S i d n e i A m e n d o e i r a J r . Mestre e Doutor em Direito
Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo. Advogado em São Paulo. Professor de
Direito Processual Civil dos cursos de graduação da EDESP – Escola
de Direito de São Paulo (FGV). Cocoordenador do Curso de
pós-graduação em Direito Processual Civil da GVlaw-AASP; e do Curso
de Extensão de
Estratégias Processuais da GVlaw. Professor nos cursos de
pós-graduação COGEAE-PUCSP em São Paulo e Sorocaba; UFU –
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Amendoeira Jr., Sidnei Manual de direito processual civil, volume 1
: teoria
geral do processo e fase de conhecimento em primeiro grau de
jurisdição / Sidnei Amendoeira Jr. 2. ed. – São
Paulo : Saraiva, 2012. Bibliografia.
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2. Processo civil : Direito civil 347.9
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meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva. A
violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n.
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
124.398.002.001
SUMÁRIO
1 JURISDIÇÃO 1.1 Formação e conceito 1.2 Características e
princípios inerentes à jurisdição 1.3 Unidade da jurisdição e suas
“espécies” 1.3.1 Jurisdição penal e civil 1.3.2 Jurisdição especial
e comum 1.3.3 Jurisdição superior e inferior 1.3.4 Jurisdição de
direito e de equidade 1.4 Limites da jurisdição 1.5 Jurisdição
voluntária 1.6 Arbitragem e jurisdição
2 DIREITO PROCESSUAL 2.1 Conceito 2.2 Teoria unitária e teoria
dualista do ordenamento jurídico 2.3 Instrumentalidade do processo
2.4 Fases metodológicas do estudo do processo 2.5 A norma
processual (conceito e fontes) 2.5.1 Eficácia da norma processual
2.5.2 Interpretação da norma processual
3 UM POUCO DE HISTÓRIA 3.1 Por que estudar história? 3.2 Direito
romano e direito romano-barbárico 3.3 Direito canônico 3.4 Direito
comum 3.5 Direito luso-brasileiro (até o Código de Processo Civil
de 1939) 3.6 O Código de Processo Civil de 1973 e suas
alterações
4 PRINCÍPIOS PROCESSUAIS 4.1 Tutela constitucional do processo 4.2
O princípio do devido processo legal 4.3 Os princípios da igualdade
e do contraditório 4.4 Inafastabilidade do controle jurisdicional
4.5 Princípio do juiz natural 4.5.1 Subprincípio da identidade
física do juiz 4.6 O princípio da imparcialidade do juiz 4.7 Os
princípios dispositivo, da inércia e do impulso oficial 4.8 Os
princípios da legalidade e da motivação das decisões 4.9 Princípio
do duplo grau de jurisdição 4.10 Princípio da proibição da prova
ilícita 4.11 Princípio da razoável duração do processo 4.12 O
princípio da proporcionalidade 4.13 Princípio da oralidade 4.14
Demais princípios relevantes 4.14.1 Princípio da persuasão racional
do juiz 4.14.2 Princípio da publicidade 4.14.3 Princípio da
economia processual e da instrumentalidade das formas
5 ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA 5.1 Considerações iniciais 5.2 Estrutura
do Poder Judiciário 5.2.1 Tribunais Superiores da União 5.2.2
Justiças Especiais 5.2.3 Justiça comum 5.2.3.1 Justiça Federal
5.2.3.2 Justiça Estadual 5.2.3.2.1 Tribunal de Justiça 5.2.3.2.2
Primeiro grau
6 COMPETÊNCIA 6.1 Conceito 6.2 Competência internacional 6.3
Competência interna 6.3.1 Competência de justiça ou de jurisdição,
foro, juízo 6.3.2 Critérios: funcional, territorial, valor e
matéria (e pessoa?) 6.3.3 Competência absoluta e competência
relativa 6.3.4 Perpetuatio jurisdictionis e causas modificativas da
competência 6.3.5 Conflito de competência 6.3.6 A EC n. 45/2004 e a
competência para julgar questões relativas a indenizações
decorrentes de acidentes do trabalho 6.3.7 A EC n. 45/2004 e a
Justiça Superior do Estado de São Paulo 6.3.8 Competência da
Justiça Federal 6.3.9 Poder Judiciário e arbitragem:
conflitos
7 AÇÃO E DEMANDA: CONDIÇÕES E ELEMENTOS 7.1 Evolução do conceito de
ação e sua relevância 7.2 As críticas à teoria de LIEBMAN: ação de
direito material e recuperação da teoria concreta da ação 7.3
Condições da ação 7.4 Ação ou demanda? 7.5 Elementos
identificadores da demanda 7.6 Exceção
8 PROCESSO E PROCEDIMENTO 8.1 A relação jurídica processual (e/ou o
princípio do contraditório) associada ao procedimento como
componentes do conceito de
processo 8.2 As situações jurídicas positivas e negativas dos
sujeitos do processo 8.3 Objeto do processo 8.4 Pressupostos
processuais 8.4.1 Pressupostos de existência 8.4.2 Pressupostos
processuais de validade 8.4.3 Pressupostos processuais negativos
(também conhecidos por extrínsecos ou exteriores porque se
encontram fora da relação jurídica
pro-cessual analisada)
9 ATO PROCESSUAL 9.1 Conceito 9.2 Classificação dos atos
processuais 9.3 Forma do ato processual 9.4 Defeitos dos atos
processuais 9.4.1 Inexistência 9.4.2 Nulidade 9.5 Sanatória,
convalidação e repetição dos atos processuais 9.6 Correção dos atos
processuais: problema de preclusão ou de nulidade? 9.7 O art. 250
do CPC e a conversão do ato processual
10 PRAZOS 10.1 Conceito 10.2 Classificação dos prazos processuais
10.3 Contagem 10.4 Suspensão e interrupção dos prazos 10.5 Férias
forenses 10.6 Contagem de prazo para a resposta do réu 10.7
Contagem de prazos, fac-símile e o processo eletrônico
11 PRECLUSÃO 11.1 Conceito 11.2 Espécies de preclusão 11.3 A
preclusão pro judicato 11.4 Uma nova visão sobre a preclusão
consumativa
12 A FIGURA DO JUIZ, DO ADVOGADO E O MINISTÉRIO PÚBLICO 12.1 Juiz
12.1.1 Garantias 12.1.2 Poderes-deveres do juiz no processo civil
12.1.3 Poderes instrutórios 12.1.4 Impedimento e suspeição 12.1.5
Responsabilidade civil do juiz
12.2 Advogado 12.3 Ministério Público
13 TUTELA JURISDICIONAL E AS CRISES DE DIREITO MATERIAL 13.1
Recuperação do tema e conceito: a tutela jurisdicional efetiva no
centro do sistema processual 13.2 As crises do direito material
13.3 Tutela declaratória 13.4 Tutela constitutiva 13.5 Tutela
condenatória 13.6 Tutela executiva 13.7 Tutela mandamental e
executiva lato sensu 13.8 Cumprimento de sentença: tutela executiva
lato sensu?
