Download - SILVA, Vicente Gil Da. a Aliança Para o Progresso No Brasil - De Propaganda Anticomunista a Instrumento de Intervenção Política (1961-1964)

Transcript
  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    Vicente Gil da Silva

    A ALIANA PARA O PROGRESSO NO BRASIL: DE

    PROPAGANDA ANTICOMUNISTA A INSTRUMENTO DE

    INTERVENO POLTICA (1961-1964)

    Porto Alegre

    2008

  • 2

    Vicente Gil da Silva

    A Aliana para o Progresso no Brasil: de Propaganda Anticomunista

    Instrumento de Interveno Poltica (1961-1964)

    Dissertao apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em

    Histria da Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul, como requisito

    parcial para obteno do ttulo de

    Mestre em Histria

    Orientadora:

    Prof. Dra. Claudia Wasserman

    Porto Alegre

    2008

  • 3

    Vicente Gil da Silva

    A Aliana para o Progresso no Brasil: de Propaganda Anticomunista

    Instrumento de Interveno Poltica (1961-1964)

    Dissertao apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em

    Histria da Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul, como requisito

    parcial para obteno do ttulo de

    Mestre em Histria

    Aprovada pelos membros da Banca Examinadora, em 22/08/2008, com

    os seguintes conceitos:

    Prof. Dr.Carlos Fico (UFRJ) Conceito A

    Profa Dra. Carla Simone Rodeghero (UFRGS) Conceito A

    Prof. Dr. Enrique Serra Padrs (UFRGS) Conceito A

    Porto Alegre

    2008

  • 4

    O esforo de realizao deste

    trabalho dedicado ao professor

    Luis Dario Teixeira Ribeiro, pela

    importncia que teve em minha

    formao como professor e pelo

    exemplo que de dedicao aos

    alunos.

  • 5

    Agradecimentos

    Minhas pesquisas na JFK Library foram mais tranqilas e animadoras

    pelo carinho que recebi de meus tios Maura Lange e Eduardo Badar em

    Lowell. Agradeo por terem gentilmente compartilhado comigo seu espao.

    A Leandro Benmergui e Paula Halperin, por terem me recebido em

    Washington DC, em uma casa de localizao perfeita. Pelas orientaes e

    discusses que tivemos ao longo do ms de julho de 2007 eu agradeo a este

    casal de amigos porteos. Agradeo tambm a minha orientadora, Cludia

    Wasserman, que em vrios momentos apoiou minhas viradas temticas e

    indicou importantes caminhos a seguir. minha amiga Daniela Conte, por ter

    tido a pacincia de ler todo o meu trabalho e ter feito importantes crticas e

    sugestes tericas. Ao meu irmo Guilherme Gil da Silva, que tambm ocupou-

    se em ler uma verso do meu trabalho e, a seu modo parcimonioso no uso das

    palavras, contribuiu com importantes dicas de escrita e, principalmente, com

    uma dica terica. Ao outro irmo Clo de Oliveira Neto, por ter cedido um

    espao no seu apartamento e no seu bolso para bancar minha estadia no Rio

    de Janeiro durante minhas pesquisas em arquivos da cidade. Laura Schwarz,

    que foi minha grande incentivadora para buscar financiamento para visitar

    arquivos estadunidenses e que leu todas as verses preliminares deste

    trabalho. Sua dedicao em discutir e acompanhar, desde os mnimos

    detalhes, o processo de elaborao desse trabalho foram sem dvida

    fundamentais, especialmente quando corrigia os rascunhos e tambm por

    nossas frutferas discusses tericas.

    Por fim, gostaria de agradecer tambm ao professor Luis Dario Teixeira

    Ribeiro, que foi o responsvel por me dar a idia de fazer um trabalho sobre

    este tema e tambm por fazer importantes consideraes para a verso final

    dessa dissertao.

  • 6

    Resumo

    O objetivo central desta dissertao definir o que o projeto da Aliana

    para o Progresso representou para o governo norte-americano, por que razes

    ele foi proposto e que papel que os Estados Unidos esperavam que o

    programa viesse a desempenhar ao ser implementado no Brasil, entre os anos

    de 1961 e 1964. Pretende-se estudar a Aliana para o Progresso levando-se

    em considerao a poltica externa norte-americana como um todo. A partir

    disso, possvel concluir que a Aliana para o Progresso desempenhou uma

    clara funo ideolgica enquanto um instrumento de luta contra o comunismo

    na Amrica Latina.

    Para cumprir este objetivo, o presente estudo est dividido em quatro

    captulos. No primeiro deles, sero consideradas as aes de propaganda de

    combate ao comunismo em geral. No segundo captulo, a implementao de

    aes de propaganda ligadas especificamente Aliana para o Progresso.

    Logo aps, ser analisado o processo de aparelhamento e de apoio

    expanso das foras policiais brasileiras e sua relao com a Aliana para o

    Progresso. No ltimo captulo, sero examinadas as abordagens do governo

    norte-americano em relao ao Brasil a partir da Aliana para o Progresso.

    PALAVRAS-CHAVE: Aliana para o Progresso; propaganda; polcia;

    ideologia; poltica.

  • 7

    Abstract

    The goal of this dissertation is to define what the Alliance for Progress

    project represented to the North American government, for which reasons it has

    been proposed and what was the expected role that the program would play in

    Brazil, between 1961 and 1964. It is intended to study the Alliance for Progress

    taking in account the foreign policy of United States as a whole. Hence, it is

    possible to conclude that the Alliance for Progress played a clear ideological

    function as an instrument of struggle for combating communism in Latin

    America.

    In order to fulfill this objective, this study is divided into four chapters. The

    first of them consider the actions of propaganda to combat communism in

    general. The second chapter, the implementation of actions of propaganda

    linked specifically to the Alliance for Progress. The third chapter will examine

    the US programs of supporting police forces in Brazil and its relations with the

    Alliance for Progress. The last chapter will examine the political approach of the

    U.S. government to the Brazilian government from Alliance for Progress

    prospective.

    KEYWORDS: Alliance for Progress; propaganda; police, ideology,

    politics.

  • 8

    Lista de Siglas

    AFP: Alliance for Progress

    AID: Agency for International Development

    AID/OPS: Agency for International Development/ Office of Public Safety

    AMFORP: American Force and Power Company

    ARA: American Republics Administration U.S. Department of State

    ARA/BR: American Republics Administration/Brazil

    BCLA: Business Committee for Latin America

    BIRD: Banco Interamericano de Desenvolvimento

    CI: Counter Insurgency

    CI/PG: Counter Insurgency/ Police Group

    CIA: Central Intelligence Agency

    CLACE: Centro Latino-Americano de Coordenao Estudantil

    COMAP: Comisso Coordenadora da Aliana para o Progresso

    Ministrio de Planejamento do Brasil

    COMAP: Commerce Committee of the Alliance for Progress

    CPDOC/FGV: Centro de Pesquisa e Documentao em Histria

    Contempornea da Fundao Getlio Vargas

    CU: Columbia University

    DC: District of Columbia

    ExComm: Executive Committee of the National Security Council White

    House

    FBI: Federal Bureau of Investigations

    FDR: Franklin Delano Roosevelt

    FOIA: Freedom of Information Act

    FRUS: Foreign Relations of United States

    GOB: Brazilian Government

    IAPA: Inter-American Police Academy

    IBAD: Instituto Brasileiro de Ao Democrtica

    IBM: International Businnes Machine

    IMP: Information Materials Press United States Information Agency

  • 9

    INI: Instituto Nacional de Identificao

    INR: Bureau of Intelligence and Research U.S. Department of State

    IOD: International Operations Division Central Intelligence Agency

    IPA: International Police Academy

    IPES: Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais

    IPS: Information Press Service United States Information Agency

    ITT: International Telephone and Telegraph

    JFK: John Fitzgerald Kennedy

    LAPC: Latin American Policy Committee U.S. Department of State

    MAP: Military Assistance Program

    MIT: Massachusetts Institute of Technology

    MSD: Movimento Sindical Democrtico

    NARA: National Archives and Records Administration

    NARA II: National Archives and Records Administration College Park,

    MD, USA

    NSAM: National Security Action Memorandum

    NSF: National Security Files

    NSC: National Security Council White House

    OAS: Organization of American States

    OSS: Office of Strategic Service U.S. Department of Defense

    PAU: Pan American Union

    RG: Record Group

    RPA: Office of Inter-American Regional Political Affairs American

    Republics Administration

    SEI: Sociedade de Estudos Interamericanos

    SUDENE: Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste

    Ministrio de Planejamento do Brasil

    TOAID: Treinament and Operations Agency for International

    Development

    USIA: United States Information Agency

  • 10

    Sumrio

    1 INTRODUO................................................................................................14

    2 A PROPAGANDA DE COMBATE AO COMUNISMO NA AMRICA LATINA

    ...........................................................................................................................34

    2.1 INTRODUO.............................................................................................35

    2.2 SOBRE AS FONTES...................................................................................36

    2.3 A VISO ESTADUNIDENSE SOBRE A AMRICA LATINA E SEUS

    PROBLEMAS.....................................................................................................43

    2.4 O PERIGO CUBANO................................................................................45

    2.5 A PROPAGANDA DE COMBATE AO COMUNISMO.................................47

    2.6 EXEMPLOS DE MATERIAIS DE PROPAGANDA ANTICOMUNISTA........63

    3 A PROPAGANDA DA ALIANA PARA O PROGRESSO............................69

    3.1 INTRODUO.............................................................................................70

    3.2 SOBRE AS FONTES...................................................................................71

    3.3 A NECESSIDADE DE CONTRAPOSIO S CRTICAS DIRIGIDAS

    ALIANA PARA O PROGRESSO.....................................................................78

    3.4 A PROPAGANDA DA ALIANA PARA O PROGRESSO PELA OEA........84

    3.5 A INICIATIVA DE PROPAGANDA DA ALIANA PARA O PROGRESSO

    PELO COMAP...................................................................................................87

    3.6 A PROPAGANDA DA ALIANA PARA O PROGRESSO PELO

    DEPARTAMENTO DE ESTADO DOS ESTADOS UNIDOS...........................100

    3.7 EXEMPLOS DE MATERIAIS DE PROPAGANDA DA ALIANA PARA O

    PROGRESSO..................................................................................................105

    4 ALIANA PARA O PROGRESSO: UM CASO DE POLCIA......................122

    4.1 INTRODUO...........................................................................................123

    4.2 SOBRE AS FONTES.................................................................................124

    4.3 OS ESTADOS UNIDOS E A DOUTRINA DE CONTRA-INSURGNCIA E

    DE SEGURANA INTERNA...........................................................................132

    4.4 TREINAMENTO E APARELHAMENTO DAS FORAS POLICIAIS NO

    BRASIL............................................................................................................138

    5 BRASIL E ALIANA PARA O PROGRESSO.............................................163

  • 11

    5.1 INTRODUO...........................................................................................164

    5.2 SOBRE AS FONTES.................................................................................165

    5.3 A AJUDA FINANCEIRA EXTERNA PARA O BRASIL DE JNIO

    QUADROS E A QUESTO CUBANA.............................................................184

    5.4 A IMPLEMENTAO DA ALIANA PARA O PROGRESSO NO BRASIL

    DE JOO GOULART.......................................................................................189

    5.5 O ULTIMATO DO GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS AO BRASIL.....199

    5.6 O ABANDONO DA POLTICA DE RDEA CURTA DOS ESTADOS

    UNIDOS EM RELAO AO BRASIL..............................................................212

    5.7 O APOIO DITADURA CIVIL-MILITAR DO GOVERNO DOS ESTADOS

    UNIDOS ATRAVS DA ALIANA PARA O PROGRESSO............................219

    6 CONSIDERAES FINAIS.........................................................................223 7 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................229 8 LISTA DE DOCUMENTOS UTILIZADOS EM ORDEM DE CITAO........234

  • 12

    1 Introduo

    No final do ms de dezembro de 1960, o relatrio final da Fora Tarefa

    sobre Problemas Imediatos Latino-Americanos1 do ento candidato a

    presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy assegurava que seria

    possvel dar incio a uma dcada de desenvolvimento na Amrica Latina.

