SONHOS DE LIBERDADE, VIDAS TRAFICADAS
O fluxo de atenção/atendimento às vítimas brasileiras de tráfico de
pessoas encontradas/libertadas na Espanha*
* Este caso foi produzido no ano de 2007 por Gilberto Marcos Antonio Rodrigues, doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e Verônica Maria Teresi, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, com a colaboração de Maíra Rocha Machado, professora da FGV/EDESP. O caso integra a segunda rodada de casos da “Casoteca Latino-americana de Direito e Política Pública” (www.direitogv.com.br/casoteca). O financiamento deste caso foi propiciado por acordo de cooperação técnica celebrado entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV/EDESP. O projeto da Casoteca tem três objetivos: (i) fornecer um acervo de casos didáticos sobre direito e política pública na América Latina; (ii) estimular a produção contínua de novos casos por meio do financiamento de pesquisa empírica; (iii) provocar o debate sobre a aplicação do “método do caso” como uma proposta inovadora de ensino. Os casos consistem em relatos de situações-problema reais, produzidas a partir de investigação empírica e voltadas para o ensino. Evidentemente, não comportam uma única solução correta. A Casoteca permite uso aberto e gratuito de seu conteúdo, que é protegido por uma licença Creative
Commons (Atribuição-Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil). A licença pode ser acessada através do link: http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/br/.
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RESUMO – Sonhos de liberdade, vidas traficadas – A partir de quatro histórias reais,
os pesquisadores apresentam a narrativa de diversas situações e problemas que
envolvem o enfrentamento ao tráfico internacional de mulheres no eixo Brasil-Espanha,
em especial o atendimento às vítimas, desenvolvendo a temática em sua abrangência e
interdisciplinariedade, segundo a concepção de política pública amparada no tripé
prevenção-repressão-atenção às vítimas, com ênfase na cooperação internacional.
Palavras-chave: Enfrentamento ao tráfico de pessoas; tráfico internacional de
mulheres; relações Brasil-Espanha; cooperação Internacional; Direito Internacional.
ABSTRACT – Freedom’s dreams, trafficked lives – From the perspective of four true
stories, the researches introduce the various situations and problems related to the
policies against International Women Traffic in the Brazil-Spain axe, in particular the
attention given to victims; the issue is developed in its comprehensive and
interdisciplinary manner, according to the conception of a public policy which lays on a
triple structure composed by prevention-repression-attention to victims, focusing on
international cooperation.
Key-words: Policy against human traffic; International Women Traffic; Brazil-Spain
relations; International cooperation; International Law.
RESUMEN – Sueños de libertad, vidas traficadas – A partir de cuatro historias reales,
los investigadores presentan la narrativa de distintas situaciones y los problemas que
involucran el enfrentamiento a la trata internacional de mujeres en el eje Brasil–España,
bajo la perspectiva del atendimiento a las victimas, desarrollando la temática con
amplitud interdiscipinaria y conforme la concepción de política publica amparada en la
trípede prevención-represión-atención a las victimas, dando énfasis en la cooperación
internacional.
Palabras-llaves: Enfrentamiento a la trata de personas; trata internacional de mujeres;
relaciones Brasil-España; cooperación internacional; Derecho Internacional
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SONHOS DE LIBERDADE, VIDAS TRAFICADAS1
Maria Bonita tinha um sonho: deixar sua cidade em Minas Gerais para
conquistar um mundo melhor para si e seus três filhos. Zefa sonhava sair de sua vila em
Goiás para juntar dinheiro e comprar uma casa para ela, seu filho e sua mãe. Ana Luiza,
de São Paulo, alimentava um desejo: arrumar um emprego e pagar sua dívida da
Universidade. Kelly tinha um sonho diferente: deixar de ser cabeleireira no interior de
Pernambuco para se transformar na mulher que sua natureza masculina não permitiu.
Neste caso, serão relatadas as histórias de quatro brasileiras que tiveram o mesmo
destino: foram vítimas do tráfico internacional de mulheres e travestis na Espanha2.
Com nomes fictícios, cada caso relata uma situação real.3
Maria Bonita
Solteira, 23 anos, ensino médio incompleto, mãe de João, Vando e Gina, Maria
Bonita trabalhava como balconista de uma vendinha num bairro de uma cidade mineira.
Certo dia, sua prima Janaína, que há quatro anos havia deixado a cidade para morar na
Espanha – onde veio a casar-se com um espanhol – reapareceu para visitar a família na
cidade e foi procurá-la. “Maria Bonita – disse a prima – por que você não vem para a
Espanha?” Emprego fixo de atendente numa boate, pagamento em euros, uma vida
1 Caso produzido pelos pesquisadores Gilberto Marcos Antonio Rodrigues (coordenador), doutor em Relações Internacionais pela PUC-SP, professor do Programa de Mestrado em Direito da UNISANTOS, do Curso de Relações Internacionais da FASM, membro do GAPCon/UCAM e da International Law Association (ILA/Brasil); e Verônica Maria Teresi, mestre em Direito Internacional pela UNISANTOS (Bolsista CAPES), ex-bolsista da Fundación Carolina no Instituto Universitário de Desarrollo y
Cooperación de la Universidad Complutense de Madrid (IUDC-UCM) e Professora do Curso de Relações Internacionais da Fundação Lusíada (UNILUS). O financiamento do caso foi propiciado por um acordo de cooperação técnica celebrado entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas - FGV/EDESP. O projeto da Casoteca tem três objetivos: (i) fornecer um acervo de casos didáticos sobre direito e política pública na América Latina; (ii) estimular a produção permanente de novos casos por meio do financiamento à investigação empírica; (iii) provocar o debate sobre a aplicação do “método do caso” como uma proposta inovadora de ensino. Os casos consistem em relatos de situações problemáticas reais, produzidas a partir da pesquisa empírica e destinada ao ensino. Evidentemente, não admitem uma única solução correta. 2 Nota de estudo: Tráfico Internacional de Pessoas/Mulheres. 3 Importante esclarecer que cada um dos casos aborda uma história real, porém com nomes fictícios e com alguns elementos modificados para garantir o anonimato das pessoas envolvidas.
4
melhor... foi o que a prima ofereceu... Maria Bonita conta que balançou, não dormiu a
noite seguinte, chorou, rezou... ela admirava e confiava na prima. Afinal decidiu aceitar.
