A relação entre a identidade internacional do Brasil e a sua realidade interna.
Uma análise acerca das práticas religiosas das mulheres muçulmanas no Brasil
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Autora principal: Karina dos Santos Rodrigues
Coautora: Jacqueline Meire Facci
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Resumo:
Essa pesquisa pretende analisar se as mulheres muçulmanas residentes no Brasil
enfrentam problemas relacionados a instrumentalização do Estado no que se refere às suas
práticas religiosas. O objetivo é compreender se a identidade internacional do Brasil tida como “um
país que interage sem conflitos com diversas culturas e práticas religiosas existentes em seu
território interno” corresponde a realidade. Selecionamos para amostra as mulheres muçulmanas
por dois motivos: primeiro por sua representação numérica no país e segundo por representarem a
dualidade Ocidente x Oriente no que se refere a universalização dos direitos humanos definidos
pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Palavras - chave: Identidade internacional, realidade interna, mulheres muçulmanas.
Introdução
O Brasil possui uma identidade própria no que se refere à política externa. Essa identidade,
entre outras coisas, é definida pela diversidade multicultural existente no país e pela relação
interna harmoniosa diante dessa diversidade. A universalização dos direitos humanos é um
fenômeno recente, resultante de um processo pós guerra que pretende minimizar os conflitos entre
as nações e nos territórios nacionais, estando diretamente associado à democracia. O Brasil
possuindo uma identidade imbuída de conceitos que vão de encontro com as aspirações mundiais
(paz entre as nações e convivência pacífica entre as multiculturalidades existentes no território
nacional) legitima seu discurso na política externa.
Essa pesquisa tem por objetivo analisar se a identidade internacional do Brasil, definida
entre outras coisas, por sua relação harmoniosa entre as diversas práticas culturais e religiosas
existentes em seu território corresponde à realidade interna.
1
Partimos da hipótese de que embora os direitos internacionais a priori surgem da
necessidade de por fim aos conflitos entre os Estados e estabelecer consenso entre os
ordenamentos internos, existem alguns conflitos normativos diante da diversidade cultural nos
territórios nacionais, causando uma tensão a qual os Estados não estão preparados para resolver.
Denominamos por tensão dialética o possível conflito existente no que se refere a identidade
internacional do Brasil e a sua realidade interna.
Para testar essa hipótese, selecionamos para amostra as mulheres muçulmanas por dois
motivos, primeiro por sua representação numérica no país, e segundo por representarem a
dualidade Ocidente x Oriente no que se refere a universalização dos direitos humanos definidos
pela Organização das Nações Unidas (ONU).
No primeiro capítulo apresentamos as características que compõe a identidade
internacional do Brasil e a relevância dessa identidade para as relações diplomáticas. No segundo
capítulo apresentamos uma breve reflexão acerca da problematização teórica sobre a
universalização dos direitos humanos que conceitua e instrumentaliza alguns direitos, entre eles a
liberdade. No terceiro capítulo observamos a multiculturalidade presente no Brasil onde
selecionamos para amostra as mulheres muçulmanas. Para tal aproximação entre a identidade
internacional do Brasil e a sua realidade interna, analisamos a relação do Estado com as práticas
religiosas das mulheres muçulmanas1.
1. Sobre identidade internacional do Brasil
Segundo Amado Luiz Cervo, a política exterior do século XXI preserva o caráter de
diplomacia de Estado, onde a identidade que prevaleceu foi aquela consoante à tradição, em que
os interesses, valores e padrão de conduta cultivados historicamente presidem na conduta externa.
A diplomacia, por sua vez, assume um caráter instrumental que visa abrir oportunidades e criar
facilidades para a internacionalização, ou seja, está pautada nas relações comerciais de setores
internos e externos para movimentar a economia.