    Para tanto, bastaria que os Estados Unidos injetassem massivos recursos

    financeiros pblicos e privados na regio, recursos que seriam liberados

    mediante anlise de projetos de desenvolvimento elaborados pelos pases

    latino-americanos. Caso os projetos apresentados fossem responsveis,

    maduros, viveis e identificados com os princpios democrticos, de acordo

    com as concepes dos estrategistas estadunidenses, a liberao de auxlio

    financeiro para o desenvolvimento poderia proporcionar as reformas que, dizia-

    se, h muito tempo os povos latino-americanos exigiam.

    Atravs deste esforo conjunto e de cooperao mtua, previa-se que

    at o fim do ano de 1970 seria possvel reduzir as taxas de analfabetismo da

    populao adulta latino-americana e o dficit habitacional pela metade

    garantindo-se a infra-estrutura bsica destas moradias realizar as reformas

    agrria, fiscal e tributria, aumentar o comrcio entre os pases do continente,

    atravs da diminuio das barreiras tarifrias, estimular o desenvolvimento da

    indstria e da iniciativa privada e aumentar o intercmbio cultural entre os

    Estados Unidos e os pases latino-americanos.

    Seria por meio dessa via democrtica, pacfica e de crescimento

    auto-sustentado que os pases latino-americanos poderiam livrar-se das

    condies de pobreza, considerado o fermento da instabilidade social. Assim,

    no momento em que os Estados Unidos, tendo em vista a fora de seu

    exemplo histrico de desenvolvimento democrtico e liberal, estivessem

    dispostos a investir estes recursos, no s estariam estimulando o

    desenvolvimento econmico dos pases latino-americanos como tambm se

    livrando de potenciais problemas, como os que tiveram lugar em Cuba, por 1 Final Report of the Task Force on Immediate Latin American Problems, do coordenador da Task Force, Adolf Berle, para o coordenador estadunidense da Aliana para o Progresso, Teodoro Moscoso, Washington, DC, 25/08/1960. Localizao: JFK Library, fundo Personal Papers of Teodoro Moscoso, caixa 2, pasta Official Documents.

  • 13

    exemplo. Afirmava-se que havia um grande potencial de que este projeto de

    desenvolvimento viesse a seduzir o imaginrio dos povos latino-americanos,

    que se unificariam em torno de uma mstica de transformaes significativas

    em suas prprias vidas e em seus pases. Nada melhor, ento, que denominar

    este projeto de Aliana para o Progresso.

    Assim, marcado por expectativas otimistas pelo menos por parte de

    estrategistas estadunidenses o programa da Aliana para o Progresso foi

    oficialmente apresentado pelos Estados Unidos ao corpo diplomtico latino-

    americano em uma reunio realizada em Punta del Este, no Uruguai, em

    agosto de 19612. Para esta reunio, o recm-eleito presidente John Kennedy

    enviou vrios de seus mais importantes assessores, entre eles Dean Rusk,

    Secretrio de Estado, e Richard Goodwin, Assistente-Especial do Presidente

    para Assuntos Latino-Americanos. Contudo, nem mesmo a presena destes e

    de outros representantes de Kennedy evitou que os Estados Unidos sofressem

    duras crticas. A mais consistente delas partiu do ento Ministro de Indstria de

    Cuba, Ernesto Che Guevara, que denunciou em seu discurso a estratgia

    estadunidense de utilizar a Aliana para o Progresso para isolar Cuba,

    deixando-a de fora das relaes formais estabelecidas entre os pases latino-

    americanos.3

    A proposio da Aliana para o Progresso sofreu importantes influncias

    de concepes da teoria da modernizao, em voga na poca. A teoria da

    modernizao comeou a ser desenvolvida ainda no final da dcada de 1950,

    principalmente a partir dos estudos de Walter Whitman Rostow e Max Milikan4.

    De acordo com Ruth Leacock, Rostow considerava que os pases do Terceiro

    2 O documento oficial da reunio, que ficou conhecido como Carta de Punta Del Este, contm os princpios e objetivos do Programa da Aliana para o Progresso. 3 Sobre a participao de Ernesto Che Guevara na reunio em Punta del Este, ver o livro de AGUIAR, Flvio. O Che Guevara que Conheci e Retratei. Porto Alegre: RBS Publicaes, 2007. Ver tambm GARCIA, Maria del Carmem Ariet, SALADO, Javier. Ernesto Che Guevara: Punta del Este Proyecto Alternativo de Desarrollo para Amrica Latina. Melborne: Ocean Press, 2003. 4 A referncia completa sobre o estudo inaugural da teoria da modernizao o seguinte: MILIKAN, Max F., ROSTOW, Walt Whitman. A Proposal: Key to an Effective Foreign Policy. New York: Harper & Bros., 1957. Sobre as influncias da teoria da modernizao nas concepes da Aliana para o Progresso, ver tambm PEREIRA, Henrique Alonso de Albuquerque Rodrigues. Criar Ilhas de Sanidade: os Estados Unidos e a Aliana para o Progresso no Brasil. Tese de doutorado no-publicada, apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da PUCSP em maio de 2005; RIBEIRO, Ricardo Alaggio. A Aliana para o Progresso e as Relaes Brasil-Estados Unidos. Tese de doutorado no-publicada apresentada ao Departamento de Cincia Poltica da UNICAMP em dezembro de 2006.

  • 14

    Mundo estariam vivendo um momento de perigosa incerteza, no qual havia a

    possibilidade de uma revoluo que, para o autor, no seria realizada pelos

    famintos crnicos, destitudos e sem-teto. Conforme Leacock, na

    concepo de Rostow

    As revolues provavelmente ocorreriam quando as condies de vida das pessoas melhorassem de algum modo, mas no rpido o suficiente, quando as expectativas sobre a vida crescessem mas no fossem alcanadas. Isto era exatamente o que estava acontecendo com as naes subdesenvolvidas. Elas estavam sendo varridas por uma revoluo de expectativas crescentes. As expectativas eram por desenvolvimento econmico rpido, educao e melhorias polticas e sociais. Se no fosse demonstrado a estas pessoas o caminho para atingir tudo isso democraticamente, ento elas poderiam renunciar s instituies democrticas e buscar mudanas atravs da violncia. As naes subdesenvolvidas poderiam degenerar em focos de problemas crnicos, lugares em constante ebulio. Ainda pior para os Estados Unidos, elas poderiam voltar-se para o comunismo.5

    Esta particular viso de Rostow sobre o carter de uma possvel

    revoluo no Terceiro Mundo a revoluo de crescentes expectativas

    correspondeu ao esprito que foi impresso Aliana para o Progresso pelos

    seus criadores estadunidenses. Segundo Pereira,

    No perodo em que a administrao John Kennedy desenvolveu, planejou e implementou a Aliana para o Progresso no incio da dcada de 1960, a abordagem de Walter Rostow no estudo do crescimento econmico tornou-se uma espcie de arqutipo, um modelo a ser seguido dentro do paradigma da modernizao. Os cinco estgios do crescimento econmico tal como concebidos por Rostow (...) deram forma e estrutura a uma construo imagtico-discursiva que foi largamente utilizada e aplicada tanto por estudiosos

    5 Revolutions were not made by the chronically hungry, the destitute, the homeless. Revolutions were most likely to occur when the living conditions of people were improving somewhat, but not fast enough, when peoples expectations about life were raised but not met. That was exactly what was happening in the underdeveloped nations. They were being swept by a revolution of rising expectations. The expectations were for rapid economic development, education, social and political betterment. If they were not shown the way to achieve these things democratically, they might renounce democratic institutions and seek change through violence. The underdeveloped nations might degenerate into chronic trouble spots, places in constant turmoil. Even worse for United States, they might turn to communism. LEACOCK, Ruth. Requiem for Revolution The United States and Brazil (1961-1969). Kent: The Kent State University Press, 1990. p. 62-63.

