Paul Ricceur
MA
oEMORIA, A HISTORIA/
ESaUECIMEÌ{TO
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UNtvrnsloeot EsteoulL nl CluPINes
Reitor
JosÉ TADEUJoRGE
Coordcnador Gcral da Uriversidade
FtnlaNro FrnnÈtnr Cosrì -
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Peuro Fnr:lcslt::tALcrR PÉcoRÂ - AnttY Reuos MonrNoJosÉ A. R. GôNTI-Ío -JosÉ RoBERTo ZAN
Luts Fenu-lNoo CrnlnsrLt IVI:nI - ji'llacrro linoserSsot HtneNo - \ÏtllsoN CANo
Comissão Editorial cla Coleção Espaços da Memória
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JoÂo Anouo H,tNssN * Eocrn os DeccnIIr-prlxo Brzlnu on Msnzsss - Fnancrsco Foor Henoulr
R4zdnr Riccur, Paul' r9r1
A mcmória, a história, o esquecimcnto / Paul Riceur - tradução: Alain F+ançois
[ct al ]. - Canipinas, SP: Editora da UNIcAMP' 1007
Traduçáo de: La memoire, l'histoire, I'oubli'
r. Memória (FilosoÊa). r. História - Filoso6a'r' Títulq'
tSBN 128.8 i-268-ozzz-8
Espaços dn Memorta
T-tsta coieção reúne obras que são reÍer'ência nos estudos da mernória Visando tlr'
b;;t;;;; aprofundar """ tu'npo de pesquisa' a coleção tem um caráter intt'riìis
ciplinar e circula entre a teoria literária' a história e o estudo das difelentes artes Srtlts
obras abrem a perspectiva de uma visada singular sobre a cultura como um diálogo t'
um embate entre diversos discursos mnemônicos e registros da linguagem'
FIcF{Â' cÁTÁLocRÁtrce gr'e'sonloe !uleBIBLIOTECÂ CËNTRAL DÂ UNICÁMP
CDD r53.r
90t
t.
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Índicc Pua catálogo sistemático:
Memória (FilosoIa)
História - Filosofia
Sràadich€ Schlôsscr und Gártcn
Badcn-ï(lïirttcmbcrgKIoste r'Wiblingen
Schlo8straGc 18, 89o79 ULn
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A MEN,ÍÓRIA, A HISTÓRJA, O ESQUECI\íENTC)
l'l,rrr,,,l,r nrt'rnírria coletivâ e não evocaÌ a espécie de obsessão descritos pelos histo-r r,rrlrrr r,'. r lo Ir,rnpo preserlte quando estigmâtizam aquele "passado que não passa"? A, ,l ' ,r' r',,1o rr ;r, rr';r rr rnemória coletiva aquilo que a aluci.nação é para a rnemória privada,,r'rr,rrrrr',1'rlirl.rrlt'Patoìógicadaincrustaçãodopassadonoseiodoplesente,cuioparé, rr,,t,.rìtr, rrrr.rrrírlia-hábito que, eia também, ìrabita o presente, mas para "animá-\o",
,11., lìr.r;.,,:.orr, rrão para obsedá-lo, ou seja, atormet"Ìtá-Ìo.I t, ..,.,r r lr'rr.riç;ir:, por Sartre, da revirã\rolta da função irrealizante da imaginação em
lrrn',,rr'.rlrrrirrrnlc,rt:suÌtaurncuriosoparalelismoentreafenomenologiadamemória, ,' 'l,r lrr,r;,,in,rr;ao. l'ì como se a forma que Bergson chama intermediária ou mista dal,,rrl,r.1rìr,,r, ir;lo r(, I lcrnbrança-imagem, a meio caminho entre a "lembrança pura,'e a
l,,11'1,11,,,,' rr,irl;r'rila na percepção, no estágio em que o reconhecimento desabrocharr,,.r'rrtrrrrr'rrtotlorlírjàvu,correspondesseaumaformaintermediáriadaimaginação,r rrrr'1rr r ,11111111111r.nIro a ficção e a aÌucinação, a sabei., o corTÌponente "imagem,, da Ìem-l,',rrr,,,r rrrr,rllr.rr. l)ortanto,étambémcomoÍormamistaqueéprecisofalardafunção, 1., r rì.r1, il r,ì.,,ì( Ì, t
1r rt' r:onsiste em 'pôr debaixo dos oÌÌros", função que podemos chamar
,'.1,.rr,.r\'.r lr.rl,r :r|tlcrrmaimaginaçãoquemostra,queexpõe,quedeixaver.lrrrr,r l,,rr.rrr..okuiadamemórianãopodeiguoraraquiloqueacabamosdechamar
,ì, 'rl,r,l,r,lrrrrn.rliirriirio,namedidaetnqueessacomposiçãoemimagens,queseapro-,',,,r,1,rílrrt,,ro,rhrcitratóriadaimaginação,coìlstituiumaespéciedefraqueza,dedes-
, r, ,lrl',, ,1,' I'r'r'rl;r clt' confiabilidade para a memória. Não deixaremos de voìtar a esse,ì .rrl,, ,lrr,rrrrlo íìrrnrìts considelar certa maneira de escrever a histólia, à moda deLlr, lr,.l,.t, ,ìir.rrr.r;, c.ln que a "ressurreição" do passado tende, também eìa, a reves-r r ' ,' , l, llr rr,rs iluase aÌucinatórias. A escrita da história partilha dessa forma dasr 'rrlrrr,r" rl,r r'rrìposição em ìrnagens da Ìembrança sob a égide da função ostensiva
r irrt,ì),lì,ìr,,ìt\.
I rr rr,ro rlrrr:; ia concluir com essa per.pÌexidade, mas com a resposta provisória que',, ;', r,ìr,rì,rr';r questão, que podemos dizer, cle confiança e que a teoria da inemóriarr'rr',rìrt('ì lcoria cÌa Ìristória. Essa questão e a da confiabilidade da memória e, nesse,,rrlr,lrr,rlt'r;rr,rvordade.EssaquestãoestavaformuÌadanoplanodefundodetodaa
nrì r',ì rìv('qtìgâç;ìo a respeito do traço diferenciaÌ que separa a memória da irnagina-,,,r,, l\. linal de rrossa investigação, e a despeito das ciladas que o imaginário arrna
l,,rr,r ,r rrrr.mória, pode-se afirmar que uma busca específica de verdade esiá impÌica-,l,r n,t vjsão cÌa "coisa" passada, do qrie anteriormente visto, ourrido, experimentado,,rl,rcrrrlicÌo. Essa busca de veldacle especifica a memória como grandeza cognitiva.N4,rir; |r66i5611qnte, é no momento clo reconhecimer"ìtô, em que culmina o esforço dar.r'orcìação, que essa busca de verdade se cleclara enquar-Ìto tal. Er-ltão, sentimos e sa-l*'rr.s qne aÌg,rna coisa se passoì-Ì, que alg'ma coisa teve lugar, a qual nos impli-(roÌr coÌÌÌo agentes, cono pacientes, c on1o testemunhas. Chamemos de ficìelidacìe essal.rrsca de verdade. Falarernos, doravante, da verclade-fidelidade cìa lembranca paradizer essa bnsca, essa reirrinclicação, esse c/nirir, que constiir-ri a dimensão epistêmico-\reribativa do orÍ1ros /ogos cla rnemória. Será a tarefa do estudo seguinte mostïar colTroa dirnerrsão epistêrnica, zterìtntiz,n da memória se coÌnPõe com a dimensão pragruóticaìigacla à ìc1éia de extrcício da memória.
+70,i *77.3
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A Memória Exercitadn: Uso e Abuso
Nota de oïientação
abortlagenr cogttítí'oa, expostn no capítttlo precetlellte, não es4ota n tlescrição dn nrc'
núrin cotrsiderada do po11to de -oistn "obietnl". Deuemos lcrescentar a eln wna abor'
rlagem pragnática. Essn no'oo considet'aÇão se articula na prinleíra da seguìnte fornn:Ientbrnr-se é não sonrente ncllher, receber LnLa ü1ngenl rlo pnssntkt, canto tanlbé11l btLscá-ln,
"fnzer" nlgtmrn coiso. O -oerbo "lentbrar-se" fnz par com o sltbstantíuo "lentbrança" ' O que esse
zterbo desígna é o fnto de que a ntenlórin é "exercítaàa". Ora, o noção tle exercício, nplicadl à
ntentórìn, rLão é rnenos nntíga do qLIa a de elkorr, de tepresentoçã0. ltutto à de "brtsca" (zetêsts),
ela brilln no fírn1an'Le11to dos conceitos socráticos. Nn esteírn de Sócrntes, Plcttão ttão lrcsíta ent
deslacar setL disun'so sobre a eikon patn o canlpo clns "técnicas itnìtatiaas", e en distil11uìt'
tnn nintëtica "fnntnsnútica", enganlsa p0/ destil1o, e mtn nlinútícn "icôtrica", collsideradn
"corretn" (orthos), "oerídica" (aÌethinos). Por nn'oez, Aristóteles, no capíttrlo "Anonutesis"
de setL crtt'to tratndo cont títrLlo dtLpÌ0, clescreue 0 recordação co1l1o lü1ta "btLscn", enquü1to n
mneìnã,fo/ cnracteriznda, no prinrciro cnpíttrlo, conto "afecçã0" (pathos). Nossos dois nrcstres
gregos se antacipltn, assi.nt, no t1rte será chnnndo esfurço tle ntentória Po1'Bergsoll e trabnllto de
Teitrcfiwacão por Freld, colllo -úerenlos enl breüe .
O fnto nottiztel é que as duas {Ìbordagens, cogttìti-oo e prlgútótica, se reiolem 1ú operação dn
recordnçno; o recorthecimento, que coron ít busco bem-stcedidn, designa n fnce cognìtiua dn recor-
dncão, ao ltnsso que o es;forço e o trnbnlho se inscret)em no csntpo pt'ático. Rescrztaretltos d.ornÌ)nn-
te a tartno remernotação ytnrn signit'icar esstr superposiÇão lM ú1esl1ln opel'lÇão dn auamnãsjs,
dn nrcditnçoo, dn recordnção, dos duns problenúticns: cognítì.Dtl e prngnúticn.
Esstt desdobrnnrcnto entrc dÌnrcnsão cognitiuo e Llilttetlsãl prlgutáticn ncetúrta a esPecificì'
dnde dn nrcnória etth'e os fenôntertos ryrc tleytetúen c1n dttronúttnção Psíquicn. A esse ïespeìto,
o nto de fnzer nrcnúrín pem útsü'ez,er-se nn lìstu dos Poderes, rlns clPlcìdades, que depandent
dn colegorín do "eu 1tosso", pnïa retantlr a eïprcssão cirú n Meileml-Pontyl . Mas llarece que a
1 Eri mesno ne cìediquei, en Sr ni csna canlo 1tüt arf ro, olì. cit., a tratar conìo nanifestações múltiPÌasda potência frulclaileniaÌ de agir operaç[es tradicionalnìeì]te atribuíclas a ]rrolrleDráticas distin-fas. A nìesÌna virada pragnática é dada em cada uma das grandes seções do trabalho: rrt po-rso
falar', cl posso agit ?rr l0sso (me) contal eu posso imputar ninhas açÕes a mitn mesrro coìno setr
verdacleiro autor. Agora digo: me lernbrar. Nesse sentido, a investigação dos íeuônrenos mne-
A MEMÓRIA, A HISTÓRIA, O ESQUECIMENTO
nto deÍflzer t'nemória tem o apanágio de oJerccer no othnr da descriçao unL sobrcintpressno fiocolllpleta do alao cognítírso e da operação prátíca num ato único, corno é n rententoraçã0, herdei-
ra tlireta da anamnésis arktotélica e indirettr da anamnêsts platôniu.
Essa originalìdade clo fenômeno mnenúnico é de enorme importância pnra toda a seqüência
de nossas hnestigações. De fa.to, ela caracterìza. tambéru a operação historiográJica enqilafito
prática teóríca, O historiaclor enrpreende "fazer hístória", conto cada tmt de nós se dedica a
"fazer manória". O confronto entre menrória e história se dará, qu011to ao essencial, no níuel
dessns duas operações indiaisamente cogttiüztas e práticns.
A nposta úItima da inaestigação que se segue é o destino do uoto de fidelidttde, que ointos
ltgndo no nlao da memória enquanto guardiã da profimdezn do tenpo e da d.istância tentpornl.
De que n'Laneira, quanto a essn apostíl, ns aicissitudes da ntemórin exercitada são stLscetíaeis
tle núetferir na ambição ueritatian da nrcmória? Responclanos ntmn palaora: o exercício dn
ntentória é o seu L;sÕ; ü'a, o uso cotnportã n possibilidade do abuso. Entre uso e nbuso insúnn-se
o espectro da "mímética" incorreta. É pelo aiés do abuso que o aloo'oerítatiuo da ntemória está
n n c i çanent e a m e aç a tlo.
As páginas que uêm a seguir aisam a esboçar unn típologia, enr grandes linhas, clesses abu-
sos da memória. Eles são, a cada uez, correlacionados conl Lun aspecto dn ntemórin exercítada.
Porenros de parte as proezas da ars memoriae, estn arte celebrada por Frances Yates2; os
excessos que ela ocnsiottou são os de urna menrória artifícial que e4tlora ntetodicantente os re-
ntrsos da operação de me4u'iznção qLLe querenTos rlistírrgttir ctLidadosnnrctTte, a pnrtir do plano
do nrcmória natw'al, da. rentenroração, no sentido linútado de eoocação d.e fatos si.ngtilnres, de
ncontecinwúos. É aos nbusos da nrcnúria nattn'al que será depois declicnda a maior seção deste
cnpíttr.lo; iremos di.stribtLí-los ent três plntos: no platto patológico-terapêtLtico serãa eztidencia-
dos os dístúrbios de uma nrenória íntpedida; no plano propriamente prático, os da trrcnúria
ntarüptLlndn; no plarto ê.tico-político, os de tnnn nrcntória abusi:oanrcnte corrz,ocada, qtLando co-
nxemoraÇão rinn. cortt renlennrrÌçãl. Essns níúltíplas foímas clo abuso snlìental1l a -oulncrnbili-
clade fwtdnnrcntal da ntenúria, que reatlta eln relação entre n ursência dn coisn lentbrnrla e sLa
presença nn fornm da reltresentnção. A nlta problernnticidacle dessa relnção representati-on con'L
o yrnssado é cssencialnrcnte e'lidetlciada plr todos os abilsos rla nrcnúrin.
