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  • ROSALBA MARIA CARDOSO GARCIA

    Polticas pblicas de incluso: uma anlise no campo da educao especial brasileira

    Florianpolis

    2004

  • ROSALBA MARIA CARDOSO GARCIA

    Polticas pblicas de incluso: uma anlise no campo da educao especial brasileira

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para obteno do grau de Doutor. Orientadora: Profa. Dra. Eneida Oto Shiroma

    Florianpolis

    2004

  • AGRADECIMENTOS

    Inicio por agradecer a concesso de bolsa de estudos do CNPq que oportunizou a

    realizao da pesquisa na vigncia de melhores condies objetivas.

    Ao longo do curso de doutorado partilhei momentos de estudo, gastronmicos,

    de troca de experincias de vida, de afeto...situaes que devo s colegas de curso:

    Anamelea, Beleni, Cleonice, Dbora, Ilana, Marilia e Patrcia.

    imprescindvel mencionar os professores que prestigiaram esta formao:

    Maria Clia Marcondes de Moraes, Paulo Tumolo, Antonio Munarim, Erni Seibel. Da

    mesma forma, aqueles que participaram do Exame de Qualificao: Mnica Kassar,

    Olinda Evangelista e Paulo Meksenas, cujas contribuies orientaram a finalizao

    desse estudo.

    Um agradecimento especial professora Olinda Evangelista que acompanhou e

    incentivou esta pesquisa desde o seu incio e amiga Maria Sylvia Cardoso Carneiro,

    leitora e conselheira.

    Tambm gostaria de mencionar a reviso cuidadosa de Tanira Piacentini e as

    tradues de Anderson de Souza e Patrcia Laura Torriglia.

    Com muito respeito e carinho, agradeo imensamente professora Eneida

    Shiroma pela orientao sria, presente, permanentemente conectada aos

    desdobramentos do trabalho acadmico em foco.

    Aos meus familiares, incluindo Miro e Titi, que apoiaram e acompanharam esta

    caminhada, com quem tenho muito prazer em dividir a satisfao de concluir essa

    pesquisa.

    Um ltimo agradecimento, Maria Helena Michels, companheira de todas as

    horas e presente em cada passagem desse trabalho.

  • RESUMO

    O presente trabalho teve como objetivo estudar as polticas de incluso no Brasil, procurando compreender os processos pelos quais se articulam educao especial. Levou-se em considerao, para o desenvolvimento das anlises propostas, trs nveis de elaborao: 1) a poltica educacional dos anos de 1990 e incio do sculo XXI e suas implicaes para a educao de sujeitos considerados com deficincia; 2) a incluso pensada como poltica pblica; e 3) a relao desses dois nveis com as orientaes de organismos multilaterais referentes incluso. A pesquisa possibilitou caracterizar e contextualizar a poltica educacional de incluso de sujeitos considerados com deficincia no Brasil, bem como identificar, no debate nacional e internacional, as referncias tericas que podem ser aproximadas s polticas de incluso. Dessa forma, procurou-se apreender a incorporao dessas bases pela poltica de educao especial brasileira. A investigao foi desenvolvida por meio de anlise documental de fontes nacionais e internacionais com base na anlise de discurso textualmente orientada proposta por Norman Fairclough. Os discursos relacionados s polticas de incluso propem uma soluo para os problemas sociais, econmicos, polticos, educacionais existentes na atualidade. Para tanto, esteiam-se em uma trama de conceitos politicamente corretos, na tentativa de construir uma linguagem de mudana social que motive os sujeitos sociais a aderirem aos projetos divulgados. A anlise da proposio poltica de educao especial brasileira, em sua relao com as idias de incluso divulgadas em nvel internacional, possibilitou discutir trs pontos de tenso: gesto, formas organizativas do trabalho pedaggico e formao e trabalho docente. A identificao e anlise desses eixos permitiu mostrar que as diretrizes polticas para a educao especial brasileira simultaneamente divulgam a existncia de uma sociedade harmnica e coesa e apresentam estratgias para administrar, justificar e legitimar as desigualdades sociais e educacionais numa lgica de mercado. Palavras-chaves: poltica educacional; incluso; educao especial; educao inclusiva; necessidades educacionais especiais.

  • ABSTRACT

    The main objective of this work was to study inclusion policies in Brazil through the understanding of the processes related to special education. We have taken into consideration, for the development of the proposed analyses, three levels of elaboration: 1) the educational policies of the 1990s and the beginning of the twenty-first-century and their implications for the education of those subjects who are considered to have some kind of disability; 2) the notion of inclusion thought of as a public policy; and 3) the relation between these two levels with the orientation of multilateral organisms that refer to inclusion. The research allowed the characterization and contextualization of the educational inclusion policy of subjects who are considered to have some kind of disability in Brazil, as well as the identification of the theoretical references that can be related to inclusion policies in the national and international debates. In this sense, we have tried to understand how the Brazilian policy for special education incorporates such aspects. The investigation was developed by means of an analysis of national and international documents based upon the textually oriented discourse analysis proposed by Norman Fairclough. The discourses related to inclusion policies propose a solution for social, economic, political, and educational problems currently present. In order to accomplish that, these inclusion policies count on a network of politically correct concepts in an attempt to construct a language of social change that aims at motivating social subjects to support the policies projects. The analysis of the political proposition of Brazils special education, in its relation to the ideas about inclusion divulged at an international level, made possible the discussion of three tension points: management, organization forms of pedagogical work, and teachers training and work. The identification and analysis of these axes allowed us to show that the political strategies for Brazils special education simultaneously advertise the existence of a cohesive and harmonious society and present strategies to administrate, justify and legitimate social and education inequities based upon the markets logic. Key-words: educational policy; inclusion; special education; inclusive education; special educational needs.

  • LISTA DE SIGLAS

    ADTO Anlise de discurso textualmente orientada

    ANPEd Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Educao

    APAE Associao de Pais e Amigos dos Excepcionais

    AVAS Atividades da Vida Autnoma e Social

    BM Banco Mundial

    MEC Ministrio da Educao

    CCE Comisso das Comunidades Europias

    CENESP Centro Nacional de Educao Especial

    CEPAL Comisso Econmica para a Amrica Latina e Caribe

    CNE Conselho Nacional de Educao

    CFE Conselho Federal de Educao

    CORDE Coordenadoria Nacional para a Integrao da Pessoa Portadora de

    Deficincia

    EFA Education for all

    ENEM Exame Nacional do Ensino Mdio

    FSP Folha de So Paulo

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais

    LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

    MARE Ministrio da Administrao e Reforma do Estado

    NEBA Necessidades Bsicas de Aprendizagem

    OCDE Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico

    ONG Organizao no-governamental

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PCN Parmetros Curriculares Nacionais

    SAEB Sistema de Avaliao da Educao Bsica

    SEESP Secretaria de Educao Especial

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Servio de apoio pedaggico especializado na classe comum.....................91

    Quadro 2 Servio de apoio pedaggico especializado em salas de recursos...............92

    Quadro 3 Atendimento pedaggico especializado em classe especial.........................93

    Quadro 4 Atendimento pedaggico nas escolas especiais...........................................95

    Quadro 5 Relao entre escolas especiais pblicas e privadas nas Diretrizes Nacionais

    para a Educao Especial na Educao Bsica..........................................161

    Quadro 6 Competncias previstas para professores capacitados e especializados.....185

  • SUMRIO

    INTRODUO...............................................................................................................01 1 Dos objetivos................................................................................................................01 2 Das justificativas para desenvolver esta pesquisa........................................................02 3 Da questo metodolgica...................................................................................... .......09 3.1 Das fontes documentais e sua produo............................................................ .......11 3.2 Da apreenso do discurso poltico..................................................................... .......14 3.3 A opo pela anlise documental...................................................................... .......15 4 Da organizao do texto....................................................................................... .......20 CAPTULO 1 - POLTICAS DE INCLUSO: CONCEITOS E CONCEPES........22 1.1 Incluso e excluso............................................................................................ .......22 1.2 Polticas pblicas de incluso............................................................................ .......31 1.2.1 Concepo de Estado...................................................................................... .......34 1.2.1.1 A reforma do Estado.................................................................................... .......35 1.2.2 Sociedade civil................................................................................................ .......38 1.3 As polticas de incluso e a educao especial: a apreenso do debate pela rea.....46 1.3.2 Abordagem das polticas de incluso relacionadas educao especial com base

    nas escolas............................................................................................................47 CAPTULO 2 - A POLTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA DE INCLUSO DE SUJEITOS CONSIDERADOS COM DEFICINCIAS......................................... ......49 2.1 A Resoluo CNE/CEB n 2/2001.................................................................... ......49 2.2 O Parecer CNE/CEB n 17/2001....................................................................... ......69 2.2.1 Uma justificativa para a poltica de incluso.........................................................71 2.2.2 O objetivo da poltica de incluso.........................................................................74 2.2.3 Os princpios que orientam a poltica nacional de incluso educacional...............76 2.2.4 O conceito de necessidades educacionais especiais...............................................79 2.2.5 O conceito de educao especial na educao bsica..................................... .......81 2.2.6 O conceito de incluso.................................................................................... .......83 2.2.7 Organizao dos sistemas de ensino para o atendimento educacional de alunos

    com necessidades especiais........................................................................... ......86 2.2.7.1 Organizao das escolas regulares para o atendimento dos alunos com

    necessidades educacionais especiais..................................................................90 2.2.7.2 A organizao das escolas especiais para o atendimento dos alunos com

    necessidades educacionais especiais..................................................................94 2.3 Pontos de tenso na poltica educacional direcionada aos sujeitos considerados com

    deficincia.......................................................................................................... ......98 CAPTULO 3 - DISCURSOS E POLTICAS DE INCLUSO NA VIRADA DO SCULO........................................................................................................................101 3.1 Introduo................................................................................................................101 3.2 Matizes discursivos das polticas de incluso......................................................104 3.2.1 Matiz gerencial.....................................................................................................104