  • 15

    nas universidades como por burocratas governamentais, nos Estados Unidos e tambm na Amrica Latina.6

    O paradigma da modernizao de Rostow definido em seu livro As

    Etapas do Crescimento Econmico cujo sugestivo subttulo Um Manifesto

    No-Comunista7 j um indicativo de suas credenciais ideolgicas. Nesta

    obra, Rostow teoriza sobre as condies que considerava necessrias para se

    alcanar o que ele denominou como o patamar mais acabado de

    desenvolvimento. Seu modelo de crescimento era estruturado em etapas, de

    acordo com uma escala crescente. Na base deste modelo estavam as

    sociedades subdesenvolvidas; no topo, as desenvolvidas 8. De acordo com

    Rostow, a Amrica Latina estaria na terceira fase, a da decolagem

    econmica, e tinha um enorme potencial para chegar fase da maturidade,

    desde que um significativo auxlio ao desenvolvimento fosse destinado, por

    iniciativa dos Estados Unidos, para estes pases. Esta idia acabou por compor

    a orientao poltica geral da Aliana para o Progresso.9

    O cenrio em que emergiram a teoria da modernizao e a Aliana para

    o Progresso era caracterizado pela crise da dominao colonial europia e pelo

    surgimento de Estados independentes, muitos dos quais marcados por lutas

    6 PEREIRA, op. cit., p. 77-78. 7 ROSTOW, Walt Whitman. As Etapas do Crescimento Econmico Um Manifesto No-Comunista. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 8 Na primeira etapa desta escala evolutiva estavam as sociedades tradicionais, cuja atividade econmica caracterizava-se pela subsistncia. A segunda etapa, considerada condio necessria para a chamada decolagem econmica equivaleria a uma fase de transio. Nela se encontravam sociedades marcadas por uma especializao do trabalho mais refinada, gerando excedentes para o comrcio. J as sociedades pertencentes terceira gradao, chamada de etapa da decolagem econmica, conheceriam um incremento da atividade industrial, contando com grande quantidade de mo-de-obra urbana. A quarta etapa, conhecida como o estgio da maturidade, era aplicada s naes cuja economia fosse diversificada graas a inovaes tecnolgicas, produzindo uma grande quantidade de bens e de servios. A quinta e ltima etapa, a era do consumo de massas, representava o grau de desenvolvimento econmico alcanado pelos pases mais estveis econmica e politicamente, como os Estados Unidos, a Europa Central e o Japo. 9 No incio do ms de maro de 1961, Walter Rostow enviou um memorando ao presidente Kennedy reiterando a certeza de que as propostas da Fora Tarefa sobre Problemas Latino-Americanos tinham tudo para dar certo. Rostow argumentava que a partir de uma massiva transferncia de assistncia financeira externa (foreign aid), os Estados Unidos poderiam conduzir mais de 80% da populao subdesenvolvida latino-americana em direo a um crescimento auto-sustentado. Ver Memorandum, de Walter W. Rostow, Assistente-Especial do presidente Kennedy para Assuntos de Segurana Nacional, para o presidente Kennedy, Washington, 02/03/1961. Localizao: JFK Library, fundo Presidents Office Files, caixa 64A, pasta 3/61-5/61.

  • 16

    sociais influenciadas por concepes polticas de esquerda, especialmente o

    marxismo10. Na Amrica Latina, o contexto scio-poltico tambm era

    conflituoso. A revoluo Guatemalteca de 1944 e a Revoluo Boliviana de

    1952 provaram que era possvel assumir o poder estatal a partir de uma

    insurreio armada de trabalhadores e camponeses, ainda que por pouco

    tempo. A Revoluo Cubana seguiu esta mesma tendncia, e conseguiu

    estabelecer-se no poder.

    Os Estados Unidos consideraram que deveriam oferecer uma resposta

    poltica e econmica altura da complexidade deste quadro de instabilidade

    social. Esta preocupao ganhou destaque no projeto de poltica externa do

    Partido Democrata, j no decorrer da campanha presidencial de John F.

    Kennedy. Nesse sentido, Aliana para o Progresso coube o papel de

    apresentar os Estados Unidos como o grande aliado para a superao da

    condio de subdesenvolvimento da Amrica Latina.

    Com a eleio de Kennedy encerrou-se um ciclo de dois mandatos

    seguidos da administrao republicana de Dwight Eisenhower, o que parecia

    um cenrio promissor para o continente latino-americano: a nova administrao

    anunciou que iria revisar as posturas dos Estados Unidos quanto instalao

    de ditaduras na regio, assim como a poltica de transferncia de armamentos

    blicos. Diversos setores do Partido Democrata afirmavam que o apoio de

    Eisenhower s ditaduras em pases latino-americanos teria ajudado a alimentar

    as insurreies populares, estimulando as aes de movimentos comunistas,

    nacionalistas e de esquerda.

    O exemplo cubano parecia elucidativo: ao invs de propor um quadro de

    mudanas que minimizasse os problemas da populao, os norte-americanos

    optaram por continuar apoiando a ditadura de Fulgencio Batista. Como

    conseqncia, eclodiu em Cuba uma revoluo que escapou do controle dos

    Estados Unidos. Os aliados de Kennedy acreditavam que a lio ensinada por

    este episdio no deveria ser esquecida: seria prefervel uma revoluo

    controlada a uma revoluo comunista. 10 Cerca de cinco anos aps o trmino da Segunda Grande Guerra, ndia, Paquisto, Ceilo, Burma, Filipinas, Indonsia, Sria, Jordnia, Lbano e Israel conquistaram sua independncia. Aps 1954, Camboja, Laos e Vietn no faziam mais parte do imprio francs. Alguns anos mais tarde, Malsia, Lbia, Sudo, Marrocos, Tunsia, Togo, Camares e Guin-Bissau tambm conquistaram independncia. Aproximadamente no final do ano de 1960, quarenta novos Estados surgiram, com uma populao total de cerca de oitocentos milhes de pessoas.

  • 17

    A revoluo controlada, apresentada sob as vestes da Aliana para o

    Progresso, significou o contraponto fundamental da revoluo comunista e de

    esquerda. Frente ao quadro social de crescentes tenses pelo continente

    latino-americano, no qual as demandas por transformaes significativas

    estavam na ordem do dia, os Estados Unidos precisaram apresentar propostas

    que tivessem pelo menos a aparncia de uma revoluo. Em razo deste

    objetivo de interferir nas lutas sociais do perodo, a Aliana para o Progresso

    desempenhou uma clara funo ideolgica, constituindo um importante

    instrumento de luta no combate ao comunismo e s esquerdas na Amrica

    Latina.

    Adotamos uma concepo ontologicamente fundada da ideologia,

    presente na obra da maturidade de Georg Lukcs11, afastando-nos das

    anlises do fenmeno ideolgico feitas a partir de uma perspectiva

    gnosiolgica, ou seja, no mbito da chamada teoria do conhecimento12.

    Segundo Ester Vaisman,

    Com freqncia Francis Bacon tido como ponto de partida da preocupao com o fenmeno ideolgico, ainda que, ao tempo dele, no tenha recebido esta denominao, o que leva ao estabelecimento de uma conexo ntima entre a ideologia e a problemtica do conhecimento, justificando, dessa forma, o exame daquela pelo prisma exclusivo desta ltima.13

    Conforme a autora, na obra de Bacon o objetivo obter uma anlise

    sistemtica e universalmente vlida dos fatores que estorvam o pensar, pois o

    que se pretende esclarecer que fatores perturbam o acesso fiel reproduo

    conceitual do mundo emprico.14 De acordo com Jesus Ranieri, o termo

    ideologia foi usado, pela primeira vez, de forma sistemtica (por contrapor

    ideologia cincia), por Destutt de Tracy em seu Elementos de Ideologia, de

    11 Aqui nos referimos s reflexes contidas no livro Para uma Ontologia do Ser Social (obra no-publicada em portugus), escrita 55 anos aps Histria e Conscincia de Classe e ainda muito pouco estudada. 12 RANIERI, Jesus. Sobre o Conceito de Ideologia. IN: Estudos de Sociologia, Araraquara, n. 13/14, 2002/2003. p. 8. 13 VAISMAN, Ester. A Ideologia e sua Determinao Ontolgica. IN: Ensaio, n. 17/18. So Paulo, 1989. p. 400. 14 Idem, p. 402.

  • 18

    1801, ainda durante o processo revolucionrio na Frana, para indicar uma

    disciplina filosfica capaz de servir de fundamento ao conjunto de todas as

    cincias. Tal disciplina buscava estudar e reconhecer tanto a origem das

    idias como as leis a partir das quais elas se formavam, a fim de que o

    pensamento pudesse abstrair daquelas que tivessem um carter de falsidade e

    obscurantismo.15

    Conforme Vaisman, no campo do marxismo a questo tambm se

    apresenta perspectivada, de um modo geral, pelo prisma gnosiolgico, embora

    se possa reconhecer a existncia de duas tendncias distintas, mas que muitas

    vezes se entrecruzam: uma concebendo a ideologia enquanto superestrutura

    ideal e a outra tomando o fenmeno enquanto sinnimo de falsa conscincia16.

    A autora afirma que, desde Althusser, at outras interpretaes como as de

    Henri Lefebvre, h uma tendncia clara para a contraposio entre cincia e

    ideologia, ou seja, entre o que seria supostamente verdadeiro e falsidade.

    Vaisman identifica em Althusser uma radicalizao do critrio gnosiolgico na

    determinao do que ideologia17. Para a autora, o critrio gnosiolgico

    tornou-se o critrio fundamental e praticamente exclusivo na determinao do

    que e do que no ideologia em funo do predomnio da questo do

    conhecimento no campo filosfico, que acabou por deprimir o interesse pela

    questo ontolgica.18 Segundo Ranieri,

    A preocupao ontolgica remete (...) questo sobre a origem e o desenvolvimento do prprio ser, a necessidade de saber se algo ou no , e de como esse algo se apresenta no decorrer da consecuo de seu processo de constituio a partir de determinaes a serem investigadas, independentemente de sua apreenso cognitiva ser falsa ou verdadeira sob o ponto de vista da teoria do conhecimento.19

    15 Ranieri, op. cit., p. 8. 16 Vaisman, op. cit., p. 402. 17 Idem, p. 402. 18 Ibidem, p. 407-408. Itlicos da autora. 19 Ranieri, op. cit., p. 10.

  • 19

    Vaisman ressalta a decisibilidade da questo ontolgica para Lukcs,

    que v na tematizao do ser social a recuperao do marxismo autntico 20.

    Para a autora,

    A recuperao da Ontologia na perspectiva lukcsiana a afirmao de que o real existe, o real tem uma natureza e esta existncia e esta natureza so capturveis intelectualmente. E, na medida em que capturvel, pode ser modificada pela ao cientificamente instruda, ideolgica e conscientemente conduzida pelo homem. Postular, desse modo, a ontologia resgatar a possibilidade de entendimento e transformao da realidade humana. Em suma, colocar o fato de que o real no , afinal de contas, uma iluso dos sentidos e que nossa subjetividade pode se objetivar na conquista da realidade.21

    Assim, ao examinar o problema da ideologia, Lukcs busca,

    sistematicamente, a conexo ontolgica deste fenmeno com o ser social 22.