â
mônicos que aqui propornos constitui urn capítuÌo suplemeÌrtar ÌìuÌna antropologia filosófica dohomem que age e sofre, do homem capaz.
Frances A. yales, Tlxc Art of Meunry, Londres, PimÌico, 1966; trad. franc. de D. Arasse, L'Art dc I0
néntoile,Paris,Gallirnard, col. "Bibliothèque des histoires", 1975. A paginação citada aqui é a cla
eclição original. Edição brasiÌeira, Á nrtc dn nenúria,Editora da UNrcAÀap,2002
e72e *73.&
Yè|
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DA MEMÓRIÂ E DA REMIN]SCËNCIA
I. Os abusos da memória artificial:as proezas da memorização
Há uma modalidade do ato de fazer memória que se dá como prática por exceÌên-
cia, a saber, a memorização, que imPorta distinguir rigorosamente da rememoração.
Com a rememoração, enfatiza-se o retorno à consciência despertada de um aconte-
cimento reconhecido como tendo ocorrido antes do momeÍìto em que esta declara têlo
sentido. percebido, sabido. A marca temporal do antes consülui, assim, o traço distin-
tivo da recordação, sob a dupÌa forma da evocação simples e do reconÌ'ìecimento que
conclui o processo de recordação. A memorìzação, em contraPartida, consiste em ma-
neiras de aprender que encerram saberes, habilidades, poder-fazer, de tal modo que
estes sejam fixados, que Permaneçam disponíveis Para uma efetuação, marcada do
ponto de vista fenomenológico PoÍ um sentimento de faciÌidade, de desembaraço, de
espontaneidade. Esse traço constitui o corresPondente Pragmático do reconhecimento
que conclui a recordação no pÌano epistemológico. Em termos negativos, trata-se de
uma economia de esforços, ficando o sujeito dispensado de aprender novameÌ"Ìte Para
efetuar uma tarefa adequada a cilcunstâncias de{inidas. O sentimento de faciÌidade
representa, então, a face positiva dessa efetuação bem-sucedida de uma lembrança,
que Bergson diria "agida" rnais do que "representada". Desse ponto cle vista, pode-se
considerar a memorização como uilìa Íorma da memória-hábito. Mas o processo de
mernorização é especificado pelo caráter construído das maneiras de aprender visan-
do a uma efetuação fácil, forma privilegiada da memórìa feliz.
Torna-se, então, legítimo o projeto de descrever as maneiras de aprender visaudo a
uma tal efetuação Íácil do ponto de vista das técnicas de aquisição, e de tentar discer-
nir as faÌhas pelas quais o abuso pode se insinuar no uso. seguiremos ulna ordem de
Complexidade crescente em que as oportunidades do mau uso aurnentarãO na medida
da ambiçáo de domínio exercida soble o processo inteilo de memolização. PorqlÌe é
meslno nessa ambição cle domínio que reside a possibiliclade de resvalar do uso para
o abuso.
No grau mais baixo, vamos encontrar as técnlcas clependentes do que se chama
nlsrendizagem em psicologia experimental. É para deÌimitar cuidadosatnente o camPo
cla aprendizagem que faÌo em teïmos gerais e abrangentes de "rnaneilas cie aplen-
der". A aplend\zagem, habitualmente associada à memória nas obras especializadas.
procede de uma biologia cia rnemória3. De fato, a aprendizagem consiste na aquisição,
Por um ser vivo, de compottamentos novos que não fazern parte do repertório dos
poder-fazer ou habilidades heldados, geneticamente programados, or-r dependentes
da epigênese cortical. Para nossa pesquisa, o imPortante é que o dornúrio da aquisição
peÌ.tence ao experimentador que conduz a manipr-rlação. É ele que cietermina a tarefa,
3 Georges Clrapouthier, Ln Biolopi (,h Ia úÌiDIoíft,Prris, PUF, 1991, P.5 e seg.
A MËMÓRIA, A HISTÓRIA/ O ESQUECIMENÏO
I'orlr,nros eÌìtão iÌìdagar se, naquele momento, a crítica da memória memoÍizanterao rtllr,t|as:iou seu objeti\ro. Ao abuSO POÍ exCeSSO com G. Bluno corïesponde um,rì 'r,,r ) l '()r ía lta com ].-J. Rousseau. E verdade que nào é a mesma memória que é ce1e-
I'r,r,l,rl,rrrrrrrrcrebaixadapelooulro.OexcessodoprimeiroaÍetaanlenloriaartìfíciosa,r',rl,rrrrlrrrÌ íaÌtadooutroprejudicaamemórianafuralque,tambémela,reclamaoquellr r'. rlr.virìo. VoÌtam-nos, então, à mente, para além do uso escoÌar da memorização,ir,ì lìrrìr,z;ìs rlspeitáveis da memória proÍissional, a dos médicos, dos juízes, dos pro-ll,i',r,r rì:,, r'l( . {' iì dos artistas da clança, do teatro, da música. A bem da verdade, nunca,,,' . lt\ r,r[](ì'.,l,t rrrr:rnorização.
.'\rrtr.,. rlr' r,irar a página da nrs ntenrcriae, eu gostaria de fazer, com H. Weinrich,, lr,l,r 1 ,1 ,,\,r ' , l ili lcssão acerca do esquecimento- Dissemos acima que a ars fientoriae era
r,,,'r,r,l,r 1','lrr rlcscjo exorbitante de "nada esquecer"; um uso comedido da memori-,r'..r,' r,r, irnplir:r tambóm um uso comedido do esquecimento? Não se pode faÌar
,l' , ,.,1u',, uììí'ìrlo :netódico", na esteira de Descartes? Se, de fato, a dúvida metódicar ,, lr ì r r u n,r r ,,1r'ir;;ro t'cfletida de toda pedagogía pela memória, e nesse sentido, impìica
' , rl,r r,',tr.rlr.1ii.r rlo csquecimento, a regra de recapitulação do DisctLrso sobre o método
r,ì",,'rì,,lrlrr rrrrrusometódicodamemória,masdeumamemórianafuraÌlibertadel,',1,r lrlr,rrrrrlr.trrica?Nãosepode,damesmaÍorma,falarde"esquecimentoesclareci-, 1, ' ,,.1. r r r r, lo I ) (,ril)íï jto ilas Luzes? Esquecimento esclarecido que, no sentido próprio,l.r 1,,11,q1'1,1,',',rviria dc jirade de proteção contÌa uma cultura teimosa da mernóriaJ!,,,r,ì,,r r.,,rrÌlr,r lìr'r'ri nr:ccssário voltaÍ a esse tema no momento opoÌtuno, quando ten-ì.rl r'r,, ,l,rr ,r rrrr ntrntorine o simétrico, que seriâ anrs obliuiottis, segurdo o desejo de
ll\\',rrrrrr lrr'rrr/r'//rlrt.Porenquanto,essassugestõescoÌlvergemparaadefesadeurnrr ,,,,,rrr,.rlr,l,rrl.rrcrncmoração-ernnomedeumafrisfontenórici-,idéiaàquaÌdaráÌ i !r li,, {.rìr ilrrr urornt'lttO, Ì'ìOSSa ref-ÌexãO SObre OS abuSos de uma memória manipuÌada
l,, l,rr,lr.llll,,r,r.Nurncr:rtosentido,asupeiaçaop&iicadamemóriaartificialporDante,'ì, r.'.rllr.r irrrcrrlo melódjco à maneira de Descartes nos leconduzern, cada um a seu
rr,,,lr,,r I r,r lìr'olìl(.ÌniítiCa da memória natural.
T1. Os abusos da memória natural:nìemória impedida, men'ÌóÌ'ia manipuiada,
nemória comandada de modo abusivo
I ,r rrrrr,r lipologia dos u,sos e abusos da memória naturaÌ que o presente estudo será, ì, ,r1'1,1,1 r'rn rliante dedicado. A via nessa direção foi trilhada por Nietzsche na Segfir-tlt! t titt'itlt'r'ttçiío Itrlentltesti-oo, cujo títu1o é eloqüente: Da utilidnde e dos inconztenientcs
l,r lrt ,ltt itr parn n ztidn. A maneira de interrogar inaugurada por esse texto une ÍÌuma',''rrriolollia co:rpÌexa o tr:atamer-Ìto rnédico dos sintomas e o tratamento filológico dos
l, \l, r,ì(liintc,solrre o esquecimelìto,a terceiraparte,cap. 3.
'}82,? .i, 83 ,!
DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
tropos. A polêmica aqui Ìevantada certamente diz respeito, Primeiro, à história, mais
precisamente à filosofia da história quaÌ1to ao lugar desta na cuÌtura. Mas ela dá o tom
para um tratamento semeÌhante da memória, mais Precísamente dâ memória coletiva,
a qual, como repetirei no início do próximo estudo, constitui o soìo de enraizamento
da historiografia. Como foi dito no início do Presente estudo, é enquanto oiercida que
a memória cai sob esse Ponto de vistapara evitar um uso maciço e indÍscriminado da noção de abuso de mernória, pro-
ponho a seguinte gÌade de Ìeiluras. Começarei Pol divisar uma abordagem fÍanca-
mente patológica que põe ern iogo categorias clínicas e, eventualmente, terapêuticas,
emprestadas principalmente da psicaná1ise- Tentarei restituil a essa patologia sua
magnítude e sua densidade ao vincr-rlá-Ìa a algumas das experiências humanas mais
fundarnentais. A seguir, darei lugar a formas concertadas de manipulação ou de ins-
trumentalização da rnemória, que dependem de uma crítica das ideologias. É nesse
nível mediano que as noções de abusÓ de memóría e, acrescentemos de imediato, de
abuso de esquecimento, são as mais pertineÍìtes. Finalmente, Eostalia de reservar para
um ponto de vista normativo, francamente ético-político, a questão do dever de me-
mória; esse ponto de vista normativo deve ser cuidadosamente distinguido do ponto
de vista antedor com o qual é muito fi'eqüentemente confundido. Assim, esse Perculso
cle nível em nível tornar-se-á um percurso de figura em figura dos usos e abusos da
memória, desde a memória ínpedirln até a memória obrigada, passando PeÌa memóIia
tuuriprilndn.
1. Nível patológico-telaPêutico: a tnemória impedida
É nesse nível e desse ponto cle vista que se PocÌe legitimarnente falar em memória
feridn, e até mesmo enfernn.Isso é atestado por expressões correntes como traumatis-
mo, ferimento, cicatÍzes, etc. O ernprego desses vocábulos, eles mesÌÌìos patéticos,
não deixa de coÌocar graves dìficuldacles. Até que ponto, indagarernos plimeiro, estâ-
mos autorizados a aplicar à memória coletiva categolias forjadas l-ìo debate analítico,
portanto, ilun ní\rel interpessoal, marcado PrinciPalmente Pela mediação da trans-
ferência? Essa primeira dificuìdade será definitivamenie superada apenas no fim do
próxìmo capítulo. Adrniiirernos aqui, prorrisoriamente, o \ralor oPeratóIio do conceitc)
de rnemória coÌetiva; pot' outro Ìado, o uso que dele será feito a seguil contribuirá
posterioïnìeÌ.Ìte para a legitimação desse conceito Problemático. Outra dificr-rÌdade
derre encontrar aqui certa ïesolução: pode-se indagar erì que medicìa uÌna Patologiada mernória, portanto, O tratamento da nemória colno PrÌifos, se inscleve uuma inves-
tigação sobre o exercício da memória, sobre a Íelchrt ÌÌ1netnôtìica. A dificulcìade é nova:
o que está em jogo são altet:ações individuais e coletivas cÌevidas ao LÌso, à prática cla
memória.
Para nos orientarmos nessa duPia clificr-údade' !ìel'Ìsei ser aProPdado recorreÏ a
dois er-rsaios notárreis de Freud e compará-los, o que o alrtor não Palece ter feìto. O
A MEMORÌA/ A HISTÓRIA, O ESQUECIMENTO
pdmeiro, datado de 19L4, é intitulado "Rememoração, repetição, perlaboração"18. No-taremos Ìogo que o título compreende somente verbos, o que indica o pertencimentodos três processos ao jogo de forças psíquicas com as quais o psicanaÌista "ttabalÌra".
