“SEU CABELO NÃO NEGA”: QUANDO A DIFERENÇA É COLOCADA EM
QUESTÃO NAS AULAS DE ARTE
SILVA JUNIOR, Paulo Melgaço da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
CANEN, Ana
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Resumo
Trabalhar com periferias urbanas abre possibilidades de conhecer como determinados
discursos e conceitos que circulam nos grandes centros são apropriados e reinventados. As relações de vizinhança persistem muito mais do que em bairros de classe média ou alta.
As necessidades básicas, os espaços de sociabilidade, fazem com que sejam redesenhadas
novas formas de perceber o mundo social O presente artigo aborda alguns modos pelos
quais os alunos do 6º ano constroem suas identidades culturais, de raça e gênero e como
estas são vivenciadas no ambiente escolar. Neste aspecto, buscamos captar como as/os
jovens da periferia de Duque de Caxias se constroem como sujeitos criando novos
significados para discursos legitimados pelo senso comum. Baseamos em Sommerville
(2000) e Barnard (2004), que entendem que as questões de raça, sexualidades, gênero e
classe social devem ser vistas como interseccionadas, ou seja, não podem ser dissociadas,
uma vez que se deve olhar para o sujeito social como um todo e não apenas por um ângulo
de suas subjetividades Para tal, realizamos uma pesquisa ação (FRANCO, 2005) durante
as aulas de arte, realizadas ao longo do ano.. Além das aulas, os principais instrumentos
para geração de dados foram a observação do cotidiano escolar e as anotações de
conversas informais consideradas significantes. Propusemos trabalhar temas que
propiciassem a discussão e desestabilização de conceitos e visões essencializadas durante
as aulas de arte. Tal processo evidenciou que, ainda que nem todos tenham chegado ao
nível de reconhecimento e valorização das diferenças, nossos estudantes aprenderam a
respeitar o outro, a pensar neste como ser humano.
Palavras chaves: Raça, Cotidiano Escolar e Interculturalidade
Introdução
Este estudo aborda alguns modos pelos quais alunos/as do 6º ano de uma escola da
periferia de Duque de Caxias/RJ constroem suas identidades de culturais, de raça e gênero
e como estas são vivenciadas no ambiente escolar. De acordo com Sodré (1999), Quijano
(2001) Wilchins (2004) e Barnard (2004) a raça é uma abstração, uma fantasia móvel que
não tem nada a ver com o determinismo biológico. Ao mesmo tempo que Sommerville
(2000) e Barnard (2004), que entendem que as questões de raça, sexualidades, gênero e
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classe social devem ser vistas como interseccionadas, ou seja, não podem ser dissociadas,
uma vez que se deve olhar para o sujeito social como um todo e não apenas por um ângulo
de suas subjetividades.
De fato, como o primeiro autor é professor, pai e homem negro devemos revelar
que as questões raciais influenciam diretamente as questões de gênero, sexualidades e
masculinidades, e vice-versa. Cabe salientar a complexidade da questão racial no Brasili:
se por um lado, no senso comum, o/a negro/a tem sua identidade social construída de
maneira negativa e subalternizada, por outro vê sua sexualidade explorada, exaltada e
hipervalorizada. Ao longo da história da civilização brasileira, o/a negro/a vem sendo
marcado/a, tendo suas subjetividades construídas por meio de estigmas e mitos,
principalmente de maneira essencializada, fazendo com que muitos sujeitos tenham
dificuldade de se aceitar como pertencentes à raça. Uma reflexão atenta sobre esta questão
nos mostra que a educação e a escola podem tanto contribuir para a perpetuação do
racismo e a manutenção do status quo inferiorizante do/a negro/a em nossa sociedadeii,
como, também, pode ser de agente de transformação social e de luta contra o racismo.