“Pior do que está não poderia ficar” – sentenciou para si mesma4.
A prima, então, deu as coordenadas como quem dá ordens: tem que tirar
passaporte, arrumar o cabelo, comprar roupa e uma mala. O dinheiro para pagar essas
“necessidades” é oferecido pelo dono da boate5, que emprestará o dinheiro, a ser
descontado dos salários, em parcelas.
Na polícia, Maria Bonita foi tirar o primeiro passaporte de sua vida. O agente
federal, desconfiado, indaga mineiramente se a moça vai visitar algum parente, e obtém
a resposta: “Vou sim senhor, minha prima”. Maria Bonita reúne elementos presentes no
perfil geral de vítimas de um dos crimes que mais cresce entre mulheres brasileiras,
segundo mostram as pesquisas feitas no Brasil6. Baixa escolaridade, faixa etária... a
polícia federal, mesmo suspeitando que Maria Bonita poderia estar sendo vítima de um
crime, nada pôde fazer naquele momento. Todos os brasileiros têm o direito
constitucional de solicitar e receber um passaporte.7
O desembarque em Paris surpreende Maria Bonita. Tinham combinado que
iriam para a Espanha. Mas a prima esclarece que tinha um assunto a resolver na França
e que, em seguida, iriam direto para a Galícia8. No setor de imigração, estrangeiros
fazem longas filas aguardando sua vez de explicar a razão de seu ingresso no território
europeu. Janaína fala em francês com a policial de fronteira, mostra seu passaporte de
residente na Espanha e explica que a prima veio passear e visitar sua família. A policial
determina que as duas deverão se dirigir a uma ala reservada para revista de bagagem.
Malas minuciosamente revistadas, cães farejadores, corpos apalpados e perguntas sobre
ingestão de remédios. Vinte minutos depois, ambas estão liberadas para ingresso na
União Européia9.
4 Glossário: Aliciamento e Recrutamento. 5 Glossário: Boates / Clubs (Espanha). 6 Nota de estudo: Pesquisa Brasileira sobre Tráfico de Pessoas/Pestraf. 7 Glossário: Passaporte: Direitos e Obrigações. 8 Glossário: Rotas de Tráfico. 9 Nota de estudo: Ingresso e Permanência em Território Estrangeiro.
5
Na chegada a Santiago de Compostela, não há tempo de ver a cidade. Vão direto
para a boate, chamada de club na Espanha. Janaína se despede da prima e teria
prometido que voltariam a se encontrar em breve. Dentro do club, Maria Bonita entrega
seu passaporte e seus pertences para Soledad, a gerente da boate. Mais um crime se
anuncia.
Trancada num quarto com janela coberta, sem comunicação, sem notícias, Maria
Bonita lembra que não via a hora de conhecer o club, saber o que iria fazer, ansiosa por
aprender seu novo trabalho. Quer telefonar para seus filhos, sente imensa saudade deles
e dizia para si mesma “é por eles que eu estou aqui”.
Ao anoitecer, Maria Bonita recebe ordens de tomar banho e vestir uma roupa
que lhe dão. Mini-saia branca, blusa vermelha transparente...é levada para uma sala com
outras moças, que a olham com misto de curiosidade e desdém... Maria Bonita não
entende... o que terá que fazer? Uma das moças fala em castelhano com ela e teria lhe
dito em tom irônico e provocador que ela era “guapa” e que teria “mucho trabajo”.
Inicia-se uma das noites mais longas da vida de Maria Bonita.
Os dias e noites que se seguiram foram de confusão, desespero e dor. Maria
Bonita descobriu que estava presa numa casa de prostituição10, sem documento, sem
opção, sem vontade própria...11. De início, chorou desesperadamente, gritou, chamou
pela prima... A gerente do club, Soledad, arrastou-a para um quarto e lhe fez ver que se
não trabalhasse para pagar a dívida da passagem e os gastos do clube, nada iria melhorar
para ela. Além disso, o destino dos filhos passa a ser usado como forma de
intimidação”12.
O relato é difícil: o mundo se desfez na frente de Maria Bonita. Uma das
companheiras lhe emprestou uns comprimidos para ela tomar e assim poder relaxar
durante o trabalho. Maria Bonita tomou um, tomou outro e, quando se deu conta, já
estava viciada naquelas bolinhas que a desconectavam da obrigação de se entregar a
10 Glossário: Prostituição no Brasil e na Espanha. 11 Glossário: Cárcere Privado. 12 Glossário: Ameaça.
6
vários homens por dia, por noite. Ela já não se sentia uma mulher, mas uma coisa, um
objeto que dava prazer para os clientes que a consumiam.
Semanas depois, Soledad diz a ela que trabalhará no balcão da boate, para atrair
mais clientes e ajudar a vender bebidas a eles. A ameaça aos filhos é sempre recordada.
O universo de Maria Bonita se restringe ao espaço da boate e aos quartos onde atende os
clientes. Aos poucos se “acostuma” e se “adapta” à situação adversa.
Certa noite, Soledad permite a entrada de representantes de uma ONG na boate,
para orientar as moças a não contrair doenças sexualmente transmissíveis (DST)13.
Maria Bonita é abordada e recebe camisinhas e um folheto explicando como se
prevenir. Explicam-lhe, também, que pode fazer um registro no Ayuntamiento
(Prefeitura) para ter direito à saúde gratuita, e acesso à atenção ginecológica14. De
maneira furtiva, uma das moças da ONG a convida para visitar um pessoal que pode
ajudá-la.
Passado ano e meio de sua internação no club, Maria Bonita obteve liberdade
para ir à cidade, mas seu passaporte continuava retido e seu visto15 já expirara há muito
tempo, o que a torna uma indocumentada16.
Numas de suas idas à cidade, é levada por uma colega do club a uma casa de
atendimento a mulheres. Maria Bonita descobre que foi vítima de uma série de crimes;
que tem a direito a retornar a seu país e a recuperar sua dignidade, sua liberdade e sua
vida.
Porém, depois de tudo, como retornar ao Brasil? Viciada em drogas, humilhada
e envergonhada pelo que fez, sem perspectiva de emprego, se voltar, Maria Bonita está
decidida a trazer seus filhos para a Espanha e seguir sua vida em Compostela.