O ponto de partida da reflexão de Freud é a identificação do obstáculo principaìno qual o trabalho de interpretação (Detútmgsarbelf) esbarra no caminho da recorda-
ção das lembranças traumáticas. Esse obstácuÌo, atribuído às "resistências do recal-que" (Verclriingungswid.erstiind.e), é designado pelo termo "compulsão de repetição"(Wiederhohutgszu,ang)ì Lrm.a de suas características é uma tendência à passagem ao ato(Agieren), que Freud diz "substituir a lembrança". O paciente "não reprcduz [o fatoesquecidol em forma de lembrança, mas em forma de ação: ele o repete sem, obvia-nrente, sabel que o repete" (Gesanrmelte Werke, t. X, p. 729). Não estamos longe dofenômeno de obsessão evocado acima. Deixemos de lado suas impÌicações quanto ao
esquecimento, poìs a elas voltaremos no capítulo sobte o esquecimento, na terceira
parte. De resto, a ênÍase recai na passagem ao ato e no lugar que ele ocupa à revelia do
paciente. O importante, para nós, é o víncuÌo entre compulsão de repetição e resistên-cia, assim como a substituição da Ìembrança poÌ esse dupÌo fenômeno. Nisso consiste
o obstáculo à continuação da anáÌise. Ora, além desse oihar clínico, Freud enr:ncia
duas propostas terapêuticas que serão para nós da maior importância no mornentode transpormos a análise c}ínica ao plano da memória coletiva, como nos conside-ramos autorizados a faz-er nesse estágio da discussão. A primeira diz respeito ao
anaÌista, a segunda, ao analisando. Ao primeiro, aconseiha-se múta paciência com
as repetições que ocorrem sob o manto da transferência. Desse modo, observa Freud, a
transferência cria urn dornínio intermediário entre a doença e a vida real; pode'se falardeste corno de uma " arena" , na qual a coqpulsão é autorizada a 3e manifestar numalibeldade quase total, pois o fundo pato.gênico do sujeito terrì a oportunidade de
se manifestar abertamente. Contudo, pede-se também aÌgo ao paciente: ao cessar
de gemer ou de esconder a si mesmo seur,rerdadeÍro estado, eÌe precisa "encontrar a
coragem de Íixar sua atenção em suas manifestações mórbídas, de não mais considerarsua doença como algo desprezível, mas olhá-Ia como um adversário digno de estima;
como uma parte de si mesmo cuja presença é muito motivada e na quaÌ convirá colherdados preciosos para sua vida uiterior" (op. cit., p.132). Caso contrário, nada de "re-conciliação" (VersÒhnu.n.g) do enfermo com o recalcado(i.bid.). Reservemos a paÌavra
reconciliação, que voltará ao primeiro plano em nossas reflexões ulteriores sobre
o perdão. Detenhamo-nos, por enquanto, nesse duplo maneio cÌas resistências peÌo
paciente e seu anaÌista, ao quaÌ Freud clá o nome de Dtu'cltarbeiten (07t. cit., p. 136), de
uorkittg l.hror.glt, como foi traduzido em inglês, de "perlaboration", corno Íoi traduzidoem francês, ou de "remanejamento", corno eu preÍeriria dizer. A palavra impottante,aqui, é trabalho - ou, antes, "trabaÌhar" - que enfatiza não somente o caráter dinâmi-
18 "Erinnern, Wiederholen, Durcharbeiten", in Gesnnuneltcwclkc, t. X, Francfort-surle-Main, S. Fis-clrer VerÌag, 1913-1917, pp.726-136. A paginaçáo adotada é a da edição alernã. A tradtrção adotacla,"Rernémoratioìì, répétition, perlaboration", é a de A. Berman, em Ln TechtitTue psyclnnnlytique'Paris, PUR 1970.
DÀ MËMóRrA E DA REMrNlscÊNcrA
co do processo inteiro, mas a colaboração do analisando nesse trabaÌho. É em reìação
com essa noção de trabalho, enunciada em sua forma verbal, que se toma possível
Ía-lar da própria Ìembrança, assim liberada, como de um trabalho, o "trabalho de re-
memoração" (Eriruterntgsarbeit) (op. cit., p. 133). Assim, trabalho é a palavra repetida
vár'ias vezes, e simetricamente oposta à compulsão: trabalho de rememoração con-
tra compuisão de repetição, assim se poderia resumir o tema desse precioso pequeno
ensaio. Também pertencem a esse trabalho tanto a paciência do analista para com a
repetição canalizada pela transferência como a coragem requerida do analisando de se
reconhecer enfermo, ern busca de uma relação verídica com seu passado.
Antes de considerar, com todas as ressalvas de princípio evocadas acima. as trans-
posições possír'eis do plano privado da relação analítica para o plano público da me-
mória coletiva e da história, dirijamo-nos ao segunclo ensaio, iniituÌado "Luto e Me-lancolia"le. Este, sem dúvida, oferece mais resistência a uma transpÕsição ao plano
da memória coletiva que o anterior, na medida em que o iuto é menos tratado por si
nÌesmo, precisamente enquanto trabalho, do que a ífuio de comparação para melhordesvendar os enigmas da melancolia, É o confronto com o ensaio anterior que podeaiudar a exh'air da própria comparação uma inÍormação positiva a respeito do traba-
lho de luto2o. Mas este ensaio desperta sobÍetudo profundos ecos numa experiênciarnilenar que teve a própria meiancolia como tema de meditação e como tormento.
Essas ressaÌvas iniõiais não nos impedem de notar que é o luto - o trabaÌho de
luto - que é prímeiro tomado como termo de comparação e presumido como dire-tamente acessível, peio menosnum primeiro momento. Além disso, é o par luto/me-ìancolia que deve ser tomado em conjunto, e é a propensão do luto à rnelancoÌia e a
dificuldade do Ìuto de escapar dessa tremenda neurose que devem suscitar nossas
reflexões ulteriores sobre a patologia da memória coletiva e sobÍe as perspectivasterapêuticas assim abertas-
"O luto, cliz-se no coÍÌeço, é sempre a reação à percla de uma pessoa amada ou de
uma abstração erigida em substituto dessa pessoa, ta1 como: pátria, liberdade, ideal,
19 "Trauer nnd Melancholie" (1915), in Gasnnnelte Werke, t. X, op. clf. A tradução adotada aqui é
a de J. Laplanche e J.-8. Pontalis em Ìúótnpsychologic, Paris, Gallimard, 1968; reed., col. "Folioessais", 1986.
O que pocle levar a negligenciar a instrução que buscamos a respeito do parentesco entre lÌabalÌìode lenbrança e trabaÌho de ìuto se deve ao fato de o lerÌno trabalho ser aplicado taÌìto à ìnelancoliaquanto ao luto no ânbito do modelo "econômico" fortenìente solicitado por Frerrd na época ernque escreveu esse ensaio. O tema do ìrúo, observa Peter Homans em ï/rc ,4 bílíly to Mourtr, C\icago,The Unirrersity of Chicago Press, 1989, não é um tema entre outros na descrição e na explicaçãopsicanalíticas; ele está ligado à sintomática da ìristeria e ao famoso enunciado: "Os Psicopatassofrenr de renriniscências". Nas Cínto líçõcs soLtre n ysícnntllise, Freud estabelece run \,írìculo entreos sintorììas histéricos enquanto sintomâs mnésicos e os monunentos que oÌnamentaDl nossascidades (Honrans, opt. cit., p.2ó1). Os monumentos são respostâs à perda. Mrrito mais, o trabalhode luto é coextensivo à empreitada psicanalítica em seu todo enquanlo reníÌncia e resignação queculmína na reconciliação com a perda. Homans dá una ampliação positivã a esse tema matricialquando trata da indivicluação, compreenclida como auto-apropriacão, em relação com a P,lrnlfnsiee a capacidade de tìarrar.
20
*84q s85*
A MEMÓRÌA, A HISTÓRÌA, O ESOUECIMËNTO
Flr " I lt.iì âbrÌrtlrra é assim criada, já no início, para a direção que tomaremos a seguir.I n I
rr 1111ç'i1x cluestão que o analista se coloca é a de saber por que, em certos doentes,vcrrrrrn srrr;iir, "em seguida a circunstâncias idênticas, no lugar do luto, a melancolia"(F,r IIrr rrrrrrs.), A expressão "no lugar de..." assinala de saída o paÍentesco, do ponto der'laln rlr t'slratégia da argumentação, entre os dois ensaios que estamos confrontando:lrr 111;.'61 tlrr lclnbrança, a passagem ao ato * no Ìugar do luto, a melancolia. Trata-se
l,rrrlrrrrl,, rl. ccrto modo, da oposição entre luto e melancolia, da biíurcação, no níveÌIr orrf\rrri|.", clìlrc iÌìvesrimentos afetivos diferentes e, nesse sentido, de uma biÍur-
r ilr.à, r'rìll. rlrras modalidades de trabalho. A primeira oposição que Freud nota é arltrrrirrrir;,l. rlrr "sentimento de si" (SelbstgefUhl) na melancoÌia, ao passo que ,,no Ìutorr;ìo lrii rlirrrirrrriçiio clo sentimento de si". Daí a pergunta: quaÌ é o trabalho fomecidorrr, lrrln'' lilrlrosla: "o teste da realidade revelou que o objeto amado deixou de existir,
I'rìsãiilrl{r ;r t'xiliir tluc toda alibìdorenuncie ao vínculo que a liga àqueÌe objeto. É con-lr'r irtrr rilrt' rrr, Irocìuz uma revolta compreensível". segue uma descrição cuidadosa,1,',; |'rrnrrrl.ri r'rrstos de tempo e de energía de investimento" que essa obediência dairl't,1, at'rrlrrrr tl;r realidade requer. Por que esse custo elevado? porque "a existência,1,, ,l'i'tir 1,r'rrlitlo continua psiquícamente". Assim, é ao sobre-investimento das lem-i'r,rtrr,rq e rlrrri 1,xp1,6[;rfivas, pelas quaís atibido permanece ligada ao objeto perdído,
'iirr r, rlF\,r, . Ir'r'ç<t tão alto a ser pago por essa Ìiquidação: ,,A realização em detalher lr. r rl lo ,,,'
',r r l,rs ordeus, ditadas pela reaÌidade é o trabalho do luio,,.
Nl,t: r'rtl,ìo, I)or cÌLre o luto não é a meÌancoÌia? E o que faz o luto pender para arrr.'l'rrrr rrlini ( ) r;rrc Íaz do luto um fenômeno normaÌ, embora doloroso, é que, "quan-,l'r,, lrrlrrllr. rio lr:to se concÌui. o ego fíca outra vez livre e desinibido". É por esse
'ir1'c'r lrr r;rr. , lr'.rbaÌho de luto pode ser comparaclo com o trabaÌlÍo da ìemÌrrança. se,' lr,ll,,rllr, rl,r rnol;urcolia ocupa neste enãáio,l*uposição estratégica paralela à que a,,,lr1,rrl.,nrr rlr, r.cPeliçã6 ocupa no anterioí, pode-ìë'sugerir que é enquanto lrabalho,l.r l.,rrrlrr,rnL;;r c1rr. o trabaÌÌro de luto se revela custosamente, mas também recipro-r 'urri'rrl,', lrlrIlirt;l(rr, o trabaÌÌro de luto é o custo do trabalho da Ìembrança; mas oIr,rlrnIIrrr,Lr lt,rnbranÇa é o benefício do trabaÌho do luto.
''\ r rlr'r, r lr' r'rtllil disso as conseqüências qr.ie temos em vista, vejamos quais ensina-r rrÌ l( )r. ( oil r Iltrlentales o trabalho da melancoÌia fornece no quadro anterior do traba-llr, rlr' lrrtrr. lÌctornando nossa reflexão ìnicial a respeito da diminuição d,olctryefiihl nar r rrln rrr r rlrr, t1 Preciso dizer que, diferentemente do luto, no quaÌ é o universo que pare-, c a111|111r11'gii1r e vazio, na melancolia é o próprio ego que está propriamente desoÌa-,1,','l.t,rrvírinradapróprrades'alorização,daprópriâacusação,daprópriacondena-,,;1, r, rlrr 1r11i1rvi6 rebaixamento. Entretanto, isso não é tudo, Ììem mesmo o essencial: não',í'rviri,ìr)ì irs r-ccrirninações diligidas a si mesmo para encobrir recriminações visandorr.l'j.lo rl. arnor? "suas queíxas, escteve audaciosamente Freud, sáo acusações (IfureI lrt;.'r'u :;iud Anklnge;r)." Acusações que podem chegar à martirização do objeto amado,l"'r:;('llÌlido lìo foro íntin'ìo do Ìuto. Freud enulcia a hipótese de que a acusaçào, ao.rrlr,rrlrrccer o investimento objetal, íaciìita o retraimento no ego assim como a trans-l.r nr;r('io da discórciia com outlem em laceração de si. Não acompanharemos Fïeud
DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
mais adiante em suas pesquisas pÍoprìamente Psicanalíticas a resPeito da regressão do
amor objetal ao narcisismo primário, e mesmo até a fase oral da libido - nem tamPou-
co a respeito da parte de sadismo jncorporada ao narcisismo, nem mesmo a tendência
da melancoiia a invelter-se no estado sintomaticamente inverso da mania. De resto,
Freud é muito cauteloso em suas explorações. Limitar-nos-emos a essâ citação: "A
melancolia, portanto, êmpresta do luto alguns dos seus traços, e outlos do processo da
regressão desde a escolha objetaì narcisista até o narcisismo"'
Agora, se perguntaÌ.mos o que a melancolia ensina sobre o luto, é preciso voltar a
esse lchgefiìttl que foi considerado como bem conhecido e que Freud caractedza uma
vez como ,,reconhecimenio de nós mesmos". A eÌe pertence a vergonha diante de
outrem que o melancólico ignora, tão ocupado eIe está consigo mesmo. Auto-estima
e vergorüra seriam assim comPonentes conjultos do luto' É o que nota Freud: a "cen-
sura do consciente" - expressão da instância geraÌmente chamada de consciência
moral - caminha junto com "o teste da reaÌidade em meio às grandes insiituições
do ego,,. Essa observação converge para o que foi dito no ensaio anterior a respeito
da responsabiÌidade do anaiisando na renúncia à passagem ao ato e ao próprio tra-
balho de memória. outra observação: se na melancolia as queixas são acusações, o
luto carrega também a marca desse inquietante palentesco, com a condição de certa
moderação, que seria própría do luto, moderação que limita tânto a acusação quanto
a auto-recriminação sob a qual essa se dissimula. Enfim - e isso talvez seja o mais
importante - a proximidade entre Klage e Anklage, entÍe queixa e recriminação, que
a melancolia exibe, não revela o caráter ambivalente das relações amorosas que faz
amor e ódio coexistirem até no Ìuto?