Amado Luiz Cervo afirma ainda que após os anos 1990 o Brasil enfrentou alguns
desafios de gestão da inserção internacional do século XXI, e para tal, algumas estratégias
políticas foram adotadas. Nas palavras do autor:
1 A comunidade muçulmana analisada será especificamente à da grande São Paulo, o que permite melhor aproximação
com o grupo selecionado para amostra. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as regiões com
maiores concentrações de muçulmanos coincidem com as que têm grandes comunidades de origem árabe: o Estado de
São Paulo em primeiro lugar, seguido do Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
2
“Dois domínios de ação externa eram sugeridos para
fazer o país avançar à condição de potência emergente: estar
entre os negociadores e decisores do ordenamento multilateral
das relações internacionais e estimular os setores dinâmicos
da sociedade a expandir seus empreendimentos em escala
global. Nisso consiste a nova percepção de globalização.
Embora se apoiando um ao outro, o primeiro objetivo é
assumido pela diplomacia, a cargo do Ministro das Relações
Exteriores, Celso Amorim, e o segundo de forma mais pessoal
pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.”
O autor divide a obra em cinco partes a fim de desvendar estes conceitos por meio da
história da diplomacia brasileira, iniciando pela Relação da Diplomacia Portuguesa e o Território do
Brasil, a Monarquia Brasileira e a Diplomacia da Nação, a Republica e a Diplomacia da Agro
exportação, a Diplomacia do Desenvolvimento e por fim, Diplomacia e Globalização no Século XXI.
Celso Lafer, ministro das relações exteriores do Brasil o publicou o livro A identidade
internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro. O livro faz um
balanço sobre os fenômenos internos que compõe a identidade internacional do Brasil, nesse
ponto se aproximando da análise de Amado Luiz Cervo que considera os fenômenos históricos de
fundamental importância para compreender tal definição. Celso Lafer atribui um peso importante
ao Ministro das Relações Exteriores, sendo ele responsável pela consciência da memória de uma
tradição diplomática.
Dessa forma, a definição da identidade internacional do Brasil carrega aspectos
relacionados a sua relação diplomática harmoniosa com os dez países o qual possui fronteira
territorial e a existência da diversidade cultural e religiosa presente no país onde prevalece uma
convivência pacífica no cenário interno.
1.1 A identidade internacional como elemento político e diplomático
É possível que, renunciando à igualdade de tratamento
(…), alguns se resignem a assinar convenções, em que sejam
declarados e se confessem nações de terceira, quarta ou
quinta ordem. O Brasil não pode ser desse número (Barão do
Rio Branco)2
2 RICUPERO, Rubens. Rio Branco: o Brasil no mundo, Rio de Janeiro, Contraponto, 2000, p. 27.
3
Após a segunda guerra mundial, os direitos humanos passam a ser discutidos como direitos
universais, não sendo mais matéria de domínio exclusivo dos Estados, sendo necessária a
existência de um controle internacional responsável para garantir a paz e os direitos dos
indivíduos. A Organização das Nações Unidas surge nesse cenário, e cada vez mais a liberdade
enquanto direito passa a ser associada à democracia.
No processo de redemocratização, o Brasil adere os conceitos de Direitos Humanos
definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), tendo a Constituição de 1988 o seguinte
artigo:
A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios:
I - independência nacional;
II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção;
V - igualdade entre os Estados;
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.
Art. 4º A República Federativa do Brasil - Constituição de 1988.
Maria Victoria de Mesquita Benevides em seu artigo Os direitos humanos como valor
universal afirma que “os direitos humanos representam hoje na agenda internacional um tema
global, que não é mais prerrogativa dos Estados em sua regulação doméstica. O tema adquiriu
uma vertente internacional, que não deve ser afastada da ordem interna, sob pena de perder sua
eficácia” e o que podemos observar é que a identidade internacional do Brasil, embora pautada
em uma tradição histórica, se legitima na política externa instrumentalizando alguns conceitos no
cenário interno.
Essa identidade internacional do Brasil está presente nos discursos diplomáticos , tendo
seus conceitos apoiados nos valores universais dos direitos humanos definidos pela Organização
das Nações Unidas (ONU), objetivando defender os interesses nacionais no plano internacional.