    A reflexo lukcsiana em Para uma Ontologia do Ser Social , nas

    palavras de Gilmasa Macedo da Costa, inteiramente permeada pela noo da

    totalidade social como complexo de complexos e do trabalho como fundamento

    de toda atividade humano-social 23. Isto , a reflexo luksciana articula-se em

    torno da idia de que, a partir do trabalho solo gentico da atividade

    humana surgem para o homem novas necessidades e possibilidades, que

    vo dar origem a novas relaes sociais, as quais se organizam sob a forma de

    complexos sociais24. Ou, como afirma Ranieri, em Lukcs o trabalho visto

    como sendo a protoforma do ser social. Esta perspectiva remete, segundo o

    autor,

    20 Vaisman, op. cit., p. 408. 21 Idem, p. 409. 22 Ibidem, 410. 23 COSTA, Gilmasa Macedo da. Lukcs e a Ideologia como Categoria Ontolgica da vida Social. IN: Urutgua, Maring, n. 09, 2006. p. 3. 24 Este o quadro histrico global que Lukcs identifica na obra de Marx, o qual, segundo o filsofo hngaro, remete verdadeira concepo de Marx de uma histria unitria da humanizao do homem. Tal quadro, segundo Vaisman, desconhecido tanto pelo marxismo vulgar quanto pelas posies de origem burguesa que interpretam a teoria da ideologia em Marx de forma distorcida, a partir de colocaes feitas na Ideologia Alem. Entretanto, no interior do quadro global do desenvolvimento ideolgico que aparece a teoria da ideologia do ponto de vista ontolgico (...), vinculada essencialmente prpria dinmica do ser social. Vaisman, op. cit., p. 438

  • 20

    Para a realizao do homem na direo de sua humanizao, depois de estruturado o processo de passagem do ser orgnico para o ser social, no qual o fator responsvel pelo salto qualitativo o trabalho em Lukcs entendido como o momento da pr-ideao, aquele da escolha entre alternativas refletidas pela conscincia e julgadas conforme sua utilidade para o processo laborativo originrio. 25

    Desse modo, segundo Gilmasa da Costa, a vida social no se constitui

    para o filsofo hngaro numa simples continuidade da vida natural, mas tem

    por base as posies teleolgicas dos homens:

    todos os momentos da vida scio-humana, quando no tenham um carter biolgico (respirar) so resultados causais de posies teleolgicas e no simples elos de cadeias causais.26

    Conforme Ester Vaisman, toda reflexo de Lukcs sobre ser social

    perpassada por uma determinao ontolgica fundamental: o homem um ser

    que responde. Segundo a autora, um ser que d respostas um ser que

    reage a alternativas que lhe so colocadas pela realidade objetiva, retendo

    certos elementos que nesta existem e transformando-os em perguntas, para as

    quais procura a melhor resposta possvel. As respostas elaboradas

    podem, no momento subseqente, se transformar em novas perguntas, e assim sucessivamente, de tal modo que, tanto o conjunto de perguntas, quanto o conjunto de respostas vo formando gradativamente os vrios nveis de mediaes que aprimoram e complexificam a atividade do homem, bem como enriquecem e transformam a sua existncia.27

    25 Ranieri, op. cit., p. 12. 26 LUKCS, Georg. Per lontologia dellessere sociale. Roma: Riuniti, 1981 apud Costa, op. cit., p. 3. 27 Vaisman, op. cit., p. 410-411.

  • 21

    O homem, como um ser ativo, capaz de agir sobre a natureza para

    satisfazer suas necessidades e tambm de agir sobre os outros homens no

    sentido de conduzi-los a atingir determinada finalidade 28. E,

    tanto no trabalho, no intercmbio orgnico com a natureza, quanto nas outras esferas da prtica social, o que h de comum nessas aes o fato de que em todas elas se encontra uma tomada de deciso entre alternativas, o que implica a existncia de um momento ideal, de uma prvia-ideao como denominador comum a todas elas.29

    Assim, para Lukcs, todo ato social surge, portanto, de uma deciso

    entre alternativas acerca de posies teleolgicas futuras 30. As posies

    teleolgicas podem ser primrias, tpicas da esfera econmica, ou secundrias,

    que no pertencem esfera econmica propriamente dita, mas de cuja

    existncia esta depende para se manter e reproduzir 31. Como afirma Costa,

    Alm de buscar o domnio sobre a natureza, o homem deseja conhecer a si mesmo, e para isso produz generalizaes que no se destinam a agir sobre as causalidades naturais dos objetos do trabalho, mas que respondem aos conflitos que o inquietam, tendem a explicar o segredo de sua existncia, de seu destino e de sua origem, buscando conferir sentido s suas necessidades afetivas. Expressam valores que se voltam interioridade do sujeito como individualidade, que a sociedade da qual membro , por vezes, incapaz de responder. A reposta a conflitos desse gnero ultrapassa o exerccio das atividades do trabalho, por isso emerge a necessidade de normas generalizadoras do comportamento humano, que surgem do cotidiano mais imediato da vida social e assumem processualmente a forma de costumes, tradies, normas sociais, convices religiosas, vises de mundo, expresses artsticas, teorias cientficas, etc. O que justifica o seu surgimento o fato de que os homens travam conflitos, seja entre indivduos, seja entre indivduos e sociedade, seja entre grupo de indivduos. E esses conflitos precisam ter uma resoluo, sob pena de por em risco a organizao social existente. A natureza desses conflitos pode variar de sociedade para sociedade, mas a resposta elaborada para a sua resoluo representa uma alternativa expressa nas generalizaes criadas pela sociedade em que os homens vivem e agem. Como os indivduos so os portadores imediatos dos atos de conscincia, as respostas sociais elaboradas para a resoluo dos conflitos s podem se

    28 Costa, op. cit., p. 3. 29 Vaisman, op. cit., p. 411. 30 Lukcs, op. cit., citado em Vaisman, op. cit, p. 412. 31 Idem, p. 413 -414.

  • 22

    efetivar mediadas pela conscincia destes mesmos indivduos. So atos deste tipo que se caracterizam como posio teleolgica secundria; nele o sujeito no tem como fim imediato a objetividade material, mas a prpria subjetividade humana, tendo em vista conduzir outros homens a agirem conforme uma posio desejada. 32

    Conforme Vaisman, Lukcs sustenta que

    elementos dessas posies j existiam nas chamadas sociedades primitivas, mas elas ganham plena corporificao medida que avana a diviso social do trabalho, de tal modo que com a diferenciao de nvel superior, com o nascimento das classes com interesses antagnicos, esse tipo de posio teleolgica torna-se a base estruturante do que o marxismo chama de ideologia.33

    Ou seja, as posies teleolgicas secundrias compem a base sobre a

    qual se estruturam os fenmenos ideolgicos 34. Para estas posies

    teleolgicas a ideologia, em qualquer uma das suas formas, funciona como o

    momento ideal, que antecede o desencadeamento da ao. Em outras

    palavras, a ideologia desempenha o papel de prvia-ideao nas posies

    teleolgicas secundrias35. Desse modo, para Lukcs as formas ideolgicas

    so os instrumentos pelos quais so conscientizados e enfrentados os

    problemas que preenchem (a) cotidianeidade 36. Sendo assim, assevera

    Vaisman, a presena das formas ideolgicas no se manifesta apenas em

    momentos de crise, mas permanentemente no prprio cotidiano 37.

    32 Costa, op. cit. p. 4-5. 33 Vaisman, op. cit., p. 414. Tanto nas posies teleolgicas primrias, referentes ao trabalho, quanto nas posies teleolgicas secundrias, ocorre uma tomada de decises entre alternativas. Mas, entre elas, existem diferenas fundamentais: o objeto das posies teleolgicas secundrias so os prprios homens, as suas aes e seus afetos na prxis social extra-laborativa; alm disso, o grau de incerteza que permeia essas posies muito maior do que aquele que existe no caso do trabalho. Enquanto as posies teleolgicas primrias desencadeiam cadeias causais, as secundrias buscam provocar a mudana para uma nova posio teleolgica. Nesse caso, alm da ampliao do crculo do desconhecido, a problemtica da intencionalidade da ao muito mais complexa. Vaisman, op. cit., p. 415-416. 34 Idem, p. 414. 35 Ibidem, p. 416. 36 Lukcs, op. cit.,citado em Vaisman, op. cit., p. 418. 37 Idem, p. 419.

  • 23

    Nesse sentido, Lukcs afirma que a ideologia , acima de tudo, aquela

    forma de elaborao ideal da realidade que serve para tornar a prxis social

    consciente e operativa 38. Vista como o momento ideal da ao prtica dos

    homens, a ideologia expressa, para essas aes, o seu ponto de partida e

    destinao, bem como sua dinamicidade. Em razo disso, para Lukcs,

    qualquer resposta que os homens venham a formular, em relao aos

    problemas postos pelo seu ambiente econmico-social, pode, ao orientar a

    prtica social, ao conscientiz-la e operacionaliz-la, tornar-se ideologia.39

    Lukcs sustenta, assim, a existncia de uma caracterizao ampla da

    ideologia, que se manifesta permanentemente na vida social. O filsofo

    hngaro tambm elabora uma concepo mais restrita, baseada em Marx, que

    identifica a ideologia como um instrumento de luta social. Conforme Costa, a

    sociedade de classes a base sobre a qual se constitui a ideologia no sentido

    restrito. Nela, a ideologia surge como importante instrumento de combate aos

    conflitos de interesse entre os homens 40. Nas palavras de Lukcs, a

    concepo mais restrita de ideologia

    consiste no fato de que os homens, com o auxlio da ideologia, trazem conscincia seus conflitos sociais, e por seu meio combatem conflitos cuja base ltima preciso procurar no desenvolvimento econmico.41

    38 Lukcs, op. cit.,citado em Vaisman, op. cit., p. 418. 39 Idem, p. 418. 40 Costa, op. cit., p. 9. Conforme Mszros, o conflito mais fundamental na arena social refere-se prpria estrutura social que proporciona o quadro regulador das prticas produtivas e distributivas de qualquer sociedade especfica. Exatamente por ser to fundamental que esse conflito no pode simplesmente ser deixado merc do mecanismo cego de embates insustentavelmente dissipadores e potencialmente letais. O autor tambm sustenta que as ideologias conflitantes de qualquer perodo histrico constituem a conscincia prtica necessria em termos da qual as principais classes da sociedade se inter-relacionam e at se confrontam, de modo mais, ou menos, aberto, articulando sua viso da ordem social correta e apropriada como um todo abrangente. Ver MSZROS, Istvn. O Poder da Ideologia. So Paulo: Boitempo, 2002. p. 65. 41 Vaisman, op. cit., p. 419-420. Nas palavras de Mszros, tambm referindo-se a Marx (Prefcio Contribuio crtica da economia poltica), o estruturalmente mais importante conflito cujo objetivo manter ou, ao contrrio, negar o modo dominante de controle sobre o metabolismo social dentro dos limites das relaes de produo estabelecidas encontra suas manifestaes necessrias nas formas ideolgicas [orientadas para a prtica] em que os homens se tornam conscientes desse conflito e o resolvem pela luta. Mszros, op. cit., p. 65.