Mas é com o desfecho positivo do luto, em contraste com o desastre da melancoÌia,
que eu gostaria de interromper essa breve incursão num dos maiS Íamosos ensaios de
Freud: "A melancolia ainda nos confronta conl outros problemas, cuia resposta em
parte nos escapa. O fato de poder desaparecer após certo temPo, sem deixar grandes
e evidentes alterações, é uma característica que ela compartilha com o luto. No que
concerne ao luto, pudemos observar que era necessário decorrer algum temPo Para
que fosse ìevado a efeito em deialhe o que é exigido Pela prova da realidade e para
que, unìa vez realízad_o esse trabalho, o ego conseguisse libertal sra libido do objeto
perdido. Podemos imaginar que o ego se entrega a um trabalho análogo durante a
melancoÌia; do ponto de vista econômico, não compreendemos nem um nem outro
fenômeno,,. Esqueçamos a confissão de Freud a l'espeito da explicação, e retenhamos
sua Ìicão cÌínica: o tempo de lutc não deixa de ter relação com a paciência que a anáIise
demandava a respeito da passagern da repetição à lembrança. A lembrança não se
refere apenas ao temPo: eÌa também requer temPo - um Íempo de ìuto
Não gostaiia de terminar esse confronto entre luio e melancolia nesta fala perpÌexa
de Freud: "Não entendemos nem uÌÌÌ Íìem outro fenômeno". Se a úitima palavra não
foi dita sobre o luto e o trabalho de ìuto em psicanáÌise, é qr-re também não Íoi dita
soble a melancolia. Deve-se mesmo abandonar a melancolia aos médicos, Psiquiatlasou psicanaÌistas? Ser.á ela apenas uma doença mental? Para quem leu Snhrnt a1ld Me-
'F 86,Ffi:,, +87ú
A MEMÓRIA, A HISTÓRIÁ, o ESQUECIMENTo
lancholy de Ra).rynond Klibansky, Erwin Panofsky e Fritz Sax1zl, a redução nosológicacia melancoiia, iniciada por E. Kraepelìn e reorientada por L. Binswanger, é inaceitável.De fato, como deixar de evocar o lugar ocupado pela meiancoÌia no antigo sistema dos
quatro humores da medicina gregâ, no quaÌ o humor melancólico - o da bflis negra(atra.bíIis) - convive com o humor sangüíneo, o humor colérico e o humor fleumático?Aí está mais uma ìista para memorizar, que se deve à rede de correspondência com
eÌementos cósmicos, divisões do tempo, idades da vida: "MeÌancolia, dizem textos
medievais do século XII, imita a têrra, cresce no outono, reina na maturidade". Fisiolo-gia, psicologia. cosmologia estão assim conjugadas, segundo o tríplice princípio: busca
de eÌementos primários comurìs ao microcosmo e ao macrocosmo, estabelecimentode uma expressão numérica para essas estrutÌÌras complexas e lei de harmonia e de
proporcionalidacle entre os elementos. Reconhece-se aqui o espírito de Pitágoras, se-
guido por Ernpédocles. O irnportante para a espécie de excurso que arrisco além - ou,melhor, aquém - de Freud, é que o conceito de humor não parou de osciÌar entre a
idéia de doença e a de caráter ou temperamento, o equilíbrio resultando do grau de
harmonia ou de desarmonia entre os humores. Ora, é justamente com a melancolia que
culmina a ambivalência, que se torna assim o ponto crítico do sistema ir'\teiro. Esse pri-vilégio, por assim dizer. da melancolia, tornou-se mais preciso à medida que a teoriados quatro humores se transformou em teoria dos temperamentos. e dos tipos men-tais. Depressão e ansiedade (ou medo) tomam-se os sintornas marcantes da melanco-lia. MeÌancoÌia, então, torna-se sinônimo de ínsanidade, de loucura. A junção entre a
melancolia da teoria dos humores e a loucura dos heróis trágicos - Ajax, Héracies,
Belerofonte -, que Platão erigiu em filosoÍema, está compÌeta desde o mais famosodos problemas atribuídos a Aristóteles, o problema XXX, I - "umd monograíia sobre
a bílis negra", dizem nossas fontes. "Por que razão, pergunta o autor do ProblemaXXX, os hornens mais eminentes em filosofia, em política, em poesia ou 1"ìas aÍtes são
manifestamente melancólicos?" E o texto mrescenta os nomes de Empédocles, Platão
e Sócrates à lista dos espíritos perturbados. Como, então, deixar de elrocar a teoria das
nrúltipìas íigtrras de ntnnin no próprio PÌatão e a conrparação operada por muitos diá-logos entre exaltação, êxtase, embriaguez, e ouhos estados "diviiros"? Ora, todos esses
esiados são obla da bílis negral Aqui, o normal e o patológico convivem, o melancólicovendo-se enviado do médico ao pedagogo e z,ice-aersa. O melancólico é "excepcional".
A teoria rornântica do "gênio" está em germe nessa ambígua descrição do "furor"(para letornar a tradução de Cícero do grego nnnín). Apenas os estóicos resisten ao
optarem decididamente pela leitr-rra psiquiáh'ica aoant ln lettre.
São os pensadores do Renascimento que, alérn da transmissão medieval cla heran-
ça contrastada recebida dos médicos e dos filósofos gregos da natureza, orientaram
27 Sntrmt nnd Mclnrclroly , Nelson, 1964. E essa edição que é aqui citada, com tradução cle P. Riceur.Uma tracltìção h'ancesa, de F. Durarìd-Bogaert e L. Evrard, está clisporìí\'el: Snlrrnrccl ln Mélnrcolic :
ótudes lisloriqnes et phiÌosoplli.ltìcs, nnturc, rtlígíott, núdccínc et irt, Paris, Gallimard, lgô9. Arìotare-mos aqui a paginação da edição original.
DA MEMÔRIA E DA REMTNISCËNCIA
a meditação sobre a melancolia em clireção à doutrina modenta do gêniozz O tema
astral, que nossos eruditos autores Pelseguem até na astroÌogia árabe. está sempre
prestes a irromper em nossos exaltados do Renascimentoz3. O homem do Renascimen-
to - Íepresentado por um Erasmo, um Marcílio Ficino, um Picco delÌa MírandoÌa, r-rm
Nicoiau de Cusa, um Dúrer - Persegue menôs a salvação individual do que o livre
desenvolvimento da espontaneiclade individual; nesse ímpeto que plenuncia o arle-
batamento do gênio romântico, o col"ìÍaste perturbador entle exaltação e dePressão
se mantém em susPenso. O pólo negativo é simplesmente o que Lessing chamará de
"voluptuosa melancolia", Ìre rdeira da scedin dos Medievais, essa pérfida tentação que
oscila entÌe o pecado e a doença. Contudo, o homem do Renascimento também aposta
que a melancolia pode ser " ntelancholía generosa" (Satutt nnd Melnrrcholy, p. 247)u .
Mas é na gravura de Dürer intitulada Melettcolin I que todas as tentativas de rea-
bilitação cle Saturno e da rnelancoÌia se cristaÌizam. É nela que se detêm os comen-
tários de Klibansky, Panofsky e Saxl. "Lèiamos" a gravura' Uma muiher está sentada,
o ollrar mergulhado numa distância vazia, o rosto obscuro, o queixo apoiado num
purüro cerrado; no seu cÍrto estão dependuradas chaves, símbolos de poder. e uma
boisa, símbolo de riqueza, dois títulos de vaidade, em suma. A melancolia é para sem-
pre essa figura incÌinada. pensativa. Cansaço? Pesar? Tristeza? Meditação? A pergunta
volta: postura declinante da doença ou do gênio que reÍlete? A resposta não derre ser
buscada apenas na figura humana; o cenário também é tacitamente eloqüente: ins-
ttumentos sem emPrego, uma figura geométrica de três dimensões que rePresenta a
geometda, a quinta das "artes liberais", jazem dispersos na cena imóve1. A vaidade do
saber é assim incorporada à figr-rra clesocupada. Essa fusão entre a geometria que se
entrega à melancolia e a melancolia perdida numa geometria sonhadora dá a Melen-
colia I seupoder enigmáticols: a própria verdade seria triste, segundo o provérbio do
Eclesiastes?
Surge então, para nós, a PergrÌnta: que Ìuz sombria é assim lançada sÕbre o texto
de Freud por esse retrocesso? Parece-me que PaÍa fazer sentido é pleciso prolongar a
invesiigação sobre a melancolia até urna das fontes do tema soteÍradas sob a medicina,
a psicologia, a literatura e a iconografia: por trás do lamento de um AÌain Chartier que
22 O leitor não deixará de estabelecer um paralelo entre a nrs ncnnrínc, evocada acima, e a teoria da
nrelancolia. Não era "lonco" o autor das Sorrürn s dns idéins (De uutbris idcnnntt), Giordano Bruno?
?3 SqfwilnndMtlntcholy,op,cif.,p. 125eseg.Opâraleloentreasduastemáticasnãoseriaarlriirário,como o confirnra a referência a Satnrno, "o astro da melancolia", na tradição literária, Pictórica e
poética.
24 É Marcílio Ficino, mais que ninguém, "quem deu fornÌa efetiva à meÌancolia do irorrem cìe gênio
e a revelorr ao resto da Europa - em particÌrÌar âos grandes ingleses dos sécrrlos XVI e XVII, no
claro-escuro clo neoplatonisno cristão e de seu nÌisticismo" (Klibansky Ìf il., Snlilril nnLl A\elnn-
cltttty, op. cít., p.755). Não estamos longe dos atletas entLÌsiastâs da f,/s ,/.'rtorinc, ÌeYando em conla
as conotações astrais de nuitos pensaclores do Renascimento
25 É verclacle que a figura central tem asas, nìas fechadas, e que Pllti a diverten: sugestão de srrbÌi-
nãção? Una coroa que cínge a cabeça e, sobretltdo, o nítmero Quatro - o 'qrradrado mágico" das
lììatenìáticas médicas - pareceÌr servir Lle antídoto
*88e 'ã 89 .i'
A MEMÓRIA, A HISTÓRIA, O ESQUECIMENTO
i:rvoca "Dame MerencoÌye" ou do rei René que celebra "Dame Tristesse", perfila-se a
acídia, já mencionada acima, na quaÌ, além mesmo da sangüínea "luxúria", da colérica
"discórdia", os espiritualistas da ldade Média viam a pior das tentações, a saber, a
complacência para com a tdsteza. A acídia é essa espécie de preguiça, de lassidão, de
clesgosto aos quais o religioso que não reza nem trabalha corre o risco de sucumbir.
Não tocamos, aqui, no fundo moral da melancoÌia apenas aflorado por Freud sob o vo-
cábulo de.SelbsÍget'iiltl? Isso em que a acídia se compraz não é essa tristeza da memória
nrcdjtativa, esse ntood especíÍíco da finitude que se tornou consciente de sí mesrna?
Não é a tristeza se111 cnusa patente da doença-de-morte de Kierkegaarê, essa Parentarlo desespero ou antes, segundo a sugestão de Gabriei Marcel, da inesperançazó? Ao
rcÌ'ìlontarmos assim até a acídia dos religiosos. não teremos dado ao trabalho de luto
rr interlocutor digno deÌe? Objeiar-se-á que o trabalho de luto não tern antecedentes
rrir ljteLatura da melancoÌia. Nesse sentido, seria mesmo uma criação de Freud. Mas
o trabaÌho de luto também tem seus antecedentes nos antídotos que acompanharam
,r r:rclancoÌia nas tradições médica, psicológica, moral, literária, espiritual. Entr'e esses
rt'rrródios, eÌ'Ìcontro a alegria, o humor, a esperança, a conÍiança e também... o traba-
llro, Os autores de Sattntt and Melancholy não estão errados em buscar na poesia lírica
tl,rt.rda do fim da ldade Média e do Renascimento, em particular a inglesa, de Milton e
rlo Slrakespeare dos Sonetos até Keats, o elogio de um humor contrastado e, por assim
r lizcr, dialético em que. &/rg/rÍ responde a Melanclnly sob os auspícios da beleza. Seria
Irt'ciso prosseguir até Baudeiaire essa revisão das figuras poetizadas da melancolia.
prra restituir-lhe sua profundidade enigmática que nenhuma nosologia esgota. É para
csstr lado que nos empurra Jean Starobinski em Ln MéIancolie au niroir. Trois lectu'es de
Ilnrtrlclnire2T. O poema liminar "Au lecteur", em Les Tletu's drr Màl, não chama o livror lo I'édjo de "1jvro saturnino"? O olhar perdido {g.Meìancolia reÍlete-se no espelho da
r'rlrrscjêncía reflexiva, cuja poesia modula.os reflexos. Um caminho de memóría é assim
,rlrcli:o pelo "Spleen": "Sou a sinistra mèmória"; "Tenho mais lembranças do que se
tivcsse rnil anos...". Trata-se, de fato, de figuras do passado histórico que assombram
o Íamoso poema "O Císne", que abordaremos sob um ângulo diferente, no ponto em
tprc a memorização da história coincide com a historização da memória28:
Â:rdrómaca, penso ern \'ó.:...
Esse Simois'mentiroso que com \/ossos prantos cresce,
De repenie fecundou minha mernória Íérti1...
?-6
Na campanha cle Tróia, divirrdacle que represeuta o rio, filho de Tétis e Oceanos. (N. do T.)
Encontrei peìa prineira Vez essa ProbÌemática da "tristeza sen causa" no íim do tomo I de fílosoÍiidn tontodc sob o iítrÌlo da "Tristeza do Íinito" (Le Vololltlìïc ct I'l:l"ôlotltnirc, Paris, Aubier, 195Q 1988,
p. 420 e seg-).
Jean Starobinski, Ln Mélottcolic w núroir. Trois lccfru'as de Bnuclclnie,Paris, Julliard, col. "Collège deFrance',1934.
Cf. a segrÌit terceiÌâ parte, cap. 2, pyt. 401-402.
DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
Assim na flôresta onde meu esPÍrito se exila
Uma velha Lembrança soPra com força a trompa!?e
E por que não evocaïíamos í.tt fine os últimos quaÍtetÕs e as últimas sonatas de
Beethoven e sua poderosa evocação de uma tdsteza sublimada? Pronto, a paiavra foi
profedda: sublimação. Essa peça que falta na panóplia da iletapsicologia de Freud teria
talvez fornecido a este último o segredo da inversão da complacência em relação à
histeza em tristeza sublimada - em alegria30. Sim, o pesar é essa tristeza que não fez
o lrabalho do luto. Sim, a alegria é a recompensa da renúncia ao objeto perdido e a 8a-
rantia da reconciliação com seu objeto interiorizado. E, assim como o trabalho de iuto
é o camirúo obrigatório do trabaÌho de lembrança, a aÌegria também pode coroar com
sua graça o trabalho de memória. No horizonte desse tr'abalho: uma memória "feliz",
quando a imagem poética completa o trabalho de Ìuto. Contudo, esse horizonte se
esconde atrás do trabalho da histór.ia ôuja teoria ainda está por criar. além da fenome-
nologia da memória.
Isso posto, voÌto à questão deixada em susPenso quanto â saber até que Ponto
é Ìegítimo transpor para o plano da memória coletiva e da história as categorias pa-
tológicas propostas por Freud nos dois ensaios que acabamos de Ìer. uma justificativa
provisória pode ser encontrada nos dois lados: no de Freud, e no da fenomenologia da
memória ferida.
Do lado de Freud, teï-se-ão notado as várias alusões a situações que ulhapassam
de longe â cena psicanalítica, tanto para o trabalho de Ìembrança como parâ o de luto.
Essa ampliação é tanto mais esperada peÌo Íato de todas as situações evocadas na cura
psicanaÌítica terem a ver cot:ro outra,não somente aquele do "romance familiar", mas
o Õutro psicossociaÌ e, pol assim dizer, o Õutro cla situação histórica. De lesto, Freucl
não se furtou a semelhantes extraPolações; emTotent e tabu, emMoisés e o nronoteísnto,
em O futu'o de rmta iltLsão ou em O Mnl-estar nn ciuilização E até mesmo algumas de
suas psicanálises privadas, se assim ousamos dizer, Íoram Psicanálises in nbsentin, a
mais famosa sendo a do doutor Schreber. E o que dizer do Moisés cle Miclulnngelo e de
lJnm recordação de infâncin de Leonardo da Vinci? Nenhum escrúpulo deve, pois, nos de-
ter deste lado. A transposição foi facilitada por certas leÌnterpretações da psicanálise
próximas da hermenêuiica, como se vê em algulìs trabalhos antigos de Habermas, nos
quais a psicanálise é reforrnulada em termos de dessimboÌização e cie ressimbolização,
e nos quais a ônfase recai no papeÌ das distorções sistemáticas da comunicação no
plano das ciências sociais. A úr-rica objeção que não Íoi respondida nas interyretações
|ean Starobinski baliza assin o carainho que. da antiga acídia, Passancìo PeÌa ì\4eÌancolia de
Diirer,levaaosplerlcleBaudelaire,oqual,porsuavez,remeteàmemória Cf.aterceiraleituradeLn NIélnrcolìe m ntíroír: "Les figures penchées : 'Le Cygne' ".
Evocando a "poctíc urelnxcolrl in posltnedíconÌ Poetry" e nos grandes elisabetanos, que auuncia a
"Ode oÍ Meìancholy" de Keats, os autores de Snllrl nrtd Melnrrcholy relratam essa meìancoÌia este-
tizada como "/rerghf e netl self-ozunrerrcss" (op. cìt., p. 228).
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30
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A MEMÓRIA, A HÌSTÓRIA, O ESQUECIMÊNTO
hermenêuticas da psicanáÌise diz respeito à ausência de terapeutas recorúecidos nas
relações inter-humanas. Mas não se pode dizer, neste caso, que é o espaço público da
discussão que constitui o equivalente do que se denominava mais acima a"atena"
como região intermediária entre o teraPeuta e o analisando?
Independentemente dessa dificuldade realmente temíveÌ, importa mais para nosso
propósito oÌÌrar em direção à memória coletiva, para reencontrar em seu úvel o equi-
valente das situações patológicas de que trata a psicaná1ise. É a constituição bipolar
da identidade pessoaÌ e da identidade comunitária que, em ú1tima instância, iustifica
estender a análise freudiana do luto ao traumatisrno da identidade coletiva. Pode-se
falar em traumatismos coletivos e em feridas da memória coletiva, não apenas num
sentido analógico, mas nos termos de uma análise direta. A noção de objeto perdido
encontÌa uÍÌa aplicação direta nas "perdas" que afetam igualmente o poder, o teÍitó-rio, as popuÌações que constituem a substâncìa de um Estado' As condutas de 1uto, por
se desenvolverem a partir da expressão da aflição até a comPleta reconciliação com o
objeto perdido, são logo iiustradas peÌas grandes celebraçÕes funerárias em tomo das
quais um povo inteiro se reúne. Nesse aspecto, pode-se dizer que os comPortamentos
de luto constituem um exemplo privilegiado de relações cruzadas entre a expressão
privada e a expressão pública. É assim que nosso col-ìceito de memória histórica enfer-
ma encontra uma justificativ a n postetiori nessa estrutura biPolar dos compoltamentos
de luto.
A transposição de categorias patológicas para o plano histórico justificar-se-ia
mais completamente caso se conseguisse mostlar que ela não se apÌica apenas às si-
tuações excepcionais evocadas acima, mas que eias se devem a uma estrutuÌa funda-
mental da existência coletiva. o que se {eve evocar aqui, é a relãção fundameniai da
história com a violência. Hobbes não estava errado ao afilmar que a fiÌosofia poÌítica
nasce cÌe unra situação originária na quaÌ o temor da morte violenta impele o homem
do "estado de natureza" aos vínculos dê um pacto contratual que garantirá inicial-
meïÌte sua seguÍarÌça; de resto, não existe nenhunta comunídade histórica que não
tenha nascido de uma relação que se possa comparar sem hesitação à guerra. Aquilo
que celebramos como acontecirnentos fundadores são essencialmente atos vioìentos
legitimados posteriormente poÌ um estado de direito precário. A glória de uns Íoi
humilhação para outïos. À ceÌebração, de um lado, corresponde a execração, do ou-
tro. Assim se arnazenam, nos arquivos da rnernória coletiva, feridas simbólicas que
pedern uma clrra. Mais precisamente, o qtÌe, rìa experiência histórica, surge como
trm paradoxo, a saber, excessa de mernória aqui, ütsuJiciêttcln de memória ali, se deixa
reinterpretar dentro das categor.ias da resistência, da compulsão de repetição e, final-
mer'Ìte, encontra-se submetido à prova do c{ifícil tlabalho de lememoração. O e.ïccss0
de nrcnúin lembla muito a contpLLlsão tle repetíçã0, a quaÌ, segundo Frer"rd, nos leva a
substituir a lembrança verdadeira, Peia qual o Presente estaria reconciÌiaclo com o
passado, pela passagem ao ato: qlrantas vioìências no mundo Valem cotrto actí119 oltt
'!ro Ìugar" cla lembrança! Pode-se até falar', caso se queira, em memór'ia-rePetição a
lespeito dessas ceÌebrações fiurebres, mas aPenas para acrescentar logo ern segtiida
DA MEMÓRIA E DA REMÌNISCÊNCIA
queessamemória-repetíçãoresisteàcríticaequeamenróriaìembrançaéfundametr-talmerìte uma memória crítica.
se for assim, então a ì.nsttfciência de memória depende dessa mesma reinterple-
tação. O que uns cultivam com deleite Ìúgubre e outÌos evitam com consciência pe-
sada,éamesmamemória-repetição.Unsgostamdenelaseperder'outrosten'ìemserpor ela engolidos. EntÌetanto, uns e outros sofrem do mesno dét'icìt de crítica. Eles não
alcançam o que Freud chamava de trabalho de retnemol'ação'
Pode-se dar mais um Passo e sugerir que é no plano da memória coletiva' talvez
maisaindadoquenodamemóriaindividual,queacoincidênciaentretrabaÌhodeluto e trabalho de lembrança adquire seu sentido pleno. o fato de se tratar de feridas
cÌo amor-próprio nacional justifica que se fale em objeto de amor perdido' É sempre
.o* purdu, que a memór'ia ferida é obrigada a se confrontar' O que ela não sabe rea-
lizar, é o traballro que o teste de realidade the impõe: abandonar os investimentos
pelos quais a libido continua vinculada ão obieto Perdido, até que a perdn sein tlefniti'oa-
rnente útteriorizarla. Contudo, cabe enfatizar que essa submissão ao teste de reaÌidade,
constitutirro do verdadeiro trabalho de luto, também é Palte integlante do trabalho da
lembrança. A sugestão Íeita acima a respeito das trocas de significado entre trabaLho
da lembrança e frabalho de luto encontra aqui sua justificativa pÌena'
AtransiçãodoúvelpatológicoaoúvelpropriamentePráticonoséfornecidapeÌasanotaçõesarespeìtodaterapêuticaapropriadaaessestranstornos.FreudapeÌainsis.tentemente Para a cooPeração do analisando, e coloca assim a experiência anaÌítica
inteira no ponto de articulação entre o lado passivo, pático, àa memória e o lado ativo
do exercício da memória. Nesse ponto, a noção de trabaiho - trabalho de rememora-
ção, trabalho de luto - ocuPa uma posição estratégica na reÍIexão sobre as faÌhas da
memória. Essa noção Àupõe que os transtornos enÍocados não são apenas sofridos' mas
que somos responsáveis por eles, o que é comprovado pelos conseÌhos terapêuticos
que acompanham a perÌaboração' Num celto sentido, os abusos de memória' de que
falaremos agora, podem aPaïecer como desvios PeÏversos desse trabalho em que o
luto se junta à rernemoração.
2. Nívei prátíco: a memória malìiPulada
QualquerquesejaavalidadedasirrterpretaçõespatológicasdosexcessosedascÌe-ficiências da memór'ia coletiva, não gostaria de deíxar que ocuPassem toclo o terreno'
Um lugar clistinto deve ser criacto, ao lado das modaÌidades mais ou menos Passi\/ast
sofridas, Paclecidas, desses "abusos" - 695119 levando em conta as correções feitas
pelo próprio Freud. nesse tratamento unilateraÌ da passividade -' para abusos' no sen-
tido forte do termo, que resuÌtam cÌe uma rnanipuÌação concertada da memó::ia e do
esquecimento Por detentores de poder', Faìarei, então, menos em memória ferída do
que em memória instrumentalizacla (a categoria weberiana de Iacionalidade segundo
urn fim - ztocckrationalitiif - oposta à cle racionalidade segnndo um vaÌor' - wettrn-
tionnlitiit- tem seu lugar aqui, assim como aqr'rela, impÌementada por Haberrnas' de
Ct 92 {rìÍ-,,H$;-.
..*iffi;
*93.F
 MEMÓRÌA, A HÌSTÓR]Â, O ESQUECÌMENTO
"razão estratégicâ" oposta à "razão comunicacional"). É nesse plano que se pode mais
lr:gltimamente falar em abusos de memória, que são também abusos de esquecimento.
A especificidade dessa segrurda abordagem situa-se no cruzamento enhe a pro-ìrlcmática da memória e a da identidade, tanto coletiva como pessoal.
Retomalemos mais detaÌhadamente, no próximo capítuÌo, esse problema de inier-sccção ao abordarmos a teoria de Locke, na qual a memória é erigida em critério de
itlentrdade. O cerne do problema é a mobilização da mernória a serviço da busca, da
clemanda, da reivindicação de identidade. Entre as derivações que dele resultam, co-
rr.lrecemos alguns sintomas inquietantes: excesso de rlemória, em ial região do mundo,
lortarìto, abuso de memória - insLLficiêncin de memória, em outra, poÍtanto, abuso de
t'squecirnento. Pois bem, é na problernática da identidade que se deve agora buscar
l causa de fragilidade da memória assim manipulada. Essa fragilidade se acrescenta
lclucla propriamente cognltiva que resulta da proxirnidade entre irnaginação e memó-
ria, e nesta encontra seu incentivo e seu adjuvante.
O que faz a fragilidade da identidade? É o caráter puramente presumido, alegado,
Ì)retenso da identidade. Esse clain, como diriam os ingÌeses, esse Ansprucll, como di-riarn os alemães, aloja.se nas resposias à pergunta "quem?", " qtLent sou ett?", respostas
em "que?", cÌa forma: eis o que somos, nós. Somos fnrs, assim e não de outro modo. Aíragilidade da identidade consiste na fragilidade dessas respostas em que, que preten-
dem dar a receita da idenijdade proclamada e reclamada. O problema é assim afastado
ern rnais um grau, da Íragilidade da memória à da identidade.
Con-ro causa prirneira da íragiÌidade da identidade é preciso mencionaL sua rela-
ção difíciÌ cÕm o tempo; dificuldade primária que, precisamente, justifica o lecurso àrnemór:ia, enquaÌ1to componente ternporal da icleniidade, juntamerìte com a avaliação
clo presente e a projeção do futuro. Ora, a.reÌação.lom o tempo cria dificuldades emrazão do caráter ambíguo da noção do n_esmo, implícita na do idêntico. De fato, o
que significa permanecer o mesmo at-ravéÈ do ternpo? Já enfrentei, no passado, esse
eúgma, para o qual propus distinguir dois sentidos do idêntico: o mesmo corno ident,
sante, glcích - o ilÌesrno como lpse, self, Selbst. Paleceu-me que a manutenção de si no
tenpo repousa nurn jogo complexo entre rnesmidade e ipseidade, se nos pelmitiremesses barbarismos; os aspectos práticos e pátìcos desse.jogo ambíguo são maís temíveis
que os aspectos conceituais, epistêmicos. Direi que a ter"Ìtação identitária, a "desrazão
rcìentitária", como disse Jacques Le GoÍf, consiste no retraimento da identidade ipse na
identidade idenr , ou, se preferirem, rìo deslocamento, na cleriva, que conduz cla l'lexibi-
iidade, própria cìa manutencão de si na prünessn, à rigidez inflexírrel de urn cn.róter, no
sentido quase lipográfico clo termo.