Acreditamos que a escola pode oferecer uma grande contribuição, problematizando a
visões essencializadas de identidades raciais e de gênero e, com isso, colaborar para que
os/as estudantes reconheçam quão injustos são os sentimentos e atitude de racismo e
sexismo
Apropriamos do campo do multiculturalismoiii, entendido como a possibilidade de
promover uma educação para o reconhecimento do outro, para o diálogo entre os
diferentes grupos sociais e culturais (CANEN 2007, 2008; CANDAU, 2008, 2009,
WALSH, 2009) que pode contribuir para discutir a escola e seus diversos e complexos
atravessamentos culturais para problematizar as maneiras como estes/as jovens
constroem e revelam suas subjetividades no cotidiano escolar. O objetivo central da
pesquisa foi passar dos limites, desconfiar do que está posto e olhar de mau jeito o que
está posto; colocar em situação embaraçosa o que há de estável naquele corpo de
conhecimentos (LOURO 2004). Com isso, problematizar e de tentar promover mudanças
nas maneiras de conceber as possibilidades de se construir como sujeitos sociais, trazendo
à tona a necessidade de reconhecimento do “outro” como sujeito. Fabrício e Moita Lopes
(2010) destacam a importância da realização de pesquisas na área educacional que se
transformem em atividades relevantes e em oportunidades de aprendizagem. Assim, a
pesquisa se constitui em uma tentativa de contribuir para conceber e investigar o
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repertorio de significados e conceitos construídos a partir do senso comum e, com isso,
(tentar) desestabilizar visões congeladas de gênero e raça.
O artigo está estruturado da seguinte maneira: no primeiro momento as reflexões
iniciais. Logo após propomos uma breve reflexão sobre Escola, Periferia Urbana, culturas
e interculturalidade. Ao final, destacamos o contexto em que se desenvolveu o trabalho
que serviu como instrumento para esta pesquisa e, por fim, apresentamos as
considerações.
Reflexões iniciais
Muitos/as autores/as têm se debruçado a abordar a natureza reflexiva da
contemporaneidade. São apresentadas novas maneiras de viver e de se relacionar
socialmente. Com isso, antigos valores sociais perdem seus status. Surge agora um sujeito
fragmentado, múltiplo, contraditório em constante mutação. É a modernidade reflexiva
(GIDDENS, BECK & LASH, 1997) caracterizada pela busca, pela reflexão e o repensar
sobre quem somos e em quem poderemos nos tornar.
Neste sentido, a modernidade reflexiva, também, tem sido caracterizada por uma
explosão de identidades políticas centradas na ascensão do feminismo, nas identidades
gays, lésbicas e negras, na migração de antigas colônias dos países pobres para os países
ricos. Nesta pluralidade de vida social me interessa refletir sobre corpos negros, como
sujeitos que foram apagados pela modernidade e que sempre são apontados nos censos e
pesquisas como em situação de inferioridade.
É lugar comum afirmar que no que se diz respeito à raça, a sociedade brasileira é
constituída pelos discursos da escravidão, da abolição, da Ciência da Raça, da
Democracia Racial, da Miscigenação e da Negritude; além disto, os efeitos semânticos
de tais discursos podem ser percebidos em contextos distintos do país, respeitando as
particularidades de cada região. Com base neles e no racismo, muitos ainda constroem
negros/as como marginais, bandidos, não confiáveis, feios, não competentes, incapazes
para atividades intelectuais etc. (MELO, ROCHA e SILVA JUNIOR, 2013).
A nossa proposta é voltar o olhar para a escola e suas relações cotidianas de raça,
sexualidades, gênero e classe social. Esse local detém significativa importância na
construção das identidadesiv dos/as estudantes. A escola constitui o primeiro centro social
fora do núcleo familiar, onde a criança poderá colocar em questionamento ou confirmar
todas as informações e visões de mundo ensinadas pelos familiares. Conforme Moita
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Lopes (2002, p. 91) “as escolas, por exemplo, determinam em grande parte não somente
o que as pessoas fazem como também quem são, serão e podem ser”, tendo também a
função de “legitimar ou recusar essas identidades, entre outros significados previamente
construídos” (p. 204).
No que diz respeito à raça, é na escola que se aprende que a cor da pele negra é um
problema. Nesse espaço, meninos e meninas ouvem brincadeiras, xingamentos e críticas,
e são excluídos de diversas práticas sociais devido ao marcador corporal. Tais ações
acontecem de diversas maneiras: por um lado, o silêncio que invisibiliza a desigualdade
racial, desencorajando alunos/as de se posicionarem como negros/as. Por outro lado, nos
bancos escolares deparamo-nos com discursos que essencializam binarismos que podem
inferiorizar ou erotizar o/a negro/a.
