Download - Sociedade Internacional, Direito Ao Desenvolvimento e Estados Fracassados: Em Busca de Alternativas

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    UNIJU UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

    Departamento de Cincias Administrativas, Contbeis, Econmicas e da Comunicao

    Departamento de Estudos Agrrios Departamento de Cincias Jurdicas e Sociais

    CURSO DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO

    DNIS ALBERTO NASCIMENTO MACHADO

    SOCIEDADE INTERNACIONAL, DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E ESTADOS FRACASSADOS: EM BUSCA DE ALTERNATIVAS

    Iju (RS) 2012

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    DNIS ALBERTO NASCIMENTO MACHADO

    SOCIEDADE INTERNACIONAL, DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E ESTADOS FRACASSADOS: EM BUSCA DE ALTERNATIVAS

    Dissertao apresentada ao curso de Ps-Graduao Stricto Sensu em Desenvolvimento, na linha de pesquisa Direito, Cidadania e Desenvolvimento, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJU), como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Desenvolvimento.

    Orientador: Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin

    Iju (RS) 2012

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    M180s Machado, Dnis Alberto Nascimento.

    Sociedade internacional, direito ao desenvolvimento e estados

    fracassados: em busca de alternativas / Dnis Alberto Nascimento

    Machado. Iju, 2012.

    137 f.

    Dissertao (mestrado) Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Iju). Desenvolvimento.

    Orientador: Gilmar Antonio Bedin.

    1. Sociedade internacional. 2. Direitos Humanos. 3. Globalizao.

    4. Direito ao desenvolvimento. 5. Estados fracassados. I. Bedin, Gilmar

    Antonio. II. Ttulo. III. Ttulo: em busca de alternativas.

    CDU : 341.231.14

    341.232

    Catalogao na Publicao

    Frederico Cutty Teixeira

    CRB10 / 2098

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    UNIJU - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

    Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Mestrado

    A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertao

    SOCIEDADE INTERNACIONAL, DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E

    ESTADOS FRACASSADOS: EM BUSCA DE ALTERNATIVAS

    elaborada por

    DNIS ALBERTO NASCIMENTO MACHADO

    como requisito parcial para a obteno do grau de

    Mestre em Desenvolvimento

    Banca Examinadora:

    Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin (UNIJU): ________________________________________

    Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto (UDC): __________________________________________

    Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas (UNIJU): _________________________________________

    Iju (RS), 16 de maro de 2012.

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    AGRADECIMENTOS

    Em toda pesquisa h momentos de solido, isolamento e desassossego. O

    pesquisador descobre-se um grande amigo dos livros, com as pessoas a sua volta,

    em contrapartida, ficando no raro distantes. No entanto, em cada pausa o mundo

    visto de outra maneira, as pessoas se reaproximam e a saudade abrandada por

    novos e insubstituveis momentos com famlia e amigos.

    por isso que a presente dissertao no pode ser creditada a uma s

    pessoa, mas tambm a todas aquelas que estiveram presentes em cada linha, em

    cada pgina que se iniciava e na qual se fixavam as impresses, ideias e

    sentimentos de quem escrevia acompanhado por todos aqueles que nunca lhe

    negaram um abrao ou uma palavra de apoio.

    Agradeo aos meus pais, Srgio Corsetti Machado e Clair Catarina do

    Nascimento Machado, os quais so a minha inspirao, motivao, fora e crena.

    Com vocs aprendi que a vida pra valer, como diz o poeta, e que mais

    importante do que vencer ou perder atingir o significado dos acontecimentos,

    compreendendo o pano de fundo por detrs daqueles rtulos postos na trama da

    vida por nossos anseios e justificativas.

    Agradeo minha namorada, Larissa Ritter de Almeida, a qual me ensinou

    a beleza das coisas simples e complexas que permeiam o convvio mtuo. Obrigado

    pelo incentivo contnuo, pelo imprescindvel amparo afetuoso e compreensivo que

    nunca faltou e esteve sempre a iluminar aqueles dias mais complicados e nos quais

    a criatividade parece em descanso.

    Ao meu grande amigo, Prof. Dr. Eduardo Matzembacher Frizzo, pelo

    companheirismo e pelas valiosas conversas. Com certeza os nossos

    questionamentos esto presentes neste trabalho, aclarando ou mesmo

    problematizando as temticas, sempre com o objetivo de ampliar os horizontes

    hermenuticos.

    Prof. Dra. Luciene Dal Ri, a qual propiciou uma grande carga de

    entusiasmo com o seu trabalho de orientao no primeiro ano de mestrado, trazendo

    todo o seu profissionalismo e experincia nas reas da pesquisa e da docncia. No

    h dvida de que os sensatos ensinamentos por ela apresentados contriburam em

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    muito para se conseguir escapar de maniquesmos, elevando assim a ideia de dar

    uma tonalidade mais densa ao discurso.

    Ao Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin, o qual assumiu a orientao a partir do

    segundo ano, constantemente dissipando as inmeras dvidas que surgiam e

    trazendo sempre uma palavra de serenidade e animao. Foi graas a ele que a

    disciplina das Relaes Internacionais pde se fazer presente com maior fora no

    texto, configurando-se a sua orientao, por isso, no ponto balizador mais slido do

    trabalho como um todo.

    Ao Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas, por todo o auxlio prestado no transcorrer

    da feitura desta dissertao e do mesmo modo pela perspectiva imbuda de direitos

    humanos que desperta em seus alunos. fato que sem as direes apontadas por

    ele, seja na pesquisa ou na docncia, o resultado de todo este trabalho no teria

    sido o mesmo.

    Aos professores doutores Darcsio Corra, Daniel Rubens Cenci, Martinho

    Luis Kelm, Odete Maria de Oliveira, Arno Dal Ri Jnior e Antonio Carlos

    Wolkmer, por estimularem aquela grande paixo pelo conhecimento que traz bons

    ventos de sensatez s reviravoltas inerentes ao dia a dia.

    Agradeo aos colegas de mestrado pelo companheirismo, em especial

    Giancarlo Maturano Ghisleni, Aline Dornelles Madrid, Priscila Gadea Lorenz e

    Lucas Goulart da Silva, bem como Secretaria do Curso de Mestrado em

    Desenvolvimento, na pessoa de sua funcionria Janete Guterres, por toda a

    assistncia oferecida.

    Um muito obrigado aos vrios professores, familiares e amigos que no

    foram aqui mencionados, mas estiveram comigo em cada passo e em cada esforo,

    nas lembranas dos muitos momentos compartilhados, bem como nos sonhos e nas

    esperanas do porvir.

    Agradeo tambm pelo subsdio financeiro proporcionado pela Capes, sem o

    qual a realizao deste trabalho no seria possvel.

    E finalmente a Deus, dualidade de presena e ausncia, ser e no ser que

    povoa os acontecimentos insondveis e os caminhos no traados que perpassam a

    vida.

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    Ver a terra como podemos v-la agora, pequena e azul e bela flutuando no silncio

    eterno, ver-nos como passageiros unidos nesse astro, irmanados no

    encantamento brilhante da noite que no termina irmos que percebem agora

    estar verdadeiramente irmanados.

    Archibald MacLeish

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    RESUMO

    A presente dissertao examina, no contexto terico-normativo da sociedade internacional contempornea, a emergncia do direito ao desenvolvimento e sua vinculao com os Estados fracassados. Para tanto, a dissertao parte da abordagem da sociedade internacional moderna, a qual emerge em razo da ascenso do Estado moderno, implicando tambm no exame deste ltimo para a conformao da primeira parte do trabalho. Aps, examina a inflexo terica possibilitadora do aparecimento da sociedade internacional contempornea, demandando assim o estudo dos novos atores internacionais, dos direitos humanos e do fenmeno da globalizao. Por fim, na esteira da expanso internacional dos direitos humanos, faz uma anlise do surgimento do direito ao desenvolvimento e o vincula ao tema dos Estados fracassados. Alm disso, levanta um breve conjunto de alternativas para essas entidades no contexto atual da sociedade internacional.

    Palavras-chave: Sociedade internacional. Direitos Humanos. Globalizao. Direito ao desenvolvimento. Estados fracassados.

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    ABSTRACT

    This dissertation examines the theoretical and legal context of contemporary international society, the emergence of the right to development and its relationship with failed states. To this end, the dissertation begins with the approach of modern international society, which emerges due to the rise of the modern state, but also implies the examination about the latter for the conformation of the first part of the work. After that, examines the theoretical inflection enabler of the emergence of contemporary international society, thus requiring the study of new international actors, human rights and globalization. Finally, in the wake of the expansion of international human rights, analyzes the rise of the right to development and links it to the issue of failed states. In addition, raises a brief set of alternatives for these entities in the current context of international society. Keywords: International Society. Human Rights. Globalization. The right to development. Failed states.

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    SUMRIO INTRODUO .......................................................................................................... 10 1. A SOCIEDADE INTERNACIONAL MODERNA CLSSICA E SEUS CONTORNOS ........................................................................................................... 15 1.1 A Sociedade Internacional e sua Conformao Histrica ................................... 16 1.1.1 O nascimento do Estado Moderno e suas caractersticas centrais .................. 16 1.1.2 A formao da sociedade internacional moderna e seus principais elementos constitutivos ............................................................................................................... 21 1.2 A Sociedade Internacional e sua Denominao: Comunidade, Sociedade ou Anarquia Internacional? ............................................................................................ 28 2. A SOCIEDADE INTERNACIONAL CONTEMPORNEA E SUA CRESCENTE COMPLEXIDADE ..................................................................................................... 42 2.1 A Criao da ONU e a Declarao Universal dos Direitos do Homem ............... 43 2.2 A Emergncia dos Novos Atores Internacionais e suas Implicaes .................. 49 2.3 O Fenmeno da Globalizao e suas Implicaes ............................................. 68 3. DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E ESTADOS FRACASSADOS: EM BUSCA DE ALTERNATIVAS ................................................................................................. 80 3.1 A Expanso dos Direitos Humanos e o Direito ao Desenvolvimento .................. 81 3.2 Os Estados Fracassados .................................................................................... 94 3.3 Os Estados Fracassados e suas Alternativas na Atualidade ............................ 107 CONSIDERAES FINAIS .................................................................................... 115 REFERNCIAS ....................................................................................................... 119 ANEXO 1................................................................................................................. 127 ANEXO 2................................................................................................................. 133 ANEXO 3................................................................................................................. 137

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    INTRODUO

    comum referir que a contempornea fase pela qual atravessam os seres

    humanos tende a ser fugidia, escapando com frequncia das tentativas de bem

    apreend-la. Isso evoca expresses conceituais como ps-modernidade, alta

    modernidade, hipermodernidade, globalizao, sociedade lquida e sociedade de

    risco, com todas, de alguma forma ou de outra, tentando abarcar o contexto atual, o

    qual ao mesmo tempo revela perturbantes paradoxos. Dentro desse mbito, em que

    as realidades das relaes no planeta se tornam mais intensas, interligadas e

    interdependentes, e da mesma forma mais esquivas s determinaes conceituais

    do passado, realmente desafiador situar o Estado, tradicional detentor de toda a

    soberania, e tambm localizar a exata dimenso dos relacionamentos inerentes

    sociedade internacional.

