidade moral e política está
presente) o direito também deveria visar um determinado fim, qual seja, a
busca deste Bem Supremo que, no idealismo platônico, é apenas um ideal
regulador. Em Aristóteles, por sua vez, o Sumo Bem seria a Felicidade. É em
função do Bem da comunidade moral e política que todas as ações humanas
devem ser pensadas e, em função disso, a reparação é concebida como a
restauração de um equilíbrio destruído. De todo modo, os gregos, e aqui não
importa a escola filosófica, nos deixaram um legado inequívoco: o “justo” é algo
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passível de discussão, debate e análise crítica. As questões jurídicas, morais e
políticas não são verdades religiosas, são temas de investigação racional.
A positivação, contudo, mais próxima daquilo que hoje chamamos de
responsabilidade civil, remonta ao direito romano. No século III aparece a lex
Aquilia e damno na qual tornou-se explícita a regra segundo a qual quem é
culpado de causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo. No primeiro
capítulo desta lei, por exemplo, se diz que quem mata escravo ou animal alheio
deve pagar ao dono o valor máximo alcançado pelo escravo ou animal, no ano
anterior ao da morte. A respeito deste documento, afirma Giselda Hironaka:
Foi a lex Aquilia e damno, então, que introduziu, como inovação jurídica sem precedentes, a ideia que todo autor de um ato ilícito (contrário a lei ou ao direito de outrem) está, por sua própria causalidade, de antemão obrigado a compensar o dano que causou. (HIRONAKA, 2005, p. 55 – o destaque é meu)
Este comentário mostra a importância da causalidade no raciocínio do
legislador romano. Uma vez reconhecida a causalidade pelo Imperium, o autor
do ilícito é obrigado à reparação. Aqui está presente o raciocínio pelo qual o
agente escolheu agir assim e, por sua ação, provocou o dano. Poderia ter
agido de outro modo, não agiu, portanto, deve reparar. Por isso mesmo, grande
parte dos estudiosos da responsabilidade civil consideram a lex Aquilia como a
base histórica mais remota da fundamentação da responsabilidade civil na
ideia de culpa do agente (que é, inclusive, conhecida como responsabilidade
aquiliana). Apoiar a obrigação de reparar na culpa do agente é, como
comentaremos adiante, o grande postulado da teoria subjetiva da
responsabilidade.
No universo cristão medieval a ênfase na noção de culpa acaba tendo
um palco favorável para o seu desenvolvimento. A ideia de pecado, tão forte na
espiritualidade cristã, reforça a ideia de culpa como fundamento da
responsabilização. Ser responsável é assumir a culpa pelos efeitos de algo ou
de alguém. Só que as ideias cristãs medievais também favoreceram a
associação imediata entre culpa e “castigo”. Desse modo, ser responsável é
ser “castigável”. Ser responsável é ter a habilidade de responder por sua culpa
e, por isso mesmo, ser suscetível de castigo.
20
Na Modernidade, por sua vez, o pensamento jurídico recebe influência
de diversas ideias, principalmente as ligadas ao desenvolvimento do
capitalismo como, por exemplo, a de livre iniciativa e a de liberdade para
contratar. Mas cabe também mencionar as ideias alimentadas sob influência da
Revolução Científica Moderna, como é o caso da liberdade de expressão e
para a crítica de ideias herdadas e, além disso, as alimentadas pela Reforma
Protestante, como é o caso da liberdade religiosa. É claro que, além disso, o
movimento filosófico conhecido como Iluminismo exerceu, em suas diversas
versões, influência inegável em todo o contexto cultural do pensamento
moderno e, por isso mesmo, no pensamento jurídico.
Embora a noção cristã de culpa tenha desdobramentos na modernidade,
até porque a maioria dos juristas influentes eram cristãos, havia uma clara
tendência laica na teorização do direito. Vários juristas poderiam ser aqui
citados como representantes do pensamento moderno, contudo, para nosso
propósito, basta citar o francês Jean Domat, dada a reconhecida repercussão
de seu pensamento na redação do Código Civil Francês de 1804. Jean Domat,
como a maioria dos juristas modernos foi profundamente impactado pela
Revolução Científica Moderna. Domat era cartesiano e, com esta orientação,
escreveu a sua obra Les loix civiles dans leur ordre naturel. As leis, por
exemplo, eram concebidas por Domat como partes de um todo sistêmico
(DOMAT, 1735). A ordem natural, presente no universo, deve ter o seu reflexo
na ordem jurídica e, mais especificamente, nas leis civis. O direito, sustentava
Domat, precisa de coerência, unidade, harmonia.
O impacto da Revolução Científica Moderna no pensamento humano em
geral é inegável. Kant, por exemplo, diz que “quando Galileu deixou as suas
esferas rolarem sobre o plano inclinado (...) acendeu-se uma luz para todos os
investigadores da natureza” (KANT, 1996, p. 37). Essa “luz”, contudo, não se
restringiu às investigações físicas, pois o “giro copernicano”6, de Kant, se
6 O expressão “giro copernicano” ficou famosa na história do pensamento filosófico em função
de um comentário de Kant no prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura. Lá é dito que “Até agora se supôs que todo nosso conhecimento tinha que se regular por objetos; (...). O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico que, depois das coisas não quererem andar muito bem com a explicação dos movimentos celestes admitindo-se que todo o exército de astros girava em torno do expectador, tentou ver se não seria mais bem-sucedido se deixasse o expectador mover-se e, em contrapartida, os astros em repouso” (KANT, 1996,
21
pretende válido para toda e qualquer epistemologia, ou, como ele prefere, para
todo o conhecimento que pretenda trilhar o “caminho seguro da ciência”. De
fato, a ciência moderna impressionava pela sua metodologia, suas
descobertas, seus resultados, enfim, seu poder preditivo. Não por acaso, Kant
foi um grande admirador de Newton. Mas a crença exagerada na ciência
moderna sustentou a equivocada ideia de que seus fundamentos não poderiam
mais ser reformulados. O Prêmio Nobel Schrödinger diz, a respeito de Kant
que:
A atitude de Kant em relação à ciência era incrivelmente ingênua, como todos concordarão se folhearem seu livro Fundamentos metafísicos da ciência (Metaphisische Anfangsgründe der Naturwissenschaft). Ele aceitava a ciência física, na forma como ela tinha atingido em seu tempo de vida (1724-1804), como algo mais ou menos definitivo, e se ocupou em justificar filosoficamente suas sentenças. Ter acontecido algo desse tipo a um grande gênio deve servir de advertência a todos os filósofos posteriores. (SCHRÖDINGER, 1997, p. 159)
De fato, Kant se equivocou ao achar que a Física de sua época era
“mais ou menos” definitiva. Mas isso, segundo o próprio Schrödinger “não
trouxe nenhum dano à parte de maior valor de sua filosofia” (ibidem). Esse
equívoco de Kant, deveria, de fato, servir de advertência a todos os filósofos
posteriores, mas o problema é que a física da época de Kant só ruiu no início
do século XX e, aliás, Schrödinger foi um dos responsáveis por isso.
Muitos pensadores modernos e mesmo contemporâneos, contudo,
foram, nesse ponto, bem mais ingênuos que Kant. Kant, pelo menos, não foi
metodologicamente ingênuo, tanto que ele falava de um “giro copernicano” na
filosofia, isto é, a rejeição do tradicional esquema segundo o qual o sujeito
apenas apreende as informações externas, sem influenciar no resultado do
conhecimento. Pelo contrário, o sujeito, segundo Kant, é determinante no
processo cognitivo. Ocorre que o sucesso da mecânica newtoniana, sem
dúvida, inspirou as humanidades em sua busca por um modelo teórico
semelhante. Esta busca criou a paisagem para um modelo teórico bem mais
p. 39). O giro copernicano de Kant refere-se, justamente, a essa mudança de perspectiva epistemológica: “deixar o expectador mover-se”, isto é, compreender que o sujeito do conhecimento só conhece “fenômenos” e não “coisas em si”. Fenômeno é entendido como o objeto tal como ele se mostra, sob a perspectiva da estrutura cognitiva do observador. Nesse sentido, o sujeito se “move”, não é passivo no processo do conhecimento, não é apenas um receptor das informações “fornecidas” pela observação do objeto.
22
problemático que o criticismo kantiano, a saber, o positivismo. A sociologia, por
exemplo, nasce com o nome de “física social”, em uma clara referência ao
modelo das ciências naturais. Ocorre que, como já referenciamos, o início do
século XX trouxe um desconforto sem precedentes para a história da Física.
Einstein, Planck, Heisenberg, Schrödinger, dentre outros, reformularam os
fundamentos da pretensa “ciência intocável”, obrigando-nos a refletir sobre a
validade de nossos conhecimentos nos mais diversos âmbitos.
O Direito, como investigação acadêmica e parte indispensável do
funcionamento de qualquer sociedade humana, é atingido, direta ou
indiretamente, pelos paradigmas científicos.
Hans Kelsen pensou o Direito nos moldes do positivismo, pois essa era
a única maneira de ser ouvido em uma academia cientificista. O estudo
científico das normas seria, segundo Kelsen, a preocupação fundamental da
Ciência Jurídica. Kelsen, além disso, repudia o que ele chama de sincretismo
metodológico, isto é, o entendimento de que as questões jurídicas devem ser
estudadas pelas diversas ciências humanas (história, sociologia, psicologia
etc.) articuladas na temática da norma jurídica. A Ciência Jurídica é autônoma,
sustenta Kelsen. Embora receba influência de outras áreas do conhecimento, a
Ciência Jurídica tem sua própria metodologia investigativa.
Ocorre que a crise da matemática e das ciências da natureza forçou
uma mudança paradigmática na epistemologia contemporânea. Crise que não
foi superada, pois revelou algo importante sobre a natureza da ciência. Os
problemas da física, como corretamente observa Cornelius Castoriadis,
implicam questões que “não vêm antes e nem depois da física contemporânea,
elas são a física contemporânea” (CASTORIADIS, 1997, p. 213). Seria prolixo,
aqui, enumerar estes problemas. Basta citar as implicações epistemológicas do
“princípio da incerteza”, de Heisenberg, ou as conhecidas dificuldades de
conciliação entre a relatividade geral e a mecânica quântica: a explicação do
universo macroscópico tem um ponto de partida que não é compatível com o
que é usado para explicar as partículas subatômicas.7 Contradições deste tipo,
7 É claro que há diferenças epistemológicas cruciais entre as humanidades e as ciências
naturais, e Castoriadis observa isso com maestria (embora estas diferenças não sejam a presença ou ausência de “fundamentação rigorosa”). Basta citar aqui a necessidade de
23
tão comuns nas ciências sociais8, causam um desconforto extremo em
qualquer pesquisador de orientação neo-positivista. Por isso mesmo,
desenvolveu-se, a partir de então, questionamentos a respeito do conceito de
“demonstração”, de “demarcação”, de “matematização” enfim, de todos os
conceitos que a “episteme”, tal como a entendemos hoje, herda da filosofia
tradicional.
Em que medida esta mudança paradigmática pode influenciar,
positivamente, o direito e, em específico, o conceito de responsabilidade civil?
Um lugar-comum, hoje, é a dispensa do conceito de “verdade”. Os
físicos pensam a natureza em termos deterministas, mas, em geral, não
afirmam a “verdade” de seus conhecimentos. Aqui, fica clara a distinção entre
“verdade” e “objetividade”. O conhecimento objetivo pode ser reformulado, esse
é um lugar-comum. Não por acaso, os manuais de metodologia científica
destacam a provisoriedade, como um traço do conhecimento científico.
Pretende-se realmente conhecer a natureza, mas admite-se a possibilidade
dos erros que precisam, constantemente, ser eliminados.
Mas por que, afinal, essa digressão? Porque em se tratando de
epistemologia, o modelo da física está sempre na ordem do dia. Kaufmann, por
exemplo, diz que devemos “reconhecer que as ciências exatas da natureza
estão mais próximas do ideal de cientificidade do que as ciências normativas”
(KAUFMANN, 2004, p. 100). A epistemologia das ciências naturais é complexa.
Os representantes do “Círculo de Viena” defendem o critério da
“verificabilidade”; Popper sustentou a “falseabilidade”; Kuhn defendeu a ideia
exegese dos textos clássicos, presente nas ciências sociais e que é desnecessária em se tratando da investigação da natureza (os estudantes das ciências naturais raramente lêem Newton ou Darwin, por exemplo). 8 Em se tratando das ciências sociais é importante destacar o exemplo do marxismo, dada a proeminência do tema na obra de Castoriadis. Ao criticar o marxismo, Castoriadis não o faz em um sentido similar ou mesmo próximo da crítica popperiana. Castoriadis não tenta mostrar, como Popper, que o materialismo histórico não é ciência ou que não atende aos “rigorosos critérios” de cientificidade. Ao contrário, Castoriadis considera o marxismo “indiscutivelmente” uma teoria científica que, por isso mesmo, teve o “destino de toda a teoria científica importante”, isto é, “foi ultrapassada pela pesquisa” (CASTORIADIS, 1982. p. 54-55). Dentre os problemas apresentados pelo marxismo e denunciados por Castoriadis, queremos destacar o “determinismo econômico”, que é o mesmo problema apresentado por Habermas como “paradigma da produção”. O problema epistemológico que está no pano de fundo desta discussão é o das “conexões causais” ou, se quisermos usar a linguagem kantiana, a “categoria da causalidade”.
24
de “paradigma”, enfim, estes exemplos são suficientes para mostrar que dizer o
que é ou não ciência depende do referencial epistemológico que se adota.
Daí os pensamentos desconstrucionistas, conhecidos como “pós-
modernos” encerrarem a advertência de não levarmos tão longe a
racionalidade técnica ao ponto de esquecermos do homem e dos seus anseios
fundamentais. As filosofias da existência, por exemplo, têm uma posição
privilegiada no século XX e neste início do XXI. Heidegger, ex-aluno de
Husserl, propôs uma ontologia fundamental onde a significação da existência
humana é o cerne da investigação filosófica. Ora, não há uma resposta
“científica”, no sentido técnico-instrumental, para a questão dos valores, do
“ethos” a ser adotado pelo direito. Daí Kaufmann dizer que “Vivemos num
tempo de transição e de ruptura. Fala-se muito de ‘mudanças de paradigma’”
(KAUFMANN, 2002, p. 43). São nos períodos de crise que se destacam,
segundo Kaufmann, as filosofias da existência. A racionalidade instrumental
mostrou-se incapaz de oferecer respostas às mais importantes questões
humanas. O sucesso do conhecimento científico não implicou avanços nas
questões referentes à existência humana em suas contingências histórico-
sociais. As filosofias da existência pensam fundamentalmente a existência
humana sem se deixar levar por esquemas cognitivos que aprisionam o
pensamento. O lema de Husserl era “retornar as próprias coisas” (zu den
Sachen selbst), em uma clara preocupação com a existência, com uma
“ontologia de relações” e, neste ponto, não se pode deixar de lembrar o
conceito heideggeriano de “mit-Sein”, isto é, "ser-com”. O ser humano é
fundamentalmente isso, um “ser-com”, uma existência que encontra sua
significação na relação com o outro. Talvez isso explique o princípio da
tolerância tão vigorosamente sustentado por Kaufmann: “Age de tal modo que
as conseqüências da tua ação sejam concordantes com a máxima prevenção
ou diminuição da miséria humana”.
Ora, se em seguimentos diversos da trajetória humana se mudou o
princípio regulativo, não é de se estranhar que haja mudanças de enfoque no
que se refere à responsabilidade civil. Em termos de “obrigação de reparar o
dano”, essa preocupação com a existência humana motivou a tendência
doutrinária global de reconhecer de forma mais solidária que a vítima tem
25
direito de ser indenizada, ao contrário da tendência tradicional: a tudo atribuir a
“caso fortuito” ou “força maior”.
Por isso mesmo, hoje, a chamada linha civil-constitucional é
proeminente na interpretação dos Códigos Civis ocidentais. O direito civil-
constitucional destaca o fato de que não pode haver norma jurídica que não
seja interpretada à luz da Constituição. Dois princípios, em geral, são
destacados pela literatura jurídica, como nucleares para a sustentação de
qualquer interpretação da responsabilidade civil, quais sejam, os princípios da
dignidade da pessoa humana e o da solidariedade social.
Antes de ser jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana é um
princípio moral com pretensões à universalidade. Não por acaso, a maioria dos
doutrinadores atribuem a Kant ter sido o primeiro a fundamentar racionalmente
esta ideia. Entende-se que a pessoa tem dignidade não porque esta lhe é
concedida pela lei. Trata-se de um valor ético. Por isso mesmo, ao comentar
este princípio, a professora Hironaka diz: “não é a lei quem diz, é a razão”
(HIRONAKA, 2005, p. 169). Daí este princípio ter se tornado uma espécie de
núcleo central dos ordenamentos jurídicos das sociedades liberais9. Na
Fundamentação da Metafísica dos Costumes Kant é contundente: as coisas
têm preço, o homem tem dignidade, não tem preço. A terceira formulação do
imperativo categórico, a nosso ver a melhor, diz que não se deve tomar o
homem como instrumento da ação ou da vontade de quem quer que seja.
Poderíamos, sem medo de cometer impropriedades, “atualizar” o imperativo
kantiano com a simples formulação: “não instrumentalizes ninguém!”. Em
termos de direitos humanos isso impede que o indivíduo humano esteja
vulnerável às arbitrariedades do poder. Daí o primeiro parágrafo do preâmbulo
à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) dizer o seguinte: “(...) o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana
e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz no mundo, (...)”. Tal reconhecimento se estende à Constituição
9 Usamos, aqui, o termo “sociedade liberal”, no sentido de Habermas, que emprega a
expressão pra se referir a um Estado que se reconhece como constituído por uma sociedade pluralista e que é regida por uma Constituição democrática.
26
Brasileira de 1988, que afirma como um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil, “a dignidade da pessoa humana” (CF, art 1º, III).
A solidariedade social, por sua vez, aparece como um dos “objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil”, qual seja, “construir uma
sociedade livre, justa e solidária” (CF, art. 3º, I).
Busca-se, pois, a solidariedade social como um fundamento ético-
jurídico constitucional. Na verdade, sustentamos que a solidariedade social é
uma conseqüência necessária da ideia de dignidade humana. Desde os
filósofos gregos a investigação racional sobre o indivíduo humano destaca o
caráter social e político da natureza humana. Além disso, o direito só existe em
contextos sociais, pois a norma jurídica ajuda a organizar a convivência
humana. Por isso mesmo, não faz sentido compreender a dignidade humana
de uma forma individualista. A pretensão universalista do princípio da dignidade
humana é suficiente para desmentir isso.
Além disso, a solidariedade social se impõe como norma. Não é sinônimo
de fraternidade entre os homens. Ora, fraternidade não se obriga.
Solidariedade implica o respeito a toda comunidade humana. É o
reconhecimento de que o outro e eu, somos substancialmente iguais e não
apenas formalmente iguais. No cenário solidarista, a propriedade e o contrato,
por exemplo, desempenham funções sociais. Não se trata, meramente, de
solidariedade como algo voluntarista. Trata-se da aplicação da solidariedade
social como exigência normativa.
Além disso, a solidariedade social se impõe, dados os novos problemas
com que o direito contemporâneo se depara, principalmente os impulsionados
pelo avanço técnico-científico: a tecnologia nuclear, a biotecnologia e a
nanotecnologia, são bons exemplos disso. O avanço das técnicas científicas
trouxe muitos problemas novos e isso força o jurista a repensar a lógica da
responsabilização.
Essa é uma das razões pelas quais os direitos humanos, ditos de “terceira
geração”, são também chamados direitos de solidariedade. O destinatário
destes direitos não seria este ou aquele indivíduo, mas o gênero humano como
27
um todo. A solidariedade, como direito humano, quer implicar que o progresso
não deve se dar em detrimento dos homens e seu habitat.
O projeto de uma sociedade livre, justa e solidária, por isso mesmo, rompe
com a tradição liberal clássica, pela qual a livre iniciativa, por si só, traz o
equilíbrio social como se fosse uma “mão invisível”. Essa é a lógica do
liberalismo clássico, qual seja, "laissez faire, laissez passer" ("deixai fazer,
deixai passar", ou seja, o mercado deve funcionar livremente, sem
interferência) que, em função da positivação do princípio da solidariedade
social, já não se aplica aqui. Solidariedade social, portanto, encerra
exigibilidade.