Nessa perspectiva, a discussão sobre cabelos, para a aluna negra, serve como um
claro exemplo de questões que fazem parte do cotidiano escolar: eles devem ser alisados
ou permanecer naturais? Para Costa de Paula (2010), esta lógica binária – alisar ou não –
acaba por desvalorizar a mulher negra porque o que está em jogo aqui é a comparação
com o padrão de referência mulher branca. Ao propor estas duas alternativas não se está
considerando o direito de a mulher negra buscar sentir-se bonita do jeito que melhor lhe
convier. Já para o aluno negro, seus traços físicos (formato de rosto, nariz e o próprio
cabelo) são motivos de piada. Contudo, este mesmo corpo negro se torna um fetiche e é
visto como forma de sexualidade, sensualidade, vigor e força na prática de esportes.
Escolas, Periferias Urbanas, Culturas e interculturalidade
Vivemos atualmente em um cenário sócio-político-ideológico e econômico
bastante complexov, no qual o campo educacional (a escola) precisa problematizar as
práticas e discursos internalizados que produzem a subalternização de pessoas e grupos
culturais. Além disso, urge que a educação busque meios de provocar mudanças nas
interações cotidianas nas escolas e sociedades. Neste sentido, acreditamos que a educação
formal deva estar conectada às possibilidades de educação para a vida, o conviver, o
reconhecimento da natureza e dos saberes ancestrais como forma de conhecimento
escolar.
Determinados conceitos e discursos disseminados nos grandes centros urbanos são
reinventados, reconstruídos e readaptados nas periferias urbanas. As relações de
vizinhança e as redes sociais de apoio mútuo são características que marcam e que buscam
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driblar a precariedade de trocas humanas nas periferias urbanas. Com isso, as
necessidades básicas fazem com que sejam redesenhadas novas formas de perceber o
mundo social, muito presentes em um específico centro urbano periférico na região
metropolitana do Rio de Janeiro.
Nessa perspectiva, a educação multi/ intercultural se configura como um campo de
estudos que visa reconhecer a educação para a alteridade, valorizando o outro como
sujeito social e construtor de diversos saberes. Ao mesmo tempo, abre também
possibilidades para abordar as questões sócio-econômico-político-sociais e reconhecer as
diferenças (gênero, sexualidades, raça, classe social), buscando problematizá-las e
integrá-las ao contexto educacional, impedindo seu silêncio, hierarquização ou anulação.
Como há uma grande polissemia em relação à expressão intercultural. Desse modo,
e de acordo com Walsh (2009), podemos destacar três perspectivas da interculturalidade:
relacional, funcional e crítica. A perspectiva relacional propõe o contato e o intercâmbio
entre culturas, pessoas, práticas e saberes, e pode se dar em condições de igualdade ou
desigualdade. Esta vertente assume que a interculturalidade sempre existiu no continente,
pelas constantes relações entre índios e afrodescendentes com as diversas raças.
Já a perspectiva da interculturalidade funcional, ainda segundo Walsh (2009), se
preocupa com o reconhecimento da diversidade cultural com o objetivo de realizar a
inclusão desses sujeitos na estrutura social estabelecida. Aqui se busca promover o
diálogo, a tolerância, o respeito mútuo e a convivência pacífica entre os diferentes. É
relevante levar em consideração que esta perspectiva filosófica acabou sendo incorporada
pelas políticas públicas, porque sua proposta orienta a inclusão de indivíduos e grupos
sociais marginalizados e excluídos. Daí derivam as preocupações com as políticas e ações
afirmativas.
A terceira perspectiva, a interculturalidade críticavi, questiona a lógica do
capitalismo; seu foco central é a estrutura de poder, seu padrão de racialização e como a
diferença tem sido construída em função deste. Esta vertente busca fortalecer a construção
de identidades dinâmicas, abertas e plurais, assim como potencializar processos de
empoderamento de sujeitos inferiorizados e subalternizados e a construção da autoestima
e autonomia em um horizonte de emancipação social (CANDAU; RUSSO, 2011). Aqui
a diferença está associada ao processo de colonização, sendo denominada diferença
colonial, ou seja, o espaço que se desdobra a partir da colonialidade do poder. Nas
palavras de Mignolo (2003, p. 10),
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[...] a diferença colonial é o espaço onde histórias locais que estão inventando
e implementando os projetos globais encontram aquelas histórias locais que os
recebem; é o espaço onde os projetos globais são forçadas a adaptar-se,
integrar-se ou onde são adotados, rejeitados ou ignorados (MIGNOLO, 2003,
p. 10).