A segunda causa de fragilidade é o confronto coÌn outrem, percebido como uma
anleaça. É r-rm fato que o outro, por ser outro, passa a ser percebido como um perigo
Lìara a identiciade própria, tar-ìto a do nós coÌr'Ìo a do ell. Certaurente isso pode consti-tuil urna slÌrpresa: será mesrno preciso clue nossa iderriidade seja Írágil a ponto de não
consegr-rir sr.rpoïtar, Ì1ão conseguil toÌerar que ontros teirharn modos de levar sua rrida,
de se courpreender'. de ìnsc:'ever sur p:'óprir idcrrljcìacle lìa ll:arÌìa do liver-junios, di-
DA MEMÓRIA E DA REMlNlscÈNclA
Íerentes dos nossos? Assim é. São mesmo as humilhações, os ataques Ìeais ou imaginá-
ríos à auto-estima, sob os golpes da alteridade mal tolerada, que fazern a Ielação que o
mesmo mantém com o outro mudal da acolhida à rejeição, à exclusão'
A terceira causa de fragilidade é a herança da violência fundadora. É fato não exis-
tir comunidade histórica alguma que não tenha nascído de uma lelação, a qual se pode
chamar de original, com a guerra. O que celebramos com o nome de acontecimerÌtos
Íundadores, são essenciaÌmente atos violentos legitimados Posteliolmei'Ìte PoI um Es-
tado de direíto precário, legitimados, no Ìimite, Por sua própria antiguidade, Por sua
vetustez. Assim, os mesmos acontecimentos podem significar gÌória para uns e humi-
lhação para outr.os. À celebração, de um lado, corresponde a execração, do outro. É
assim que se aÍÍÌ1azenam, nos arquivos da memória coÌetiva, feridas reais e simbólìcas.
Aqui, a terceira causa de fragilidade da identidade se funde na segunda. Resta mostrar
por que viés as forrnas de rnu uso da memória podem enxeltar-se na reirtindicação de
identidacÌe cuja fragitidade PróPria acabamos de mostrar'
,{s manipulaçóes da ìnemória, que serão evocadas mais adiante, devem-se à inter-
venção de um fator inquietante e multiforme gue se intercala entre a reivindicação c{e
identidade e as expressões públicas da memória. Trata-se do fenômeno da ideoÌogia,
cujo rnecanismo tentei demonstrar em outro lugar3r. O processo ideológico é opaco por
dois motivos. Primeiro, permaÌìece cÌissimulado; diferentemente da utopia, é inconfes-
sável; mascara-Se ao se transformar ern denúncia contla os adversários nO campo cÌa
competição entre ideologias: é sernpre o oufro que atola na ideologia. Por outro lado,
esse processo é extremamente complexo. Plopus distinguir três níveis oPelatórios do
fenômeuo ideológico, em fr-rnção dos efeitos que exerce sobre a compreensão do mundo
humano da ação. Percorridos de alto a baixo, da superfície à profundidade, esses efeitos
são sucessìr,amente de distorção da reaÌidade, de tegitirnação clo sistema de poder, de
integração do muldo comum por meio cie sistemas simbó1icos imanentes à ação. No
nível rnais profundo, aqueÌe em que se situa Clifford Geertz, o fenômeno ideoÌógico
parece mesmo constituir uma estrutura intransponíveÌ da ação, na medida em que a
mediacão simbólica faz a diferença entÌ'e as motivações cla ação humana e as estrlrtuÌas
hereditárias dos comportamentos geneticamente programaclos. Uma correlação notá-
veì se estabelece nesse nívei fundamental entre síntese simbóiica e sistemas semióticos,
aÌguns dos quais dependem francamente de uma retórica dos tropos3?. Tornada nesse
nír,el de pr.ofundídade, a análise do fenômeno icteológico se inscreve na órbita cie uma
"semiótica cia cuÌtura". É n-resmo enqLÌanto fator de íliegração que a ideologia Pode ser
ticìa como gr-rardiã da icÌentidade, na medida em que ela oÍerece uma réplica simbólica
31 P Rícerìr, L'ldéologie el I'Iltoltlc, Paris, ÉditioÌìs du Seuil, col. "La Couleur des idées", 1992 MinÌra
ürvestigação refere,se a pensadores tão cliferentes c}raÌrto Ì\4arx, Altlìusser, Maunheim, Ìr4ax \Â/e-
ber, Habermas (prüleiro período), CÌifford Geeriz
32 "Sem idéia clo modo como a metáfora, a aualogia, a ironia, a arnbigtiidade, o jogo de palavras, o
paradoxo, a lripérboìe, o ritno e todos os outros eletnentos do que chamamos inadequadanentede 'estilo, Íuncionam [_..] na projecão das atitudes pessoais enr sua forna FiÌbÌica, não podernos
analisar a importância das asserções icÌeológicas" ("Ìcleology as a cuÌÌural svstem", PribÌicado trr
C. Geertz, Trc Irtarpretn!iort ofCirliltrts-, New York, Basic Books,1973'yt.209)'
rl
+94ú e95e
A MEMÓRIA/ A HISTÓR]A/ O ËSQUECIMENTO
às causas de fragilidade cÌessa identidade. Nesse nível de radicalidade, o da ação sim-
boÌicarnente mediada, ainda não se pode falar de manipulação nem, portanto, de abuso
de memória. Apenas se pode falar da coerção silenciosa exercida sobre os cosfumes
nr-rma sociedade tradicional. É justamente isso que torna a noção de ideoÌogia pratica-
mente inextirpável. Entretanto, é preciso aclescental de pronto que essa função consti-
tuürte da ideologia mal pode operar fora da interrnediação de sua segunda função, a
de justificativa de um sistema de ordem ou de poder, nem mesmo Potenciahnente fora
do alcance da função de distorção que se erìxerta na precedente. No limite, ãPenas em
sociedades sem eslrutura política hierárquica, e nesse sentido sem poder, se poderia
encontÌar o fenômeno nu da ideologia como estrutura integrativa de algum modo ino-
cente. Definitivamente. a ideologia gira em torno do podef3.
De fato, o que a ideologia busca legitimar é a autoridade da ordem ou do poder - or-
dem, no sentido da relação orgânica entre todo e Parte, poder, no sentido da rela-
ção hierárquica entle governantes e governados. A esse resPeito. as anáiises que Max
Weber dedica às noções de ordern (Ordruury) e de dominação (Hen'sclnft) têm, para
nossa empreitada, um interesse considerável, mesmo que o autor de Ecottontía e so-
ciedacle não tïate tematicamente da ideologia e de sua relação com a identidade. Toda
a análise weberiana do poder3{ gira em torno da pretensão de legitimidade erigida
por toda forma de poder,quer seja carismática, tradicionai ou burocrática; Iogo, tudo
depende da natureza d-o-nó - do nextLs - que vincula as pïetensões de legitimidade
levantadas pelos governantes à crença na dita autoridade por parte dos governados.
Nesse nó reside o paradoxo da autoridade. Pode-se presumir que a ideologia advém
precisamente na brecha entre a demanda de legitimidade que emana de um sistema
de autoridade e nossa ÍesPosta em term?s de crença. A ideologiâ acrescentaria luna es-
pécie de mais-vaÌia à nossa crença espontânea, g.laças à qual esta poderia satisfazer às
demandas da autoridade. Nesse estágio,'a função ãa ideologia seria preencher o fosso
de credibilidade cavado por todos os sistemas de altoridade, não somente o sistema
carismático - porque o cheÍe é enviado de cima - e o sistema fundamentado na tra-
dição - porque semPre se fez assim -, como também o sistema burocrático - porque
o perito, supostamente, sabe. Max Weber dá crédito à Presente hipótese ao definir os
tipos cÌe legitimidacle, seus imperativos e suas exigências, a partir dos tipos de crença
"em virtucle das quais" a ordem é legitimada, o poder, justificado. Ora, os tipos de
crença constituem, cada um a seu rnoclo , Íazóes para obedecer' Por sinal, é assim que
se define a autoridacle. como poder le8ítimo de se Íazer obedecer. Segundo Weber, a
Herrsclnft consiste essencialmente numa relação hierárquica entre cotnandar e oÌrede-
cer. Ela se define expressamente pela expectativa da obediência e a probabiiidade - a
33 Geertz, cujos campos de estudo foram o Marrocos e a Indonésia, confessa de bom graclor
"É por meio da construção das ideologias, das figuras esquemáticas da ordem socia), qtre o
ìromem se torna, para o melhor e para o pior, um animal político". 'A função da ideologia.
lìrossegue ele, é a de possibilitar uma política autônoura ao fotnecer os conceitos que a fun-
damentam e lhe dão sentido, as imagens Persuasivas PeÌas quais ela pode ser iudiciosamenteapreendida." (rüid., p. 218)
34 P Riceuç L/d éol ogi t t t I' Ulop i (, op. cí|., ptp. 24L-284.
rt 96 et *97'b
DA MEMóRIA E DA RÊMlNIscÊNctA
"chance" - de que e1a será satisÍeita. É nesse ponto crítico que os sistemas sìmbólicos
e suas expressões retódcas, também evocadas por C. Geertz, se vêem mobilizadós.
EÌes fornecem o conjunto de argumentos que eleva a ideologia à condição de mais-
valia agregada à crença na legitimidade do poder3s.
Essa relação da ideoÌogia com o processo de legitimação dos sistemas de autorida-
de parece-me constituir o eixo central em relação ao qual se disrribuem. por um lado,
o fenômeno mais radical de integração comunitária por meio das mediações simbóli-
cas - até mesmo retóricas - da ação e, Por outro lado, o fenômeno mais aParente e
mais Íácil de se depÌorar e denunciar. a saber, o efeito de distorção sobre o qual Marx
focalizou suas melhores anáÌises em A ídeologia alemã16. As discutíveis metáforas da
imagem invertida ou do homem de cabeça para baixo são corÈrecidas. O mecanismo
da distorção, posto por sua vez em imagens, somente seria plausível caso se articu-
lasse com o fenômeno de legitimação que coÌoco no centro do dispositivo ideológico
e caso afetasse em úÌtima instância as.mediações simbóücas insuperáveis da ação. Na
falta desses intèlmediários, presume-se que o detrator da ideologia seja capaz de dar'
uma descrição verdadeira, não defolmada e, portanto, isenta de toda interpretação
ern teÍmos de significado, vaÌor, norma, da realidade humana fundamental, a saber,
apraxís, a atividade transformadora. Esse realismo, até mesmo essa ontologia da prn-
ris37 e mais plecisamente do trabalho vivo36, constituem ao mesmo tempo a força e a
fraqueza da teoria marxista da ideologia. De fato, seapraxis não integra, a título pri-
mitivo, uma camada ideológica, na plimeira acepção da palavra, não se vê o que. nessa
prnxis,poderia ser motivo de distorção. Desiigada desse contexto simbólico originário,
a denúncia da ideologia se reduz a um panfleto contra a Propaganda. Essa empreitada
purificadora não é vã, pode ter sua necessidade circunstancial se for desenvolvida na
perspectiva cla reconslrução de urn espaço púbÌico de discussão e não na de uma luta
inpiedosa que teria por único horizonte a guerra civiFe.
35 Ao arriscar a expressão mais-valia, sugiro que a noção marxista de naìs-valia centrada na proclu-
ção de valores na economia meÍcantil não passaria de uma figura particular do fenômeno geraÌ de
mais-r'alia vinculaclo ao exercício do poder, o poder ecouômico na forna caPitalista da economia
nìercantil sendo a variaúe especificacÌa peÌa divisão do trabalho entre governantes e gol,ernados.
36 P Ricerrr, L'ld éol oXí c et I' LIÍ opi e, op. cit., pp. 1Q3-I17.
37 A obra cle Micìrel Henry sobre a ontologia de Marx (Mnr, t I, Une Tlilosophíe dc lt rónlílé, Parrs'
Gallirnarcl, 197ó) continua selìclo o texto de reíerência para urna conpïeeÌ1são profunda da auáÌise
nìarxista dâ reaÌidade humana, Eu havia escrito uDra análise desse belíssimo Ìivro pouco dePois
cie sua publicação, retomada em Lecturcs 2, Ln conh'ée des plilosoplre.s, Paris, Éditions du Seuil, col.
"La Couleur des jdées", 1992; reec1. col. "Poirrts Essais",1999. Nessa últiDla edição, Pp. 265-293,
38 Jean-Luc Petit, Du tÍnt)nil ïit)nnt il systène des ncfíons. Llne tlìscussiott dc Morx, Paris, Editjons drr
SeuiÌ,1980.
39 Essa foi a contribuição cle HaLrernras na época de C0rldiò-s-n[L'c ct Intárêt (Patis, Galìir:rard, coi.
"Bibliothèque de philosophie", 1976 ; reed., col. "Tel", 7979); ver P Riceur, L'kléologít cl l'LLtÒpit,
op. cif., pp.285-334. Um interesse pela emancipação, distjnto do irìteresse pelcr co:rtrole e peìa
manipulação, aos quais coLresponderiam as ciências enrpíricas, e até mesrÌìo do interesse pela
conruricação, próprio das ciências históricas e interpretativas, estaria na base das ciências sociais
críticas tais conìo a psicanálise e a critica das ideologias.
A MÊMÓR]A, A HISTÓRÍA, O ESQUËCÌMENTO
Se essa análise é plausível, ou mesrrÌo correta, percebe-se facílmente quais molasÍnovem os diversos empreendímentos de manipulação da memória.
