JOO BATISTA ALVES DE OLIVEIRA
O Idoso Coloca a Morte em Cena: Reflexes Sobre a Prtica Mdica Sob a Perspectiva da Reumanizao da Morte nos Cuidados Paliativos
MESTRADO EM GERONTOLOGIA
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO 2006
Livros Grtis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grtis para download.
JOO BATISTA ALVES DE OLIVEIRA
O Idoso Coloca a Morte em Cena: Reflexes Sobre a Prtica Mdica Sob a Perspectiva da Reumanizao da Morte nos Cuidados Paliativos
Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo como exigncia parcial para a obteno do ttulo de mestre em Gerontologia, sob orientao da Profa Dra. Ruth Gelehrter da Costa Lopes.
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO 2006
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao por processos fotocopiadores ou eletrnicos.
Assinatura: _____________________________________
Local: _________________________ Data: _________________
DEDICATRIA
Este trabalho dedicado a todo aquele que, na fase final da vida
sente a necessidade de um mdico fazendo-se prximo. Homens e
mulheres que sabem que sua morte no ser impedida, mas estaro
reconfortados porque se sentiro acompanhados.
E tambm o dedico a todo mdico que se faz prximo quele na
fase final da vida. O mdico que no evita a morte, mas retoma a
essncia da medicina o cuidar.
AGRADECIMENTOS
dra Ruth Gelehrter da Costa Lopes, pelos ensinamentos no Programa de
Gerontologia e cumplicidade na elaborao da dissertao.
Ao dr Leo Pessini (Padre Leo), por fazer parte da Banca de Qualificao,
contribuindo assim para que a dissertao se pautasse na retomada dos
caminhos humanos e ticos da medicina, num sentido maior para o cuidado
humanitrio da vida.
dra Silvana Ttora, por fazer parte da Banca de Qualificao, revivendo
seu passado na escola mdica, trazendo dissertao um olhar ntimo sobre
o fazer-se prximo e o cuidar.
Manoela, secretria do Programa de Gerontologia, pelo carisma, pela
simplicidade e acolhida.
Aos que sempre estiveram e estaro no corao, e que por longos caminhos
me acompanharam e, mais que isso, se esforaram por mim.
CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Profissionais de Ensino
Superior) pelo apoio financeiro.
RESUMO
Esta dissertao traz uma reviso bibliogrfica sobre a morte, porm no
puramente compilao de citaes, mas, sobretudo, nova leitura humanizada do
tema, em tom mitolgico, filosfico e potico.
Mais que texto acadmico, pretende ser reflexivo e contribuinte para a
humanizao da morte, fato to desfeito desde h sculos, e por vezes
puramente tcnico e mecanicista na atualidade.
Reafirma no somente a finitude humana como nossa caracterstica mais
constitutiva, mas tambm a importncia do mdico humanizar seu atendimento,
tendo como base a filosofia dos Cuidados Paliativos, especialmente na velhice,
que pode ser a fase em que os pacientes em processo de morte mais necessitem
do cuidar.
No visa criar regras, rtulos, estipular condutas, mas uma conscientizao da
importncia do mdico fazer-se prximo, buscando a reumanizao da morte.
Palavras chave: Morte; Cuidados Paliativos; Humanizao; Idoso.
ABSTRACT
This dissertation brings a bibliographical review about death, but it is not a
mere compilation of facts, but above all it hands a new humanistic version
regarding this theme, by means of mythological, philosophical and poetical
approach.
Much more than an academic text, it intends to be thoughtful and contribute
towards the humanization of death, which has been left aside for centuries and
many times, nowadays, dealt with so mechanical and technically.
It not only restates the finite human thing like our most constituent
characteristic, but also the importance doctors should pay towards humanizing
the treatment, having based on the Palliative Care philosophy, especially at old
age for it is the phase in which patients in dying process i.e. facing death most
demand care.
It does not claim the creation of rules, labels, nor stipulates conduct, but creates
some awareness of the importance to doctors becoming closer to patients,
making it possible the re-humanization of death.
Key words: Death; Palliative Care; Humanization; Old age.
SUMRIO
APRESENTAO .............................................................................................................. 9
OBJETIVO ......................................................................................................................... 16
HIPTESE ......................................................................................................................... 17
METODOLOGIA .............................................................................................................. 18
A MORTE INTERDITA DO SCULO XX ..................................................................... 20
MITOLOGIA, FILOSOFIA E MORTE ............................................................................ 27
POESIA E MORTE ........................................................................................................... 33
O CDIGO DE TICA MDICA PENSADO NO CONTEXTO DOS CUIDADOS PALIATIVOS ...................................................................................... 43
LONGEVIDADE A VELHICE E A MORTE NO MUNDO MODERNO .................... 52
CUIDADOS PALIATIVOS A RETOMADA DA ESSNCIA DA MEDICINA .......... 65 A mitologia simbolizando os cuidados paliativos ...................................................... 67 O surgimento dos cuidados paliativos ........................................................................ 68 A Organizao Mundial da Sade (OMS) e os cuidados paliativos .......................... 71 Cuidados paliativos a nova realidade mdica ......................................................... 73 A implantao dos cuidados paliativos e a interdisciplinaridade ............................... 76 A velhice e os cuidados paliativos ............................................................................. 78 A morte como evento final dos cuidados paliativos .................................................. 79
FAZER-SE PRXIMO A REUMANIZAO DA MORTE PELO MDICO QUE OFERECE CUIDADOS PALIATIVOS AO IDOSO ............................................... 85
CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................... 101
ANEXOS ......................................................................................................................... 106
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................. 134
OBRAS CONSULTADAS .............................................................................................. 139
FILMES ........................................................................................................................... 143
9
APRESENTAO
Escolher dissertar sobre a morte, na forma da abordagem realizada, foi
conseqncia de uma situao de vida pessoal e profissional que acabou por guiar-
me pelo cuidar.
O Programa de Gerontologia da Pontifcia Universidade Catlica de So
Paulo (PUC-SP) favoreceu grandemente esse processo, quer seja pela caracterstica
do curso, quanto por seu corpo docente, que se pauta em uma abordagem global e
interdisciplinar.
Em relao s disciplinas, encontrei nos professores, cada um em sua
particularidade, caractersticas de humildade, maternidade, simplicidade,
congregao, alegria e cordialidade, que foram o incentivo para prosseguir e me
firmar em meus propsitos para a dissertao.
Os contedos favoreceram consolidar conceitos, crenas, rever pensamentos e
conhecer novos olhares sobre os aspectos emocionais, a importncia da inter-relao,
de como compartilhar conhecimento prazeroso, em como delimitar o trabalho e
optar pelo melhor mtodo, a refletir sobre a necessidade de entender educao como
algo mais amplo que uma transmisso de conhecimentos. Educao como um compartilhar
que passa pelo direito de cidadania e do respeito humano, alm de permitir refletir
sobre a diferena dos momentos sociais na aceitao ou negao da morte.
No posso deixar de considerar a importncia do mestrado. Sendo a PUC-SP
um frutfero meio de produo cientfica, a insero de um curso de Ps-Graduao
stricto sensu em Gerontologia uma contribuio importante velhice do pas, j
que a finalidade da universidade no to-somente conceder titulao para
profissionais, mas contribuir para aes sociais significativas.
Tambm no posso deixar de considerar o Portal do Envelhecimento, um
destacado meio de informao on-line, em franco desenvolvimento, do qual tive a
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
10
oportunidade de fazer parte. A contribuio do profissional e do academicismo
compartilhar informaes, adaptando-as ao meio de divulgao e ao pblico-alvo, de
forma que no se torne um discurso tcnico incompreensvel ao leigo, ou que
menospreze suas capacidades.
O estudo, o aprimoramento, a vida acadmica s tm sentido se houver uma
extenso para alm do conhecimento prprio, e na PUC-SP, no Programa de
Gerontologia, tive a oportunidade disso participar.
Permito-me fazer um retrospecto pessoal para que possa ser estabelecido
vnculo entre acontecimentos pessoais e profissionais e a escolha do tema e sua
forma de abordagem.
De incio devo dizer que ser mdico talvez seja algo codificado em um dos 44
cromossomos somticos, pois acho que no poderia ter outra profisso. nossos
impulsos vocacionais tm razes em lugares obscuros da alma. (ALVES, 2003, p. 34)
No entanto, para isso se concretizar tive que passar por um longo e tortuoso
caminho, s conseguido pelo companheirismo e esforo de muitos, inclusive
percorrendo terras distantes, poca em que a morte ameaou aproximar-se. Creio, no
entanto, que no foi algo puramente biolgico, mas manifestao de Fora Superior
para mostrar-me que medicina arte, Deus existe, e cuidar um fundamento humano
a ser cumprido pelo mdico.
Por todo um contexto de vida pessoal e por acreditar na vida escolhi dissertar
sobre a morte, momento nico da vida da pessoa, quando mais precisa de companhia
e mais se v isolada, e a medicina mais se afasta. Realidade que, no entanto, vem se
modificando.
A morte sempre foi e ser vista como mistrio para o qual se procura
explicaes, isso no somente no final da vida, mas em todo o seu decorrer.
Cada indivduo personificar a morte conforme suas vivncias, crenas e
vnculos pessoais, mas sempre a partir da observao da ocorrncia em outro, e
talvez seja isso que de forma oculta assusta a certeza inequvoca de que chegar a
si prprio, como chegou ao outro. A a funo do medo como protetor, que evita
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
11
discutir o assunto, permitindo apenas resignaes frente morte alheia, pois no
podemos faz-lo a partir da ocorrncia prpria; mas em cada ocorrncia no outro,
parte de ns, pelos laos emocionais, morre junto.