  • 24

    Por isso, Srgio Lessa afirma que o surgimento das sociedades de

    classe no representa a gnese do complexo da ideologia, mas sim a gnese

    de uma sua forma especfica, restrita: as ideologias de classe. Ao lado desta

    forma restrita, continua a existir a sua forma ampla (...) 42. Ainda para Lukcs,

    equivocado interpretar o conceito de ideologia como elucubrao arbitrria

    de pessoas singulares, porque

    enquanto um pensamento permanece simplesmente o produto ou a expresso ideal de um indivduo, no importa o valor ou desvalor que possa conter, no pode ser considerado uma ideologia. Nem mesmo uma difuso social mais ampla atinge o ponto de transformar um complexo de pensamento diretamente em ideologia.43

    Desse modo, no , conforme Lessa,

    o contedo gnosiolgico de uma ideao que a torna ideologia, mas sim uma funo social especfica: ser veculo dos conflitos sociais lembremos: nem todos eles redutveis s lutas de classe que cotidianamente so postos pela reproduo da sociedade como um todo (...). a funo social, e no o contedo gnosiolgico, repetimos, que distingue a ideologia dos outros complexos sociais.44

    Lukcs exemplifica essa questo da seguinte maneira:

    A astronomia heliocntrica ou a doutrina evolucionista no campo da vida orgnica so teorias cientficas, deixando de lado sua correo ou falsidade, e nem isso enquanto tais, nem o repdio ou o acolhimento delas constituem em si ideologia. Somente quando Galileu ou Darwin em seus confrontos, as tomadas de posio se tornaram instrumento de luta dos conflitos sociais, elas, em tal contexto operaram como ideologias.45

    42 LESSA, Srgio. Lukcs: Direito e Poltica. IN: LESSA, Srgio, PINASSI, Maria Orlanda (org.). Lukcs e a Atualidade do Marxismo. So Paulo: Boitempo, 2003. p. 109. 43 Lukcs, op. cit., citado em Costa, op. cit., p. 9. 44 Lessa, op. cit., p. 108. 45 Lukcs, op. cit, citado em Costa, op. cit., p. 13.

  • 25

    Ou seja, exatamente ser ideologia no uma qualidade social fixa

    deste ou daquele produto espiritual, mas, ao invs, por sua natureza

    ontolgica, uma funo social, no uma espcie de ser 46. Ao refutar o

    critrio gnosiolgico, Lukcs defende uma concepo ontolgico-prtica da

    ideologia como funo social:

    Que a imensa maioria das ideologias se funda sobre premissas que no resistem a uma crtica gnosiolgica rigorosa, especialmente se dirigida por um longo perodo de tempo, certamente verdadeiro. Mas isto significa que estamos falando da crtica da falsa conscincia. Todavia, em primeiro lugar, so muitas as realizaes da falsa conscincia que nunca se tornaram ideologia; em segundo lugar, aquilo que se torna ideologia no de modo nenhum necessariamente idntico falsa conscincia. Aquilo que realmente ideologia, por isso, somente podemos identificar pela sua ao social, por suas funes na sociedade.47

    Em suma, para Lukcs, a ideologia tem suas determinaes concretas

    no cotidiano mais imediato, serve para tornar a prtica humana consciente e

    operativa e se dirige para dominar conflitos. E, quando os interesses de um

    grupo precisam prevalecer sobre os de todos os outros grupos como sendo o

    interesse da sociedade como um todo, a ideologia ocupa uma funo vital na

    reproduo do ser social. Em seu carter restrito, a ideologia, tanto em forma

    ideal quanto em forma prtica, pode agir no sentido de manter ou de modificar

    aspectos da realidade social, retroagindo sobre os processos socioeconmicos

    em curso.48

    Partindo dessa concepo ontolgico-prtica, podemos identificar o

    carter ideolgico do programa da Aliana para o Progresso em vista de seu

    propsito de defender e legitimar os parmetros estruturais de desenvolvimento

    da ordem capitalista, em oposio a estratgias que pretendiam alter-los.

    46 Lukcs, op. cit., citado em Vaisman, op. cit., p. 420. 47 Lukcs, op. cit., citado em Costa, op. cit., p. 9. Nas sociedades de classe, a ideologia, como instrumento de luta social voltado resoluo dos problemas postos pela reproduo social, adquire tambm um significado pejorativo, o de falseamento do real para justificar uma dada forma de dominao social. Assim, cada ideologia particular pode ser submetida a uma avaliao histrica para identificar se esta promove uma falsificao ou um desvelamento da essncia social. Apenas no se pode esquecer que no esse o critrio que determina seu ser enquanto ideologia. Lessa, op. cit., p. 108. 48 Costa, op. cit., p. 9 e 12.

  • 26

    Essa caracterizao da Aliana como um programa com funo ideolgica

    importante para que possamos compreender as razes que motivaram a sua

    proposio pelo governo dos Estados Unidos.

    A Aliana para o Progresso costuma ser abordada pela historiografia

    sobre o tema como um mecanismo de ajuda financeira com o objetivo de

    garantir a estabilidade scio-poltica nos pases da Amrica Latina,

    assegurando a hegemonia norte-americana na regio. Ou seja, trata-se de uma

    interpretao que assume o programa como uma manifestao das propostas

    da teoria da modernizao. Nessas abordagens, a Aliana adquire o carter de

    instrumento de defesa dos interesses dos Estados Unidos em um ambiente

    internacional naturalmente hostil e competitivo. Segundo esta viso, trata-se,

    antes de tudo, de um programa fundamentado pela necessidade de garantir a

    segurana nacional estadunidense.49

    Alm de atribuir o conflito entre as grandes potncias prpria

    natureza do sistema de Estados, essas anlises tambm assumem como

    pressuposto a idia de que a expanso do domnio norte-americano,

    especialmente na Amrica Latina, justificvel, seja em decorrncia de um

    Destino Manifesto dos Estados Unidos, ou de uma responsabilidade pela

    difuso de idias e valores (democracia, liberdade, etc), que em situaes

    extremas adquire at uma caracterizao religiosa.

    Dessa forma, tais anlises ignoram o ativo papel assumido pelos

    Estados Unidos como o pas hegemnico da ordem do capital que emergiu no

    cenrio ps-Segunda Guerra Mundial, encontrando meios para legitimar os

    imperativos de expanso desse sistema. So ocultados os mecanismos de

    dominao imperialistas e as relaes internacionais substantivamente

    desiguais. Assim, a condio de subdesenvolvimento da maioria dos pases do

    mundo pode ser apresentada como resultado de causas estritamente

    nacionais. E, por conseqncia, tambm no levado em considerao o

    49 Exemplos disso podem ser conferidos em SCHLESINGER, Arthur. Mil Dias: JFK na Casa Branca. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1969; SCHEMAN, Ronald. The Alliance for Progress: a Retrospective. New York: Harper, 1988; TAFFET, Jeffrey. Foreign Aid as Foreign Policy: the Alliance for Progress in Latin America. New York: Routledge, 2007; LATHAM, Michael. Modernization as Ideology: American Social Science and Nation Building in the Kennedy Era. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2001; PERLOFF, Harvey. Alliance for Progress: a Social Invention in the Making. Baltimore: University of Baltimore Press, 1989; KUNZ, Diane. The Diplomacy of the Crucial Decade: American Foreign Relations during the 60s. New York: Simon & Schuster, 1994.

  • 27

    conflito que Mszros chama de o mais fundamental na arena social: aquele

    que se refere ao controle das prticas produtivas e distributivas.50

    A anlise que apresentamos nessa dissertao, entretanto, busca dar o

    devido destaque a estas questes. Assumimos como pressuposto que a

    expanso norte-americana obedece aos imperativos de expanso do prprio

    sistema do capital51, o que faz necessrio que o pas enfrente todas as

    possveis barreiras a esse processo. Na dcada de 1960, o comunismo e os

    movimentos de esquerda na Amrica Latina eram alguns dos principais

    obstculos a serem superados pelos Estados Unidos. O controle sobre o

    continente latino-americano, fonte de matria-prima e de mo de obra, assim

    como local de escoamento de produtos de consumo, assumia importncia

    fundamental para os estadunidenses. Em vista disso, os estrategistas norte-

    americanos elaboraram um plano para conter o avano de movimentos

    revolucionrios, atribuindo Aliana para o Progresso a funo de atuar como

    veculo desse conflito.

    Como afirma o economista norte-americano Harry Magdoff, o

    imperialismo no uma questo de escolha para uma sociedade capitalista:

    seu modo de vida 52. A manuteno do controle poltico e econmico da

    Amrica Latina, atravs de mecanismos imperialistas, significa, para o governo

    dos Estados Unidos, que a porta de investimentos externos continue aberta:

    (...) o sistema de negcios exige, no mnimo, que prevaleam os princpios econmicos e polticos do capitalismo e que a porta permanea largamente aberta ao capital estrangeiro, a qualquer tempo. Mais ainda: exige uma porta aberta e privilegiada para o capital da terra de origem, preferivelmente ao capital das naes industriais competidoras. Quanto, muito ou pouco, possa uma porta aberta ser explorada em determinado perodo, no vm ao caso. O princpio que deve ser mantido, sobretudo para uma potncia supercapitalista como os Estados Unidos e especialmente quando vem sendo desafiada, larga e abertamente (...). Manter a porta aberta cria problemas, alguns causados por interesses conflitantes entre as naes capitalistas mais amadurecidas, alguns causados pelas revolues sociais em andamento ou em potencial, que eliminar (ou limitar) o capitalismo e a liberdade do investimento e do comrcio particular. Abrir a porta, portanto, e mant-la aberta coisa que

    50 Ver nota 40. 51 Sobre esta questo, ver MSZROS, Istvn. Para Alm do Capital Rumo a uma Teoria da Transio. So Paulo: Boitempo, 2002. Ver especialmente captulo 2 (A Ordem da Reproduo Sociometablica do Capital). 52 MAGDOFF, Harry. A Era do Imperialismo. So Paulo: HUCITEC, 1978. p. 22.