    Por essa razo que o presente trabalho se inicia a partir de detido exame da

    sociedade internacional, contextualizando o cenrio para somente depois tratar

    diretamente da matria referente ao direito ao desenvolvimento em conjunto com a

    temtica dos Estados fracassados. O caminho traado at a figura do fracasso

    estatal passou, portanto, pela tentativa de procurar distinguir alguma unidade

    conceitual bsica para a contempornea realidade internacional, mesmo que isso

    tenha sido feito sem se descuidar da intrnseca complexidade do atual panorama,

    possibilitando encontrar uma determinada ordem no caos com a inteno de dar

    maior coeso terica para o estudo. No trajeto certas hipteses se confirmaram,

    outras no, resultando disso a reafirmao de alguns pontos, como a relativizao

    da soberania estatal e da poltica de poder referente ao molde clssico da disciplina

    das Relaes Internacionais.

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    Anteriormente situado como o ator central dessa disciplina, hoje o Estado,

    ainda que seja imensamente importante, desafiado por outros atores

    internacionais que retiram dele muito de sua prvia proeminncia, modificando a

    dinmica clssica das relaes internacionais, erigidas agora a uma conformao

    global. Revela-se assim toda a complexidade enfrentada quando do estudo da

    condio estatal e da sociedade internacional dentro do contexto da globalizao,

    exigindo do pesquisador uma viso que abarque vrias disciplinas, ainda mais

    quando o intento seja inserir nesse campo o elemento jurdico do direito ao

    desenvolvimento e a enigmtica figura dos Estados fracassados. Desse modo,

    houve um intenso dilogo entre os caracteres tericos inerentes ao Direito, Teoria

    do Estado, s Teorias da Globalizao e s Relaes Internacionais, indicando a

    natureza interdisciplinar do presente trabalho, o que no implica carncia na

    delimitao temtica de maneira alguma.

    que o objetivo final, de qualquer forma, foi sempre o de encontrar

    alternativas tericas para aquelas entidades estatais mais defasadas em suas

    estruturas, os Estados fracassados, as quais no conseguem se estabilizar dentro

    do presente cenrio, sofrendo deficincias constantes que se retroalimentam e

    aprofundam as desigualdades interestatais. Fez-se imperioso ento encontrar a

    relao dessas entidades, tambm conhecidas como Estados falidos (expresso

    esta mais fiel inglesa Failed States), com o direito ao desenvolvimento e com o

    restante da contextualizao contempornea internacional. Entrementes, cabe

    referendar que em anexo ao presente trabalho encontra-se uma lista (anexo 2) de

    quais seriam aquelas entidades estatais consideradas em situao de fracasso na

    atualidade (Somlia, Haiti, Qunia, Camboja, etc.).

    Alm disso, mostra-se bastante oportuno justificar a escolha da expresso

    Estados fracassados em lugar de se optar pela expresso Estados falidos. No Brasil,

    de um modo geral, a literatura tem utilizado esta ltima terminologia, enquanto que

    em Portugal comum a utilizao da variante Estados falhados. Este trabalho se

    utilizar sobretudo da verso Estados fracassados, empregada igualmente por

    Leandro Nogueira Monteiro em sua obra O Conceito de Estado Fracassado nas

    Relaes Internacionais, nomenclatura adotada ainda por Nivaldo Montingelli Jr. em

    sua traduo do livro Construo de Estados, de Francis Fukuyama. Entende-se

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    que a expresso Estados fracassados coaduna-se mais com a abrangncia que o

    presente trabalho pretende dar aos vrios aspectos imbudos em sua problemtica

    (polticos, sociais, institucionais, etc.), ao passo que a locuo Estados falidos,

    embora mais fidedigna origem inglesa, poderia dar azo a compreenses um tanto

    mais centradas nos aspectos econmicos da questo.

    De todo modo, imperioso mencionar que a preocupao principal deste

    texto nunca deixou de atentar concretamente para o ser humano, ainda mais

    considerando a conjuntura dos Estados fracassados, os quais se situam em uma

    realidade bastante drstica para as suas populaes, na qual a m gesto poltica e

    econmica, os conflitos, as doenas, a insegurana traam um panorama muito

    pouco animador, com perdas de infraestruturas econmicas e de capital social,

    gerando maior incerteza e minguando sobremaneira as perspectivas para o futuro.

    Nesse nterim, objetivando melhor clarear o assunto, configura-se oportuno fazer

    referncia a certo entendimento preliminar acerca da categoria Estado Fracassado,

    afirmando que, na compreenso do presente trabalho, adaptam-se a esse conceito

    aquelas entidades estatais as quais nem mesmo para uma parcela moderada de

    suas respectivas populaes tem conseguido elevar os nveis de desenvolvimento e

    garantir uma vida digna (nos moldes mais bsicos de concepo que se d a uma

    vida digna).

    Mesmo em face desses parmetros, no o caso de alegar de maneira

    peremptria a no existncia de aspectos positivos no que concerne ao cenrio

    atual. Pode-se expor que, com a ascenso do direito ao desenvolvimento como um

    direito humano fundamental com a Declarao sobre o Direito ao

    Desenvolvimento, de 1986, cumprindo nisso um importantssimo papel , h uma

    dinmica internacional diferenciada no que toca soberania, dinmica que j vinha

    se consolidando na esteira da afirmao dos direitos humanos pela Declarao

    Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e que passa a referir-se ento ao direito

    ao desenvolvimento como mais um plano de ao exigvel no que concerne aos

    Estados para com as suas populaes, bem como no que tange aos Estados mais

    fortes para com aqueles mais fracos. Isso significa uma sociedade internacional com

    maior tendncia cooperao e interdependncia, fazendo prementes

    perspectivas solidaristas que possam dar um novo rumo para a natureza muitas

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    vezes predatria intrnseca ao fenmeno da globalizao, afirmando tambm a

    categoria da sociedade internacional contempornea em contraponto sociedade

    internacional moderna, sua predecessora.

    Nesse sentido, o presente texto alia-se perspectiva que compreende ter

    havido uma inflexo no panorama internacional a partir da Declarao de 1948, com

    os direitos do indivduo se afirmando perante os Estados em todas as suas

    dimenses, o que significa valorizar e dar efetividade aos direitos civis, polticos,

    sociais, econmicos, culturais e de solidariedade, corroborando para uma sociedade

    internacional muito menos marcada pela poltica de poder inerente sociedade

    internacional moderna, bem como muito mais propensa ao dilogo e resoluo dos

    conflitos interestatais pela via institucional. Alm disso, como mencionado, emerge a

    categoria jurdica do direito ao desenvolvimento prpria dos direitos de

    solidariedade , confirmando a natureza jurdico-moral mais tendente cooperao

    que deve ser albergada pelos Estados com o fito de dirimir as desigualdades

    interestatais e dar uma melhor condio de vida para aquelas populaes que

    habitam aqueles Estados em situao de fracasso.

    a partir dessas mudanas atinentes ao panorama jurdico internacional e

    tambm a partir da nova complexidade desse cenrio que se reitera a existncia de

    uma sociedade internacional contempornea, com a ascenso, como afirmado, de

    novos atores e de uma considervel relativizao da poltica de poder referente

    sociedade internacional moderna. Concomitantemente, aps a descolonizao da

    dcada de 1960, em tal panorama emergem os j aludidos Estados fracassados

    os quais no esto de modo algum ilesos relativizao da soberania respeitante ao

    atual contexto da globalizao , com todos os Estados, assim, em maior ou menor

    medida, sendo afetados pelos processos globalizadores, sejam estes de ndole

    positiva ou negativa. Todos esses aspectos s vm a confirmar a atual

    complexidade internacional e a categoria da sociedade internacional

    contempornea, sendo portanto com base no conjunto desse mbito substancial que

    o presente trabalho consolida as suas diretrizes fundamentais.

    A partir do exposto, ressalta-se que no primeiro captulo ser abordada a

    categoria da sociedade internacional moderna, a qual emerge em razo da

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    ascenso do Estado moderno, implicando tambm no exame deste ltimo para a

    conformao da primeira parte do trabalho. No que concerne ao segundo captulo,

    ser examinada a acenada inflexo terica que possibilitou o aparecimento da

    sociedade internacional contempornea, demandando assim o estudo dos direitos

    humanos, dos novos atores internacionais e do fenmeno da globalizao. Por fim,

    no terceiro captulo, ser feita a exposio do surgimento do direito ao

    desenvolvimento na esteira da expanso internacional dos direitos humanos, sendo

    que, ademais, ser investigado o fenmeno dos Estados fracassados, bem como

    enfatizadas algumas alternativas tericas para essas entidades estatais atualmente

    em condio de fracasso.

    Nas consideraes finais retomado o percurso feito no trabalho, sendo

    afirmadas com maior clareza as consequncias negativas da existncia dos Estados

    fracassados. Nesse sentido, reafirma-se que o mote do trabalho sempre foi atrelado

    ao ser humano e efetivao dos seus direitos. Isso significa que a dissertao

    esteve continuamente preocupada com aquelas parcelas da populao desprovidas

    de liberdade e submetidas a privaes econmicas, sociais e polticas de grande

    significado, em consequncia da ausncia, no seu dia a dia, dos benefcios do

    desenvolvimento. Nesse contexto, a presente dissertao destaca a importncia da

    efetivao do direito ao desenvolvimento e da construo de novas possibilidades

    de cooperao internacional, em especial diante da emergncia de problemas que

    somente podem ser resolvidos em escala planetria e da constatao de que todos

    ns vivemos, hoje, no mesmo mundo.

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    1. A SOCIEDADE INTERNACIONAL MODERNA CLSSICA E SEUS

    CONTORNOS

    Os estudos concernentes temtica da sociedade internacional se mostram

    cada vez mais relevantes diante da crescente complexidade que o contemporneo

    cenrio global apresenta. Nesse contexto, faz-se imprescindvel apreender alguns

    aspectos relativos sociedade internacional moderna, que precede a sociedade

    internacional atual, chamada contempornea. A sociedade internacional moderna

    forma-se com a constituio dos Estados modernos, afirma-se com a Paz de

    Vestflia (1648) e expande-se, posteriormente, de maneira gradual da Europa para o

    resto do mundo.