Porém, uma situação inesperada muda o curso da vida de Maria Bonita. A
polícia espanhola realiza uma redada (batida)17 no clube e registra flagrante de um tipo
13 Glossário: DST/AIDS. 14 Nota de estudo: Registro municipal/empadronamento na Espanha. 15 Glossário: Visto. 16 Nota de estudo: Ingresso e permanência em território estrangeiro.
7
de exploração de mulheres. Maria Bonita e outras estrangeiras em situação irregular18
são levadas para a delegacia de polícia, onde é iniciado o procedimento de expulsão19. A
polícia informa ao consulado brasileiro que uma brasileira será deportada20. Maria
Bonita continua recebendo apoio da ONG, com orientação psicológica e jurídica, além
de ser acolhida numa casa de apoio. Como vítima de vários crimes, sua situação é de
vulnerabilidade, não pode ser tratada como imigrante irregular, demanda cuidados
especiais, para que seu quadro psicossocial não se agrave.
Àquela altura, o que restará do sonho de Maria Bonita em conseguir sua
realização na Espanha? Pouco, mas a esperança de reconstruir sua vida ressurge, ela
voltará a ver os filhos em breve. No dia da repatriação de Maria Bonita, os jornais de
Compostela estampam matéria de capa sobre a descoberta de uma rede internacional de
tráfico. Uma brasileira de nome Janaína foi presa junto com outros comparsas...21
17 Glossário: Operações policiais – Batidas, Redadas. 18 Ver nota 16: Ingresso e permanência em território estrangeiro 19 Ver nota 16: Ingresso e permanência em território estrangeiro. 20Glossário: Assistência consular a nacionais no exterior. Papel dos consulados 21 Nota de estudo: Quando a vítima se torna traficante.
8
Josefa (Zefa)
Josefa, conhecida como Zefa, solteira, 25 anos, ensino fundamental completo,
filha de Joana, mãe de Mateus, trabalhava numa loja de conveniência em Uruaçú, no
interior de Goiás, e sonhava em comprar uma casa para ela, seu filho e sua mãe. Além
disso, começara a cursar o ensino médio noturno, pois achava que o estudo lhe
possibilitaria assumir outras funções no trabalho.
Amiga de infância, Cidinha apareceu num certo domingo em que Zefa estava
escalada para trabalhar. A moça havia retornado da Espanha, depois de três anos
vivendo lá, e iria dar uma festa para a família e os amigos – Zefa foi convidada,
também.
No dia da festa, Cidinha e Zefa recordaram os bons momentos vividos na época
da adolescência. Cidinha falou de seu trabalho na Espanha, lembrou dos tempos difíceis
passados no início, comentou que o trabalho era bastante difícil, além do medo de ser
encontrada pela polícia espanhola, uma vez que inicialmente estava sem documentos de
residência (mas não revelou que havia tido um relacionamento na Espanha, do qual
resultou um filho, que lhe possibilitou a permanência na Espanha). Disse, com grande
convicção que, com todas as dificuldades, valia a pena voltar e continuar trabalhando,
pois estava conseguindo viver com dignidade, mandar dinheiro para sua mãe e pagar os
estudos do filho.
Zefa ouviu atentamente e desabafou como estava sendo difícil sua vida, o
trabalho precário, o estudo sacrificado, as despesas que não paravam de crescer com o
filho e os remédios da mãe. Cidinha disparou: “Por que não vem trabalhar na Espanha?
As brasileiras sempre conseguem trabalho!”
No dia seguinte, as duas saíram para conversar e Cidinha abriu o jogo sobre o
trabalho fácil na Espanha. Zefa rapidamente respondeu que não poderia trabalhar como
prostituta. Nunca tinha feito nada assim e morreria de vergonha de sua mãe e de seu
filho. Cidinha diz que se ela mudasse de idéia que a avisasse, pois ficaria na cidade mais
uns 15 dias e depois retornaria à Espanha.
9
A proposta de ir à Espanha, ao mesmo tempo absurda, era bastante tentadora.
Não seria uma forma rápida e segura de conseguir comprar uma casa, de garantir a
educação do filho e o tratamento de saúde da mãe?
Zefa procurou Cidinha. Esta lhe disse que poderia conseguir um trabalho na
Espanha, sua passagem seria paga pelo dono do local onde ela trabalharia. Disse que no
início era difícil, mas que ela não se arrependeria. Zefa acaba decidindo largar tudo e
tentar a vida na Europa22. Para a mãe e o filho, Zefa conta que irá trabalhar como
garçonete, num bar.
Com o passaporte de Zefa expedido, Cidinha prepara a viagem das duas à
Espanha. Seguirão diretamente via Madri, é período de temporada alta na Europa e o
fluxo de pessoas está intenso.23 Na chegada, com reserva feita em hotel de Madri e a
indicação de residência de Cidinha na cidade de Gijón, as duas entram sem problemas.
Chegando a Gijon, Cidinha apresenta Zefa a Juan, dono de um piso24. Cidinha
é levada ao clube onde trabalhava e Zefa é encaminhada a um piso, que mais parece um
apartamento comum. Juan recolhe o passaporte de Zefa. Cidinha nunca mais será vista.
No piso, havia mais ou menos dez mulheres, de distintas nacionalidades, tais
como paraguaias, colombianas e outras brasileiras25. Juan apresenta a encarregada do
local, chamada Pilar, explica à Zefa as regras do lugar – bastante rígidas, incluindo a
proibição de sair sem autorização26 – e informa que sua dívida, contraída com a bolsa de
viaje27 era de três mil euros. Todas as despesas com alimentação, estadia seriam
debitadas dos ganhos de Zefa. Cada programa com cliente custaria em média 50 euros,
dos quais metade ficaria com o dono do piso28.
Zefa fez as contas e conclui que sua dívida era muito alta e que teria que
trabalhar muito para pagá-la. Porém, o pior ainda estava por vir.
22 Nota de estudo: Diferença entre tráfico e migração. A questão do consentimento 23 Nota de estudo. Controle de Imigração da FRONTEX. 24 Glossário: Pisos 25 Nota de estudo. Dados sobre número de latinas na Espanha exercendo prostituição. 26 Glossário: Cárcere Privado. 27 Glossário: Bolsa de viaje (bolsa de viagem). 28 Glossário: Rufianismo (Exploração da prostituição).