14 PARTES, CAPACIDADE, REPRESENTAÇÃO E ASSISTÊNCIA 14.1 Partes –
conceito 14.2 Capacidade 14.3 Os cônjuges
15 SUCESSÃO E SUBSTITUIÇÃO 15.1 Conceitos 15.2 Substituição
16 LITISCONSÓRCIO 16.1 Conceito de litisconsórcio 16.2 Tipos de
litisconsórcios 16.3 Litisconsórcio facultativo 16.4 Litisconsórcio
necessário 16.5 Regime jurídico
17 ASSISTÊNCIA 17.1 Conceito de terceiro e de assistência 17.2
Assistência simples 17.3 Efeitos da assistência 17.4 Assistência
litisconsorcial 17.5 Amicus curiae
18 OPOSIÇÃO
19 NOMEAÇÃO À AUTORIA
20 DENUNCIAÇÃO DA LIDE 20.1 Conceito e hipóteses legais 20.2
Iniciativa da denunciação e momento 20.3 Requisitos para a
denunciação 20.4 A citação do denunciado 20.5 Denunciação sucessiva
20.6 A situação do denunciado nas duas demandas
21 CHAMAMENTO AO PROCESSO 21.1 Conceito e considerações iniciais
21.2 Hipóteses legais de cabimento 21.3 Chamamentos sucessivos 21.4
Momento, procedimento e sentença condenatória 21.5 Diferenças e
semelhanças entre o chamamento e a denunciação da lide
22 AS FASES DO RITO ORDINÁRIO
23 PETIÇÃO INICIAL 23.1 Petição inicial e sua propositura 23.2
Requisitos da petição inicial 23.3 Emenda da petição inicial 23.4
Indeferimento da petição inicial 23.5 O novo art. 285-A do CPC 23.6
Causa petendi
23.7 Pedido 23.8 Valor da causa e sua impugnação
24 CITAÇÃO E INTIMAÇÃO 24.1 Citação: conceito, finalidade e
validade 24.2 Pessoalidade da citação 24.3 Efeitos 24.4 Limites da
citação 24.5 Tipos de citação 24.5.1 Citação por correio 24.5.2
Citação por oficial de justiça 24.5.3 Citação por hora certa 24.5.4
Citação por edital 24.6 Ausência de citação e inexistência 24.7
Intimação
25 RESPOSTA DO RÉU – GENERALIDADES 25.1 Tipos de defesa e de
resposta do réu 25.2 Reconhecimento jurídico do pedido
26 EXCEÇÕES RITUAIS 26.1 Conceito e generalidades 26.2 Exceção de
incompetência relativa 26.3 Exceção de suspeição e de
impedimento
27 CONTESTAÇÃO 27.1 Conceito 27.2 Conteúdo da contestação e
princípio da eventualidade 27.3 Preliminares ao mérito 27.4 Defesas
de mérito e ônus da impugnação específica 27.5 Alegação de fatos
novos após a contestação 27.6 Demais requisitos: protesto por
provas e documentos
28 RECONVENÇÃO 28.1 Conceito 28.2 Hipóteses de cabimento e
reconvenções ampliativas e restritivas 28.3 Procedimento
29 AÇÃO DECLARATÓRIA INCIDENTAL 29.1 Conceito 29.2 Questão
prejudicial e decisão incidenter tantum 29.3 Pressupostos
30 REVELIA 30.1 Conceito e natureza jurídica da revelia 30.2
Efeitos da revelia 30.3 Não aplicação dos efeitos da revelia 30.4
Comparecimento do réu após a revelia 30.5 Comparecimento espontâneo
do réu e revelia 30.6 Poderes instrutórios do juiz e revelia
31 SANEAMENTO DO FEITO/FASE ORDINATÓRIA 31.1 Considerações gerais
31.2 Réplica 31.3 Especificações de provas 31.4 Sanar defeitos 31.5
Julgar conforme o estado do processo 31.6 “Despacho saneador” 31.7
Audiência preliminar
32 ANTECIPAÇÃO DE TUTELA 32.1 Conceito 32.2 Requisitos 32.2.1
Requisitos genéricos
32.2.2 Tutela antecipada em outras situações 32.3 A efetivação da
antecipação de tutela (§ 3 o do art. 273) 32.4 Fungibilidade entre
a tutela cautelar e a tutela antecipada e o § 7º do art. 273 do
CPC
33 TEORIA GERAL DA PROVA 33.1 Generalidades 33.2 Verdade real,
verdade formal e poderes instrutórios do juiz 33.3 Prova legal e
livre convencimento motivado 33.4 Objeto da prova 33.5 Meios de
prova 33.6 Momento, lugar e ônus da prova 33.7 Fato negativo x
negativa dos fatos 33.8 Prova ilícita 33.9 Prova atípica 33.10
Prova emprestada 33.11 Indícios e presunções
34 DEPOIMENTO PESSOAL E INTERROGATÓRIO 34.1 Distinção entre
interrogatório livre e depoimento pessoal 34.2 Conceito de parte e
o depoimento pessoal 34.3 Colheita do depoimento e observações
gerais
35 CONFISSÃO
36 PROVA DOCUMENTAL 36.1 Conceito e força probante dos documentos
36.2 Arguição de falsidade 36.3 Produção da prova documental 36.4
Exibição de documentos ou coisas (meio de produção de prova
material – não oral)
37 PROVA TESTEMUNHAL 37.1 Conceito e considerações gerais 37.2 Da
produção da prova testemunhal
38 PROVA PERICIAL 38.1 Finalidade e modo de produção
39 INSPEÇÃO JUDICIAL
40 AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO 40.1 Conceito 40.2 Sujeitos
40.3 Atos 40.4 Suspensão e adiamento 40.5 Unidade da audiência 40.6
Tentativa de conciliação 40.7 Fixação dos pontos controvertidos
40.8 Produção probatória 40.8.1 Oitiva do perito e assistentes
40.8.2 Produção de prova documental 40.8.3 Produção da prova
testemunhal 40.9 Debates e memoriais 40.10 Conversão do julgamento
em diligência 40.11 Termo de audiência 40.12 Sentença 40.13 Recurso
de agravo
41 INFORMATIZAÇÃO DO PROCESSO
42 SENTENÇA 42.1 Evolução do conceito de sentença e questões daí
decorrentes 42.2 Tipos de sentenças: processuais (típicas e
atípicas) e de mérito 42.3 Elementos da sentença 42.4 Sentenças
nulas, inexistentes e ineficazes: conceito e formas de
impugnação
42.5 Capítulos da sentença
43 RITO SUMÁRIO 43.1 Considerações gerais 43.2 Hipóteses de
cabimento 43.3 Liberdade de escolha entre ritos e conversão 43.4
Procedimento 43.5 Revelia no rito sumário
REFERÊNCIAS
1.1 Formação e conceito
A sociedade, como a concebemos, depende da existência do Direito,
ou seja, é necessário estabelecer um modo eficiente por meio do
qual se possa regular a interação e a cooperação entre as pessoas e
destas com o Estado, além de atribuir a cada um bens que se
encontrem a sua disposição.
Assim, a correlação que existe entre Direito e Sociedade está no
fato de que o Direito possui uma função ordenadora, é uma das
formas de controle social[1].
Não basta, porém, a existência pura e simples de um conjunto de
normas reguladoras para tais situações, já que estas, por si sós,
não têm o condão de afastar, evitar ou eliminar definitivamente os
conflitos que poderão surgir entre aqueles que estão sujeitos a
esse conjunto normativo. Para que essa situação de instabilidade se
verifique basta que aquele que deveria satisfazer a pretensão de
outro não o faça de forma espontânea ou que o próprio direito
determine que esta ou aquela situação não estará sujeita ou não
comportará satisfação voluntária.
Ora, a partir do momento que passam a existir situações como essas,
surge a insatisfação, que é fator extremo de desaglutinação e
tensão social, e, para evitar isso, devem existir mecanismos que
permitam a imposição do ordenamento, do conjunto normativo, no caso
concreto, evitando que direitos restem insatisfeitos.
Nos primórdios da evolução social, obviamente, não existia uma
figura como a do Estado-juiz que pudesse ser chamada para intervir
e solucionar esse tipo de conflito (apontando qual a vontade do
ordenamento jurídico – que é abstrata por natureza – em relação a
determinado caso concreto), de modo que aquele que tinha uma
pretensão deveria satisfazê-la com seu próprio esforço e empenho,
apelando, não raro das vezes, para a violência[2].
Paralelamente a esse modo de agir, chamado de autotutela, existia
outra forma de solução de conflitos, a autocomposição, em que uma
das partes envolvidas no conflito dispunha total ou parcialmente de
seus interesses em face dos demais envolvidos. Na autocomposição,
três são as posturas possíveis a serem adotadas pelas partes para a
solução dos conflitos: (i) desistência (renúncia à própria
pretensão); (ii) submissão (renúncia à resistência que se impunha a
pretensão da outra parte); e (iii) transação (concessões
recíprocas).
Essas duas formas de resolução de conflitos pecavam por depender
exclusivamente de atos de vontade praticados de forma espontânea
pelas próprias partes envolvidas. Ademais, na autocomposição, mesmo
que as partes chegassem a um entendimento não havia, ainda, como
impor a sua execução.
Assim, a melhor saída para o impasse era deixar a solução do
litígio para terceiros que tivessem alguma ascendência sobre a
comunidade em que viviam, tais como sacerdotes[3], governantes e
anciãos (a arbitragem), tentando com isso superar a questão da
impossibilidade de coagir as partes a cumprirem com suas próprias
estipulações, evitando que tivessem elas de recorrer à violência.
Novamente, pecava essa forma de resolução de conflitos por
inexistir um mecanismo eficiente para impor ao vencido as soluções
adotadas pelos árbitros, bastando a recusa no cumprimento daquilo
que foi determinado para se instaurar novamente o conflito e a
insatisfação.
Com o fortalecimento do Estado, porém, foi possível criar
mecanismos próprios não só para a atuação da vontade concreta da
lei, como também para impor as decisões proferidas por terceiros,
que eram encarregados pelo Estado de tomá-las, de forma imparcial,
já que estranhos ao litígio posto entre as partes (os juízes). Mas
não é só. Quanto mais se fortalecia o conceito de Estado e de suas
funções, maior era a imposição deste sobre os particulares, até o
ponto em que foi possível vedar a autotutela e impor aquele tipo de
“arbitragem”, que era praticada pelo próprio Estado, não
facultativa e não privada. Surge, assim, a justiça pública, pela
qual os juízes – em substituição às partes, que ficam impedidas de
fazer justiça com as próprias mãos – examinam pretensões e resolvem
conflitos, exercendo, portanto, a jurisdição[4].