Na evoluo dos milnios, a interpretao ou aceitao da morte sofreram
inmeras transformaes quanto ao seu impacto sobre as sociedades, sendo quase
sempre norteada pelo cunho religioso, pois a cincia, frente a ela, se mostra
impotente.
Ainda que seja a nica certeza inequvoca da existncia humana, medida
que parte de um processo biolgico, o homem no a v como uma realidade, pois
seria uma verdade esmagadora e limitante demais para quem a considera um acidente
de percurso. Poucas so as excees, como os budistas, que no a vem assim, mas
parte integrante da vida.
encontrar assim na finitude do tempo, ou seja, na prpria morte,
recurso da vida, exige entregar-se sem reserva ao espanto que ela
suscita e aceitar permanecer constantemente sob seu domnio.
Deixar ao nada que a morte o governo da vida no implica,
todavia, nem herosmo niilista nem lamentao nostlgica, mas
uma realidade, a configurao, na tragicomdia de uma vida que
no recua diante da morte, mas ao contrrio, aceita incluir em sua
conta o luto e a alegria, o riso e as lgrimas.
(DASTUR, 2002, p. 7)
A morte uma intrusa, ainda mais avassaladora se ocorrer precocemente, sem
avisos: cruel, quando arrebata crianas e jovens; destruidora de vnculos,
provocadora de exlio em relao aos que se ama; poderosa demais frente ao
desamparo humano.
Vivemos numa sociedade predominantemente oriunda do cristianismo, e
podemos tomar um dos seus smbolos Cristo crucificado na anlise da
representao da morte.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
12
com o cristianismo que aparece a idia de um Deus triunfado
sobre a morte, e com ele tambm que ressaltado o trgico da
condio humana, sob a forma da morte na cruz de um Cristo
abandonado por um Deus que silencia.
(DASTUR, 2002, p. 24)
Sob a tica das diferentes fases do desenvolvimento humano, a morte
interpretada de formas diversas. Na infncia, a partir da experimentao da ausncia
materna, a criana vive a sensao de desamparo: perodo de onipotncia, com a
presena materna e de fragilidade, na ausncia e nos questionamentos sobre seu real
poder de evitar a morte.
sabemos que fazem parte do desenvolvimento infantil o
pensamento mgico e a onipotncia. Fica, portanto, a grande
questo: se os outros morrem, ser que morrerei tambm? A
criana produz a histria da humanidade. Ela se representa como
heri que durante o dia vence a sua fragilidade, e noite tem os
seus pesadelos, os monstros, os drages e os fantasmas que
ameaam. A morte representa o desconhecido e o mal.
(KOVCS, 2002, p. 4)
Na adolescncia a morte definitivamente no tem lugar, pois a fase das
possibilidades, do realizar, do ser poderoso. Quando atinge outro adolescente
porque esse foi falho em algo que propiciou a ocorrncia.
Na vida adulta ainda h parte desse poder do adolescente, acrescido a um
medo natural que impele a morte para longe. Sua conscincia existe, mas jamais se
pleiteia sua aceitao.
Mais tarde, no decorrer da vida adulta, esse cenrio vai gradativamente se
modificando, fase em que j podem ser analisados os prs e os contras da prpria
existncia.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
13
quando se chega ao topo da montanha e se admira a paisagem
volta, a descida parece obrigatria. A subida remeteu a um
esforo, o mesmo ocorrendo com a descida. Ela representa a
segunda metade da vida, potencialmente to criativa quanto a
primeira, s que com um outro ngulo. Temos toda a experincia
do nascimento, da infncia, da adolescncia e da primeira fase do
adulto. Ao fazer um balano dessa experincia, uma grande
transformao interna se processa em ns e a morte no se
configura mais como algo que acontece somente aos outros, mas
que pode acontecer conosco tambm.
(KOVCS, 2002, p. 7)
Profissionais da rea de sade no podem se omitir em explorar o tema em
todas as suas concepes, entendimentos e variantes, pois pode caber-lhes ser o
companheiro de muitos, determinantemente em sua caminhada final. Tempo de
sofrimento, no s fsico como emocional. Ocasio de compartilhar sentimentos
sobre a vida e invariavelmente sobre a morte; isso s podero fazer se tiverem em si
mesmos claras concepes e medos afugentados sobre a morte, para que no se
comportem como as crianas que tm pesadelos e vem monstros, drages e
fantasmas. Momento que certamente ir requerer sutileza e amparo, o que
conseguiro se reconhecerem sua prpria vulnerabilidade.
Talvez em cada enfrentamento, cada discusso, como a aqui proposta, se
transformem de amedrontados para impetuosos e poderosos, como se tivessem
passando da fase de entendimento da criana para a do adolescente. Quem sabe,
chegaro ao topo da montanha mais tranqilos, em paz consigo mesmos diante do
prprio fim. Sendo, ento, companheiros de amparo dos que enfrentam a morte, no
num acontecimento rpido e sem avisos, mas sobretudo daqueles que a
experimentam com prolongados sofrimentos fsicos diante de doenas que
machucam o corpo e a alma. Se no puderem ser fiis escudeiros do indivduo, o
caminho desse ser acrescido de mais dor, representada pelo desamparo, falsidade,
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
14
aplicao de palavras de consolo que jamais cumpriro essa finalidade, mas, ao
contrrio, mostraro que sobra piedade, que mais pode machucar do que ajudar.
Com a evoluo da medicina e da tecnologia a ela agregada, a discusso da
morte no mais algo acessrio, mas de importncia tcnica. Diante da eutansia,
distansia, suicdio assistido, no h como no abordar o tema. No possvel
ignor-lo. H que se aprofundar em todos os seus aspectos, e integrar mltiplos
profissionais anlise, no esquecendo de obrigatoriamente incluir o paciente e os
familiares como parte essencial do processo.
Profissionalmente, vrias vezes tive a morte se interpondo na minha relao
com o paciente, quando em muitas delas foi a vencedora, principalmente quando,
acadmico de medicina, na vivncia no ambulatrio de oncologia. Nesse tempo
observei o comportamento humano, do outro e o meu prprio, em relao a esse
fenmeno to inquietante ao ser humano. poca em que acompanhei muitos
pacientes e familiares em desespero, dor, raiva, aceitao, luto e em tantas outras
nuances.
poca na qual mais percebi a necessidade de no fugir do tema. S nele
adentrando poderia compartilhar, caminhar junto com o outro em momento to
nico. Perodo em que a conduta humanitria deve ser aliada tcnica; misto de
cincia, solidariedade e intimidade para o paciente ser cuidado em seu momento de
morte, quando ento poder re-significar muito de si e de sua vida.
No discorrerei sobre as inmeras variantes ligadas morte, pois cada tema
agregado daria uma nova dissertao, e ainda esbarraria em questes bioticas no
bem definidas. A finalidade ser trazer para perto aquilo que assim j est, mas que
teimamos em distanciar.
Discutindo o tema, chegando ao topo da montanha, diante da morte, seria
fcil pensar:
beira do abismo, nada haveria a temer, porque no teramos
que mergulhar nele, mas simplesmente planar, curiosos em ver
aonde nos levar o derradeiro vo.
(REZENDE, 2000, p. 14)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes
sobre a prtica mdica sob a perspectiva da reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
15
Enfocarei o componente humanitrio e potico, pretendendo ser um culto
vida, buscando entender, no entanto, que a vida e a morte so um par indivisvel e
inquietante para a alma humana a questo da origem das coisas , certamente,
uma fonte de inquietao para nosso entendimento, mas a de seu fim constitui o
tormento de todo o nosso ser. (DASTUR, 2002, p. 54)
Por certo no chegarei a definies estticas, a modelos ideais de
comportamento, at porque esse no o objetivo, nem mesmo uma possibilidade.
Mas que ao fim tenha refletido o suficiente. Profissionais sensibilizados pelo
conhecimento do lado humanitrio transformam-se em compartilhadores de apoio ao
outro diante de sua morte, principalmente considerando o idoso fragilizado pelas
contingncias da vida, e por certo no muito diferente em seu processo ltimo.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
16
OBJETIVO
Este trabalho tem como objetivo trazer para discusso o fato de o
idoso colocar a morte em cena, e mostrar que precisamos refletir
sobre a prtica mdica na perspectiva da reumanizao da morte
nos Cuidados Paliativos oferecidos ao idoso.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
17
HIPTESE
O reconhecimento de que o idoso coloca a morte em cena fator
essencial para se refletir sobre prticas mdicas, to necessrias
para que a reumanizao da morte seja parte integrante dos
Cuidados Paliativos, levando recuperao do valor da vida, da
morte e do cuidar.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
18
METODOLOGIA
O procedimento para a elaborao da dissertao foi a pesquisa bibliogrfica,
e o mtodo escolhido o fenomenolgico.
A bibliografia nacional me permitiu uma anlise de nossa realidade, pois a forma
de abordar o tema da morte modifica-se segundo padres culturais de diferentes pases.
A importncia de se utilizar o mtodo fenomenolgico reside nesse deixar os
fatos da experincia humana falarem por si mesmos, permitindo assim a existncia
de tantas verdades e suposies quantas forem possveis, segundo as interpretaes
individuais, fruto das experincias vividas.