    Entende-se, nessa linha, que o perodo que vai dos tratados da Paz de

    Vestflia at o nascimento da Organizao das Naes Unidas (1945) e a

    Declarao Universal dos Direitos do Homem (1948) o perodo tpico da sociedade

    internacional moderna. Esta sociedade marcada pela presena de um nico ator, o

    Estado moderno, e pelo conceito de soberania. Tal conformao se modifica aps a

    criao da ONU e a publicao de sua Declarao de Direitos, em 1948, tornando

    as relaes internacionais muito mais complexas, possibilitando, por conseguinte,

    com a ecloso de novos atores internacionais e com o advento da globalizao a

    formao de uma nova sociedade internacional: a sociedade internacional

    contempornea.

    Nesse contexto, o presente captulo tem incio com a anlise da formao

    histrica do Estado moderno e de suas principais caractersticas. Em seguida, so

    abordados o nascimento e os principais elementos constitutivos da sociedade

    internacional moderna. Ao final, buscar-se- descobrir se a sociedade internacional

    moderna pode ser mesmo denominada de sociedade, ou seria mais adequado

    denomin-la de anarquia internacional ou at mesmo de uma verdadeira

    comunidade.

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    1.1 A Sociedade Internacional e sua Conformao Histrica

    A sociedade internacional moderna (ou clssica) surge em virtude do

    aparecimento e da afirmao do Estado moderno. Por tal razo, imprescindvel por

    primeiro destacar alguns aspectos referentes ao Estado moderno, concentrando

    somente depois o estudo nas questes relativas gnese e consolidao da

    sociedade internacional moderna. preciso realar que o entendimento albergado

    por este trabalho de que esses dois fenmenos esto nitidamente imbricados, o

    que por bvio impede a compreenso de um sem se levar em conta o outro. Sendo

    assim, a separao em tpicos aqui efetuada apenas por questes metodolgicas,

    no havendo um real isolamento desses fenmenos ou categorias.

    1.1.1 O nascimento do Estado Moderno e suas caractersticas centrais

    Segundo Gilmar Antonio Bedin (2008), o processo que deu origem entidade

    estatal moderna principiou entre os sculos XIII e XIV, tendo sido concludo nos

    sculos XVI e XVII. Dessa forma, aps o esgotamento dos pressupostos e dos

    fundamentos da sociedade feudal, como tambm da prpria Idade Mdia (BEDIN,

    2008, p.49), ocorre o florescimento das cidades e do comrcio, rompendo-se

    gradativamente com o predomnio das formas de sociabilidade agrrias ou rurais,

    propiciando o surgimento dos primeiros traos que levariam ecloso do Estado

    moderno.

    Nesse nterim, necessrio frisar que no h data precisa delimitando a

    passagem do feudalismo (ou da forma estatal medieval) para o capitalismo, onde

    comea a surgir o Estado Moderno em sua primeira verso (absolutista) (2000,

    p.22), como advertem Lenio Luiz Streck e Jos Luis Bolzan de Morais. O mais

    sensato afirmar que por sculos conviveram na Europa Ocidental e Central o

    descendente modo de produo feudal e o ascendente modo de produo

    capitalista. Sendo assim, a decadncia do feudalismo em face do capitalismo,

    ocorrida a partir da Baixa Idade Mdia,1 deu-se de modo lento e gradual, delineando

    1 Para fins historiogrficos, conforme Bedin (2008), costuma-se dividir a Idade Mdia em quatro

    perodos distintos: Primeira Idade Mdia ou Antiguidade Clssica Tardia (sc.V a VIII), Alta Idade

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    aos poucos os contornos sociais, polticos, econmicos, culturais e tericos que

    resultariam no surgimento do Estado moderno.2

    Acentuou-se naquele momento histrico uma dinmica social nova, com

    gradativas mutaes na percepo, crenas e valores do homem medieval. Assim,

    os trabalhadores campesinos vo gradualmente rompendo com os processos de

    identificao com a terra e com os laos de dependncia (BEDIN, 2008, p.60),

    fazendo o modelo urbano de sociabilidade prosperar em detrimento do sistema de

    cunho feudal tpico da Idade Mdia.

    que o sistema poltico e socioeconmico medieval (tipicamente organicista),

    com uma rgida hierarquia baseada nas ordens tradicionais (status), na qual cada

    pessoa tinha um lugar predeterminado no que se acreditava ser a ordem natural

    das coisas foi, aos poucos, cedendo espao para as mudanas trazidas pela

    modernidade, com as consequentes alteraes da advindas. A ideia do indivduo

    autossuficiente, o incipiente mercado, a descoberta do Novo Mundo, contribuem de

    forma invarivel para a constituio do novo homem que ser o alicerce do Estado

    moderno nascente.

    Nesse quadro o Renascimento (concentrado entre os sculos XIV e XVI), a

    Reforma Protestante e tambm a Contra-Reforma da Igreja Catlica (ambas a partir

    do sculo XVI) so trs importantes elementos que contriburam sobremaneira para

    a centralizao poltica caracterizadora do Estado moderno (BEDIN, 2008). Desse

    modo, faz-se imprescindvel destacar a seguir, ainda que brevemente, esses trs

    elementos.

    Dessa maneira, destaca-se que o Renascimento aprofundou as diversas

    tendncias iniciadas na Baixa Idade Mdia, seja em termos polticos, com o

    fortalecimento do poder secular; seja em termos econmicos e sociais, com o

    fortalecimento do comrcio e das cidades; seja na forma de compreenso do

    Mdia ou Idade Mdia Mdia (sc.VIII a X), Idade Mdia Central (sc.X a XIII) e Baixa Idade Mdia (sc.XIII a XIV). 2 oportuno ressaltar Perry Anderson, o qual sinaliza que a longa crise socioeconmica europeia

    ocorrida durante os sculos XIV e XV marcou as dificuldades e os limites do modo de produo feudal do ltimo perodo da Idade Mdia (1998, p.15).

  • 19

    mundo, com a libertao e valorizao do ser humano (BEDIN, 2008, p.71),

    marcando o incio da sociedade moderna.

    Sendo assim, mesmo que se tenha como correta a afirmao de que a

    Renascena no uma total anttese da etapa medieval, pois, como declara Vincius

    Soares de Campos Barros (2010), certo grau de individualismo e realismo j se

    encontrava gestado no medievo, possvel mencionar, entrementes, que o

    Renascimento mostra-se como um cenrio novo e sedutor, em que o homem

    encontra-se consigo mesmo em suas potencialidades criativas e se v como senhor

    de sua prpria histria (CAMPOS BARROS, 2010, p.17). Tamanhas mutaes na

    condio existencial humana propiciam uma certa atitude intelectual prpria:

    humanista, individualista, racionalista e voltada para a Antiguidade Clssica

    (BEDIN, 2008, p.68).

    Nesse sentido, o perodo renascentista3 fortaleceu a crena nas iniciativas

    humanas e na liberdade do homem frente Religio, o que no significa ser tal fase

    uma apologia a vises antirreligiosas ou anticrists da existncia, mas sim que, ao

    confiar na plena possibilidade de construir o seu prprio destino, o homem livra-se

    de determinismos e pode ento tornar o seu espao sociopoltico sensivelmente

    mais laico. Razo e cincia buscam assim emancipar-se das amarras do

    dogmatismo religioso e escolstico, ocorrendo a gradativa separao entre a moral e

    a poltica (Maquiavel), entre a teologia e a filosofia, dando-se nfase a uma nova

    concepo do saber com a observao sistemtica dos fatos e a experimentao

    cuidadosa (BEDIN, 2008, p.69).

    O Renascimento, desse modo, como uma fase de transio entre o velho e o

    novo, em que, ao modo de produo feudal, sobrevm o capitalismo, fazendo, por

    conseguinte, surgir novas realidades tcnicas e um forte desenvolvimento

    econmico propulsor do reaparecimento das cidades (CAMPOS BARROS, 2010,

    pp.17-18), impulsionou por tudo isso inmeras mudanas sociais, polticas e

    3 Cabe mencionar Edith Sichel, que define o Renascimento como um movimento, uma revivificao

    das capacidades do homem, um novo despertar da conscincia de si prprio e do universo - um movimento que se alastrou pela Europa Ocidental e (...) deixando atrs de si um mundo novo, parece-se mais com um fenmeno da natureza do que com uma corrente da histria - mais uma atmosfera envolvendo os homens do que um rumo definido sua frente (1963, p.7).

  • 20

    econmicas relacionadas ao surgimento e a consolidao do Estado moderno. Entre

    tais mudanas, destaca-se a laicizao da poltica, ocorrendo a gradual diminuio

    do poder da Igreja diante do nascente modelo estatal da modernidade, com os

    monarcas absolutistas afirmando cada vez mais os seus poderes em face do

    papado.

    O segundo elemento mencionado, a Reforma Protestante, tambm exerceu,

    como se alegou, profunda influncia na ascenso do Estado moderno. que com os

    ideais reformadores propagados por seus principais expoentes, Martin Lutero (1483-

    1546) e Jean Calvino (1509-1564), emerge a noo de que as autoridades

    eclesisticas no possuem qualquer jurisdio ou poder nos assuntos temporais

    (BEDIN, 2008, p.75), e de que as prticas oficiais e a riqueza da Igreja violavam os

    preceitos cristos dos primeiros tempos (BEDIN, 2008, p.74). Alm disso, a

    Reforma afirmou a liberdade de interpretao da bblia, buscando compatibilizar

    humanismo e razo com Religio, aproveitando a recm-descoberta imprensa para

    a divulgao de suas ideias. Como consequncia do movimento reformista, houve o

    enfraquecimento do poder da Igreja e do papado e o fortalecimento do poder

    secular (BEDIN, 2008, p.76), pois a Reforma deu fim unidade religiosa da Idade

    Mdia e, em grande medida, fomentou a separao da poltica em relao esfera

    da Religio.