Para esse autor, este espaço pode ser físico ou imaginário, e nele atua a
colonialidade do poder que configura historicamente uma geopolítica do conhecimento,
na qual se destaca o privilégio de indivíduos localizados em determinados lugares geo-
históricos do globo. A colonialidade é parte constitutiva da modernidade, é seu lado
sombrio, oculto e silenciado (MIGNOLO, 2003). Ela determina a subalternização e a
dependência, processo que pode ser compreendido a partir de quatro eixos: do poder, do
ser, do saber e da mãe natureza. A matriz da colonialidade ocupa um lugar central nos
processos de dominação/ subordinação relacionados a raça, gênero e sexualidade, bem
como nos processos de construção das masculinidades (levando em conta tanto a estrutura
do patriarcado quanto o fetiche criado a partir do corpo negro). Daí a necessidade de se
problematizar a diferença colonial (MIGNOLO, 2003) produzida desde a colonização até
os dias atuais.
As noções de identidades de raça e de gênero em questão: metodologia,
desafios, contextos e realizações
A escola Experimentalvii, onde os dados do presente estudo foram gerados, está
localizada em um bairro da periferia da cidade da Baixada Fluminense - Duque de Caxias
- e oferece desde a educação infantil ao segundo segmento do ensino fundamental. A
escola possui cerca de 700 alunos/as, provenientes de classe trabalhadora e de baixa
renda. A turma na qual a pesquisa foi desenvolvida estuda no segundo turno, que funciona
das 11:00 às 15:00 horas. Para o desenvolvimento de tal proposta, optamos pela pesquisa-
ação que permite “caminhar junto quando se pretende a transformação da prática”
(FRANCO, p.495, 2005). A autora nos diz que a pesquisa-ação deve partir de uma
situação social concreta a modificar e mais do que isso deve se inspirar nos elementos
novos que surgem durante o processo e sob a influência da pesquisa.
Os temas eram introduzidos, pelo professor/ pesquisadorviii, a partir de textos,
filmes e músicas em geral, que permitissem provocar discussões a fim de desestabilizar
visões essencializadas. Destacamos que os encontros foram gravados e transcritos.
De acordo com o programa da disciplina de Arte elaborado para o 6º ano, o estudo
da cor deve acontecer ao longo do 3º bimestre. Programamos então, em conjunto com a
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orientadora educacional, as atividades do bimestre incluindo vídeos, músicas e a
teorização sobre cores. Para iniciar as discussões, no dia 31 de julho propusemos a
apresentação do vídeo Vista minha peleix. Estavam presentes na sala 18 meninos e 10
meninas. Como era o retorno das aulas (literalmente, o primeiro dia de aula após um curto
recesso), procuramos deixar a turma bem à vontade, pedimos para fazerem pipoca, levei
refrigerantes, tentamos reproduzir uma sala de cinema. Antes de começarmos fizemos o
convite para assistirem ao filme e destacamos que ele apresentava questões raciais muito
interessantes, às quais os/as alunos/as deveriam prestar atenção.
Iniciou-se o filme, e logo sentimos um certo estranhamento por parte da turma:
risinhos, alguns meninos se movimentando excessivamente nas cadeiras. Contudo,
ninguém se levantou ou saiu da sala durante a exibição. Não ouvimos piadas ou
comentários ao longo dos 25 minutos aproximados de apresentação. Apenas destacamos
no diário de notas que, durante a exibição, “os meninos ficaram mais inquietos e agitados
do que as meninas, que permaneceram em silêncio durante todo o vídeo”.
Ao terminar a exibição, o aluno Endison comentou: “Nossa é muito estranho ver
um filme assim, só negro”. Consideramos este momento um instante de desestabilização
do grupo, que não estava acostumado a ver filmes com protagonismo negro. Os/as
aluno/as não têm contato, em seu cotidiano, com negros/as em posição dominante. No
convívio diário eles/as assistem a negros/as recebendo ordens e trabalhando como
empregados em funções subalternas. Talvez os/as negros/as melhor posicionados
socialmente sejam os/as professores/as da escola.