10
Menos de cinco horas da chegada de Zefa ao apartamento em Gijón, toca o
interfone. Um homem entra e vai diretamente para uma sala, que ficava ao final do
apartamento. Todas as mulheres começaram a se arrumar e, uma a uma, entram na sala
onde está o indivíduo. Cada qual entra e se apresenta e, em seguida, sai. A escolhida
foi...Zefa! Era mercadoria nova e pelo programa obteve sessenta euros, metade dos
quais ficou com Pilar.
Assim se passaram meses e meses. O cliente chegava, ficava numa sala. As
mulheres desfilavam e ao final uma ou duas delas eram as escolhidas para aquele
programa. Os clientes chegavam ao piso por meio dos inúmeros anúncios feitos nos
classificados de jornais espanhóis de circulação. Os anúncios eram pagos pelas próprias
mulheres, assim como sua alimentação, limpeza do apartamento e o aluguel.
Como todas elas eram obrigadas a residir no local, ficavam disponíveis 24
horas por dia e não tinham qualquer margem de escolha dos clientes29. Outras regras
que deveriam cumprir à risca incluíam não permanecer mais de 30 minutos com cada
homem.
O apartamento recebia em média trinta homens por dia, o que não era muito
comparado com outros pisos, conforme contou certa vez Marina, uma colombiana que
trabalhava com Zefa. Marina já havia sido transferida para outros dois pisos mantidos
por Juan. Dizia que Juan sempre as alternava de local, para dar a sensação aos clientes
de que sempre tinha mulheres novas nos locais. Mais cedo ou mais tarde, Zefa também
seria transferida.
Certo dia, Carmen, uma paraguaia que ali também trabalhava, pediu
autorização para Pilar para fazer um exame médico, pois imaginava haver contraído
uma doença sexualmente transmissível (DST). Amiúde, Carmem topava manter
relações sem preservativo, para ganhar mais nos programas. Juan não autorizava a
entrada de ONG´s que distribuíam camisinhas e davam orientação sexual às mulheres,
29 Glossário: Regime análogo à escravidão.
11
pois não queria que ninguém de fora tivesse contato com as condições de trabalho e de
vida precárias de suas mulheres.
Pilar autoriza Carmen a ir ao médico, entretanto esta procura ajuda de uma
mulher de uma ONG que ela havia conhecido meses antes, quando ainda trabalhava em
um clube. Relata as condições de exploração vividas por ela e pelas suas companheiras
e acaba sendo convencida a fazer uma denuncia à polícia.
Feita a denuncia a polícia, Carmen fica protegida numa casa de acolhida da
mesma ONG30. Lá passa a ter assistência psicológica, jurídica e social. A polícia lhe
concede e garante a condição de testemunha protegida31.
A polícia espanhola inicia uma investigação a partir da denúncia de Carmen. O
adido policial espanhol em Brasília foi acionado; este, por sua vez, contata o
Departamento da Polícia Federal em Brasília para identificar uma possível rede de
tráfico de mulheres32.
Com indícios apurados da saída constante de mulheres da mesma região de
Zefa, em direção à Espanha, a polícia reúne elementos para realizar uma batida policial
no apartamento onde Zefa está. Até aquele momento, Juan, Pilar e nem mesmo as
mulheres que ali estavam imaginam que algo sucederia. Mas, reunindo provas
suficientes de que Juan explora mulheres sexualmente, resultado de uma rede de tráfico
de pessoas, a polícia espanhola obtém autorização judicial para entrar no apartamento.
A redada policial prende Pilar e declara Juan foragido. Todas as mulheres
encontradas no apartamento estão sem documentos e, pelo tempo que estão na Espanha,
seus vistos já estão vencidos, por isso a polícia abre um procedimento de expulsão para
cada uma delas33. A perícia feita nas mulheres constata que muitas foram sujeitas a
agressão e maus tratos.
30 Glossário: Casa de Acolhida. 31 Glossário: Testemunha Protegida. 32 Glossário: Adido Policial. 33 Glossário: Expulsão na Espanha (Deportação no Brasil).
12
Ao informar os respectivos consulados, obrigação internacional prevista no
Direito Consular, a polícia espanhola não especifica que as mulheres a serem expulsas
são vítimas de tráfico de mulheres. Os Consulados desconhecem sua condição de vítima
e as trata como imigrantes ilegais34.
Repatriada, Zefa passa por sérios problemas psicológicos decorrentes da
exploração sofrida. Desembarca no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São
Paulo, e é recepcionada pelas profissionais que atendem no Posto de Atendimento
Humanizado aos Migrantes35, que lhe oferecem auxílio. Zefa escuta, mas resiste a
assumir sua condição de vítima. Esta muito confusa e não sabe se quer ser ajudada. Sua
vergonha é imensa. Quer esquecer aqueles momentos vividos na Espanha. Seu sonho
havia fracassado.
Inicialmente o pessoal do Posto conversa com Zefa para saber o que ela queria
fazer: se voltar a Goiás ou permanecer um período em São Paulo. Zefa esclarece que
desejava voltar, mas que não queria que ninguém de sua família e de sua cidade
soubesse o que tinha acontecido com ela. Para lograr a volta de Zefa a Goiás, o Posto
inicia contato com as organizações da sociedade civil que fazem atendimento às vitimas
de tráfico no Estado. Além disso, procura auxílio de alguma empresa aérea para que
cedesse uma passagem para Goiânia.
A rede de atendimento às vitimas de tráfico que regressam ao Brasil ainda não
está devidamente articulada. Alem disso, não existe verba definida para financiar o
retorno das vítimas a seus lugares de origem. Depois de muitas tentativas, obtém-se a
passagem e o auxílio de uma organização que receberia Zefa em Goiás. É o início da
difícil etapa de reconstrução de laços e de esperança.
34 Glossário: Vítimas de tráfico (tratamento diferenciado, segundo o Protocolo de Palermo). 35Glossário: Posto de Atendimento e Política de Atendimento às Vítimas de Tráfico.
13
Ana Luiza
Separada, 26 anos, sem filhos, recém-formada em educação física e
desempregada. Ana Luiza não era muito diferente de outras mulheres paulistanas
preocupadas com o futuro e com as dívidas acumuladas pela falta de trabalho. No seu
caso, havia um empréstimo feito num banco privado para pagar o curso na Faculdade,
também privada.