  • 3.2.1.1 Modelo de Estado..............................................................................................105 3.2.1.2 Concepo de sociedade civil............................................................................110 3.2.1.2.1Comunidade ....................................................................................................111 3.2.1.2.2Cidadania ativa................................................................................................114 3.2.1.2.3Capital social...................................................................................................117 3.2.1.3 Abordagem de proteo social..........................................................................123 3.2.2 Matiz humanitrio.................................................................................................126 3.2.2.1 Justia social......................................................................................................126 3.2.2.2 Coeso social.....................................................................................................128 3.2.2.3 Solidariedade.....................................................................................................129 3.2.2.4 Pertencimento....................................................................................................130 3.2.3 Matiz pedagogizante.............................................................................................131 3.2.3.1 Padro de aprendizagens...................................................................................131 3.2.3.2 Formao, perfil e competncias do professor..................................................135 3.3 Tecendo os fios dos discursos para compreender as polticas de incluso e as

    propostas para a educao nessa perspectiva.........................................................137 3.3.1 Aproximaes ao pensamento de Karl Mannheim: o planejamento para a

    liberdade.............................................................................................................140 3.3.2 Aproximaes ao pensamento de Talcott Parsons: coeso, motivao e

    adaptao.............................................................................................................146 3.4 Na direo de uma sntese sobre discursos e polticas de incluso.........................150 CAPTULO 4 - A POLTICA NACIONAL DE EDUCAO ESPECIAL NA VIRADA DO SCULO: CONTORNOS E POSSIBILIDADES A PARTIR DE UM MODELO DE INCLUSO...........................................................................................152 4.1 Introduo................................................................................................................152 4.2 Contornos e possibilidades referentes gesto, formas organizativas do trabalho

    pedaggico e formao e trabalho docente na educao especial na educao bsica.....................................................................................................................155

    4.2.1 A gesto da educao especial na educao bsica..............................................157 4.2.1.1 A oferta dos servios de educao especial...................................................157 4.2.1.2 A sustentabilidade do processo inclusivo......................................................164 4.2.1.3 A gesto proposta segue o modelo gerencial....................................................167 4.2.2 Formas organizativas do trabalho pedaggico na educao especial na educao

    bsica...................................................................................................................168 4.2.2.1 Uma abordagem educacional para a educao especial....................................168 4.2.2.2 Uma crtica homogeneizao da escola regular..............................................174 4.2.2.3 A manuteno das desigualdades educacionais.................................................177 4.2.3 Formao e trabalho docente na poltica de educao especial na educao

    bsica...................................................................................................................178 4.2.3.1 A formao dos professores..............................................................................180 4.2.3.2 As competncias dos professores..................................................................183 4.2.3.3 A hierarquia como elemento de gesto do trabalho docente .............................186 4.3 Contornos e possibilidades de uma poltica educacional........................................189 CONSIDERAES FINAIS: SOBRE PERIGOS E ESPERANAS..........................192 REFERNCIAS............................................................................................................200 FONTES DOCUMENTAIS..........................................................................................210 DOCUMENTOS NACIONAIS....................................................................................210

  • DOCUMENTOS INTERNACIONAIS.........................................................................212 APNDICE...................................................................................................................215

  • INTRODUO

    1 Dos objetivos

    Incluso social e educao inclusiva so expresses que ganharam importncia

    no discurso de diferentes correntes poltico-ideolgicas e nas discusses desenvolvidas no

    campo terico, nos ltimos anos. possvel perceber, portanto, tentativas de defini-las

    como conceitos e delinear caminhos para implant-las na condio de polticas. Debates

    com tais finalidades tm focalizado as chamadas minorias ou grupos excludos que,

    numericamente, representam a maior parte da populao mundial. exatamente um

    diagnstico de produo de excluso social que tem justificado a necessidade de propor

    polticas que contemplem a incluso social.

    No presente trabalho, tenho como objetivo estudar as polticas de incluso no

    Brasil, procurando compreender os processos pelos quais se articulam educao especial.

    O debate acerca da educao inclusiva tem sido enfatizado neste campo, no sem

    polmica. Anlises preliminares j indicavam alguns pontos de tenso, dentre os quais

    destaco a compreenso de educao especial como modalidade educacional que permeia

    os discursos das polticas para o setor no mbito nacional. Tal apreciao permitiu perceber

    que as polticas de incluso, do ponto de vista da sua proposio, compreendem todos os

    tipos de atendimento educacional direcionados aos sujeitos com necessidades

    educacionais especiais, independentemente de estarem localizados na rede regular de

    ensino ou em instituies especializadas. Essa discusso adquire maior complexidade ao se

    observar que a proposta educacional para a rea relaciona educao especial e educao

    bsica, permitindo a apreenso segundo a qual s seriam inclusivos os trabalhos

    realizados no ensino regular. Contudo, a compreenso de educao especial como

    modalidade educacional parece ser o argumento crucial para que a poltica pblica de

    educao especial em vigor seja divulgada como inclusiva em todos os seus

    desdobramentos.

    As anlises propostas pretendem atingir trs nveis de elaborao: 1) a poltica

    educacional dos anos 1990 e incio do sculo XXI e suas implicaes para a educao de

  • 2

    sujeitos considerados com deficincia; 2) a incluso pensada como poltica pblica; e 3) a

    relao desses dois nveis com as orientaes de organismos multilaterais referentes

    incluso.1

    Com a inteno de mais bem apreender esse debate, os objetivos especficos deste

    estudo so: 1) caracterizar e contextualizar a proposta nacional de poltica educacional de

    incluso de sujeitos considerados com deficincia no Brasil; 2 2) identificar no debate

    nacional e internacional as bases tericas das polticas de incluso; 3) apreender a

    incorporao dessas bases pela poltica de educao especial brasileira.

    Tambm se faz necessrio apresentar algumas questes iniciais a orientar esse

    debate: as polticas de incluso, nos termos de sua proposio, contribuem para publicizar

    as desigualdades que historicamente constituem a educao dos sujeitos considerados com

    deficincia? Favorecem prticas de ampliao da participao desse grupo de pessoas na

    vida social, em especial no mbito da educao? Quais as bases que as sustentam? Qual a

    racionalidade que as preside?

    2 Das justificativas para desenvolver esta pesquisa

    Ao longo de minha vida profissional, 3 tenho localizado minhas preocupaes e

    atividades de pesquisa acadmica sobre os processos e as relaes que envolvem sujeitos

    considerados com deficincia e educao, seja no mbito do ensino fundamental ou na

    1 Os organismos internacionais cujos documentos sero analisados neste estudo so: Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), Comisso Econmica para a Amrica Latina (CEPAL), Organizao para a Cooperao e o Desenvolvimento Econmico (OCDE), Banco Mundial (BM) e duas comisses da Europa: Comisso das Comunidades Europias (CCE) e Comisso sobre Criao de Riqueza e Coeso Social. 2 Fao a opo por esta terminologia a partir da discusso desenvolvida em Carneiro (1996), que adota alunos considerados [...]. Nos ltimos anos, a expresso portadores de tem sido refutada, entre outros motivos, por ser um lxico de difcil traduo para as diferentes lnguas, sob o risco de mudar de sentido (MITTLER, 2003). Assumo a referncia a sujeitos considerados com deficincia no intuito de declarar o foco de minhas preocupaes em termos educacionais. 3 Primeiro como fisioterapeuta, atuando em escolas especiais que atendiam alunos considerados com deficincia mental, muitos deles apresentando deficincias motoras e, em grande medida, por isso considerados com diagnstico relacionado ao rendimento intelectual. Depois, como professora em instituies de ensino superior, no setor pblico e privado, trabalhando em cursos de pedagogia, particularmente na Habilitao Educao Especial.

  • 3

    educao profissional.4 No Mestrado em Educao foi possvel perceber que o acesso ao

    ensino fundamental para esse grupo de alunos est profundamente vinculado a iniciativas

    particulares, s suas prprias aes, de seus familiares ou de seus professores e professoras

    individualmente. Embora se tenha convico sobre a importncia das garantias

    constitucionais em relao ao direito educao, no estudo referido foi possvel perceber

    que a escolarizao no ensino regular constituda, em grande medida, pela privatizao

    das relaes no interior do espao pblico (GARCIA, 1998). Concluiu-se que a educao

    ofertada aos sujeitos considerados com deficincia em condies de amplo conflito entre

    pblico e privado, em circunstncias que evidenciam e constituem o embate travado na luta

    pelos direitos sociais previstos constitucionalmente. Naquela investigao, a poltica

    educacional recebeu tratamento de pano de fundo para o desenvolvimento das reflexes

    que receberam maior ateno, a saber, o cotidiano da escolarizao.

    A partir daquela pesquisa, uma das possibilidades que se desenharam como

    estratgia para avanar nas reflexes sobre esse campo foi dedicar uma maior ateno

    poltica educacional, agora como objeto da investigao e, mais precisamente, abordando as

    proposies para a educao de sujeitos considerados com deficincia sob a bandeira da

    incluso.

    Para justificar a realizao de uma pesquisa sobre esta temtica parece necessrio

    considerar quem a populao que precisa de uma poltica pblica de educao especial no

    Brasil, quem aluno potencial da educao especial, e at mesmo a controvrsia sobre o

    nmero de pessoas que constituem essa populao.

    Segundo o IBGE, os sujeitos considerados com deficincia, no Brasil perfazem

    14,5% da populao nacional, o que significa aproximadamente 24,5 milhes de pessoas.

    Ao procurar dimensionar e identificar esse grupo, o rastreamento quantitativo por

    intermdio dos indicadores estatsticos pode ser um primeiro caminho. Por outro lado,

    levando em conta a visvel heterogeneidade da sociedade brasileira (PAOLI, 1987), as

    indicaes quantitativas no so suficientes, sendo necessrio perceber essa realidade de

    4 O interesse de pesquisa tem se voltado, particularmente, para os processos educacionais envolvendo sujeitos que apresentam seqelas motoras. Vale ressaltar o estudo realizado no curso de Mestrado em Educao (UFSC/SC), no qual foi desenvolvida uma investigao a respeito da insero escolar de alunos que apresentam seqelas motoras no ensino regular, concludo em 1998. Em relao educao profissional, destaca-se o texto A proposta de expanso da educao profissional: uma questo de integrao? apresentado na 24a Reunio Anual da ANPEd, Caxambu/MG, 2001.