  • 28

    requer eterna vigilncia e fora de vontade. O que necessrio, em outras palavras, fora e persistncia por parte das naes mais avanadas, a fim de influenciar e controlar a poltica e a economia das naes menos avanadas. Desde que a possesso colonial declarada se tornou, de modo geral, pouco prtica, outros meios alguns tradicionais, outros novos esto sendo investigados e explorados, principalmente nos Estados Unidos, que, ao findar a II Guerra Mundial, aproveitaram a oportunidade de organizar e dominar a rede imperialista.53

    As palavras de Magdoff sintetizam alguns dos pressupostos assumidos

    nesta dissertao e resumem com preciso o desafio enfrentado pelo governo

    norte-americano em relao Amrica Latina: tentar manter o controle sobre

    uma rea em que as agitaes sociais cresciam a cada dia, especialmente no

    perodo aps a Segunda Guerra Mundial. Para alcanar este objetivo, a

    administrao estadunidense recorreu a meios tradicionais e outros novos, no

    dizer de Magdoff:

    Os meios tradicionais permanecem mo e esto em uso. O mtodo da invaso e o exerccio da fora militar continuam em vigor: s as racionalizaes que esto atualizadas. A Marinha patrulhando o globo e a extensa rede de bases militares pesam esmagadoramente sobre o resto do mundo. Muito se confia nas novas tcnicas e em tcnicas no to novas, mas aplicadas em maior escala e com maior sofisticao que no passado: assistncia militar para fortalecer governos seguros contra a revoluo; ajuda econmica para induzir ambiente favorvel ao capital e s importaes; e a mais ubqua CIA. Sob esta luz, no existe conflito fundamental entre interesses econmicos, polticos e militares. As diferenas existem e existiro devido a interesses opostos, entre grupos de negcios, interesses especiais de outras classes e estratos, preocupaes burocrticas de funcionrios pblicos e da elite militar. Mas a discrdia resultante refere-se apenas escolha da estratgia e ttica de como assegurar o crescimento e expanso do mundo de negcios e como manter a maior parte do mundo livre, mas livre para a iniciativa privada e especialmente para a iniciativa privada dos Estados Unidos 54

    A opo de realizar um estudo da Aliana para o Progresso

    relacionando-a s demais peas integrantes da poltica externa norte-

    americana (apoio s polcias e relaes estabelecidas com os governos

    brasileiros do perodo) tem o objetivo de deixar claro que, de fato, no existiram

    53 Idem, p. 16. 54 Ibidem, p. 16-17. Itlicos meus.

  • 29

    contradies fundamentais entre programas de ajuda econmica, caso da

    Aliana para o Progresso, e programas de assistncia militar e policial, por

    exemplo. Alm disso, ao se analisar a poltica exterior norte-americana como

    um todo, as eventuais diferenas internas de setores do governo

    estadunidense, ou a aparente discrepncia entre interesses econmicos,

    polticos e militares, de acordo com as palavras de Magdoff, referiam-se to

    somente questo de como, em termos tticos e estratgicos, garantir uma

    dominao mais efetiva da Amrica Latina. Diante disso, no constitui uma

    exagerada simplificao utilizar a expresso o governo dos Estados Unidos:

    mesmo vozes dissonantes ou mais liberais em relao tendncia dominante

    da orientao poltica norte-americana, como tentaremos exemplificar atravs

    da figura de Arthur Schlesinger Jr., nunca colocaram em xeque a necessidade

    imperiosa de dominao poltica, econmica e militar dos Estados Unidos em

    relao Amrica Latina. O mximo que fizeram foi criticar os meios atravs

    dos quais atingir tal objetivo, mas nunca chegaram a criticar o objetivo em si.

    A Aliana para o Progresso era um instrumento de luta porque visava

    intervir em conflitos sociais latino-americanos reais a partir de uma srie de

    idias e prticas sociais que procuravam legitimar os interesses dos Estados

    Unidos e, ao mesmo tempo, enfraquecer o comunismo. Este programa tinha o

    objetivo de tentar convencer pessoas, grupos polticos e governos latino-

    americanos de que existia uma nica via possvel de transformao das

    condies socioeconmicas da regio. Alm de ser a nica aceitvel, a

    proposta norte-americana seria melhor e mais democrtica que o projeto

    comunista.

    Na defesa de seus interesses, os proponentes da Aliana para o

    Progresso utilizaram-se de mecanismos de distoro, manipulao ou

    falseamento do real, seja elaborando um discurso sobre o perigo comunista

    ou difundindo anlises sobre a realidade poltica e econmica da Amrica

    Latina que ocultavam as verdadeiras causas dos problemas enfrentados no

    continente. Embora o critrio de falsidade no seja por ns utilizado para

    definir o carter ideolgico da Aliana para Progresso, tais manipulaes e

    distores associadas ao programa no devem ser ignoradas, pois foram

    importantes para a defesa dos interesses dos Estados Unidos nesse conflito.

  • 30

    Na avaliao dos estrategistas do governo estadunidense, a

    propaganda, era uma das melhores armas para conquistar coraes e mentes

    para combater, nas trincheiras do mundo livre, a ameaa comunista.

    Evidentemente, a propaganda pr Estados Unidos e anticomunista no era a

    nica estratgia de interveno nos conflitos sociais utilizada pelos norte-

    americanos e, por isso, tambm estudaremos as demais estratgias da poltica

    externa dos Estados Unidos vinculadas Aliana para o Progresso. Desse

    modo, entendemos que, embora a propaganda da Aliana tenha dado forma e

    justificativa para muitas das aes implementadas no Brasil no incio da dcada

    de 1960 pelo governo estadunidense, estas precisam ser avaliadas luz da

    sempre presente ameaa, aberta ou velada, de utilizao da violncia e

    instrumentos de presso poltica e econmica.

    A Aliana para o Progresso no era o nico programa da poltica externa

    estadunidense: ela fazia parte de um projeto maior, e precisa ser estudada

    levando-se em considerao o conjunto das aes norte-americanas, e no

    apenas os seus aspectos de propaganda. O fato de a Aliana para o Progresso

    ter sido apresentada como um programa progressista e de desenvolvimento

    democrtico foi possvel justamente porque os Estados Unidos estavam

    implementando um forte programa de apoio s polcias55 e exercendo intensa

    presso sobre governos que no se alinhavam incondicionalmente aos seus

    interesses. Em outras palavras, a aparncia progressista e democrtica da

    Aliana para o Progresso foi necessariamente complementada por aes de

    violncia direta ou indireta.

    O objetivo central desta dissertao definir o que o projeto da Aliana

    para o Progresso representou para o governo norte-americano, por que razes

    ele foi proposto e que papel que os Estados Unidos esperavam que o

    programa viesse a desempenhar ao ser implementado no Brasil, entre os anos

    55 preciso lembrar que os programas de apoio s polcias administradas pela AID foram uma poltica global dos Estados Unidos. Logo aps o lanamento das bombas atmicas em Hiroshima e Nagaski, os Estados Unidos montaram seu primeiro programa de treinamento e aparelhamento de polcias no Japo e na Coria do Sul. Pouco tempo depois, foi a vez de Filipinas, Tailndia, Grcia Turquia e Itlia. Entretanto, como demonstraremos no captulo 3, estes programas foram intensificados na administrao Kennedy, passando a englobar dezenas de pases da frica, sia e Amrica Latina. Sobre este tema, ver HUGGINS, Martha. Polcia e Poltica Relaes Estados Unidos/Amrica Latina. So Paulo: Cortez, 1998 e THOMAS, Evan. The Very Best Men the Early Years of CIA. New York: Simon and Schuster, 2006.

  • 31

    de 1961 e 1964. Para definir as caractersticas da Aliana para o Progresso

    ser necessrio analisar o contexto poltico latino-americano do incio da

    dcada de 1960 e as estratgias de propaganda anticomunista dos Estados

    Unidos para a regio. Tambm preciso avaliar os demais programas de

    assistncia e cooperao dos Estados Unidos para a Amrica Latina

    naquele perodo para buscar compreender o que a Aliana para o Progresso

    representava dentro do quadro geral da poltica externa estadunidense. E, a fim

    de esclarecer o papel cumprido pelo programa no cenrio poltico brasileiro,

    deve-se levar em considerao as relaes entre o governo dos Estados

    Unidos e do Brasil, assim como as interpretaes dos oficiais norte-americanos

    sobre a crise poltica que marcou os governos de Jnio Quadros e,

    especialmente, de Joo Goulart.

    No primeiro captulo, o objetivo apresentar a viso dos Estados Unidos

    sobre a Amrica Latina e seus problemas e demonstrar que os oficiais

    estadunidenses entendiam ser necessrio isolar Cuba atravs de programas

    de informao e propaganda. Ser discutida a definio de propaganda

    utilizada pela administrao norte-americana e apresentados os debates entre

    os estrategistas do governo sobre as formas de distribuio do material de

    propaganda e ampliao dos meios de difuso de informaes voltadas ao

    fortalecimento da posio dos Estados Unidos no continente latino-americano.

    Ao final sero apresentados alguns exemplos de materiais de propaganda

    anticomunista elaborado pela Agncia de Informao Estadunidense (USIA).

    No segundo captulo sero abordadas as preocupaes dos Estados

    Unidos quanto recepo e compreenso do programa da Aliana para o

    Progresso pelos latino-americanos. Veremos como o governo norte-americano

    buscou apresentar o projeto como uma iniciativa que no seria de interesse

    exclusivo dos Estados Unidos e que demandaria a ao conjunta dos pases

    do hemisfrio. Ser demonstrado como o governo estadunidense procurou

    cumprir este objetivo atravs de aes de propaganda, que foram elaboradas

    por diferentes instituies e agncias da administrao Kennedy. Tambm ser

    analisada a participao de grupos de empresrios estadunidenses nos

    esforos de divulgao do programa, enfatizando-se as contradies entre

    seus interesses na Amrica Latina e o teor revolucionrio do projeto da

    Aliana para o Progresso, as quais contriburam para o seu enfraquecimento

  • 32

    no interior da administrao norte-americana. Por fim, apresentaremos

    exemplos de material de propaganda da Aliana para o Progresso produzidos

    pela USIA.

    No terceiro captulo, ser discutido como as idias presentes na Aliana

    para o Progresso foram relacionadas s preocupaes associadas s doutrinas

    da contra-insurgncia e da segurana interna, que adquiriram grande

    importncia dentro da administrao Kennedy. Levando-se em considerao a

    premissa comum aos oficiais estadunidenses de que a segurana interna seria

    um pr-requisito para as reformas sociais propostas pela Aliana para o

    Progresso, ser avaliado o papel que estes atribuam aos militares e policiais

    na vida poltica dos pases latino-americanos. Na seqncia, sero descritos os

    programas estadunidenses de treinamento e aparelhamento de foras policiais,

    particularmente no Brasil.

    No ltimo captulo ser apresentada a leitura da situao poltica no

    Brasil no incio dos anos 1960 realizada por oficiais norte-americanos.

    Buscaremos demonstrar que, em funo de dificuldades de relacionamento

    com o governo brasileiro, a administrao estadunidense aliou-se a polticos e

    grupos favorveis aos Estados Unidos, direcionando a eles, atravs da Aliana

    para o Progresso, recursos financeiros, caracterizando uma poltica de criao

    de ilhas de sanidade administrativa elaborada especificamente para o

    contexto brasileiro.