Este mtodo dedica-se anlise da percepo, quando ento nenhuma
verdade absoluta e para o qual o comportamento humano se constri a partir do
mundo em que se vive. Busca recuperar o olhar humano acima do cientificista, que
reduz a vida a processos fsico-qumicos.
O mtodo fenomenolgico considera a objetividade dos seres, constituindo-se,
para esses, os fatos vividos como verdade plena, em dado momento da vida, ainda
que a experincia de outros possa falar o contrrio.
A opo foi abordar o tema da morte pela fenomenologia, pois sendo algo
que transcende a compreenso humana, somente resgatando as experincias de vida
em relao morte que no a prpria possvel argumentar.
O mtodo fenomenolgico no se prope a chegar verdade absoluta, nem a
regras e concluses taxativas. Esta dissertao procurou considerar a subjetividade do
autor e sua vivncia profissional como mdico, quando por vezes se defronta com a
morte, requerendo posturas diversas frente ao paciente, familiares e equipe
profissional, voltando-se ao pensamento de recuperar a viso mundana das coisas.
Esta dissertao buscou a percepo da inter-relao vida-morte, que se
estende muito alm da relao sujeito-objeto ou materialismo-individualismo, mas se
molda compreenso da experincia humana.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes
sobre a prtica mdica sob a perspectiva da reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
19
quem no compreende um olhar, tampouco
compreender uma longa explicao
(MARIO QUINTANA)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes
sobre a prtica mdica sob a perspectiva da reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
20
A MORTE INTERDITA DO SCULO XX
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
21
todas as culturas personificam a morte
de forma diferente e elaboram
variadas magias contra
a sua intromisso
(KOVCS, 2002, p.29)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
22
E
studando a morte durante os sculos, percebem-se grandes mudanas.
Chega-se ao modelo de interdita do sculo XX, aquela medicalizada, que
passa a ser vista como um fracasso, devendo, portanto, ser escondida
para que represente que nada mudou.
Historicamente, os hospitais, representados pelas Santas Casas de
Misericrdia, eram os locais nos quais se encontravam os doentes que no tinham
condies para se tratar em casa; as pessoas iam para se recuperar ou para morrer,
conforme a vontade de Deus, com um mnimo de dignidade humana e conforto.
(MARTIN, 2004, p.33)
Porm, essa estrutura foi modificando-se ao longo do tempo. Houve
desenvolvimento tcnico, passando, principalmente nas ltimas dcadas, a se ter
como objetivo o atendimento curativo. Interessa o binmio doena-cura, fazendo
surgir, ento, a fragmentao do paciente, visto como rgos e sistemas, uma
especializao e ultimamente superespecializao da medicina, que perde pouco a
pouco sua aura de sacerdcio e se transforma gradativamente em negcio.
(MARTIN, 2004, p. 35). O modelo atual vive um momento empresarial. O poder
aquisitivo do paciente determina quais os tipos de servios que pode utilizar.
No pensamento empresarial, no qual o foco doena e cura, os Cuidados
Paliativos se tornam problema, pois no tm como meta a medicina curativa, e
necessitam de mais investimentos. Do ponto de vista financeiro no traro lucros,
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
23
pois so pacientes com morte iminente, realidade bastante importante no paciente
idoso e pacientes crnicos.
os idosos e os doentes crnicos tendem a ser marginalizados
precisamente porque o investimento em cur-los no tem sentido, e
o tratamento paliativo est muito baixo na lista de prioridades do
hospital, que abraa como prioritrios o paradigma tecnocientfico
e a medicina curativa.
(MARTIN, 2004, p. 46)
O modelo de predomnio atual o tcnico-cientfico; se preocupa com a
doena e no com o seu portador. No predomina o benigno-cientfico, em que h o
interesse concomitante com a doena e o ser humano que a apresenta.
A aceitao da morte modificou-se nos milnios, passando de natural a
interdita na atualidade, ainda mais quando se tem deixado de considerar o aspecto
espiritual dos envolvidos, principalmente pacientes e familiares. A morte atual no
a natural e romntica, mas a que permite a distansia, a mistansia.
h no muito tempo se nascia graas a Deus e se morria por
vontade de Deus. O incio e o fim da vida humana escapavam
completamente do controle humano. Hoje, com os conhecimentos
adquiridos e instrumental tecnolgico disposio pode-se
perfeitamente escolher o dia para se nascer e tambm fixar a hora
da morte.
(PESSINI, 1990, p. 23)
Aquela interdita, no pertencendo ao Sagrado, mas tecnologia, tomou o
hospital como o local para onde se vai para morrer, pois permite a ocorrncia
controlada, escondida, sob auxlio de profissionais Fim tcnico, como suscita a
medicina tecnolgica: o fim exemplarmente descrito, com hora precisa,
institucionalizado, biocntrico e tecnocntrico, rouba a dignidade humana. Sendo o
foco a cura, por vezes trata-se a dor, porm esquece-se de cuidar do sofrimento.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
24
O modelo comercial e o padro social a ser mantido tornaram os hospitais,
fonte de status se antes freqentar um hospital era sinal de pobreza (local de
concentrao de indigentes), hoje os hospitais e clnicas so indicadores de
desenvolvimento econmico e social, lugares que as pessoas tm obrigao quase
moral de freqentar. (PESSINI, 2004, p. 19)
Pensando na estrutura de formao das escolas mdicas atuais, o paciente
pode passar a ser o foco de ateno por necessidades outras que no a sua dor e seu
sofrimento; em formao que desconsidera valores humanitrios e se pauta na
tecnolatria, pode ser transformado em um objeto de aprendizado. As relaes
estabelecidas tornam-se impessoais e mecnicas: o funcionamento da instituio
hospitalar, regida por normas e procedimentos estritos, reitera a pouca
possibilidade de dilogo entre os diversos atores sociais envolvidos no processo de
morrer, bem como da expresso de suas emoes. No modelo moderno, a assistncia
em sade impessoal, mecnica e assptica. (MENEZES, 2004, p. 33)
Na reflexo sobre o novo modelo de formao mdica que necessita do
componente humanitrio, deve ser recordado o texto de Rubem Alves O mdico
procura do ser humano e reconhecidas relaes de afeto entre si e os outros que o
cercam. Isso faz circular a vida, perdendo ento a sua imagem de feiticeiro, de
cavaleiro solitrio que vai sozinho lutar contra a morte. Torna-se, segundo o autor,
... uma unidade biopsicolgica mvel, portadora de conhecimentos especializados,
e que vende servios. Um mdico que perdeu sua aura, sua presena mgica,
consultado no por ser amado e conhecido, mas por constar num catlogo do
convnio. (ALVES, 2003, p. 20)
Em Cuidados Paliativos se busca ver refletida no espelho a antiga imagem do
mdico que irradiava vida, tambm feiticeiro, e que em suas relaes fazia a vida
circular, o cavaleiro solitrio que lutava contra a morte, heri com o corpo coberto de
cicatrizes, mas a alma inteira. Voltar imagem do mdico de antigamente seria a
possibilidade de ser o cuidador na fase final de vida, convicto de seus valores
pessoais e dos do ser humano de quem cuida.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
25
No se conhece mais o tempo da morte, no so reconhecidos seus sinais, o
indivduo no tem mais intuio. Ela no pertence ao Sagrado, mas transformada em
momentos isolados. Nesse molde acaba por no se saber o momento em que
verdadeiramente ocorre: quando efetivamente o indivduo deixou de respirar ou
passou a um estado vegetativo sustentado por mquinas.
O moribundo j no preside o rito cerimonial, que nem mesmo existe. A
ritualidade do passado desconhecida na atualidade. O paciente normalmente morre
em uma unidade de terapia intensiva, conectado a tubos, sedado. A vida
representada unicamente por bips e grficos, at que um deles se transforma em um
traado isoeltrico em tela de monitor.
Os parentes, amigos, vizinhos e principalmente as crianas no fazem parte
da cena na justificativa de ocultar (ou achando que isso conseguem) a verdade ao
moribundo. Procura-se, tambm, poupar da morte a sociedade, promovendo seu
afastamento, tentando manter falsas aparncias.
Insuportvel aos olhos. Portanto, passa a ser solitria, mecnica e dolorosa,
restrita a um leito hospitalar. No possvel mais ver o fim do outro. Cria-se a falsa
idia de que o tecnicismo aplaca todos os males. Morte despersonalizada.
Habitualmente as expresses dizem somente o paciente do leito trs, o paciente
com edema agudo de pulmo, o paciente da sala de emergncia. Precedida de
distansia, pois impera a medicalizao da vida, a morte isolada e em abandono. Os
familiares e amigos talvez no consigam conviver com o indivduo e os momentos
finais. Ainda uma utopia o morienterapeuta preconizado por Rubem Alves, que
poderia ser qualquer um que assistisse o indivduo em morte iminente.
o morienterapeuta... (moriens que est morrendo e therapeueim
cuidar, servir, curar) ..., entra em cena quando as esperanas se
foram. A despedida certa. Ele ou ela tm de estar em paz com a
vida e a morte, tm de saber que a morte parte da vida: precisa
ser cuidada. Por isso, o morienterapeuta ter de ser um ser
tranqilo, em paz com o fim, com o fim dos outros de quem ele
cuida, em paz com seu prprio fim, quando outros cuidaro dele.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
26
Dele no se esperam nem milagres nem recursos hericos para
obrigar o dbil corao a bater por mais um dia. Dele se esperam
apenas os cuidados com o corpo preciso que a despedida seja
mansa e sem dor. E os cuidados com a alma: ele no tem medo de
falar sobre a morte. (ALVES, 2003, p. 55)
Com todos os seus atributos negativos, a morte problema social. Portanto,
precisa ser escondida, e institucionaliz-la foi a forma encontrada. O hospital o
local que preenche as caractersticas tcnicas. Ainda que seja, em muitos casos, de
maior sofrimento para o indivduo, quando se pratica a distansia. Mesmo assim
preconiza-se como o ideal. O controle do fim foi transferido para as mos dos
mdicos.