  • 4

    maneira mais qualitativa. Algumas novas perguntas podem ser elencadas nessa direo:

    onde moram (urbanos, rurais, centro, periferia)? Esto em que momento da vida, em que

    faixa etria (crianas, jovens, adultos, terceira idade)? Qual a distribuio por gnero? So

    trabalhadores? So estudantes (de quais nveis de ensino)?

    Em minha experincia profissional, conheci sujeitos considerados com deficincia

    que se tornaram adultos convivendo com uma srie de condies identificadas como de

    desigualdade social. Para dar alguns exemplos, posso citar o analfabetismo, a ausncia de

    uma formao profissional, o subemprego ou a insero no mercado de trabalho pela porta

    da informalidade, a no participao na populao economicamente ativa e a conseqente

    dependncia da famlia em termos de subsistncia, alm de severas restries participao

    em situaes de acesso cultura e ao lazer. Penso que estes exemplos aproximam a

    experincia de vida de muitos sujeitos considerados com deficincia experincia da

    maioria da populao brasileira. Posso citar outros aspectos, aparentemente mais

    especficos, tais como o prejuzo em relao s condies orgnicas decorrentes da

    ausncia ou insuficincia de reabilitao fsica, ou a inatividade fsica por conta da

    permanncia prolongada em cadeiras de roda ou mesmo acamados. Mas esses exemplos

    so apenas aparentemente especficos desse grupo de pessoas, pois costumam ser

    compartilhados por crianas, idosos ou doentes crnicos em algum momento de suas vidas,

    particularmente por aqueles que integram famlias de baixa renda ou que vivem

    institucionalizados.

    Trago tona esses elementos constituintes das condies de vida que podem ser

    experienciadas por sujeitos considerados com deficincia com a inteno de partilhar um

    pressuposto: embora apresentem caractersticas relacionadas a questes fsicas, sensoriais,

    de comportamento, sndromes, ou mesmo ao seu desempenho intelectual, no so tais

    elementos, de maneira isolada ou primordial, que definem sua constituio como sujeitos

    sociais. No se trata aqui de negar caractersticas individuais, mas de necessariamente

    relacion-las a todo um conjunto de condies que constituem a vida humana situada num

    momento histrico e num modelo de sociedade. Considero a necessidade de levar em conta

    no apenas as determinaes biolgicas, mas as mltiplas determinaes, dentre as quais

    podem ser pinadas as caractersticas fsicas, neurolgicas, sensoriais, mas sempre

    pensadas no conjunto das relaes sociais (JANNUZZI, 1997). As caractersticas

  • 5

    relacionadas deficincia foram e so identificadas socialmente no embate com as

    exigncias que cada sociedade, em cada perodo histrico, apresentou aos indivduos

    (BUENO, 1997). O que est no foco da definio histrica de deficincia no so as

    caractersticas individuais, mas as suas conseqncias sociais sobre a participao dos

    sujeitos nas sociedades em diferentes momentos histricos (BUENO, 1997).

    Ao referir pessoas identificadas como deficientes, no estou falando propriamente

    de uma categoria de sujeitos, uma vez que esta expresso exige um complemento

    descritivo. Torna-se necessrio, portanto, acrescentar outras definies sobre o tipo de

    deficincia, tais como: mental, fsica, auditiva, visual ou mltipla. Estas classificaes,

    todavia, tambm no definem satisfatoriamente a populao a ser atendida por polticas

    pblicas de educao especial.

    O que procuro afirmar aqui que, a despeito de as caractersticas relacionadas

    deficincia constiturem esses sujeitos, sua identidade tambm atravessada por outros

    elementos, como etnia, gnero, opo sexual, faixa geracional, condies de moradia, entre

    outros. Contudo, todo esse debate est balizado pela categoria classe social que permanece

    fundamental para discutir a sociedade contempornea. A relao capital/trabalho continua

    tendo centralidade na anlise social (MSZROS, 2002) e considero-a imprescindvel para

    se pensar criticamente as polticas de incluso.

    O raciocnio que estou procurando desenvolver aqui remete para o reconhecimento

    da diferena de uma forma concreta, ou seja, em suas mltiplas dimenses, em suas muitas

    expresses. Procuro, com isso, fugir de uma compreenso que toma a deficincia como

    diferena principal, e define as necessidades educacionais de uma pessoa basicamente a

    partir do tipo de deficincia com o qual ela est identificada. Afirmo que as caractersticas

    que historicamente foram relacionadas a quadros de deficincias so importantes para se

    pensar os tipos de necessidades educacionais que esto em jogo, mas tambm que este um

    esforo insuficiente, pois para efetuar essa avaliao indispensvel ter conhecimento de

    outros elementos que constituem a vida do sujeito. O conjunto das condies que compem

    a sua vida que vai indicar, de maneira mais apropriada, quais as necessidades que devem

    ser atendidas em seu processo educacional.

    Mas, ao refletir sobre as necessidades educacionais de sujeitos considerados com

    deficincia no Brasil, emerge a questo: quantos so aqueles que esto em idade escolar?

  • 6

    Onde estudam? Do ponto de vista estatstico estas so perguntas difceis de responder, uma

    vez que no h total confiabilidade nos dados que tm sido divulgados. Segundo Odeh

    (2000, p. 28), nos pases do hemisfrio sul no se conhece nem o nmero de crianas com

    deficincias em idade escolar, nem os nmeros precisos daquelas que recebem algum tipo

    de atendimento educacional. Alguns estudos no Brasil indicam taxas nfimas de

    escolarizao para alunos com deficincia: 1,5-2% (FERREIRA, 1992); 1% (TOREZAN e

    CAIADO, 1995). Ainda que no se chegue a um consenso, esses dados remetem para uma

    compreenso do desconhecimento atual a respeito da populao brasileira considerada com

    deficincia em idade escolar, o que dificulta a anlise acerca do que representam os

    resultados do censo educacional realizado pelo INEP (BRASIL, 2002), segundo o qual o

    total de matrculas na educao especial brasileira de 337.897, sendo 175.413 no ensino

    fundamental. Estas informaes podem contrastar com os 97% de escolarizao de crianas

    entre 7 e 14 anos que vm sendo divulgados, embora se possa questionar se parte desses

    alunos no estaria sendo excluda da escola ou na escola (FERRARO, 1999) por serem

    identificados como deficientes.

    Voltando a ateno para as relaes estabelecidas no sistema escolar, destacam-se

    aqui as elaboraes de Carvalho (1997) acerca dos dispositivos de saber e de poder que

    repartiam os homens em classes de seres desiguais, em relato sobre experincias

    pedaggicas em So Paulo no incio do sculo vinte:

    Conhecer o indivduo era operar com tipologias que ordenavam a variedade dos fatos observados e medidos de modo a subsumi-los a classificaes tidas como derivados da natureza das coisas. Era enquadrar o indivduo no tipo e ler nos corpos sinais que uma cincia determinista constitua como ndices de normalidade, anormalidade, ou degenerao. Era classificar o tipo segundo divises inscritas na natureza, que repartiam e hierarquizavam a humanidade. E era [...] operar com os parmetros postos pelas teorias raciais que, desde finais do sculo anterior, vinham se constituindo na linguagem principal dos intelectuais brasileiros, no seu af de pensar as possibilidades de progresso para o pas e legitimar as hierarquias sociais. (CARVALHO, 1997, p. 275).

    Tais definies sobre os sujeitos, com base no conhecimento cientfico, serviam de

    orientao para a escolaridade, desde os locais onde deveria ocorrer at os mtodos de

    ensino; isso em um momento de constituio de um sistema educacional pblico. O projeto

    liberal propunha, ao mesmo tempo, a idia de universalizar o acesso escola e a

  • 7

    classificao daqueles que, por serem considerados diferentes, eram tratados como

    desiguais, no contexto de uma sociedade excludente. Para tanto, apoiava-se em abordagem

    de carter biologizante, cujo enfoque organicista da deficincia foi criticado ao longo do

    sculo XX (embora permanea vivo), e contraposto por um modelo que permite considerar

    a deficincia como um fenmeno social.5 Essa observao ganha importncia neste debate

    ao chamar a ateno para os limites e possibilidades das abordagens na superao dos

    processos de desigualdade social. A necessidade de mais bem compreender as propostas

    polticas de incluso implica perceber os modelos tericos que as sustentam, mas tambm

    relacion-las a outros elementos fundamentais.

    No contexto de um debate sobre educao especial como poltica pblica, os

    elementos aqui apresentados nos levam a pensar sobre o movimento social em torno das

    reivindicaes dos deficientes. No incomum que se pense sobre os deficientes como

    seres apolticos.6 Essa uma caracterstica historicamente observada nas relaes

    estabelecidas neste campo e que certamente pode ser percebida na atualidade. Porm, torna-

    se importante registrar aqui que, se a manifestao poltica dos sujeitos considerados

    deficientes no expressa grande visibilidade, tambm no se observa uma contrapartida, por

    parte dos seus observadores, em procurar perceb-la.

    Mesmo nas instituies especializadas para seu atendimento, no se pode afirmar o

    reconhecimento de suas aes e reaes como resistncia ao que lhes proposto. Por

    exemplo, quando um aluno considerado com deficincia no se submete a uma avaliao,

    em geral isso relacionado ao seu diagnstico ou estgio de desenvolvimento de seu

    quadro de deficincia. Dificilmente essa situao compreendida como uma ao de

    resistncia de um sujeito poltico que no quer se submeter a um conjunto de prticas.