Daí a afirmação corrente de que a jurisdição é uma das funções do
Estado[5], mediante a qual ele substitui os titulares dos
interesses em conflito e atua a vontade concreta da lei, sempre por
meio do processo, ora expressando imperativamente o preceito (pela
sentença de mérito), ora realizando o que o preceito estabelece
(via execução forçada). Resta clara, portanto, a função
pacificadora do processo; de modo que, mesmo nas concepções
liberais de Estado, a jurisdição é mantida como função essencial,
realçando-se sobremaneira no Estado dito social. E o motivo para
tanto é bastante simples: se o objeto do Estado é o bem comum, a
projeção desse objeto na jurisdição tem de ser a pacificação social
com justiça[6]. Mas, mais do que função do Estado, a jurisdição
pode ser caracterizada como uma das expressões do poder estatal,
poder esse pelo qual se decide e se impõe decisões, e que se exerce
por meio do processo. Por fim, a jurisdição pode ser concebida,
ainda, como atividade, ou melhor, o complexo de atos do juiz no
processo, exercendo os poderes dos quais foi investido e cumprindo
a função que a lei lhe atribui. É esse trinômio: função, poder e
atividade, então, que liga a jurisdição à atividade
estatal[7].
Nunca é demais lembrar que o Estado possui uma função jurídica e a
exerce em dois momentos distintos: o primeiro ao legislar,
estabelecendo assim as normas apriorísticas, genéricas e abstratas
que irão reger as mais variadas relações jurídicas[8] e o segundo,
através da jurisdição, buscando a realização prática dessas normas,
no caso concreto geralmente oriundo de um conflito entre pessoas. A
jurisdição, por seu turno, também atua de duas formas distintas
conforme o caso: (i) primeiro declarando o preceito aplicável ao
caso concreto para poder afirmar quem tem razão, quem é o titular
do objeto do processo e que está em jogo (fase de conhecimento do
processo); e (ii) em seguida, se necessário for, impondo medidas
para que esse preceito seja efetivamente cumprido (fase de
cumprimento de sentença do processo)[9]. Em alguns casos especiais,
porém, mais especificamente quando a parte interessada tiver um
título executivo extrajudicial, como se verá, essa ordem pode ser
invertida, ou seja, iniciam-se primeiro os atos de satisfação para
somente depois se discutir sobre quem tem razão (processo de
execução de título extrajudicial).
Em resumo: jurisdição é a atuação (entendida não só como a
declaração, mas também a imposição) da vontade concreta da lei pelo
Estado, em especial pelo Poder Judiciário. Trata-se de um trinômio:
poder, função e atividade. Sua função primordial é realizar a paz
social.
Essa a premissa sobre a qual se ergue o conceito de jurisdição;
mas, necessário, então, inquirir quais seriam suas características
mais marcantes e quais os princípios que sobre ela incidem.
1.2 Características e princípios inerentes à jurisdição
Pois bem, partindo desses conceitos, quais seriam as
características básicas da jurisdição?[10] A primeira
característica está em seu caráter substitutivo, ou seja, exercendo
a jurisdição, o Estado substitui a atividade das partes
por uma atividade sua.
Vedada que foi a autotutela e assumindo o Estado o monopólio da
jurisdição, diante de qualquer conflito, não compete a esta ou
aquela parte dizer quem detém a razão, mas, ao contrário, a única
atividade que se lhes permite é a de recorrer ao Estado para que
este decida a questão. Essa decisão, inclusive, virá por intermédio
de agentes do Estado que foram investidos do poder jurisdicional e
que, portanto, devem agir com imparcialidade (o juiz não pode ter
nenhum interesse próprio no litígio).
A segunda característica da jurisdição reside em seu escopo de
atuação do direito, ou seja, a jurisdição é a forma que o Estado
encontrou para permitir que as normas de direito material pudessem,
na realidade prática, alcançar os mesmos resultados preconizados em
abstrato. Ao afirmarmos, entretanto, que o Estado, por meio da
jurisdição, realiza o direito material, não estamos tentando
esgotar sua finalidade ou todos os escopos da jurisdição, já que o
direito material é realizado a fim de permitir que seja atingido
seu objetivo maior – a pacificação social com justiça –, pos
existem outros que são absolutamente relevantes[11].
A terceira característica da jurisdição reside em sua inércia (ou
seja, na ideia de iniciativa das partes, traduzida nos brocardos
jurídicos romanos nemo iudex sine actore e ne procedat iudex ex
officio), conforme o disposto no art. 2 o do CPC, isso porque o
exercício espontâneo da jurisdição só teria o condão de gerar ainda
maiores problemas. Explica-se: se, por um lado, os juízes, como
agentes da jurisdição, pudessem atuar por si sós, certas situações
que poderiam encontrar o caminho da composição entre as partes
seriam submetidas ao Estado sem qualquer necessidade e até
contraditoriamente ao interesse das partes em não litigar – o juiz
seria obrigado a agir assim que tomasse conhecimento da questão.
Mais do que isso, em princípio, os direitos subjetivos são
disponíveis, podendo ser exercidos ou não, de modo que,
obrigatoriamente, esses direitos devem ser exercidos perante o
Estado, de acordo com a disponibilidade das partes. Valeria lembrar
ainda, o que é intuitivo, que se o juiz pudesse iniciar a causa ex
officio, dificilmente teria condições de julgá-la com
imparcialidade, já que provavelmente criaria com ela um vínculo
psicológico. Assim, de modo geral, deve ser a insatisfação a mola
propulsora para o processo, e só em casos muito excepcionais poderá
a causa ser iniciada de ofício, casos esses expressamente previstos
em lei, por exemplo, o quanto disposto nos arts. 989 (abertura do
processo de inventário), 1.129 (exibição de testamento) e 1.160
(arrecadação de bens de ausente), todos do Código de Processo
Civil, e no caso da declaração de falência do comerciante quando em
curso a sua recuperação judicial (art. 73 da Lei n. 11.101/2005 –
Lei de Falências)[12].
Uma quarta característica da jurisdição seria a sua definitividade.
O jurista italiano ALLORIO[13] defendia que só os atos
jurisdicionais poderiam tornar-se definitivos, imutáveis, o que se
atingiria por meio da coisa julgada. Afirmava, portanto, que isso
não ocorreria, por exemplo, com relação aos atos legislativos ou
executivos, de modo, então, que o traço mais característico da
jurisdição seria justamente essa definitividade[14]. As críticas
que se fazem a essa teoria são as seguintes: (i) ficariam excluídos
os processos executivos e cautelares do conceito de jurisdição;
(ii) também ficariam excluídas da jurisdição as decisões que põem
fim ao processo sem julgamento de mérito (como as que reconhecem a
ausência das condições da ação e pressupostos processuais); (iii)
existem, ainda, certos atos da administração que têm caráter
definitivo, principalmente aqueles sobre os quais o Poder
Judiciário não tem o controle sobre conveniência, mas tão somente
sobre sua legalidade[15]. Deve-se afastar, portanto, a
definitividade como característica marcante da jurisdição.
Também entendemos por bem afastar do conceito de jurisdição outra
característica, qual seja, a necessária presença da lide, já que
nem sempre ela será o pressuposto do exercício da jurisdição. Por
exemplo, no campo do processo penal, em que certas demandas, a
maioria, aliás, irão tramitar independentemente do fato de o réu
aceitar a punibilidade ou de a vítima concordar ou não com seu
prosseguimento, uma vez que o jus puniendi pertence ao Estado (a
chamada ação penal pública incondicionada, em oposição à ação penal
condicionada, que exige, a fim de que possa ser processada,
subordinando a atuação do Ministério Público a uma manifestação de
vontade da parte ofendida que se traduz em uma representação e,
ainda, em oposição à ação penal privada)[16]. No campo civil, por
exemplo, a ação de desconstituição de casamento é obrigatória e não
pressupõe sempre a existência de uma lide (mesmo tendo sido abolida
a figura do curador do vínculo do antigo art. 222 do CC de 1916); a
separação e o divórcio, exceto os consensuais, exigem a propositura
de demanda para sua homologação (arts. 1120 a1124 do CPC); o mesmo
ocorrendo com relação ao inventário e ao arrolamento de bens (arts.
982 e 1.031 do CPC)[17]. Até a promulgação da Lei n. 11.441/2007,
mesmo nos casos de separação e divórcio consensuais a partilha de
bens feita de forma consensual entre herdeiros maiores, exigia-se a
homologação em juízo mediante a instauração de processo judicial de
jurisdição voluntária. A lei em questão, porém, alterou os arts.