De um modelo frio, assptico e higienizado, o desafio criar conscincia
sobre a importncia de haver mudana para o morrer humanizado. No meramente o
trmino de fase biolgica, mas fenmeno de dimenses emocionais das mais
importantes para o moribundo, familiares e cuidadores.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
27
MITOLOGIA, FILOSOFIA E MORTE
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
28
h, efetivamente, uma certa identidade entre
a morte e a Filosofia, j que ambas
tm como resultado destacar a
alma do corpo.
(DASTUR, 2002, p. 33)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
29
H
muitos sculos os homens comearam a filosofar por que as verdades
que julgavam conhecer no cotidiano, por meio dos mitos, no mais
respondiam a suas incertezas, e as dvidas se avolumavam diante de
todos os temas complexos da vida.
Dentre os vrios temas a serem compreendidos, o homem deparou-se com o
da morte, evento inexorvel ao final da existncia. Como pode acabar um ser que
vive, relaciona-se, constri? A limitao do entendimento humano frente existncia
podada precisava (e ainda precisa) de explicaes para esse acontecimento: s os
homens so mortais, pois s eles so capazes de referir a sua prpria morte e de
fazer existir assim a morte (DASTUR, 2002, p. 77)
Considerando milnios passados, antes do surgimento da Filosofia, forma
palpvel de abordar o tema da finitude foi a mitologia. O homem pde voltar ao seu
interior buscando respostas, btalvez no para a morte, mas para a vida, por certo j
intuindo que os fenmenos no so isolados.
Talvez a mitologia tenha sido uma defesa: a morte o objeto de espanto e
no pode ser enfrentada, a no ser na medida em que se v relativizada e aparenta
ter domnio apenas sobre uma parte de nosso ser. (DASTUR, 2002, p. 6)
O papel dos mitos, com todo o seu mltiplo simbolismo, sempre foi
fundamental para a constituio de padres culturais, para o desenvolvimento
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
30
individual ou coletivo, a partir do suavizar do sofrimento diante das questes que
envolvem os aspectos tidos como sobrenaturais, sobre os quais s podemos supor.
Mesmo ainda no encontradas solues para as dvidas e inquietaes geradas pelos
problemas existenciais, o mito, com sua riqueza simblica, importante.
o mito... quando no facilita a percepo do que era inconsciente,
pelo menos envolve o sujeito em outros parmetros do
comportamento, possibilitando uma reformulao das aes numa
perspectiva de uma postura mais saudvel de viver, ou apenas
amenizando o sofrimento.
(FRAGOSO, 2005)
Ainda que por muito tempo os mitos tenham sido a fonte de explicao para
acontecimentos da vida, os homens passaram a ter necessidade de obter outras
explicaes mais lgicas, partindo no das divindades, mas das coisas terrenas.
Surgem, ento, os primeiros filsofos. Porm, o nascimento da Filosofia no findou o
pensamento mitolgico.
Enquanto o mito se pauta nas divindades, no sobrenatural, no fabuloso, a
Filosofia volta-se para a anlise que engloba a totalidade do tempo, quando passa a
discutir temporalidade e finitude.
No entanto, antes de considerar o pensamento filosfico, vamos retomar a
mitologia e conhecer belas histrias e explicaes para a vida e a morte. Simbolismo
bastante importante diante de um tema o qual s podemos imaginar ou interpretar a
partir da ocorrncia em outros vivemos sempre a morte como a morte do outro.
Os outros morrem e eu ainda no. A minha morte eu penso amanh. Ns nos
esquivamos da possibilidade de singularizao da morte. (KOVCS, 2002, p. 147)
Na atualidade podem ser recordados os mitos, porm seu valor e sua tradio
perderam-se diante do mundo capitalista, realista demais, esquecido do sentido de si
prprio: um dos problemas hoje em dia que no estamos familiarizados com a
literatura do esprito. Estamos interessados nas notcias e nos problemas prticos do
momento. (GUIMARES, 2005)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
31
Nessa realidade com tendncias mecanicistas, imediatistas, desconhecendo
valores humanitrios, todos os temas que sempre formaram a base da existncia
humana perderam-se gradativamente, no necessitando de explicaes figurativas
para compreender ou justificar o incompreensvel da nossa condio de humanos. Os
mitos, que buscavam as verdades, tornaram-se desnecessrios num mundo que no se
pauta pelos valores espirituais.
Na mitologia grega, Tnatos era a prpria personalizao da morte, filho de
Nix (noite), irmo gmeo de Hipnos (sono).
O mito que determina a origem da morte diz:
uma mulher tinha dois filhos gmeos. Alguns dizem que eram
irmo e irm que desmaiaram. Possivelmente s estavam
dormindo. Sua me os deixou de madrugada, e quando retornou
noite eles ainda estavam deitados l. Ela notou pegadas como a
deles e imaginou que eles tinham voltado vida, e brincado
durante a sua ausncia. Certa vez ela chegou, inesperadamente, e
encontrou-os discutindo dentro da cabana. Um deles dizia:
melhor estar morto. O outro dizia: melhor estar vivo. Quando
viraram, pararam de falar, e desde ento as pessoas morrem de
tempos em tempos, portanto sempre h vivos e mortos. Se ela
tivesse permanecido escondida e permitido que eles encerrassem
sua discusso, um teria vencido o outro, e da no haveria vida ou
no haveria morte.
(KOVCS, 2002, p. 1)
Se o homem busca justificativa para a morte do adulto e velho, fcil
imaginar que tambm buscar para a morte da criana.
A mitologia explica a ocorrncia nessa faixa etria pelo mito Eros e Morte.
Diz o mito:
era uma tarde quente e abafada, e Eros, cansado de brincar e
derrubado pelo calor, abrigou-se numa caverna fresca e escura.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
32
Era a caverna da prpria morte. Eros, querendo apenas descansar,
jogou-se displicentemente ao cho, to descuidadamente que todas
as suas flechas caram. Quando ele acordou percebeu que elas
tinham se misturado com as flechas da morte, que estavam
espalhadas no solo da caverna. Eram to parecidas que Eros no
conseguiu distingui-las. No entanto, ele sabia quantas flechas tinha
consigo e ajuntou a quantia certa. Naturalmente, Eros levou
algumas flechas que pertenciam morte e deixou algumas das
suas. E assim que vemos, freqentemente, os coraes dos velhos
e dos moribundos atingidos pelas flechas do amor, e s vezes os
coraes dos jovens capturados pela morte.
(Meltzer, 1984 in KOVCS, 2002, p. 153)
Ainda que se saiba do carter puramente imaginrio, no h como no pensar
que poderiam ser verdadeiros esses mitos. Uma interpretao humanizada diante da
morte, que representa nossa impossibilidade no continuar a ser.
Mitologia e Filosofia fazem parte de nossa vida. Tornam-se mais
encantadoras se poetizadas, e ento considerarmos em Cuidados Paliativos que
Mitologia, Filosofia, Poesia e Morte fazem parte da vida.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
33
POESIA E MORTE
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
34
acho que para recuperar um pouco da sabedoria
de viver, seria preciso que nos tornssemos discpulos
e no inimigos da morte, mas, para isso, seria
preciso abrir espao em nossas vidas para ouvir
a sua voz. Seria preciso que voltssemos
a ler os poetas.
(ALVES, 2003, p. 76)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
35
S
egundo Thomas Mann, se no existisse a morte haveria bem poucos
poetas sobre a Terra. Eles falam da ntima relao da morte com a vida.
a criao do poeta nada mais do que essa imagem humana que
a natureza nos oferece para nos curar aps termos lanado um
olhar sobre o abismo.
(DASTUR, 2002, p. 26)
Porm, como escreve Rubem Alves, no basta saber ler para ler poesia.
Ler poesia uma arte. Exige que o leitor se coloque numa posio especial da
alma...
Os poetas falam do medo da morte, como o faz Vincius de Moraes em seu
texto A morte
A morte vem de longe
do fundo dos cus
vem para os meus olhos
vir para os teus
desce das estrelas
trnsfugas de Deus
chega impressentida
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
36
nunca esperada
ela que na vida
a grande esperada!
do amor fratricida
dos homens, ai dos homens
que matam a morte
com medo da vida
Ou de falam como a ocorrncia da morte atordoa, pensando na prpria, como
em Mrio Quintana
esta vida uma estranha hospedaria
de onde se parte quase sempre s tontas,
pois nunca as nossas malas esto prontas,
e a nossa conta nunca est em dia.
Ou de quais so as tarefas na vida at que chegue a morte, como ainda em
Mrio Quintana
sentir primeiro, procurar depois
perdoar primeiro, julgar depois
amar primeiro, endurecer depois
esquecer primeiro, aprender depois
libertar primeiro, ensinar depois
alimentar primeiro, contar depois
possuir primeiro, contemplar depois
agir primeiro, julgar depois
navegar primeiro, aportar depois
viver primeiro, morrer depois
O idoso coloca a morte em cena: reflexes
sobre a prtica mdica sob a perspectiva da reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
37
Ou de como a proximidade da morte ilumina a vida
a proximidade da morte ilumina a vida. Aqueles que
contemplam a morte nos olhos vem melhor, porque ela tem
o poder de apagar do cenrio tudo aquilo que no
essencial. Os olhos dos vivos tocados pela morte so puros.