    Embora sua organizao em associaes de modo a dar maior visibilidade as suas lutas seja

    incipiente, isso no significa que as suas bandeiras no estejam sendo contempladas nas

    associaes organizadas em torno de outras agendas. Muitos sujeitos considerados com

    deficincia convivem com seus familiares, os quais podem participar de organizaes

    polticas por outras causas, mas no se tem a dimenso do quanto as questes que se

    relacionam diretamente condio de deficincia so atingidas por essas lutas.

    5 Em grande medida, essa crtica tem sua matriz nos estudos de Lev S. Vigotski e seus colaboradores. 6 A este respeito ver: NEVES, T.R.L. O Movimento de auto-advocacia e a educao para a cidadania. In: PALHARES, M.S. e MARINS, S. Escola Inclusiva. So Carlos: EDUFSCar, 2002.

  • 8

    Observa-se que, no planejamento das polticas pblicas, tem ocorrido um

    fracionamento da anlise sobre as lutas sociais, o qual faz uma mediao no sentido de

    pensar, de maneira isolada, cada um dos grupos focalizados pelas polticas pblicas,

    fazendo parecer que cada sujeito constitui apenas uma categoria social, ou seja, o negro no

    deficiente, o deficiente no mulher, a mulher no idosa, e assim sucessivamente.

    Popkewitz e Lindblad (2001) investigam a proposio de categorias classes humanas

    por intermdio dos estudos estatsticos, produzindo divises e classificaes relacionadas

    normalidade e ao desvio, as quais oferecem indicadores para intervenes polticas. Esses

    indicadores constituem um discurso que sinaliza sobre o que vai bem e o que vai mal na

    sociedade, apontando os rumos de mudanas necessrias. Trata-se, portanto, de uma leitura

    sobre o uso discursivo de dados estatsticos como forma de tornar natural uma

    categorizao das pessoas, bem como as solues mais adequadas aos seus problemas.

    Pensando especificamente sobre a populao considerada com deficincia, como abord-la

    sem ao mesmo tempo borrar as fronteiras de relaes econmicas, ticas, de gnero, de

    etnia, de maior ou menor conscincia poltica, de maior ou menor noo de direitos

    coletivos e individuais, entre tantos outros elementos?

    Pesquisar as proposies polticas de incluso educacional de sujeitos considerados

    com deficincia uma tentativa de oferecer uma leitura crtica das propostas que chegam s

    escolas anunciando mudanas nas prticas educacionais. Mesmo que nem todos os

    documentos das agncias multilaterais que tratam da educao cheguem s escolas de

    ensino fundamental no Brasil, suas idias mais importantes so acessveis aos professores e

    gestores por diversas maneiras. Em relao a isso, h muitas perguntas feitas pelos

    professores do ensino regular em situao de formao que expressam dvidas, dentre as

    quais destaco duas que considero ilustrativas do debate em torno da questo da incluso

    escolar: 1) O que eles querem que a gente faa? 2) Por que somos ns que temos

    que dar conta? Estas indagaes ajudam a perceber que as proposies polticas sobre

    incluso educacional e escolar no so consensuais e podem gerar apreenses diferentes.

    Alm disso, caracterizam uma necessidade de ir mais fundo no debate acerca da educao

    inclusiva em sua dimenso poltica. A oposio entre eles e ns representa o embate

  • 9

    existente entre sujeitos que ocupam lugares sociais diferentes; 7 a necessidade de definir

    papis e tarefas no mbito escolar expressa a urgncia em aclarar qual ou quais os sentidos

    das polticas de incluso voltadas para a educao de sujeitos considerados com deficincia.

    Por meio destas reflexes no pretendo perceber como os professores apreendem

    tais polticas, mas contribuir para compreender sobre como e porqu esto sendo

    propostas neste momento histrico.

    3 Da questo metodolgica

    Ao analisar as polticas de incluso tenho como ponto de partida que os discursos

    polticos so produzidos luz de um embate de interesses: so gestados, so expresso, e

    so apreendidos em relaes de conflito. So assimilados por grupos diferentes de maneira

    seletiva, a partir de seus crivos, segundo aquilo que julgado como mais importante nos

    enunciados polticos.

    No se trata aqui de considerar uma proposta poltica, verificando em que medida

    ela se realiza. Portanto, esta no uma avaliao da efetividade da poltica, ou seja,

    o exame da relao entre a implementao de um determinado programa e seus impactos e/ou resultados, isto , seu sucesso ou fracasso em termos de uma efetiva mudana nas condies sociais prvias da vida das populaes atingidas pelo programa sob avaliao. (ARRETCHE, 1998, p. 31).

    Pretendo desenvolver uma anlise das polticas de incluso no mbito de sua

    proposio, no a considerando como um pacote de medidas que entregue para a

    populao, mas como objeto de contestao, como algo a ser discutido, como um

    processo mais que um produto (OZGA, 2000). Nesse caso, a mxima de que o discurso

    poltico no se materializa na prtica est sendo considerada aqui como superada pela

    compreenso segundo a qual os discursos polticos j so prticas (FAIRCLOUGH, 2001),

    que se pem sob suas prprias concepes.

    7 O eles faz referncia ou aos governos ou s agncias multilaterais e o ns aos professores e professoras do ensino regular.

  • 10

    Deste modo, no se pretende discutir a oposio discurso-prtica. Estou

    compreendendo que o discurso prtica poltica, expresso e constituio da realidade

    social, no o nico, mas um elemento fundamental da constituio de um conjunto de

    relaes sociais.

    Para desenvolver esta tarefa, a contribuio terico-metodolgica de uma

    investigao com materiais histricos (THOMPSON, 1981) fundamental.

    A realidade vivida e investigada histrica, complexa, contraditria, processual. O

    que est dado aos nossos rgos dos sentidos no representa tudo aquilo que se pode

    conhecer. Pode-se avanar na apreenso dos processos que constituem a realidade, tomando

    por base as evidncias referentes a um determinado tema. A partir de algumas evidncias

    iniciais, pode-se elaborar abstraes razoveis, que significam uma primeira aproximao

    em relao ao objeto investigado, ao modo como est situado historicamente, ou seja, o

    conjunto de relaes estabelecidas e que constituem suas determinaes e regularidades.

    Este processo inicial pode e deve ser complexificado, aprofundado, resultando em novas

    elaboraes, novas aproximaes em torno dos elementos encontrados. Para tanto,

    Thompson (1981) prope um interrogatrio, no qual se opera um dilogo entre as

    evidncias e as categorias (abstraes razoveis elaboradas com base na realidade). Nesse

    dilogo, procede-se a uma complexificao da compreenso de determinado objeto, a

    respeito do qual so percebidas relaes com outros elementos da realidade, o modo mesmo

    como se constitui em objeto do conhecimento. Tais relaes conferem vida ao objeto e, por

    isso, uma vez que se tem dificuldade em perceber suas determinaes e regularidades, o

    objeto de pesquisa mantm-se como abstrao. O avanar deste processo constitui-se na sua

    possibilidade de concretizao.

    Com base nas contribuies da lgica histrica (THOMPSON, 1981), os

    elementos constitutivos das relaes sociais capitalistas devem, necessariamente, ser

    levados em considerao e receber um tratamento devido. Esse referencial cumpre um

    papel de base de sustentao para os procedimentos metodolgicos mais especficos que

    sero tratados a seguir.

  • 11

    3.1 Das fontes documentais e sua produo

    O material emprico examinado nesta investigao constitui-se de dois tipos de

    fontes documentais, a saber:

    a) aquelas representativas das polticas nacionais para a educao especial:

    BRASIL. CNE/CEB. Resoluo n 2/2001, que institui as Diretrizes

    Nacionais para a Educao Especial na Educao Bsica. Braslia, 2001.

    BRASIL. CNE/CEB. Parecer n 17/2001. Braslia, 2001.

    b) aquelas publicadas por agncias multilaterais.

    UNESCO. Declarao de Salamanca. Salamanca, Espanha, 1994;

    UNESCO. Salamanca cinco aos despus. Una revisin de las actividades

    de UNESCO a la luz de La Declaracin y el marco de accin de Salamanca.

    1999a.

    UNESCO. La participacin en la educacin para todos: la inclusin de

    alumnos con discapacidad. Boletn EFA 2000, 1999b;

    CCE. A memorandum on lifelong learning. Bruxelas, 2000;

    DAHRENDORF, R. (coord). Report on wealth creation and social cohesion

    in a free society. London, 1995;

    BANCO MUNDIAL. Relatrio sobre o desenvolvimento mundial

    2000/2001. Luta contra a pobreza. Panorama geral. Washington, 2000;

    HOLZMANN, R. e JORGENSEN, S. Manejo social del riesgo: un nuevo

    marco conceptual para la proteccin social y ms all. Documento de

    trabajo n. 0006 sobre proteccin social. Banco Mundial, 2000;

    BANCO MUNDIAL. Social protection sector strategy: from safety net to

    springboards. S/d;

    RANSON, S. The new learning for inclusion and capability: towards

    community governance in the education action zones. OCDE, 2001.

    CEPAL. Equidad, desarrollo y ciudadana. Vigesimoctavo periodo de

    sesiones. Mxico, 2000.