    No que se refere Contra-Reforma da Igreja Catlica, ocorrida a partir do

    Conclio de Trento e tendo como instrumento bsico a Companhia de Jesus

    (Ordem dos Jesutas), criada por Incio de Loyola (1491-1556), em 1534 (BEDIN,

    2008, p.77), pode-se afirmar que ela contribuiu para a ascenso do Estado moderno

    na medida em que, ao tentar enfraquecer a Reforma Protestante aliando-se a reis

    catlicos, auxiliou no processo de centralizao poltica da entidade estatal

    moderna. Portanto, a Reforma Protestante e a Contra-Reforma da Igreja Catlica

    no causaram somente modificaes que afetaram a sociedade e o cenrio

    religioso, mas contriburam tambm de maneira bastante considervel para o

    nascimento e a consolidao do Estado moderno, haja vista ambas terem se unido a

    monarcas absolutistas no intuito de fortalecer as suas respectivas posies relativas

    ao cristianismo.

  • 21

    Interessante neste ponto acrescentar Ren-Jean Dupuy, o qual afirma que

    enquanto a Reforma recusa a autoridade do Papado, a constituio de Estados

    poderosos, enriquecidos com o ouro da Amrica, arruna a suserania do Imperador

    (1993, p.11), desmoronando a organizao poltica medieval e propagando o ento

    incipiente Estado moderno. Dessa maneira, as transformaes continentais da Baixa

    Idade Mdia fazem emergir o Estado Absolutista, que a primeira forma tomada

    pelo Estado moderno, passando os poderes dispersos existentes na organizao

    poltica medieval para a pessoa de um nico monarca. Nesse sentido, ocorre uma

    concentrao de poderes, sendo que, nas palavras de Hermann Heller, a evoluo

    levada

    [...] a efeito, no aspecto organizador, para o Estado moderno, constitui em que os meios reais de autoridade e administrao, que eram domnio privado, se transformassem em propriedade pblica e em que o poder de mando que se vinha exercendo como um direito do indivduo se expropriasse em benefcio do prncipe absoluto primeiro e depois do Estado (1968, p.163).

    Frisa-se que o processo de nascimento do Estado moderno demandou a

    superao dos poderes locais e universais, ou seja, os monarcas dos embrionrios

    Estados europeus precisaram subjugar internamente os senhores feudais, clrigos,

    corporaes de ofcio e demais ordens inferiores e, externamente, a Santa S e o

    Sacro Imprio Romano-Germnico.4 Em outras palavras, tendo

    submetido os poderes locais - senhores feudais e autoridades eclesisticas inferiores e fragilizado os poderes supranacionais Igreja e Sacro Imprio Romano-Germnico , as monarquias modernas e, em conseqncia, o Estado moderno vo, aos poucos, tornando-se as principais unidades polticas da nova etapa da trajetria da humanidade (BEDIN, 2008, p.81).

    Ocorrem assim os fenmenos da centralizao e da concentrao do poder

    estatal, com a gradativa especializao do aparelho burocrtico-administrativo,

    chamando o Estado para si uma populao alm de um territrio bem definido,

    sobre o qual exerce soberania, com os inmeros monoplios caractersticos do

    modelo estatal da modernidade (uso legtimo e institucional da violncia fsica,

    justia, arrecadao de tributos, moeda etc.). Frisa-se que o monoplio que mais

    4 Apesar do nome, o Imprio ou Sacro Imprio Romano-Germnico no constitua uma fora poltica

    suficiente para fazer frente aos monarcas do perodo, porquanto no passava, de fato, de uma fico poltica, uma espcie de estrutura institucional sem monoplio da violncia, o que no lhe conferia qualquer hiptese de efetividade prtica (BEDIN, 2011, p.18).

  • 22

    bem define o Estado moderno o do uso legtimo e institucional da violncia fsica,

    constituindo de forma efetiva a autoridade central dessa entidade.5

    Aps a derrocada de sua fase absolutista, o Estado moderno atravessa por

    uma fase liberal e por uma social (e tambm por outra imbuda de farto

    neoliberalismo), constituindo-se a etapa atual objeto de inmeras controvrsias e

    tida por muitos como a fase ps-moderna do Estado (e, portanto, ao menos em tese,

    j para alm da modernidade). No oportuno adentrar no estudo dessas etapas,

    cumprindo to somente ressaltar que o surgimento e a consolidao do Estado

    moderno demarcam-no como a unidade bsica da ento nascente sociedade

    internacional moderna, sendo a partir disso que esta vai se definindo como uma

    sociedade tipicamente interestatal, em que estaro presentes, pelo menos

    inicialmente, apenas os Estados soberanos (BEDIN, 2001, p.176).

    Dessa forma, dadas as disposies centrais acerca da formao do Estado

    moderno, bem como esboada de maneira brevssima as suas principais

    caractersticas, interessa determinar melhor o surgimento e os caracteres nucleares

    da sociedade internacional moderna. o que ser desenvolvido no prximo tpico,

    buscando-se, logo depois, descobrir se a expresso sociedade internacional

    realmente a mais adequada, ou se a condio internacional da modernidade seria

    mais bem designada por anarquia ou ainda por comunidade internacional.

    1.1.2 A formao da sociedade internacional moderna e seus principais

    elementos constitutivos

    Com o nascimento do Estado moderno cria-se a precondio para que seja

    possvel uma sociedade internacional nos moldes da modernidade.6 Fica assim

    5 Nas palavras de Paulo Bonavides: O Estado moderno racionalizou (...) o emprego da violncia, ao

    mesmo passo que o fez legtimo. De modo que, valendo-se de tais reflexes, chega Max Weber, enfim, ao seu clebre conceito de Estado: aquela comunidade humana que, dentro de um determinado territrio, reivindica para si, de maneira bem sucedida, o monoplio da violncia fsica legtima (2009, p.70). 6 O avano da sociedade internacional moderna foi, portanto, diretamente proporcional ao avano do

    Estado moderno, com ambos sedimentando as caractersticas ou princpios centrais da poltica internacional da modernidade.

  • 23

    aberto o caminho para que o formato estatal desse perodo possa ser

    gradativamente incorporado ao cenrio, firmando-se como o principal ator das

    relaes internacionais e promovendo as caractersticas basilares que iriam compor

    a sociedade internacional moderna. habitual designar a Paz de Vestflia (1648)

    como o marco histrico principal relativo origem dessas caractersticas, a qual,

    alm de determinar o fim da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648),7 teria tambm

    consolidado uma nova conjuntura,8 sendo esta livre de determinaes supraestatais

    quer seja da Santa S ou do Imperador, perfazendo assim o marco inicial da

    formao da sociedade internacional do mundo moderno (BEDIN, 2001, p.174).

    Dentro dessa perspectiva, Adam Watson afirma que o

    [...] Acordo de Vestflia legitimou uma comunidade de Estados soberanos. Marcou o triunfo do Stato, detentor do controle de seus assuntos internos e independente em termos externos. Essa era a aspirao dos prncipes em geral e especialmente dos prncipes alemes, tanto os protestantes quanto os catlicos, com relao ao imprio. Os tratados de Vestflia lanaram muitas das regras e muitos dos princpios polticos da nova sociedade de Estados e proporcionaram provas do assentimento geral dos prncipes a esses princpios e regras. O acerto foi realizado para prover um estatuto bsico e abrangente para toda a Europa (2004, p.263).

    Est implcito que tais mudanas no panorama internacional decorreram de

    um longo processo histrico, podendo-se compreender o sistema de normas

    7 A Guerra dos Trinta Anos foi um imenso conflito dinstico-religioso que envolveu praticamente toda

    a Europa e esteve em princpio localizada na parte central europeia, especificamente nos Estados alemes. Tal guerra foi consequncia direta do episdio em que o Sacro Imprio Romano-Germnico intentou arruinar os protestantes da Bomia. Quando houve repercusses vizinhas, a guerra se deu numa luta entre o Imprio e os Estados alemes, na qual o carter religioso, segundo Heber Arbuet Vignali, opunha uma ustria monrquica e catlica aos Estados alemes, feudais e protestantes (Trad. livre do autor) (1993, p.163). Saram vitoriosos do conflito a Sucia e os Estados protestantes (incluindo os Estados imperiais, que passaram a ter mais autonomia e liberdade religiosa) e, principalmente, a Frana, que se tornou a grande potncia europia do perodo (BEDIN, 2001, p.171). Perderam a guerra, basicamente, o Sacro Imprio Romano-Germnico, a Santa S e a Espanha. importante observar que o longo perodo de negociaes diplomticas entre os participantes do conflito deu origem aos tratados que culminaram na Paz de Vestflia. Das negociaes, consubstanciadas em determinadas Conferncias de Paz, resultaram trs princpios fundamentais: a) o princpio da liberdade religiosa dos Estados; b) o princpio da soberania dos Estados; c) o princpio da igualdade entre os Estados (BEDIN, 2001, p.173). Esses trs princpios inauguram a sociedade internacional moderna, surgindo igualmente, conforme Ekkehart Krippendorff, o direito internacional pblico, a institucionalizao da diplomacia e as conferncias de cpula, o intento de reduzir as guerras, a aceitao do princpio da integridade territorial, o conceito de equilbrio de poderes (Trad. livre do autor) (1993, p.80), afora outros princpios e determinaes conceituais que foram caracterizando a sociedade internacional moderna. 8 No mesmo sentido, Robert H. Jackson e Georg Sorensen afirmam que o entroncamento do final

    histrico da Era Medieval e do ponto de partida do sistema internacional moderno , frequentemente, identificado com a Guerra dos Trinta Anos (1618-48) e com a Paz de Vestflia, acordo responsvel pelo trmino do conflito (2007, p.38).

  • 24

    codificado em Westfalia como um sistema que criou uma trajetria normativa no

    direito internacional, que s veio a receber sua articulao mais completa no fim do

    sculo XVIII e incio do XIX, conforme indicam David Held e Anthony McGrew

    (2001, p.27). Assim que, no decorrer de todo esse perodo (de Vestflia at o incio

    do sculo XIX), teria gradualmente se solidificado na conjuntura europeia a

    conformao moderna da sociedade internacional.

    Por outro lado, os mencionados caracteres polticos da modernidade europeia

    vo gradativamente se espalhando pelo mundo inteiro. Nas palavras de Jackson e

    Sorensen:

    [O] sistema de juno de Estados territoriais comeou a ser estabelecido, na Europa, no incio da Era Moderna. E, desde ento, o sistema estatal tem sido uma caracterstica central, seno determinante da modernidade. Embora o Estado soberano tenha surgido na Europa, tambm foi adotado na Amrica do Norte, no final do sculo XVIII, e na Amrica do Sul, no comeo do sculo XIX, em seguida difundiu-se pelo mundo em paralelo prpria modernidade. E, aos poucos, a estrutura do Estado soberano influenciou todo o mundo. A frica subsaariana, por exemplo, permaneceu isolada do sistema estatal em expanso at o final do sculo XIX, e s constituiu um sistema estatal regional independente aps a metade do sculo XX (2007, p.30).