A responsabilidade sem culpa, no âmbito do direito civil, é um bom
exemplo no qual a solidariedade social aparece como princípio norteador do
reconhecimento e aplicação do direito da vítima. Neste caso, uma vez
constatado o dano, mesmo que não tenha havido negligência, imprudência ou
imperícia – numa palavra: culpa – entende-se que o dano precisa ser reparado,
pois não seria razoável deixar que seja suportado pela vítima. O ato pode ter
sido lícito (uma atividade econômica perfeitamente regulamentada, que atenda
aos padrões legais de segurança, por exemplo), mas, ainda assim, produziu
um dano (injusto). Não se trata de “retribuir” um ato injusto com a sua
respectiva sanção, mas de responsabilizar uma determinada “atividade” por
suas possíveis e previsíveis conseqüências. O que está em questão, no caso,
é a “natureza da atividade” e não a culpa de um autor. Por este raciocínio,
quem suportará o dano não será a vítima, mas aquele que gera, com sua
atividade, a “ocasião” ou a “oportunidade” do dano, que de fato, ocorreu.
Ressalte-se o seguinte: dependendo da atividade em questão e do seu
respectivo contexto social, os custos do dano podem ser repartidos entre os
membros de uma determinada coletividade através de diversos mecanismos,
como o aumento do preço do produto e dos serviços ou de um sistema de
seguridade social.
Sem dúvida, há um amplo espaço, nas sociedades industriais avançadas,
para o chamado “risco permitido”. Há atividades arriscadas e perigosas que,
dados os benefícios que trazem para a vida em sociedade, são admitidas pelo
28
ordenamento jurídico e consideradas lícitas. A presença do interesse social não
exclui a responsabilidade pelo dano causado por exercício de atividade
perigosa, sequer a mitiga, pois não elimina o custo social da mesma. Por isso
mesmo a responsabilidade objetiva é um caso paradigmático de aplicação do
princípio da solidariedade social, já que a assunção do risco lícito tornou-se
critério de imputação objetiva.
Partindo destes dois princípios como fundamentos da responsabilidade
civil, quais sejam, a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social,
comentamos, no que se segue, alguns desdobramentos da ideia de
responsabilidade, tais como apresentados pela doutrina civilista.
2.2. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA
A responsabilidade civil subjetiva funda-se no conceito de culpa.
Segundo Sérgio Cavalieri Filho, “o dever jurídico cuja violação enseja a
responsabilidade civil subjetiva é o dever de cuidado” (CAVALIERI FILHO,
2010, p. 35). O que caracterizaria, portanto, a culpa, segundo este doutrinador,
seria a falta de cautela, atenção ou diligência em uma determinada conduta
voluntária, que produz um evento danoso previsível10. A conduta culposa,
portanto, decorreria da inobservância de um dever genérico de cuidado, a
todos imposto. A previsão genérica deste dever de cuidado está no art. 186 do
Código Civil Brasileiro, que diz:
Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Na responsabilidade subjetiva, este elemento, a culpa (provada ou
presumida11), é indispensável para ensejar o dever de reparar o dano. Essa
10 A “falta de cuidado”, tecnicamente falando, pode ocorrer em três hipóteses: imprudência, negligência e imperícia. Segundo Giordani (2007), a imprudência é a falta de previsão que ao agente se impunha no que se refere às conseqüências danosas de um ato por ele praticado. A negligência, segundo o mesmo autor, refere-se às condutas omissivas (em casos em que há o dever de evitar o dano) e a imperícia, por sua vez, refere-se a falta de habilidade em atividade técnica. 11
As hipóteses de culpa presumida são taxativas, pois é a lei que faz presumir a culpa do agente e lhe impõe o ônus de provar o contrário. É importante estabelecer a diferença entre a
29
teoria pode ser chamada de teoria clássica da responsabilidade civil. Além da
culpa, a responsabilidade civil subjetiva exige a verificação dos seguintes
elementos: conduta, dano e nexo causal. Segundo José Acir Lessa Giordani
(GIORDANI, 2007, p. 15), a noção de culpa é intuitiva e teria se fortalecido nos
ordenamentos jurídicos em geral graças a elementos morais, sociológicos e
psicológicos. Do ponto de vista da moral social, normalmente não se aceita que
alguém seja repreendido sem que sua conduta tenha sido culposa. Além disso,
não é comum nos sentirmos responsáveis quando não nos consideramos
culpados por determinado evento danoso.
O Código Civil Brasileiro de 1916 estabelecia, em seu artigo 159, que o
dolo e a culpa seriam o fundamento da obrigação de indenizar. Filiou-se, por
isso mesmo, o antigo código, à teoria da responsabilidade subjetiva, inspirado
no Código de Napoleão12. Pela teoria subjetiva a obrigação de indenizar surge
devido à prática de um ato ilícito13. Isso implica dizer que nosso antigo Código
Civil sustentava-se principalmente na ideia geral de culpa (isto é, culpa em
sentido lato, que abrange o dolo e a culpa stricto sensu)14. Em outras palavras,
para que surgisse o dever de indenizar deveria ficar demonstrada a culpa de
alguém, no caso, o agente causador do dano.
Como exigência, portanto, para o pedido de indenização é preciso, do
ponto de vista da teoria subjetiva, a demonstração de: a) ação ou omissão; b)
culpa ou dolo do agente; c) relação de causalidade entre o dano e a conduta e
culpa presumida e a responsabilidade objetiva: culpa presumida continua sendo culpa, e por isso mesmo, se o agente demonstrar que não teve culpa do evento danoso, exclui-se sua responsabilização. Tal possibilidade não está presente na ideia de responsabilidade objetiva. Contudo, tanto a noção de culpa presumida como a de responsabilidade objetiva tem a finalidade de ampliar o acesso à justiça em matéria de responsabilidade civil. 12
O Código Napoleônico, em seu artigo 1.382, consolidou a ideia de culpa como pressuposto fundamental do dever de indenizar. Tornou-se uma referência paradigmática para os diplomas civis ocidentais. 13
Ato ilícito é aquele que se caracteriza pela transgressão de um dever jurídico imposto por lei. Trata-se de uma ação ou omissão voluntária que causa dano a outrem. Em geral, diz-se que a “ação” consiste num ato doloso ou culposo (stricto sensu) e a “omissão” consiste em negligência. 14 É importante destacar o seguinte: na responsabilidade civil, embora a conduta dolosa seja mais grave que a culposa, como ocorre no direito penal, o que de fato tem maior peso, em regra, é a gravidade do dano. Isso implica dizer que ainda que a conduta do agente seja dolosa, a sanção será proporcional ao dano causado, que pode ser menor se comparado a outro dano provocado por uma conduta culposa. Giordani dá o seguinte exemplo: “um atropelamento doloso que resulte em lesão leve ensejará uma indenização menor que um atropelamento por imprudência que provoque um traumatismo craniano ou uma lesão medular” (GIORDANI, 2007, p. 18).
30
d) dano. Essa tese, desde o direito romano, teve vários defensores. Dentre os
juristas de grande repercussão recente na doutrina, basta citar Rudolf von
Jhering (1990), que, na obra O momento da culpa no direito privado romano,
diz que não é o dano que obriga o ressarcimento, mas a culpa. Jhering fazia
uma curiosa analogia: não é a chama da vela que queima, mas o oxigênio. Por
este raciocínio, sem que haja culpa (o oxigênio da metáfora de Jhering) não
deve haver reparação.
2.3. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA
Os principais golpes sofridos pela teoria da culpabilidade surgem somente
no século XIX. Trata-se de algo relativamente recente se pensarmos na história
do direito como um todo15. A partir do século XIX, a responsabilidade por danos
causados por alguns tipos de acidentes passaram a ser aferidas
independentemente de prova de culpa. Costuma-se apontar a Revolução
Industrial e o progresso científico que daí se seguiu como estando entre os
principais fatores que ensejaram uma nova concepção de responsabilidade
civil16. Não é nosso propósito aqui, fazer uma revisão histórica da legislação
européia e sim debater as ideias subjacentes a esta discussão. Contudo, como
15
Contudo, é preciso dizer o seguinte: do ponto de vista histórico, alguns autores sustentam que no direito romano arcaico a responsabilidade civil era, na verdade, puramente objetiva. A culpa, como elemento integrante da responsabilidade, só teria surgido com a Lex Aquilia, cujo aparecimento se dá no século III a. C. A Lei Aquília foi o primeiro diploma civil a conter resquícios da noção de culpa e de um princípio geral de reparação, daí se dizer que a atual responsabilidade civil extracontratual é aquiliana. Trata-se de um marco para o Direito Civil, pois além da idéia de culpa, teria consolidado a substituição da lógica retribucionista do Talião (isto é, a lógica do dano pelo dano) pela pena pecuniária (esse processo já teria sido iniciado pela Lex Poetelia Papira em 326 a. C.). Em outras palavras, a responsabilidade civil deixou de ter como objeto o corpo do devedor e passou a incidir sobre seu patrimônio. Contudo, os historiadores do Direito não são unânimes quanto a Lex Aquilia ser, de fato, o documento que deu origem a teoria subjetiva da responsabilidade civil. De todo modo, mesmo admitindo-se uma remota origem para a responsabilidade objetiva, anterior à teoria subjetiva, o certo é que esta ideia ficou afastada por muito tempo, em desuso até à modernidade, quando ocorreu o seu ressurgimento e efetiva positivação.
16Com a Revolução Industrial, iniciada em meados do século XVIII na Inglaterra, ocorreu a passagem da manufatura para a indústria mecânica. O maquinismo constituiu-se numa ameaça à integridade física do operário. Ocorreram milhares de acidentes de trabalho. Tal situação subsistiu por muitos anos, até que se constatou a dificuldade da vítima de comprovar a “culpa” por este tipo de infortúnio.
31
exemplos objetivos do aparecimento da responsabilidade sem culpa, queremos
citar a lei prussiana sobre acidentes ferroviários, de 1838, e a lei de acidentes
de trabalho do governo de Bismarck, de 1884, que responsabilizava o
empreendedor pelos riscos inerentes ao exercício de sua atividade. Na caso da
França, houve, em 1896, o famoso caso L’Arrêt Teffaine, em que a Corte de
Cassação determinou que um empreendedor reparasse os danos sofridos pelo
empregado, por ocasião da explosão de um rebocador a vapor. Tal decisão
tornou-se, na época, um precedente revolucionário no direito francês, pois
introduziu na jurisprudência daquele país a noção de risco. Dois anos depois,
em 1898, foi promulgada a lei francesa sobre acidentes de trabalho, que previa
a responsabilidade sem culpa do empregador, fundada no risco profissional
(que comentaremos adiante).
Dentre os doutrinadores franceses da responsabilidade objetiva,
destacaram-se Raymond Saleilles que publicou o texto: Le accidents du travail
et la responsabilité civile, no qual sustenta que exigir da vítima de acidente de
trabalho que prove a culpa, implica não ressarcir o dano. Na seguinte
passagem da obra de Saleilles, lemos o que seria um dos primeiros esboços
do que chamamos hoje de teoria do risco:
Qual seria o critério da imputação do risco? A prática exige que aquele que obtém proveito de iniciativa lhe suporte os encargos, pelo menos a título de causa material, uma vez que essa iniciativa constitui um fato que, em si e por si, encerra perigos potenciais contra os quais os terceiros não dispõem de defesa eficaz. É um balanceamento a fazer. A justiça quer que se faça inclinar o prato da responsabilidade para o lado do iniciador do risco. (SALEILLES, 1897, apud DIAS, 2006, p. 77).
Louis Josserand, sob influência de Saleilles, sustentava um princípio geral
de responsabilidade pelo “fato das coisas”, que ele entendia ser sinônimo de
“sistema objetivo” ou, ainda, teoria do “risco criado”. Para Josserand, a
responsabilidade de reparação deve estar com quem tem a guarda da coisa ou
dela se beneficia. Ele considerava o pensamento de Saleilles inovador, mas
insuficiente, porque Saleilles teria posto a ênfase das implicações de suas
ideias nos danos provocados pela grande indústria. Josserand, portanto,
dedicou-se ao alargamento da teoria proposta por Saleilles. Mais
especificamente no trabalho intitulado Da responsabilidade pelo fato das coisas
inanimadas, de 1897, Josserand sustenta que se houver o nexo causal (isto é,
32
o dano foi causado por uma força posta em movimento pelo demandado),
mesmo que não haja culpa e o dano tenha sido causado por caso fortuito17, o
demandado deve indenizar. Mas a ênfase de Josserand era clara: isso se
refere tanto à grande indústria quanto a qualquer pessoa cujo objeto pelo qual
é responsável causar dano a outrem.
No Brasil, a responsabilidade sem prova de culpa aparece, pela primeira
vez, na regulamentação de transporte ferroviário. O Decreto 2.681/1912 abriu
uma exceção ao princípio da culpa e fundou-se na ideia do risco criado pelo
transportador ferroviário. Contudo, este decreto falava em “culpa presumida” e
não em responsabilidade objetiva, no sentido em que os juristas hoje usam o
termo. O uso de analogia, em jurisprudência, ampliou o uso desta norma às
demais formas de transporte coletivo. Em 1919 aparece a primeira
regulamentação referente a acidentes de trabalho no Brasil, que fundou-se na
teoria do risco profissional. A partir daí, surge, na legislação especializada,
diversos casos de responsabilização independente de prova de culpa, dentre
os quais citamos alguns exemplos: atividades de mineração (DL. 227/67),
atividades nucleares (L. 6453/77), atividades que causam danos ao meio-
ambiente (L. 6938/81) e o caso paradigmático dos direitos do consumidor
(CDC, arts. 12 e 14). Além disso, cabe lembrar que a Constituição Federal
atribui responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas de direito público, bem
como às pessoa jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público (Art.
37, § 6º). Destaque-se, também, que mesmo o antigo Código Civil (1916)
previa a responsabilidade objetiva do Estado (Art. 15), além de outros casos
especiais em que a prova da culpa não seria necessária, tais como a
responsabilidade por coisas lançadas ou caídas ou a responsabilidade pelo
fato dos animais. Já havia, portanto, a adoção de certos tipos de
responsabilidade sem culpa, ainda que pontuados e devidamente delimitados
pelo texto da lei.
17 Josserand considera, no contexto da teoria do risco criado, o tal “caso fortuito”, como evento danoso provocado por atividade lícita.
33
2.3.1. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA GENÉRICA
De todo modo, o sistema brasileiro anterior ao Código Civil de 2002 adotava
a regra geral baseada na culpa, com a ressalva de alguns casos especiais que
independiam de culpa provada, desde que expressamente previstos em lei. Em
outras palavras, prevalecia a ideia de que só haveria responsabilidade objetiva
em situações previstas pelo legislador, especialmente nos casos da legislação
especializada. Esse é o caso, por exemplo, já citado, dos transportes
ferroviários ou dos acidentes de trabalho. Contudo, em 2002, o novo Código
Civil estabeleceu, ao lado da culpabilidade (Art. 927, caput) um sistema geral
que, segundo Giselda Hironaka, alterou o caráter da responsabilidade objetiva.
Tal sistema é fundado não na culpa, mas no chamado “risco da atividade”,
previsto no parágrafo único do artigo 927, que diz:
Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem
Este parágrafo, claramente, elenca duas hipóteses de responsabilidade
sem culpa: os especificados em lei (mas não é aqui que está a novidade, já
que isso já era senso comum, desde o século XIX, na Europa, e desde as
primeiras legislações especializadas, no Brasil) e os casos em que “a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco
para os direitos de outrem”. A novidade está justamente nesta segunda
hipótese já que, segundo a doutrina majoritária, com a qual concordamos, tem-
se, nesta segunda parte do parágrafo único do art. 927, uma cláusula geral de
responsabilidade objetiva. Não se trata do estabelecimento de casos
excepcionais de responsabilidade objetiva: trata-se do estabelecimento de um
tipo de generalização, isto é, de um preceito legal geral. O aspecto inovador
desta cláusula geral, ao contrário do que sustentam os defensores da teoria da
culpabilidade, está no fato de permitir ao aplicador da norma estender tal direito
(de reparação do dano sem a necessidade de que se demonstre a culpa) a
determinados casos que não foram expressamente previstos na legislação
especializada. Por isso mesmo, José Acir Lessa Giordani (GIORDANI, 2007) e
34
Wendell Lopes de Souza (SOUZA, 2010), por exemplo, designam tal cláusula
geral de “responsabilidade civil objetiva genérica”.
Posto isso, é possível dizer o seguinte: até a entrada em vigor do Código
Civil de 2002, eram duas as possibilidades de responsabilidade civil. Ou se
demonstrava a culpa do agente para que emergisse o seu dever de indenizar a
vítima (responsabilidade subjetiva); ou o caso concreto se subsumia a um
dispositivo legal (Por exemplo: Código de Defesa do Consumidor, Lei de
Acidentes do Trabalho, etc.) que impunha o dever de indenizar, sem
necessidade de demonstração de culpa do agente (responsabilidade objetiva).
O Código Civil de 2002, contudo, estabeleceu uma nova possibilidade de
responsabilização objetiva: pode-se entender que a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implica, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem, sem que, além disso, precise-se demonstrar a culpa do
agente e sem que seja necessário subsumir o caso em questão a uma lei que
explicitamente considere a referida atividade como sendo “de risco”. Esse
argumento pode ser usado tanto pela defesa da vítima como pela
fundamentação de uma decisão, pois o magistrado pode entender que a
atividade exercida pelo autor do dano oferece, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem.
Desse modo, o novo Diploma Civil brasileiro, por ocasião de sua vigência,
admite a subclassificação da responsabilidade civil objetiva em “tipificada ou
fechada” ou “genérica ou aberta”. Na primeira, como o próprio nome sugere, o
fundamento da responsabilidade civil objetiva deve ser encontrado em algum
dispositivo legal, que preveja exatamente aquela situação vivida pela vítima. A
genérica ou aberta se aplica, justamente, na ausência de legislação
especializada que preveja o caso específico. O fato gerador do dever
indenizatório é, nesse caso, a atividade arriscada desenvolvida pelo causador
do dano, com base na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código
Civil de 2002. A responsabilização civil em virtude da atividade de risco é,
repetimos, mais uma hipótese de responsabilidade objetiva.
35
2.4. UM SISTEMA MISTO
Na verdade, em se tratando das relações entre indivíduos, parece razoável
afirmar que a responsabilidade subjetiva ainda se apresenta predominante,
como sustentam alguns doutrinadores. A responsabilidade objetiva, por sua
vez, desde seus primeiros aparecimentos no direito positivo, liga-se às relações
onde há intrínseca desigualdade entre as partes. Os exemplos clássicos são:
as relações de consumo, os acidentes de trabalho e as relações com o Estado.
Os dois sistemas de responsabilização, o subjetivo e o objetivo, tem, sem
dúvida, raízes filosóficas diferenciadas. O raciocínio que os legitima tem
fundamento em conceitos de justiça distintos: a responsabilização por culpa
corresponde à justiça comutativa e a responsabilização independente de culpa
corresponde à justiça distributiva. Tal distinção remonta a Aristóteles. A justiça
comutativa refere-se aos desiguais por natureza, mas iguais perante a lei.
Trata-se da igualdade entre aquilo que a lei considera equivalente
(mercadoria/preço; dano/indenização). Por sua vez, a justiça distributiva,
também chamada geométrica, é a repartição de direitos segundo critérios
diferenciados: considera-se os desiguais, desigualmente, na medida da sua
desigualdade. É um lugar comum, contudo, entre os juristas, a opinião de que
os dois conceitos de justiça não se excluem. De fato, o ordenamento jurídico
brasileiro adotou um sistema misto, em que a responsabilidade subjetiva e a
objetiva têm, ambas, lugar importante.
2.5. ATIVIDADE DE RISCO
Afinal, o que é risco? Ou melhor, talvez seja adequado delimitar a nossa
questão, o que é risco para o direito e, em especial, para o direito civil?
Essa é uma questão tortuosa para qualquer pesquisador da teoria e prática
jurídica. Isso porque esse investigador terá que admitir que não há um conceito
técnico-legal de “risco” e nem há, na doutrina e na jurisprudência, uma
36
indicação mais ou menos predominante de um entendimento de reconhecida
envergadura conceitual. Na verdade, o conceito de risco (enquanto conceito
passível de investigação acadêmica) é originário da economia, da política e das
ciências matemáticas e naturais, que foram as primeiras a se ocupar com ele
com rigor metodológico e, por isso mesmo, não é de se estranhar que, até
hoje, o espaço ocupado por estas ciências na discussão seja proeminente. A
geógrafa Yvette Veyret, considerada uma das maiores autoridades mundiais
sobre riscos, diz, em seu livro Os riscos, que “os progressos científicos dos
séculos passados produziram a crença na possibilidade de se atingir a
segurança total, com o desaparecimento da incerteza e do risco.” (VEYRET,
2007, p. 14). Sabemos, contudo, que essa crença, hoje, já não se sustenta
mais. Pelo contrário, a ciência e a técnica produzem muitos dos piores riscos
que acometem o homem contemporâneo. “Risco zero” não existe, é preciso
gerenciar o risco. Na definição de Veyret, risco é a “percepção de um perigo
possível, mais ou menos previsível por um grupo social ou por um indivíduo
que tenha sido exposto a ele” (VEYRET, 2007, p. 24).