Eles vem aquilo que o amor torna eterno.
(ALVES, 2002, p. 8)
Rubem Alves fala:
... no, no, a morte no algo que nos espera no fim.
companheira silenciosa que fala com voz branda sem querer nos
aterrorizar, dizendo sempre a verdade e nos convidando
sabedoria de viver...(ALVES, 2003,p.67) (...) a branda fala da
morte no nos aterroriza por nos falar da morte. Ela nos
aterroriza por nos falar da vida. Na verdade, a morte nunca fala
sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos
fazendo com a prpria vida, as perdas, os sonhos que no
sonhamos, os riscos que no corremos (por medo), os suicdios
lentos que perpetramos.. (ALVES, 2003,p.69). (...) ! Embora a
gente no saiba, a morte fala com a voz do poeta. Porque nele
que as duas, a Vida e a Morte, encontram-se reconciliadas,
conversam uma com a outra, e dessa conversa surge a Beleza.
Agora, o que a Beleza no suporta o falatrio, a correria... Ela
nos convida a contemplar a nossa prpria Verdade. E o que ela
nos diz simplesmente isto: Veja a vida. No h tempo a perder.
preciso viver agora! No se pode deixar o amor para depois:
Carpe diem!... (ALVES, 2003,p.67) (ALVES, 2003,p.72) (...) a
Morte tem o poder de colocar todas as coisas nos seus devidos
lugares. Longe do seu olhar, somos prisioneiros do olhar dos
outros, e camos numa armadilha de seus Desejos. Deixamos de
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
38
ser o que somos, para ser o que eles desejam que sejamos. Diante
da Morte, tudo se torna repentinamente puro. No h lugar para
mentiras. E a gente se defronta ento com a Verdade, aquilo que
realmente importa. Para ter acesso nossa Verdade, para ouvir de
novo a voz do Desejo mais profundo, preciso tornar-se um
discpulo da morte. Pois ela s nos d lies de Vida, se a
acolhermos como amiga: A Morte nossa eterna companheira...
(ALVES, 2003,p.74,75) (...) ela se encontra nossa esquerda, ao
alcance do brao. Ela nos olha sempre, at o dia em que nos toca.
Como possvel a algum se sentir importante, sabendo que a
Morte o contempla? O que voc deve fazer, ao se sentir impaciente
com alguma coisa, voltar-se para a sua esquerda e pedir que sua
Morte o aconselhe... (...) sempre que voc sentir, como tantas
vezes acontece, que tudo est indo de mal a pior e que voc se
encontra a ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua Morte e lhe
pergunte se isso Verdade. Sua Morte lhe dir que voc est
errado, que nada realmente importa, fora do seu toque... (...)
houve um tempo em que nosso poder perante a morte era muito
pequeno. E, por isso, os homens e as mulheres dedicavam-se a
ouvir a sua voz e podiam tornar-se sbios na arte de viver. Hoje,
nosso poder aumentou, a morte foi definida como inimiga a ser
derrotada, fomos possudos pela fantasia onipotente de nos
livrarmos de seu toque. Com isso, ns nos tornamos surdos s
lies que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do
perigo de que, quanto mais poderosos formos perante ela
(inutilmente, porque s podemos adiar...), mais tolos nos tornamos
na arte de viver. E, quando isso acontece, a Morte, que poderia ser
conselheira sbia, transforma-se em inimiga que nos devora por
detrs. Acho que, para recuperar um pouco da sabedoria de viver,
seria preciso que nos tornssemos discpulos e no inimigos da
Morte. Mas, para isso, seria preciso abrir espao em nossas vidas
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
39
para ouvir a sua voz. Seria preciso que voltssemos a ler os
poetas... (ALVES, 2003, p.75,76)
Cortazar (1975), de forma esplendorosa, em seu texto A sade dos doentes,
nos fala de como as pessoas podem necessitar do cuidar, especialmente na morte.
No texto, houve um cuidar da me (personagem central) para que se evitasse
sua dor pela morte do filho. Cuidar que efetivamente foi adequado, pois mesmo ao
ter certeza da morte do filho ela manteve segredo desse seu conhecimento cuidado
para aqueles que dela cuidaram.
como vocs foram bons comigo disse mame. Este trabalho todo
que vocs tiveram para que eu no sofresse [...] vocs tomaram
conta de mim
O texto a prova da necessidade da inter-relao humana, do afeto, das
crenas, de valores humanitrios e do cuidar.
Outro texto, cujo ttulo Ser que escapo dessa?, deixa expressa a
necessidade de o paciente em processo de morte ter prximo seu mdico, para que
lhe dedique sobretudo respeito como pessoa, por meio do compartilhar verdades, ao
invs de ficar num fazde-contas; aquele que possa ter aprendido a arte de ajudar as
pessoas a morrer, pois a morte de uma pessoa um evento nico , nunca houve e
nunca haver outro igual. Tambm mostra que o alvio da dor essencial, porque
ningum quer morrer com dor. Aquele que saiba que a vida humana tem a ver com
a possibilidade de alegria! Quando a possibilidade de alegria se vai, a vida humana
se foi tambm (ALVES, 2006).
Ainda citando esse autor, em seu texto Sobre a morte e o morrer, a
tecnolatria e a distansia so uma violncia ao princpio da reverncia pela vida,
e nos lembra que, nesse caso, se os mdicos dessem ouvidos ao pedido que a vida
est fazendo, eles a ouviriam dizer: Liberta-me (ALVES, 2006).
O autor mostra ainda o descuido com o ser humano, ao relatar a histria de
um jovem francs, submetido ao processo de distansia, que escreveu, com sua
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
40
possibilidade de movimento de um s dedo: morri em 24 de setembro de 2000.
Desde aquele dia, eu no vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu no sei...
Finalmente, sabiamente ensina que a reverncia pela vida exige que
sejamos sbios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir.
Por fim, a leitura de um texto de Joan Neet George, para conhecer o contraste
entre a morte natural e a artificialmente prolongada, em que o mdico normalmente
est inserido.
av, quando teu filho morreu febril ao teu lado
em tua cama estreita
sua respirao estertorosa
te deixava inquieta
e te despertou quando
com um suspiro ele se apagou.
Tu o acalentaste pela madrugada amarga
e, de manh,
trataste de vesti-lo, pente-lo,
vertendo lgrimas caladas,
at que enfim descansou,
entre as ris do campo,
a alma entregue inexplicavelmente a Deus. Amm.
No entanto, av, quando meu filho morreu
Deus seja louvado -, teve morte cruel.
Um motor, ao lado
de sua cama de lona, intil
roncava, silvava, zumbia,
enquanto ele entoava sua dor,
em notas baixas e altas,
em compasso lento
que se esvaa por entre a nuvem das drogas.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
41
Minhas lgrimas, redundantes,
gotejavam devagar,
como glucose ou sangue
de um frasco.
E, quando ele expirou,
as lgrimas secaram
e deuses de brancas roupagens
viraram as costas.
(SIEGEL,1989, p. 265)
Ocorrida a morte, fica a saudade, uma coisa que fica andando pelo tempo
passado procura dos pedaos de ns mesmos que se perderam (ALVES), e
quando uma orao feita mantm-se a poesia presente, pois a orao a saudade
transformada em poema(ALVES)
Lendo todo esse contedo potico no h como deixar de pensar que, como
cita Rubem Alves, os poetas deveriam voltar a ser lidos. Levando cada um a
construir algo que contemplasse a vida em todas as suas formas, nuances, odores,
vontades, desejos, sonhos, possibilidades, necessidades, dificuldades e, sobretudo,
em nossas limitaes. Ento no nos negaramos a acreditar que a morte o limite
final da existncia, e mais que isso, no s um marco finalizante, mas concretizador,
pois como bem cita o autor, tudo o que se completa tem que terminar.
Sem considerar esses aspectos, no poderia iniciar o trabalho sobre o tema da
morte. Embasado no toque potico ser possvel reconhecer a vida como obra de arte
e a morte como parte da vida, podendo ento dissertar sobre o tema sem conotao
de culto morte, mas como poetas interiores, buscando conhecer no ntimo, no a
explicao sobre o tido como sobrenatural, mas por que o ser humano se nega a tocar
nesse ponto, que constitutivo da vida.
Esta dissertao no se prope a cultuar a morte, mas ser convite a reconhecer
os ensinamentos que ela nos traz:
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
42
... ela s diz duas coisas. Primeira, aponta-nos o crepsculo, a
chama da vela, o rio, e nos diz Tempus fugiti o tempo passa e
no h forma de segur-lo. E, logo a seguir, conclui: Carpe diem
olha o dia como quem colhe um fruto delicioso, pois esse fruto a
ddiva de Deus.
(ALVES, 2003, p. 90)
Resgatar o conhecimento potico elaborar temtica to inquietante:
no h como adivinhar-lhe o sabor, pois a morte no se
experimenta e, portanto, percebe-se atravs da poesia, do sonho,
da fantasia, da perda, do medo, da dor, da angstia...
(REZENDE, 2000, p. 15)
Textos poticos so produes daqueles que reconheceram a morte e diante
dela no se acuaram, mas buscaram respostas. Que tambm isso seja conseguido no
presente trabalho.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
43
O CDIGO DE TICA MDICA PENSADO NO CONTEXTO DOS
CUIDADOS PALIATIVOS
O idoso coloca a morte em cena: reflexes
sobre a prtica mdica sob a perspectiva da reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
44
...nesse compromisso humanitrio, podemos sonhar com uma nova
figura do mdico responsvel pela sade do mundo e solidrio
na construo de uma tica mdica aberta biotica...