4
A Fundação Alexandre Gusmão (fundação publica vinculada ao Ministério das Relações
Exteriores) publicou A Política Externa Após a redemocratização, Tomo II – 2003-2010. Neste
ensaio podemos acompanhar algumas mudanças no que se refere a política externa do governo,
como o desejo do ex presidente em tornar o Brasil uma liderança na América do Sul e na América
Latina (segundo o governo, essa liderança não possuía um caráter hegemônico, seria uma
aspiração aos demais países para resolverem conflitos de Estado de maneira pacífica). Entretanto,
embora a diplomacia brasileira tenha assumido uma posição diferente no que se refere aos
interesses externos, os discursos geralmente estavam carregados de uma identidade própria,
ligada às circunstâncias históricas já apresentadas neste artigo.
No discurso do Presidente Luís Inácio Lula da Silva pronunciado na visita à sede da Liga
dos Estados árabes em 2003, Fernando Mello Barreto nos trás um exemplo de um discurso focado
no desenvolvimento econômico que se apropria da identidade internacional do país:
“O Presidente Lula ressaltou que havia mais de 10 milhões de brasileiros
descendentes de imigrantes árabes no Brasil. Observou que a compra de produtos
brasileiros representava cerca de 1,5% do total de importações do mundo árabe. Sublinhou
que o Mercosul e o Mundo Árabe possuíam enormes mercados, com populações de,
respectivamente, 210 milhões e 200 milhões de habitantes. Expressou a esperança de que
a Cúpula entre líderes da América do Sul e de países Árabes, prevista para o ano seguinte,
fosse marco definitivo no estreitamento das relações entre o Mundo Árabe e as nações sul-
americanas. Expressou desejo de que a iniciativa criasse uma nova moldura para a
cooperação e o diálogo entre as duas regiões.”
Outro exemplo, no discurso pronunciado pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da
Silva, na sessão de abertura da Cúpula América do Sul - Países Árabes. Nota-se que os
argumentos também são pautados na identidade internacional do Brasil:
“(…)O Brasil acolhe a todos com os braços abertos, na melhor tradição de nossa
hospitalidade, que é aquela da América do Sul e que herdamos do mundo árabe. Quero saudar,
de modo particular, meu amigo, o presidente Bouteflika, da Argélia. Na qualidade de Presidente da
Liga de Estados Árabes, ele co-presidirá este evento. Esta Cúpula exprime o compromisso que
assumimos de trabalhar, de forma pioneira, para aproximar duas regiões geograficamente
distantes. É uma reunião ousada por seus objetivos e ambiciosa em suas aspirações. Queremos
dar passos concretos e duradouros na luta pelo desenvolvimento e pela justiça social. Nosso
encontro é uma demonstração de confiança no diálogo como forma de aproximar países distantes,
culturas distintas e percepções diferentes do mundo. Ele expressa a confiança no poder do
conhecimento mútuo como fator de aproximação e entendimento. Compartilhamos valores: a
tolerância e o respeito mútuo, o culto à diversidade, a aspiração ao desenvolvimento”.
5
“(…) O reencontro dos sul-americanos com uma civilização que nos chegou primeiro pela
herança ibérica e, depois, pela imigração. Mais do que resgatar vínculos sentimentais, buscamos
valorizar esse patrimônio para abrir um novo capítulo nas relações entre duas importantes regiões
do mundo em desenvolvimento. queremos aproveitar esse imenso potencial para a realização de
objetivos comuns à América do Sul e ao Mundo Árabe. Vamos identificar oportunidades de
comércio e investimentos que permitam a nossos países explorar as possibilidades da economia
global”3
O livro também publicado pela Fundação Alexandre Gusmão, Repertório de Política
Externa: Posições do Brasil, publicado em 2007, apresenta os discursos de destaque do
Presidente Lula e pode-se perceber que a multiculturalidade existente no Brasil esta sempre
associada à democracia cultural, que por sua vez legitima o discurso no que se refere a
capacidade do Brasil em dialogar com a política externa de outros países.