Contudo, antes que pudéssemos disser algo, o aluno Andrew falou: “Você está
sendo preconceituoso, tem que saber respeitar”. Dalila rapidamente interveio: “É que....
é diferente, a gente não tá acostumada a ver filme assim”. Para reforçar nossa opinião,
perguntamos: “Assim como?” Por um minuto, silêncio na turma; depois de algum tempo,
Vitória se posicionou e disse: “Com negros fazendo papeis de ricos... e só com eles tendo
dinheiro ...olha as novelas em malhação e na avenida Brasil só são empregados... Só uma
negra faz papel principal e mesmo assim é empregue-te”x. A fala desta aluna reforçou
minha linha de pensamento acima, de que os/as alunos/as não possuem referencial de
negros no poder, principalmente no que se refere a intelectuaisxi.
A aluna Vitória destacou: “Mas eu acho que o vídeo também é preconceituoso
porque só mostra a maioria de negro. Não resolve deste jeito. Tem que ter os dois vivendo
iguais... com dinheiro e situação”. Este foi um ponto relevante, em que a aluna buscava a
valorização do convívio entre raças diferentes, uma discussão muito presente nas
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vertentes multiculturais pós-coloniais, interativas, críticas e interculturais (CANDAU,
2008,2009; CANEN, 2007, 2008, 2009). Entretanto, o aluno Wallace entrou na conversa
e citou um outro aspecto do vídeo: “As meninas são todas com cabelo durão, não são
bonitas”. Trata-se de um tema tabu entre as adolescentes negras, pois as questões relativas
ao cabelo fazem parte do cabedal de discursos das mulheres negras. Todo o processo de
colonização valorizou os modelos de beleza da mulher branca; em consequência, o
modelo de cabelo desejado é o comprido liso. Argumentei, então, que ele não achava as
meninas bonitas porque somos regidos pelos padrões de beleza do modelo branco
europeu.
Conforme mostra Costa de Paula (2010), a mulher negra pode se mostrar insegura
em relação à própria imagem por causa do cabelo. De fato, a aluna Joyce comentou: “É
por isso que temos que alisar os cabelos, senão todo mundo acha feio”. Iara se defendeu:
“Eu não gosto de cabelo escorrido, gosto do meu cacheado igual da Penhaxii, não me
importo com o que os outros falam.” “Mais você alisa do mesmo jeito, Iara seu cabelo é
ruim e o dela é implante”, comentou Natalia. A partir daí, os comentários sobre cabelos
tomaram uma grande proporção, com cada uma destacando como alisa o cabelo e a
vantagem que algumas brancas têm em ter cabelo liso. Entendemos que, no caso do
cabelo, a mulher negra e pobre sofre ainda mais que aquelas que possuem mais recursos
econômicos que permitem se submeter a tratamentos de beleza e a trabalhar a autoestima.
A maioria dos meninos não se interessou em participar da discussão. Apenas as
vozes de Wallace, Mauro, Endison e Andrew aparecem na gravação, mesmo assim na
forma de risos. Um dos poucos momentos em que se ouve a voz do Wallace é para dizer
que “pegar em cabelo liso é mais gostoso... é bom para ficar...” e fez o gesto como se
estivesse beijando e passando as mãos nos cabelos da outra pessoa. É lógico que uma fala
dessas, vinda de um menino considerado bonito, desestabiliza e inferioriza as meninas
negras.
Aproveitamos a discussão para problematizar o conceito de beleza da mulher e as
razões por que cabelo liso é considerado cabelo bom. Resolvemos perguntar-lhes quais
os adjetivos atribuídos a um cabelo considerado duro, e fomos listando as respostas no
quadro. Apareceram na relação, entre outros: “Cabelo bombril, ruim, espeto do inferno,
cabelo do diabo, sarará crioulo, nega maluca, coisa ruim, carapicho, ...” – todos negativos
e refletindo as formas como negros e negras foram construídos ao longo dos anos. Aqui
a proposta era problematizar os discursos essencializados sobre raça (SOMERVILLE,
2000; SULLIVAN, 2003; BARNARD, 2004;) e trazer à tona que determinadas
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características são traços das múltiplas identidades de raça (CANDAU, 2008; CANEN,
2009). Por isso, solicitamos à turma que refletisse sobre todos aqueles nomes escritos no
quadro, e sobre como eles depreciavam e subalternizavam o outro. Observamos que,
desde o processo de colonização, o negro veio sendo construído como inferior, e que as
diferenças foram marcadas em relação ao branco (MUNANGA, 1986; WALSH, 2009).