Um dia, assistindo a um programa de televisão, Ana Luiza vê uma reportagem
sobre mulheres que vão à Espanha trabalhar como prostitutas. Percebe que elas ganham
muito dinheiro comparado com o que ela estava ganhando em seu trabalho informal,
apesar de imaginar a realidade dura e a situação de exploração daquelas mulheres.
Ana Luiza teve um insight e pensou consigo: “Eu sou esperta... essas coisas
não aconteceriam comigo se eu fosse trabalhar lá.”... Juntaria dinheiro, pagaria a dívida
e ainda conseguiria poupar para comprar um carro quando retornasse. Pensou em pedir
dinheiro emprestado às amigas e devolver na volta.
Ficou com essa idéia martelando na cabeça por um bom tempo, imaginando
como seria essa possibilidade. Até que um dia decidiu ir embora para a Espanha36. Mas
como iria conseguir trabalho? Lendo classificados na Internet, viu um anúncio para
mulheres interessadas em trabalhar num bar na Espanha. Entrou em contato. Disse que
tinha dinheiro para a passagem e que somente necessitaria do lugar para trabalhar.
Malandra, como se achava, fez questão de dizer que teria dinheiro para a passagem,
para demonstrar que não cairia nas garras de uma possível máfia de traficantes.
Contudo, as amigas também estavam sem dinheiro.
A suposta agência diz que o trabalho é para um bar na Espanha,
especificamente em Salamanca. Ana Luiza não tinha nem idéia de onde ficava esse
lugar, mas a proposta é tentadora. Pergunta se terá contrato de trabalho. A pessoa lhe diz
que, inicialmente, não: teria que trabalhar num período de experiência e, se preenchesse
os requisitos, ganharia um contrato definitivo.
36 Ver nota 2: Tráfico Internacional de Pessoas/Mulheres
14
A Agência adverte Ana Luiza da dificuldade de entrar na Espanha, pelos
controles da polícia de imigração e assim lhe passa uns contatos de hotéis para que ela
dissesse que tinha reserva e a instrui a dizer que estava indo a passeio na Espanha, por
aproximadamente 20 dias. Quando chegasse a Madri, estaria sendo esperada por uma
pessoa que a levaria até o bar. Sua moradia seria no próprio bar, por isso não deveria se
preocupar com nada.
Chegando a Madri, Javier esperava Ana Luiza. Pediu-lhe seus documentos,
para confirmar que era ela, e disse que necessitaria deles para regularizar sua situação
na Espanha. Ela não sabia exatamente onde era Salamanca e a viagem parecia não ter
fim.
Chegando ao bar, por volta das 10h30, Ana notou um silêncio abrumador. Na
entrada, um balcão (barra) de bebidas, paredes escuras, cheiro de cigarro impregnado.
Elena, a encarregada do local, a esperava. Imediatamente subiu umas escadas indicando
que Ana deveria segui-la.
Ao fim do corredor, uma porta, paredes com pintura antiga, um quarto frio,
cama, armário de duas portas, sem janelas. Ana entra. Elena lhe diz que deveria estar
pronta às 22h00. Fecha-se a porta e Ana se encontra sozinha. Está animada e ao mesmo
tempo preocupada. Aquele local parece-lhe diferente do que havia imaginado. Fica o dia
todo na espera e sente muita fome.
Às 22h00, Ana desce a escada e vê umas vinte mulheres no local. Será que
todas trabalham lá?
Sim, todas trabalham, mas por tempos determinados. Ana Luiza foi levada
para um clube de prostituição que funciona em sistema de plazas. 37
O dinheiro para a viagem fora emprestado pelo dono do club em sistema de
plazas. Ana Luiza achava correto ter que pagar e submeter-se às exigências feitas pelo
37 Glossário: Clubs em sistema de plazas.
15
dono do clube. Afinal de contas, ele é que possibilitara que ela viajasse para ganhar
dinheiro. Assim, ela tinha que respeitar as regras internas do clube: não demorar mais
do que meia hora com cada cliente, fazer com que eles lhe pagassem ao menos duas
bebidas, nunca fazer programas fora do clube sem consentimento do dono. Mesmo que
não existisse uma regra impondo que elas deveriam estar lá todo o tempo, se estivessem
certamente teriam trabalho e mais dinheiro... Além disso, o clube estava numa estrada
que ligava Madri a Salamanca, o que dificultava o acesso à cidade. Assim, sua interação
com o “mundo espanhol” se restringia ao contato que tinha com seus clientes. Ela não
saía do clube, comprava até mesmo roupas lá dentro, vendidas mais caro, além de pagar
uma diária pelo quarto onde dormia e trabalhava.
Após alguns meses, Ana Luiza conheceu um rapaz de 37 anos, Manolo, que se
tornou um cliente fixo. Arrumava um jeito de visitá-la, mesmo quando ela era
transferida de clube, a cada 21 dias. Ele acabava sabendo onde ela estava e ia ao seu
encontro, além do que passou a emprestar o valor que Ana devia por semana ao dono do
clube, para deixar de ter relações com outros homens.
Assim, os dois iniciam um relacionamento, sem o conhecimento do dono do
club. Manolo propõe a Ana Luiza sair do clube e morar com ele. Assume o resto do
valor da dívida que ela havia contraído com o dono do club, principalmente o valor da
passagem, paga-a e ela vai morar com ele. Manolo passa a ajudar Ana Luiza com o
pagamento das dívidas que ela tinha no Brasil também.
Ana Luiza e Manolo se casam na Espanha e ela obtém os direitos de cidadania
espanhola. Manolo está feliz com Ana Luiza; esta não está tão segura do que sente por
Manolo, mas está satisfeita em haver saído do club, ter quitado as dívidas e obtido os
papéis de residência. Agora pode ter acesso a trabalho formal na Espanha e, quem sabe,
até convalidar seu diploma de educação física.
16
Kelly
Marcio, nome de registro civil de Kelly, não era conhecido por ninguém. Kelly,
por sua vez, era uma figura bastante conhecida naquela cidadezinha do interior de
Pernambuco. Solteira, 20 anos, alimentava o sonho de poder se transformar na mulher
que sua natureza masculina não permitiu.
Sua crença no destino e sua amiga Karen, uma travesti brasileira mais madura
e experiente que vivia há muitos anos em Madri, abriram caminho para tentar a vida na
Espanha.