2. Breves considerações sobre o debate teórico acerca da universalização dos direitos
humanos
Uma vez apresentadas as características que compõe a identidade internacional do Brasil e
a sua relevância na política externa, consideramos relevante uma breve reflexão acerca da
universalização dos direitos humanos. A problematização dessa temática, em partes, aproxima a
relação que esta pesquisa pretende fazer entre o caráter externo da identidade internacional e a
sua realidade interna4.
Lindgren Alves considera que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (proclamada
pelas Organização das Nações Unidas em 1948) cumpriu um papel extraordinário para a história
da humanidade. Dentre os aspectos descritos pelo autor para pautar essa afirmativa,
consideramos três: a) A legitimação da lutas dos oprimidos pela igualdade, b) a base legislativa
favorecendo à luta pela liberdade, inspirando as Constituições nacionais na positivação dos
direitos à cidadania, c) A modificação do sistema westfaliano das relações internacionais que
tinham como principais atores o Estado sobreano.
A questão da universalização também está presente no texto, entretanto o autor defende
que o problema desta universalização não está na ocidentalização dos direitos, como apresentado
por outros autores.
3 Fonte: página oficial do Itamaraty (http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/discursos-artigos-entrevistas-e-outras-
comunicacoes/presidente-da-republica-federativa-do-brasil/327792524444-discurso-do-presidente-da-republica-luiz-
inacio). Acesso realizado em 19/11/2012.
4 Essa pesquisa não tem por objetivo apresentar essa discussão pelo viés antropológico, dessa forma não nos
estenderemos sobre o relativismo cultural, considerando o foco da pesquisa em Relações Internacionais e a vasta
literatura antropológica sobre esta ótica instrumental.
6
Boaventura de Souza Santos problematizada em diversos artigos a globalização que entre
outros aspectos, ocorre de maneira unilateral, em que o Ocidente instrumentaliza e normatiza uma
série de conceitos, dentre eles os direitos universais. O autor afirma que os direitos humanos
tendem a operar como “localismo globalizados”, que seria uma forma de globalização de cima para
baixo. Dessa forma a globalização opera como uma arma do Ocidente contra o resto do mundo,
onde a sua abrangência global será obtida à custa da sua legitimidade local. Para Lindgren, de fato
a Declaração dos Direitos Humanos a princípio não é “universal”, por contar com apenas cinquenta
e seis Estados ocidentais ou ocidentalizados, entretanto o autor considera que o acordo de Viena
de 1993 possibilitou um conclave internacional reunindo diversas representações culturais e
religiosas. Lindgren afirma que a naturalização dos direitos humanos não deixa espaço para
dúvidas sobre a sua legitimidade, considerando o Artigo 5º da Declaração:
“As particularidades nacionais e regionais devem ser levadas em consideração,
assim como os diversos contextos históricos, culturais e religiosos, mas é dever dos
Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais,
independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais”.
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos.
Viena, 1993.
A globalização problematizada por Boaventura de Sousa Santos, é para Lindgren o
fenômeno responsável pela aparente inoperância da Universalização dos Direitos Humanos.
“Enquanto para a sociedade de classes, da “antiga” modernidade, o
proletariado precisava ser mantido com um mínimo de condições de subsistência
(daí o Welfare State), para a sociedade eficientista, da globalização pós-moderna, o
pobre é responsabilizado e estigmatizado pela própria pobreza. Longe de produzir
sentimentos de solidariedade, é associado ideologicamente ao que há de mais
visivelmente negativo nas esferas nacionais, em escala planetária: super população,
epidemias, destruição ambiental, vícios, tráfico de drogas, exploração do trabalho
infantil, fanatismo, terrorismo, violência urbana e criminalidade”.