    Portanto, pode-se perceber a Paz de Vestflia como um importante marco

    histrico concernente a um longo e complexo processo de surgimento e

    consolidao do Estado moderno e da sociedade internacional moderna. De tal

    processo brotaram as caractersticas nucleares dessa ordem, e que so, no dizer de

    Held e McGrew, a soberania territorial, a igualdade formal entre os Estados, a no

    interveno nos assuntos internos de outros Estados reconhecidos e o

    consentimento do Estado, como pedra fundamental dos acordos jurdicos

    internacionais (2001, p.27). Nesse sentido, tm-se erigidas as bases para o que

    segundo Liszt Vieira seria a constituio do sistema internacional de Estados

    (2001, p.95), consistindo a Paz de Vestflia no divisor de guas que aponta para a

    ascenso dos seguintes princpios normativos centrais: a) territorialidade; b)

    soberania; c) autonomia e d) legalidade (VIEIRA, 2001, p.95).

    importante acrescentar tambm que, de acordo com Odete Maria de

    Oliveira, a Paz de Vestflia propiciou a difuso da idia de uma Europa de

    multiplicidade de Estados independentes e de requerer de seus numerosos

  • 25

    constituintes no mais do que um acatamento nominal aos simples interesses do

    Santo Imprio Romano, reconhecendo-se o direito dos prncipes de seguirem livres

    e independentes as polticas externas, conclurem tratados, trocarem representantes

    diplomticos e de fazerem a guerra (2001, p.142). Propiciou, alm disso, a recusa

    ortodoxia religiosa, bem como a representao dos Estados nas discusses da

    Conferncia Geral da Paz, o que criou a presuno de que as matrias diretamente

    importantes a algumas das partes poderiam ser, tambm, a preocupao geral de

    todas as partes (OLIVEIRA, 2001, p.142).

    Todo o aporte delineado a respeito dos tratados vestfalianos demonstra que

    eles constituram-se como ponto de partida para a materializao de uma sociedade

    interestatal de ndole moderna e de abrangncia praticamente mundial. As

    caractersticas ou princpios nucleares de tal sociedade j foram traados de

    maneira concisa, mas importante repisar os principais caracteres da sociedade

    internacional moderna a fim de ilustr-la melhor, aferindo de maneira mais precisa a

    sua especificidade. Nesse sentido, Bedin elenca as seguintes caractersticas:

    a) uma sociedade universal, porque abrange todas as entidades polticas soberanas do globo terrestre; b) uma sociedade aberta, pois toda a nova entidade poltica reconhecida como soberana passa a fazer parte, imediata e automaticamente, de sua organizao; c) uma sociedade igualitria, ou seja, todos os seus membros possuem os mesmos direitos e as mesmas obrigaes, uma vez que todos os seus membros constituem entidades polticas soberanas; d) uma sociedade sem um poder supranacional, isto , cada membro da sociedade rbitro legtimo de suas prprias convices; e) uma sociedade descentralizada, pois o poder exercido de forma dispersa pelos vrios participantes da sociedade; f) uma sociedade que no estabeleceu o monoplio da coao fsica legtima e nem rgos centralizados para exercer as funes derivadas desse eventual monoplio; g) uma sociedade que possui uma moral e um direito muito especficos, diferentes de todas as disposies ticas e jurdicas de cada uma das entidades polticas que participam da sociedade (2001, pp. 185-186).

    Obviamente que essa no a nica maneira pela qual a sociedade

    internacional moderna possa ser caracterizada. Nesse norte, Martin Wight (1985)

    menciona quatro peculiaridades inerentes a tal panorama: 1) A sociedade

    internacional uma sociedade nica, composta por outras chamadas de Estados,

    sendo estes os seus membros principais e imediatos; 2) Como consequncia, o seu

    nmero de membros sempre pequeno se comparado aos membros das

    sociedades nacionais, compostas por milhes de seres humanos; 3) Os seus

  • 26

    integrantes so mais heterogneos do que aqueles das sociedades nacionais, fato

    acentuado pelo seu pequeno nmero. De fato, existe uma grande disparidade entre

    eles em tamanho territorial, posio e recursos geogrficos, populao, ideais

    culturais e organizao social (WIGHT, 1985, p. 86); 4) Os membros da sociedade

    internacional podem ser referidos como imortais, pois, mesmo que eventualmente

    um morra ou desaparea, em comparao com os indivduos eles perduram por um

    tempo consideravelmente maior, consistindo em parcerias dos vivos com os mortos

    e com a posteridade (WIGHT, 1985, p.86).

    Essas foram algumas maneiras de se elencar as caractersticas principais ou

    nucleares atinentes sociedade internacional moderna. Outros elementos ou

    conceitos caracterizadores de tal conjuntura tambm so deveras esclarecedores e,

    por isso, podem ser mencionados os seguintes: a poltica de poder, as razes de

    Estado e o equilbrio de poder. muito importante abord-los, haja vista tais

    conceitos operacionais dotados pela sociedade internacional clssica revelarem as

    particularidades dessa sociedade, ajudando na sua compreenso e do mesmo modo

    na sua especificao.9

    Na dinmica das relaes internacionais clssicas, isto , das relaes entre

    Estados soberanos ocorridas na esfera da sociedade internacional moderna, a

    poltica de poder constitui um elemento bastante relevante, sendo muito elucidativo

    da conjuntura ou da organizao dessa sociedade.10 Tal elemento sugere a

    existncia de unidades polticas independentes que no reconhecem superior

    poltico e que se consideram soberanas, e que existem relaes contnuas e

    organizadas entre elas (WIGHT, 1985, p.15). Essas relaes podem ter carter de

    9 Alm desses conceitos operacionais, a sociedade internacional moderna (ou clssica) desenvolveu

    importantes instituies que lhe deram funcionalidade, tais como as seguintes: a diplomacia, as alianas e a guerra. 10

    No interessa ao mbito deste trabalho explicitar as mincias relativas ao conceito de poder em si mesmo ou de poder poltico, bastando asseverar que este ltimo, no entendimento de Hans Morgenthau, refere-se s relaes mtuas de controle entre os titulares de autoridade pblica e entre os ltimos e o povo de modo geral (2003, p.51). Outra conceituao dada por Raymond Aron, afirmando que o poder poltico est na capacidade estatal de impor sua vontade a outros Estados soberanos, sendo, portanto, no um valor, mas uma relao, podendo se materializar atravs da guerra (apud BEDIN, 2011). importante esclarecer, alis, que no se deve confundir o poder poltico com o uso puro e simples da fora, porquanto este consiste muito mais no mero controle, faltando-lhe o elemento institucional que d particularidade ao poder poltico.

  • 27

    guerra ou de paz, diplomtico ou comercial, tendo enorme relevncia a busca pelo

    poder e a preservao do interesse nacional. Por isso, Hans Morgenthau classifica a

    poltica de poder em trs tipos: a) poltica de defesa do status quo, a qual visa

    manter o poder poltico de uma determinada potncia e sustentar a atual condio

    internacional vigente; b) poltica de imperialismo, que tenciona ampliar o poder,

    orientando a poltica externa de um Estado alterao da estrutura de poder em

    vigor no cenrio internacional; e c) poltica de prestgio, que significa uma poltica

    externa de ostentao ou ritualizao, com o Estado demonstrando atravs dela o

    poder que possui (MORGENTHAU, 2003).

    No que se refere ao conceito de razes de Estado, importa ressaltar que tal

    caractere visa outorgar legitimidade ao Estado na sua relao com outras estruturas

    polticas. Pode-se resumir o significado de razes de Estado na definio dada por

    Jonathan Haslam, que o delimita como a crena em que, no que concerne s

    relaes [polticas], os interesses do Estado prevalecem sobre todos os outros

    interesses e valores (apud BEDIN, 2011, p.56). Dessa forma, tal conceito afasta a

    prevalncia de interesses pessoais ou setoriais em relao aos interesses do

    Estado, tendo sido, alis, uma categoria de suma importncia quando da afirmao

    estatal nos primrdios da modernidade. Destarte, as razes de Estado so

    nitidamente instrumentais para a justificao dos atos da entidade estatal no cenrio

    internacional, haja vista que, sendo o Estado responsvel pelos valores sociais

    bsicos de segurana, liberdade, ordem, justia e bem-estar (JACKSON;

    SORENSEN, 2007, p.22), ele est de certo modo autorizado a defender a

    manuteno de tais valores para sua populao em face dos outros Estados,

    mesmo que isso implique no uso da fora. Cria-se assim o conhecido dilema de

    segurana, que o paradoxo pelo qual os Estados so tanto uma fonte de

    segurana quanto uma ameaa segurana dos seres humanos (JACKSON;

    SORENSEN, 2007, p.21).

    O ltimo conceito caracterizador da sociedade internacional moderna a ser

    abordado o de equilbrio de poder. Partindo de uma generalizao ou abstrao do

    que seria a configurao real da poltica internacional em um determinado contexto,

    a ideia de equilbrio de poder surge para colaborar com a interpretao de tal

    conjuntura. Desse modo, faz-se uma analogia das potncias como pesos sobre os

  • 28

    pratos de uma balana (WIGHT, 1985, p.135), na qual mentalmente extramo-las

    de seu contexto geogrfico e arrumamo-las de acordo com suas alianas e

    afinidades, conscientes da ideia subjacente de combinar seu peso moral com sua

    fora material (WIGHT, 1985, p.135). Por isso, o equilbrio de poder pode ser

    tambm denominado de balana de poder. Sobretudo, interessa ao entendimento

    desse conceito operacional da sociedade internacional moderna a noo de que ele

    uma doutrina e um arranjo pelo qual o poder de um Estado (ou grupo de Estados)

    controlado pelo poder compensatrio de outros Estados (JACKSON;

    SORENSEN, 2007, p.21). Nota-se assim que tal conceito visa cumprir

    importantssima funo na manuteno da ordem e da paz no panorama da

    sociedade internacional clssica.11

    Ainda no que se refere ao conceito em comento, em um raciocnio pelo qual

    os Estados procurariam efetivar os seus interesses to somente em termos de poder

    (perfazendo a aludida poltica de poder), o equilbrio ou balana de poder seria o

    nico meio eficaz para que a ordem e a paz fossem mantidas, haja vista que, nesse

    sentido, s o poder de um Estado (ou grupo de Estados) poderia frear o poder de

    outro(s) Estado(s), mantendo-se assim a estabilidade no cenrio poltico

    internacional. Dessa maneira, pode-se perceber que o sistema de equilbrio de

    poder se configura numa tentativa de estabelecer a paz nas relaes internacionais

    que pode ser denominada de conservadora (BEDIN, 2011, p.59). Entretanto, isso

    no significa que o cenrio internacional no tenha se modificado e albergado vrios

    sistemas especficos de equilbrio de poder com o decorrer do tempo,12 e que os

    Estados, como afirma Adriano Moreira, no tenham inclusive recorrido ameaa ou

    guerra para defender ou restaurar a balana dos poderes (1996, p.210).