Kelly era consciente de que somente teria trabalho como profissional do
sexo.38 Trabalhava numa sauna de Madrid, nas proximidades da Calle Montera (um dos
principais pontos de prostituição de rua em Madri).
Kelly havia assumido uma dívida de cinco mil euros com Karen para poder
viajar: a famosa bolsa de viaje. Somente poderia deixar de trabalhar após o pagamento
desta dívida. Assim foi que Kelly permaneceu nessa sauna durante um ano. Seus
clientes eram homens de 30 a 60 anos. Kelly morava com Karen e com duas travestis
brasileiras em Madri, num apartamento na periferia daquela cidade.
Trabalhava durante o dia todo e muitas vezes até as altas horas da noite. O
trabalho nas saunas funciona durante todo o dia. Além disso, Kelly sabia que quanto
mais trabalhasse, mais rapidamente poderia pagar todo o valor devido a Karen e, assim,
poder controlar sua própria vida e guardar dinheiro para realizar seu sonho. Pelo menos
esse era seu pensamento inicial. Não sabia, ao certo, as complicações do trabalho sexual
nas ruas.
Passado um ano, Kelly conseguiu pagar sua dívida a Karen e decidiu trabalhar
nas ruas de Madri.39 A prostituição masculina, transexual, aparece em locais específicos
dentro dessa cidade européia.
38 Ver nota 22. Diferença entre tráfico e migração. A questão do consentimento 39 Glossário: Prostituição de Rua
17
Inicialmente, pensa em trabalhar na Casa de Campo, parque de Madri que
apresenta alto índice de prostituição de rua. Porém, havia meses que a Prefeitura
(Municipalidad) de Madri determinara o fechamento das ruas da Casa de Campo para a
passagem de carros, o que praticamente eliminou a prostituição dessa região40. Assim,
Kelly decide trabalhar na M40, uma das vias de acesso de Madri. Com o crescimento de
Madri, foram sendo criadas vias de acesso à cidade, entre elas a M30, M40 e M50.
A M40, particularmente, foi se transformando numa região de prostituição de
rua para homens.
Kelly imaginava que ali não teria que pagar nada a ninguém. Afinal trabalhava
na rua e era dona de seu próprio corpo. Porém, logo percebeu que a realidade da rua não
era bem essa. Mesmo no espaço público existiam regras básicas para poder exercer
prostituição. Havia pessoas que cobravam pelo espaço de calçada onde Kelly queria
trabalhar.
O trabalho na rua também tinha outras complicações. Um deles era o risco da
violência constante por parte dos clientes. Volta e meia aparecia alguém que havia sido
espancada por um cliente que não queria pagar pelo programa. Em outros casos,
apareciam transexuais e mulheres, principalmente nigerianas, que eram encontradas
mortas pela polícia, como era o caso de Celina, uma africana que foi encontrada
assassinada e esquartejada por um cliente que não havia gostado dos serviços dela.
Outro risco era o de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis. O valor
pago pelo cliente por um programa sem uso de preservativo era astronomicamente
superior e, por isso, tentador. Kelly procurava não ter relações sem preservativos, mas
quando o serviço era fraco entrava no jogo da roleta russa e aceitava.
Como se preocupava muito com sua condição de saúde, ia periodicamente ao
médico fazer controles. Para isso sabia da importância de estar empadronada na
Municipalidad de Madri41. Havia também uma ONG que prestava orientação às
mulheres e transexuais que trabalhavam na M40.
40 Nota de estudo: Fechamento da Casa de Campo 41 Ver nota 14: Registro municipal/empadronamento na Espanha.
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Num dia em que fez esses controles, Kelly descobriu que havia contraído
SIDA (AIDS). Seu mundo desmoronou. Não sabia exatamente o que fazer. Sabia
somente que não queria ficar ali. O tratamento médico era muito caro e já não poderia
se manter sem trabalhar. Resolveu procurar a ajuda daquela ONG.
Uma das garotas que trabalhava na ONG e fazia o trabalho de orientação na
M40, Lourdes, conversa com Kelly e diz que ela poderia voltar ao Brasil pelo Programa
de Retorno Voluntário de Migrantes42, que era patrocinado por outras organizações, e
inicia os contatos.
Lourdes consegue organizar a volta de Kelly, junto com as organizações que
realizam o retorno voluntário de migrantes. Antes de viajar, faz todos os exames
médicos para adiantar o tratamento no Brasil.
Em busca de alguma ONG em Pernambuco que pudesse realizar o apoio e
acompanhamento que Kelly necessitaria ao retornar, Lourdes se vale do Posto de
Atendimento Humanizado de Migrantes43, no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, e
este contata o Escritório de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas de Pernambuco que,
por sua vez, passa a articular a rede de atenção.
Kelly é esperada no aeroporto de Recife. Mas a viagem partindo de Madri é
longa e cheia de memórias das experiências vividas. Seu sonho de liberdade ficou para
trás. Chegando ao Aeroporto de Cumbica, a polícia federal checa seu passaporte; o
documento carrega outro nome: Marcio....
42 Nota de estudo: Programa de Retorno Voluntário de Migrantes 43 Nota de estudo: A importância da criação de redes de atendimento às vítimas de tráfico articuladas internacionalmente e internamente.
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GLOSSÁRIO
Adidos policiais – São servidores públicos da polícia nomeados por um Estado para
exercer funções de assistência e inteligência policial dentro de uma Embaixada, no
âmbito da cooperação internacional entre dois Estados, sobretudo no combate ao crime
organizado transnacional.
Aliciamento – Forma criminosa de obter o consentimento da vítima, via de regra
mediante engano ou fraude (artigos 206 e 207 do Código Penal Brasileiro). O Protocolo
de Palermo regula a conduta em seu artigo 3º, caput, estabelecendo que o aliciamento
pode se dar “recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao
rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade”.
Ameaça – Modalidade de crime prevista no Código Penal Brasileiro (artigo 147) e na
Legislação Espanhola (art. 169 do Código Penal). Umas das formas de materialização
do crime de tráfico de pessoas, segundo o Protocolo de Palermo (Artigo 3º).
Boates/ Clubs na Espanha – No Brasil, casas de entretenimento adulto que funcionam
como bares e/ou casas de espetáculo, onde podem funcionar atividades de prostituição e
rufianismo. Equivalente aos clubs de alterne na Espanha, localizados nas cidades ou à
beira das estradas. São locais com música onde as mulheres ficam à disposição dos
clientes. Esses chegam, pagam bebidas (“sacan copas”), conversam e acerta-se o valor
da relação sexual.