    As fontes utilizadas para a elaborao desta pesquisa so

    principalmente memorandos internos do governo estadunidense e telegramas

    produzidos pela embaixada norte-americana no Brasil. No incio de cada um

    dos captulos sero apresentados os tipos, caractersticas e temas de cada um

    dos documentos utilizados. Os memorandos internos constituem a base

    documental dos dois primeiros captulos. No captulo 3, so utilizados tanto

    memorandos internos quanto relatrios produzidos no Brasil pela Seo de

    Segurana Pblica dos Estados Unidos. No captulo 4, as fontes utilizadas so

    telegramas e aerogramas produzidos tanto pela embaixada estadunidense no

    Brasil quanto pelo Departamento de Estado. Todas as fontes aqui

    apresentadas so resultado de uma pesquisa de arquivo realizada na

    Biblioteca Presidencial John F. Kennedy, na cidade de Boston, e nos Arquivos

    Nacionais II (National Archives II, tambm conhecido como NARA II), na cidade

  • 33

    de College Park, prximo capital dos Estados Unidos, realizada entre os

    meses de maio e novembro de 2007.

    O foco desta dissertao recair sobre a viso oficial estadunidense da

    Aliana para o Progresso. Isso porque nosso objetivo abordar os motivos que

    levaram proposio deste programa, assim como as estratgias de

    implementao desenvolvidas pelos estrategistas norte-americanos, e no a

    forma como ela foi recebida e compreendida por indivduos e grupos polticos

    no Brasil. Em funo disso, priorizamos a anlise de fontes produzidas por

    indivduos ligados a diferentes agncias e rgos do governo dos Estados

    Unidos.

    Um importante aspecto sobre as fontes estadunidenses precisa ser

    ressaltado. Mesmo com a boa quantidade de fontes que encontramos, existe

    ainda uma quantidade desconhecida de arquivos no liberados para acesso

    pblico. Um exemplo disso so os arquivos pessoais do embaixador

    estadunidense no Brasil Lincoln Gordon (1961-1966). Alega-se que os

    documentos por ele produzidos ainda esto retidos por motivos de segurana

    nacional. Outros arquivos, como os produzidos por Edwin Martin, Secretrio-

    Assistente de Estado de Assuntos Interamericanos, tambm esto inacessveis

    para pesquisa.

    Em razo da reteno destes e de outros documentos so

    desconhecidos, por exemplo, detalhes sobre os resultados das aes de

    algumas instituies responsveis pelas aes de propaganda, especialmente

    o Departamento de Estado, analisadas nos captulos 2 e 3. O mesmo vlido

    para as iniciativas ligadas aos programas de aparelhamento e expanso das

    foras policiais no Brasil, apresentadas no captulo 4. Nesse caso, em especial,

    a quantidade de documentos retirados do acesso pblico significativa, em

    funo do envolvimento da CIA nestes programas.

  • 34

    2 A Propaganda de Combate ao Comunismo na Amrica

    Latina

    O presidente do Chile, Jorge Alessandri (1958-1964), cumpre todos os pr-requisitos para receber o prmio

    da Aliana para o Progresso das mos de seu coordenador estadunidense, Teodoro Moscoso. Crdito: Revista Topaze

    (Chile), edio de 02/10/1962. IN: Selling the Alliance: US Propaganda VS. Chilean Editorial Cartoons during the

    1960s. International Journal of Comic Art, volume 6, nmero 1, Spring 2004.

    O Tio Sam, atravs do presidente John F. Kennedy, e o Comunismo tentam conquistar a Amrica Latina.

    Crdito: Revista Topaze (Chile), edio de 14/04/1961. Idem.

  • 35

    2.2 Sobre as Fontes

    A partir das fontes que sero apresentadas neste captulo possvel

    colher informaes para tentar responder s seguintes perguntas: quais os

    objetivos especficos e a orientao geral da propaganda anticomunista

    patrocinada pelos Estados Unidos na Amrica Latina? Que aes foram

    planejadas para sua implementao?

    Em especial, utilizaremos os memorandos produzidos por integrantes da

    agncia de propaganda do governo estadunidense (a USIA, United States

    Information Agency, Agncia Estadunidense de Informao) e da Task Force

    on Immediate Latin American Problems (Fora Tarefa sobre Problemas

    Imediatos Latino-Americanos), alm daqueles elaborados pelos Assistentes

    Especiais do presidente Kennedy, como Richard Goodwin e Arthur Schlesinger

    Jr., indivduos que se envolveram diretamente com a questo da propaganda

    coordenada pelo Departamento de Estado.

    Caractersticas dos Memorandos Internos do Governo dos Estados

    Unidos

    As informaes presentes neste captulo foram extradas de

    memorandos, tipo mais comum de documento utilizado para comunicao

    entre diferentes agncias e departamentos do governo dos Estados Unidos. Os

    memorandos internos podiam ser endereados a qualquer funcionrio da

    administrao norte-americana e tambm ao prprio presidente do pas. Um

    mesmo memorando poderia circular pelas mos de vrias pessoas do governo,

    mesmo que estas no fossem as principais destinatrias do documento. Em

    alguns casos, as caractersticas e o contedo mais importante do memorando

    vinham descritos na prpria denominao do documento. Porm, boa parte dos

    memorandos que sero utilizados nos captulos 2 e 3 no apresentavam

  • 36

    denominao alguma. Nesta dissertao optamos por classific-los a partir de

    seu contedo, segundo os critrios que estabelecemos abaixo56:

    1) Memorandos de contedo prescritivo: produzidos com o objetivo de

    recomendar a implantao de uma determinada poltica.

    Os memorandos de contedo prescritivo dos captulos 1 e 2 apresentam

    duas temticas principais: a primeira refere-se organizao, necessidade

    de expanso e aos erros da propaganda anticomunista dos Estados Unidos na

    Amrica Latina (tema que ser discutido no captulo 1); a segunda versa sobre

    a importncia da criao de um programa de divulgao especfico da Aliana

    para o Progresso (tema do captulo 2).

    2) Memorandos de ao (action memorandum): produzidos com a

    inteno de comunicar as pessoas envolvidas ou interessadas no

    assunto a implantao de determinada poltica oficial, ou a execuo

    de uma ao por alguma pessoa, grupo ou agncia do governo dos

    Estados Unidos57.

    3) Memorandos de informao: escritos com a finalidade de informar

    sobre opinies, reflexes ou objees relacionadas a acontecimentos

    que envolvessem os interesses dos Estados Unidos, ou informar

    sobre orientaes polticas seguidas pelo governo estadunidense.

    Geralmente, estes memorandos de informao interna eram

    produzidos com a inteno de intervir em alguma polmica ou debate

    em relao poltica externa dos Estados Unidos.

    4) Memorandos de contedo instrutivo: redigidos em Washington com o

    objetivo de instruir o corpo diplomtico estadunidense quanto

    adoo das orientaes polticas desejadas pelo Departamento de

    56 A mesma classificao quanto ao contedo ser aplicada aos despachos (telegramas e aerogramas) da Embaixada norte-americana no Brasil. 57 Alguns dos documentos que utilizamos nesta pesquisa foram intitulados memorandos de ao por seus prprios redatores, mas a maioria daqueles que recebem esta denominao foram por ns classificados de acordo com o critrio que estabelecemos acima.

  • 37

    Estado ou por outras agncias do governo. De modo geral, os

    redatores deste tipo de documento eram o Secretrio de Estado, o

    Subsecretrio de Estado e o Secretrio-Assistente de Estado para

    Assuntos Interamericanos.

    5) Memorandos pessoais: via de regra, eram trocados entre pessoas

    que trabalhavam para uma mesma diviso do governo, com a

    finalidade de debater aspectos da poltica estadunidense. A maioria

    dos memorandos de carter pessoal que utilizamos nesta pesquisa

    foram produzidos pelos conselheiros especiais do presidente

    Kennedy: Richard Goodwin, Arthur Schlesinger Jr. e Ralph Dungan.

    Localizao das Fontes

    A temtica da propaganda oficial dos Estados Unidos para a Amrica

    Latina ainda muito pouco estudada pela historiografia latino-americana e

    mesmo estadunidense. Em parte, isso decorre do fato de que boa parte das

    fontes referentes ao assunto apenas recentemente foi liberada para pesquisa.

    Os documentos que apresentaremos nos dois primeiros captulos, por

    exemplo, estiveram indisponveis at o ano de 2004.

    Realizamos nossa pesquisa em diferentes colees e fundos dos

    arquivos da Biblioteca Presidencial John F. Kennedy e do NARA II. Dentre os

    arquivos guardados pela primeira instituio, aqueles que se referem

    temtica deste captulo esto organizados nos Personal Papers de Arthur

    Schlesinger Jr. 58 e James Stanford Bradshaw59, nos arquivos do gabinete de

    58 Schlesinger Jr., assistente-especial de segurana nacional e de Amrica Latina do presidente Kennedy, era filho de um proeminente historiador e seguiu com destaque a mesma profisso do pai. Em seus arquivos pessoais relativos administrao Kennedy, possvel encontrar relatos de sua participao em diversas reunies sobre temas culturais e tambm uma srie de documentos recebidos por ele que tinham como pauta a ofensiva de propaganda dos Estados Unidos pela Amrica Latina, fosse ela ligada diretamente Aliana para o Progresso ou no. De acordo com Frances Stonor Saunders, Schlesinger Jr. foi um dos mais engajados personagens ligados a instituies estadunidenses diretamente envolvidas com a diplomacia cultural de conteno ao comunismo na Europa, logo aps o final da Segunda Guerra Mundial. Schlesinger Jr. teria trabalhado especialmente nos programas cujo pblico-

  • 38

    trabalho do presidente Kennedy60 e nos arquivos pessoais de Teodoro

    Moscoso, coordenador estadunidense da Aliana para o Progresso. No Arquivo

    Nacional dos Estados Unidos (NARA II), pesquisamos a documentao

    referente aos programas de informao organizada no fundo do Secretrio-

    Assistente Substituto de Assuntos Inter-Americanos, Arturo Morales-Carrin61.