(MARTIN, 2002, p.144)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
45
R
epensando a histria mdica constatam-se mudanas no modelo
profissional. Essencialmente, a base da medicina foi o paternalismo
benigno, no qual o profissional comporta-se como o detentor do
conhecimento sobre o que melhor para o paciente, restando a este ser cumpridor de
conselhos e determinaes.
Posteriormente surgem paradigmas, como o tecnocientfico, comercial-
empresarial e da benignidade humanitria. (MARTIN, 2002, p.44)
No tecnocientfico, os valores da cincia e da tecnologia predominam, os
praticantes da medicina tendem a favorecer o conceito de sade como ausncia de
doena e sua tarefa primordial como sendo o combate a molstias e traumatismos.
Nesse paradigma, a morte o grande inimigo, e todos os meios tcnicos e cientficos
devem ser usados para afast-la e venc-la. (MARTIN, 2002, p. 44)
No comercial-empresarial, a vida, a doena e a morte s interessam na
medida em que geram lucro. (MARTIN, 2002, p. 45).
No benigno-humanitrio, h uma mudana do foco do sujeito da
benignidade (o mdico virtuoso) para o objeto dessa benignidade (o ser humano
portador de direitos e dignidade fundamentais). (MARTIN, 2002, p. 56)
Todos essas mudanas ocorridas na histria da medicina, com o surgimento
de novos modelos de profissionais, sempre norteados pela evoluo tecnolgica,
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
46
levaram o mdico a se preocupar mais com a doena do que com a sade a cura
das patologias e o afastamento da morte se tornaram as grandes metas da medicina
ocidental. (MARTIN, 2002, p. 57).
As transformaes que ocorreram evidenciam questes bioticas. O contedo
humano foi perdendo o foco da medicina; ao invs de o paciente ser personalizado,
passou a ser despersonalizado.
A longevidade permitida, aliada a mudanas externas comprometedoras da
sade (fsica ou emocional), traz cena o idoso portador de vrias doenas,
associadas muito comumente com grandes impactos decorrentes dos quadros
demenciais, estado muitas vezes agravado por precrias condies socioeconmicas.
Torna-se comum o processo de morte prolongada e sofrida, no raro decorrente de
distansia, sofrimento destinado no s diretamente ao paciente, mas a seus
familiares (esses no aspecto emocional), em um processo de luto antecipatrio que
pode ser prolongado.
No novo molde, dispondo a discutir sobre a morte na velhice, torna-se
necessrio ser revisto o Cdigo de tica Mdica para ser discutida a ao do mdico
em suas potencialidades, e principalmente os seus limites. nosso interesse
apontar a linha divisria, tnue, que se situa entre a legalidade e a moralidade no
exerccio mdico, voltado para os Cuidados Paliativos. (SILVA, 2004, p. 330)
Artigo 2 o alvo de toda ateno do mdico a sade do ser humano, em
benefcio do qual dever agir com o mximo zelo e o melhor de sua capacidade
profissional.
Qual seria o conceito de sade, quais os limites das interpretaes
individuais?. O que significam o mximo do zelo e o melhor de sua capacidade
profissional? Seria a prtica da distansia? Ou ento, o cuidar, o fazer-se prximo e o
ser ouvinte no se aplicam a este artigo?
Qual o limite de ter sade e de ser humano? A distansia, to freqente,
representa a ao do mdico centrada na sade do ser humano?
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
47
Artigo 5 o mdico deve aprimorar continuamente seus conhecimentos e
usar o melhor do processo cientfico em benefcio do paciente.
Afinal, o progresso cientfico tecnolgico utilizado como obstinao
teraputica traz benefcio ao paciente em processo de morte?
Estudar, entender e praticar Cuidados Paliativos no esto englobados nesse
aprimoramento contnuo de conhecimentos?
essencial refletir o que quer dizer em benefcio do paciente:
se a vida biolgica o valor primordial, e o afastamento, o
mximo possvel, da morte, a grande tarefa, ento o mdico no
tem outra opo a no ser apelar para todos os conhecimentos e
tcnicas a seu dispor at ser vencido pelo grande inimigo, a morte.
Se, porm, se entender a morte como parte da vida e a sade como
bem-estar multidimensional, agir em favor do paciente pode
significar reconhecer que a pessoa tenha entrado j no processo
irreversvel de morrer e que seu bem-estar ento consiste em partir
para tratamentos paliativos que lhe permitam morrer com
dignidade e em paz.
(MARTIN, 2002, p. 121)
Artigo 6 o mdico deve guardar absoluto respeito pela vida humana,
atuando sempre em benefcio do paciente. Jamais utilizar seus conhecimentos para
gerar sofrimento fsico ou moral, para o extermnio do ser humano ou para permitir
e acobertar tentativa contra a sua dignidade e integridade.
O que se entende por guardar absoluto respeito pela vida humana? Esse
respeito garantido quando se pratica a distansia? Ou quando no se integra o
paciente ao seu tratamento, dando-lhe chances de opes?
Afastar o paciente do convvio dos seus, em momento mais humano e mais
pessoal, que a morte, trazer-lhe benefcio? Sondas, cateteres, tubos, monitores,
bips, justificam-se na morte iminente?
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
48
O artigo diz jamais utilizar seu conhecimento para gerar sofrimento fsico
ou moral. Isso pensado na ao paternalista do mdico ao decidir levar seu paciente
em morte iminente para a Unidade de Terapia Intensiva? Quais valores de vida,
respeito e profissionalismo deve-se ter?
Artigo 21 direito do mdico indicar o procedimento adequado ao
paciente, observadas as prticas reconhecidamente aceitas e respeitando as normas
vigentes do pas.
Qual o conceito de procedimento adequado ao paciente? O mdico tem o dom
da escuta para saber o que adequado a cada paciente? O narcisismo mdico permite
ao paciente decidir por si, sobre si?
Artigo 46 vedado ao mdico efetuar qualquer procedimento mdico sem o
esclarecimento e o consentimento prvios do paciente ou de seu responsvel legal,
salvo em iminente perigo de vida.
Na atualidade, que desconhece o modelo do mdico antigo, o novo
profissional esclarece e pede consentimento ou estabelece o morrer em mquinas?
Se o paciente incapacitado, quem pode responder por ele? Como aceitar a
deciso de terceiros, se pode ser contrria a cdigos de tica, de moral, de
humanidade? Quem garante ou quem tira o poder de deciso de um responsvel
legal? O que podemos conhecer da relao desse com o paciente para ser aceita a
deciso como prxima do ideal naquilo que significa o benefcio ao paciente?
Artigo 53 vedado ao mdico desrespeitar o interesse e a integridade do
paciente, ao exercer a profisso em qualquer instituio na qual o mesmo esteja
recolhido independentemente da prpria vontade.
O quadro clnico suficiente para decidirmos pela internao do paciente em
processo de morte, ou deve ser primordial o entendimento de seus valores, do
conceito de humanismo, de tica e moral?
Artigo 56 vedado ao mdico desrespeitar o direito do paciente decidir
livremente sobre a execuo de prticas diagnsticas ou teraputicas, salvo em caso
de perigo iminente de vida.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
49
O mdico concede ao paciente o direito de decidir livremente sobre si no
momento de sua morte? O processo de morte iminente perigo iminente de vida?
Artigo 59 vedado ao mdico deixar de informar ao paciente o
diagnstico, o prognstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a
comunicao direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, levando, nesse caso, a
comunicao ser feita ao seu responsvel legal.
O mdico est capacitado tcnica e humanitariamente para comunicar o
prognstico de morte? A expor ao paciente os objetivos do tratamento centrado no
no curar, mas no cuidar?
No novo contexto, deve o mdico basear-se na DECLARAO DE
VENEZA (1993) sobre o paciente terminal:
1. o dever do mdico curar, quando isso for possvel, aliviar o
sofrimento e agir na proteo dos melhores interesses do seu
paciente;
2. no fazer exceo a este princpio, mesmo no caso de doenas
incurveis ou malformaes;
3. este princpio no exclui a aplicao das seguintes regras:
3.1 o mdico deve aliviar o sofrimento de um paciente com
enfermidade terminal, atravs da no adoo ou suspenso de
um tratamento com o consentimento do paciente ou da sua
famlia imediata, caso esteja impossibilitado de expressar sua
vontade. A no implantao ou a suspenso do tratamento no
desobrigam o mdico de sua funo de assistir o paciente que
est morrendo e de fornecer-lhe os medicamentos necessrios
para minimizar o sofrimento nessa fase terminal;
3.2 o mdico deve abster-se de utilizar medidas extraordinrias
que no tragam benefcios para o paciente;
3.3 o mdico pode, quando no for possvel reverter o processo
final de cessao das funes vitais, aplicar meios artificiais,
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
50
quando os mesmos forem necessrios para manter vivos rgos
a serem utilizados para transplantes, desde que se proceda de
acordo com as leis do pas, ou em virtude de um consentimento
formal dado pela pessoa responsvel, com a certificao da
morte ou da irreversibilidade da atividade vital constatada, por
mdicos no relacionados com os transplantes ou com o
paciente receptor do transplante, devendo os mdicos do
doador serem totalmente independentes dos mdicos que
tratam propriamente do receptor.