Ainda sobre a definição de risco, queremos destacar o posicionamento de
Niklas Luhmann que, em seu livro Sociologia do risco, faz questão de
diferençar risco de perigo. Segundo Luhmann, tanto o perigo quanto o risco
estão ligados à idéia de incerteza, mas de diferentes maneiras:
Pode-se considerar que o possível dano é uma conseqüência da decisão, e então falamos de risco e, mais precisamente, do risco da decisão. Ou, antes, se julga que o dano é provocado externamente, ou seja, se lhe atribui ao meio ambiente; e, nesse caso, falamos de perigo. (LUHMANN, 1992, p. 37)
Riscos ligam-se, portanto, admitida a exposição de Luhmann, aos
contextos de decisões humanas deliberadas. Daí se falar em assunção dos
riscos. O perigo, por sua vez, embora possa admitir previsibilidade, não é
querido: adentra-se involuntariamente em situações de perigo.
Esclarecida estas diferenciações, retornemos ao problema da crença
cientificista: o sociólogo Ulrich Beck sustenta que o monopólio de racionalidade
das ciências se rompeu na chamada pós-modernidade. Brincando com uma
37
antiga formulação kantiana18, Beck diz que “sem racionalidade social, a
racionalidade científica está vazia; sem racionalidade científica, a racionalidade
social é cega (BECK, 1998, p. 36). Riscos e perigos envolvem questões sociais
e culturais, por isso, este assunto não deve, segundo Beck, ser tratado apenas
em sua dimensão química, biológica ou técnica de uma forma geral. Discutir
estas questões só em termos da tecnociência seria uma perda de pensamento
social inaceitável. Diz Beck:
O surpreendente nisso é o seguinte: os danos ao meio ambiente e a destruição da natureza causada pela indústria, com seus diversos efeitos sobre a saúde e a convivência dos seres humanos (que só surgem em sociedades muito desenvolvidas), se caracteriza por uma perda de pensamento social. A esta perda se acrescenta o grotesco: tal ausência não chama a atenção de ninguém, nem sequer dos sociólogos. (BECK, 1998, p. 31)
É compreensível o desabafo do eminente sociólogo. Contudo, que a
“perda de pensamento social” chame a atenção de poucos, é verdade, mas
que não chame a atenção “de ninguém” é um exagero. O próprio Beck é um
sociólogo que teve sua atenção, com muito mérito, voltada a este problema.
Além disso, no direito, a preocupação com este gênero de problema, como
vimos, remonta ao século XIX. Tal “pensamento social” ou racionalidade social
é fundamental para a compreensão dos perigos e riscos conseqüentes do que
Beck chama de modernização avançada. As ciências matemáticas e naturais
têm seus limites: em geral, suas pesquisas e contribuições sustentam-se em
estatísticas e probabilidades. Só que quando estamos diante de questões
como: que tipo de risco é aceitável e que tipo não é?, não dá para esperar que
a solução seja dada por algum especialista em teoria dos jogos19. Em que
circunstâncias podemos assumir a possibilidade de provocar um dano a
alguém? Probabilidades e estatísticas, em si mesmas, como diz Beck, são
vazias. As afirmações probabilísticas sequer podem ser refutadas por
ocorrências reais. Por isso mesmo, Beck diz que devemos adotar uma posição
axiológica para poder falar com sentido dos riscos. Possibilidades matemáticas 18
Em elegante e inesquecível passagem da Crítica da razão pura, Kant diz que “Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas.” (KANT, 1996, p. 92) 19
A teoria dos jogos é um ramo da matemática com aplicações no estudo das tomadas de decisões, desenvolvimento de estratégias e situações de conflito. A teoria dos jogos é muito usada para se estudar a lógica das interações humanas nos mais diversos âmbitos, a exemplo da economia e da política. A grande referência clássica da teoria dos jogos é a publicação, de 1944, intitulada The theory of games and economic behavior, de John von Neumann e Oskar Morgenster.
38
e interesse social devem caminhar juntos. Risco é, na visão de Beck, um
assunto que não se esgota na lógica experimental, pois tem a ver com valores,
portanto, com ética. Risco é um conceito heterodeterminado: não há privilégio
das ciências ditas “duras”, há contribuição. As expectativas sociais e horizontes
axiológicos são indissociáveis da percepção dos riscos.
Contudo, conforme já comentamos, a ideia de responsabilizar
objetivamente não surge vinculada à ideia de risco. A responsabilidade dos
pais pelos atos culposos dos filhos, por exemplo, prevista no art. 932, I, do CC
também é independente de culpa. Por isso mesmo, os defensores das
correntes subjetivistas, procuram mitigar a suposta “novidade” teórica da
responsabilidade objetiva. Muitos autores afirmam que há sempre uma ideia de
culpa subjacente. O argumento básico das teorias subjetivistas é o seguinte: se
a alguém é imputado o dever de reparar o dano é porque o dano poderia ter
sido evitado. Alguns autores até sustentam isso à sua revelia, por exemplo,
Sérgio Cavalieri Filho, ao considerar a “violação do dever de segurança” (já que
quem “viola” um dever jurídico deve responder pelo seu ato contrário ao direito)
como o fundamento da responsabilidade objetiva acaba tratando a teoria do
risco nos mesmos moldes da teoria da culpa.
Mas afinal, qual o sentido e o alcance das expressões: “atividade
normalmente desenvolvida”, “por sua natureza” e “risco”? Temos, aqui, um
sério problema hermenêutico. Até porque toda e qualquer atividade pode
implicar “risco” para os direitos de outrem: dirigir um carro e espirrar, por
exemplo, oferecem sérios riscos aos direitos de outrem.
A idéia de “risco da atividade” é usada amplamente, por determinados
ramos especializados do direito, como é o caso já destacado do direito do
consumidor. Neste caso, entende-se que basta que haja vício no produto
disponibilizado no mercado para que haja a necessidade de reparação. A ideia
básica é a de que o empreendedor, ao se dedicar a uma determinada atividade
(lícita) deve arcar com os riscos desta atividade. Isso, hoje, é um lugar-comum
no debate jurídico. O mesmo raciocínio se aplica às atividades que,
potencialmente, danifiquem o meio-ambiente. Uma vez provado o nexo causal,
a demonstração da culpa, sem dúvida, é um elemento agravante, mas
39
totalmente dispensável para a responsabilização do agente causador. Grosso
modo podemos dizer que se a atividade foi realizada no interesse e sob o
controle do agente X, o dano Y que daí diretamente decorreu é de
responsabilidade de X, mesmo que tal conseqüência não tenha sido desejada
por X e que não tenha sido provada sua negligência, imprudência ou imperícia.
Este é o cerne da responsabilidade objetiva.
Para a doutrina majoritária, contudo, como o direito deve interpretar o que
seja “atividade de risco”? Há várias teorias. A doutrina consagrou algumas
modalidades de risco, quais sejam:
1. O risco-proveito: pela teoria do risco-proveito, o responsável é aquele que
tira proveito da atividade danosa, com base no princípio ubi emolumentum, ibi
ônus (onde está o ganho, aí reside o encargo)20;
2. O risco-profissional: a teoria do risco profissional sustenta que o dever de
indenizar ocorre sempre que o fato prejudicial é uma decorrência da atividade
ou profissão do lesado (aqui está abarcada a maioria dos casos de acidente de
trabalho);
3. O risco excepcional: para os defensores da teoria do risco excepcional, a
reparação é devida sempre que o dano é conseqüência de um risco
excepcional, que, por definição, escapa a atividade ou trabalho normalmente
exercido pela vítima. Esse seria o caso, por exemplo, da exploração de energia
nuclear;
4. Risco criado: é a tese Caio Mário da Silva Pereira, que sustenta que
“aquele que, em razão de sua atividade ou profissão, cria um perigo, está
sujeito à reparação do dano que causar” (PEREIRA, 1992, p. 24). Na teoria do
risco criado não se indaga a respeito dos proveitos ou vantagens do agente.
Não se subordina, ipso facto, o dever de reparar ao pressuposto da vantagem;
20
Carlos Roberto Gonçalves explica com maestria esta ideia ao dizer que “a responsabilidade objetiva funda-se num princípio de equidade, existente desde o direito romano: aquele que lucra com uma situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes (ubi emolumentum, ibi onus; ubi comoda, ibi incomoda). Quem aufere os cômodos (ou lucros) deve suportar os incômodos (ou riscos)” (GONÇALVES, 2007, p. 276).
40
5. Risco integral: essa teoria é uma modalidade extremada da doutrina do
risco e sustenta o dever de indenizar até nos casos de inexistência do nexo
causal. O direito brasileiro a adotou em casos excepcionais. Este é o caso, por
exemplo, do seguro obrigatório, pago pelos condutores de veículos
anualmente. É como se o condutor arcasse apenas com a “probabilidade do
dano ocorrer”, ainda que, de fato, nenhum dano seja causado por seu veículo
especificamente.
Wendel Lopes Barbosa de Souza elenca, ao lado destas teorias, a teoria
do risco-administrativo, imposta ao Estado e às pessoas jurídicas de direito
privado prestadoras de serviço público delegado, que têm “o dever
indenizatório unicamente em virtude do perigo que a atividade administrativa
impõe aos direitos alheios” (SOUZA, 2010, p. 50).
Além destas teorias tradicionalmente classificadas, há a o posicionamento
de Geneviève Schamps em sua obra La mise en danger: un concept fondateur
d’un príncipe general de responsabilité (analyse de droit comparé), para quem
o critério geral de imputação objetiva requer a noção de mise en danger
(exposição ao perigo). A mise en danger refere-se ao exercício de uma
atividade perigosa para terceiros em razão de sua natureza ou da natureza dos
meios adotados para o seu exercício. Trata-se de um critério essencialmente
objetivo e somente quando ocorrer o dano é que haverá o dever de indenizar.
Aplica-se o critério da mise en danger em atividades toleradas em função de
sua utilidade social. Adiante, dedicaremos o devido espaço para a discussão
deste critério. Cabe aqui, antes disso, fazer mais algumas observações sobre
as noções de “risco proveito” e “risco criado”, dada a repercussão destas ideias
na doutrina pátria.
Maria Helena Diniz, por exemplo, é uma defensora da teoria do risco-
proveito (DINIZ, 2003). Já Caio Mário da Silva Pereira (PEREIRA, 1992),
Carlos Roberto Gonçalves (GONÇALVES, 2007) e José Acir Lessa Giordani
(GIORDANI, 2007), por exemplo, defendem a tese do risco-criado,
acompanhando o doutrinador francês Josserand, para quem “o risco terá
incidência em todas as atividades desenvolvidas, ainda que se trate de mero
lazer ou recreação” (JOSSERAND, 1897, apud SOUZA, 2010, p. 49). Isso
41
porque a ideia de “proveito” normalmente é associada ao ganho econômico,
mas o exemplo da atividade de lazer arriscada, segundo a melhor doutrina,
também está subsumida na ideia de responsabilização objetiva. Além disso,
segundo Carlos Roberto Gonçalves, adotar a ideia de “proveito” implica um
ônus à vítima: provar que o causador do dano lucrou com a atividade em
questão.
Contudo, é importante dizer o seguinte: na verdade, se corretamente
analisada, a teoria do “risco-proveito” é um subconjunto da teoria do “risco-
criado”. Não se tratam de teorias excludentes. Quem tira “proveito” precisou
“criar” o risco para poder ser responsabilizado. Não há incompatibilidade entre
as ideias, são, ao contrário, ideias complementares, a despeito do fato de a
maioria esmagadora dos doutrinadores afirmar que a teoria adotada pelo
parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002 foi a do risco-criado, que
prescinde de qualquer proveito para o que agente causador do dano suporte a
indenização.
Contudo, mesmo sendo reiteradas as afirmações de que não é necessário
que a atividade se caracterize pelo acúmulo de riquezas e, portanto, implique
proveito, os exemplos dados pela maioria dos doutrinadores no que se refere a
aplicação da cláusula geral de responsabilidade objetiva fundada na teoria do
risco, são de atividades econômicas.
A própria interpretação do sentido de “atividade” no parágrafo único do art.
927 do Código Civil é entendida, por muitos doutrinadores, como, por exemplo,
Cavalieri Filho (um defensor da teoria objetiva do “risco-criado” e não do “risco-
proveito”) como atividade econômica. Segundo este doutrinador, “atividade”,
nesse caso, deve ser entendida como “conduta reiterada, habitualmente
exercida, organizada de forma profissional ou empresarial para fins
econômicos” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 173 – o destaque é meu). Ora, se
já ficou estabelecido que a questão nuclear não é o “proveito”, por que, então,
o termo “atividade” do parágrafo único do artigo 927 de Código Civil Brasileiro
deve ser lido com sentido subjacente ligado a “fins econômicos”? Não parece
contradizer-se o famoso doutrinador?
42
Na verdade, na doutrina como um todo, os casos de atividades que não
visam a acumulação de riquezas são citados em menor número, sendo
proeminentes os casos citados envolvendo atividades econômicas. A teoria do
risco-criado, repetimos, claro está, não exclui a do risco-proveito. Ela, contudo,
é mais ampla, pois abrange casos que não estão ligados ao proveito
econômico, como é o caso, já mencionado, das atividades de lazer ariscado.
Também segundo Alvino Lima, foi a teoria do “risco criado” a adotada pelo
sistema brasileiro de responsabilidade extracontratual objetiva. O foco estaria
no risco das novas atividades tecnológicas humanas, em relação as quais a
teoria da culpa não poderia resolver muitos casos concretos de danos. A
insegurança e impotência da vítima, cada vez mais evidente e alarmante, não
poderia se sustentar, legitimamente, com o único propósito de alimentar a
cobiça humana. Por isso mesmo, a teoria do risco tenta pôr a vítima em
igualdade de condições com as poderosas empresas, sustentando-se,
portanto, em princípios de ordem moral e de equidade, assunto que merecerá
maior destaque nos capítulos seguintes.
Que “risco”, afinal, está implicado, “por natureza”, nas “atividades
normalmente desenvolvidas” pelo autor do dano?
Hironaka destaca o fato de que nas sociedades industriais avançadas, os
eventos danosos, com freqüência, não são meramente fatalidades
imprevisíveis. Não são eventos excepcionais ou extraordinários. Na verdade,
muitos desses eventos são estatisticamente calculáveis. Grandes corporações
são capazes de prever, pelos dados estatísticos, quantos acidentes e até
quantos óbitos devem, provavelmente, acontecer, por exemplo, no próximo
semestre (ainda que todas as normas de segurança sejam rigorosamente
adotadas). Isso, na verdade, já faz parte da rotina de planejamento dos
executivos de grandes corporações, que, por sua vez, costumam prever o
quantum indenizatório que a empresa deverá arcar em um determinado
período de atividade. Pela lógica da culpa-sanção, tais danos não
necessariamente deveriam ser ressarcidos, uma vez que “inevitáveis”. Este é
um bom exemplo do porquê da necessidade de se adotar esquemas de
responsabilização objetiva para sociedades industriais avançadas, em que o
43
progresso tecnológico é condição sine qua non da geração de riqueza e
produção de bens.
Sem dúvida, a noção geral, outrora tida como auto-evidente, de que a
responsabilidade civil só pode ser invocada como sanção por uma falta
cometida é insuficiente para dar conta da realidade das sociedades de
industrialização avançada. Alguns autores, como Maria Celina Bodin de
Moraes, chegam a falar em crise da responsabilidade fundada exclusivamente
na culpa, embora, segundo pensamos, isso seja um exagero. Contudo, é fato
que não é correto dizer mais, como pretendem alguns doutrinadores (p. ex.,
VENOSA, 2003), que a responsabilidade objetiva seja apenas a exceção dos
casos de responsabilidade civil. Um dos maiores defensores da teoria do risco
no Brasil foi Alvino Lima, que, a respeito da responsabilização sem culpa afirma
que:
(...) a multiplicação indefinida das causas produtoras do dano, advindas das invenções criadoras de perigos que se avolumam, ameaçando a segurança de cada um de nós; a necessidade imperiosa de se proteger a vítima, assegurando-lhe a reparação do dano sofrido, em face da luta díspar entre as empresas poderosas e as vítimas desprovidas de recursos; as dificuldades, dia a dia maiores de se provar a causa dos acidentes produtores de danos e dela se deduzir a culpa, à vista dos fenômenos ainda não conhecidos na sua essência, como a eletricidade, a radioatividade e outros, não podiam deixar de influenciar no espírito e na consciência do jurista. Era imprescindível, pois, buscar um novo fundamento à responsabilidade extracontratual, que melhor resolvesse o grave problema da reparação dos danos, de modo a se evitarem injustiças que a consciência jurídica e humana repudiavam.” (LIMA, 1999, p. 114)
Alvino Lima, portanto, com propriedade, observa que o avanço tecnológico
ampliou exponencialmente as situações de risco ligadas às atividades
econômicas e, ipso facto, trouxe sérios problemas de segurança. Esse quadro
mobilizou seriamente o pensamento jurídico no sentido de se reconsiderar as
teorias da justiça. Por exemplo, a análise apenas empírico-psicológica perdeu
força no debate sobre a responsabilidade objetiva.
Contudo, o pensamento jurídico ainda está apenas tateando no que se
refere à busca de um critério genérico de responsabilidade objetiva. A nosso
ver, uma indicação que pelo menos oferece material interessante para a
reflexão é a apontada por Hironaka com base nos trabalhos de Genéviéve
44
Schamps, isto é, a idéia de “mise en danger”, que seria a “ação de pôr em
perigo ou em risco”21. A “mise en danger” teve grande influência no que
Hironaka chama de “responsabilidade pressuposta” (não culpa pressuposta,
mas responsabilidade pressuposta). Tal categoria de responsabilidade
destaca-se pela presença de “risco caracterizado”, isto é, pela possibilidade de
se realizar um dano de “grave intensidade” ligado à natureza da atividade ou, o
que não é a mesma coisa, de “grande probabilidade” de ocorrências. Assim,
podemos dizer que uma atividade que possui uma probabilidade elevada de
risco de ocorrência danosa é uma atividade especificamente perigosa, mesmo
que sejam empregadas as diligências razoáveis. Os elevados índices de
ocorrências danosas de uma determinada atividade seriam suficientes para
denunciar seu grau de periculosidade. Por outro lado, mesmo que a incidência
não seja de grandes proporções, a mera possibilidade, ainda que mínima, de
ocorrência de um dano grave, provocado pela atividade em questão, também é
risco caracterizado. Assim, o conceito de “mise en danger” dá importância,
também, além da probabilidade, à intensidade da ocorrência eventual. Isso
porque, o dano potencial, ainda que improvável, caso ocorra, pode ser de
grave intensidade. Podemos dizer que a queda de um avião é improvável, mas
ao afirmar isso sabemos que pode ocorrer. Por isso mesmo, nem sempre o
critério quantitativo deve ser determinante no entendimento dos casos de
responsabilização objetiva. Afinal, o que é pior: muitos prejuízos de pouca
gravidade ou um só evento danoso, mas de muita gravidade?
2.6. RESPONSABILIDADE E TEORIAS DA JUSTIÇA
As teorias da justiça de maior proeminência na contemporaneidade,
direta ou indiretamente, estão ligadas ao pensamento liberal. Por isso,
21
A análise de Shamps, segundo Hironaka, baseou-se na legislação italiana, mais especificamente no art. 2.050 do Código Civil italiano, que diz: Chiunque cagiona danno ad altri nello svolgimento di um’attività pericolosa, per sua natura o per la natura dei mezzi adoperati, e tenuto al risarcimento, se non prova di avere adottato tutte le misure idonee a evitare il danno. Assim, a exposição ao risco ou perigo (mise en danger), consiste no exercício de uma atividade (lícita) arriscada ou perigosa para outrem, em razão de sua natureza ou pela natureza dos meios adotados.
45
queremos, aqui, falar sobre a influência das ideias liberais na codificação civil.
É muito comum encontrarmos na literatura jurídica a expressão: “modelo
individualista-liberal” para se referir à tese subjetivista da culpa. A ideia que
muitos doutrinadores passam é a de que há um pensamento individualista
liberal subjacente à tese da culpa, que é preciso substituir por uma tese não-
liberal: a da solidariedade social. De nossa parte, preferimos enquadrar essa
tese (individualista ou subjetivista) no cerne do liberalismo clássico, não,
contudo, no pensamento dos principais defensores contemporâneos do
liberalismo político. Isso porque o suposto contraponto da tese subjetivista, qual
seja, o modelo solidarista, fundado na atenção e no cuidado para com o
lesado, também é liberal. O liberalismo não é uma coisa ou outra. Há muitas
versões de liberalismo político e a tese solidarista é perfeitamente compatível
com o “princípio da diferença” de Rawls ou com a defesa da “moralidade
política” empreendida por Dworkin em “A virtude soberana”. Sublinhe-se o
seguinte: tanto Rawls como Dworkin são liberais confessos.