Importante observarmos neste caso que os grupos hostilizados nesse processo não se
resume aos pobres. As mazelas sociais são atribuídas a estereótipos específicos. Em nota de
rodapé o autor exemplifica:
“O fanatismo religioso é particularidade de povos primitivos, fora da civilização
judaico-cristã, pois os integrismos protestantes, católico e israelita são, com certeza,
sadios. O terrorismo é fenômeno quase sempre muçulmano, enquanto a Ku-Klux-Klan, as
“milícias” norte-americanas e o neo-nazismo europeu são tolerados e legais.”7
Segundo Maria Victória de Mesquita Benevides “a Declaração de Viena é o primeiro
documento da ONU que consagra, explicitamente, a democracia como o regime político mais
favorável à promoção e à proteção dos direitos humanos.” O Brasil possuindo uma identidade
imbuída de conceitos que vão de encontro com as aspirações mundiais (paz entre as nações e
convivência pacífica entre as multiculturalidades existentes no território nacional) legitima seu
discurso na política externa. Entretanto, diante da contradição entre direitos humanos e
globalização apresentada por Lindgren, como o Brasil dialoga com este processo no cenário
interno? Para esta questão, levamos em consideração uma das características mais marcantes
da identidade internacional do Brasil, que é a existência da multiculturalidade sem seu território
nacional.
3. A crescente imigração provinda do Oriente Médio para o Brasil
Quando falamos de multiculturalidade no Brasil, geralmente associamos à miscigenação
das três etnia: o branco descendente de europeu, o negro descendente dos povos africanos, e o
índio. Entretanto o Brasil possui longa tradição imigratória, e a multiplicidade perpassa as fronteiras
do Ocidente. Imigrantes de diversas partes do mundo viram no Brasil a possibilidade temporária ou
permanente de viverem no país oferecendo mão de obra no mercado de trabalho interno e a
perspectiva de manter as suas práticas culturais e religiosas. Nesse cenário, poderíamos citar
diversos exemplos, como os Japoneses, Chineses e Libaneses. Esses imigrantes possuem
práticas culturais e religiosas que mesmo fora dos países de origem, influenciam diretamente na
sua forma de atribuir sentido e se relacionar com o mundo.
Embora a nacionalidade dos imigrantes no Brasil seja diversa, consideramos a comunidade
de mulheres muçulmanas no Brasil convergente para análise e aproximação do resultado proposto
por esta pesquisa devido a sua proporção numérica e a dualidade (Ocidente e Oriente) presente
nos debates sobre a universalização dos direitos humanos.
Segundo a página oficial na internet do Centro Islâmico do Brasil, o país hoje conta com
um milhão de muçulmanos e em sua maioria descendentes de Árabes, como sírios, libaneses,
palestinos e egípcios. Entretanto os dados são imprecisos, e divergem das estimativas
apresentadas Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que afirma que o número de
muçulmanos no Brasil cresceu 29,1% de 2000 a 2010, segundo o último Censo realizado. A
comunidade passou de 27.239 pessoas para 35.167. No mesmo período, a população brasileira
aumentou em 12,3%. O número de brasileiros revertidos5 ao islamismo também é um fenômeno
crescente. Um exemplo apresentado pelo site de notícias UOL, o empresário de comércio exterior
Leandro Massud, de 35 anos, Paulistano, neto de libaneses cristãos por parte de pai se reverteu
ao Islã após ter um contato mais próximo com a religião ao buscar suas origens.
5 Segundo o Corão todo indivíduo nasce muçulmano, portanto entende-se por revertidos aqueles que não
compartilhavam a mesma crença, porém em algum momento aderem ao islã, estando estes, retornando a sua condição
natural.
8
Como resultado desse processo, o número de mesquitas também aumentou na Grande
São Paulo.
Embora todas as unidades da federação existam pessoas que se declaram seguidoras da
religião, as regiões com maiores concentrações de muçulmanos coincidem com as que têm
grandes comunidades de origem árabe: o estado de São Paulo em primeiro lugar, seguido do
Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais.6
3.1 Das práticas religiosas das mulheres muçulmanas no Brasil à convivência com a
instrumentalização do Estado
No Capítulo 2, apresentamos duas vertentes da problemática a cerca da universalização
dos direitos humanos. A primeira refutada por Lindgren sobre os aspectos unilaterais da
instrumentalização dos direitos em que predominariam os conceitos Ocidentais, e o segundo sobre
a globalização, que tende a estereotipar alguns grupos excluindo-os do processo econômico e
social. Ambas as vertentes dialogam indiretamente com a questão dessa pesquisa. A primeira,
julgamos importante não desconsiderá-la levando em consideração a hipótese da pesquisa, e a
segunda por apresentar um caráter temporal ligado ao processo atual da globalização, onde
novos fenômenos de exclusão se estabelecem através dos estereótipos.