A exposio dos artigos, dinmicos e mutveis, do Cdigo de tica Mdica
vigente no pas, leva reflexo sobre os vrios questionamentos propostos e faz
pensar na necessidade de sua adequao realidade moderna.
essencial nova leitura, centrada no paliar, ou mais apropriadamente no
cuidar nessa fase, a interpretao da sade, como bem-estar fsico, psicolgico,
social e espiritual, permite ajustes na valorao que se atribui vida humana,
trazendo a perspectiva da morte no como doena a curar, mas sim parte integrada
da vida (SILVA, 2004, p. 332)
Obriga a pensar questes bioticas, como distansia, beneficncia, no-
maleficncia, autonomia e justia, lembrando: teremos que ter apenas o cuidado de
no vermos na Biotica aquela que trar as respostas prontas, como fosse capaz de
dar solues mgicas na rea de sua atuao. Ela trabalha com a legitimidade
individualizada dos casos e obrigatoriamente nos remete a pensar com uma
argumentao conceitual terica de aplicao prtica. (SILVA, 2004, p. 330)
Convida a refletir com Rubem Alves em Sobre o direito de morrer: a vida
humana, diferente da vida dos bichos e plantas, que se mede por sinais biolgicos e
eltricos, se mede pela possibilidade de alegria que ela contm. Quando essa
possibilidade no mais existe, tem uma pessoa o direito de exigir que sua vida
biolgica no seja mantida por meios hericos, porque cada pessoa senhora de
sua vida. H uma hora em que o corpo e a alma desejam partir. No se deve impedi-
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
51
lo na sua deciso, por meio da fora. Ainda que seja a fora mdica. Fazer isso seria
uma crueldade que no se pode admitir. (ALVES)
Ajuda a reconhecer que, diante de uma medicina tecnicista, preciso aprender
a adequar condutas ao verdadeiro benefcio ao paciente, ainda que isso signifique ser
o poder mdico ferido pela aceitao da morte. No entanto, cuidada, que leva a ter
significado como parceiro humano do paciente, e a achar significado para a prtica
mdica que deveria ser humanizada em sua essncia. Quem sabe, ento, ajude a ser
encontrado o significado para uma parte da individualidade.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
52
LONGEVIDADE A VELHICE E A MORTE NO MUNDO MODERNO
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
53
velhice e morte, so desse modo, banidas do discurso
oficial, uma vez que velhos e mortos, por no mais se constiturem
como fora de produo, passam a representar o subproduto
do sistema: os primeiros por terem se tornado falveis, os segundos
por radicalizarem essa condio. A morte, constituindo-se
como smbolo do fracasso e portanto de vergonha.
(PY e OLIVEIRA, 2004, p. 137)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
54
N
este captulo considerarei a morte relacionando-a longevidade. Vou me
valer de produes de gerontlogos, pois necessidade atual a quebra de
mitos, tabus e estigmas criados sobre a velhice.
Comumente se associa morte velhice, e por isso a recusa em considerar-se
idoso. Ou pior, a aceitao, por parte de muitos, de cerceamentos feitos pela
sociedade moderna, como se as possibilidades de vivenciar o que quer que se deseja
at que a morte chegue pudessem ser ceifadas depois de recebido o rtulo de
velho. No entanto, a morte no exclusivista, no tem preferncia por raa, credo,
idade, sexo ela abraa todos, sem regras, por motivos que no entendemos, e sobre
os quais comeamos a filosofar. Como abraa todos, abraa tambm o velho.
A tendncia do ser humano pensar na morte do outro, o que tambm
acontece em relao ao envelhecimento o outro envelhece, eu no: velhice e
morte no habitam o nosso inconsciente, onde mora o desejo e onde somos eternos.
Na verdade, elas nos so estranhas. Ns as percebemos como coisas que acontecem
aos outros. (PY, 2006, p. 9)
Durante a vida ocorrem privaes e perdas sucessivas, e assim se ruma ao
envelhecimento com o pensamento de que ali sofrer a maior perda a vida, pois:
podemos dizer que envelhecemos embalados pelo desamparo
sofrido desde que nascemos, traduzido na expresso de perdas
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
55
sucessivas que acompanham a nossa existncia. A mais radical das
perdas a perda da vida, a nossa morte
(PY, 2006, p. 11)
A sociedade moderna cultua fortemente a juventude, ao mesmo tempo em
que tende a marginalizar a velhice, que passa a representar o fracasso, a privao, o
insucesso, a limitao, a ausncia de futuro. Marginalizada a velhice, surge o medo
de envelhecer.
na velhice, confrontamos a chegada da morte, no seu estado
concreto, o no-ser, a realidade da aproximao da ausncia do
futuro. por isso que o medo da velhice est confundido com o
medo da morte, que ainda mais se acentua pela ambincia
sociocultural, forte estimuladora do medo da velhice e da morte,
na nfase e no culto pretensa juventude eterna
(PY, 2006, p. 12)
Comearei com Mercadante: a autora fala da necessidade de contra-
generalizao, ou seja, uma desconstruo da velhice genrica, apresentando
vrios jeitos de envelhecer. (MERCADANTE, 2005, p. 34)
A importncia de discutir a contra-generalizao em relao morte que h
na sociedade vigente o conceito de que o envelhecimento to-somente a etapa que
antecede a morte. Mas isso? Tambm questionado pela autora.
Deve ser considerada a diversidade de velhices. Essa heterogeneidade leva s
diferentes formas de viver e conseqentemente de morrer.
No se pode pensar no idoso como um ser passivo espera da morte, pois
isso o reduziria sua parte puramente biolgica, e como fala a autora: a velhice...
alm de sua especificidade biolgica, localiza-se em uma histria e insere-se no
sistema de relaes sociais.(MERCADANTE, 2005, p. 34)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
56
Um idoso sem perspectiva de futuro torna-se realmente sem valor para a vida,
pronto para a morte fsica, completando a morte j instituda de si como sujeito.
Nesse cenrio, a sociedade estabelece a morte como perspectiva para o idoso,
em seu contedo puramente fsico, o que a tem tornado fria, distante e
principalmente institucionalizada.
Monteiro d o entendimento que preciso parar de enxergar somente os
atributos negativos na identidade do velho. Esse olhar bem forte na sociedade atual,
pois como cita o autor, o modelo do corpo desgastado pelo tempo no condiz com
uma sociedade munida de avanos tecnolgicos.(MONTEIRO, 2005, p. 69)
Aqui poderia ser pensado que esse modelo de corpo desgastado afronta o
sonho da imortalidade e leva ao pensamento da morte como fim.
Considerando esse ponto de vista, ao invs de nos preocuparmos tanto com
as tecnologias avanadas que mudam corpos que enganam a aparncia, preciso
uma preocupao maior com o corpo-sujeito, o corpo vivido: sempre velhos corpos
que atravessam o tempo. (MONTEIRO, 2005, p. 73)
comum o pensamento associativo entre velhice e morte, porm o mesmo
autor descreve que a velhice etapa, no fim, e deve ser frutfera, no se
estipulando a passividade de esperar a morte chegar, pois viver a velhice com receio
da morte no faz sentido. (MONTEIRO, 2005, p. 77)
Durante muito tempo sonhou-se com a longevidade. Hoje, ela j prxima,
sonha-se com a imortalidade. O medo da morte assombra, tornando-a distante,
desacompanhada.
A necessidade de domnio sobre sua finitude bem caracterizada pelo autor:
costumo dizer que caso o humano fosse imortal logo inventaria um modo de
morrer. Como no , inventa meios para acreditar na imortalidade. (MONTEIRO,
2005, p. 77)
Reafirma a mais intrnseca caracterstica, a finitude, dizendo: uma vez na
vida s nos resta a possibilidade da morte. Morrer um processo natural, como
viver. Ainda alerta: o sofrimento reside na resistncia. (MONTEIRO, 2005, p. 77)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
57
Quanto mais se busca o distanciamento da morte, mais se sofre e talvez mais
se deixe de dar sentido vida. Segundo o autor, viver, envelhecer e morrer so
processos de conhecimento que nos permitem estar cada vez mais perto de ns
mesmos [...] cabe a mim estar comigo, pois ningum morrer comigo.
(MONTEIRO, 2005, p. 78)
Ser velho no acreditar que seu tempo passou. Tampouco somente esperar a
morte chegar. o tempo de ser e re-significar-se para que talvez ento a morte no
seja representada como castigo por no se manter jovem.
Lopes fala que a velhice no existe isoladamente, mas associada a uma
cultura e a um momento histrico, caracterizando o velho como ser em constante
processo de transformao.
A autora d o claro entendimento de como a morte tormento na sociedade
atual:se no mundo competitivo o xito implica a adeso a modelos calados no
encantamento do narcisismo, administrar a proximidade da finitude propiciadora da
reconstituio de registros primitivos se torna um tormento inafianvel.(LOPES,
2005, p. 86)
A sociedade moderna colocou o idoso na ante-sala da morte, lugar ocupado
por quem deixou de procurar o significado em sua vida passada para almejar novas
vivncias.
Almeida mostra que quando indagamos qual o mundo que se abre para o
indivduo que envelhece, o que observamos que nossa sociedade faz o acento
recair somente sobre as perdas. (ALMEIDA, 2005, p. 105)
A morte passa a ser recompensa para essa fase; perdidas as capacidades
utilitrias sociedade, a morte evento a se esperar passivamente.