    No primeiro captulo ser utilizado um documento que no est

    catalogado nem disponvel para consulta nos arquivos supra mencionados62 e

    que nos foi enviado por via postal, em maro de 2008, pelo NARA, em funo

    de um pedido de liberao efetuado em julho de 2007. Assim, esse documento

    ser identificado simplesmente como documento liberado atravs do FOIA

    (Freedom of Information Act) 63.

    alvo eram os intelectuais e a esquerda no-comunista europia. Estas informaes podem ser encontradas em SAUNDERS, Frances Stonor. La CIA y la Guerra Fra Cultural. Barcelona: Editorial Debate, 2002. Nesta obra, a autora analisa a articulao entre vrias fundaes filantrpicas, como Ford, Carnegie e Rockefeller que, em parceria logstica, administrativa e financeira com o Departamento de Estado e a CIA financiou e organizou congressos, exibies de arte, apresentaes artsticas e publicaes que tinham como objetivo combater o marxismo e os regimes estabelecidos no Leste Europeu. Schlesinger Jr. era um dos membros mais ativos do American Committee for Cultural Freedom (Comit Americano pela Liberdade da Cultura), rgo financiado pela CIA e que contava com uma srie de comits nacionais em diversos pases do mundo, coordenando publicaes de dezenas de peridicos pelo mundo. Schlesinger Jr. foi tambm conselheiro da CIA para assuntos culturais. 59 James Stanford Bradshaw trabalhou como assessor de imprensa da Organizao dos Estados Americanos (OEA) no ano de 1961. De 1962 at 1965 foi designado Conselheiro-Assistente de Assuntos Pblicos para a Amrica Latina da AID (Agency for International Development). Durante o ano de 1962 Bradshaw foi tambm integrante do sub-comit de questes culturais do Latin American Policy Committee (LAPC). 60 Chama a ateno o fato de que, nos arquivos do gabinete de trabalho do presidente Kennedy sobre a Aliana para o Progresso, foi encontrado um nmero significativo de documentos que tratavam da propaganda do governo na Amrica Latina. Isto por si s sugere a importncia dada a estas polticas durante a sua administrao. 61 Ligado ao Gabinete de Assuntos Inter-Americanos (Office of Inter-American Affairs) desde julho de 1961, onde era o responsvel por mediar as relaes entre o Departamento de Estado norte-americano e a Organizao dos Estados Americanos (OEA), Morales-Carrin tambm foi um dos mais ativos personagens a incentivar a criao de um sub-comit especial do Comit de Polticas para a Amrica Latina (Latin American Policy Committee, LAPC na sigla em ingls) dedicado a assuntos culturais do Departamento de Estado. 62 Um incontvel nmero de documentos relativos ao tema de nossa pesquisa no est disponvel ao acesso pblico, por conter, alegadamente, informaes sensveis segurana nacional dos Estados Unidos. Nas pastas localizadas no interior das centenas de caixas pesquisadas para este trabalho foram encontrados diversos Avisos de Retirada (Withdrawal Notice) Tal aviso destaca o dia, o produtor e o receptor do documento que teoricamente deveria encontrar-se ali. No caso, por exemplo, da documentao relativa atuao da Agncia Central de Inteligncia (CIA) no Brasil, as caixas contm quase que to somente avisos de retirada. 63 No incio dos anos 90, o ento presidente dos Estados Unidos, George Bush, assinou uma lei que permitia o acesso a documentos retidos. A chamada Lei de Liberdade de Informao (Freedom of Information Act, ou FOIA na sigla em ingls), permite que o pesquisador preencha um formulrio solicitando a liberao de um documento classificado. O tempo que decorre entre o pedido de liberao e o envio do documento para as mos do pesquisador pode levar

  • 39

    Grupos, Agncias e Departamentos Vinculados Produo das Fontes

    a) A Agncia Estadunidense de Informao USIA

    A USIA foi criada oficialmente em 1953 e encerrou as suas atividades no

    ano de 1999. Antes de 1953, ela era chamada de USIS (United States

    Information Service). Como uma agncia independente do governo dos

    Estados Unidos, a USIA foi responsvel pela coordenao das aes de

    propaganda a partir de veculos oficiais e no oficiais. As funes dessa

    agncia eram: divulgar positivamente a poltica externa e interna dos Estados

    Unidos pelo mundo, organizar programas de intercmbio cultural oficiais entre

    os Estados Unidos e outros pases, coordenar os programas da rdio Voice of

    America (rdio oficial do governo norte-americano, com vrias estaes

    espalhadas pelo mundo), Radio Free Europe e Rdio y TV Mart,

    especialmente fundada para contrapor-se Revoluo Cubana.

    A USIA tambm coordenava o planejamento e a execuo dos

    chamados information programs, que constituem os casos discutidos neste

    captulo. Os estrategistas estadunidenses costumavam utilizar a palavra

    information para designar propaganda. Assim, os information programs

    consistiam em aes de propaganda direta ou indireta em apoio poltica

    interna e externa dos Estados Unidos.

    A USIA possua uma sede central em Washington e diversos postos

    espalhados por diversos pases. Geralmente, havia colaborao direta ou

    indireta entre USIA e CIA na organizao e na execuo dos programas de

    propaganda. A diferena de atribuies das agncias dizia respeito ao tipo de

    propaganda que seria veiculada. A USIA era responsvel pelas aes de

    propaganda nos meios oficiais, mas no era incomum que ela se envolvesse

    tambm em aes de propaganda encobertas, ou seja, aquelas cuja origem

    atribuda a uma fonte falsa ou de fachada.

    anos, dependendo da agncia ou departamento de onde provm o arquivo. Os arquivos da CIA, segundo uma carta endereada a mim pelo NARA, no podem ser liberados pelo NARA pois este alegadamente no dispe das prerrogativas legais para liberar este tipo de documentao produzida pela CIA.

  • 40

    Conforme Philip Agee, ex-agente da CIA, as aes de propaganda dos

    Estados Unidos eram divididas em trs categorias: branca, cinza e negra. A

    branca era oficial, sempre coordenada pela USIA. A cinza era atribuda a

    instituies ou indivduos que no se vinculavam publicamente ao governo

    estadunidense e divulgavam as informaes por ele produzidas como se

    fossem suas. Por fim, a negra ou no era imputada a nenhuma fonte, ou era

    atribuda a uma fonte inexistente. Tambm poderia ser caracterizada como

    negra uma ao de propaganda atribuda a uma fonte verdadeira, mas com

    contedo falso. Somente a CIA tinha autorizao para envolver-se em

    operaes de propaganda negra, mas a agncia podia compartilhar algumas

    das funes de propaganda cinza com a USIA64. No final dos captulos 2 e 3,

    sero apresentados exemplos de propaganda cinza produzidos pela USIA,

    mas atribudos a outras fontes.

    b) Os Assistentes Especiais do presidente Kennedy

    A administrao John F. Kennedy teve a Amrica Latina como uma de

    suas principais preocupaes. Em razo do que consideravam como fracassos

    da poltica externa da presidncia anterior de Dwight Eisenhower (1953-1960)

    para a regio, Kennedy organizou toda uma estrutura burocrtica

    especialmente designada para lidar com os problemas latino-americanos,

    sendo Cuba o principal deles. Um exemplo desta orientao foi a nomeao de

    trs Assistentes Especiais responsveis prioritariamente por assuntos latino-

    americanos: Ralph Dungan, Richard Goodwin e Arthur Schlesinger Jr. Dois

    deles, Goodwin e Schlesinger, envolveram-se diretamente com as iniciativas de

    propaganda do Departamento de Estado em colaborao com a USIA e

    outras agncias. Alm destes personagens, Walter Whitman Rostow e

    McGeorge Bundy tambm trabalharam como Assistentes Especiais sobre

    Assuntos de Segurana Nacional.

    64 Segundo Agee, caso alguma agncia quisesse se envolver em operaes de propaganda cinza, era necessrio pedir autorizao prvia para a CIA Informaes extradas de AGEE, Philip. Dentro da Companhia: Dirio da CIA. So Paulo: Crculo do Livro, 2 edio, 1976. p. 69.

  • 41

    Os Assistentes Especiais de Kennedy desempenhavam funes de

    assessoramento, representao e aconselhamento em relao s principais

    aes e discursos planejados pelo presidente dos Estados Unidos. Esses

    assessores, muitas vezes, tinham a liberdade de tomar decises em nome do

    presidente em comisses oficiais do governo norte-americano65. Um exemplo

    disso foi o papel desempenhado por Richard Goodwin nos rgos

    interdepartamentais que elaboraram as estratgias da ofensiva de propaganda

    estadunidense para a Amrica Latina.

    c) A Fora Tarefa sobre Problemas Imediatos Latino-Americanos

    Ainda em fase de campanha presidencial, no incio de 1960, John F.

    Kennedy convocou alguns de seus mais prximos aliados polticos para

    elaborar um projeto de desenvolvimento para a Amrica Latina. O grupo foi

    montado e era composto por Lincoln Gordon, ex-funcionrio do Plano Marshall

    e professor de economia em Harvard (posteriormente nomeado embaixador

    dos Estados Unidos no Brasil), Arthur Whitakker, economista estadunidense e

    professor do MIT, Arturo Morales-Carrin, advogado cubano e Teodoro

    Moscoso, poltico e empresrio porto-riquenho. A coordenao deste grupo

    ficou a cargo do ex-embaixador norte-americano no Brasil, Adolf Berle. Juntos,

    estes personagens integraram a chamada Fora-Tarefa sobre Problemas

    Imediatos Latino-Americanos (Task Force on Immediate Latin American

    Problems), a qual no final do ano de 1960 apresentou para o candidato

    presidncia John F. Kennedy um relatrio contendo uma srie de

    recomendaes de polticas a serem implementadas na Amrica Latina. Este

    relatrio acabou se tornando a base do projeto que seria posteriormente

    denominado Aliana para o Progresso.

    65 Informao extrada de SCHLESINGER JR., Arthur. Mil Dias: John F. Kennedy na Casa Branca. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966. p. 42.

  • 42

    2.3 A Viso Estadunidense sobre a Amrica Latina e seus Problemas

    O exemplo que melhor ilustra a viso e as respostas oferecidas por

    setores da administrao Kennedy acerca dos problemas latino-americanos

    um memorando prescritivo escrito por Arthur Schlesinger Jr. para o presidente

    Kennedy. Schlesinger Jr. acompanhou uma viagem da misso Food for Peace

    (Alimentos para a Paz) que passou por vrios pases latino-americanos.

    Impressionado com o que presenciou, especialmente na regio nordeste do

    Brasil, Schlesinger transmitiu ao presidente suas recomendaes:

    O argumento que a Amrica Latina est irrevogavelmente comprometida com a causa da modernizao. Este processo de modernizao no poder ter lugar sem uma drstica reviso da estrutura agrria semi-feudal que prevalece em muitas partes do subcontinente. Esta reviso pode vir de duas maneiras: atravs de uma revoluo das classes mdias ou atravs de uma revoluo operrio-camponesa (comunista ou peronista). Obviamente, do interesse dos Estados Unidos promover uma revoluo das classes mdias. Infelizmente a oligarquia proprietria de terras no entende a gravidade de sua prpria situao. Ela constitui a grande barreira para uma revoluo das classes mdias e, ao impedir a revoluo das classes mdias, ela pode trazer a revoluo proletria.66

    Schlesinger Jr. identificou com preciso o cenrio poltico da regio.

    Embora a possibilidade de uma revoluo das classes mdias fosse remota,

    a idia de uma revoluo operrio-camponesa, fosse ela comunista ou

    66 The argument is that Latin America is irrevocably committed to the quest for modernization. This process of modernization cannot take place without a drastic revision of the semi-feudal agrarian structure of society wh