O Segundo Princípio da Justiça de Rawls, além da ideia de igualdade de
oportunidades (que é a mais conhecida) diz que as desigualdades econômicas
e sociais devem estar estruturadas de maneira que sejam para maior benefício
dos menos avantajados, de acordo com um princípio de economia justo (no
sentido distributivo, isto é, que considere as diferenças).
Liberalismo político, como o de Dworkin, assim como o de Rawls, não é o
mesmo que liberalismo econômico, embora possa haver co-relações. Dworkin
é um ávido crítico da ideia de “laissez faire” (Estado mínimo). No capítulo 3 da
Virtude Soberana, seu autor sustenta uma determinada concepção de
liberdade, congruente com a igualdade de recursos e não qualquer conceito de
liberdade ou liberalismo. Segundo Álvaro De Vita, as duas teses fundamentais
do liberalismo enquanto uma filosofia política normativa são:
1. O Estado deve proteger um conjunto de direitos fundamentais dos cidadãos; 2. O Estado deve ser neutro no que se refere às concepções de boa vida a que os cidadãos devotem lealdade e que se empenhem em realizar. (De VITA, 1993, p. 12).
Além disso, e este é o ponto mais importante para o nosso trabalho, a ideia
de “mecanismos de correção” do mercado econômico, fulcral em Dworkin, leva
seriamente em consideração que acidentes de trabalho, deficiências físicas e o
46
próprio funcionamento do mercado econômico, além de um sem-número de
outras variáveis podem fomentar a desigualdade e o mercado deve prever
formas de corrigir estes desvios do ideal de igualdade (que é, em Dworkin, a
“virtude soberana” da comunidade política). Enfim, o objetivo desta digressão é
dizer o seguinte: liberalismo político não é sinônimo de individualismo abstrato,
“mão invisível” e coisas do gênero. Estes conceitos estão, sem dúvida, nos
primórdios do liberalismo. Contudo, ainda há muitos juristas para quem o
conceito de liberalismo se estagnou nos século XVII, XVIII e XIX, embora
autores de enorme repercussão no pensamento jurídico (Raws, Dworkin e
Habermas, por exemplo) claramente considerem as democracias ocidentais
como sociedades liberais, isto é, sociedades Constitucionais cujo cerne do
ordenamento jurídico é a garantia de direitos fundamentais.
Mas, afinal, que relação há entre as teorias da justiça e a ideia de
responsabilidade?
Em primeiro lugar, a ideia jurídica de responsabilidade, como todo e
qualquer conceito jurídico, precisa de fundamentação teórica. Nas bases de
qualquer conceito jurídico há sempre, tácita ou explicitamente, uma concepção
de justiça adotada. É conhecido o posicionamento de Norberto Bobbio que, na
sua obra A era dos direitos, diz que, em se tratando dos direitos humanos não
cabe mais a discussão sobre fundamentos e sim sobre a maneira de efetivá-
los. Mas isso não está correto: a teoria do direito sempre retorna aos
fundamentos, pois nada pode ser aplicado sem o debate racional em torno do
direito em questão. Há ainda, sem dúvida, muito espaço para a discussão
sobre fundamentos, e não apenas sobre as formas de aplicação do direito,
especialmente em uma época dita pós-moderna, em que os referenciais
tradicionais perderam a imponente austeridade.
Além disso, no caso específico do conceito de responsabilidade, muita
coisa é nova, pois embora a pré-história do conceito seja, como vimos, remota,
o teor da discussão mudou muito. Poderíamos ainda acrescentar: felizmente
mudou muito, justamente em função da discussão sobre fundamentos, na qual
os direitos fundamentais ocupam posição axial.
47
Segundo Hans Jonas, o conceito de responsabilidade expressa um dever
recém-surgido. Esse dever é o tema de seu conhecido texto O princípio
responsabilidade. Jonas destaca, com razão, o fato de que “a teoria ética lhe
concedeu (i. e., ao conceito de responsabilidade) pouca atenção” (JONAS,
2006, p. 22). É preciso, segundo Jonas, deslocar o problema da
responsabilidade para o centro da ética. É preciso se pensar em uma teoria da
responsabilidade, segundo Jonas, “até hoje ausente” (ibidem).
Também Ricoeur diz que “(...) é surpreendente que um termo, de sentido
tão firme no plano jurídico, seja de origem tão recente e sem presença
marcante na tradição filosófica” (RICOEUR, 1995, p. 35-36). Ricoeur observa
uma “inflação” da ideia de responsabilidade no plano jurídico em função da
extensão do domínio dos riscos, acidentes e azares invocados pelas vítimas.
Ele pontua alguns efeitos perversos do direito à reparação na ausência de
culpa: a multiplicação aleatória das ocorrências de vitimização e da caça ao
responsável. Queremos desenvolver esta, dentre outras ideias, nos capítulos
subseqüentes.
Nas linhas seguintes, refletiremos sobre a fundamentação filosófica da
ideia de responsabilidade, principalmente a partir de Paul Ricoeur, mas, por
isso mesmo, faremos referência a outros autores com os quais a obra de
Ricoeur se comunica. A partir disso, queremos conduzir algumas reflexões
sobre a ideia de objetivação da responsabilidade no direito civil.
48
3. CAPÍTULO II – A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE
RESPONSABILIDADE: UMA REFLEXÃO A PARTIR DE RICOEUR.
3.1. IMPUTAÇÃO E RESPONSABILIDADE: A HERANÇA KANTIANA.
A ideia básica, subjacente à concepção clássica do direito civil, no que
se refere ao conceito de responsabilidade, é a de que responsabilidade
corresponde ao dever de reparar o dano. No direito penal corresponde à
obrigação de suportar a pena. Trata-se de um termo de sentido firme e
fundamental no plano jurídico, mas cuja fundamentação filosófica ainda parece
apenas tatear. Responsabilidade é um termo, de fato, relativamente recente no
debate teórico. Podemos dizer, contudo, que a tradição filosófica prenuncia a
ideia de responsabilidade por meio dos conceitos de justiça, equidade,
imputação e ideias correlatas. É justamente no conceito de imputação que,
segundo Ricoeur, se deve buscar a genealogia da ideia de responsabilidade:
(...) é fora do campo semântico do verbo responder, quer se trate de responder por..., quer se trate de responder a..., que é preciso procurar o conceito fundador, a saber, é no campo semântico do verbo imputar. (RICOEUR, 1995, p. 37)
Costuma-se falar de responsabilidade buscando sua etimologia,
contudo, não podemos esquecer que a análise etimológica nem sempre
corresponde à ordem das ideias. É comum que um conceito primitivo, que não
consta na análise etimológica, tenha importante peso histórico na construção
de uma ideia jurídica. É o que parece ocorrer com a ideia de responsabilidade,
que teria, segundo Ricoeur, evoluído a partir do verbo imputar. Grosso modo,
imputar é atribuir a alguém uma determinada ação. Há uma relação primitiva,
destaca Ricoeur, entre a ideia de imputação e a de obrigação, na história do
direito. O corolário dessa relação seria a obrigação de reparar o dano ou sofrer
a pena: “(...) o juízo de imputação conduz ao de retribuição enquanto obrigação
de reparar ou de sofrer a pena.” (RICOEUR, 1995, p. 38). Assim, a ideia de
imputação, embora com enfoque retributivo, já sustentava o dever de reparar,
que é o núcleo da noção clássica de responsabilidade civil.
49
Segundo Ricoeur, a contribuição kantiana é fulcral para a compreensão
do debate teórico em torno da ideia de imputabilidade.
O problema kantiano remonta à Crítica da Razão Pura, mais
especificamente ao capítulo da Dialética Transcendental, que trata, dentre
outras coisas, das antinomias da razão pura. Em linguagem kantiana uma
antinomia é um conflito de ideias da razão: um enunciado representando a tese
e outro representando a antítese. No plano teórico, ficou estabelecido que não
haveria solução para os problemas propostos pelas antinomias. O que nos
interessa aqui é a terceira antinomia da razão, que é a que trata da ideia de
liberdade. A tese desta antinomia diz que
A causalidade segundo as leis da natureza não é a única de onde podem ser derivados os fenômenos do mundo no seu conjunto. Há ainda uma causalidade pela liberdade que é necessário admitir para os explicar (KANT, 1997, p. 406 – o destaque é meu).
Já a antítese, diz o seguinte: “Não há liberdade, mas tudo no mundo
acontece unicamente em virtude das leis da natureza” (KANT, 1997, p. 407).
Ao falar em “causalidade segundo as leis da natureza” Kant se refere à ideia de
nexo causal que explica os fenômenos no mundo físico. Todo fenômeno físico
têm uma explicação causal: a queda de um corpo, o movimento da Terra, um
acidente de trânsito etc. Causalidade pela liberdade, por sua vez, diz respeito a
um suposto início absoluto que dê origem a uma determinada série causal.
Do ponto de vista das ciências naturais não há uma causalidade livre, no
sentido apresentado pela tese da terceira antinomia, pois todos os fenômenos
podem ser reduzidos, assim se acredita, a uma explicação determinística. A
única causa incausada, se é que ela existe, seria Deus. Contudo,
surpreendentemente, Kant amplia a esfera da razão especulativa e afirma, na
explicação da tese, que a ideia de causalidade pela liberdade “apenas constitui
o conceito da absoluta espontaneidade da ação, como fundamento autêntico
da imputabilidade da ação” (KANT, 1997, p. 408). Esse é o elo entre a Crítica
da razão pura e a Crítica da razão prática. Se nosso raciocínio se orientar
unicamente pelo mecanismo causal, a cadeia é infinita. Podemos regredir ad
infinitum acompanhando a lógica de “A é causa de B” e, ipso facto, não se
chega ao juízo de imputação. O raciocínio da tese, por sua vez, admite a
imputabilidade. Parte-se da ideia de que há um autor livre, isto é, imputável. Tal
50
ideia, ainda que de origem na razão especulativa, tem importante repercussão
nas filosofias moral e do direito em Kant. Segundo Ricoeur, a noção de
imputabilidade, no sentido de capacidade para a imputação (moral e jurídica),
constitui uma chave indispensável para compreender o cuidado de Kant em
preservar a dupla articulação cosmológica (razão teórica) e ética (razão prática)
do termo imputação, enquanto juízo de atribuição a alguém, como sendo
verdadeiro autor de uma ação censurável.
Em Kant, destaca Ricoeur, a força da ideia de imputação consiste na
conjunção de duas ideias básicas: a da atribuição de uma ação a um agente e
a da qualificação moral dessa ação. A Metafísica dos Costumes claramente
define Zurechnung (imputatio) em sentido moral como o “juízo pelo qual
alguém é tido como Urheber (causa livre, autor) de uma ação (Handlung), que
desde então se chama Tat (factum) e tomba sob a alçada da lei” (Ak, A, 6,
227). Além disso, na Doutrina do Direito, Kant sustenta a ideia segundo a qual
uma pessoa se define como o sujeito cujas ações são suscetíveis de
imputação. Uma coisa, ao contrário, é aquilo que não é suscetível de qualquer
imputação. Não se pode, assim, imputar um fato a uma coisa, pode-se, ao
contrário, a uma pessoa. Isso porque uma pessoa pode introduzir, por sua
vontade (von selbst), mudanças na cadeia causal fenomênica. Em outras
palavras, a ordem física é alterada em sua seqüência causal pela intervenção
volitiva humana. Admitir tal ideia de causalidade seria, segundo Kant, uma
pedra de escândalo para a filosofia, que encontraria, nesse campo,
insuperáveis dificuldades.
O que toda essa digressão teórica tem a ver com o nosso tema: a
evolução do conceito de responsabilidade? Muito, do ponto de vista da
epistemologia jurídica. O ponto fulcral que encontra lugar no debate teorético,
moral e jurídico, em Kant, e recuperado por Ricoeur é o conceito de liberdade.
Na Crítica da razão pura, liberdade é uma aporia e as ciências naturais não
puderam dar sustentação a esse conceito. Esse quadro não mudou muito do
século XVIII para o XXI. A física, a biologia e a psicologia, por exemplo,
parecem estar, sem dúvida, do lado da antítese e não da tese. Contudo, o
raciocínio moral e, além disso, o jurídico, não podem abrir mão da ideia de
liberdade, concebida como capacidade de não seguir a inclinação natural (que
51
é o sentido kantiano de liberdade). Do ponto de vista da psicanálise, por
exemplo, temos a tendência de transgredir as normas sociais, mas, resistimos
a isso por ação do superego. A vitória sobre a pulsão de transgressão seria a
versão psicanalítica do que, em linguagem kantiana, chamaríamos de
liberdade. A liberdade é, assim, um corte na cadeia causal natural. Liberdade,
em Kant, não é fazer tudo o que me dá vontade, e sim, justamente, ser
capaz não fazer o que, por inclinação natural, me dá vontade. Liberdade é
ser capaz de quebrar o nexo causal natural. Não é o mesmo que livre-arbítrio22.
Trata-se do conceito ético nuclear, que repercute no plano jurídico por meio da
noção de imputação. Daí que, segundo Ricoeur, a Crítica da razão prática
introduz a ligação decisiva entre liberdade e lei, ligação pela qual a liberdade
constitui a ratio essendi da lei e a lei a ratio cognoscendi da liberdade. Por isso
mesmo, pode-se dizer que liberdade e imputabilidade, assim pensadas,
praticamente coincidem.
3.2. A IDEIA CONTEMPORÂNEA DE RESPONSABILIDADE.
A ideia de responsabilidade, ainda que tenha suas raízes no conceito de
imputação, se torna independente dele. A reparação se torna mais importante
que a imputação. De todo modo, segundo Ricoeur, o conceito de
responsabilidade evolui por meio de reinterpretações e mesmo atualizações da
herança kantiana.
Se, de um lado, a ideia moral de imputação ganhou força no plano jurídico
nos séculos XVIII e parte do XIX, o conceito jurídico de responsabilidade foi
determinante na reconfiguração da filosofia moral. É como se a filosofia moral
tivesse, durante um determinado tempo, influenciado a linguagem jurídica, por
meio do conceito de imputação e, em seguida, a linguagem jurídica tenha
invadido o domínio moral pela repercussão do conceito de responsabilidade.
22
A noção cristã de livre-arbítrio encerra a ideia de poder de escolha. A noção kantiana de liberdade, por sua vez, encerra a ideia de capacidade de agir orientado pela razão prática, isto é, pelo respeito ao outro, pelo cumprimento do dever, numa palavra, pelo “princípio supremo da moralidade”.
52
Hoje, em filosofia moral, os adjetivos responsável ou irresponsável parecem
estar muito mais presentes e ter muito mais força no debate teórico que os de
imputável e inimputável. O problema é que, observa Ricoeur, tematizar a
responsabilidade com todas as implicações inerentes ao campo moral implica o
reconhecimento de que certa fluidez invade o domínio conceitual. Basta citar
aqui a repercussão teórica das ideias de Hans Jonas, para quem o termo
responsabilidade se impõe em filosofia moral a ponto de se tornar um princípio.
Mas quais os limites da aplicação deste princípio sustentado por Jonas? Tal
princípio nos ajuda a refletir sobre o problema da reparação? Em que sentido
este princípio pode ajudar o direito e, em especial, o direito civil?
Jonas diz, no prefácio de sua obra O princípio responsabilidade, que o tema
de seu livro é o “dever recém-surgido, expresso no conceito de
responsabilidade” (JONAS, 2006, p. 22). Ele trata a responsabilidade como o
núcleo contemporâneo da teoria ética. Só que, quando pensamos isso do
ponto de vista do direito civil, temos aqui um problema: ao ampliar demais o
alcance da responsabilidade, aparentemente, Jonas enfraquece tal conceito
como mecanismo de reparação (na verdade, a reparação nem é uma questão
nuclear em Jonas e sim a precaução). Por isso mesmo, segundo Ricoeur,
temos que tomar certo cuidado com a fluidez conceitual pela qual “sois
responsável por tudo e por todos” (RICOEUR, 1995, p. 36). É essa a “fluidez”
que, segundo Ricoeur, deve causar certa desconfiança ao jusfilósofo.
Além disso, conforme já destacamos no capítulo anterior, o adjetivo
responsável arrasta consigo uma diversidade de complementos, pois além do
entendimento segundo o qual a pessoa é responsável pelas conseqüências
dos seus atos, há também o entendimento segundo o qual se é, além disso,
responsável por outras pessoas, na medida em que estão cometidas ao
encargo ou cuidado da pessoa dita responsável.
3.3. CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM
Ricoeur chama a atenção para duas principais vertentes da filosofia da
linguagem que deram sua contribuição para a reconfiguração da ideia de
responsabilidade: a filosofia analítica e a hermenêutica.
53
A filosofia analítica trabalha com a análise da linguagem. Ricoeur cita
Strawson como uma caso emblemático, pois seu pensamento teve
repercussão nas ideias de Hart, por exemplo. Strawson forjou o termo
ascription para designar “a operação predicativa de um gênero único, que
consiste em atribuir uma ação a alguém” (RICOEUR, 1995, p. 45). O objetivo
básico de Strawson era estabelecer particulares de base, isto é, sujeitos de
atribuição irredutível. Só existiriam dois tipos de indivíduos em qualquer
tentativa de derivação: corpos espácio-temporais e pessoas. A derivação em
sentido de imputação se aplicaria às pessoas. A teoria da ascription é uma
tentativa de desmoralizar a noção de imputação, isto é, torná-la menos moral e
mais suscetível ao cálculo linguístico. Trata-se de deixar clara a estrutura lógica
da predicação e, portanto, da imputação. O conceito de responsabilidade é
dependente da ideia de obrigação, seja de fazer (ou deixar de fazer), de
reparar ou de sofrer uma pena. A teoria da ascription, segundo Ricoeur, tenta
tornar tal conceito menos dependente desta ideia. Tenta-se, por meio da
análise da linguagem, fazer uma investigação moralmente neutra do agir.
Investiga-se a estrutura predicativa da imputação: a atribuição de um fato a
alguém, independentemente de valoração moral.
A filosofia analítica, a despeito de suas valiosas contribuições ao estudo da
lógica, não dá conta de explicar a realidade humana em suas principais
dimensões. O Primeiro Wittgenstein, por exemplo, um dos pensadores que
mais se dedicou ao estudo da análise da linguagem nos moldes do
pensamento lógico, destacou no aforismo 6.421 do Tractatus logico-
philosoficus, que “Es ist klar, daβ sich die Ethik nicht aussprechen läβt.” (“É
claro que a ética não se deixa exprimir”) (WITTGENSTEIN, 1994, p. 277). Ele
estava com isso dizendo, dentre outras coisas, que a Ética não pode ser
apreendida por nossos esquemas lógicos de pensamento.
Por isso mesmo, a problemática da responsabilidade não pode ser resolvida
apenas pela via lógico-analítica. Daí a hermenêutica exigir a superação do
expectador desinteressado: é preciso o abandono da ideia de verdade sem
54
crença tal como o requer o conceito de círculo hermenêutico23. Temos que
reconhecer o fracasso de todos os sistemas de pensamento que se pretendem
saber absoluto. O pensamento de Ricoeur tem um estreita relação com
Heidegger e Gadamer, pois trata-se de uma hermenêutica da finitude aberta do
homem. A Hermenêutica, por isso mesmo, trata das múltiplas funções do
significar humano e das suas mútuas relações.
3.4. A REFORMULAÇÃO DO CONCEITO DE RESPONSABILIDADE
No que respeita à renovação da ideia de responsabilidade no plano jurídico,
não se deve esquecer seu ponto de partida que, no direito civil, consiste na
obrigação de reparação de danos. O direito civil, ao invés de buscar penalizar,
busca a reparação. Por isso mesmo, Ricoeur diz que o conceito de
responsabilidade evoluiu no sentido da despenalização. Contudo, observa o
filósofo francês que o Código Civil, ao falar de culpa, preserva, segundo
parece, três ideias: “que uma infração foi cometida, que o autor conhecia a
norma e, finalmente, que era senhor dos seus atos de maneira a ter podido agir
de outro modo” (RICOEUR, 1995, p. 50). Esse raciocínio preserva a chamada
teoria subjetiva, fundada na culpa do agente.
Entretanto, o espaço ocupado pela teoria objetiva, que responsabiliza
independentemente de culpa, é notório. Diz Ricoeur:
Toda a história contemporânea daquilo a que se chama o direito da responsabilidade, no sentido técnico do termo, tende a ser substituída pela ideia de responsabilidade sem falta, sob a pressão de conceitos como os de solidariedade, de segurança e de risco, que tendem a ocupar o lugar da ideia de falta. Tudo se passa como se a despenalização da responsabilidade civil devesse também implicar sua completa desculpabilização. (RICOEUR, 1995, p. 50 – o destaque é meu).
Assim, além da despenalização (a reparação civil substituiu a pena),
tudo pareceria indicar que a evolução do conceito de responsabilidade caminha
no sentido da desculpabilização. Sob este ponto de vista, a culpa já não seria
23
O Círculo Hermenêutico é entendido por Gadamer, em Verdade e Método, como uma articulação entre a interpretação e a pré-compreensão de um texto. Não existe interpretação a partir de um grau zero de entendimento.