    Portanto, a sistemtica do equilbrio de poder deu relevante funcionalidade

    sociedade internacional moderna. Isso pelo fato de que, haja vista essa sociedade

    no possuir um poder supranacional com o monoplio legtimo da violncia fsica

    11

    No se poder olvidar que, como afirma Eugenio Diniz, a ideia de equilbrio ou balana de poder bastante antiga, e pode ser remontada at Tucdides e a Histria da Guerra do Peloponeso, passando ainda por autores como David Hume (2007, pp.16-17). 12

    Existiu, segundo Bedin, no perodo da sociedade internacional clssica, pelo menos quatro grandes momentos polticos do sistema de equilbrio de poderes: o Sistema de Vestflia, o Sistema de Viena, o Sistema de Versalhes e o Sistema de Yalta (2011, p.58).

  • 29

    como ocorre no interior dos Estados, o sistema de equilbrio de poder seria a melhor

    maneira para manter a ordem, a segurana e a paz nesse panorama poltico, sendo

    mesmo a forma por excelncia de construo de um cenrio de paz em tal

    sociedade (BEDIN, 2011, p.12). preciso, no entanto, fazer a ressalva de que

    essa situao de paz pode ser considerada como precria, ou seja, ela sempre

    frgil e provisria (BEDIN, 2011), porquanto cada Estado possui, como afirmado,

    permisso para recorrer ameaa ou guerra no intuito de defender ou restaurar o

    equilbrio de poderes. O problema se torna ainda mais sensvel quando o conceito

    de equilbrio de poder operado com o fito de implementar interesses estatais

    particularistas, corrompendo o elemento teleolgico do conceito, fato muito comum

    no panorama da sociedade internacional clssica, no qual os Estados tomam as

    suas decises considerando principalmente os raciocnios caractersticos da poltica

    de poder (e das razes de Estado).13

    Esses foram trs conceitos operacionais importantssimos para um

    entendimento mais aprofundado a respeito da sociedade internacional moderna.

    Importa agora buscar descobrir se a expresso sociedade internacional realmente

    a mais adequada, ou se a condio internacional da modernidade seria mais bem

    designada por anarquia ou ainda por comunidade internacional. Em outras palavras,

    ao falar do panorama internacional da Era Moderna, o qual surgiu a partir do

    advento da entidade estatal e tem o Estado como o seu principal (seno nico) ator,

    seria melhor referi-lo como Anarquia, Comunidade ou Sociedade Internacional? Tal

    o questionamento a ser desenvolvido no prximo tpico.

    1.2 A Sociedade Internacional e sua Denominao: Comunidade, Sociedade ou

    Anarquia Internacional?

    Como j afirmado alhures, para o presente trabalho o perodo que vai dos

    tratados da Paz de Vestflia (1648) at o nascimento da Organizao das Naes

    Unidas (1945) e a Declarao Universal dos Direitos do Homem (1948) aquele

    13

    Assim que, hipoteticamente, determinadas potncias podem se utilizar do equilbrio de poder para ganhar posio de supremacia no sistema internacional, mesmo que afirmem estar se esforando por preservar tal sistema. Alis, o prprio Hedley Bull denota que, em nome desse princpio ou conceito, podem ocorrer violaes s noes corriqueiras de justia ao sancionar a guerra contra um estado cujo poder ameaa tornar-se preponderante, sem haver praticado qualquer transgresso legal ou moral (2002, p.108).

  • 30

    marcado pela sociedade internacional moderna (ou clssica). importante, dessa

    maneira, tentar apreender a melhor forma de se denominar tal perodo, isto , se

    mesmo correto cham-lo de sociedade internacional ou se, por outro lado, seria

    melhor design-lo por anarquia ou ainda por comunidade internacional.

    Antes de abordar tal questo, no entanto, importa ressaltar determinadas

    caractersticas de trs paradigmas ou perspectivas tericas relativas disciplina das

    Relaes Internacionais, denominadas de escola realista, escola idealista e escola

    inglesa. Isso se faz necessrio na medida em que a primeira se identifica com a

    noo de anarquia internacional, a segunda preconiza ser necessria uma evoluo

    do atual cenrio at o ponto em que este se torne uma verdadeira comunidade

    internacional na qual reine a situao denominada de paz perptua, e a ltima, a

    escola inglesa, identifica-se com a ideia de sociedade internacional.

    Iniciando pela escola realista, necessrio acentuar os seus principais

    predecessores, Nicolau Maquiavel14 e Thomas Hobbes.15 O primeiro afirmou a

    autonomia e a especificidade da esfera poltica e alegou que, no exerccio do poder,

    os fins justificam os meios (BEDIN, 2000, p.69). Alm disso, Maquiavel inspirou o

    conceito de razo (ou razes) de Estado, conquanto no tenha sido o autor da

    expresso, j que ela s foi consagrada definitivamente no famoso tratado de

    Giovanni Botero intitulado Della Ragion di Stato (1589) (CAMPOS BARROS, 2010,

    p.64). O segundo (Hobbes) trouxe tona o conceito de estado de natureza,16

    demonstrando a partir deste a necessidade de implementao do corpo poltico

    14

    Principalmente atravs de sua obra mais importante, intitulada O Prncipe (1513). 15 Cabe mencionar como a principal obra de Hobbes o conhecido Leviat (1651). 16

    Adverte-se que a ideia de estado de natureza aparece correntemente como mera hiptese lgica negativa, ou seja, sem ocorrncia real. uma abstrao que serve para justificar/legitimar a existncia da sociedade poltica organizada (STRECK; MORAIS, 2000, p.35). oportuno aludir tambm Joo dos Passos Martins Neto, o qual alega que no estado de natureza hobbesiano os ingredientes da vida do homem se configurariam em cada qual movido por desejos e medos inesgotveis, bens e recursos nem sempre abundantes, igual capacidade de luta, tendncia ao egosmo, crena nas possibilidades do confronto, liberdade sem limites, perigo eterno, desconfiana recproca, leis morais dbeis, leis civis inexistentes, direito de agir conforme as recomendaes do juzo particular, sede de poder, guerra de todos contra todos (2006, p.67).

  • 31

    estatal (Leviat), o qual no entender de Hobbes tem de ser o legtimo portador da

    unidade do poder ou do monoplio da violncia.17

    Entretanto, apesar da ordem interna que poderia ser obtida com o Estado,

    Hobbes no cr que tal ordem seria passvel de adaptao no que tange ao cenrio

    internacional, porquanto neste continuaria reinando a aludida conjuntura definida

    pelo conceito de estado de natureza, com os Estados permanecendo em uma

    situao de guerra perptua, numa contnua viglia de armas, com as fronteiras

    fortificadas, os canhes apontados para todos os pases que os cercam e dispostos

    a ampliar o seu territrio e a se apossar dos bens dos demais Estados (BEDIN,

    2000, p.104). Essas so as concepes mais importantes trazidas pelos

    predecessores da teoria realista da disciplina das Relaes Internacionais.18 No

    sculo XX, destacaram-se entre outros os seguintes tericos realistas: Hans

    Morgenthau, Raymond Aron, Edward H. Carr e Henry Kissinger.

    Nesse contexto, importa ao presente trabalho realar os pressupostos e os

    caracteres basilares da perspectiva realista. Partindo de algumas premissas bsicas

    a respeito da natureza humana, das relaes entre os Estados, bem como de um

    modo especfico de perceber a relao contida entre a poltica e o poder, os realistas

    afirmam que o homem um ser essencialmente mal e egosta; que as relaes

    interestatais so necessariamente conflituosas; que tais conflitos normalmente se

    resolvem por meio da guerra; que por consequncia os valores da segurana e da

    sobrevivncia estatal so tidos como preponderantes em relao aos valores e

    ideais pacifistas; e que, portanto, deve-se encarar com extremo ceticismo a ideia

    segundo a qual a vida poltica do interior dos Estados possa ser transposta para o

    cenrio internacional (JACKSON; SORENSEN, 2007). Alm disso, para o realismo,

    conquanto a moral exista, ela no est necessariamente ligada ao fenmeno

    poltico, sendo que a poltica

    17

    No dizer de Darcy Azambuja, para Hobbes, ante a tremenda e sangrenta anarquia do estado de natureza, os homens tiveram que abdicar em proveito de um homem ou de uma assemblia os seus direitos ilimitados, fundando assim o Estado (2001, p.91). Percebe-se, portanto, que Hobbes afirma um estado de natureza em que os homens estariam em constante situao de luta ou de guerra de todos contra todos, como ilustra o seu multicitado adgio o homem o lobo do homem. 18

    relevante mencionar tambm, como predecessor, o ateniense Tucdides, com o seu renomado e

    influente estudo sobre a Guerra do Peloponeso (conflito que vai do ano 431 ao ano 404 a.C.).

  • 32

    [...] internacional, como toda poltica, consiste em uma luta pelo poder. Sejam quais forem os fins da poltica internacional, o poder constitui sempre o objetivo imediato. Os povos e os polticos podem buscar, como fim ltimo, liberdade, segurana, prosperidade ou o poder em si mesmo. Eles podem definir seus objetivos em termos de um ideal religioso, filosfico, econmico ou social. [...] Contudo, sempre que buscarem realizar o seu objetivo por meio da poltica internacional, eles estaro lutando por poder (MORGENTHAU, 2003, p.49).