982, 983 e 1.031 do CPC, além de lhe acrescer o art. 1.124-A para
permitir que, sendo amigáveis a separação e o divórcio, não havendo
filhos menores ou incapazes do casal, poderá ser feita por
escritura pública se as partes estiverem assistidas por advogado
comum ou cada qual com seu representante, mesmo valendo para a
partilha de bens entre capazes e concordes.
Aliás, a Lei n. 11.695/2009 alterou o art. 982, inserindo nele um
parágrafo a mais em sua disposição e determinando a gratuidade dos
atos notariais àqueles que se declararem pobres sob as penas da
lei.
A última característica marcante da jurisdição é a sua unidade, ou
seja, a jurisdição é una e indivisível[18]. Ora, na medida em que a
jurisdição é expressão do poder estatal soberano, em princípio não
comporta divisões, já que falar em diversas jurisdições seria o
mesmo que falar em diversas soberanias. Abordar-se-ão, pois, em
momento oportuno, as espécies de jurisdição por questões meramente
didáticas, deixando bem clara essa ressalva[19].
Interessante é a opinião de OVÍDIO BAPTISTA, que reduz todos os
requisitos acima a apenas dois: a) o ato jurisdicional é praticado
por autoridade estatal específica, o juiz, que o faz por dever de
função, inclusive aplicando a lei ao caso concreto; e b) ao
realizar a atividade jurisdicional o juiz o faz com imparcialidade
(terceiro imparcial em face do interesse sobre o qual recai sua
atividade) – para ele, a norma é o objeto da atividade
jurisdicional e seu único fim é preservá-la, o que deve ser feito
de maneira imparcial[20].
Ora, como decorrência lógica das características acima referidas, a
doutrina tradicional estabelece alguns princípios inerentes a esse
conceito de jurisdição, que veremos a seguir:
Como consequência da ideia de substitutividade, da possibilidade de
o Estado exercer, através de juízes imparciais, uma função que
antes era das próprias partes, vem a lume o princípio da
investidura, ou seja, o fato de que a jurisdição só pode ser
exercida por aqueles devidamente investidos nas funções de juiz,
por aqueles investidos do poder jurisdicional. Ora, se a jurisdição
é monopólio do Estado e este não pode exercê-la de forma direta,
fazendo-o por meio de pessoas físicas, conclui-se que deve
delegá-la a essas pessoas, para que o façam em seu lugar (essas
pessoas são os juízes).
Outro princípio importante é o da aderência ao território. A
soberania do Estado está limitada ao seu próprio território, daí
que os magistrados encontram limites à sua atividade, que está
circunscrita ao território nacional. Mas não é só; o próprio
território nacional, em virtude das regras de competência e
organização judiciária, está dividido em justiças estaduais, seções
judiciárias, comarcas e juízos. O
poder de cada juiz, portanto, está limitado a determinado
território, e não é por outro motivo que os atos que devam ser
realizados fora dos limites territoriais em que um magistrado
exerce suas funções, devem contar com a colaboração do magistrado
desse local (mediante as chamadas cartas precatórias e rogatórias,
previstas pelos art. 202 a 212 do CPC, conforme determina o art.
200 do mesmo diploma).
Já a indelegabilidade vem fixada pelo princípio constitucional que
determina que aqueles que exercem seus poderes em nome do Estado
não podem delegar suas funções. Assim, previstas
constitucionalmente as atividades do Poder Judiciário, não pode a
lei, ou alguma fixação de seus membros, alterar tal situação. Em
uma escala menor, portanto, não pode um juiz, de acordo com sua
conveniência, delegar a outros órgãos suas funções, isso porque é a
lei que atribui ao juiz o poder no qual foi investido, limitando-o
previamente de acordo com critérios funcionais, territoriais,
hierárquicos, entre outros, de modo que só a lei, e não ele, juiz,
é que pode distribuir ou alterar as funções. A carta precatória não
é caso de delegação, porque o juiz da causa não pode exercer seus
poderes fora de seu território de atuação, de modo que “pede” que
outro juiz, competente e investido de poderes para atuação naquela
outra região, cumpra o ato que está impedido de praticar por
questões de organização judiciária.
Quanto à inevitabilidade, a autoridade dos órgãos estatais emana do
poder soberano do Estado, independentemente da vontade das partes,
que, assim, estão obrigatoriamente sujeitas (sujeição) a esse
poder. É essa sujeição que explica, por exemplo, a natureza pública
do direito processual.
O princípio da inafastabilidade (ou controle jurisdicional) vem
previsto na CF/88, em seu art. 5 o , XXXV, que garante a todos o
acesso ao Poder Judiciário, de modo que nenhuma lesão ou ameaça de
lesão pode ser afastada da apreciação do Poder Judiciário.
Por fim, o princípio do juiz natural. A CF/88, 5 o , XXXVII e LIII,
proíbe os chamados Tribunais de Exceção, criados excepcionalmente
para julgar determinado caso (faltando, pois, o ideal de
constituição prévia). Assim, garante-se às partes julgamento por
juiz independente e imparcial, indicado previamente, de acordo com
as normas de competência e organização judiciária.
1.3 Unidade da jurisdição e suas “espécies”
Como vimos, apesar da unidade da jurisdição, a doutrina, por
questões didáticas, tende a “dividi-la” em categorias, falando em
espécies de jurisdição (ocorre, porém, que essa divisão da
jurisdição em categorias está muito mais ligada a uma ideia de
“divisão de trabalho” – competência – e ao modo de exercício da
jurisdição que a seu conceito propriamente dito). Vejamos cada uma
delas:
1.3.1 Jurisdição penal e civil
A atividade jurisdicional tem por objeto uma pretensão, que pode
variar de acordo com o direito material que a sustenta e
fundamenta. Assim, tem-se por hábito dividir o exercício da
jurisdição, em diversos países entre juízes que têm competência
para apreciar as pretensões de natureza penal e juízes que têm
competência para todas as demais questões – a chamada jurisdição
civil (que engloba pretensões de natureza fiscal, administrativa,
constitucional, civil, comercial etc. e que, na realidade, é uma
espécie de jurisdição não penal). Ocorre, no entanto, que essa
divisão é meramente funcional, já que o ilícito penal não difere em
muito do ilícito civil; a diferença, a bem da verdade, está mais na
sanção que os caracteriza. Assim, por exemplo, aquele que furta ou
rouba deve suportar as penas dos arts. 155 ou 157 do CP, conforme o
caso, mas também terá o dever de restituir a coisa furtada ou
roubada, ou, ainda, de indenizar a vítima; aquele que contrai
matrimônio já sendo casado enfrenta duas consequências: as penas da
bigamia (art. 235 do CP) e a invalidade por nulidade do segundo
casamento (arts. 1.521, VI, e 1.548, II, do CC), de modo que não é
possível ou legítimo esperar que a divisão funcione como categoria
estanque[21].
Se não estamos diante de categoria estanque, é necessário, pois,
prever os pontos de conflito e de interligação e até, por que não
dizer, a influência de uma esfera sobre outra e vice-versa. Na
visão de DINAMARCO, GRINOVER e CINTRA, que aqui encampamos, são
eles:
a) Suspensão prejudicial do processo-crime. Ora, se alguém está
sendo processado criminalmente e para o deslinde desse processo
faz-se necessária a decisão sobre certa questão de natureza civil
(questão prejudicial) que envolva o estado civil das pessoas,
suspende-se obrigatoriamente o processo-crime até a solução da
questão na esfera civil, isso porque o juiz penal será
absolutamente incompetente para decidir sobre a questão pendente
(v. art. 92 do CPP). Assim, por exemplo, o bígamo que alega a
nulidade do primeiro casamento, se isso for verdade (e compete ao
juiz civil decidir essa questão prejudicial), não falar em bigamia
(art. 235, § 2 o do CP)[22]. Ademais, se a questão civil for de
difícil resolução e já tiver sido proposta a demanda no campo
cível, pode ser suspenso o processo-crime pelo tempo que o juiz
penal determinar (arts. 93 e 94 do CPP), como no caso daquele que,
processado pelo crime de furto, alega que a coisa furtada era
sua[23]. Se houver a suspensão do processo penal e a decisão da
questão prejudicial no processo civil, deve ela ser respeitada pelo
juiz penal, em função de ser decisão principaliter e transitar em
julgado, o contrário não, ou seja, se no caso do art. 93 do CPP o
juiz penal decidir a questão prejudicial cível, tê-lo-á feito
incidentalmente, podendo ser diverso o resultado da questão em
processo civil em que esta seja principal[24].
b) Efeitos da sentença penal condenatória transitada em julgado. O
art. 91, I, do CP determina, como efeito secundário da sentença
penal, tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo
crime, ou seja, a sentença penal, nesse caso, corresponde à
sentença civil ilíquida que declare a existência de um dano e
condene seu causador a indenizá-lo, sem fixar, no entanto, o
quantum debeatur. O disposto nesse artigo, porém, não se confunde
com a exequibilidade dessa sentença; trata-se apenas da
impossibilidade do devedor em discuti-la. E não é por outro motivo
que o art. 475-N, II, do CPC expressamente confere eficácia
executiva à sentença penal condenatória transitada em
julgado.