55
mais o cerne da questão e sim os três conceitos mencionados neste excerto:
solidariedade, segurança e risco.
Essa tendência, sem dúvida nenhuma, repercutiu no parágrafo único do
art. 927 do Código Civil Brasileiro, que obriga à reparação, independentemente
de culpa, nos casos onde a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do
dano implica, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Contudo, observa Ricoeur, há problemas neste novo perfil da ideia de
responsabilidade. Podemos, de fato, ser teoricamente coerentes ao substituir a
ideia de culpa pela de risco? Esse empreendimento não conduzirá,
paradoxalmente, a uma total desresponsabilização da ação?
Ricoeur observa que as articulações feitas entre solidariedade, risco e
segurança não estão tão claras e mesmo que admitamos que esta discussão
seja pertinente, isso não implicaria a superação da ideia de culpa, como muitas
vezes a doutrina parece sugerir. Com o avanço das novas tecnologias e
técnicas de produção, ocorreu, sem dúvida, uma extensão na esfera dos
riscos. Tal extensão é a razão pela qual o dever de segurança passou a ter
lugar proeminente neste debate. Sem dúvida, segurança só é um problema que
se impõe no imaginário social da contemporaneidade em função do
desenvolvimento tecnológico, que ampliou a potencialidade dos riscos.
Sérgio Cavalieri Filho, por exemplo, diz que o dever que se contrapõe ao
risco é o dever de segurança. Segundo este doutrinador, a responsabilidade
objetiva surge quando a atividade perigosa causa dano a outrem, o que
evidenciaria ter sido ela exercida com violação do dever de segurança. Diz
ainda, Cavalieri Filho:
Com efeito, quem se dispõe a exercer alguma atividade perigosa terá que fazê-lo com segurança, de modo a não causar dano a ninguém, sob pena de ter que por ele responder independentemente de culpa. Aí está, em nosso entender, a síntese da responsabilidade objetiva. (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 145 – o destaque é meu).
Consideramos, contudo, inadequada a forma com que Cavalieri Filho
formata a sua argumentação. A teoria do risco, desde os seus primórdios, no
século XIX, não trata a responsabilidade objetiva, como um problema conexo à
violação de algum dever. Não se é objetivamente obrigado a reparar porque
56
algum dever foi violado. Não se trata, portanto, de penalizar o criador de riscos,
já que, nas sociedades liberais, o espírito empreendedor não é condenável.
Aliás, esse é o um dos grandes dilemas apresentados pelo sociólogo Ulrich
Beck: como manter os riscos no âmbito do suportável e ao mesmo tempo não
obstaculizar o processo de modernização? (BECK, 2001). O raciocínio de
Cavalieri Filho, contudo, na passagem supracitada, segue a seguinte estrutura:
se o dever X for violado (segurança) então a pena Y deve ser aplicada. Mas
responsabilidade objetiva não é isso.
Sem dúvida, temos que pressupor o dever de segurança, em se tratando
de qualquer atividade humana, mas não nestes termos. Este dever, no nosso
entender, deve estar articulado com o respeito à dignidade humana e à
solidariedade social. Toda atividade de risco, já que parece ser um lugar-
comum que as sociedades de modernidade avançada não podem mais se
desenvolver sem as atividades assim caracterizadas, precisa prever a proteção
da pessoa humana em todas as suas dimensões: física, moral, social etc. É
nesse sentido que se diz que alguém é, objetivamente, titular do dever de
indenizar e não porque esse alguém tenha violado algum dever de segurança.
Até porque, se essa violação ocorrer, de fato, se trata de um agravante que
extrapola os limites da discussão sobre a esfera objetiva da responsabilização.
Faz sentido, sem dúvida, segundo Ricoeur, sustentar a ideia de
segurança na de risco, mas o mesmo não se pode dizer da ideia de
solidariedade. Solidariedade não é um conceito moral utilitário, como o de
segurança. Não está clara e, aliás, parece até problemática, a tentativa de
sustentar a solidariedade em uma espécie de filosofia do risco e na caça ao
responsável, como se fosse uma espécie de caça às bruxas. Banalizar a busca
do responsável aniquila, segundo Ricoeur, o capital de confiança, próprio, por
exemplo, das relações contratuais. Esses seriam efeitos perversos da extensão
da esfera dos riscos e da mudança de escala espacio-temporal sugerida por
Hans Jonas, a despeito de quão importante seja a preocupação com as futuras
gerações.
Não se pode transformar a responsabilidade objetiva em um capítulo da
teoria dos jogos. Por isso mesmo, Ricoeur diz que
57
(...) desconectada de uma problemática da decisão, a ação vê-se, ela mesma, colocada sob o signo da fatalidade que é o oposto exato da responsabilidade. A fatalidade não é ninguém, a responsabilidade é alguém. (RICOEUR, 1995, p. 52).
Decisão, nesta passagem, refere-se ao poder fazer, próprio do agente
imputável. Isso repõe a questão inicial de saber se, e até que ponto, a ideia de
reparação pode ser desvinculada da ideia de uma falta cometida. Além disso,
cabe saber se podemos separar a ideia de responsabilidade da de reparação,
como parece sugerir o debate ético, do tipo proposto por Hans Jonas, em que
não há mais reciprocidade entre agente e paciente, que estão em dimensões
espacio-temporais distintas, e quem sofre o prejuízo já não pode mais cobrar a
indenização do autor do dano.
Houve, segundo Ricoeur, um recuo, no campo jurídico, do uso do
conceito de imputação e, por outro lado, uma proliferação, no campo moral, do
uso do conceito de responsabilidade: “Tudo se passa como se o estreitamento
do campo jurídico fosse compensado por uma extensão do campo moral da
responsabilidade” (RICOEUR, 1995, p. 53).
Cavalieri Filho (que aqui é citado apenas como o caso paradigmático de
uma opinião defendida por muitos doutrinadores) não está totalmente errado
em sua afirmação segundo a qual o dever de segurança é a contrapartida do
risco. Há sem dúvida uma estreita relação entre segurança e risco. O conceito
de responsabilidade objetiva sustenta-se, na verdade, não na ideia de risco em
si, mas na obrigação de prevenção contra os riscos e na previsão de reparação
nos casos de dano. Não é o risco o conceito central que tende a ocupar grande
espaço do conceito de responsabilidade, mas uma obrigação cuja linhagem
moral seria a prevenção (e, nesse ponto, reaparece a tese sustentada por
Hans Jonas) e a prudência. A ideia de risco tem, sem dúvida, seu papel aqui,
pois é em função dela que se fala em prudência preventiva. Mas a ideia de
risco, em si mesma, não tem conteúdo moral: a precaução, pelo contrário, tem
força em termos de teoria ética. Daí Paul Ricoeur dizer que “o jurista estende
assim uma mão na direção do moralista, sob o signo da prudência preventiva”
(RICOEUR, 1995, p. 53). Essa é, sem dúvida, uma importante direção em que
caminha a evolução do conceito de responsabilidade. Basta citar os casos da
58
biotecnologia e da nanotecnologia, em que o “princípio da precaução”24
encontra enorme repercussão na jurisprudência e na doutrina.
Como dissemos, o conceito de responsabilidade ganhou enorme
repercussão no âmbito da teoria ética em função de sua inflação (o termo é de
Ricoeur) no campo jurídico. A evidente extensão dos domínios dos riscos
parece estar sustentando a ideia de que “todo o dano tende a implicar
indenização” (RICOEUR, 1995, p. 53). Tal “inflação” do conceito de
responsabilidade gera o que Ricoeur chama, como vimos, de “efeitos
perversos” que lançam a opinião pública “em busca de responsáveis
suscetíveis de reparar e de indenizar” (RICOEUR, 1995, p. 53). Por isso
mesmo, Vicente de Paulo Barreto faz o seguinte comentário relativamente a
responsabilidade sem culpa:
Corre-se o risco de que o direito e a moral busquem superar as deficiências encontradas pela teoria clássica da responsabilidade, através de uma desculpabilidade individual absoluta, o que terá como conseqüência o surgimento de uma sociedade de vítimas, em busca de culpados institucionais e de indenizações para compensar situações socialmente injustas (BARRETO, 2009, p. 14 – o destaque é meu)
Inflacionar a responsabilidade parece criar mais problemas que
soluções. Parece, muito mais, segundo Ricoeur, transformar a
responsabilidade em fatalismo ou em denúncia terrorista, pela qual “sois
responsáveis por tudo e culpados de tudo” (RICOEUR, 1995, p. 58).
Além da questão: quem é o sujeito responsável? Temos que admitir que
há, ainda, no âmbito dessa discussão, a questão do objeto da
responsabilidade.
Em linhas gerais diz-se que o autor é responsável pelos efeitos da sua
ação, daí ter que responder pelos danos causados, isto é, ser responsável e,
por isso, ter a obrigação de reparar. Contudo, o objeto da responsabilidade não
se reduz aos efeitos da ação de um agente determinado. No plano moral,
24 O princípio da precaução foi admitido formalmente na Declaração do Rio Sobre Meio Ambiente de Desenvolvimento (1992), mais especificamente no princípio 15 desta declaração, pelo qual “Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como razão para que seja adiada a adoção de medidas eficazes em função dos custos para impedir a degradação ambiental”.
59
sabemos que há a consolidada ideia de que se é responsável pelo outro, isto
é, por outra pessoa. Tal sentido foi absorvido pelo direito civil, já que se
considera objetiva a responsabilidade dos pais, tutores, curadores e
empregadores. Temos aqui, nesses exemplos, o que Ricoeur chama de
transferência do objeto da responsabilidade do dano cometido para o outro
vulnerável. Nas palavras de Ricoeur, nestes casos, “é pelo outro que está a
meu encargo que sou responsável” (RICOEUR, 1995, p. 54). Não se trata
apenas da ação do sujeito responsável e seus efeitos no mundo. Trata-se de
fazer
do vulnerável e do frágil, enquanto coisa que está ao cuidado do agente, o objeto direto da sua responsabilidade. Responsável por quê, perguntar-se-á. Pelo frágil, é o que estamos inclinados a responder.” (RICOEUR, 1995, p. 54).
A ênfase contemporânea na ideia de risco no âmbito da
responsabilidade civil, portanto, ao destacar a tutela do vulnerável, recupera
um antigo preceito moral (aliás, já há muito reconhecido pelo direito civil), pelo
qual se deve responder por pessoas e não apenas sobre atos culposos ou
dolosos. Por isso, segundo Paul Ricoeur, não é surpreendente que o conceito
jurídico de responsabilidade tenha tido tanta repercussão no âmbito da teoria
ética. Diz ainda Ricoeur:
Numa época em que a vítima, o risco de acidentes e o dano sofrido ocupam o centro da problemática do direito da responsabilidade, não é surpreendente que o vulnerável, o frágil, sejam igualmente considerados no plano moral como o objeto da responsabilidade, como a coisa por que se é responsável. (RICOEUR, 1995, p. 54)
Essa é uma das razões pelas quais Hans Jonas considera o conceito de
responsabilidade o centro da teoria ética, embora no caso de Jonas, a
motivação não seja só essa. O que Ricoeur quer mostrar é que, por exemplo,
com a evidente proliferação de acidentes de trabalho e a patente fragilidade do
empregado em relação ao empregador, já não se trata de ser responsável pelo
outro porque se é responsável pelo dano. O raciocínio se inverteu: trata-se de
ser responsável pelo dano porque se é responsável pelo outro. Essa é uma
importante mudança de perspectiva.
Um grande problema, do ponto de vista da teoria ética e talvez a grande
inovação, não pensada pela tradição filosófica, é a ideia, já destacada, de
60
Jonas, de responsabilização em função da “vulnerabilidade futura do homem” e
do seu meio. Para Jonas temos que ter um cuidado responsável não apenas
com nossos contemporâneos, mas também em relação às gerações futuras.
Isso, como já dissemos, aumenta o alcance tanto espacial como temporal da
compreensão do efeito dos nossos atos. Diz Jonas: “Eu denomino isso
‘heurística do medo’: somente então, com a antevisão da desfiguração do
homem, chegamos ao conceito de homem a ser preservado” (JONAS, 2006, p.
21). Por isso mesmo, Jonas propõe uma reformulação do imperativo ético
kantiano, que se preocupava apenas com nossos contemporâneos, ao sugerir
a universalização da consideração de todos como fins em si mesmos. É
preciso que se considere o futuro. Uma das formulações do novo imperativo,
sugerido por Jonas, é a seguinte: “Inclua na tua escolha presente a futura
integridade do homem como um dos objetos do teu querer” (Jonas, 2006, p.
48). Isso evitaria que o bem do presente sacrifique o bem do futuro.
O problema é que a proposta de Jonas não ajuda muito o direito civil ou
o âmbito das relações privadas. Na verdade, ele estava consciente disso, pois
afirma que o imperativo proposto tem mais a ver com política pública, diz
Jonas: “é evidente que o nosso imperativo volta-se muito mais à política pública
do que à conduta privada, não sendo essa última a dimensão causal na qual
podemos aplicá-lo” (JONAS, 2006, p. 48). Em termos de políticas públicas não
precisa haver reciprocidade entre agente e paciente, mas em termos de
reparação de danos, sim. Por isso, é importante diferenciar responsabilidade
como política da responsabilidade como um capítulo do direito civil. Contudo,
Jonas não ignora o problema da reparação, principalmente em se tratando da
responsabilidade objetiva. Nesse ponto, o paradigma presente na obra de
Jonas é o dos pais em relação aos filhos. É, portanto, o já destacado
paradigma da vulnerabilidade como critério de aferimento da
responsabilização. Isso fica claro, por exemplo, na seguinte passagem:
a responsabilidade em reparar um dano pode ser livre de toda a culpa (da mesma forma que a responsabilidade quotidiana assumida pelos pais em relação aos filhos). O princípio da imputação causal continua mantido na relação, em virtude da qual o superior hierárquico abriga em sua pessoa a causalidade do subordinado (cujo desempenho correto também será mérito seu) (JONAS, 2006, p. 165).
61
Uma vez que as promessas da tecnologia moderna se converteram em
ameaça, o arquétipo pais-filhos é, para Jonas, fulcral. Caim, no texto bíblico,
teria razão, segundo Jonas, caso Deus o tivesse acusado de
irresponsabilidade, pois, segundo a bíblia, ao ser questionado sobre onde
estaria seu irmão ele respondeu que não era tutor de seu irmão. Deus, na
verdade, o acusa de fratricídio, não de irresponsabilidade. Mas, com a
afirmação: “não sei; acaso, sou eu tutor de meu irmão” (Gn 4:9), Caim parecia
querer dizer: somos iguais, somos irmãos, não faz sentido que eu seja
questionado sobre onde meu irmão está. Só que caso se tratasse de relações
hierárquicas esse argumento não poderia ser usado. O superior é responsável
pelo subordinado, destaca Jonas.
O paradigma pais-filhos, defendido por Jonas, claro está, sustenta a
idéia de fragilidade, de vulnerabilidade, no âmbito do raciocínio da justiça
distributiva. A equidade na administração da justiça, assim, deve considerar o
vulnerável como objeto da responsabilidade. Só que esse raciocínio reforça,
segundo Ricoeur, a ideia de imputação singular: pode-se, pelo paradigma pais-
filhos (ou paradigma da vulnerabilidade), identificar o sujeito da
responsabilidade, por exemplo, o pai, o empregador, enfim, o superior
hierárquico. Esse raciocínio, sem dúvida, tem lugar de destaque nas
discussões referentes à responsabilização objetiva no âmbito do direito civil.
O problema se dá quando pensamos no outro efeito da evolução do
conceito de responsabilidade destacado por Jonas: o alongamento indefinido
da responsabilidade, dada a extensão indefinida dos efeitos da ação. Enquanto
o paradigma pais-filhos identifica com clareza o sujeito responsável, o
alongamento espacio-temporal indefinido da responsabilidade dilui o sujeito
responsável. Essa é a razão pela qual Ricoeur questiona: “até onde se poderá
estender, no espaço e no tempo, a responsabilidade pelos nossos atos?”
(RICOEUR, 1995, p. 55).
A ideia básica presente no raciocínio da extensão da responsabilidade é
a seguinte: a responsabilidade deve se estender tão longe quanto os nossos
poderes de interferência na cadeia causal fenomênica (daí este problema ter
uma forte ligação com a terceira antinomia kantiana). Os prejuízos ligados ao
62
exercício desses poderes, quer sejam prejuízos prováveis ou meramente
possíveis, devem ser considerados, na medida em que se tornem
conseqüências de nossa intervenção no mundo. Tal raciocínio segue a trilogia:
“poderes-prejuízos-responsabilidade”. Em outras palavras: uma vez que nossa
capacidade de provocar prejuízos se estende tão longe quanto nossos
poderes, somos responsáveis por quaisquer danos que daí resultem. É daí que
surge a “heurística do medo” de Hans Jonas: a sustentação dos procedimentos
de precaução e de prudência.
Só que, repetimos: há a séria dificuldade de identificação dos
responsáveis quando nos referimos a efeitos muito distantes da suposta ação
ou conjunto de ações desencadeadoras do dano, principalmente numa época
em que a burocracia implica em uma infinidade de micro-decisões, cada uma
com influência infinitesimal no resultado danoso. O alongamento do raio da
responsabilidade, repetimos, dilui os seus efeitos.
Além disso, uma vez que sabemos que a cadeia dos efeitos é infinita,
qual o limite razoável da extensão espacio-temporal da responsabilidade? Qual
o limite da extensão de uma responsabilidade suscetível de ser assumida por
autores identificáveis? O que acontece com a ideia de reparação, tendo em
vista esse alongamento espacio-temporal da responsabilidade?
Esses são problemas não resolvidos claramente por Jonas. Mas Ricoeur
concorda que deve haver vigilância e prudência, de fato, em escala
infinitesimal, pois todos devem ter consciência da sua possível participação em
um determinado dano. Só que Ricoeur acha, a nosso ver com razão, que a
ideia de prevenção deve estar associada à de reparação dos danos já
cometidos. Uma responsabilidade que considere a proximidade e a
reciprocidade também tem repercussão sobre a duração, isto é, os efeitos
futuros de uma determinada ação. Isso significa dizer: não se trata meramente
de ampliar o alcance do imperativo kantiano, pois se honestamente formos
kantianos e respeitarmos a todos como fins em si mesmos, não poderemos
usar as gerações futuras como meio instrumental que garanta o nosso bem-
estar presente.
63
O problema é que não é possível considerarmos, de forma consciente,
todas as conseqüências de nossa ação (por isso, hoje, a doutrina inclina-se
mais para a teoria da causalidade adequada25). Nos Princípios da Filosofia do
Direito, Hegel percebeu muito bem isso. Ele destaca que a vontade subjetiva é
finita e que os efeitos da ação escapam o controle da intenção ao
entrelaçarem-se com a “necessidade exterior” (o que Kant chamaria de
“causalidade segundo as leis da natureza”). Há um sério dilema apresentado
por Hegel, que poderia, segundo Ricoeur, ser resumido em duas máximas:
“ignora as conseqüências de tua ação” (se admitirmos que a boa-intenção é
suficiente) e “Julga as ações pelas suas conseqüências e faz delas o critério do
justo e do bom” (RICOEUR, 1995, p. 58). Neste dilema temos a contraposição
de dois tipos de efeitos da ação: os intencionais e previsíveis e os efeitos
adjacentes e secundários. Segundo Ricoeur, na verdade, essa questão
remonta a um problema medieval, desenvolvido por autores como Abelardo e
Agostinho: o problema do Dolus Indirectus. O dolo indireto articula o intencional
com o não pretendido. Ora, justificar a ação pela sua boa intenção suprime do
âmbito da responsabilidade os efeitos adjacentes da mesma. Fechar os olhos
para as conseqüências da ação, por sua vez, caracterizaria má-fé. Contudo,
responsabilizar a pessoa por todas as conseqüências de sua ação, incluindo as
mais contrárias à intenção inicial e difíceis de prever é, segundo Ricoeur,
transformar a responsabilidade em fatalismo. Seria, na verdade, tornar a
pessoa responsável por nada que, conscientemente, possa assumir o encargo.
Enfim, Hegel pretende resolver este problema por meio do conceito de
Sittlichkeit (HEGEL, 1997), isto é, da moral social concreta, da sabedoria dos
costumes. Por esse raciocínio, seria a moral social a medida do alargamento
da responsabilidade. Ricoeur, por sua vez, acredita que podemos assumir
25
As teorias tradicionais do nexo de causalidade são as da equivalência das condições, a da causalidade necessária e a da causalidade adequada. A teoria da equivalência das condições foi desenvolvida pelo criminalista alemão Von Buri, baseado nos trabalho de Stuart Mill e afirma que deve-se levar em consideração todas as condições sem as quais o dano não teria ocorrido. A teoria da causalidade necessária é pouco adotada e diz que só devem ser considerados os fatos com relação direita e imediata com o dano. Esta é a tese de Agostinho Alvim (ALVIM, 1972 apud TUPONI JÚNIOR, 2010), que, por sua vez, se baseou na doutrina italiana. A teoria da causalidade adequada, por sua vez, foi desenvolvida por Von Bar e Von Kries e procura, dentre uma multiplicidade de causas, identificar qual delas tem maior potencial para a produção do dano em questão. A doutrina tem entendido que este é o melhor raciocínio para as considerações relativas à prevenção e reparação de danos.