  • 12

    As fontes trabalhadas esto divididas aqui em principais, tambm chamadas de

    corpus documental (FAIRCLOUGH, 2001), e complementares, todas circunscritas ao

    perodo 1990-2001.8 Para efeito deste trabalho, os documentos analisados foram tambm

    classificados em normativos e orientadores. Os normativos so aqueles apresentados com

    status de lei, com a funo de regulamentar a vida social e esto relacionados de maneira

    direta ao Estado brasileiro. J os orientadores so compreendidos como produzidos no

    mbito nacional e internacional com a funo de estabelecer uma interlocuo com a

    sociedade a respeito de idias, de concepes, visando propor consensos sobre as questes

    educacionais.

    razovel supor que os documentos normativos tambm divulguem concepes a

    respeito da educao e da sociedade como um todo, da mesma forma que o contedo dos

    documentos orientadores pode ser apreendido como norma. Contudo, esta categorizao

    cumpre a funo de destacar caractersticas prprias de cada grupo segundo as finalidades

    mais explcitas de sua produo. Da mesma forma que, apesar de apresentarem argumentos

    e fundamentos comuns, os quais expressam uma certa unidade na proposio de polticas

    para a educao, cada documento precisa ser examinado em sua singularidade.

    importante explicitar tambm que os organismos internacionais aqui

    identificados, e cujos documentos polticos foram analisados, no se constituem em um

    bloco monoltico, sendo atravessados por mltiplas relaes, disputas de poder poltico,

    constitudos por tcnicos, consultores e demais agentes de diferentes formaes que

    enriquecem e dinamizam sua existncia no cenrio poltico internacional. Estou afirmando,

    portanto, a possibilidade concreta de coexistirem compreenses e projetos em disputa entre

    e no interior dessas agncias. Contudo, embora guardem suas caractersticas prprias,

    8 Foram consideradas fontes complementares nos termos deste trabalho: BRASIL. Presidncia da Repblica. MARE. Cmara da Reforma do Estado. Plano diretor da reforma do aparelho do Estado. 1995c; BRASIL. MEC. INEP. LDBEN 9394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educao Nacional. Braslia, 1996; BRASIL. Poltica nacional de educao especial. Braslia: MEC/SEESP, 1994b; BRASIL. MEC/INEP. EFA 2000. Educao para todos: avaliao do ano 2000. Informe nacional. Braslia, 1999; BRASIL. MEC/SEESP. Educao para todos EFA 2000. Avaliao: polticas e programas governamentais em educao especial. Braslia, 2000b; BRASIL. Cmara dos Deputados. Plano Nacional de Educao. Braslia, 2000a; BRASIL. MEC/SEF/SEESP. Parmetros curriculares nacionais. Adaptaes curriculares. Estratgias para a educao de alunos com necessidades educacionais especiais. Braslia, 1998; BRASIL. MEC. SEESP. O processo de integrao escolar dos alunos portadores de necessidades educativas especiais no sistema educacional brasileiro. Srie Diretrizes, n. 11, Braslia, 1995a; UNESCO. Declarao mundial de educao para todos. Plano de ao para satisfazer as necessidades bsicas de aprendizagem.Tailndia, 1990.

  • 13

    UNESCO e CEPAL, por exemplo, tm em comum o fato de serem agncias das Naes

    Unidas. E, alm disso, observa-se na documentao emitida pelos organismos

    internacionais tratados neste estudo a prtica de referendar-se mutuamente.

    O tratamento dedicado s fontes e sua produo tem importncia fundamental. As

    fontes tambm so histricas, constitudas sob um conjunto de condies e, portanto,

    devem-se extrair delas os elementos relacionados a cada objeto de investigao. preciso

    interrog-las, faz-las falar sob critrios definidos, para no se cair no risco de elev-las

    ao status de objeto (THOMPSON, 1981). No caso especfico deste trabalho, importante

    salientar algumas armadilhas metodolgicas que se apresentam, dentre as quais destaco a

    possibilidade de que os documentos elaborados e divulgados em mbito internacional e

    nacional sejam tratados como demiurgos da poltica educacional e das propostas que

    veiculam.

    Os documentos expressam o resultado, num tempo e espao histricos, do embate

    vivido por diferentes foras sociais; eles representam a apropriao, por parte de seus

    formuladores, de conjuntos de idias, pensamentos, polticas, aes vividas pelas diferentes

    populaes. Dentre aquilo que j est presente na vida social, os formuladores dessa

    documentao enfatizam, sublinham, focam algumas prticas e pensamentos;

    desqualificam, obscurecem, desprezam outros. Pensamentos e prticas mais convenientes a

    um projeto social ganham corpo, formas, conceitos, concepes que os sustentem e passam

    a ser considerados como propostas, diretrizes, parmetros etc. Aos leitores menos

    avisados, e o somos quase todos, como se esses materiais ganhassem a fora de realizar,

    a magia de reinventar o real, o fascnio de determinar a histria.

    Com muito mais cuidado e ateno podem-se tomar essas fontes documentais como

    material a ser pesquisado e a concorrer para a compreenso da realidade, mas que, ao

    mesmo tempo, ganha legitimidade para difundir suas idias ao maior nmero possvel de

    pessoas. Os documentos so desdobrados, transformam-se em outros, com linguagem mais

    familiar, reelaborados por tcnicos e consultores de secretarias de educao estadual e

    municipal, num processo de divulgao de idias e conceitos-chaves. Observa-se tambm o

    engajamento, nesse processo de difuso, de intelectuais que publicam livros em grande

    quantidade e acessibilidade rede de ensino, de modo que os pensamentos e prticas

    enfatizadas pelas agncias multilaterais tambm chegam escola legitimadas pela empatia

  • 14

    que os professores e professoras tm em relao a algum autor ou autora. Nesse caso,

    chegam na forma de literatura especializada, fugindo do formato de diretrizes de poltica,

    que muitas vezes no bem recebido na escola por ser identificado como proposio de

    cima para baixo e considerado por muitos professores e professoras como uma

    demonstrao de autoritarismo.

    Ainda vale citar uma ltima estratgia de divulgao desse iderio: a participao de

    organizaes empresariais que tm voltado suas aes e interesses para o setor educacional

    sob a bandeira da responsabilidade social nesse processo fica mais evidente a

    importao de conceitos e indicadores do setor produtivo para o discurso educacional,

    mudando o seu sentido e forjando, simbolicamente, uma convergncia entre mercado e

    desenvolvimento humano com padres de dignidade.9

    3.2 Da apreenso do discurso poltico

    O discurso poltico no apreendido passivamente pelas professoras e professores

    das redes de ensino, bem como pelos que atuam em escolas especiais. Ao contrrio, estes

    organizam suas aes profissionais pela contestao das proposies polticas para a

    educao, conforme as captam e quer sejam favorveis ou contrrias quilo que

    compreendem que deva ser realizado (OZGA, 2000).

    A apreenso desse discurso feita de formas diferenadas por sujeitos sociais que

    ocupam lugares diferentes; a observao assistemtica permite perceber que os professores

    do ensino regular expressam vrias compreenses: alguns no sabem se devem ter

    participao nos processos de incluso; outros se sentem implicados na questo, mas no

    sabem como levar essa proposta frente; outros ainda buscam se capacitar, acreditando

    tratar-se de uma questo tcnica. O mesmo ocorre nas instituies de educao especial

    cujos professores compreendem que podem colaborar com a incluso escolar, todavia

    podem promov-la de maneiras diferentes daquelas praticadas no ensino regular. Entre os

    profissionais pode-se encontrar aqueles que so absolutamente contra ou francamente

    favorveis a essa poltica, sem meios-termos. Outros ainda conseguem identificar pontos

    9 Dentre esses conceitos podem ser citados: gesto, competitividade, mercado, produtividade, eficincia.

  • 15

    positivos e negativos da questo. Mas, de todo modo, essa discusso costuma ocorrer de

    forma intensa.

    Sujeitos considerados com deficincia, organizados em grupos ou individualmente,

    mobilizam-se pelo exerccio de seus direitos relacionados educao, mas podem faz-lo

    das mais diversas formas, seja pela via de iniciativas particulares, ou mantendo viva a

    chama do clientelismo na relao com os poderes executivos e legislativos de governos

    estaduais e municipais, principalmente junto a vereadores, ou ainda com o apoio de

    organizaes no-governamentais.

    Estes so apenas exemplos de como as polticas e os discursos de incluso vm

    sendo apreendidos e contribuindo para organizar prticas por grupos sociais diferentes,

    expressando as controvrsias existentes em torno do tema. A apropriao de uma

    proposio poltica no uniforme nem homognea, seja entre grupos diferentes, ou

    mesmo dentro de um mesmo grupo. Quaisquer que sejam as idias e as prticas

    apresentadas pelos sujeitos sociais no campo educacional, porm, isso necessariamente

    representa um posicionamento poltico.

    Os documentos podem ser apreendidos, portanto, sob bases e filtros diferentes

    daqueles com os quais foram formulados. Mas, at que isso seja percebido, os slogans j

    foram divulgados e as palavras-chaves j dominaram o discurso do cotidiano escolar.

    Alguns conceitos passam a integrar a linguagem cotidiana dos profissionais da educao,

    de modo que, em alguns casos, o discurso poltico (ou seus fragmentos) absorvido e

    reproduzido acriticamente substitui a teoria na orientao do trabalho educacional e

    pedaggico.10

    3.3 A opo pela anlise documental

    A definio do procedimento metodolgico desta pesquisa anlise documental ,

    deveu-se possibilidade de ter acesso a documentos que contm proposies em termos

    das polticas de incluso. Ao longo dos anos 1990, ocorreu na internet uma ampla

    disponibilizao de documentos por parte de agncias multilaterais, muitos dos quais

    10 A este respeito ver DUARTE, N. Vigotsky e o aprender a aprender. Crtica s apropriaes neoliberais e ps-modernas da teoria vigotskyana. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.

  • 16

    abordando questes referentes poltica educacional em pases como o Brasil. Temas como

    educao para todos, descentralizao da gesto educacional, flexibilizao na formao

    de professores passaram a ser discutidos tambm no Brasil, ganhando visibilidade em

    documentos nacionais. A grande quantidade de documentos produzidos e divulgados por

    diferentes agncias sugere a elaborao de uma hiptese, com base em Orlandi (2001), em

    torno da necessidade de repetir um discurso para que ele e os sentidos que carreia se

    sedimentem. No caso dos documentos internacionais e nacionais aqui referenciados,

    observa-se uma certa catequizao poltica, uma vez que algumas afirmaes a respeito

    da realidade social, em especial no que se refere educao, so insistentemente repetidas.

    A ao de reproduzir um discurso com muita freqncia pode basear-se na premissa

    segundo a qual o que funciona numa sociedade, na perspectiva da linguagem, no a

    coisa mas os efeitos imaginrios que ela produz (ORLANDI, 1996, p. 96). Com esta

    compreenso, pode-se afirmar que os textos no so a poltica propriamente, mas sua

    representao.