A absolvição penal também gera efeitos, quando se reconhece que o
ilícito não foi praticado, que o réu não é seu autor ou que não
configura o ato antijuridicidade (estado de necessidade, legítima
defesa etc. – arts. 65 e 66 do CP), mas tais efeitos nem sempre são
absolutos, de modo que, por exemplo, por vezes, aquele que pratica
ato em estado de necessidade deve indenizar o terceiro prejudicado
e valer-se do direito de regresso contra o efetivo causador do
dano.
c) Prova emprestada. Desde que tenha havido participação daquele
contra quem se pretende fazer prova (contraditório), é possível,
sem necessidade de repetição, levar prova produzida no juízo civil
para o âmbito penal e vice-versa. Exemplo disso é a desnecessidade
de produção de prova para demonstrar a falsidade de documento, como
fundamento da ação rescisória, se esta já foi produzida em
processo- crime (como por delito de falsidade ideológica, material,
documento falso, falso testemunho ou falsa perícia) – tudo nos
termos do art. 485, VI, do CPC.
d) Crimes falimentares. A sentença civil que decreta a quebra é
pressuposto da punibilidade penal (arts. 168 a 178 da Lei de
Falências), não podendo o acusado, inclusive, discutir sua situação
de comerciante ou rediscutir seu estado de falido.
Ademais, nos termos do art. 64 da LF, se durante o procedimento de
recuperação judicial o devedor ou seus administradores tiverem sido
condenados por sentença penal, transitada em julgado, por crime
cometido em recuperação judicial ou falência anteriores ou
por
crime contra o patrimônio, a economia popular ou a ordem econômica,
previstos na legislação vigente, não poderão ser mantidos na
condução da atividade empresarial.
1.3.2 Jurisdição especial e comum
A jurisdição especial é composta por organismos judiciários com
autonomia administrativa e com competência para causas de
determinada natureza e conteúdo jurídico, conforme previsto na
Constituição. São elas: as Justiças Eleitoral, do Trabalho e
Militar. A jurisdição comum é composta pela Justiça Federal e pela
Justiça Estadual.
1.3.3 Jurisdição superior e inferior
A jurisdição inferior é aquela exercida pelos juízes com
competência originária para o julgamento da causa. Já a superior é
composta por juízes que possuem competência recursal e que podem,
pois, rever as decisões oriundas do grau inferior.
1.3.4 Jurisdição de direito e de equidade
Quando o juiz julga sem estar adstrito expressamente às normas
legais, está exercendo jurisdição de equidade, em contraposição à
jurisdição de direito. Aquela, a equidade, que tende a ser
confundida com a noção abstrata e ideal de Justiça[25], só é
exercida em circunstâncias excepcionais, tal qual determina o art.
127 do CPC e o art. 5 o da LICC, expressamente previstos em lei,
por exemplo, nos feitos afetos à jurisdição voluntária (art.
1.109); na arbitragem (se as partes assim determinarem, conforme
previsão do art. 11, II da Lei de Arbitragem); e nos Juizados
Especiais Cíveis Estaduais (art. 6 o da Lei n. 9.099/95).
1.4 Limites da jurisdição
A questão dos limites da jurisdição será especialmente tratada no
capítulo pertinente à competência internacional, mas vale desde já
mencionar alguns pontos que permitem estabelecer um “norte” para o
tema.
DINAMARCO, GRINOVER e CINTRA apontam dois limites à atuação da
jurisdição: de ordem externa e de ordem interna[26]. Do ponto de
vista interno, exceção feita ao quanto disposto no art. 814 do CC,
que trata da impossibilidade jurídica de cobrança de
dívida de jogo, e a certas questões discricionárias administrativas
que não podem ser alcançadas pelo Poder Judiciário, todas as
questões de direito material estão sujeitas à apreciação do Poder
Judiciário, como determina o art. 5 o , XXXV, da CF.
Agora, do ponto de vista externo, a jurisdição brasileira encontra
limites na jurisdição de outros países, obedecendo a critérios de
convivência harmônica com outros países, conveniência (conflitos
que não interessam ao Estado apreciar) e viabilidade (possibilidade
de imposição autoritativa da sentença).
1.5 Jurisdição voluntária
Certos atos da vida dos particulares são tão importantes que
transcendem aos limites desses mesmos particulares, passando a
interessar à própria coletividade. Nesses casos bastante
específicos, o Estado impõe, para a validade desses atos, a
necessária participação de um órgão público[27], inserindo-se,
portanto, na prática de atos que, em tese, seriam exclusivamente
privados (clara limitação, portanto, ao princípio da autonomia
privada, que deixa de ser aplicado em função do interesse social).
O Estado, então, autorizará, vedará ou fiscalizará a prática de
tais atos: é o que se convencionou chamar de administração pública
de interesses privados.
Por vezes, parte dessa administração de interesses privados é
realizada pelo Poder Judiciário, por meio dos juízes, notadamente
em função de sua independência e idoneidade, o que, em tese,
torna-os os melhores executores dessa função – que é administrativa
em sua essência. É exatamente essa parte da administração dos
interesses privados, praticada pelos juízes, que recebe o nome de
jurisdição voluntária ou graciosa (CPC, arts. 1.103 a 1.210).
Justamente em função desse fato, qual seja, de a atividade exercida
pelo magistrado ser basicamente administrativa, que se costuma
afirmar que os atos praticados em sede de jurisdição voluntária não
são jurisdicionais. Em resumo costuma-se afirmar que: (i) não se
visa à atuação do direito, mas a constituição de novas situações
jurídicas; (ii) não há o caráter substitutivo – o juiz não
substitui as partes; ele se insere entre elas para a consecução dos
negócios; e (iii) inexiste lide – não há conflito, mas negócio com
a participação do magistrado; busca-se não a solução da lide, mas
sua prevenção. Daí que, em princípio, seria inadequado, na
jurisdição voluntária, falar em partes (que possuem interesses
antagônicos) ou em ação (poder de provocar a atividade
jurisdicional não administrativa) ou ainda em processo (já que se
trataria de simples procedimento). Por essas razões é que os atos
da jurisdição voluntária não seriam aptos a produzir coisa
julgada[28]. Em conclusão, seria de entender, então, que a
jurisdição voluntária não é jurisdição. Aliás, ela não é nem mesmo
voluntária, já que sua instauração não é feita, em princípio, de
ofício, mas a requerimento das partes ou do Ministério Público,
vigorando, pois, o princípio da inércia. Na verdade, não é
voluntária porque as partes não se submetem voluntariamente a ela,
mas sim por determinação legal.
Essa posição, dominante na doutrina, no entanto, tem sido alvo de
severas críticas, o que por si só já nos permite entender por que o
conceito de jurisdição vem sofrendo abalos profundos em seu
alicerce.
DINAMARCO[29], por exemplo, afirma que na jurisdição voluntária
também há pacificação social com justiça, eliminando situações
incertas ou duvidosas. Ademais, os atos judiciais, mesmo em sede de
jurisdição voluntária, são praticados segundo as formas
processuais, inclusive mediante a atuação do princípio do
contraditório (o que caracteriza o processo, diferenciando-o do
simples procedimento).
OVÍDIO BAPTISTA é outro dos partidários do caráter jurisdicional da
jurisdição voluntária, afirmando que: (i) também há falar em
jurisdição no que diz respeito à ação cautelar e seu caráter; tal e
qual na jurisdição voluntária, é muito mais preventivo do que
repressivo; (ii) a ideia de que não existem partes, mas apenas
interessados, só pode ser aceita se o conceito de parte for
reduzido aos participantes do litígio, mas, se por outro lado,
parte for aquele que participa da relação jurídica processual, cai
por terra esse argumento; (iii) a sentença cautelar também não
produziria coisa julgada e seria ato jurisdicional (com o que não
concordamos, como se verá adiante); (iv) quanto ao último
argumento, o de que a jurisdição voluntária seria mera
administração de interesses privados, de modo que não ocorreria a
atuação da vontade concreta da lei, o jurista gaúcho afirma que,
segundo seu modelo de jurisdição, na medida em que a jurisdição
voluntária se dá em face de juiz imparcial, seria ela
jurisdicional[30].
Essa posição, que confere caráter jurisdicional à jurisdição
voluntária, está, contudo, longe de ser unânime[31].