64
parcialmente a solução hegeliana. É preciso, contudo, como que em um
retorno a Aristóteles, buscar a justa medida, a virtude, isto é, não se admitir
nada em excesso. Isso significa dizer que entre a fuga das conseqüências da
responsabilidade (que é o que muitas vezes ocorre, por exemplo, em se
tratando dos defensores das novas tecnologias contemporâneas) e a inflação
de uma responsabilidade infinita temos de encontrar o equilíbrio. Como diz
Ricoeur, “a completa negligência dos efeitos laterais da ação tornaria esta
desonesta, mas uma responsabilidade ilimitada tornaria a ação impossível”
(RICOEUR, 1995, p. 59).
65
4. CAPÍTULO III – RESPONSABILIDADE OBJETIVA E TEORIA DA
JUSTIÇA: A PROPÓSITO DAS OBSERVAÇÕES DE RICOEUR A RESPEITO
DE RAWLS
4.1. RAWLS E RICOEUR
Pelo exposto no capítulo precedente ficou claro que a discussão a
respeito do conceito jurídico de responsabilidade não está desvinculada da
teoria ética. Disso, a repercussão das idéias de Hans Jonas é um exemplo
paradigmático. Só que o lugar de destaque da teoria ética, no plano jurídico, é
o âmbito das teorias da justiça. É via teoria da justiça que podemos, assim
parece, encontrar uma via exequível para a ideia de responsabilidade e, em
específico, para a responsabilidade objetiva, tal como recepcionada pelo nosso
ordenamento jurídico.
Quando falamos em teorias da justiça estamos em um campo muito
abrangente e isso parece justificar a seguinte questão: por que, afinal, convidar
Rawls para este debate?
A primeira razão é a seguinte: nosso referencial teórico, Paul Ricoeur,
acredita que a teoria da justiça de Rawls oferece caminhos viáveis e trabalha
com questões pertinentes no que se refere à administração da justiça (isso a
despeito das reservas de Ricoeur no que se refere ao processualismo de
Rawls). Portanto, temos que ter em vista o fato de que a leitura que aqui se faz
de Rawls se sustenta na perspectiva de Ricoeur e é nessa medida que Rawls,
neste trabalho, nos interessa.
A segunda razão é a seguinte: Rawls faz uma interessante articulação
entre deontologia e a ideia de contrato (ainda que como ideal regulador).
Cremos que a figura do contrato é interessante do ponto de vista do direito civil
e a perspectiva deontológica recupera a ênfase ética kantiana. Ou seja: nessa
perspectiva a teoria ética trabalha juntamente com a teoria da justiça. Para o
66
tipo de abordagem que fazermos neste trabalho, tal ponto de partida é
importante.
Ricoeur observa que Rawls situa-se mais na descendência de Kant que
de Aristóteles (embora este pensador também, sem dúvida, tenha influenciado
Rawls). Isso implica dizer: mais na linhagem teórica da deontologia que da
teleologia26. Em Aristóteles a teoria da justiça compreende não apenas o
sentido amplo de virtude, mas principalmente o seu sentido particular: há a
justiça corretiva, mas também há a justiça distributiva (em relação,
teleologicamente, com a noção de Bem). Aristóteles é a grande referência
histórica do quadro teleológico do pensamento.
Em Kant, segundo Ricoeur, há uma clara inversão de prioridade: o justo
tem precedência sobre o bom. A ação justa não é aquela que se orienta pela
idéia de Bem, seja o bem para o indivíduo, seja o bem para a sociedade. Agir
com vistas a algo, ainda que esse algo seja bom, implica a instrumentalização
de alguém, e isso é totalmente imoral de um ponto de vista kantiano. Kant,
como dissemos, insere-se num quadro deontológico de pensamento. Essa
precedência do justo sobre o bom é recuperada por Rawls, só que ele tenta
oferecer uma versão contratualista e procedimental desta ideia.
Rawls, como era de se esperar, não repete Kant ipsis litteris. Em Kant a
ideia de justiça aplica-se às relações de pessoa a pessoa. Ricoeur observa
que, em Rawls, a justiça aplica-se prioritariamente às instituições. A justiça
seria a virtude por excelência das instituições. É justamente no plano
institucional que se sustentaria a ficção de um contrato social. Isso implica
dizer: a pré-condição de um estado de direito é que os indivíduos estabeleçam
um acordo fundado deontologicamente. O problema central de Rawls, segundo
Ricoeur, é o do encontro entre uma perspectiva deliberadamente deontológica
em matéria moral e a abordagem contratualista no plano das instituições. Em
resumo, a questão central da teoria da justiça de Rawls seria a seguinte: “Que
26
A deontologia é a teoria ética fundada no dever moral. O valor moral da ação, de um ponto de vista deontológico, está na motivação do agente: se a motivação considerar o dever de respeito ao outro, por exemplo, é moral, se a motivação, ao contrário, fundar-se em um objetivo egoísta, é imoral. A teleologia, por sua vez, considera a finalidade da ação. A ética teleológica busca uma espécie de Bem Supremo da comunidade moral.
67
tipo de laço haverá entre uma perspectiva deontológica e um procedimento
contratualista?” (RICOEUR, 1995, p. 62).
Um problema grave em se tratando da ideia de Bem Comum (que é uma
ideia teleológica), a despeito de quão bem recepcionada essa ideia tenha sido
pela tradição filosófica, é que com sua admissão corre-se o risco de que uma
perspectiva utilitarista, pela qual o que define a justiça é a maximização do bem
para o maior número de indivíduos, ganhe um espaço indevido na
administração da justiça. A obra de Rawls se dirige contra o utilitatarismo, tal
como, por exemplo, o de Stuart Mill. Na verdade, quando Rawls se refere à
teleologia, não está pensando em Platão ou Aristóteles, está pensando nos
autores utilitaristas, pois são eles que defendem abertamente a
instrumentalização de, pelo menos, uma parte da sociedade, em nome de um
bem maior.
A imoralidade do utilitarismo, rejeitada não só por Rawls, mas também
por outros pensadores liberais, como Dworkin, está no fato de as ideias
utilitaristas implicarem, tacitamente, uma espécie de princípio sacrificial, que
equivale a legitimar a estratégia do bode expiatório. Em outras palavras, para
as correntes utilitaristas não importa que alguns sejam sacrificados, desde que
o maior número se beneficie.
Suspendendo-se momentaneamente a abstração teórica, isso poderia
ser exemplificado pelo seguinte: o avanço tecnológico implica certos sacrifícios,
dentre os quais podemos citar os acidentes de trabalho. Pelo raciocínio
utilitarista, não se poderia responsabilizar o empregador, porque ele (por
exemplo, ao adotar novas tecnologias) apenas está acompanhando os avanços
da sociedade tecnológica contemporânea e a sociedade como um todo se
beneficia das novas técnicas de produção. Portanto, uma vez que há
benefícios em escalas tão abrangentes como, por exemplo: novos empregos,
maior produtividade, disponibilidade de novos produtos para atender as
demandas sociais, etc., é razoável que se admitam algumas perdas
necessárias para a manutenção do sistema, já que o mesmo, no geral,
funciona. É por isso que Ricoeur chama este raciocínio de estratégia do bode
expiatório.
68
De um ponto de vista deontológico o utilitarismo é insustentável. Ricoeur
esboça o que seria uma resposta kantiana ao utilitarismo:
o menos favorecido numa visão desigual de vantagens não deveria ser sacrificado, porque é uma pessoa, o que é uma maneira de dizer que, segundo o princípio sacrificial, a vítima potencial da distribuição seria tratada como um meio e não como um fim em si mesma (RICOEUR, 1995, p. 64).
O princípio kantiano da não-instrumentalização é fulcral aqui. Por isso
mesmo, reiteramos, a teoria da justiça não pode ser desvinculada do conteúdo
moral da discussão.
4.2. SOBRE A INFLUÊNCIA DAS LIBERDADES CIVIS NA SEPARAÇÃO
ENTRE MORAL E DIREITO
Costuma-se apontar o positivismo jurídico como sendo o grande
responsável pela separação clássica e até didática entre moral e direito. Mas
isso é somente em parte verdadeiro. A conquista das liberdades civis, tal como
proclamadas na Revolução Francesa teve um forte peso nessa questão. Talvez
as ideias positivistas sejam mais conseqüência que causa desta rígida
separação. A proclamação das liberdades civis implicaram o reconhecimento
de que o Estado (e, portanto, a norma jurídica) não deve intervir na consciência
religiosa e nas convicções políticas e ideológicas de seus súditos. A maior
parte das constituições ocidentais, além disso, apresenta o Estado
correspondente como sendo laico. Costuma-se admitir, não sem razão, que a
relação da moralidade com a religião e com as convicções das pessoas seja
muito forte. Esta é, a nosso ver, a mais forte razão pela qual muitos
doutrinadores fazem questão de demarcar bem os territórios: o moral e o
jurídico.
Este trabalho, contudo, não é uma investigação das aproximações ou
distanciamentos dos conceitos de moral e de direito. Nosso interesse,
repetimos, nesse campo, se dá em função da intersecção que este problema
tem com o campo das teorias da justiça. No caso específico deste capítulo,
nosso interesse refere-se à pertinência da ideia processual de Rawls, a luz da
69
investigação de Paul Ricoeur. Por que Rawls abandona, ou tenta abandonar, a
ideia de Bem no âmbito da fundamentação da justiça? É possível, de fato, que
uma teoria da justiça não se fundamente em uma moralidade pré-concebida? A
partir disso queremos refletir sobre a contribuição desta teoria da justiça nas
questões de responsabilidade civil impostas pela contemporaneidade.
4.3. A REGRA MORAL E O DIREITO CIVIL: RIPERT
A tese da indissociabilidade da discussão moral em relação as
obrigações civis foi defendida, muito mais do ponto de vista jurídico que
filosófico, por George Ripert em sua premiada obra A regra moral das
obrigações civis, que aqui citamos justamente por se tratar de um jurista e não
de um filósofo. Ripert diz que a regra moral cria
(...) a proteção necessária devida ao contratante que se encontra em situação de inferioridade, e que é explorado pela outra parte; ensina que a justiça deve reinar no contrato e que a desigualdade das prestações pode ser reveladora da exploração dos fracos; lança a dúvida sobre os acordos que são a expressão duma vontade demasiado poderosa dominando uma vontade enfraquecida. (RIPERT, 2009, p. 24).
Aqui vemos, mais uma vez, o paradigma da vulnerabilidade, destacado
no capítulo anterior. É muito mais fácil instrumentalizar a parte mais frágil da
relação. A administração da justiça, por isso mesmo, não deve, também
segundo Ripert, ignorar esse tipo de inquietação moral. Ripert, além disso,
sustenta que não existe nenhuma diferença de domínio entre a regra moral e a
regra jurídica. Nem se trata de estabelecer diferenças de natureza ou de fim.
Isso se dá porque “o direito deve realizar a justiça, e a idéia do justo é uma
idéia moral” (RIPERT, 2009, p. 27 – o destaque é meu). Haveria, contudo,
uma diferença de caráter: há, na regra jurídica, maior peso no que se refere à
ideia de sanção exterior. Deve-se obedecê-la ou sofrer a sanção. Embora haja,
também, sanções morais, estas não têm a mesma força cogente que se
verifica no caso da regra jurídica.
70
4.4. AUTONOMIA E CONTRATO
Ricoeur observa que já em Kant é possível se verificar a sugestão
segundo a qual haveria uma ligação entre autonomia e contrato. Contudo, essa
ligação é sugerida e não justificada pelo filósofo de Königsberg. Por isso,
Ricoeur entende que Rawls tenta resolver um problema deixado sem solução
por Kant, qual seja,
como passar do primeiro princípio da moralidade, a autonomia, compreendida no seu sentido etimológico (sabendo que a liberdade, enquanto racional, dá a si mesma a lei como regra de universalização das suas próprias máximas de ação), ao contrato social por meio do qual uma multiplicidade de indivíduos abandona sua liberdade exterior com vistas a recuperá-la enquanto membros de uma República? (RICOEUR, 1995, p. 62).
Em outras palavras: trata-se de compreender em que medida é possível
conciliar autonomia, portanto liberdade, com as instituições do Estado que têm
em vista a garantia da ordem social (ilustrada pela ideia de contrato social).
Rawls objetiva libertar a justiça da tutela do bem no que diz respeito às
instituições, tal como Kant o fez no plano moral. Não é o Bem Social que se
busca, mas a regra procedimental de administração da justiça. Contudo, cabe
aqui uma importante observação: autonomia, em Kant, implica a auto-
imposição da lei moral e não o estabelecimento de uma norma contratual que,
de agora em diante, deverá valer entre as partes, mesmo que seja imoral. O
problema da autonomia é fulcral do ponto de vista da filosofia moral kantiana.
Agora, o que Rawls tenta fazer é articular essa autonomia com a necessidade
das instituições no cerne da administração da justiça.
4.5. PETIÇÃO DE PRINCÍPIO?
A impressão que se tem da leitura que Ricoeur faz de Rawls é a de que
haveria, tacitamente, uma certa circularidade no argumento de Rawls. Ora,
recapitulemos: Rawls, claramente, defende um ponto de vista processual da
justiça. Isso implica dizer o seguinte: A justiça não é um conceito a ser
71
“descoberto” e aplicado pelos operadores da justiça. Trata-se de um conceito a
ser acordado “contratualmente”. É o correto procedimento que definiria o justo.
É claro que estamos, nessa breve explicação, simplificando um pouco as
coisas. Rawls faz todo um exercício teórico para sustentar seu ponto de vista.
Ele tenta fundamentar um critério imparcial de equidade. Justamente por ser
pretensamente imparcial, tal critério não poderia se sustentar em uma
concepção pré-concebida de justiça, mas numa concepção construída
contratualmente pelos participantes da comunidade política, concepção essa
que leve em conta todos os interesses em jogo e que, por isso mesmo,
assegure direitos fundamentais. Segundo Rawls, no mínimo, um conjunto de
direitos básicos devem ser assegurados, do contrário, estaria claro que os
interesses de pelo menos algum grupo da sociedade civil teria sido ignorado.
Pois bem, o problema é que, segundo Ricoeur, não é bem isso o que
Rawls faz em sua extraordinária construção teórica. E poderíamos mesmo
dizer, felizmente, não é isso o que ele faz.
Embora Rawls ache que um princípio de justiça equânime só possa ter
sua origem em uma construção positiva ou em uma espécie de convenção
contratual, ele pressupõe, em toda a sua argumentação, segundo Ricoeur, a
famosa regra de ouro: não faças aos outros o que não queres que façam a ti
(que é, na verdade, uma regra moral). Toda a justificação, supostamente
apenas processual da justiça, parte deste ponto e não pode abandoná-lo sob
pena de desmoronarem os principais argumentos de Rawls. Por isso mesmo,
Ricoeur diz que Rawls retira a sua dinâmica do próprio princípio que pretende
engendrar. Poderíamos chamar isso, se recorrermos às lições de lógica, de
uma petição de princípio.
Mas não é o objetivo do filósofo francês desqualificar os argumentos de
Rawls. Pelo contrário, é como se ele encontrasse, na falha argumentativa de
Rawls, a maior relevância de suas ideias. Diz Ricoeur:
É a circularidade do argumento de Rawls que, em minha opinião, constitui um argumento indireto a favor da procura de uma fundamentação ética do conceito de justiça. Por conseguinte, é essa circularidade que estará em causa ao longo da minha investigação da Teoria da Justiça de Rawls (RICOEUR, 1995, p. 63 – o destaque é meu).
72
Assim, Ricoeur acha que o processualismo de Rawls se beneficia,
tacitamente, de sua pressuposição ética. Em outras palavras, Ricoeur sustenta
o argumento segundo o qual Rawls, a despeito de si mesmo, não é um
processualista puro em termos da fundamentação da justiça, como se
pretende.
4.6. JUSTIÇA COMO EQUIDADE
Se buscarmos a essência da justiça, como queriam os gregos, segundo
Rawls, estamos com um sério problema. Tal como Rousseau, Rawls diz que,
nesse caso, seriam necessários deuses para dar leis aos homens, pois só
seres com natureza divina poderiam ter uma intuição correta e inquestionável
do que seja justo em si mesmo. A tese da justiça como equidade seria a
solução terrestre para este dilema.
Grosso modo, podemos dizer que equidade, em Rawls, resulta da
deliberação em condições de igualdade absoluta. Só que isso, sabemos, não
existe na vida real. Por isso mesmo, segundo Rawls, é preciso que se postule a
ficção da posição original como uma espécie de princípio heurístico que oriente
a investigação. Ainda que constitutivamente não se verifique a igualdade
absoluta (presente na ideia de posição original), posto que vivemos em uma
sociedade desigual, a ideia, em si, tem uma função regulativa importante.
Ideias regulativas ou princípios heurísticos, sabemos, têm uma função
importante nas ciências em geral. Por exemplo, no estudo da navegação, em
muitos cálculos, parte-se do pressuposto de que a terra é redonda, embora ela
não seja uma esfera perfeita. Tal postulado ajuda objetivamente, mesmo que
não seja plenamente correto do ponto de vista empírico. Além disso, na
geometria analítica parte-se de diversos postulados que, por definição, não
podem ser provados. Trata-se de ideias que, embora sem estatuto ontológico
ou validade empírica, não deixam de ser fundamentais, por orientarem a
investigação e darem uma direção robusta em fundamentação teórica à
resolução de uma série de problemas.
73
Estamos no campo das teorias da justiça, reiteramos, e, nesse âmbito,
como em qualquer âmbito teórico, temos que trabalhar com ideias regulativas.
Ora, não é diferente com a ideia de posição original. Rawls preocupa-se muito
com a chamada igualdade do ponto de partida. Um acordo só é equitativo se a
situação de partida for equitativa. Nas teorias contratualistas clássicas a
situação de partida era o chamado estado de natureza, que, por sua vez, foi
compreendido de diversas formas por diferentes autores. De todo modo,
independentemente de como se compreenda o estado de natureza, segundo
Ricoeur, a ideia geral é a de que trata-se de uma situação de igualdade27. Em
Rawls a ideia de igualdade inicial sustenta-se na fábula da posição original, que
substituiria a ideia de estado de natureza. Mas em que consiste, afinal, a
posição original?
4.7. A POSIÇÃO ORIGINAL E OS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA
A situação hipotética da posição original (que é, como vimos, um
princípio heurístico) admite que certos agentes devam estabelecer por
consenso os princípios da justiça aplicáveis à sociedade futura. Quem se
encontra nesta posição original é dotado do que Rawls chama de véu da
ignorância, que explicaria a imparcialidade do resultado. Véu da ignorância
significa, em linhas gerais, que os agentes se encontram privados de certos
conhecimentos, mesmo que, naturalmente, devam saber certas coisas para
poder discutir racionalmente. Não devem, por exemplo, conhecer a sociedade
a qual pertencerão, qual será a sua posição social, sua sorte na distribuição
dos dotes naturais, os dados particulares de seu plano racional de vida. Enfim,
deverão conhecer apenas fatos gerais acerca da sociedade humana dos
princípios da economia política e das leis da psicologia humana. Tais
27 Em Hobbes, por exemplo, o estado de natureza é um estado de guerra de todos contra todos. Todos são iguais no sentido de estarem igualmente desamparados. Todos saem perdendo pelo receio da morte violenta. Por isso, para Ricoeur, o problema de Hobbes não é o da justiça, mas o da segurança. Já em Kant ou em Rousseau, o estado de natureza se caracteriza pela falta de arbitragem entre reivindicações opostas.
74
indivíduos deverão chegar por consenso aos princípios da justiça, que, por fim,
acabariam sendo, segundo Rawls, os seguintes:
Primeiro princípio: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo
sistema total de liberdades básicas, compatível com um sistema similar de
liberdade para todos.
Segundo princípio: As desigualdades econômicas e sociais devem estar
estruturadas de maneira que sejam para: a) maior benefício dos menos
avantajados, de acordo com um princípio de economia justo (princípio de
diferença), e b) unido a que os cargos e as funções sejam acessíveis a todos,
sob condições justas de igualdade de oportunidades.