Bolsa de viaje (Bolsa de viagem) – Trata-se do valor que os traficantes cobram da
própria vítima para levá-la até o lugar do trabalho. Constitui-se em dívida a ser paga
com o exercício da prostituição realizado no local. Essa bolsa dá margem a toda sorte de
ilícitos impingidos pelo dono do local onde se exerce prostituição (cárcere privado,
maus-tratos, tortura, formas análogas à escravidão, ameaças).
Cárcere Privado – Modalidade ilegal de privação da liberdade. Crime previsto no
Código Penal Brasileiro (artigo 148) e no Código Penal Espanhol (artigo 163). Previsto
no Protocolo de Palermo como crime conexo ao tráfico de pessoas.
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Casa de Acolhida – Local mantido pelo Estado ou por ONGs onde as vítimas de tráfico
de mulheres permanecem, com seu consentimento, para receber assistência múltipla
(psicológica, jurídica e social) e proteção contra os traficantes.
Assistência consular a nacionais no exterior (Papel dos Consulados) – Os
consulados são locais que abrigam a missão consular de um determinado país, cuja
atribuição é oferecer assistência às pessoas físicas e jurídicas de sua nacionalidade, no
exterior, incluindo a assistência às vítimas e às testemunhas de tráfico de pessoas. São
regulados pela Convenção de Viena sobre Relações Consulares (1963), especificamente
em seu artigo 5º, inciso “e”. No caso da Espanha, muitas vezes ocorre que a polícia, ao
comunicar ao consulado a repatriação de um nacional brasileiro, não identifica o
estrangeiro como vítima de tráfico, pois o considera como imigrante em situação
irregular, o que prejudica o atendimento especializado e específico do consulado
brasileiro no exterior. Tal situação impossibilita a comunicação e a articulação com as
autoridades brasileiras responsáveis pela atenção interna (MRE, polícias de imigração
brasileiras, ONGs), a fim de prestar atenção especializada no retorno da vítima ao
Brasil.
Clubs en sistemas de Plazas – São boates (cf.verbete Boates), mas com algumas
particularidades: as mulheres vivem nesses locais e pagam uma diária ao dono do club
(em média 30 a 50 euros/dia) e, aparentemente, estes locais funcionam como um hotel.
O acordo para receber parte do valor pago pelas bebidas funciona como nos clubs. As
mulheres não costumam ficar mais do que 21 dias (período menstrual). Os donos dos
clubs aproveitam esse período para mudá-las para outro club e até mesmo de cidade.
Isso ocorre para diversificar o “objeto” de mercado (mulheres) e para evitar que os
clientes estabeleçam uma relação afetiva com elas, o que muitas vezes favorece
aproximação e pode resultar em auxílio e denúncia nas redes de atendimento.
DST/AIDS – As Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) constituem vários tipos
de enfermidades, cuja forma de contágio se dá principalmente por meio da relação
sexual e contatos íntimos. Incluem a Síndrome de Imunoinsuficiência Adquirida (No
Brasil, AIDS, na Espanha, SIDA).
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Expulsão – Uma das formas de exclusão do estrangeiro de um país. Na Espanha, o
procedimento de expulsão é equivalente ao de deportação no Brasil. Está regulado pela
Ley de Extranjeria. No Brasil, a expulsão é um procedimento muito mais complexo (Cf.
Estatuto do Estrangeiro). Trata-se de procedimento administrativo em ambos os países.
Operações Policiais (Batidas, Redadas) – Operações Policiais são ações organizadas
pela polícia visando fiscalizar, coibir e/ou flagar atividades irregulares e criminosas. Se
forem realizadas em lugares privados dependem de mandado judicial. Normalmente são
apelidadas com nomes fictícios visando preservar o sigilo durante o processo de
investigação. Alguns exemplos de batidas policias realizadas aqui no Brasil envolvendo
situações de tráfico foram: “Operação Babilônia”, “Operação Castanhola”, “Operação
Madri”. No Brasil são conhecidas como batidas, na Espanha redadas.
Passaporte (Direitos e Obrigações) – Documento de viagem expedido pela autoridade
nacional do país do cidadão requerente. No Brasil, é expedido pela Polícia Federal; na
Espanha é expedido pelas Jefaturas Superiores y Comisarías de Policía, cuja validade é
reconhecida internacionalmente, por prazo determinado. O passaporte é uma espécie de
carteira de identidade internacional que indica a nacionalidade de seu portador e
possibilita que se possa requerer assistência consular do País no exterior. Alguns países
exigem o visto prévio no passaporte para permitir a entrada em seu território, fato que
gera a reciprocidade de exigência (e.g., EUA-Brasil). Outros, como os integrantes da
União Européia (UE), não o exigem para quem viaja como turista. Com ou sem visto
prévio, a permissão de entrada é prerrogativa do Estado receptor, podendo este negar o
ingresso de qualquer pessoa, mesmo que presentes todos os requisitos exigidos. (Trata-
se de tema polêmico, à luz do Direito de ir e vir, no âmbito do Direito Internacional dos
Direitos Humanos e do Direito da Migração). Considera-se que a propriedade do
passaporte é do Estado, conferindo-se ao cidadão o direito de posse e uso. O cidadão de
cada Estado que estiver portando passaporte não poderia entregá-lo a ninguém, uma vez
que ele não é de sua propriedade.