1.6 Arbitragem e jurisdição
Como restou absolutamente claro até aqui, seguro seria afirmar que
a atividade jurisdicional é exclusivamente estatal, a ser exercida
pelo Poder Judiciário, por intermédio dos juízes. Ademais, é
justamente em decorrência desse traço marcante da jurisdição que se
levantaram todas as suas características e os princípios a ela
imanentes.
A questão complica-se, no entanto, em virtude do processo arbitral,
forma de tutela em que, ao menos aparentemente, está presente a
jurisdição, bem como todas as suas características. O tema é
bastante polêmico, sobretudo se se levar em conta o fato de que a
constitucionalidade dos arts. 6 o , parágrafo único, e 7 o da Lei
n. 9.307/96 (além da nova redação atribuída ao art. 267, VII, e ao
art. 301, IX, do CPP pelo art. 41 da Lei de Arbitragem) foi
questionada pelo próprio Supremo Tribunal Federal, que acabou por
responder negativamente à seguinte pergunta: conceder a execução
específica da cláusula compromissória poria em risco o disposto no
art. 5 o , XXXV, da Constituição Federal? Entendeu-se pela
constitucionalidade dos artigos em questão, uma vez que a
manifestação de vontade da parte na cláusula compromissória, quando
da celebração do contrato, e a permissão legal dada ao juiz para
que substitua a vontade da parte recalcitrante em firmar o
compromisso, ao menos em tese, não ofenderiam o art. 5 o , XXXV, da
CF[32].
CARLOS ALBERTO CARMONA[33], autoridade que é no assunto, de forma
bastante contundente nos informa que a doutrina tradicional tende a
acentuar a natureza contratual da arbitragem, afastando-a da ideia
de jurisdição, já que esta estaria restrita à atividade
estatal.
Para tentar refutar essa posição, de forma bastante inteligente,
lembra a lição de JOÃO MONTEIRO acerca do tema, publicada em 1899
(Programma do curso de processo civil), onde sustenta que a
jurisdição, em sua faceta mais ampla, corresponde exatamente ao
poder de conhecer dos negócios públicos e resolvê-los, e somente em
seu sentido mais estrito deve ser associada ao poder das
autoridades judiciárias. Mais do que isso, afirma categoricamente o
envelhecimento das ideias de CARNELUTTI e CHIOVENDA e que estas não
mais refletem o real significado da jurisdição.
Assim, não só o magistrado como ainda o árbitro “dizem
autoritativamente o direito, concretizando a vontade da lei”[34],
proferindo decisões vinculativas para as partes, ou seja, ambos
julgam. Esse poder do árbitro, de decidir certo litígio, com
caráter vinculante, uma vez recebido das partes, permite asseverar
que há substituição da vontade destas pela sua (que deve expressar
e sintetizar a vontade da lei). Note-se, então, que as funções e
atividades exercidas pelo árbitro são as mesmas do juiz, ou seja,
conhecer as questões de fato e de direito apresentadas pelas partes
para formar seu convencimento a ser externado no momento do
julgamento[35]. Mais do que isso, também há falar em poder do
árbitro, na medida em que, como dito, sua decisão vincula
obrigatoriamente as partes.
O problema todo reside no fato de que ao árbitro não é dado
executar suas sentenças, atividade essa exercida exclusivamente
pelo Poder Judiciário. Ademais, o árbitro também não possui poderes
suficientes para conduzir testemunhas, decretar prisões, impor
medidas restritivas, utilizar a força policial, quebrar o sigilo
das partes etc. Dessa forma, não estaríamos diante de verdadeira
atividade jurisdicional porque o árbitro não detém o poder de
imperium, mas apenas um mero correlato.
Para o jurista, esse problema é facilmente afastado, já que não se
pode confundir poder com uso da força, e muito menos entender ato
de força como sinônimo de ato jurisdicional. Essa vedação ao
árbitro estaria afeta portanto tão somente ao campo da competência.
Pois bem. Assim como o magistrado tem sua atividade limitada pelas
regras de competência, o mesmo ocorre com o árbitro em relação aos
limites de sua atividade – trata-se de escolha política do
legislador reservar os atos de força ao juiz togado, impedindo de
praticá-los o árbitro. Caso este deseje ver cumprida medida liminar
que concedeu ou entenda necessária à condução de uma testemunha,
deverá “deprecar” essa função ao magistrado (simplesmente
encaminhando ofício – a ser livremente distribuído a um dos juízes
competentes para a prática do ato). Conclui seu pensamento
afirmando que, se assim não fosse, todo juiz que não tivesse
competência para executar suas decisões careceria de jurisdição,
tal como ocorria nos Juizados Especiais, antes da alteração do art.
40 da revogada Lei n. 7.244/84.
Em sua obra Arbitragem e processo[36], o mesmo CARLOS ALBERTO
CARMONA complementa o raciocínio até aqui exposto. Assim, na medida
em que o art. 31 da Lei n. 9.307/96 em questão equiparou a sentença
arbitral à sentença judicial, certamente optou o legislador pela
tese da jurisdicionalidade, pondo um fim à antiga atividade
homologatória do magistrado, ou seja, a sentença arbitral não
precisa mais passar pelo controle prévio e obrigatório do Estado
para ter validade, o que, no entanto, não quer dizer que não seja
possível questioná-la em juízo, tanto que a própria lei prevê ação
própria para esse fim em seus arts. 32 e 33, que devem ser
analisados conjuntamente.
Aliás, a própria existência da ação em questão e a possibilidade de
a parte que sair vencida na arbitragem opor embargos à execução,
que se processará judicialmente, garantiriam a observância do art.
5 o , XXXV, da CF. Ademais, essa discussão bem como aquela travada
em relação ao art. 7 o da lei seriam inócuas, já que o dispositivo
constitucional “encarta uma proibição dirigida ao legislador, e não
àqueles que precisam resolver o litígio. Através da garantia
constitucional fica protegido o cidadão contra eventual abuso do
legislador ou do Poder Executivo...”[37].
FLÁVIO LUIZ YARSHELL aborda o tema de forma muito interessante.
Propõe analisar o conceito de jurisdição sob dois prismas: como
função tipicamente estatal e como função estatal típica do Poder
Judiciário. O que nos interessa diretamente é a primeira forma.
Ora, para o jurista, analisado o tema da jurisdição sob o aspecto
exclusivamente jurídico de seus escopos, obrigatório seria concluir
que essa atividade, poder e função realmente estão reservados ao
Estado, de modo que todas as alternativas de resolução de
controvérsias devem ser consideradas apenas como “equivalentes
jurisdicionais”[38]. Ademais, essa tipicidade da atividade
jurisdicional traduz-se em três pressupostos indeclináveis não
presentes na arbitragem ou nas outras formas de resolução de
conflitos: a investidura, a indeclinabilidade da jurisdição, a sua
improrrogabilidade e a regra do juiz natural.
Apesar disso, aparentemente, o jurista aceita a tese da
jurisdicionalidade da arbitragem se se adotar um conceito mais
amplo de jurisdição, que leve em consideração outros componentes
que não o estritamente jurídico, mas os componentes social e
político[39].
Realmente, se o conceito de jurisdição levar única e exclusivamente
em conta a capacidade do Estado de impor suas decisões, por certo a
sentença arbitral não poderá ser considerada jurisdicional. Aliás,
como vimos nos itens anteriores, a ideia de jurisdição como
monopólio do Estado surgiu justamente como necessidade de impor aos
jurisdicionados as decisões proferidas por terceiro
interessado.
O problema todo é o seguinte: o Estado, ao coibir a autotutela,
chamou para si a responsabilidade de atuar a vontade concreta da
lei, de forma justa e tempestiva. Ora, se o Estado não mais
consegue fazê-lo, de modo que, por meio de sua atividade
legislativa, prevê outros métodos para a entrega da tutela
jurisdicional, claro está que, implicitamente, estaria a admitir a
existência de uma segunda forma de jurisdição, a jurisdição
privada. Nessa vertente da “jurisdição”, a maior parte de suas
principais características está presente, ou seja, a sentença
arbitral substitui a vontade das partes, impondo de forma válida a
vontade concreta da lei – essa decisão, dentro da sistemática da
arbitragem, vincula de forma definitiva as partes, tanto que pode
ser executada não pelo árbitro, como vimos, mas pelo Estado.
Ademais, a jurisdição arbitral também é inerte (demanda a
provocação das partes envolvidas para que se inicie a atividade do
árbitro) e possui caráter de definitividade (de modo que, não sendo
exercitada em tempo hábil a ação prevista nos arts. 32 e 33 da Lei
de Arbitragem, não mais poderá ser discutida). A única diferença
reside no fato de que a investidura do árbitro decorre não do poder
Estatal de impor decisões, mas do caráter contratual que possui a
arbitragem (na jurisdição estatal, a submissão dos jurisdicionados
ao Estado decorre do poder de imposição deste último e na
arbitragem, não; as partes submetem-se ao árbitro porque assim
desejam – algo parecido com a litiscontestatio do direito romano).