Mostramos que enquanto ser branco significa ser bonito, ser negro corresponde a ser feio;
que o cheiro do branco é bom, ao passo que o do negro fede, entre outras comparações
que quem é negro conhece muito bem, incluindo todos aqueles atributos relativos ao
cabelo, especialmente quando atribuídos à mulher negra.
Naquela ocasião, o objetivo era mostrar como o/a colonizado/a foi marcado/ pelas
relações de poder que o/a construíram (QUIJANO, 2007) e como nós, negros e negras,
carregamos esses discursos que se acomodam no corpo e que causam um sentimento de
inferiorização. Chamamos atenção para o fato de que já era hora de repensarmos as
formas como fomos historicamente construídos. Convocamos a turma a pensar na história
do Brasil desde a chegada dos portugueses, tentando trazer à tona a questão da diferença
colonial (MIGNOLO, 2003). Destacamos como o/a negro/a foi identificado/a e
subalternizado/a ao longo dos anos, e como era importante pensarmos nestas questões
para criarmos/ desenvolvermos maneiras positivas de identificação (SOMMERVILLE,
2000; BARNARD, 2004). A proposta era a de buscar reconhecer que todos aqueles
adjetivos citados no início da conversa serviam para desqualificar e inferiorizar uma raça,
atacando diretamente a autoestima das pessoas. Era então necessário realizar a
desidentificação, ou seja, livrar-nos dessas formas pejorativas com que fomos
comparados e nomeados enquanto negros e negras. Enfatizamos que, apesar de estarmos
falando principalmente de cabelos, nossa fala se estendia a todas as condições que
reduzem os/as negros/as ao inferior em diversos aspectos de suas subjetividades; e,
finalmente, que na realidade nos estávamos experimentando novas formas de
identificação que não fossem as relacionadas aos processos de determinismo biológico
ou social ( SOMMERVILLE, 2000; BARNARD, 2004).
A turma ouviu em silêncio. Reafirmamos nossa fala, salientando que se tratava de
uma questão cultural e que o vídeo mostrava isso. Lembramos que, se vivêssemos naquela
sociedade apresentada no filme, certamente os padrões de beleza seriam diferentes
daqueles que estávamos discutindo no momento; e que as relações de poder seriam outras,
sob as quais todas as diferenças seriam postas de maneira que a raça negra seria vista
como superior: mais inteligente, mais bonita etc.
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Retomamos a discussão dos cabelos. Falamos sobre algumas mulheres negras
famosas que não os alisavam – como as atrizes Sheron Menezes e Luci Ramos e a cantora
Luciana Melo – e como o público, de um modo geral, as achava lindas. Ao mesmo tempo
mostramos que havia outras que alisavam os cabelos e que as pessoas também achavam
lindas – como a jornalista Gloria Maria e as atrizes Camila Pitanga e Thais Araújo –, e
ainda como as que usavam belos apliques – como a atriz Cris Vianna, que todos
conheciam por ter sido madrinha de bateria da escola de samba da cidade. Com isso,
reforçamos a importância de se valorizar as diferenças e a beleza da mulher negra,
destacando que a preocupação com os cabelos é geral entre as pessoas, uma vez que eles
marcam nossa aparência e funcionam como um cartão de visitas. No caso das meninas,
com base em Costa de Paula (2010), afirmamos que a inquietação com os cabelos é
comum a todas as afrodescendentes: algumas preferem alisá-los, outras os deixam
cacheados ou naturais, outras os raspam; no entanto, o que todas querem são cabelos
bonitos que as agradem e as façam se sentir seguras e lindas com a própria aparência.
Nesse dia conseguimos chamar atenção da turma para as questões raciais e mostrar outras
possibilidades de se constituir uma sociedade, independente de sermos negros ou brancos.