    Ao procurar explicar o processo de anlise dos documentos polticos envolvidos

    nesta pesquisa, pode-se indicar alguns passos do trabalho. Inicialmente, preciso explicitar

    que o acesso a esse material deu-se, basicamente, por meio eletrnico. Tanto a

    documentao internacional como a nacional esto disponibilizadas na rede mundial de

    computadores.

    A pesquisa teve incio com uma leitura exploratria, orientada sempre pela

    referncia ao conceito incluso e educao de sujeitos considerados com deficincias.

    A partir de sua localizao nos textos analisados, procurou-se perceber os tratamentos

    conferidos aos mesmos, definies, os sujeitos envolvidos, as redes de influncias, o

    contexto de elaborao dos discursos.

    Para trabalhar com anlise documental, de modo a captar o discurso poltico

    presente nessa documentao foi necessrio procurar ajuda em autores que abordam a

    anlise de discurso. Nessa perspectiva, buscou-se a contribuio de Eni Orlandi (1996;

    2001) e Mikhail Bakhtin (1997). Mas essa metodologia no se destina especificamente

    anlise de documentos de natureza poltica, os quais envolvem relaes, concepes,

    conceitos em um contexto prprio. Nesse sentido, a contribuio de Norman Fairclough

  • 17

    (2001), que prope uma anlise do discurso textualmente orientada (ADTO), foi

    fundamental.

    Ao investigar as proposies atuais para a rea educacional, compreendendo-as

    como parte de uma poltica pblica que mantm ntima relao com os ditames econmicos

    internacionais, observa-se que esto constitudas por uma rede ou teia de conceitos e

    slogans.11 Portanto, tratar dos conceitos que constituem uma proposta poltica significa

    lidar com palavras que esto ganhando sentidos numa determinada situao, qual seja, a

    enunciao oficial de avaliaes, diagnsticos e prescries a respeito da educao

    mundial, atingindo o Brasil em seus diversos nveis e modalidades educacionais, o que

    inclui o foco deste estudo as polticas para a educao especial.

    Cada conceito, individualmente, funciona como um ingrediente que ganha novos

    contornos mediados pelo caldo ideolgico e terico no qual est embebido. Nesse processo,

    os conceitos esto relacionados a representaes, a imagens formadas a partir de fatos,

    objetos, pessoas, situaes. So histricos e suas significaes so datadas, portanto, os

    sentidos atribudos s palavras esto relacionados histria, ideologia, ao simblico, ao

    poltico, ao cultural, podendo-se afirmar que os sentidos no esto nas palavras elas

    mesmas. Esto aqum e alm delas (ORLANDI, 2001, p. 42).

    Bakhtin (1997) colabora com este debate, afirmando os aspectos ideolgicos do

    discurso, mas atribuindo-lhe maior dinamicidade ao compreende-lo como uno e plural ao

    mesmo tempo. A pluralidade de sentidos que pode ser atribuda a um discurso est

    relacionada dinmica social, aos diferentes modos de significar que podem coexistir na

    presena de emissores e receptores com compreenses distintas de mundo. Ao mesmo

    tempo, cada discurso nico, pois expressa um pensamento pessoal e social, representante

    da cultura de um grupo, de uma poca, de uma classe, de um posicionamento poltico,

    enfim, de um lado da luta social.

    O discurso um objeto simblico e histrico que pode ser analisado. Ao expressar e

    constituir sentidos, o discurso tambm a materialidade especfica da ideologia. A

    11 Alguns conceitos e slogans que marcam a poltica educacional atual: pobreza, equidade, desenvolvimento sustentvel, capital humano, emprego, responsabilidade, autonomia, participao, organizao social, coeso social, pertencimento, tolerncia, diversidade, governabilidade, competitividade, proteo social, vulnerabilidade, neoinstitucionalismo estatal, transformao da escola, formao de professores, mudanas curriculares, informao, gesto, empregabilidade, necessidades bsicas de aprendizagem, voluntariado, riscos sociais, capital social, sociedade do conhecimento, empowerment, excluso, comunidade, comunitrio, terceiro setor, cidadania, incluso, entre outros.

  • 18

    definio daquilo que est sendo tratado como ideologia implica em pensar que ela no

    apenas a representao imaginria do real, relacionada a processos de dominao e de

    substituio das aes histricas reais (CHAU, 1990). a forma pela qual os sujeitos

    representam o aparecer social, econmico e poltico que constitui o ocultamento ou a

    dissimulao do real. , portanto, um corpo sistemtico de representaes e de normas

    que nos ensinam a conhecer e a agir (CHAU, 1990, p. 3 grifos no original).

    A ideologia criada e recriada ininterruptamente naquilo que os sujeitos falam e

    naquilo que calam, entre o dito e o no-dito. Esse movimento implica no uso dos signos, de

    modo a evitar a coincidncia entre aparncia e essncia (BAKTHIN, 1997).12 claro que

    esse processo no tramado previamente e executado de forma a resultar em um discurso

    ideolgico, pelo contrrio, o discurso resulta ideolgico em condies de no coincidncia

    entre aparncia e essncia. Segundo Chau (1990, p. 3),

    o discurso ideolgico aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferena entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lgica da identificao que unifique pensamento, linguagem e realidade para, atravs dessa lgica, obter a identificao de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto , a imagem da classe dominante.

    Contudo, a significao de um discurso no pode ser e no acessada apenas

    pela lida com palavras, conceitos e textos. O salto de qualidade na anlise pode ser dado

    tambm com a compreenso do discurso em sua tridimensionalidade: como texto, como

    prtica discursiva e como prtica social (FAIRCLOGH, 2002).

    A concepo tridimensional do discurso resgata trs tradies analticas: anlise

    textual e lingstica, a tradio macrossociolgica de anlise da prtica social e a tradio

    microssociolgica, que percebe a prtica social como algo que as pessoas produzem e

    entendem com base em procedimentos de senso comum partilhado.

    O discurso expresso da realidade social, mas ao mesmo tempo causa impresses

    sobre ela, constitudo e constituidor em relao vida social.

    Os discursos no apenas refletem ou representam entidades e relaes sociais, eles as constroem ou as constituem; diferentes discursos

    12 Para uma discusso mais ampla sobre ideologia, ver KONDER, L. A questo da ideologia. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.

  • 19

    constituem entidades-chave [...] de diferentes modos e posicionam as pessoas de diversas maneiras como sujeitos sociais [...], e so esses efeitos sociais do discurso que so focalizados na anlise de discurso (FAIRCLOUGH, 2001, p. 22 grifo no original).

    Para sustentar sua teoria, Fairclough (2001) resgatou os conceitos de

    interdiscurso, de Michel Pcheux, e de ordem de discurso, de Michael Foucault. Mais

    que concentrar sua ateno no discurso, preocupa-se com a mudana discursiva,

    procurando perceber a reconfigurao ou mutao dos elementos da ordem de discurso pela

    ao que se realiza sobre as prticas discursivas e sobre os sujeitos e suas identidades, as

    relaes sociais e os sistemas de conhecimentos. Nesse sentido, o autor prope sua

    abordagem como uma anlise lingstica que possa ser um mtodo para estudar a mudana

    social.

    Nessa perspectiva analtica, pensar a proposio poltica pode ser possvel pelo

    acesso aos discursos polticos, mas no s, pois necessrio tambm identificar e analisar

    quem so os sujeitos histricos que esto sintetizando posies polticas em lugares

    concretos na luta social. O discurso valoriza alguns pontos mais que outros, desconsidera

    algumas questes, cala sobre outras, mostra e esconde elementos conforme os sentidos a

    serem divulgados. A produo de discurso depende sempre das condies histricas:

    sujeitos, situao, memria de sentidos.

    O discurso poltico, como qualquer outro, tem filiaes. E, em conjunturas

    diferentes, lana mo de enunciados j ditos, que j foram significados historicamente e que

    so inseridos em novas conjunturas, nas quais ganham outros significados.

    Os textos so feitos de formas s quais a prtica discursiva passada, condensada em convenes, dota de significado potencial. O significado potencial de uma forma geralmente heterogneo, um complexo de significados diversos, sobrepostos e algumas vezes contraditrios, de forma que os textos so em geral altamente ambivalentes e abertos a mltiplas interpretaes (FAIRCLOUGH, 2001, p.103).

    Esse redizer tratado pelos autores da anlise do discurso como intertextualidade,

    que a propriedade que tm os textos de ser cheios de fragmentos de outros textos, que

    podem ser delimitados explicitamente ou mesclados e que o texto pode assimilar,

    contradizer, ecoar ironicamente, e assim por diante (FAIRCLOUGH, 2001, p. 114).

  • 20

    Compreender os discursos polticos contidos nos documentos educacionais implica

    saber como, na condio de objetos simblicos, eles produzem sentidos: quais os sentidos

    que eles produzem em um dado momento histrico? Em que bases se sustentam? Essa

    compreenso implica na explicitao dos processos de significao presentes no texto e

    permite que se possam escutar outros sentidos que ali esto, compreendendo como eles se

    constituem (ORLANDI, 2001, p. 26 grifos no original).

    H uma relao de sentidos uma vez que cada sujeito ou grupo ocupa um lugar que

    tambm constitui aquilo que ele diz e compreende do que dito. Considerando que a

    sociedade atual hierarquizada e dividida em classes e fraes de classe, preciso levar em

    conta as relaes de fora que se explicitam e so silenciadas no discurso. As propostas

    polticas so elaboradas, reformuladas pelo debate pblico, apresentadas para serem

    implementadas, rediscutidas assistematicamente no processo de implementao. Aquilo que

    proposto politicamente implementado em termos, a partir dos sentidos que essa

    proposio imprime nos diferentes sujeitos e grupos envolvidos. A poltica apresentada na

    forma de texto um elemento que pode ser analisado, interpretado e contextualizado, e

    substitui a contradio da crena de que a poltica funciona numa linha directa entre a

    formulao e implementao (OZGA, 2000, p. 170). Tomo a compreenso de Ozga a

    respeito desse ponto como um pressuposto para minha investigao, o que, em grande

    medida, estimulou o interesse por pesquisar os processos de implementao das polticas de

    incluso, as contestaes que se realizam e que podem ser apreendidas pela anlise.