Ora, tratando-se de direitos disponíveis, podem as partes optar
validamente por investir um árbitro, figura de sua mútua confiança,
dos poderes necessários para o exercício da jurisdição; ele, então,
passa a ser o juiz natural que deverá enfrentar suas questões.
Nessa linha, não é por outro motivo que as partes passam a
sujeitar-se à decisão do árbitro. Por fim, como já mencionado, a
jurisdição arbitral não prescinde da estatal, tanto que as ações
previstas nos arts. 7 o , 32 e 33 da Lei de Arbitragem, bem como a
impossibilidade de execução em sede arbitral, preservam a
participação do Estado na arbitragem e garantem seu poder de impor
decisões (inevitabilidade).
O grande problema, portanto, reside tão somente na possibilidade de
execução das próprias sentenças. Não é uma simples questão de
competência, como quer CARLOS ALBERTO CARMONA, mas uma questão de
faltar à arbitragem justamente a possibilidade de o magistrado
efetivar suas decisões. Assim, pode ele, apenas, declarar a vontade
concreta da lei, e não atuá-la, já que a ideia de atuação pressupõe
a possibilidade de imposição, caso isso se faça necessário.
Certamente, como afirma DINAMARCO[40], a jurisdição, em dado
momento, passou a figurar no centro da teoria geral do processo,
fugindo do conceito privatista anterior, que colocava a ação nessa
posição, e diferentemente de nós, que colocamos nessa posição a
tutela jurisdicional (como veremos no próximo item). Isso implica
afirmar a preferência por uma visão publicista do sistema, ou seja,
em que o Estado (principalmente aquele dito social) se vale da
jurisdição para cumprir seus objetivos, dentre os quais se destaca
a promessa de proceder ao exame de todas as questões que lhe forem
postas, sem exceção de nenhuma, inclusive aquelas que lhe digam
respeito, vedando a autotutela, tudo sob a ótica dos princípios
constitucionalmente previstos. Essa ideia de jurisdição como poder
aproxima o processo da política, entendida como escolhas
axiológicas que tenham por finalidade a fixação dos destinos do
Estado. Nessa medida, então, o escopo da jurisdição não pode ser
única e exclusivamente o escopo jurídico, já que esse poder irá
gerar reflexos não só em relação ao ordenamento jurídico, mas
diretamente na vida das pessoas e até nas funções do próprio
Estado. Assim, a jurisdição possui ainda duas outras facetas ou
escopos: um de ordem social (pacificar com justiça e educar os
jurisdicionados, conscientizando-os acerca de seus direitos e
obrigações) e outro de ordem política (do qual damos destaque à
capacidade concreta de decidir as questões que são postas a sua
apreciação e assegurar a participação do cidadão nos rumos a serem
seguidos)[41].
Ora, a partir do momento que o Estado deixa de cumprir de maneira
efetiva com suas missões sociais e políticas, retardando a entrega
da tutela jurisdicional ou perdendo a confiança do próprio
jurisdicionado no trato de certas questões[42], nada mais natural
que o próprio Estado, visando com isso, reservar-se às decisões das
questões que entende mais pertinentes, notadamente aquelas de ordem
pública e que versem sobre direitos indisponíveis[43], abra outras
vias que possibilitem a declaração da vontade concreta da lei,
permitindo que um particular diga o direito aplicável ao caso
concreto. Isso certamente não importa em falar em divisão da
soberania, tanto que o Estado continuou a reservar para si a
imposição forçada dessas decisões. O que certamente se faz
necessário, e aqui pode estar o cerne do problema, é admitir que
parcelas do poder jurisdicional não são indelegáveis, mas apenas o
é a sua faceta que permite ao Estado impor coativamente suas
decisões, bem como aquelas oriundas de meios alternativos de
resolução das controvérsias[44].
O conceito de jurisdição e o próprio Poder Judiciário estão em
crise; assim, mais do que fechar os olhos a essa realidade,
tentando rechaçar possíveis formas de solução de controvérsias, o
que se pretendeu buscar aqui foi um conceito uniforme de
jurisdição, que leve em conta seu caráter mais marcante – o
jurídico –, mas não deixe de lado seus aspectos sociais e
políticos.
Dessa forma e de maneira bastante sintética, poderíamos afirmar que
o traço distintivo da jurisdição é a atuação da vontade concreta da
lei mediante a substituição da vontade das partes pela de um
terceiro imparcial (sujeito, portanto, a todos os princípios e
garantias decorrentes do devido processo legal). Esse o cerne da
jurisdição, mantendo-se assim intocável a ideia de função, poder e
atividade. Ocorre que, em sendo a jurisdição exercida por órgão
privado, vedado estaria o uso do imperium[45], este sim ligado
exclusivamente ao poder estatal. Desse modo, no âmbito privado
existe tão somente jurisdição se esta for entendida como o poder de
declarar o direito para o caso concreto, enquanto no âmbito público
é possível falar em um duplo poder: jurisdição e jurissatisfação,
ambos jurisdicionais, diferentemente do que prega CELSO NEVES[46].
Somente nesta última vertente haverá verdadeira atuação da vontade
da lei, e não apenas sua declaração para o caso concreto. Como se
vê, para nós, jurisdição não se restringe à simples declaração, mas
a esta somada à ideia de atuação[47].
O monopólio da jurisdição pelo Estado não passou, então, a ser um
mito, como já se chegou a afirmar. O que se percebeu é que parte
desse poder – mais especificamente o de declaração – pode
certamente ser transferida aos particulares, que exercem, assim,
correlato jurisdicional, conservando-se ao Estado a resolução das
questões mais relevantes e restando como recurso quando a imposição
final e definitiva das questões demandar o uso da força.
2 DIREITO PROCESSUAL
2.1 Conceito
A jurisdição, como dito no capítulo anterior, é a um só tempo
poder, função e atividade do Estado. Mesmo nas ultrapassadas
concepções de um Estado liberal, a jurisdição encontrava seu lugar
e era tida como responsabilidade do Estado. Assim, nas modernas
concepções de um Estado social, nada mais acertado que a jurisdição
seja considerada função básica do Estado, exercício de seu poder de
jurisdição, expressando-se através do processo, entendido este como
instrumento a serviço da paz social.
Também como já referido, a função jurídica do Estado não está
adstrita à jurisdição, pois compreende também a ideia de
legislação. Por meio dessa função jurídica, o que o Estado faz é
regular as relações intersubjetivas de seus jurisdicionados, ora
pelo estabelecimento de normas de caráter genérico e abstrato
ditadas aprioristicamente – a legislação[48], ora realizando tais
normas (não só declarando a vontade da lei no caso concreto como
ainda atuando esse preceito, se for o caso) – a jurisdição.
Não é por outro motivo que é perfeitamente possível afirmar que
existem dois planos distintos no ordenamento jurídico, o do direito
material e o do processo.
Chama-se direito processual o complexo de normas e de princípios
que regem o exercício da jurisdição pelo Estado e a forma de
colaboração das partes (exercício da ação pelo demandante e da
defesa/exceção pelo demandado)[49]. O direito material, em
contrapartida, será o corpo de normas genéricas e apriorísticas que
regem as relações jurídicas referentes aos bens da vida, entre as
pessoas e destas para com o Estado.
A diferença básica entre esses direitos reside no fato de que
enquanto o direito processual “cuida das relações dos sujeitos
processuais, da posição de cada um deles no processo, da forma de
se proceder aos atos deste”, cabe ao direito material “dizer quanto
ao bem da vida que é objeto do interesse primário das
pessoas”[50].
2.2 Teoria unitária e teoria dualista do ordenamento jurídico
Necessário, aqui, fazer uma pausa para entender o que efetivamente
ocorre, ou seja, como se dá essa relação entre o direito material e
o direito processual. Duas são as teorias a esse respeito:
(i) A teoria dualista do ordenamento jurídico, que encontra em
CHIOVENDA seu expoente – e prescreve que o ordenamento jurídico se
cinde nitidamente em duas partes, o direito material e o direito
processual civil, ou seja, enquanto o primeiro dita normas
abstratas que se tornam concretas no momento em que ocorre o fato
descrito em suas previsões, ao direito processual cabe apenas
atuá-las, no sentido de realizá-las praticamente; e
(ii) A teoria unitária do ordenamento jurídico, segundo a qual o
direito objetivo-material, por si só, não tem condições de regular
todos os conflitos de interesses, cabendo ao processo, portanto,
completar os comandos da lei. Assim, no dizer de CARNELUTTI, o
comando legal é uma espécie de arco incompleto que a sentença vem a
completar, transformando-o em um círculo – aqui, a separação entre
os tipos de direito não é tão nítida, e o processo participa da
criação de direitos subjetivos e obrigações (para a teoria
dualista, como vimos, direitos e obrigações preexistem ao
processo)[51].