Um conceito que ganhou força sem precedentes no pensamento liberal
com a fábula da posição original foi o conceito de igualdade. Costuma-se dizer
que a tradição liberal dá ênfase ao conceito de liberdade, só que,
principalmente com Rawls, a liberdade não pode ser pensada dissociada da
igualdade. Com Dworkin isso se torna ainda mais extremo: a igualdade não só
é um conceito importante ao lado da liberdade, pois trata-se da virtude
soberana da comunidade política. Isso porque os pensadores liberais se deram
conta de que os conflitos das sociedades democráticas e constitucionais só
podem ser resolvidos se a devida ênfase na igualdade distributiva for dada. Em
Rawls o sistema social é primitivamente um processo de distribuição:
distribuição de papéis, de estatutos, de vantagens e desvantagens, de
benefícios e de encargos, de obrigações e de deveres. São as instituições que
têm essa função distributiva. Por isso mesmo a sociedade seria uma espécie
de fenômeno consensual-conflitual: há diversas formas de distribuir vantagens
e desvantagens.
O argumento de Rawls é complexo: ele defende um princípio claramente
igualitário (1º) e outro não-igualitário (2º)28. As liberdades igualitárias da
cidadania são iguais para todos: liberdade de expressão, de reunião, de voto e
de elegibilidade para funções públicas. O primeiro princípio deixa isso claro,
28 Ricoeur afirma que “o segundo princípio aplica-se a uma condição de desigualdade e postula que certas desigualdades devem ser consideradas preferíveis mesmo a uma repartição igualitária” (RICOEUR, 1995, p. 73). Em outras palavras, o segundo princípio prevê a partilha desigual, porém justa.
75
mas não é o primeiro princípio de Rawls que nos interessa aqui. O segundo é
mais importante para o nosso debate. O segundo princípio pressupõe que a
comunidade política é, na verdade, desigual e propõe um princípio de diferença
que equilibre essa desigualdade de forma a que ela não se torne destrutiva
para a parte menos favorecida do sistema social. Pelo segundo princípio
podemos notar que Rawls supõe que uma sociedade justa é uma sociedade
desigual. Isso se deve ao fato de ele achar que com certas diferenças
socioeconômicas, a sociedade é mais eficiente, produz mais bens que outra
em que supostamente há igualdade total. A existência de mais bens a repartir
possibilita que os indivíduos pior situados possam sair beneficiados em relação
aos indivíduos da outra situação.
Não por acaso Rawls sofre acusações opostas: os liberais tradicionais o
acusam de priorizar os desfavorecidos e os socialistas o acusam de fomentar a
desigualdade. Contudo, o fato é que a ordem dos princípios não é aleatória: ela
foi escolhida cuidadosamente. Há direitos que são iguais para todos no sentido
comutativo (1º princípio) e que, por isso, não são passíveis de negociação e
são formalmente iguais para todos os membros da comunidade política. Por
outro lado, há direitos que só podem ser mensurados e, além disso, em relação
aos quais só se pode ter uma noção da dimensão da partilha se for usado um
princípio de diferença que considere os desiguais, desigualmente, na medida
da sua desigualdade.
O segundo princípio da Justiça se opõe, diametralmente, à versão
utilitarista da justiça: “maximizar a parte minimal numa situação de partilha
desigual; esta regra, a que chamaremos regra do maximim, é completamente
diferente da regra de maximizar o interesse da maioria” (RICOEUR, 1995, p.
64). A regra do maximim é fulcral em Rawls. Sua ideia básica, conforme esta
citação, é a de que a parte minimal deve ser maximizada. Não se trata de se
buscar o melhor para a maioria, mas de se buscar o mínimo maximizado para
quem está em desvantagem. Em outras palavras, trata-se de se reduzir a
desigualdade ao mínimo possível, sendo que esse mínimo, inclui os bens
sociais primários em um nível maximizado. Segundo Ricoeur, o argumento do
maximim mostra que a construção aparentemente artificial ou convencional dos
princípios de justiça é regida por um princípio moral. Embora Rawls tente
76
elaborar um argumento técnico fundado na teoria da decisão, ele, na verdade,
apenas racionaliza o princípio moral pressuposto, daí a circularidade do
argumento apontada por Ricoeur.
Como dissemos no início deste capítulo, destacado da regra de ouro, os
argumentos de Rawls perderiam o sentido. Suas ideias buscam uma espécie
de equilíbrio refletido da nossa pré-compreensão da justiça e da injustiça, posto
que, conforme chama a atenção Ricoeur, o nosso sentido de injustiça é mais
aguçado que o de justiça. Muitas vezes, a despeito do quanto tentemos
racionalizar, a justiça nos escapa. Contudo, é mais difícil não escutar o grito da
vítima, diante de uma situação claramente injusta. Enquanto o Justo muitas
vezes parece indefinido, o Injusto se mostra com clareza inequívoca. As raízes
desta percepção estariam naquilo que Rawls chama de convicções bem
ponderadas.
4.8. CONVICÇÕES BEM PONDERADAS E DEBATE INTERSUBJETIVO
A ideia de convicções bem ponderadas é esclarecedora. Ela mostra a
pertinência da justiça processual como asseguradora da coexistência de visões
de mundo rivais. Uma sociedade democrática precisa conviver com ideias
divergentes de bem. A busca do Bem Comum, por isso mesmo, se desgastou.
Deve-se, segundo Rawls, buscar um processo justo e não o Bem Comum.
Enfim, já temos, sem dúvida, uma pré-compreensão da justiça, destaca
Ricoeur, mas ela precisa ser lapidada por meio da erradicação contínua de
preconceitos e influências ideológicas. Contudo, as convicções bem
ponderadas não devem ser entendidas como estando fundadas em
dogmatismos ossificados. Bem ponderado significaria, dentre outras coisas,
aberto à crítica do outro. Trata-se de, segundo Ricoeur, na verdade, de
submeter-se o raciocínio à regra da argumentação, no sentido de Habermas.
Nesse ponto da argumentação de Ricoeur, a referência a Habermas é
explícita. E, por isso, cabem aqui, algumas ponderações.
77
É com base na racionalidade comunicativa que podemos, segundo
Habermas, pensar no que ele chama de moralização da natureza humana.
Trata-se de uma fundamentação da moral que não é ontológica ou dedutiva.
Racionalidade comunicativa envolve intersubjetividade. Envolve a superação
da filosofia centrada no sujeito para uma filosofia centrada no mundo da vida,
no ser-com (mit Sein)29. Habermas se dá conta de que o processo de formação
de consenso é como uma tarefa sem fim, um ideal regulador que sempre está
inacabado. Contudo, o ponto universalista da ética é, segundo Habermas, a
racionalidade comunicativa. Só é possível chegarmos às leis gerais, por
exemplo, por meio de um determinado debate. Leis, em uma sociedade
democrática, são resultado de um processo de argumentação. Habermas faz
uma interpretação processual (e, nesse ponto, a semelhança com Rawls deve
ser sublinhada) e comunicativa do imperativo categórico kantiano. Nas palavras
de Delamar Dutra
Nós não temos como nos certificarmos privadamente se nossa vontade é racional ou não. A racionalidade está ligada à intersubjetividade, onde se forma e se descobre uma vontade como racional. A racionalidade comunicativa é formada pela intersubjetividade linguisticamente mediada e é aí que se descobre o seu conteúdo normativo. Vontade racional é uma vontade cujo móvel de sua ação se encontra numa forma que poderia ser aceita por uma comunidade de comunicação com base em razões, portanto, por normas passíveis de universalização. (DUTRA, 2005, p. 158).
Daí Habermas pressupor a ideia de uma comunidade ideal, como uma
espécie de ilusão constitutiva ou ideia reguladora. A comunidade ideal
habermasiana pode ser interpretada como um tipo puro, no sentido de Weber.
O grande desafio do direito é a resolução do problema da integração de
mundos da vida pluralizados. As sociedades liberais convivem com o
pluralismo ideológico, são sociedades de maiorias e minorias. Um Estado
Constitucional Democrático, além disso, se pretende inclusivo. Este é o pano
de fundo da moralização da natureza humana, isto é, da recuperação do
pensamento ético que não encontra mais auxílio na tradição metafísica. A
dignidade humana, argumenta Habermas, não é uma propriedade que se pode
possuir por natureza. Tal moralização só pode encontrar objetividade, segundo
29
Habermas aproveita a noção heideggeriana de “mit-Sein”, ou “ser-com”, isso porque o homem, do ponto de vista de sua existência, ou “Dasein”, é uma existência cuja significação pressupõe a intersubjetividade.
78
Habermas, em um processo jurídico de normatização discursiva. A moral, em
Habermas, é completada pelo direito.
A partir dessa perspectiva, impõe-se a questão de saber se a tecnicização da natureza humana altera a autocompreensão ética da espécie de tal modo que não possamos mais nos compreender como seres vivos eticamente livres e moralmente iguais, orientados por normas e fundamentos (Habermas, 2004, p. 57).
Habermas sustenta que essa discussão só faz sentido enquanto ainda
tivermos algum interesse existencial em pertencer a uma comunidade moral.
Comunidade essa cujo abrigo metafísico e religioso já não serve mais. Pelo
menos não serve como argumento de validade intersubjetiva. Mesmo as
pessoas religiosas, no debate público, para se mostrarem razoáveis, traduzem
seus argumentos para uma linguagem laica, a fim de mostrarem a pertinência
de suas ideias. A religião adaptada a uma sociedade liberal busca razões que
impliquem aceitabilidade de forma universal, independentemente da
necessidade de doutrinação ou proselitismo. As imagens religiosas e
metafísicas do mundo perderam a sua força universal a favor de um pluralismo
ideológico e tolerante. Isto é, a favor do discurso dos direitos humanos.
Mantivemos, segundo Habermas, o código binário dos julgamentos morais do
certo e do errado. Queremos, sem dúvida, nos manter assim, o que prova que
o relativismo ético não tem lugar na Ciência Jurídica. Buscamos, assim,
premissas racionais e de direitos humanos, que nos permitam conviver com a
dignidade humana e a solidariedade social.
Essa digressão serve para mostrar o seguinte: a ideia de justiça,
qualquer que seja ela, subjacente nos debates de responsabilidade civil, tem
suas raízes na intersubjetividade, seja esta entendida como um processo
hermenêutico (Ricoeur), seja esta entendida como racionalidade comunicativa
(Habermas), ou seja esta entendida como convicção bem ponderada (Rawls).
Mas em que, tudo isso nos ajuda a encaminhar os debates em torno da
questão da responsabilidade objetiva? É o que tentaremos mostrar no capítulo
seguinte.
79
5. CAPÍTULO IV – EM BUSCA DE UM CRITÉRIO GENÉRICO DE
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
5.1. PEQUENO ESBOÇO DO PROBLEMA
É, realmente, sustentável um critério geral de responsabilidade objetiva?
Ora, se pensarmos em um critério rigoroso, esse critério é apenas uma
idealização. Cláusulas gerais sempre dão margem para discussão. Em se
tratando de uma ideia que implica certa quebra de paradigma, a aceitação de
uma norma de aplicação genérica (isto é, uma cláusula geral, no sentido de
Engisch) oferece ainda mais dificuldades. Mas a discussão, em si mesma, não
é algo ruim, afinal, é a discussão que nos leva às “convicções bem
ponderadas” (RAWLS). É o debate intersubjetivo, enfim, comprometido com a
não-instrumentalização do outro que pode sustentar um argumento racional, no
sentido de Habermas.
O sistema brasileiro atual de responsabilidade objetiva genérica, sem
dúvida, precisa ser aperfeiçoado. Na verdade, esse não é só um problema
brasileiro, trata-se de um problema das legislações ocidentais como um todo.
Algumas questões insistentemente se impõem, como a de se buscar um
critério de responsabilização, em caso de atividade de risco, que não dependa
unicamente das idiossincrasias do magistrado. Ou ainda, a de se compreender
melhor o escalonamento dos riscos (já que toda atividade humana envolve
riscos), de forma a se definir os que são passíveis de aplicação da cláusula
geral e os que não são. A despeito destas e outras complicações ligadas ao
problema da admissão de uma cláusula geral de responsabilidade objetiva,
entendemos que a recepção da teoria do risco pelo novo diploma civil brasileiro
representa um avanço. Contudo, um avanço que depende do senso de justiça
do aplicador da lei.
Nesse ponto, há um dilema que a prática jurídica não deve negligenciar,
qual seja, não admitir que a vítima, injustamente, fique sem reparação e,
ao mesmo tempo não promover o surgimento de uma sociedade de
80
vítimas. Este segundo ponto é tão importante quanto o primeiro e queremos,
aqui, comentá-lo, pois esse é um dos tópicos destacados por Paul Ricoeur (ao
tratar dos efeitos perversos da filosofia do risco) que consideramos nuclear
neste trabalho. O modus contemporâneo de atuação humana traz, conforme já
destacamos, sem dúvida, novos riscos e, além disso, de maior gravidade. Mas
isso, segundo Ricoeur, não deve ser motivo para uma espécie de vitimização
aleatória.
A doutrina, como um todo, no geral, destaca que, em boa parte dos
casos, a normalidade média estabelecida pelas estatísticas, os conhecimentos
científicos ou técnicos e mesmo a experiência comum são a base de
determinação do que seja uma atividade que oferece risco para os direitos de
outrem. As maiores dúvidas estão em certas zonas cinzentas, como as da
biotecnologia e da nanotecnologia e da tecnologia nuclear. Por isso mesmo,
nestes casos, a tendência é o estabelecimento de legislação especializada.
Mas além dessas há, é claro, uma infinidade de novas invenções humanas,
bem como novas aplicações tecnológicas, cujo escalonamento do risco não é
tão claro. Segundo Schamps (SCHAMPS, 1998 apud HIRONAKA, 2005),
nestes casos, isto é, nos casos em que não se tem a determinação ex ante
(como seria desejável) de níveis de periculosidade, é preciso que se
estabeleça uma determinação ex post (determinação da periculosidade
posterior ao dano). A jurisprudência italiana, segundo Schamps, trabalha com o
raciocínio ex post, pelo qual a simples intensidade da ocorrência danosa
demonstra que ao caso concreto se aplica a responsabilização objetiva.
Contudo, a caça ao responsável não deve implicar a formação de uma
sociedade de vítimas, pois onde todos não vítimas, ninguém é responsável.
Ricoeur, sem dúvida, está certo.
As antigas ideias, claro está, estão desgastadas, mas as novas não
estão amadurecidas. Por isso mesmo, não é nosso propósito, aqui, resolver um
problema que os principais doutrinadores ainda não resolveram. Podemos,
contudo, oferecer pistas, que, talvez, nos indiquem rumos.
Sem dúvida, no geral, a doutrina e a jurisprudência, até agora, não
apresentaram respostas mais ou menos uniformes para o problema da
81
responsabilidade objetiva, pelo contrário, suas respostas são incertas e
contraditórias. Isso porque o homem, como empreendedor de atividades
econômicas, logrou êxito técnico-instrumental, mas ao custo do aumento da
insegurança. Hoje pode-se dizer que o risco sobrecarrega o direito. A
sociedade tecnológica contemporânea é fértil na criação de riscos. O Direito e
mesmo as ciências naturais não têm sido capazes de acompanhar essa
dinâmica imposta pelo progresso tecnológico. As ciências naturais não criam
soluções na mesma velocidade em que surgem os problemas por elas
causados. Isso dá, sem dúvida, uma sensação de insegurança. Essa é a
heurística do medo, de Hans Jonas. É notório o aumento, tanto quantitativo
como qualitativo dos acidentes gerados por atividades de risco. Por isso
mesmo, o instituto da responsabilidade civil é um dos que mais evolui, com
maior intensidade e dinamismo, especialmente na esfera jurisprudencial.
Uma vez que o sistema brasileiro é, como já sublinhamos, um sistema
misto de responsabilidade, consideramos improcedente a questão de se
discutir o que é mais importante ou proeminente no âmbito da responsabilidade
civil: se a culpa ou o risco. Não achamos que a proeminência de um critério
sobre o outro seja a via adequada de solução das demandas sociais ligadas ao
problema da responsabilização. O problema da responsabilidade civil é,
principalmente, o da prevenção e reparação do dano injusto. Injusto, entenda-
se, em dois sentidos básicos: por ter sido injustamente causado ou por ser
injusto que o suporte quem o sofreu. O Código Civil de 2002, em seus artigos
186 e 927, caput, conservou, sem dúvida, a regra geral da responsabilidade
civil subjetiva, isto é, a responsabilidade fundada na teoria da culpa. Entretanto,
conforme já destacamos, o parágrafo único do artigo 927 do novo Código Civil
estabelece uma cláusula geral da responsabilidade objetiva. Recepciona,
portanto, oficialmente a teoria do risco e, por isso mesmo, a obrigação de
indenizar ainda que a conduta não seja culposa, nos casos de atividade de
risco. O referido dispositivo diz, repetimos, que
haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para o direito de outrem.
82
A responsabilidade objetiva, portanto, tal como apresentada pelo
parágrafo único do art. 927, incide nos casos em que a ação, nexo de
causalidade e dano se materializam independentemente de culpa30.
Por isso mesmo, como vimos, na busca de um fundamento para a
responsabilidade objetiva, os juristas conceberam a teoria do risco, no final do
século XIX, quando os avanços técnicos que acompanharam a Revolução
Industrial evidenciavam o problema da reparação dos danos provocados por
acidentes de trabalho. Foi o progresso técnico, sem dúvida, que impulsionou as
reflexões que reconfiguraram o campo da responsabilidade civil. Mesmo nos
dias atuais o progresso técnico-científico obriga os juristas a repensarem sua
atividade e os critérios de responsabilização.
O progresso científico, contudo, se dá na medida em que incrementa o
capital, isto é, na medida em que dá sustentação ao sistema econômico. A
ciência não é um empreendimento neutro e grande parte do seu
desenvolvimento requer o patrocínio de grandes corporações econômicas.
Portanto, é importante deixar bem pontuado que a ideia de um critério geral de
responsabilidade objetiva parte das seguintes ideias (de uma forma ou outra já
comentadas, mas aqui recapituladas para fins do encaminhamento de nossas
observações finais): a necessidade de reparação de um dano, cuja não-
reparação se entende como sendo injusta; exigir a probatio diabólica da culpa
implica, muitas vezes, o não ressarcimento do dano, dada a desigualdade de
poder entre as partes envolvidas na lide; responsabilizar não é, principalmente,
provar a culpa, mas prevenir e ressarcir o dano; quem lucra com a atividade
econômica deve arcar com os seus riscos, e isso inclui não apenas os riscos
patrimoniais, mas também os riscos que envolvem danos à pessoa humana e
ao meio-ambiente; a dignidade da pessoa humana tem precedência sobre o
progresso técnico-científico. Não se pode, razoavelmente, admitir o argumento
utilitarista do bode expiatório em nome de um Bem Comum, qualquer que seja
ele. Poderíamos ainda acrescentar: é imoral que seja assim; não se pode
esperar sempre por uma solução legal casuística. É preciso que se tenha um
30
A maior parte da doutrina considera que, mesmo nos casos de responsabilidade objetiva fundada na teoria do risco, há a possibilidade de excludentes, principalmente no caso de ficar demonstrado que não houve ligação entre o dano e a atividade em questão. Ou seja, considera-se que a ausência de culpa não implica a ausência de nexo causal.
83
critério geral para suprir as lacunas da legislação especializada, de forma que a
vítima não fique desamparada, na ausência de lei específica; a
responsabilidade civil não deve ser um instrumento de exclusão social, mas de
garantia de direitos sociais para todos os cidadãos, de forma a assegurar o
equilíbrio e o reequilíbrio da vida em sociedade.
Embora a responsabilidade objetiva seja apresentada como corolário da
chamada teoria do risco, é importante dizer o seguinte: no direito civil, teoria do
risco não é um conjunto de postulados ou premissas bem definidas e
elaboradas. Nesse âmbito, a doutrina e a jurisprudência mais parecem uma
torre de babel. Não há um grande teórico que tenha apresentado e estruturado
uma determinada teoria do risco. Há muitas ideias sobre o que seja o risco
para o direito civil e as principais foram apresentadas no capítulo I deste
trabalho. Basta, aqui, recapitular que no encaminhamento dos debates em
torno das questões ligadas ao âmbito da responsabilidade objetiva, a teoria do
risco-criado e a do risco-proveito têm proeminência. Contudo, a ideia de risco
requer um diálogo interdisciplinar. O direito não é uma ciência pura. Falar de
risco implica convidar cientistas sociais e naturais para o debate. Risco não é
um conceito originalmente jurídico. É jurídica, contudo, a articulação deste
conceito com a ideia de responsabilidade. Isso não significa, contudo, que o
jurista deva esperar que uma solução acabada para o índice dos riscos de uma
atividade seja apresentada pelas demais ciências, até porque todas as ciências
são cheias de lacunas e incertezas das quais o sofrimento humano não pode,
ou não deve, ser vítima. Risco, em direito civil, conforme já destacamos, não
implica apenas elevada probabilidade (critério quantitativo) de dano, implica
também possibilidade de ocorrência de um dano grave (critério da intensidade
do dano potencial). São coisas diferentes afirmar, por exemplo, que uma
determinada atividade encerra elevada probabilidade de ocorrência de
acidentes de trabalho e afirmar, por exemplo, que determinada atividade
encerra a possibilidade (não probabilidade) de ocorrência de um dano grave.