    Nota-se implcita a pungente separao que o realismo faz da esfera poltica

    em relao esfera moral, preconizando uma viso das relaes internacionais na

    qual vigora a preponderncia praticamente exclusiva do elemento poder.19 Alm

    disso, tambm podem ser elencadas as seguintes caractersticas bsicas do

    realismo em Relaes Internacionais: a) possui uma concepo estadocntrica, pois

    entende que s os Estados soberanos so os verdadeiros atores das relaes

    internacionais; b) afirma uma viso que individualiza a poltica interna da poltica

    externa, tornando uma independente da outra. Dessa forma, possvel fazer

    secundrios os princpios morais que norteiam a poltica interna (baixa poltica),

    dando prevalncia s questes de poltica externa concernentes ao poder e

    segurana nacional (alta poltica); c) assume um entendimento que configura o

    sistema internacional como essencialmente anrquico e conflitivo, haja vista a

    inexistncia de um poder central com o monoplio da violncia, vigorando assim no

    panorama internacional um verdadeiro estado de natureza nos moldes daquele

    indicado por Hobbes. Tal situao pode ser caracterizada como um estado de

    guerra constante de todos os estados contra todos os estados, em que o uso da

    fora e o recurso violncia um instrumento legtimo na defesa dos interesses

    nacionais, definidos a partir de uma poltica de poder e de uma viso estratgica da

    segurana individual de cada pas no cenrio internacional (BEDIN, 2000, p. 105).

    Cabe mencionar que o paradigma realista tido como o mais proeminente

    das Relaes Internacionais, podendo por isso ser denominado de clssico, e tendo

    o paradigma do idealismo na qualidade de seu principal antagnico.20 E a respeito

    19

    Em outras palavras, a perspectiva realista atesta que enquanto na poltica domstica a luta pelo poder governada e circunscrita pelo molde das leis e instituies, a sociedade internacional governada pelos interesses nacionais dos Estados e pela luta pelo poder (BEDIN, 2011, p.40). 20

    oportuno relatar, ademais, que o idealismo teve um breve perodo de proeminncia, ocorrido nos

    anos do entre-guerras (1919-1939).

  • 33

    do idealismo que se passa agora a discorrer, comeando pelos predecessores do

    modelo. Em tal sentido, Shiguenoli Miyamoto traz baila o filsofo italiano Marslio

    de Pdua, autor da obra Defensor Pacis (O defensor da Paz), de 1324, a qual trata

    de como a paz civil existe e se mantm, alm das causas da luta e a melhor forma

    de bloque-la e suprimi-la. Nessa obra, o autor italiano igualmente expe a sua ideia

    de comunidade perfeita (a civitas), com forte influncia de A Poltica (Aristteles),

    indicando que o ser humano procura espontaneamente por uma vivncia pacfica, j

    que possui, segundo o autor, propenso natural vida em comum (MIYAMOTO,

    2000). Alm de Marslio de Pdua, podem tambm ser citados como predecessores

    da perspectiva idealista o ingls Thomas More, o Abade de Saint-Pierre, o jurista

    holands Hugo Grotius e o filsofo prussiano Immanuel Kant. A seguir, ser feita

    uma breve explanao concernente a cada um deles.

    Principiando por Thomas More, sua principal obra intitula-se A Utopia (1516),

    que poderia ser caracterizada como diametralmente oposta obra O Prncipe, de

    Maquiavel. Em A Utopia, so tecidas consideraes axiolgicas a partir da descrio

    de uma ilha imaginria, na qual reinaria a paz, as leis e as instituies, sendo a

    guerra considerada uma verdadeira abominao - em que pese a ressalva a respeito

    da questo da guerra justa, a qual os utopianos poderiam levar a cabo em caso de

    defesa prpria ou para fazer justia aos amigos invadidos (MIYAMOTO, 2000).

    Quanto ao Abade de Saint-Pierre, sua obra de maior relevncia denomina-se

    Projeto para tornar perptua a paz na Europa (1713), a qual passou praticamente

    despercebida nos primeiros anos, ganhando certa visibilidade somente a partir da

    anlise redigida por Jean-Jacques Rousseau. Pode-se mesmo afirmar que ela s

    alcanou mrito visvel no final do sculo XX, tentando-se estabelecer sua

    contribuio para a histria do pensamento poltico e identificando-se a influncia

    exercida, muitas vezes inconscientemente, na construo das instituies

    internacionais, conforme alega Ricardo Seitenfus (2003, p.XXIV). Vale lembrar que

    o objetivo central da obra, de acordo com Miyamoto, era

    [...] compreender as primeiras fontes do mal e, por reflexes prprias, verificar se esse mal estava ligado natureza das soberanias e dos soberanos e se era absolutamente sem soluo. Dispunha-se a escavar o assunto para descobrir os meios praticveis para alcanar sem guerra todos os diferentes futuros, entre eles, a Paz Perptua (2000, p.29).

  • 34

    Dessa maneira, ao longo de setecentas pginas, entre outros pontos o Abade

    procura reforar a idia de formar uma sociedade permanente de todas as

    soberanias crists da Europa (MIYAMOTO, 2000, p.30). Revela-se assim a

    atualidade de sua obra, pois, de modo similar Unio Europeia e demais

    organizaes intergovernamentais contemporneas, ela configura-se em um

    esforo para enquadrar a moral e a poltica dos Estados, mormente os mais

    influentes, em parmetros jurdicos que venham a proteger os mais fracos,

    concedendo maior previsibilidade s relaes internacionais (SEITENFUS, 2003,

    p.XXXIV).

    Acentua-se agora o holands Hugo Grotius. A influncia deste deveras

    marcante para o idealismo, principalmente atravs de sua obra O Direito da Guerra

    e da Paz (1625). Em tal texto, Grotius aborda o que guerra justa e injusta, quais

    so as causas, como se comportar de frente a tais situaes, e como alcanar e

    manter a paz (MIYAMOTO, 2000, p.31), entre outros questionamentos. Todavia,

    preciso frisar que Grotius pode ser classificado muito menos como um pacifista21 e

    muito mais como um jurista, porquanto a proposta de seus estudos enquadra-se na

    busca pela normatizao do comportamento dos indivduos, dos soberanos e dos

    estados, feitos utilizando-se basicamente os instrumentos do Direito (MIYAMOTO,

    2000, p.31).

    De qualquer modo, segundo Bertrand Badie, Grotius proclama uma moral

    humanista que anuncia um direito internacional que deixa de ser a projeco da

    simples vontade soberana dos Estados (1999, p.27). So consolidadas as bases

    tericas para uma exposio sistemtica do jus gentium, ou direito das gentes,

    encontrando-se elementos tendentes a conduzir, de acordo com Arno Dal Ri Jnior,

    a uma doutrina que valorizasse a paz como bem fundamental da sociedade

    internacional (2003, p.118). Nesse contexto, o mencionado jus gentium foi definido

    pelo autor holands como um produto da associao humana, que se manifesta

    21

    Deve-se atentar para o fato de que a expresso pacifismo somente surgiu no incio do sculo XX, cunhada por mile Arnaud.

  • 35

    primordialmente por meio dos tratados, estabelecendo normas entre os Estados

    (DAL RI JNIOR, 2003, p.120).

    Grotius apresenta assim a comunidade internacional como independente,

    no podendo ser submetida a nenhuma outra autoridade. As normas que a regem,

    segundo ele, devem ser emanadas pela prpria comunidade, iluminada pela justa

    razo (DAL RI JNIOR, 2003, p.122). Atravs dessa nova concepo, a

    comunidade internacional passa a adquirir em si um valor eminente, assim como os

    seus interesses passam a ser superiores aos dos Estados que a constituem (DAL

    RI JNIOR, 2003, p.122).22

    Partindo agora para o estudo de outro pensador de extremo relevo, ressalta-

    se o filsofo iluminista Immanuel Kant, tendo aqui relevncia suas ideias a respeito

    da instituio da paz perptua entre os Estados. Na obra Sobre a Paz Perptua

    (1795), Kant aborda questes nas quais ele demonstra maior preocupao com o

    cenrio internacional e com as relaes entre os Estados. interessante (...) o fato

    de a obra ter sido elaborada (...) na forma de um imaginrio tratado internacional,

    voltado a concretizar um antigo sonho europeu, o de conseguir chegar a uma

    condio estvel de paz no Velho Continente e no resto do planeta (DAL RI

    JNIOR, 2003, p.140). Para Kant, esclarece ainda Dal Ri Jnior, o Direito

    Internacional (Volkrecht) s vigoraria enquanto no se consolidasse o preceituado

    em seu tratado, dado este ser mais completo e exaustivo, com recursos mais aptos

    produo de uma efetiva sociedade cosmopolita.

    Dividido em duas partes, o aludido tratado contm na primeira os artigos

    definidos pelo autor como preliminares, redigidos no intento de remover as

    circunstncias que o filsofo prussiano considera possam favorecer o

    desencadeamento das guerras (DAL RI JNIOR, 2003, p.141). Na segunda parte,

    contendo os

    [...] artigos chamados pelo autor como definitivos, pode-se constatar, pela maneira como estes vm redigidos e pelo contedo dos mesmos, um claro

    22

    Por esse prisma, a teoria grociana no se coaduna com o elemento razes de Estado, haja vista as razes de Estado permitiriam, por exemplo, que as normas do jus gentium fossem ignoradas por um determinado espao de tempo, colocando em risco a segurana da paz e do prprio Estado (DAL RI JNIOR, 2003, p.123).

  • 36

    desejo de Kant em lanar as bases para a edificao da paz perptua segundo um modelo terico fundamentado em pressupostos racionais (DAL RI JNIOR, 2003, p.141).

    Da anlise dos artigos preliminares, chega-se constatao geral de que a

    guerra somente poderia ser considerada como um instrumento vlido no estado de

    natureza, no qual no h legalidade que solucione as controvrsias. Assim, seu

    projeto cosmopolita abrange um contrato que teria o condo de proibir a guerra

    como maneira de dirimir os conflitos. J os artigos definitivos so trs. O primeiro

    preconiza que a constituio civil de todo Estado deve ser republicana. O segundo

    declara a teoria sobre o federalismo de Estados livres. E finalmente o terceiro artigo

    definitivo preceitua que o Direito cosmopolita deve se limitar s condies de

    hospitalidade universal (DAL RI JNIOR, 2003, p.148), o que no exprime

    filantropia, de acordo Immanuel Kant, mas sim o direito albergado pelo estrangeiro,

    por conta de sua chegada terra de um outro, de no ser tratado hostilmente por

    este (2008, p.37).

    Percebe-se assim a importncia de Kant como predecessor do paradigma

    idealista das Relaes Internacionais, pois, como denota Soraya Nour (2004), ele

    ligou o problema da paz ao da ordem ou organizao internacional e,

    consequentemente, ao direito, praticamente fundando a filosofia da paz. Vale

    colocar em relevo, nesse nterim, que Kant condena o uso de mtodos escusos,

    desonrosos, como lanar mo de assassinos; isso porque possivelmente mgoas

    permanecero e prejudicaro, destarte, a confiana recproca que deve permear as

    relaes entre os diversos agentes do sistema internacional (MIYAMOTO, 2000,

    p.33).