Objetivamente colhemos alguns dados sobre as experiencias das mulheres muçulmanas no
Brasil para identificar se a hipótese central dessa pesquisa de que a identidade internacional do
Brasil não corresponde à sua realidade interna, procede. Essa pesquisa pretende analisar essa
relação através da temática de Relações Internacionais, dessa forma pretendemos observar o
Estado em seu ordenamento interno.
Uma matéria recente publicada no site de notícias do Globo.com chama a atenção para um
exemplo que representa, de certa forma, a nossa questão. Ao realizar um teste no DETRAN
(Departamento de Trânsito) na região do ABC, na grande São Paulo, uma mulher (Ahlan Saifi)
denunciou ter sofrido restrições para renovar a sua carteira de motorista. Ocorre que a mulher é
muçulmana, e o DETRAN a teria proibido de realizar a prova caso se recusasse a tirar o véu.
Segundo o site de notícias, Ahlan Saifi se recusou a tirar o acessório e explicou que era
contra suas práticas religiosas “É um traje religioso, na verdade é o véu e a roupa por completo. É
o hijab, que a mulher muçulmana tem que vestir", disse. Segundo ela, a prova foi bloqueada pelo
DETRAN, que acompanha o teste pela câmera no computador. "Tive que levantar, pegar minhas
coisas e sair. Deixei a prova pela metade", explica Ahlan Saifi.
6 Informações obtidas através do site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. http://www.ibge.gov.br.
Acesso realizado em 19/11/2012.
9
A princípio, a hipótese de que há uma tensão entre a definição da identidade internacional
do Brasil e sua realidade interna nos parece correta, entretanto julgamos importante
entrevistarmos7 o Sheikh Muhamed Al Bukai, diretor de assuntos religiosos da União Nacional das
Entidades Islâmicas (UNI).
As práticas religiosas do islamismo são polêmicas, estando muitas vezes associadas aos
atos extremistas que vão desde a submissão das mulheres até atos de terrorismo. Sheik Mohamad
Al Bukai atribui essa associação negativa à falta de conhecimento da sociedade a cerca do
islamismo, que sendo a religião com maior número de adeptos no mundo, possui seguidores de
diversas regiões e algumas especificidades culturais desses povos são relacionados à religião. A
circuncisão feminina, por exemplo é um fator cultural específico de algumas regiões africanas, não
sendo uma prática prescrita no Corão, de acordo com Sheik Mohamad Al Bukai. Dessa forma,
separamos práticas culturais de práticas religiosas, para evitarmos uma relação incorreta entre as
partes.
Apresentamos o exemplo da experiência de Ahlan Saif e questionamos se no geral às
mulheres muçulmanas no Brasil enfrentam problemas com a instrumentalização do Estado para
exercer práticas religiosas. Sheikh Mohamed Al Bukai afirmou que o Brasil sendo um Estado Laico
se difere de outros países, pois a liberdade religiosa está prescrita na Constituição. Dessa forma,
no que se refere ao Estado, há para Mohamed Al Bukai uma relação harmoniosa que proporciona
um campo para o exercício das diversidades religiosas existentes no país.
Constituição Federal de 1988
...
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
...
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
...
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a
cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
...
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
...
7 Entrevista realizada em 12.11.2012. A entrevista poderá ser disponibilizada na íntegra, enviando uma solicitação para o
endereço eletrônico [email protected] ou [email protected]
10
Art. 6. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição (grifou-se).
...
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
...
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da
cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
Observando o plano externo, embora a França seja o país com a maior comunidade
islâmica da União Europeia, foi o primeiro país da Europa a proibir o uso do véu em 2011.