Algumas considerações
A proposta do presente estudo era mostrar como as marcas culturais influenciaram
nossas formas de agir e pensar, podendo inferiorizar algumas identidades, propondo uma
visão multicultural como caminho de viabilização da valorização identitária. A questão
foi retomada em outros momentos, tentando reforçar a importância de identificar as
formas negativas que marcam o outro, e como estas dadas características foram/ são
utilizadas como possibilidades de subalternizar ou enaltecer uma raça.
Essas discussões confirmaram a relevância de trazer, para a sala de aula, questões
relativas a gênero, raça e classe social. Neste sentido, o tema cabelo está diretamente
relacionado à construção do gênero feminino e à raça negra uma vez que, no caso
específico desta turma, os garotos negros não apresentaram nenhuma preocupação com
essa questão. Com isso, estamos certos que plantamos uma semente. Colocamos em
xeque visões essencializadas e congelamentos identitários, trouxemos o diferente, o
colonizado para a sala de aula e propusemos o diálogo entre as diferenças.
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i No senso comum, encontramos ideias do determinismo biológico e do mito da democracia racial. O
primeiro mostra as características biológicas da raça negra: nasceu para as atividades que exigem força e
habilidades físicas. O segundo informa que em nosso país não existe racismo, que as oportunidades são
iguais para todos/as. Contudo, nesta investigação, compreendo que somos marcados e apontados
diariamente, seja pela falta de oportunidades seja pelo fetiche corporal. Exemplos são a letra da música do
grupo Rappa, “todo camburão tem um pouco do navio negreiro”; e a fala – muito popular entre
meus/minhas alunos/as das comunidades em que trabalho – de que “todo policial, porteiro ou segurança
sabe muito bem quem é negro/a e quem não é”, que desfazem o mito da igualdade racial ii Aqui abrimos um parêntese para destacar que muitos/as professores/as, no desejo de atender às exigências
da Lei 10.639/03 (que inclui a história e acultura da África nos currículos), acabam reforçando o papel do
negro como escravo liberto que tem eterna gratidão à Princesa Isabel, ou visões essencializadas do que é
ser negro. Tais atividades pouco contribuem para a autoestima dos/as alunos/as negros/as iii Referimos aqui ao multiculturalismo e suas múltiplas vertentes, ou seja, o interculturalismo e a
decolonidade (uma vertente da interculturalidade crítica). iv O termo identidade está sendo utilizado segundo a indicação de Silva (2000): sob rasura. Não me refiro
a uma identidade essencializada, e sim em momento constante, em fluxo. v Temos presenciado lutas de grupos sociais pelos seus direitos, ao mesmo tempo em que a globalização
provoca uma homogeneização de pensamentos, sonhos e culturas, com a mídia repetidamente exibindo
novas formas e possibilidades de sociabilidades; há ainda o plano econômico alargando, a cada dia, as
fronteiras entre os mais ricos e os pobres. vi Segundo Walsh (2009), essa perspectiva não parte do problema da diversidade ou da diferença, não se
preocupa com tolerância ou inclusão. vii O nome da escola e dos/das alunos/as são fictícios. O primeiro autor atua como professor de arte nesta
escola. viii A pesquisa foi desenvolvida pelo primeiro autor sob a orientação da segunda autora. ix Trata-se de um vídeo de 2003, disponível na internet e patrocinado pelo CEERT (Centro de Estudos das
Relações de Trabalho e Desigualdades), com roteiro de Joel Zito Araújo e Dandara e direção do primeiro.
A produção destina-se à discussão das questões raciais e apresenta uma inversão de papéis. Aqui os negros
são a classe dominante e os brancos são ex-escravos, assim como os países pobres são Alemanha e
Inglaterra, enquanto Moçambique é um país rico. x A aluna se referia à novela Cheias de Charme, da Rede Globo. xi Temos consciência que cabe a nós, professores/as, ampliar este repertório discente, mostrando diversos/as
intelectuais negros/as e desestabilizando as expectativas de papéis sociais para negros e negras. Como
professor negro, o primeiro autor acredita que pode se considerar como um exemplo de desestabilização,
dados os meios nos quais circula e nos quais tenta criar possibilidades para sua circulação. xii Personagem vivido pela atriz Thais Araújo na novela Cheias de Charme.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 303835
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