A autora ainda mostra o importante crescimento da populao idosa, em parte
decorrente de melhorias no mbito da assistncia sade. Porm, tambm alerta que
se procura viver mais, com qualidade. E questiona: de que vale aumentar a esperana
de vida se esta vida a mais for marcada pela dependncia e incapacidade, se for
uma vida comprada em retalhos?. (ALMEIDA, 2005, p. 106)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
58
Souza descreve o modelo moderno do morrer o processo em mquinas, em
que a confirmao da morte dada no por uma condio orgnica, mas em traado
isoeltrico na tela do monitor.
Normalmente se espera do mdico um milagre, como se pudesse impedir a
morte de se aproximar. Distintas pessoas, sem olhar crtico e humano, se apropriam
desse poder milagroso (como se pudessem!) e travam uma batalha, por vezes
infindvel e normalmente desumana, transformando o paciente em meros dados
laboratoriais, imagenolgicos ou traados ecogrficos. O autor comenta:
a perda da autonomia nos deixa a merc das mquinas sob o
mote de sobreviver a qualquer custo e sabiamente completa: as
mquinas podem ser, sem dvida, muito teis, mas no podemos
nos esquecer quem somos, que vivemos, que amamos, que
envelhecemos, que adoecemos e que morremos. (SOUZA, 2005,
p. 212)
Crte destaca a busca da imortalidade: a biotecnologia tambm busca a
imortalidade. A humanidade sempre almejou a imortalidade. a fantasia final, uma
fantasia que tambm est em curso em todas as tecnologias modernas. (CRTE,
2005, p. 254)
A autora se reporta a Baudillard e ao filme O homem bicentenrio para
ratificar: o que d status ao que humano: sua finitude. Apesar de todos os
avanos biotecnolgicos que podero perpetuar o homem, o que d sentido ao ser
humano a iminente e certa mortalidade. (CRTE, 2005, p. 255)
Maldonado fala que a morte no problema, mas mistrio mais que
uma simples dimenso da existncia. A nica possibilidade de conhecimento que
resta aquela da morte do outro. (MALDONADO, 2003, p. 19)
Achei no texto vnculo direto com o contedo desta dissertao quando o
autor escreve:
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
59
... as grandes religies, as filosofias, as vises de mundo
propem modos os mais diversos para captar a realidade da morte
e para colocar a prpria vida em relao com a morte. Coloca-se
aqui a importncia do smbolo que, ocultando e revelando, ao
mesmo tempo, recoloca a morte na dimenso psicolgica: l onde
a morte assumida como pulso, h inevitavelmente o smbolo de
revel-la. (MALDONADO, 2003, p. 24)
Pond utiliza-se da metfora mdica do paciente de Rosenzweig para dizer
que a felicidade est associada a um ativismo biolgico, ou seja juventude. Mas um
dia essa mesma natureza biolgica nos conduzir ao processo ltimo e necessrio da
fisiologia: a morte, e sua crnica anunciada: o envelhecimento.
Transcreverei o texto original por concordar com o autor: por isso,
mdicoRosenzweig reconhece que, ao devolver a sade razo, devolve o paciente
conscincia da morte. (POND, 2003, p. 32)
o relato do prprio autor:
ns nos batemos contra o medo de viver, contra o desejo de pisar
fora da corrente; agora podemos descobrir que a doena da razo
era puramente uma tentativa de fugir da vida. O homem,
congelado como uma pedra, na torrencial corrente da vida v
como aquele famoso Prncipe Hindu, a morte esperando por ele.
Ento, ele sai da vida. Se viver significa morrer, ele prefere
morrer. Ele escolhe a morte na vida.
Escapa da inevitabilidade da morte adentrando a paralisia da
morte artificial.
Libertamo-nos de sua paralisia, mas somos incapazes de impedir
sua morte; nenhum mdico pode fazer isso; ns o ensinamos a
viver; entretanto, cada passo que ele d leva-o mais perto da
morte.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
60
No h remdio para a morte, nem mesmo a sade. U m homem
saudvel tem a fora para continuar em direo ao tmulo. O
homem doente invoca a morte e deixa-se levar por um medo
mortal.[...] a sade est em paz com a morte.
Ela sabe que quando o Aterrorizante Ceifador vier, ele retirar sua
mscara de pedra e tomar a chama faiscante das mos ansiosas,
amedrontadas e desapontadas do Irmo Vida; ele sabe que a
despedaar contra o solo, extinguindo-a [...] Sabe que ser aceito
nos braos abertos da morte. Os lbios eloqentes da vida so
silenciosos e Aquele eternamente silencioso falar:
Voc me conhece? Sou seu irmo. (POND, 2003, p. 32)
Nota-se total identificao com comportamentos do cotidiano.
Endo afirma que o modelo atual determina:
a partir de uma certa idade voc tem que esperar a morte, voc
no tem mais nada a fazer no meio social, voc espera a morte da
melhor maneira que puder, e no s uma sugesto, vamos dizer
assim, h uma certa insistncia nisso. (ENDO, 2002, p. 63)
essa a imposio social: olha, voc j aproveitou o que tinha que
aproveitar, agora trate de morrer. Obriga o velho carregar culpa por existir. E se
veja beira do caminho esperando a morte chegar, vista como punio ao estorvo
que ser velho.
Revendo os textos constata-se que a velhice compreendida como sinnimo
de morte como se no atingisse jovens e crianas!
A morte passa a ser vista como punio ao ser velho, paradoxal dentro de
uma sociedade que busca incessantemente a longevidade e a imortalidade.
Esse modelo que estimula a longevidade e marginaliza o idoso gera
pensamento ambguo: para que viver? e por que desistir de viver?
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
61
a velhice, senhora hbil em vulnerar-nos a sade e fragilizar-nos
as capacidades, provoca-nos a, pelo menos, dois modos de
reflexo. Um deles o desmerecimento da existncia humana:
Para que viver muito se vou envelhecer, adoecer e morrer? Outro
a impulso para a descoberta de novas possibilidades, no fluxo
constante do vir a ser: Para que sair de cena se posso, sempre,
transformar meu personagem?
(PY, 2006, p. 13)
Caber a cada um, baseado em possibilidades emocionais, escolher a melhor
atitude.
Como citado em alguns textos, o ser humano tomado pela fantasia da
imortalidade. Mas se fosse mortal, por certo daria um jeito de morrer. Aps
conseguir a longevidade, a sociedade deseja a morte dos mesmos.
Ttora traz a discusso da tica da vida e do envelhecimento e fala que na
velhice o tempo se esvai e a morte se torna mais prxima. Por isso o no querer
envelhecer. Como se o tempo pudesse ser estancado e no houvesse morte em outras
fases da vida..
Refora que a sociedade moderna desencadeia averso velhice. Velho
sempre o outro, fase das carncias e das perdas em uma cultura que valoriza os
excessos de prazeres e o culto da felicidade como ausncia de sofrimento, doena e
dor, ser velho privao. Porm, no se trata mais de situar a velhice enquanto
um estado de carncia ou perda, mas sim como um modo de vida singular
(TTORA, 2006, p. 36)
A autora sabiamente mostra, no tocante morte, que querer uma vida sem
doena, dor e morte o mesmo que dizer no prpria vida, acrescentando: a
velhice... deixa de ser uma fase cronolgica e passa a constituir-se em uma atitude
para fazer a vida saciar-se a cada momento como se fora o derradeiro dia. Viver o
infinito da vida no finito de cada instante. (TTORA, 2006, p. 45)
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
62
Ouso utilizar uma fala da autora para exprimir sentimento em relao
morte; acontecimento do qual os humanos no podem se abster de experimentar.
Sendo assim, cabe viver com as maravilhas da vida e apesar das dores.
atribuir vida o estatuto de acontecimento, maneira dos
esticos, significa que a nica escolha possvel viver, com todas
as maravilhas e dores deste mundo. Ora, no se trata, com isso, de
um mero conformismo, ou falta de liberdade, mas sim de sermos
dignos do que nos acontece. (TTORA, 2006, p. 34)
Reportar-me-ei literatura, na palavra de Saramago, no livro As
intermitncias da morte. O autor, de forma espetacular, diz que, alcanada a
imortalidade, o homem buscaria incessantemente e a todo custo a morte.
No contexto da morte ter suspendido suas atividades:
antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me
encontrei diante das pessoas que haviam falecido, nunca imaginei
que a morte delas fosse a mesma de que eu um dia viria a morrer.
Porque cada um de ns tem sua prpria morte, transportando-a
consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu
pertence-lhe... Cada qual com sua morte. Assim . Ento as mortes
so muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e
existiro. (SARAMAGO, 2005, p. 73)
A morte ocorre diariamente. O incmodo aparece quando passa a ser notada.
Morrer natural, assim como natural querer esquivar-se da morte, na iluso
de ser possvel.
Em seu romance, Saramago descreveu que a morte s se torna alarmante
quando se multiplica; porm, sabiamente demonstra como tambm ser alarmante a
sua ausncia. O ritmo de viver seria rompido e isso traria transtornos, mesmo para
aqueles que sempre desejaram o fim da morte para que ela no se tornasse seu fim.
O idoso coloca a morte em cena: reflexes sobre a prtica mdica sob a perspectiva da
reumanizao da morte nos Cuidados Paliativos
63
A sutileza do autor mostra como a morte fica magoada com a
incompreenso dos homens sobre si.
... ela tambm tem seus sentimentos. Magoada porque os seres
humanos tanto a detestam, a morte resolve mostrar como, no
fundo, eles so uns ingratos. (SARAMAGO, 2005)
Ainda mostra que o silncio da mo