    Contudo, esse objetivo foi secundarizado pela necessidade de estabelecer com maior

    clareza quais so as bases de proposio de tais polticas.

    4 Da organizao do texto

    Uma vez apresentadas as referncias metodolgicas, a seguir sero sintetizadas as

    discusses presentes nos prximos tpicos. Porm, importante ressaltar que a cada

    captulo os procedimentos metodolgicos em questo sero retomados a fim de explicitar o

    tratamento dedicado s fontes que ali estaro em evidncia.

    No captulo 1 apresento os pressupostos tericos que apiam as reflexes

    desenvolvidas neste trabalho. O debate desenvolvido aborda conceitos e concepes que

  • 21

    referenciam a anlise das polticas de incluso, tais como incluso, excluso,

    concepes de Estado, sociedade civil, polticas pblicas. Nessa direo, procuro oferecer

    tambm algumas possibilidades de apreenso acerca desta temtica no interior da rea de

    educao especial.

    O captulo 2 est organizado em torno da descrio das duas fontes documentais

    nacionais, tomadas aqui como representativas das diretrizes nacionais para a educao

    especial na educao bsica, quais sejam, a Resoluo CNE/CEB n. 2/2001 e o Parecer

    CNE/CEB n. 17/2001. A partir desse exerccio foi possvel vislumbrar alguns eixos que

    constituem a poltica brasileira de educao especial contempornea.

    Com o objetivo de mapear os discursos sobre incluso e buscar apreender a

    complexidade de sua lgica nas esferas nacional e internacional, foram visitados

    documentos divulgados por agncias multilaterais. Esse exerccio resultou na

    sistematizao de conceitos ali presentes em trs matizes discursivos, os quais esto

    apresentados no captulo 3.

    Feito isso, e tomando as reflexes presentes no captulo anterior como referncia,

    foi possvel retornar anlise das diretrizes nacionais para a educao especial na educao

    bsica. O captulo 4, portanto, orienta-se pelos contornos e possibilidades percebidos nas

    proposies inclusivas da educao brasileira em relao aos sujeitos considerados com

    deficincia.

    Nas consideraes finais, apresento concluses acerca da incluso educacional de

    sujeitos considerados com deficincia, no Brasil, abordando-a como poltica pblica. Nessa

    direo, afirmo a tese de que as polticas de incluso propostas no superam as condies

    de desigualdade social e educacional instaladas sob a lgica de mercado.

  • 22

    Captulo 1

    Polticas de incluso: conceitos e concepes

    A discusso apresentada neste captulo servir como referncia para as anlises

    desenvolvidas acerca das proposies polticas sobre incluso, sobretudo aquelas

    direcionadas aos sujeitos considerados com deficincia. Para cumprir este objetivo, sua

    organizao foi definida em trs eixos: 1) um debate conceitual sobre incluso e excluso;

    2) os elementos em evidncia numa concepo de incluso como polticas pblicas de corte

    social; 13 e 3) a especificidade da apropriao deste debate no campo da educao especial.

    1.1 Incluso e excluso

    Compreender um conceito implica trabalhar sobre sua histria, sua origem e

    apreenso. Conforme Konder (1984), as palavras sofrem mudanas em seus sentidos,

    devido ao contexto lingstico e histrico em que se apresentam. Nos termos desta

    investigao, para alm da importncia das palavras, interessa sua significao como

    conceitos que constituem os processos de atribuio e sedimentao de sentidos s prticas

    sociais. Portanto, necessrio atentar no somente para sua apreenso, mas tambm para os

    modos como so relacionados pelos sujeitos nos debates polticos, como antagnicos ou

    convergentes, e servindo de base de sustentao para explicaes sobre a realidade social.

    O conceito incluso tem servido a discursos progressistas e conservadores, a

    diferentes posicionamentos poltico-ideolgicos, gerando dificuldades para identificar suas

    filiaes. Ao mesmo tempo, tem sido tratado em oposio excluso. Dessa forma, ao

    buscar compreender as polticas de incluso, percebe-se a necessidade de discutir o

    posicionamento de alguns autores sobre os significados e sentidos que atribuem aos dois

    conceitos.

    Incluso parece ser um conceito originado na contemporaneidade por ter se

    destacado no debate das polticas sociais a partir de meados dos anos 1990, com uma nfase

    prpria na rea da educao e educao especial. interessante pensar porque, justamente

    13 A expresso polticas pblicas de corte social utilizada por Azevedo (1997).

  • 23

    num momento histrico em que o mundo produz tamanha desigualdade social, esse

    conceito ganha a cena no discurso de agncias multilaterais e governos de diferentes pases,

    com orientaes poltico-partidrias diversas e antagnicas. 14

    Entretanto, o conceito incluso foi profundamente discutido na anlise realizada

    pelo socilogo estadunidense Talcott Parsons (1902-1979), em especial nas obras em que

    discute o sistema social e sua estrutura (1966; 1969; 1977). Numa compreenso

    funcionalista, esse autor aborda a incluso como uma das etapas que constituem a

    estrutura do sistema social. Segundo essa perspectiva analtica, no processo social

    constitui-se uma diferenciao de grupos sociais que antes no eram percebidos no

    conjunto da sociedade.15 A partir dessa diferenciao, para o autor, cria-se a necessidade de

    promover a capacidade adaptativa ou adaptao e a generalizao de valores. Essa

    ltima etapa que se denomina incluso, na compreenso parsoniana, ou seja, a

    difuso para toda a sociedade de valores comuns e determinados como favorveis ao seu

    bom desenvolvimento, mas no descuidando dos estgios anteriores de seleo,

    diferenciao e adaptao, que so fundamentais nesta concepo.

    Tal anlise social organiza-se sobre a teoria geral dos sistemas de ao, envolvendo

    cultura, personalidade e sistemas sociais. A interao dos atores individuais

    compreendida como um sistema e sua unidade como um ato.

    A interpretao parsoniana refere-se adaptao que os indivduos precisam

    desenvolver em relao s normas sociais consensualizadas, embora isso no implique em

    uma plena satisfao de suas necessidades.

    Desde el punto de vista del funcionamiento del sistema social, no son las necesidades de todos los actores participantes las que tienen que ser comprendidas, ni todas las necesidades de uno cualquiera de ellos, sino solo una proporcin suficiente de una fraccin suficiente de la poblacin. Es un fenmeno muy general, ciertamente, que las fuerzas sociales son directamente responsables de la lesin o destruccin de algunos

    14 Dados sobre o Brasil podem expressar uma realidade de desigualdade mundial. O pas ocupa a 8a posio em termos de produo de riqueza ao mesmo tempo em que est em 73o no ranking mais recente sobre desenvolvimento humano (ONU, 2002). Em termos de dados internos, o Brasil tem 4,1 milhes de sem renda (FSP, 08/05/2002), e a concentrao de renda aumenta (FSP, 23/07/2002). Isso refletiu em aumento de 11% da excluso social no pas entre 1980 e 2000 (FSP, 20/05/2003). Alm disso, o Atlas da excluso social no Brasil, organizado por Mrcio Pochmann, Ricardo Amorim e Ronnie Silva, apresenta as desigualdades entre os estados brasileiros. 15 Segundo Parsons (1969), as categorias constitutivas do sistema social so: variao, seleo, adaptao, diferenciao e integrao ou incluso.

  • 24

    individuos y algunos de los deseos o necesidades de todos los individuos, y aunque esto puede ser reducido es bastante probable que no pueda ser eliminado en condiciones reales. (PARSONS, 1966, p. 36).

    Tal preocupao com o seguimento de normas e valores est relacionada ao

    pensamento de Thomas Hobbes, o qual defendia que as ordens normativas podem

    prevenir a guerra de todos contra todos, ou seja, a necessidade de regular as interaes

    sociais como forma de manuteno da ordem.

    Contudo, ao ser apropriado pelas discusses no campo das polticas, o conceito

    incluso, nas suas diferentes expresses (social, educacional, escolar, entre outras), aparece

    acompanhado de uma aura de inovao e revoluo, at mesmo como novo

    paradigma social. Embora suas razes paream estar em uma matriz de pensamento que

    explica de maneira mecnica as relaes sociais, e de ter sido originado numa compreenso

    que privilegia a manuteno da organizao social vigente, atualmente vem sendo usado

    como algo que pode superar a ordem social estabelecida. Em outros termos, apresentado

    como soluo para a excluso social. Com o objetivo de refletir sobre as qualidades do

    conceito incluso em exprimir uma realidade que possa suplantar o conjunto de condies

    sociais definido por excluso social, cumpre apresentar tambm sobre este ltimo algumas

    consideraes.

    O conceito excluso social passou a ser utilizado com maior freqncia nos anos

    1970, a partir da obra de Ren Lenoir, Les Exclus (CASTEL, 2000; OLIVEIRA, 2000;

    WANDERLEY, 1999). Naquele momento, a categoria de excludos era compreendida

    como constituda por deficientes fsicos e mentais, doentes mentais, invlidos, considerados

    como inadaptados socialmente em funo de caractersticas prprias. Lenoir utiliza a

    expresso excluso para referir-se aos esquecidos do progresso (OLIVEIRA, 2000), ou

    ainda aqueles que historicamente receberam a ateno da ao social (CASTEL, 2000).

    Entretanto, mais recentemente, para alm dessas populaes-alvo, o conceito passou a ser

    utilizado tambm para referir-se a uma clientela menos especfica: os desempregados de

    longa durao e os jovens em busca do primeiro emprego, ou seja, grupos que se tornaram

    inadaptados pela conjuntura, os sobrantes (CASTEL, 2000). Segundo Castel (2000, p.

    17), a excluso vem se impondo pouco a pouco como um mot-valise para definir todas as

    modalidades de misria do mundo: o desempregado de longa durao, o jovem da periferia,

    o sem domiclio fixo etc., so excludos. (Grifos no original).