Notem que a grande questão aqui é saber o seguinte: quando uma
situação concreta se enquadra no preceito genérico previsto no
ordenamento jurídico, é este que passará a reger a relação que se
apresenta entre as partes. Daí a pergunta: em que medida isso
ocorrerá?
Para CHIOVENDA existe uma perfeita distinção entre direito material
e direito processual, cabendo àquele regular as relações entre as
pessoas de maneira abstrata, até o momento em que se verifica o
fato concreto, que deve adequar-se à norma; aí, sem qualquer
participação do juiz, torna-se concreta a norma que antes era
abstrata. À jurisdição, exercida por meio do processo, competiria,
portanto, atuar (realizar praticamente) essa vontade da lei, não
contribuindo, assim, para a formação das normas concretas (o
direito subjetivo e as obrigações preexistem ao processo)[52]. Como
se vê, o jurista italiano pressupunha a “plenitude do ordenamento
jurídico”, ou seja, o ordenamento jurídico estatal é tão somente um
dado prévio e concreto para o juiz que se restringe a aplicá-lo sem
poder avaliar a justiça da lei, interpretá-la ou participar da
criação do próprio direito.
Para CARNELUTTI, porém, o comando contido na lei material é
incompleto, já que, por ser abstrato, não pode compreender de
maneira absoluta todas as situações do dia a dia, de modo que a
jurisdição, através do processo, atuará para complementar o comando
legal, compondo a lide[53]. O direito material, assim, é um corpo
de normas que regula as relações jurídicas referentes aos bens da
vida, enquanto o direito processual cuida das relações e posições
de cada um dos litigantes como partes de um processo, nada dizendo,
portanto, em relação ao objeto do direito material que é justamente
onde reside o interesse principal desses litigantes[54].
ENRICO TULLIO LIEBMAN, por sua vez, acreditava justamente na
necessidade de o magistrado interpretar a lei e preencher suas
lacunas não só levando em conta o próprio ordenamento jurídico,
como ainda a realidade social em que ele se inseria, afastando-se
um pouco da proposição chiovendiana. No entanto, apesar de tender
para a teoria dualista, afirmava categoricamente que as duas
teorias não eram antagônicas, mas sim complementares, de modo que a
jurisdição, “como atividade dos órgãos do Estado”, teria como
função “formular e atuar praticamente a regra jurídica concreta
que, segundo o direito vigente, disciplina determinada situação
jurídica”[55].
DINAMARCO, por exemplo, para dar uma visão atual do fenômeno,
partidário que é da teoria dualista, afirma, de maneira muito
clara, que os direitos preexistem ao processo, de maneira que a
sentença apenas os “revela”. Para ele, os partidários da teoria
unitária jamais conseguiram explicar por que “a realidade da vida
mostra que direitos e obrigações nascem, desenvolvem-se,
modificam-se e extinguem- se, na grande maioria, sem qualquer
interferência judicial e sem a intercessão de qualquer outro meio
de pacificação ou composição. Cumprir obrigações e respeitar
direitos constitui, afinal, o que se chama vida fisiológica dos
direitos. As transgressões são a patologia”[56]. Assim, não se pode
limitar o escopo do processo à justa composição da lide, como fez
CARNELUTTI, já que sua função é maior do que criar ou complementar
regras para prevalecerem no caso concreto; ao contrário, seu escopo
é atuar o direito, como já afirmava CHIOVENDA[57]. DINAMARCO traz
também alguma luz quanto às afirmações de LIEBMAN de que o juiz
deve formular e atuar praticamente a regra concreta, o que poderia
dar a falsa impressão de que, nesse caso, haveria criação do
direito pela sentença, já que, para ele, quando o juiz interpreta
como um canal válido dos valores sociais, aplicando não só a letra
da lei mas também seus princípios,
está atuando o ordenamento como um todo e não criando direitos para
o caso concreto[58]. Foi com base nas premissas fixadas por
CHIOVENDA e CARNELUTTI, bem como na síntese estabelecida por
LIEBMAN, que se ergueu
toda a teoria exposta anteriormente sobre jurisdição e que vem
norteando o direito processual civil brasileiro. Assim: se a
jurisdição é a imposição da ordem jurídica substancial ao caso
concreto, então o processo, que é o meio pelo qual se exerce a
jurisdição, é um “instrumento a serviço da paz social”[59]. Daí ser
possível falar hoje em instrumentalidade do processo, entendida não
só pela ligação entre os dois campos do direito (direito material e
processual), como também por ser uma das formas através da qual o
Estado busca atingir o bem-estar social[60].
2.3 Instrumentalidade do processo
Ora, do ponto de vista estritamente jurídico (e não científico), o
processo nada mais é que um instrumento a serviço do direito
material, devendo relativizar-se o binômio: direito-processo.
Não é outra a conclusão a que se chega se a jurisdição for
caracterizada como uma das expressões do poder estatal, poder esse
mediante o qual se decide e se impõe decisões, e que se exerce via
processo, entendido aqui como “instrumento por meio do qual os
órgãos jurisdicionais atuam para pacificar as pessoas conflitantes,
eliminando os conflitos e fazendo cumprir o preceito jurisdicional
pertinente a cada caso que lhes é apresentado em busca de
solução”[61]. O processo é necessariamente formal (e não formalista
como pensam muitos) porque as suas formas constituem o modo pelo
qual as partes podem ter a garantia de legalidade e imparcialidade
no exercício da jurisdição. Ademais, além desse caráter formal,
garante-se às partes, no processo, o direito de participar da
maneira mais intensa possível em contraditório e perante o juiz da
causa.
Para o exercício pleno dessas garantias pressupõe-se muita demora,
e, como se sabe, o tempo é o maior inimigo da função pacificadora
do processo, na medida em que, quanto mais tempo a situação
permanecer indefinida, maior será a angústia a que se submetem as
partes.
Assim, toda e qualquer pretensão trazida pelas partes ao processo
clama não só por uma solução justa como também rápida, devendo
restar absolutamente claro que não se deve confundir o mero
ingresso em juízo com o efetivo acesso à justiça. Esse acesso,
portanto, só virá se o processo for atuado de maneira efetiva,
mantendo, dessa forma, a utilidade de suas decisões.
Tal instrumentalidade do processo possui, ainda, duplo aspecto: um
positivo e outro negativo. O primeiro é a já mencionada ligação
existente entre o direito processual e as relações
jurídico-materiais, evitando, assim, que aquele fique alienado da
realidade. Na sua faceta negativa, porém, é um alerta, a fim de
evitar que o processo se torne um fim em si mesmo, ficando claro
tratar-se de um meio para a realização da ordem material, a qual o
processo não pode sobrepujar-se. Esse alerta oriundo do aspecto
negativo da instrumentalidade é consequência direta da própria
evolução do direito processual e das teorias a respeito do direito
de ação[62].
Como se percebe, independentemente da posição que se adote, apesar
de prevalecer a teoria dualista, o que ocorre é que, na grande
maioria dos casos não penais, os direitos devem ser satisfeitos e
as obrigações extintas normalmente, sem a intervenção do Estado,
que somente será chamado a atuar, exercendo a jurisdição, naquelas
situações em que restar caracterizada a insatisfação (pretensão
resistida, não satisfeita). Em alguns casos não penais e em todos
os casos penais, a situação é diversa, já que o processo é
indispensável para a solução de controvérsias, que não comportam,
portanto, satisfação voluntária. Nesses casos, em que restar
caracterizada a insatisfação ou em que o processo for, por lei,
indispensável, haverá o desempenho da atividade jurisdicional pelo
Estado em colaboração com as partes – a essa soma de atividades do
Estado em cooperação visando à atuação da vontade concreta da lei
com vistas à pacificação social dá-se o nome de processo.
O processo, do ponto de vista da função jurídica do Estado, é um
instrumento a serviço do direito material, que objetiva, com isso,
a paz social, ou seja, se o direito material visa à ordem social, o
processo, atuando esse direito material, garante a unidade social
ao corrigir a insatisfação, e também mantém a própria autoridade
estatal, já que a jurisdição é uma das facetas do poder estatal.
Resta comprovada, portanto, a validade da teoria dualista do
ordenamento jurídico[63]. Esse é o aspecto positivo da
instrumentalidade, ou seja, sua ligação com a ordem jurídica
substancial faz perceber que, se o que o processo visa é à
pacificação social, isso somente será possível se o processo for
efetivo, eficiente ao garantir e distribuir justiça e,
principalmente, ao eliminar os obstáculos a um acesso pleno da
justiça aos jurisdicionados. Já o aspect