É fácil vinculá-los, respectivamente, aos diversos níveis operatórios da ideologia.No pÌano mais proÍundo, o das mediações simbólicas da ação, a memória é incor-
|orada à constituição da identidade por meio da Íunção narrativa. A ideologizaçãorla rlemória toilla-se possível pelos recursos de rrariação oferecidos pelo trabalho de
rrrnÍigr-rração naÌrativa. E como os personagens da narrativa são postos na trama si-rrrultaneamente à história narrada, a configuração narrativa contribui para modeÌar a
idcrrtidade dos protagonistas da ação ao mesmo tempo que os contomos da própriarrção. Hamrah Arendt nos lernb::a que a narrativa diz o "quem da ação". É mais pre-cisarnerrte a fu:rção seletìva da narrativa que oferece à rnanipuÌação a oportunidader, os ;neios de uma estratégia engerúosa que consiste, de saída, numa estratégia dot,squecimento tanto quanto da lememoração. É o qre expÌicaremos no estudo temá-lico reselvado ao esquecimento. Contudo, é no nível em que a ideologia opera comoclìscurso justificador do poder, da dominação, que se vêem mobilizados os recursos de
nrnnipulação que a narrativa oferece. A dornínação, como vimos. não se limita à coeï-
çâo física. Aié o hrano precisa de um retórico, de um sofista, para transforrnar em dis-(llrrso sua empreitada de sedução e intimìdação. Assim, a narrativa imposta se torna o
ins[rumento priviÌegiado dessa dupla operação. A própria maís-valia que a icleologialgrega à crença ofelecidaaelos governados para corresponderem à reivindicação de
legitimação lerrantada pelos governantes apresenta Lrma textuÌa narrativa: narrativasde fundação, narrativas cÌe g1ória e de humilhação alirnentam o discurso da lisonia e
do medo. Torna-se assim possível vincular os abusos expressos da memória aos efei-tos de distorção que dependem do nívelíe.lomenal da ideologia. Nesse níve1 aparente,
;r mernória imposta está armada por uma.llistória-_ela rnesma "autorizada", a ìristóriaoficial, a história aprendida e ceÌebrada pUblicamente. De fato, uma memória exercida
é, no plano institr-rcionaÌ, uma memória e'nsinada; a memorização forçada encontra-se assinì arrolada em benefício da rememolação das peripécias da história comurnticLas como os acontecimentos fundadores da identidade cotrÌum. O Íecharnento da
nau'atirra é assirn posto a servico do fechamento identitário da comunidade. Históriaensinada, história aprenclida, rnas também Ìristória celebrada. À memorização forçacla
somam-se as comemorações conrrencior-radas. Um pacto ten'Ìível se estabelece assim
en lre remerl'ÌoÌ ac(ìo. melÌ oÌ'iza cão e comelnora cã o.
Chegamos aqui aos abusos precisos denunciaclos por Tzvetan Todolov no ensaio
precisamente intitr-rlado Os nbusos da nrcnrórinao, no qual se pode ler um requisitóriosevero voltado contr:a o frenesi contempor'âneo pot' colnemorações, com seu corteiocÌe ritos e mitos, geraÌmente vinculados aos acontecimeutos frurdadores evocados irá
por-rco. O embargo da memória, insiste Todoro\', não é especiaÌidacle cìos regimes to-talitários apenas; ele é o apanágio de todos os devotos da glória. Dessa denúncia re-
suÌta uma advertência contra o que o arÌtoÍ chama de urn "elogio incondicioiraÌ da
40 Tzvetan Tocloro\,, Lcs,4lr1ls'.íc h núntoìrt,Paris, ArÌéa, 1995
DA N,íEMÓRÍA E DA REMÍNISCÉNCIA
memória" (Os abusos cln nenúrin, p. 13). "O que está ern jogo na memóÍia, acrescenta
eIe, é grande demais para ser abandonado ao entusiasmo ou à cólera" (op, cit., p.14).
Não insistirei num outro aspecto do ploblema, a saber, a pretensão de nossos con-
temporâneos de se instalarem na postuÌa da vítima, no estatuto da vítima: "Ter sido
vítima dá o direito de se queixar, pÌotestar, e teclamar" (op. cit., p.56). Essa postura
gera um pri','ilégio exorbitante, que põe o resto do mundo em posição de devedor de
promissóÌias. Conselalei, antes, de Todorov, uma última reflexão que nos Ìevará à
difícil questão do dever de memória: "Como todo trabalho sobre o passado, o tralralho
do historiador jamais consiste apenas em estabelecer fatos, mas também em escolher
alguns deles como sendo mais destacados e n'rais signiÍicalivos que outros para, enl
seguida, reìacioná-los entre si; ora, esse trabalho de seÌeção e de combinação é ne-
cessariamente orientado peÌa busca não da verdade, mas do bem" (op. cif., p. 150).
Indepenclentemente das minhas ressaÌr'as para com a alternativa aqui sugerida entre a
veldade e o bem, teremos de adiar até a discussão ulterior, sobre o dever cie memória,
a ïeorientação de toda a faÌa sobre os abusos da memória que dependem da busca da
justiça. Esse cuidado encadeia-se ao que foi dito acima em favor de um conselÌro ex-
tremamente iudicioso de Todorov, o de extrair das lembranças traumatizantes o valorexemplar que apenas uma inversão da memória em plojeto pode tornar pertinente.
Enquanto o traumatismo ïemete ao passado, o valor exemplar orienta para o futuro.Ora, o que o cuÌto da memória pela memória oblitera, ao objetivar o futuro, é a questão
do filn, clo desafio moral. Ora, a essa questão, a pr'ópria noção de uso, ìmpÌícita na de
abuso, não podia deixar de remeter'. EÌa já nos fez ultrapassar o limiar do telceilo nír,e1
de nossa investigação.
3. NírreÌ ético-político: a memólia obrigada
Qual é, indagalemos finalmente, a sitllação do pretenso der,,el de nrenrória? A bemda verclacle, a pergunta ó muito prernatura se considerarmos o percurso de pensamen-to que aírcla nos resta trilhar. Ela nos projeta muito além de uma sirnples fenomenolo-gia da memória, e âté nresmo aÌém de uma episternoÌogia da história, até o coração cla
hermenêutica cta condição histór'ica. De Íato, não se pode ignoral as condições históri-cas nas qnais o dever de memória é requerido, a saber, na Eulopa ocidental e particu-lartnente na Franqa, algumas décac{as após os hor::ír'eis acontecimentos de meados clo
sécuÌo XX. A irrjturção só passa a fazer sentido em relação à dificuldades, vivenciadapela comruridade nacional ou peÌas paries felidas do corpo político, de consiituir umameilória tlesses acontecimentos de modo apazigr-rado. Não se poderia falal dessas
diÍicuÌdades de maneit'a responsár'el sem ter arìtes atrarressado as planícies áricÌas cla
epistemologia do conhecimento histórico para cÌregar à r'egião dos conflitos eÌìtre Ìne-rtória individual, memória coletirra, memória histórica, nesse ponto em qne a memó-Lia viva dos sobrerziventes el'ìfrenta o olÌrar distanciaclo e crítico do ìrìstoriador, paranão mencionar o do juiz.
+98+ il,liri {' gg 'Í
A MÉMORIÂ, A IJISTÓRÌA/ O ESQUECIMENTO
ora, é nesse ponto de atrito que o dever de memória se revela particuÌarmente car-
regado de ambigüidades. A nrjunção a se Ìembrar corre o risco de ser entendida como
um convite dirigido à memória para que provoque um curto-circuito no trabalho da
história. Por meu lado, estou tanto mais atento a esse perigo pelo fato de meu livro ser
uma apologia da memória como makiz de história, na medida em que ela continua
sendo a guardiã da problemática da reiação representativa do Presente com o passado.
Logo, é grande a tentação de transformar essa apoÌogia numa reivindicação da memó-
ria contra a Ìristória. Chegada a hora, resistirei tanto à Pletensão oposta, de reduzir a
memória a urn simples objeto de história dentre seus "novos obietos", colrendo o risco
cle despojáìa de sua fuirção matriciaf quanto me recusarei a deixar-me arregimentar
pela argumentação inversa. É com essa disposição de espírito que escolhi colocar pela
primeira vez a questão do dever de memória na seção dos usos e abusos da memória.
mesmo que tenha de retomá-la mais demoradamente na seção sobre o esquecimento
Dizer "você se lembrará", também significa dizer "você não esquecerá"' Pode até ser
que o dever de memória constitua ao mesmo tempo o cúmulo do bom uso e o do abuso
no exercício da memória.
Espantemo-nos primeiro corn o paradoxo gramaúcal que a injunção de se lembrar'
constitui. Como é possível dizer "você se lembrará", ou seja, contalá no futuro essa
memória que se apresenta como guardiã d.o passado? Mais grave ainda: como pode
ser permitido dizer "vg-cê deve Ìembrar-se", ou seja, deve contar a memória no modo
imperativo, quando cabe à lembrança poder surgir à maneira de uma evocação espon-
tânea, portanto , de umpa.tlt.os, como diz o De menroria de Aristóteles? De que maneira
esse movimento prospectivo do espírito voltado para a lembrança como uma tarefa
a cumprír se articula com as duas disposições deixadas como que em suspenso' a do
trabalho de rnemória e a do trabalho õeiuto, consideradas aÌtemadarnente de modo
separado e em dupla? De certa Íorrna, ele prolon$íseu carátel prospectivo. Mas o que
Ìhe acrescenta? ;
É certo que, no âmbito preciso da cura terapêutica, o dever de memória se formula
colrÌo ulna tarefa: ele marca a vontade do analisando de cOntribuir doravante corn a
ernpreitacla conjunta da análise através das armadilhas da transÍerência. Essa vonta-
cìe reveste-se até nesmo da forma do imperativo, o de deixar os representantes do
inconsciente se dizerem e assim, tanto quanto possível, "dizer tudo". Nesse aspecto,
é preciso reler os conselhos que Freud dá ao analista e ao analisando em seu ensaio
"Rememoração, repetição, perlaboração"{1. Por seu lado, o trabalho de luto, na medida
em que exige tempo, projeta o artesão desse trabalho à frente de si mesmo: doravante,
ele continuará a cortar um por um os vínculos que o submetem ao império dos objetos
perdidos de seu amor e de seu ódio; quanto à reconciliação com a própria perda' ela
pern-Ìanece para sempÌ-e uma tarefa inacabada; essa paciência consigo mesmo reveste-
se meslno cloS traços de uma virtude quando a oPoll1os, como tentârtos fazet, a esse
vício que consiste no consentimento à tristeza, à acídía dos mestres espirituais, essa
paixão dissinrulada que arrasta a melancolia para baixo'
DA MEMÓRIA E DA REMINISCËNCIA
Isso posto, o que falta ao trabalho de memória e ao lrabalho de luto para se iguala-
Iemaodeverdememória?oquefalta,éoelementoimperativoquenãoestáexpressa-mente presente na noção de trabalho: trabaiho de memória, trabaÌho de luto. Mais exa-
tamente, o que ainda Íalta é o dupÌo aspecio do dever, como que se impondo de fora
ao desejo e exercerrdo uma coerção sentida subjetir'amente como obrigação. ora, onde
esses dois traços se encontram reunidos, do modo mais indiscutível, senão na idéia
de justiça, que mencionamos uma primeira vez em réplica aos abusos da memória no
nívei da manipuÌação? É a iustiça que, ao extrair das lembranças traumatizantes seu
valor exempÌar, transforma a memória em Projeto; e é esse mesmo projeto de iustiça
que dá ao dever de memória a forrna do futuro e do imperativo. Pode-se então sugerir
que, enqrranto imperativo de iustiça, o dever de memória se projeta à maneira de um
terceiro termo no ponto de junção do trabaÌho de luto e do trabalho de memória. Em
troca, o imperativo recebe do trabalho de memória e do kabalho de luto o impuÌso que
ointegraaumaeconomiadaspulsões..EssaÍorçafederativadodeverdeiustiçapodeentão se estender para além do par memória e Ìuto até aquele formado conjuntamente
pela dimensão veritativa e pela dimensão pragmática da memória; de fato' nosso pró-
p.io dir"r.ro robre a memória Íoi conduzido, até aqui, segundo duas lirúras paralelas'
a da arnbiçao veritativa da memória, sob o signo da fidelidade epistêmica da Ìembran-
ça em relação ao que efetivamente aconteceu, e a do uso da memória' considerada
como prática e até mesmo como técnica de memorização Logo' retorno do passado e
exercício do passado, bípartição esta que rePete a divisão em dois capítulos do tratado
de Aristóteles. Tudo se Passa como se o dever de memória se projetasse à frente da
consciência à maneira de um ponto de convergência enh'e a perspectiva veritativa e a
perspectiva pragmáúca sobre a nemória'
Coloca-se,então,aquestãodesaberoquedáàidéiadejustiçasuaforçafederativa'tanto em relação ao objetivo veritativo e ao objetivo pragrnático da memória' quanto
em r.elação ao trabalho de memória e ao trabalho de luto. É a relação do dever de me-
mória com a idéia de justiça que se deve questionar"
Prirneiroelementoderesposta:éprecisoprimeiro].enrbrarque,entletodasasvír.tudes, a da justiça é a que, por excelência e PoI constituição, é voltada Para outrenl
Pode-se até dizer que a justiça constitui o comPonente de alteridade de todas as virtu-
des que ela arranca clo curto-citcuito entre si mesmo e si mesmo. O dever de mernória
é o clever de fazel justiça, pela lernbrança, a um outÍo que não o sir2'
Segundo elemento de resposta: é chegado o momento de recolrer a um conceito
ttovo, o de cÌír,ida, que é importante não confinar no cle culpabiÌidade' A idéia de dí-
I'ida é inseparável da de helauça' Somos devedores de parte do que somos aos que
nos prececÌeram. O cÌever de memória não se limita a guardar o Iastro matelial, escrito
ou outro, clos fatos acabados, mas enh'etém o se1ìtimento cle dever a outÌ'os, dos quais
ciirernos mais adiante que não são mais, rnas já ibram. Pagar a dívida, dilemos, mas
tarnbém srúmeter a herança a inventário.