  • 25

    Outros conceitos foram relacionados ao de excluso, como desfiliao ou

    desafiliao (CASTEL, 2000),16 desqualificao, desinsero e apartao social

    (WANDERLEY, 1999). Desfiliao consiste em uma srie de rupturas em relao a

    estados de equilbrio anteriores mais ou menos estveis, ou instveis (CASTEL, 2000, p.

    24). Desqualificao um termo pensado para designar um processo relacionado a

    fracassos e sucessos da integrao, tomando como referncia o emprego. J a desinsero

    questiona a prpria existncia das pessoas como indivduos sociais, com base nos valores

    sociais que definem relaes identitrias (WANDERLEY, 1999). Por sua vez, a apartao

    social um processo pelo qual denomina-se o outro como um ser parte, ou seja, o

    fenmeno de separar o outro, no apenas como um desigual, mas como um no

    semelhante (WANDERLEY, 1999, p. 21 grifos no original).

    Ainda em termos da compreenso sobre excluso, esta teria se modificado nos

    ltimos anos, deixando de referir-se apenas aos grupos excludos para focalizar tambm os

    processos que conduzem a situaes de excluso (OLIVEIRA, 2000). Isso estaria

    relacionado ao novo conceito de pobreza, vinculado idia de vulnerabilidade e

    precarizao das condies de vida. Contudo, a identificao de grupos e situaes de

    excluso tem provocado um debate mais recente em torno da produo de incluso social.

    Habermas (1998) tem dado ateno aos processos de incluso nas sociedades

    multiculturais com base na democracia, no Estado de direito, na soberania popular. Este

    autor afirma que as minorias devem ser integradas e ter suas necessidades

    equalizadas, sem, contudo serem incorporadas de forma homognea. Esta abordagem

    institui um debate sobre o significado de incluso integrao ou incorporao conduzida

    a partir do surgimento de novos Estados-nao no leste europeu aps o movimento de

    separao das repblicas que compunham a Unio Sovitica. O enfoque colocado sobre

    as relaes estabelecidas entre os pases, particularmente a situao dos estrangeiros, que se

    configuram em minorias tnicas nos pases industrializados da Europa. Habermas (1998) se

    ope compreenso que ele denomina etnonacionalismo, e que relaciona etnia e

    nacionalismo como elementos fundamentais para a soberania popular e a cidadania. Sua

    posio est vinculada a um republicanismo terico-comunicativo, que pressupe no

    16 Segundo Wanderley (1999), essas expresses so tradues para o portugus a partir de um neologismo na lngua francesa desaffiliation.

  • 26

    existir uma nao homognea em termos culturais, e que a democracia deve ser procurada

    em procedimentos e instituies democrticas. Nesse caso, o que o autor defende a

    importncia da formao da vontade poltica e da comunicao pblica (Habermas,

    1998). Na abordagem habermasiana, primordial a deliberao dos sujeitos como

    participantes da comunicao, com a pretenso de chegar a decises racionalmente

    motivadas. Os discursos pblicos, que almejam aceitabilidade racional, so

    encaminhados pelos agentes comunicativos (Habermas, 1998). Em sua concepo,

    incluso significa, nestes termos, que uma tal ordem poltica se mantm aberta para a equalizao dos discriminados e para a integrao dos marginalizados, sem incorpor-los na uniformidade de uma comunidade popular homogeneizada. (HABERMAS, 1998, p. 108).

    Outros autores tambm esto preocupados com a noo de equidade. Para Phillips e

    Berman (2001), a incluso social compreendida como relacionada aos princpios de

    igualdade e equidade e a causa estrutural de sua existncia. Segundo esses autores, num

    contexto de qualidade social, o objetivo um nvel bsico de incluso com auxlio de

    infraestrutura de suporte, condies de trabalho e bens coletivos, prevenindo e

    minimizando os mecanismos que causam excluso social. Neste caso, polticas de incluso

    poderiam evitar ou reduzir a ocorrncia de situaes de excluso social.

    Em posio contrria, Popkewitz e Lindblad (2001) afirmam que as medidas para

    conter a excluso ou ampliar a incluso enquadram os sujeitos em padres de normalidade

    e desvio, os quais implicam em novas excluses. Uma vez que as polticas de incluso no

    atuam sobre as causas da excluso, agindo na esfera de uma sociedade excludente,

    produzem apenas mecanismos de conteno dos excessos. Segundo os autores, os estudos

    realizados pelo Estado para definir quem necessita de interveno das polticas pblicas

    abordam a realidade social como um campo inteligvel e calculvel, de modo a planejar

    suas aes. Entretanto, em sua compreenso, tais prticas produzem categorias ou classes

    de pessoas, identificando sempre novos grupos que esto excludos. Assim, mesmo frente

    s intervenes relativas s polticas de incluso, a sociedade cria novos padres de

    excluso social.

    No Brasil esse debate tambm tem sido feito com ingredientes de polmica. Sposti

    (2001, p. 84) afirma:

  • 27

    Uma poltica de incluso mais e diferente de uma poltica de integrao ou de insero social. Se a poltica de integrao tem por escopo o status quo, ela sistmica, aculturadora, disciplinadora; a poltica de insero est principalmente fundada na discriminao positiva selecionando quem est sob determinados processos ou situaes pessoais de vulnerabilidade, desqualificao, desfiliao. A poltica de incluso social, por sua vez, tem um novo e outro sentido, pois supe a identidade e o reconhecimento da cidadania. mais que insero social pela perspectiva coletiva de anlise da relao incluso/excluso social.

    Esta autora aproxima-se de Phillips e Berman (2001) quando relaciona a

    problemtica da incluso ausncia de referenciais universais para a sociedade brasileira,

    falta de um padro a ser almejado, indicando a necessidade de construir mnimos sociais,

    conforme indicados na Lei Orgnica da Assistncia Social (LOAS) (SPOSTI, 1999).

    J para Shiroma (2001), preciso prestar ateno outra face da incluso,

    transformao do discurso poltico, ao processo de apropriao conservadora das

    bandeiras dos grupos progressistas dos anos 1980 pelas agncias multilaterais e governos

    nacionais nos anos 1990 e incio do sculo XXI. Nesse sentido, afirma que

    a idia de todos includos na comunidade global, sujeitos aos mesmos riscos, cria uma situao de igualdade simblica que impe, a todos, as mesmas responsabilidades e compromisso moral de combater a pobreza e a excluso social (p. 31).

    A autora expe trs tipos de discursos sobre incluso/excluso, originalmente

    apresentados por Ruth Levitas (SHIROMA, 2001): o redistribucionista, o integracionista e

    o de subclasse. O discurso redistribucionista estaria identificado com uma preocupao com

    a pobreza e sua reduo pela distribuio de riqueza e poder; o integracionista teria como

    foco o desemprego e, nesse caso, a incluso significaria treinamento profissional e insero

    no mercado de trabalho; j o discurso da subclasse trabalha com noes de moral, valores,

    hbitos culturais. Neste ltimo caso, h uma necessidade de operar mudanas culturais no

    interior dos grupos excludos, com uma forte influncia dos estudos baseados na concepo

    de anomia e desvio.

    Em anlise mais filosfica, Abramowicz (2001) oferece uma leitura sobre a noo

    de incluso na modernidade. Segundo a autora, ao considerar o fim da exterioridade no

    capitalismo tardio, vivemos uma incluso total. A sociedade correspondente a esse

    estgio do modo de produo capitalista j no mais a disciplinar, mas uma sociedade

  • 28

    de controle.17 Neste caso, as instituies que constituram a sociedade disciplinar

    (famlia, escola, priso, manicmio, hospital, fbrica etc) entraram em crise, mas,

    paradoxalmente, sua lgica generalizou-se para toda a sociedade, no existindo mais

    espaos sociais sem controle, o que se concretiza nas cmeras que vigiam as pessoas nas

    ruas e lojas, bem como na apreenso por cada sujeito de um nexo de formao permanente

    para o mercado que tambm o avalia continuamente.

    Ao relacionar incluso com as reformas educacionais em curso, Almeida (2002, p.

    57) argumenta que, para tratar deste tema no sistema de ensino, necessrio considerar os

    elementos geradores da situao de excluso. A autora denuncia que no sero estas

    reformas que questionam o papel do Estado, destroem conquistas sociais e submetem os

    trabalhadores precariedade que vo proporcionar qualidade social a todos. Em sua

    compreenso, a reforma do ensino aparece nas polticas educacionais dos anos 1990 como

    meio para alcanar o desenvolvimento econmico, a transformao cultural e a incluso

    dos indivduos. Oferece, portanto, uma noo de incluso como um dos elementos

    constitutivos dessa reforma, favorecendo a articulao entre educao e mercado. Tal

    debate contribui para que se perceba a refuncionalizao da educao ordem social, que

    se opera no conjunto das polticas educacionais e que utiliza o discurso sobre incluso

    como veculo de sua disseminao.

    SAWAIA et al (1999, p. 108) compreendem a questo no mbito de uma incluso

    perversa:

    optar pela expresso dialtica excluso/incluso para marcar que ambas no constituem categorias em si, cujo significado dado por qualidades especficas invariantes, contidas em cada um dos termos, mas que so da mesma substncia e formam um par indissocivel, que se constitui na prpria relao.

    As polticas de incluso tm sido oferecidas como soluo radical ou parcial para

    um conjunto de fenmenos identificados como excluso social. Portanto, ao procurar

    compreend-las, necessariamente buscou-se perceber a que esto sendo contrapostas.

    Freqentemente os debates que envolvem incluso e excluso relacionam imagens de

    dentro e fora, respectivamente, ou ainda de cidadania e no-cidadania, de participao e

    no-participao, numa leitura que pode induzir a uma compreenso dicotmica, que

    17 As noes de sociedade disciplinar e controle foram trabalhadas por Michel Foucault.

  • 29

    remete para posies tais como a de Touraine (1991 apud OLIVEIRA, 2000) a