No que se refere ao raciocínio quantitativo, podemos dar o seguinte
exemplo: a Base de Dados Históricos do Anuário Estatístico da Previdência
Social mostra que no ano de 2006 foram registrados 503.890 acidentes de
trabalho. Destes, 403.264 foram acidentes com prensas. Não é preciso muito
84
raciocino para saber, de posse desses dados, que atividades com prensas são
atividades que implicam, por sua natureza, risco para a integridade física do
trabalhador (ANUÁRIO ESTATÍSTICO DE ACIDENTES DE TRABALHO, 2006,
[Brasil]. In: TUPONI JUNIOR, Benedito Aparecido. Responsabilidade civil
objetiva no ato do trabalho e atividade empresarial de risco. Curitiba,
Juruá, 2010). No que se refere ao critério da intensidade do dano potencial,
basta o exemplo da atividade da aviação, que oferece pouca probabilidade de
dano físico ao passageiro, mas, caso ocorra essa ínfima possibilidade, ainda
que a mesma seja pequena, o dano pode ser gravíssimo. Também se trata,
sem dúvida, de uma atividade que, por sua natureza, implica risco.
5.2. BECK E A SOCIEDADE DO RISCO
Sempre que se fala de risco em sociologia jurídica Ulrich Beck é uma
referência obrigatória. Beck sustenta, em seu livro Risikogesellschaft: auf dem
Weg in eine andere Moderne, que o paradigma da desigualdade, materializado
no âmbito de uma lógica de distribuição de riquezas, foi substituído, por uma
lógica de distribuição de riscos. Essa seria uma face daquilo que Beck chama
de segunda modernidade. Na modernidade avançada é notório que a produção
de riqueza seja acompanhada da produção de riscos e, por isso mesmo, os
conflitos resultantes da distribuição de bens em razão da escassez são
acompanhados pelos problemas que surgem da produção de riquezas. O
crescimento das forças produtivas teria provocado uma inovação, sem
precedentes, nas potenciais ameaças as quais a humanidade é exposta.
Portanto, segundo Beck, enquanto no paradigma da desigualdade material, em
que Marx e Weber tratavam da questão de como distribuir a riqueza
socialmente produzida de forma justa e legítima, o problema no paradigma do
risco é saber como distribuir os riscos resultantes do próprio processo de
modernização, de modo que este não exceda os limites do que é tolerável
sociologicamente, psicologicamente, eticamente, medicamente e
ambientalmente falando.
85
Beck introduz a noção de modernidade reflexiva. A ideia reinante na
primeira modernidade, fundada no Iluminismo, era a de controle da natureza,
de libertação da humanidade através da razão e do desenvolvimento
tecnológico. Basta lembrar a célebre máxima de Bacon, para quem knowledge
is power (saber é poder). No paradigma do risco, contudo, segundo Beck, a
modernidade se torna reflexiva, isto é, ela se transforma em seu próprio tema
de reflexão. Beck chama a atenção para o gerenciamento político e econômico
dos riscos criados pelo seu próprio projeto de progresso da humanidade.
De nossa parte entendemos ser pertinente a maior parte das
observações de Beck, mas, ainda assim, pouco inovadoras (já que a crítica que
ele faz à sociedade tecnológica moderna já havia sido feita, talvez com mais
contundência, pela Escola de Frankfurt) e, além disso, pouco indicativas de
vias de solução para os problemas apresentados. Talvez, suas observações,
ajudem bastante, principalmente o encaminhamento de uma série de
discussões presentes no âmbito do direito ambiental. Mas em termos das
relações privadas, não dá para falar de risco nos mesmos termos de Beck,
porque, do contrário, teremos os mesmo problema que apontamos no
pensamento de Hans Jonas: ausência de critérios de reparação dos danos.
5.3. UM ESBOÇO DE SOLUÇÃO
Seria muita pretensão, de nossa parte, apresentar a solução para o
problema da reparação danos causados por atividade de riscos via cláusula
geral de responsabilidade objetiva genérica. Esse é um problema com o qual
os principais pesquisadores da área ainda se ocupam seriamente. As opiniões
doutrinárias e jurisprudenciais a respeito chegam a colidir de forma
irremediável. Mas podemos oferecer algumas pistas com base em nossa
pesquisa que, eventualmente, possam ajudar no encaminhamento das
discussões.
Primeiro, queremos destacar que não parece razoável deixar que a
definição de risco dependa das idiossincrasias do julgador. É notório que o uso
86
retórico das palavras pode conduzir o debate a aporias desnecessárias. Risco
é um conceito usado pela política, pela economia, pela matemática, pela
geografia, enfim, por muitas disciplinas científicas e com sentidos
diferenciados. Talvez seja o caso de transformar o conceito de risco em um
termo técnico do direito, definido em lei. Alguma coisa do tipo: “por risco
entende-se...” ou, por “atividade de risco entende-se...”. Do contrário, parece
inevitável que a confusão doutrinária e jurisprudencial tenha que continuar. Não
que a cláusula deva deixar de ser geral, pelo contrário, deve continuar aberta,
mas deve-se buscar formulações que limitem a inflação de responsabilidade
objetiva, para usar um termo de Ricoeur.
Risco, repetimos, é um conceito usado por diversas ciências e de diversas
formas e seria prolixo, aqui, enumerar as definições possíveis. Por exemplo, a
geógrafa Yvette Veyret define risco em oposição à incerteza. Risco, segundo
Veyret, é passível de cálculo probabilístico, a incerteza não. Ocorre que a
própria autora reconhece que “risco é uma construção social” (VEYRET, 2007,
p. 23). Por isso mesmo, ele existe em relação a um indivíduo, a um grupo
social ou profissional, enfim, a uma comunidade que o apreende por meio de
representações mentais e com ele convive por meio de determinadas práticas.
Se pensarmos nas comunidades acadêmicas: a economia, as engenharias, a
geografia, enfim, todas essas comunidades de pesquisadores trabalham com
conceitos de risco, com uma ênfase peculiar. Não que o direito deva ter uma
ênfase peculiar, no mesmo sentido da geografia, mas, pelo menos, um critério
mais claro de responsabilização independente de culpa, tal como a sustentada
pelo parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002. Por exemplo, da
forma como está redigido o referido dispositivo legal não sabemos se dirigir um
carro é uma atividade que, por sua natureza, implica risco para os direitos de
outrem.
É preciso, sem dúvida, que haja uma cláusula genérica de responsabilidade
civil objetiva, mas os contornos da abrangência não podem ser ilimitados. Além
disso, em se tratando dos casos difíceis, talvez sem precedentes, reiteramos
que a investigação ex-post é uma via adequada. Conforme destaca Schamps,
a doutrina e a jurisprudência não puderam ser traduzidas em confiáveis
parâmetros de graduação de periculosidade e isso implica dizer que é possível
87
que, diante do caso concreto, o magistrado fique em uma situação
desconfortável. Em circunstâncias em que a certeza completa é rara, ou que as
dúvidas são sempre possíveis no que se refere ao estabelecimento do nexo
causal, a jurisprudência italiana, segundo Schamps, tem seguido o padrão da
verossimilhança plausível. Aqui, queremos lembrar as convicções bem-
ponderadas de Rawls, tal como interpretadas por Ricoeur.
Cabe destacar, além disso, que o desenvolvimento atual dos seguros
privados e sociais tem sido apreciado com grande aceitação nos regimes
contemporâneos de responsabilidade objetiva. O doutrinador italiano Trimarchi
(Cf. HIRONAKA, 2005, p. 317), sob influência da teoria do risco de empresa,
cujo fundamento são as teorias econômicas de distribuição dos custos e
benefícios, concebeu como princípio geral da responsabilidade objetiva não na
ótica de a riqueza obriga, mas na ótica de o seguro obriga. Nesse ponto, deve-
se destacar que a ênfase contemporânea na responsabilidade objetiva foi, em
seus primórdios, muito influenciada por defensores da idéia da richesse obligue
(a riqueza obriga), pela qual a vítima deva ser indenizada por aquele que tem
mais recursos. Por influência de Trimarchi, contudo, tem tido lugar a releitura
desse mesmo princípio reconstruído em outros termos, isto é, em termos de
assurance obligue (o seguro exige). Por isso mesmo, o assunto da
generalização do mecanismo dos seguros privados ou sociais, no grande
sistema da responsabilidade civil, ganhou espaço robusto, a ponto de receber
referência constitucional.
Não queremos ser tão contundentes quanto Trimarchi, e reduzir a ideia de
responsabilidade objetiva genérica a um capítulo da análise econômica do
direito. Mas a ideia de uma sociedade amparada por seguros está presente,
curiosamente, na ficção de Dworkin, descrita em A virtude soberana, dos
náufragos que, em uma ilha deserta, são forçados a construir uma nova
comunidade política. A ideia do seguro tenta corrigir possíveis desvios do ideal
da igualdade proposto por Dworkin. O pensador americano está preocupado
com o fato de que a igualdade inicial não seja suficiente para uma proposta de
uma comunidade política que tenha igual consideração para com todos os seus
membros. É preciso se pensar nas possibilidades de catástrofes naturais,
acidentes, doenças. Enfim, Dworkin sugere que a ideia de um mercado se
88
seguros pode ser uma via possível para os desvios da igualdade de recursos.
Contudo, trata-se apenas de uma sugestão teórica. Caberia, aqui, uma
elaboração bem mais complexa se quisermos pensar na exequibilidade da
proposta. Até porque, certamente, os seguros não funcionam hoje da forma
concebida por Dworkin. Além disso, segundo Ricoeur, os problemas do direito
privado não pode ser resolvidos, meramente, por um mercado de seguros.
Por fim, queremos reiterar a reflexão de Ricoeur, para quem as situações
de injustiça apresentam-se de forma mais clara e evidente, que o conceito de
Justiça. Não precisamos esperar uma definição acabada do que seja o Justo,
para impedir o sofrimento humano e a negação de direitos. É preciso se
pensar, ainda à maneira kantiana, na não-instrumentalização da pessoa
humana, e impedir que o progresso tecnológico se dê em função de graves
custos humanos e sociais, e, por que não dizer, em função da degradação
moral das sociedades tecnológicas contemporâneas.
5.4. DERRADEIRA REFLEXÃO SOBRE A TEMÁTICA
O Prêmio Nobel James Watson, um dos descobridores da estrutura da
molécula do DNA, relata no seu livro DNA: o segredo da vida que, até a década
de 60, o DDT era visto como “o melhor amigo do ser humano” (WATSON,
2005, p. 152). Contudo, a ambientalista Rachel Carson passou a descrever, na
revista The New Yorker, a partir de 1962, os graves efeitos nocivos do DDT nos
alimentos e no meio ambiente como um todo. Watson conta que, na época, ele
era assessor do presidente Kennedy para aconselhamento científico e, por isso
mesmo, foi convidado para apreciar a questão. Watson relata ainda que, ao
conhecer Carson pessoalmente, ele percebeu que ela não era a ecomaluca
histérica pintada pela a indústria de pesticidas. Watson teve que admitir que
Carson estava certa, pois pesticidas persistentes a base de cloro, embora não
letais em doses pequenas, têm efeitos mutagênicos que podem resultar em
câncer e defeitos congênitos. Como resultado da “histeria” de Carson, o DDT
foi banido na Europa e na América do Norte desde 1972.
89
Durante muitos anos, antes da tecnociência se dar conta dos riscos
inerentes ao uso do DDT, ele foi usado, “dentro das normas de segurança” e
com o aval dos conhecimentos científicos da época. Por isso mesmo, uma vez
que o homem se tornou vítima de seu próprio progresso, somos obrigados a
pensar em uma fundamentação adequada dos critérios de responsabilização
na era da tecnociência. Não é possível saber ex ante todas as possibilidades
de dano. Daí a busca de um critério genérico de responsabilidade objetiva.
Uma teoria da justiça, tal como a do Rawls lido por Ricoeur (e não do
Rawls por ele mesmo), parece indicar rumos na busca de uma espécie de
equilíbrio refletido fundado em um critério de maximim: a maximização da parte
minimal. A regra do maximim, contudo, não implica a produção de uma
sociedade de vítimas. É preciso preservar, segundo Ricoeur, o “princípio da
confiança”, pelo qual eu suponho que o outro cumprirá o seu dever tanto
quanto eu. É preciso que nossas convicções sejam bem ponderadas, do
contrário, como diz Beck: deixaremos de respirar, comer e beber.
Além disso, onde houver uma clara desproporção nas relações de
poder, torna-se imperativo o paradigma da vulnerabilidade. É claro que é
preciso se pensar em uma estrutura eficiente de mecanismos de reparação. No
caso do vulnerável, pode ser o caso da partilha dos riscos. Isso se dá, por
exemplo, com os sistemas de seguridade social. Nem sempre é o caso,
dependendo-se da atividade em questão, de se caçar o responsável, para usar
uma expressão de Ricoeur.
Somente uma moral da medida, pode, segundo Ricoeur, indicar a
legitimidade da responsabilidade e possibilitar o desejável acesso a justiça. É
com base na nossa pré-compreensão da injustiça e da justiça, segundo
Ricoeur, que o argumento alcança o que ele chama de equilíbrio refletido: pré-
compreensão essa que se submete, constantemente, à regra da
argumentação, já que sempre é possível que equívocos sejam corrigidos. É a
publicidade do raciocínio usado que, na opinião de Ricoeur, permite o seu
exame crítico e, por isso mesmo, a equidade diante do grito da vítima.
90
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito é fluido. Ele se transforma na medida em que os juristas
reinterpretam a realidade: novos fenômenos, casos difíceis, mudança de
perspectiva, insuficiência da legislação disponível, enfim, são inúmeras as
variáveis que levam o jurista a repensar o direito posto e a prática judiciária
como um todo.
A objetivação da responsabilidade é algo que está na ordem do dia.
Tentamos pensar o problema com foco no âmbito da Teoria da Justiça,
sobretudo a de Rawls reinterpretado por Ricoeur. Destacamos que Ricoeur
trata a questão pela via do comprometimento ético do jurista. A filosofia moral
é, sem dúvida, nuclear em qualquer resposta consistente para o problema da
objetivação da responsabilidade. Aspectos econômicos e mesmo o cálculo do
risco, embora relevantes para a temática, não podem sustentar, em si mesmos,
o cerne da ideia de responsabilidade objetiva.
O direito evolui, muitas vezes, forçado pelos novos problemas criados
pelo avanço científico. A responsabilidade civil objetiva é um claro exemplo
disso, já que a discussão aparece tendo como pano de fundo o maquinismo da
Revolução Industrial. São diante de problemas assim que a história do direito
reclama pelo aparecimento de pensadores do direito e não apenas técnicos
educados pelo direito posto. Esse tipo de discussão teórica nos desperta para
o fato de que o direito é mais que as leis, a jurisprudência e a doutrina
disponível. O direito é debate racional e é esse debate que permite a
desconstrução de antigas ideias ou mesmo a reformulação das formas de
aplicação o direito posto.
Desde os trabalhos dos franceses Saleilles e Josserand o problema da
responsabilidade civil ganhou uma nova dimensão: a da objetivação. Só que
aqui não se trata da objetivação observada por alguns historiadores do direito
antigo, isto é, a punição independentemente de culpa, mas
independentemente, também, do devido processo legal. Trata-se de uma
91
dimensão objetiva só percebida pelos juristas e jusfilósofos com os avanços
das sociedades de industrialização avançada.
O discurso da objetivação da responsabilidade trouxe consigo o
dever/direito de segurança e, ipso facto, diversas ponderações sobre os riscos
permitidos. No meio dessa discussão há os defensores da ideia de que certa
concessão deve ser dada aos riscos do desenvolvimento, esse parece ser o
caso de muitos dentre os pesquisadores das ciências naturais e das grandes
corporações que financiam suas pesquisas. A defesa dos riscos do
desenvolvimento pode ser ilustrada pelo famoso argumento do personagem
Foster, magistrado na ficção O caso dos exploradores de cavernas de Leon
Fuller:
Qualquer rodovia, túnel ou edifício que nós projetamos envolve um risco à vida humana. Tomando estes projetos em conjunto podemos calcular com certa precisão quantas mortes a sua construção irá demandar; os estatísticos podem dizer o custo médio em vidas humanas de mil milhas de uma rodovia de concreto de quatro pistas. Entretanto, deliberada e conscientemente incorremos neste risco e pagamos este custo na suposição de que os valores resultantes para aqueles que sobrevivem sobrepujam a perda. (FULLER, 1976, p. 19)
Contudo, a dignidade humana não é negociável na ponderação dos
riscos do desenvolvimento ou, pelo menos, não deveria ser. O problema é que
o âmbito do dever ser é sempre uma zona cinzenta ante a força do poder. Por
isso mesmo não é o caso de o direito meramente “acompanhar” o
desenvolvimento humano em sua lógica perversa. Daí Ricoeur endossar a
crítica ao utilitarismo de Rawls e recusar o que ele chama de estratégia do
bode expiatório.
A dignidade humana, reiteramos, tem precedência sobre o progresso
técnico-científico. Este trabalho apresentou-se como um exercício
argumentativo de sustentação deste postulado. Cremos que o progresso nas
sociedades de industrialização avançada requer racionalidade social, isto é,
requer a percepção de que o Direito deve dar a sua contribuição no que se
refere à prevenção e reparação dos danos injustos. Isso implica dizer: o
comprometimento do Direito é com a justiça e não com o progresso técnico. É
claro que nossas sociedades liberais contemporâneas não podem mais
sustentar-se sem os benefícios técnicos que, inclusive, resolvem muitos de
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nossos problemas. Mas a lógica instrumental, seja em função do mercado, seja
em função do progresso científico, seja em função do “bem comum”, é imoral a
olhos vistos.
A necessidade de uma cláusula geral, como a adotada pelo nosso
Código Civil, mostra-se evidente por várias razões, mas a principal é a óbvia
necessidade de arbitragem amparada no respeito aos Direitos Fundamentais,
mesmo em casos em que não há legislação especializada.
Tendo em vista a robusta argumentação prático-moral de Ricoeur, cuja
base teórica centra-se, em boa parte de sua fundamentação, no imperativo
ético kantiano, podemos dizer que o Diploma Civil Brasileiro acertou, aliás, bem
mais que o Italiano (que foi o primeiro diploma civil a sugerir essa discussão),
em sua recepção da Cláusula Geral de responsabilidade objetiva, já que o
Código Italiano admite a possibilidade de excludente em casos em que se
prova “di avere adottato tutte le misure idonee a evitare il danno”. Ora, as
atividades lícitas requerem, por definição, que se adote todas as medidas
idôneas a se evitar o dano: logo, isso não é um exemplar “dever cumprido”,
como sugere o legislador italiano, isso é o “mínimo que se espera”, em uma
sociedade de “modernidade avançada”, no sentido de Beck . Isso é ponto de
partida, não é ponto de chegada. Portanto, não devemos admitir excludentes
de responsabilização que considerem o raciocínio: o demandado fez ou não fez
o possível para evitar o dano? A responsabilidade objetiva, tal como
recepcionada pelo Código Civil Brasileiro, felizmente, foge deste raciocínio.
Por fim, a tese da “não-instrumentalização”, sustentada vigorosamente
por Ricoeur, nos parece ser uma referência fundamental para se compreender
o fenômeno da objetivação da responsabilidade civil em sua intersecção com
as Teorias da Justiça. A prática jurídica envolve engajamento ético. As
instituições jurídicas, sustenta Ricoeur, estão comprometidas conceitualmente
com um valor ético fulcral: a justiça. Nesse ponto, é válido reiterarmos a
atualização que Ricoeur faz do pensamento de Rawls: “em toda partilha
desigual é a sorte do menos favorecido que deve ser tomada como pedra de
toque da equidade da partilha” (RICOEUR, 1995, p. 95). Por isso mesmo, a
consideração da vulnerabilidade da vítima na distribuição dos riscos deve pesar
93
na análise do fenômeno da objetivação. A administração da justiça ao caso
concreto não implica necessariamente, como vimos, apontar culpados pelo
dano. No caso da objetivação da responsabilidade, ao contrário, implica acesso
à justiça, mesmo na ausência de culpados. Implica o justo direito de reparação.
Implica, além disso, a exequibilidade da própria sociedade democrática, que só
é efetiva se o direito der a sua contribuição no sentido de corrigir os desvios do
ideal de igualdade, em sentido substancial e não apenas formal. Ricoeur
sustenta que podemos chegar a respostas justas por meio do equilíbrio
refletido sugerido por Rawls (reflective equilibrium), equilíbrio esse que sempre
leva em consideração, ainda que tacitamente, o postulado moral kantiano: “não
instrumentalizes ninguém!”
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