42 Cf. AristóteÌes, Éthiquc à Niconoqrr, livro V.41 Cf. acirna, pp. 103-105 e pp. 115-116.
4 ÌOO ,FS IOI .&
A Ì\4EMÓRIA, A HISTORÌA, O ESQUECIMENTO
Terceiro elernento de resposta: dentre esses outros com quen estamos endivida-
dos. uma prioridade moral cabe às rrítimas. Acirna, Todorov advertia contra a Pro-pensão a se proclamar vítima e exigir incessantemente reparação. Ele estava certo. A
vítirna em questão aqui é a vítima outra, outra que não nós.
Sendo esta a legitimação do dever de memória enquanto dever de justiça/ como os
abusos se enxertam no bom uso? EÌes próprios não podem passar de abusos no manejo
da idéia de justiça. Ê aqui que certa reivindicação de mernórias passionais, de memó-
rias feridas, rontla o alvo mais amplo e mais crítico da Ìristóría, t'em daL à proferição
do dever de memória um tom comínatório que encontra na exortação.a comemorar
oporturla ou inoportunamente sua explessão mais manifesta.
Antecipando desenvolvimentos uiteriores que supõem um estado mais adiantado
da dialética da memória e da histórìa, assinaÌo a existência de dr-ras interpretações mui-to distintas, embora compatír'eis entre si, desse deslocamento do uso ao abuso.
Pode-se, de um lado, enfatizar o caráter legressivo do abuso que nos remete à pri-rneila fase de nosso peÌcuÍso dos usos e abusos da memória sob o sígno da memória
irnpedida. É a expÌicação que Henry Rousso plopõe em Le Syndrome de Vichfs. Essa
cxpÌicação sornente vale nos limites da história do tempo presente, poÌ'tanto, Para um
1:razo relativamente curto. O autor tira o melhor proveito das categorias que depen-
derrr de uma patologia damemória - traumatismo, recalque, retorno do recalcado,
obsessão, exorcismo. Nese quadro nocionaÌ que somente se legitima por sua eficácia
ìrc:urística, o dever de memória funciona como tentativa de exorcismo numa situação
histórica marcada pela obsessão dos tlaurnalismos sofridos pelos franceses nos anos"i'940-L945. É na medìda em que a proclamação do dever de memória permanece cativa
rlo sintoma cÌe obsessão que ele não pára-de hesitar e1ìtre uso e ablso. O rnodo como o
cÌcver cle memória é procÌamado pode parecer', sim, abuso de memórìa à maneira cÌos
.rbusos denunciados Ìogo acima na seçãq sobre a memória manipr.rÌada. Não se trata
rnais, obrriamente, de manipulações no sêntido deiimitado pela relação ideológica clo
drscurso con'Ì o pocler, rnas, de moclo mais sutil, no sentido de uma direção de cons-
ciôrrcia que, ela mesma, se proclama poïta-voz da dernanda de justiça das vítimas. É
essa captação da paÌavra mr-rda clas vítimas que faz o uso se transformar ern abuso.
Nõo é de admirar se reencontran"Ìos, nesse nír'el entretanto superior da n-remória obri-
11,rda, os nlesn-Ìos silais de abuso que na seção precedente, principalmente na foltna11o Írenesi de comemoração. Trataremos de moclo temático desse conceito cìe obsessão
nur.rr estágio rnars adiantado desta obra, no capítulo solrle o esquecimento.
Urna expÌicação menos centracla no ïecitativo da história clo ternpo presente é pro-
lrosta por Pielre Nora no texto que enceÍra a terceila série dos Lrgares de nrcnúrin - as
Ì;r'ança - com o título: "A ela das comemorações"{. O artigo é dedicado à "obsessão
43 Henry Ronsso , Lc Syndrone de Víchy, da 1944 à nos 10urc, Paris, Éditions drr Seuil, 1987 : rced.,1990;Vichy. L[n pnssé qrtì ttc pnssa pns,París, Favard, 199-tr Ln Hntrtíse du pnssó,Paris, TextueÌ, 1998.
4-l P Nora (dir.), Lcs Licrtx dc nftnoire (3 lìartes : L La République ; ll. La Nation ; IIÌ. Les France),Paris, Gallimard, col. "Bibliothèque iÌìustrée des hjstoires",1984-1986. \/er III, Les France, t.3, "De
l'arcÌ1iye à ltnlìlème", p.977 e seg.
DA MEMÓRIA E DA REMlNlScÊNclA
comemorativa" e somente se compreende no diálogo estabeÌecido PoI seu autor com
o texto inaugural dos "lugares de memória". No momeuto oPortu'no, dedicarei um
estudo a esse diáiogo de Pierre Nora consigo mesmo4s. Se o menciono agora é para
dele extrair a advertência contra uma recuperação de meu próprio trabalho em be-
nefício de ujn ataque da história em nome da memória. o próprio autol se queixa
de uma recuperação semeÌhante do tema dos "lugares de memória" pela "bulimia
comemorativa de época" (Nora, Os ltryares de nlemóïia III,p.977): "Esiranho destino o
desses 'iugares de memória': Por seus procedimentos, seus métodos e seus próprios
títulos, queriam ser uma história de tipo contracomemorativo, mas a comemoração
os âlcançou. [...] A ferramenta forjada para evidenciar a distância cr'ílica tornou-se o
insffumento por excelência da comemoração". . ' O nosso é um momento histórico que,
portanto, é inteiramente caracterizado Pela "obsessão comemorativa": maio de 1968,
bicentenário da RevoÌução Francesa. etc. A explicação proPosta por Nora ainda não
nos diz respeito, apenas seu diagnóstico: "É a própria dinâmica da comemoração que
se inverteu, o modelo memoriaÌ levou a melhor sobre o modelo hisiórico e, com eie, um
usocompletamenteciiferentedopassado,irnprevisívelecaprichoso" (op'cit.,p'988)'
Que modelo histórico o modelo memorial substituiu? o modelo de celebrações con-
sagradas à soberania impessoal do Esiado-nação. O modeÌo mereceria ser chamado de
histórico, porque a autocompïeensão dos franceses identificava-se com a história da
instauração do Estado-nação. A ele substituem memórias particulares, Íragmentadas,
locais e culturaisaó. Que reivindicação está vinculada a essa inversão do histórico em
comemorativo? Interessa-nos aqui o que diz respeito à transição da fenomenologia da
memória à epistemologia da história científica. Esta, nos diz Pierre Nora, "taì como se
cor-rstituiu em instituição da nação, consistia na retiÍicação dessa tradição de rnemória,
no seu enriquecimento; mas, Por mais 'crítica' que Pretendesse ser, ela rePresentava
apeÌ1as seu aprofundamento. Sr"ra meta últíma consistia mesmÕ nüma identìficação
por fiÌiação. É 'esse
sentido que história e memória eram uma única e mesma coisa; a
Ìristória era uma memória verificada" (op. cit.,p.997). A inversão que está na origem
da obsessão comemorativa consìstiria na recuperação das tradições defuntas, de fatias
de passado das quais estamos separados. Em suma, "a comemoração emancipou-se do
espaço qrÌe 1he é tradicionalmente atribuído, mas é a época toda que se torllou come-
moratirra" (op. cit., p. 298).
Faço qr-restão de dizer, ao cabo deste capítulo dedicado à prática cìa memória, qtte
:nirúa empreitada não depencle desse "ímpeto de comemoração memorial" (op. cit-,
p. 1001). Se é verdade que o "rnomento-memória" (op. cit , p.1006) define uma época,
a nossa, rneu trabalho ambiciona escaplar aos critérios de pertencimento a essa éPoca,
seja em sua fase fenomenológica, epistemológica ou hermenêutica. Com razão ou não.
Por isso ele não se sente arneacado, rnas confortaclo, pela conclusão de Pierre Nora,
45 Ver lbirl., IIÌ, i. 3, "De l'archive à l'emblème", cap. 2, $ 4.
-16 P Nora precisa: essa "metãìrorfose da comemoração" seria, por s!Ìa 1'ez, o efeito de uma meta-
morfose mais ampla, "a de uma França que passon, en menos de vinte anos, de uma consciência
rìacionaÌ rÌnitária â una consciência cÌe si de tiPô Patrinonial".
t.;,li.t
'rff.4i '.;r& ÌO2 {i + Ìo3 .1
A MEMÓRIA, A HISTóRIA, O ESQUECIMENTO
que anuncia um tempo em que "a hora da comemoração estará definitivamente en-
cerrada" (op. cit., p. 1012). Pois não é com a "tirania da memória" (ibíd.) que ele quís
contribuir. Esse abuso dos abusos é daqueles que ele denr.rncia com o mesmo vigor que
o faz resistir à substituição do trabaÌho de luto e do trabalho de memória pelo dever de
merrória e limitar-se a coìocar esses dois labores sob a égide da idéia de justiça.
A questão colocada pelo dever de memória excede assim os limites de uma sim-
ples fenomenologia da memória. Eia excede até os recursos de inieligibiÌidade de
uma epistemologia do conhecimento histórico. Finaimente, enquanto imperativo de
justiça, o dever de memória se inscreve numa problemática moral que a presente
obra apenas resvala. Uma segunda evocação parcial do dever de memória será pro-posta no âmbito de uma meditação sobre o esquecimento, em relação com um even-
tual dìreito ao esquecimento. Seremos então confrontados com a delicada articulação
entre o discurso da memória e do esquecirnento e o da cuÌpabilidade e do perdão.
Nessa suspensão interrompe-se nosso exame da memória exercida, de suas faça-
nhas, de seus usos e de seus abusos.
Nota de oïientação
-ì, To rliscussão contentporânect, n Pel'8unta do sujcito ueràndeìro dns opernções de nrc'
I\ f ,rOrin tende a donti,rar a cena. Essa precipitação é encorajada por tn.tít ìnquietação
L \ p,,aprio de rtosso canrpo de in-ocstigaçao: ítrporrn. ao historiador sabe| qtnl é seu con-
traponto, a nrcmóin dos protagonistas dn nção tomados uttt g 11111, ou a das coletiuídndes tonta.
clns ent corrjtLnto? Apesnr dessa dttpla tffgêncin, resisti à tentação de íniciar núnha inuestigação
coüt esse debate às aezes ütcôntodo. Penseí que se elininaria setL aenerto t'azendo-o retroceder
clo prinrciro ltryar, onde a pedngogía do disctLrso aquí sttstentacla tnntbénr nconselharia nnntê-
Io,pnrnotcrcìh'ohryar,oníle ítcoel'ênciatlonrctLprocedinrcrúoreqllü que euorecorLchLzn'Se
n.ão se snba o que signíficn a proua dn nrcrnórín na presetlçt'oh'a de wtn ìnmgent das coisns
pnssadas, nellt o tlLre sìgriftcn pnrtit enr brtsco àe rnna lentbrnnçn perdícla otL reencontrnda,
conn se pocle legitinnnrente intlngar n Ercnr ntribtLir essã proon e essa buscn? Assün ndiacla, a
disctrssão tcnt algrntn chnnce de oersnr sobre lmnpergtnlta nrenos abntpta que a qtLe se coloca
gerolnrcttte tn fornra ,la tutt tlile|n pnralisnrúe: n nrcnúria é prìnnrctìnlntente pessoal otr col'eti-
xa? Essa pergrnún é n scgtinte: n quem é legítimo rÌtribtúr o Pathos correspontlente à rcccpção
da lenúnnçn e n praxis enr qrrc consíste n futscn da lenfurnnçn? A respostn à petgnlta colocadn
lleSSCS tentl.Js tenL ClnnCeS de escnpot à nlternntìt,n tle tutr "ott... ou entã0". Por ryrc nnrcnúrin
hn-tterìo dc ser att'ibtúda npenns n ttritu, n ti, n eln orr t'lc, rttt singulnr dns três pessoas grnntntícnis
srrscetízteìs qtrcr de desígrtar n sí pró\trins, rlttcr tla st tlírígir cndn Ltntn n Loil tq quer de tnn'nr os
fnlos e os gcstos de rmt terceìro nunn nnrrúíun anr t(rct,irt Pc,sson río síngulnr? E lsor t\uc essn
ntribuìçã.o não se t'nrin tlit'etanrctúe n nós, n t,5s, n elt's? Eniltttrtt n ilisclrss-ão nbartn ltcln nltr:rnn-
lít'n qtLe o títtLlo cleste capítttltt rcsrnte não se rcsttlt'l, ttÌst'ionrctttc, rot'/ cs-sc ntertt deslocntrtcuto
rlo problento, o espnço cle ntr'íbttição lsreztíontantc nbcrttt à lotnlìtlalc dns /cssons.qrntrtntícnìs ktnesnrc das n.ão-pcssoas: se, qlrcnr qlLer tlLte, cndn tntt) L)ferece n0 fltcllLts uttt rytndro rtlttttltrindo
o tnna cotfrontnçãl entl c teses qtLe se tornnrnm conrcúsu'(ír1cis'
Esta é n núilm prinrcin hipótcse dc trnbnlho. A segtnttln é n sagtinte : rt nlttrtrntii'n tln
qual pnrtínros é o frrfto relntiztanrcnte tnrilio dtt tm drrltlo ntouínrcnttt tltttt tontou sun forttt0 (
seu intptlso ntttíto clepois cln elnbornçno rins i?Uns proLtlanútìcns ntniorcs dn !7ro11n ( Lln bilscn
rin lenú:ratrçn, cloboração c1.tin otí8tnt Itttlol1tn, conto z'itttos, à épocn de PIntão c Aristótclas'
Memóriq Pessonl,.-t
Memóriq Coletiaa
*ro4@ $ ro5 .F
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