Pisos – São apartamentos onde as mulheres exercem prostituição. Esses espaços
constituem a modalidade de maior expansão na Espanha, assim como os clubs de
alterne. Muitos são gerenciados por agências ou por donos particulares. São
apartamentos discretos onde o cliente tem a possibilidade de escolher as mulheres de
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forma individualizada. Geralmente têm de 5 a 15 mulheres trabalhando e, por serem
apartamentos particulares, são mais difíceis de ser identificados e de revelar qual é a
condição de vida e de “trabalho” a que estão submetidas as mulheres. Ademais, os
controles feitos pela polícia são menores, uma vez que essa somente pode entrar, sem o
consentimento do dono, se tiver uma autorização judicial, o que apenas ocorre quando
há provas de que ali as mulheres são vítimas de tráfico, que estão sendo submetidas a
situação de exploração. Por esse motivo sabe-se que esses são os espaços onde as
condições de exploração sofridas pelas mulheres podem ser maiores. O contato feito
pelos clientes se dá pelas centenas anúncios em jornais de grande circulação da
Espanha. (Vide: Periodismo digital. Borja Ventura:
http://blogs.periodismodigital.com/periodismo.php/2006/04/04ª_2)
Posto de Atendimento Humanizado aos Migrantes e a importância da Política de
Atendimento às Vítimas de Tráfico – O posto é uma iniciativa conjunta da sociedade
civil, do Ministério da Justiça (Secretaria Nacional de Justiça) e da Associação
Brasileira de Defesa da Mulher (ASBRAD), com o financiamento da organização não
governamental CORDAID (apoiado pelo governo holandês). Tem como objetivo dar
atenção especial aos(às) brasileiros(as) que retornam ao País, pelo aeroporto de
Cumbica, Guarulhos –SP, resultado de processos de deportação ou de recusa de entrada
no exterior. O Posto vem desenvolvendo uma metodologia de atendimento específico
para as vítimas de tráfico, que inclui a articulação com os órgãos federais e a
capacitação dos profissionais que atuam na área restrita do aeroporto. A pretensão dessa
iniciativa é estendê-la a outros aeroportos do País, facilitando o encaminhando das
vítimas.
Prostituição no Brasil e na Espanha – Atividade que consiste em manter contatos
íntimos e relações sexuais mediante pagamento. A atividade em si não é considerada
crime nem no Brasil nem na Espanha. Os dois países, por outro lado, condenam a
exploração e a facilitação da prostituição. Importante mencionar que existe um grande
debate, por parte dos movimentos sociais de política de gênero e, principalmente,
daqueles ligados a movimentos feministas, sobre os aspectos jurídicos da prostituição
que podem ser descritos em quatro modelos. 1. Penalização da prostituição e ou de
atividades relacionadas com ela: entende que a prostituição constitui delito,
penalizando os proxenetas e os clientes. 2. Regulamentação da prostituição: nesse
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modelo aceita-se a prostituição, mas sem conceder direitos legais às prostitutas como
trabalhadoras. 3. Despenalização da prostituição e das atividades relacionadas a ela:
essa modalidade diferencia a prostituição forçada da voluntária e despenaliza tudo o que
esteja relacionado com a última. 4. Legalização da prostituição: considera a prostituição
voluntária e não forçada como uma forma legal de trabalho, concedendo-se inclusive
direitos e obrigações civis e trabalhistas. (GUTIÉRREZ, 2006, pg.63 a 65).
Prostituição de rua – Na Espanha, essa modalidade de prostituição é desenvolvida em
parques, centros urbanos e pólos industriais. A rua é o espaço onde se faz a “negociação
econômica”. As relações sexuais ocorrem em hotéis ou pensões (e até mesmo nos carros
ou espaços abertos e afastados). É exercida sobretudo, por mulheres africanas e do Leste
Europeu e também pelas travestis. Antes do fechamento da passagem dos carros pela
“Casa de Campo”, parque localizado na parte oeste de Madri, elas podiam ser
encontradas facilmente. (Ver: El País, 16/07/2007 - Pedro Calvo: "No es mi problema saber
dónde van las prostitutas"
http://www.elpais.com/articulo/espana/Pedro/Calvo/problema/saber/van/prostitutas/elpe
puesp/20070716elpepunac_12/Tes). As mulheres que trabalham nas ruas, salvo as que
são agenciadas pelos traficantes (“chulos”), não dividem com ninguém, os valores
auferidos. Por outro lado, elas estão mais vulneráveis a violência, agressões. Além
disso, a prostituição de rua é menos remunerada do que a de clubs e de pisos.
Regime análogo à escravidão – Consiste na condição de submissão de uma pessoa a
outra que se caracteriza pela obrigação de trabalhar sem a observância de quaisquer
direitos, mediante o cerceamento do direito de ir, vir e ficar. É um dos tipos listados
como Crime contra a Humanidade do Estatuto do TPI. O Código Penal Brasileiro a
define em seu artigo 149: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer
submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a
condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:”
Rotas de Tráfico – São os caminhos nacionais e transnacionais estáveis (rodovias,
ferrovias, hidrovias, aerovias) previamente traçados por pessoas ou por grupos de
pessoas que têm como objetivo deslocar as vítimas de tráfico até o destino planejado,
e.g. Rota de tráfico Brasil-Espanha. A PESTRAF conceitua “rota” como sendo “o
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caminho previamente traçado por pessoas ou por grupos que têm como objetivo chegar
a um destino planejado.”
Rufianismo – Aquele que tira proveito da prostituição alheia, participando diretamente
de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça, ou seja,
caracteriza-se pela exploração da prostituição de outrem que, no Brasil (Código Penal,
artigo 230) e na Espanha ( Código Penal, artigo 187), constitui crime.
Testemunha protegida – Condição jurídica que assegura à testemunha de um crime
proteção de vida, com anonimato, extensiva a familiares (Programa Federal de
Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, coordenado pelo Ministério da
Justiça e instituído pela Lei Ordinária nº 9.807/99).
Visto – Autorização prévia de ingresso de um estrangeiro no território de um país, por
este expressamente exigida. Exemplo: os EUA exigem visto do Brasil, e vice-versa
(Princípio da Reciprocidade). A União Européia não exige visto para o Brasil e vice-
versa. Os vistos são emitidos pelos consulados dos respectivos Estados.
Vítimas de tráfico – O Protocolo de Palermo conceitua a vítima de tráfico dentro do
conceito de tráfico, em seu artigo 3º. Assim, considera-se tráfico: “o recrutamento, o
transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à
ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao
engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou
aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que
tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo
menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual,
o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a
servidão ou a extração de órgãos;” Importante ressaltar que na alínea “b” do mesmo
artigo fica estabelecido que se algum dos meios de condicionamento previstos na alínea
“a” ficarem configurados, o consentimento da vítima é irrelevante, ou seja, mesmo que
a pessoa consinta em viajar por algumas das formas previstas no artigo 3º, ela será
considerada vítima de tráfico. O Protocolo determina que as vítimas de tráfico recebam
tratamento diferenciado em relação aos imigrantes irregulares, independentemente de
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