Segundo a lei, as pessoas que esconderem seu rosto em "locais abertos ao público", como
repartições públicas, meios de transporte, estabelecimentos comerciais, parques e cinemas, estão
sujeitas a multas de 150 euros (cerca de R$ 345). Houveram manifestações e duas mulheres
usando o hijab foram presas. “Não estamos falando de segurança ou de religião, mas de respeito
aos nossos princípios republicanos”, disse a ministra da Justiça, Michele Alliot-Marie8.
Sheikh Mohamed Al Bukai lembra que a Constituição francesa também é laica, e observa
que a restrição do uso do véu trata-se de uma imposição estritamente política, que objetiva
diminuir a imigração da comunidade muçulmana na Europa. Bélgica, Espanha e Holanda também
estão discutindo proibições semelhantes. No mesmo ano, na Itália uma mulher com o rosto coberto
por um véu foi abordada pela polícia tendo que pagar uma multa de 500 euros. Segundo a fonte de
notícias AFP, o caso ocorreu em Novara, no norte do país. Nesse ano, cidade era administrada
pelo partido anti-imigração Liga do Norte, pertencente à coalizão do governo nacional do primeiro-
ministro Silvio Berlusconi.
Esses casos se diferem do ocorrido com Ahlan Saif no Brasil. Sheikh Mohamed Al Bukai
considera essa situação atípica ocasionada pela falta de conhecimento da atendente daquela
unidade do DETRAN, não havendo nesse caso uma restrição jurídica do Estado ou preconceito
por parte da atendente.
No Brasil, Lei n.º 8.313 - Lei Rouanet - de 23 de dezembro de 1991 Restabelece princípio
da lei nº 7.505, de 02 de julho de 1986, instituído Programa Nacional de Apoio à Cultura –
PRONAC - e dá outras providências.
Artigo 39º. Constitui crime, punível com reclusão de dois a seis meses e multa de vinte por
cento do valor do projeto, qualquer discriminação de natureza política que atente contra a
8 Fonte BBC Brasil (http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/09/100914_france_burca_mdb.shtml).
11
liberdade de expressão, de atividade intelectual e artística, de consciência ou crença, no
andamento dos projetos a que se referem esta Lei.
O Brasil também se difere de outros países no que se refere à imigração. Rossana Rocha
Reis em seu artigo Direitos Humanos e migrações internacionais nos trás um exemplo da relação
de outros países com essa questão:
“No dia 28 de agosto de 2001, um navio cargueiro, denominado Tampa, de bandeira
norueguesa resgatou 438 pessoas que estavam num barco indonésio à deriva em alto-mar. A
maioria dessas pessoas vinha do Afeganistão, mas também havia passageiros do Sri Lanka e do
Paquistão, todos tentando chegar à Austrália. A imprensa dividiu-se entre falar de um navio "cheio
de refugiados" ou de um navio "cheio de imigrantes ilegais". A Austrália recusou-se a recebê-lo, e
afirmou que "a carga" do Tampa era responsabilidade da Indonésia ou da Noruega. A Indonésia
ameaçou mandar o exército ao porto para impedir os refugiados de desembarcarem, mas depois
voltou atrás, aceitando recebê-los. Os passageiros, por sua vez, recusaram-se a voltar e
resolveram fazer greve de fome. Durante uma semana, o navio Tampa permaneceu no mar,
vigiado pela marinha australiana e impedido de atracar em qualquer lugar do mundo”.
A autora afirma que os Estados modernos possuem o monopólio da legitimidade da mobilidade,
sendo este um dos fundamentos da soberania do Estado. Levando em consideração a
problemática acerca da globalização, podemos afirmar que a imigração não se limita ao campo
teórico social, sendo também um fenômeno político.