    Esse foi um breve histrico a propsito dos principais predecessores do

    idealismo em Relaes Internacionais. Cabe citar alguns pensadores idealistas

    propriamente ditos, os quais se destacaram no sculo XX, e que foram, entre outros,

    os seguintes: Alfred Zimmern, Woodrow Wilson e Norman Angell. Frisa-se que a

    disciplina das Relaes Internacionais surge somente aps a Primeira Guerra

    Mundial, com o idealismo configurando uma reao aos horrores de tal conflito.

    Nesse sentido, o idealismo perdurou, como afirmado, na qualidade de principal

    corrente das Relaes Internacionais somente nos anos do entre-guerras, tendo

  • 37

    sido depois acusado de ter provocado a ecloso da Segunda Guerra Mundial, como

    trouxe tona Edward H. Carr em sua obra Vinte Anos de Crise: 1919-1939 (BEDIN,

    2001). No cabe aqui adentrar em tal problemtica, sendo oportuno aduzir apenas

    que a perspectiva idealista manteve-se quase sempre em um plano inferior aps o

    segundo ps-guerra, mesmo em face das exigncias da paz em virtude da iminncia

    de destruio total tornada possvel pelos armamentos nucleares.

    No que concerne aos pressupostos e caracteres principais da perspectiva do

    idealismo, necessrio ressaltar Reinaldo Dias, o qual alega que enquanto a

    doutrina realista procura limitar-se a identificar a situao real, concreta, tal como se

    apresenta, e no como deveria ser, sem a preocupao com reformas idealizadas

    que acredita no serem possveis (2010, p.20), a concepo idealista busca

    transformar a realidade internacional atravs de propostas que visam estruturao

    do mundo (DIAS, 2010, p.20). Apresenta assim um carter jurdico-poltico em regra

    propenso a transpor para o panorama internacional a conjuntura institucionalizada

    contida no interior dos Estados.

    Desse modo, a diferena fundamental entre idealismo e realismo em

    Relaes Internacionais se refere ao fato de que o primeiro tem a paz na qualidade

    de seu valor-vetor basilar, preocupando-se assim com formulaes terico-prticas

    que possibilitem a obteno da paz atravs do direito. J o segundo prioriza o valor-

    vetor segurana, a ser garantido atravs da luta pela obteno e manuteno do

    poder, luta que conforma a condio por excelncia das unidades estatais no

    cenrio internacional para a doutrina realista.23

    Nesse contexto, faz-se necessrio mencionar as premissas bsicas da

    perspectiva terica do idealismo, e que so, segundo Bedin, as seguintes:

    a) a natureza humana no movida, nica e exclusivamente, por instintos de dominao e de licenciosidade; ao contrrio, os instintos originais do homem so bons, positivos e caminham na linha da sociabilidade

    23

    Isso porque os realistas, ao taxarem o cenrio internacional como anrquico e a natureza humana como essencialmente m e egosta, no se inclinam pela paz que pode ser obtida atravs da confiana, mas sim pela prudncia tendente segurana, tornando as propostas idealistas semelhantes a sonhos ingnuos e irrealizveis, ao menos sem uma mudana brusca no que o realismo acredita ser a natureza humana e o panorama internacional (BEDIN, 2011).

  • 38

    democrtica do ser humano e, por isso, se for permitido que prevaleam, haver condies de se estabelecer a paz entre as naes; b) h formas de sociedades, como a democrtica, que induzem a um comportamento internacional eminentemente pacfico e que, portanto, nem sempre o sistema internacional pode ser caracterizado como um estado de guerra de todos contra todos; c) possvel construir instituies de abrangncia mundial e regras e preceitos tico-jurdicos universais, que possam dar estabilidade s relaes internacionais e disciplinar, de forma cada vez mais slida e efetiva, a convivncia entre os diversos Estados soberanos (2001, pp.220-221).

    Se para o realismo vige uma situao caracterizada pelos jogos de soma-

    zero, em que os interesses dos Estados no possuem pontos de convergncia, pois

    o que beneficia a um automaticamente prejudica a outro, para o idealismo as

    divergncias entre os Estados podem ser mediadas de maneira institucional, abrindo

    caminho para que tendncias integrativas e pacficas sejam implementadas. nesse

    sentido, alis, que Miyamoto alega ser o idealismo predisposto a convencer os

    diversos agentes de que em um mundo onde imperem a igualdade, a justia e o

    respeito s normas internacionais todos s tero a lucrar, eliminando-se, portanto,

    os jogos de soma-zero (2000, p.53).

    Aps esse sucinto transcurso pelo idealismo, interessa neste momento

    tracejar alguns pontos acerca da escola inglesa das Relaes Internacionais,

    tambm conhecida como teoria da sociedade internacional.24 Nesse sentido,

    indicando os principais expoentes da perspectiva em comento, cabe mencionar

    Martin Wight e Hedley Bull. Sem a pretenso de fazer um estudo aprofundado a

    respeito de tais autores, oportuno referendar que o primeiro, segundo Martin

    Griffiths (2004), preconiza que o objeto central de anlise da teoria internacional

    deve ser a sociedade internacional, do mesmo modo que o objeto principal da teoria

    poltica o Estado. Sendo assim, a principal pergunta que se deve fazer em teoria

    internacional : o que sociedade internacional? A partir desse questionamento,

    Wight declara a existncia de trs tradies para a teoria internacional, tendo por

    base as obras de Maquiavel, Grotius e Kant, as quais, dentro dessa perspectiva,

    inserem-se respectivamente nas tradies realista, racionalista e revolucionista.

    24

    Vale lembrar que as ideais principais na configurao dessa corrente surgiram no Reino Unido durante os anos da dcada de 1950 (DIAS, 2010, p.30).

  • 39

    Segundo Jackson e Sorensen (2007), a tradio realista da escola inglesa

    das Relaes Internacionais enfatiza o aspecto da anarquia internacional; a tradio

    racionalista enfoca o intercurso e o dilogo internacional; e a tradio revolucionista

    acentua a unidade moral internacional, preconizando uma comunidade mundial de

    seres humanos para alm dos Estados e das relaes interestatais. As trs

    tradies, para Wight, no estariam isoladas umas das outras, mas sim em uma

    constante conversao, pois todas se mostrariam igualmente necessrias a um

    entendimento mais equilibrado das relaes internacionais. Todavia, cabe afirmar

    que h uma tendncia dos tericos da sociedade internacional de prestarem mais

    ateno ao racionalismo moderado grotiano (JACKSON; SORENSEN, 2007,

    p.204). Isso torna clara a razo pela qual a escola inglesa admite a existncia de

    uma sociedade internacional acima dos elementos anarquia e comunidade,

    posicionando-se em uma espcie de meio termo entre os j abordados paradigmas

    do realismo e do idealismo.25

    Na mesma linha, o segundo autor mencionado, Hedley Bull, sustenta haver

    uma sociedade internacional na qual os Estados, mesmo que no admitam a

    existncia de um poder superior, no estariam contudo em uma situao tal que

    possa ser caracterizada simplesmente por anarquia. Dessa forma, os Estados se

    encontrariam to somente em uma sociedade sem governo, semelhante situao

    dos indivduos no estado de natureza preconizado por John Locke,26 panorama

    muito distante da total ausncia de ordem vigente no estado de natureza hobbesiano

    (BULL, 2002). Assim, Bull concebe a expresso sociedade anrquica, a qual indica

    haver uma sociedade internacional mesmo em uma situao de relativa anarquia,

    sendo a anarquia, enfatiza-se, muita mais prxima da perspectiva lockeana do que

    daquela preconizada por Hobbes. Dessa maneira, torna-se mais palpvel a razo

    pela qual o autor afirma o seguinte:

    25

    Nesse nterim, necessrio advertir que, em geral, a corrente idealista enxerga o elemento

    comunidade como um devir e no como uma realidade j posta, contrariamente ao que se poderia inferir do texto. 26

    Locke entende que o estgio pr-social e poltico dos homens, ou seja, sua vida em natureza, se apresentava como a sociedade de paz relativa, pois nele haveria um certo domnio racional das paixes e dos interesses (...); aqui o homem j se encontra dotado de razo e desfrutando da propriedade (vida, liberdade e bens); no h, todavia, na eventualidade do conflito, quem lhe possa pr termo para que no degenere em guerra e, ainda, tenha fora coercitiva suficiente para impor o cumprimento da deciso (STRECK; MORAIS, 2000, pp.35-36).

  • 40

    Existe uma "sociedade de estados" (ou "sociedade internacional") quando um grupo de estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade, no sentido de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto comum de regras, e participam de instituies comuns. Se hoje os estados formam uma sociedade internacional [...] porque, reconhecendo certos interesses comuns e talvez tambm certos valores comuns, eles se consideram vinculados a determinadas regras no seu inter-relacionamento, tais como a de respeitar a independncia de cada um, honrar os acordos e limitar o uso recproco da fora. Ao mesmo tempo, cooperam para o funcionamento de instituies tais como a forma dos procedimentos do direito internacional, a maquinaria diplomtica e a organizao internacional, assim como os costumes e convenes da guerra (2002, p.19).

    Assim, partindo do estado de natureza lockeano, Bull concebe uma sociedade

    internacional mesmo sem a existncia de um governo mundialmente

    institucionalizado e com monoplio da violncia, haja vista a sociedade anrquica

    albergar certo tipo de ordem ainda que no possua um governo centralizado. Cabe

    aqui a ponderao de Wight a respeito do conceito de anarquia, pois se ele significa

    to somente a ausncia de um governo comum, ento esta precisamente a

    caracterstica do cenrio internacional. Mas se anarquia significa a desordem

    completa, ento esta no uma descrio verdadeira das relaes internacionais

    (WIGHT, 1985, p.85).

    Pelo exposto, pode-se referir que a escola inglesa situa-se, como afirmado,

    num plano intermedirio entre os paradigmas realista e idealista, pois busca evitar

    as escolhas entre (1) o egosmo estatal e o conflito, e (2) a benevolncia humana e

    a cooperao (JACKSON; SORENSEN, 2007, p.197). Apesar de se aproximar do

    realismo ao concordar, segundo Williams Gonalves, que os Estados so os

    principais atores (2002, pp.60-61) no cenrio internacional, admite no entanto a

    existncia de interesses, regras, instituies e organizaes comuns criados pelos

    Estados para ajudar a constituir a interao entre eles (JACKSON; SORENSEN,

    2007, p.199).27

    27

    Importa apor a diferenciao entre sistema de Estados e sociedade internacional