Diante dessa questão, o Brasil assume uma posição que vai de encontro com discursos utilizados
nos assuntos diplomáticos. A exemplo, um caso emblemático ocorrido no ano de 2010 envolvendo
o Oriente Médio virou tema de debate em diferentes países, chegando inclusive à esfera civil. A
iraniana Sakineh Mohamadi-Ashtianí que havia sido condenada em 2006 à seis anos de prisão
pelo assassinato do seu marido, teria sido também condenada a morte por apedrejamento devido
o adultério cometido. O caso veio a publico e ganhou uma onda de protestos no Ocidente, que
apelavam pela absolvição da condenada. Embora alguns meios de comunicação tenham
veiculado que o presidente Lula, após inicialmente dizer que não intercederia por Sakineh, apelou
a Ahmadinejad para que Sakineh fosse recebida no Brasil, o presidente negou que tenha feito tal
proposta ao presidente Mahmoud Ahmadinejad. Lula fez a declaração durante entrevista coletiva
na cidade Argentina de San Juan, e fez questão de ressaltar que tem "um grande respeito" pelo
Irã, país com o qual compartilha "uma amizade" e do qual não conhece as leis "a fundo". “ Se o Irã
está disposto a conversar sobre esse assunto, nós teríamos um enorme prazer e essa mulher
poderia vir ao Brasil” (publicado em 03/08/2010 pelo R7 notícias).
O fato do Brasil conceder o direito a cidadania aos estrangeiros, após dez anos no país, é também
um diferencial para Sheikh Mohamed Al Bukail, pois saindo da ilegalidade os estrangeiros
regularizados possuem condições de socialização e inserção no mercado de trabalho.
12
3.2 Das práticas religiosas exercidas pelas mulheres muçulmanas à convivência social no
Brasil
Após o 11 de Setembro de 2001 as atenções sobre a comunidade islâmica no Brasil
contribui para que a sociedade passasse a observar mais a presença muçulmana no país,
crescendo também o número de pesquisas sobre o tema.
Vera Lucia Maia publicou o artigo Os Muçulmanos no Brasil, tendo como método a
observação do campo e a aplicação de entrevistas a fim de compreender o universo islâmico. A
pesquisadora apresenta alguns relatos de mulheres muçulmanas, de diversas nacionalidades,
entre elas brasileiras revertidas, sobre as experiencias com a sociedade em geral.
Fazendo uma referência às fronteiras que definem “o nós e o outro” apresentado por Homi
Bhabah (2005) a autora afirma que estas fronteiras podem delimitar um espaço próprio, onde se
legitima e determina a separação entre os indivíduos. Neste processo resultam alguns conflitos,
que podem ser diretos ou velados. Os relatos apresentados no artigo apresentam situações dos
dois aspectos, ocorrendo inclusive entre muçulmanos árabes e não árabes.
A abordagem midiática do 11 de Setembro, embora em sua maioria negativa, proporcionou
maior aproximação de não muçulmanos ao islamismo. Segundo o Sheikh Mohamed Al Bukai,
existem ainda abordagens da sociedade no Brasil de maneira preconceituosa ligadas aos
estereótipos que associam o islã ao extremismo. Entretanto o 11 de Setembro também fez com
que um número maior de pessoas se interessassem pela religião, e após conhecerem os reais
fundamentos do Corão alguns se tornaram revertidos.
Considerações finais
Essa pesquisa que partiu da hipótese de que a identidade internacional do Brasil não
corresponde a sua realidade interna, entretanto ao se aproximar dessa questão através das
práticas religiosas das muçulmanas no Brasil identifica que o Estado se instrumentaliza de
maneira que possibilita a liberdade e ambiente para propagação dessas práticas, se diferenciando
de outros Estados que estabelecem nos termos das leis restrições sob pena de multa. Embora
discutida a sua legitimidade, o Estado laico no Brasil oferece condições de uma convivência
harmoniosa no que se refere a instrumentalização do Estado e a diversidade religiosa, ou seja, no
âmbito jurídico, as muçulmanas não encontram muitos problemas relativos a sua permanência no
Brasil.
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Diante dos relatos apresentados, consideramos haver um conflito velado que só é
perceptível no âmbito das relações sociais, onde o preconceito existe e é vivenciado por aqueles
considerados diferentes. Entretanto, esse conflito não menos importante de ser observado e
combatido, se difere daqueles apresentados por outros países que instrumentalizam a noção do
diferente enquanto ilegal dentro de uma conjuntura nacional que não dialoga com a diversidade
cultural e religiosa.
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