DANIEL LASKOWSKI TOZZINI
TESTES DE TEORIAS E CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO NO DEBATE ENTRE
POPPER E KUHN
Projeto apresentado para a disciplina de Monografia II do Curso de Filosofia da Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Eduardo Salles de Oliveira Barra
CURITIBA
NOVEMBRO / 2007
2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 3
1. A LÓGICA DA PESQUISA CIENTÍFICA DE POPPER ................................. 4
1.1 O Teste de Teorias Científicas na Lógica da Pesquisa Científica ........... 6
2. A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS DE KUHN .................. 7
2.1 O Teste de Teoria Científica na Estrutura das Revoluções Científicas ... 8
3. JOHN WATKINS CONTRA A ‘CIÊNCIA NORMAL’ .................................... 11
3.1 O Teste de Teorias como Critério de Demarcação ............................... 12
4. SOBRE A DEMARCAÇÃO ......................................................................... 14
4.1 Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa? ............................... 14
4.1.1 Teste.............................................................................................. 15
4.1.1.1 Karl Popper e os perigos da ciência normal .................................. 20
4.1.2 Erro ................................................................................................ 24
4.1.3 Falsificação .................................................................................... 26
5. CONCLUSÃO ............................................................................................. 30
6. REFERÊNCIAS UTILIZADAS ..................................................................... 36
7. REFERÊNCIAS CONSULTADAS ............................................................... 36
3
INTRODUÇÃO
Karl Popper e Thomas Kuhn são os filósofos da ciência que mais
tiveram destaque logo após o legado do positivismo lógico. Ambos detiveram
suas preocupações para além daquelas com as quais os filósofos se ocupavam
até então. Diferente da concepção comum de ciência tomada pelos positivistas
lógicos, Popper e Kuhn deram grande importância aos aspectos históricos reais
ocorridos na atividade científica. Fizeram isso com a intenção de consertar os
equívocos históricos e epistemológicos que se acumulavam com o passar do
tempo no debate filosófico. Entretanto, apesar de terem a mesma base para os
seus fundamentos, chegaram, muitas vezes, a conclusões divergentes entre si.
Entre elas está a visão que ambos têm do processo que ocorre, ou deveria
ocorrer, na substituição de uma teoria científica por outra. Enquanto, para
Popper, o teste tem papel fundamental na substituição de sistemas teóricos,
para Kuhn, o teste de teoria científica parece somente um, entre vários
aspectos determinantes, para a substituição de um sistema vigente. Sobre
esse aspecto, o presente trabalho tem por objetivo analisar a diferença entre a
compreensão de teste de teorias científicas de Popper e Kuhn. Junto com isso,
encontrar a razão e descobrir as conseqüências dessa diferença conceitual.
Por uma questão de delimitação, os textos utilizados para fundamentação
teórica não possuem data de publicação posterior a 1969, data essa que não
se distancia do diálogo mais intenso ocorrido entre os autores.
Para alcançar seu objetivo, tem-se o seguinte itinerário. Nos dois
primeiros capítulos, é apresentada a filosofia de ambos os autores em suas
principais obras. Além disso, nesses capítulos iniciais, é apresentada a
concepção dos autores sobre como uma teoria científica é testada, ou como
um sistema teórico é substituído por outro. No terceiro capítulo, é discutida a
crítica de John Watkins à concepção de teste de teorias de Thomas Kuhn.
Nela, o autor compara alguns aspectos fundamentais entre Popper e Kuhn.
Entre eles, a divergente concepção que ambos possuem da atividade científica.
Enquanto, para Popper, a comunidade científica é aberta e tem como
característica principal a atitude crítica, para Kuhn, ela é fechada e refratária a
essa atitude. Essa diferença é a grande responsável pela discordância entre
ambos sobre o que seja (ou deva ser) o teste de teoria. Ainda com Watkins, a
discussão se amplia. O que era apenas uma diferença entre a resistência de
4
teorias colocadas à prova, passa a ser visto como uma diferença sobre o
critério de demarcação da ciência. No quinto e último capítulo é discutida a
comparação feita entre os próprios autores sobre suas filosofias. Nesse
momento, é acompanhado um debate ocorrido num seminário de filosofia da
ciência em 1965 entre Popper e Kuhn. É desenvolvida uma extensa crítica de
Kuhn a Popper e uma breve resposta de Popper a Kuhn. Nesse diálogo, é
possível clarificar quais as razões e as conseqüências motivadas pela
divergência sobre a compreensão de testes de teorias científicas entre os
autores.
1. A LÓGICA DA PESQUISA CIENTÍFICA DE POPPER
Em um de seus principais livros, “A Lógica da Pesquisa Científica”,
publicado em 1959, Karl Raimund Popper tem por objetivo identificar e analisar
o método da ciência empírica.
Antes de iniciar a apresentação das suas idéias, Popper preocupa-se
em discutir e questionar o positivismo lógico, doutrina na qual é defendido, de
modo geral, uma imagem indutivista da ciência. Neste questionamento, Popper
articula uma extensa crítica à filosofia da ciência tal como ela era desenvolvida
até então. Incomoda-o aspectos tais como: a confusão entre lógica e psicologia
do conhecimento científico, a defesa do método indutivo, a concepção
naturalista da ciência e a demarcação, tal como era apresentada, entre ciência
e metafísica. Basicamente, sua insatisfação refere-se à preocupação que se
tem em investigar como uma teoria é descoberta, à ingenuidade de se
reivindicar que conclusões sobre proposições universais possam ser
justificadas por um número finito de proposições singulares; enquanto, segundo
ele, não se percebe que os fatos utilizados para fins do teste de teorias (base
empírica) são meras convenções e nada podem fazer para conferir força
justificacional ao frágil método indutivo.
Para solucionar alguns desses problemas da epistemologia, Popper
propõe uma "filosofia" do método científico – ou talvez, pode-se dizer, uma
alternativa ao modo de compreender a convenção pela qual são estabelecidas
as regras metodológicas da ciência. Com sua proposta, ele acredita resolver
dois dos principais problemas epistemológicos, a saber, o problema da indução
5
e o da demarcação. Quanto ao problema da indução, referente à dificuldade de
sustentar enunciados universais a partir de um número finito de enunciados
particulares, Popper diz desconsiderar a necessidade da epistemologia tratar
do modo como uma teoria científica é criada. De acordo com ele, “não existe
um método lógico de conceber idéias novas ou de reconstruir logicamente esse
processo” (POPPER, 2006, p. 32). Teorias científicas são criações feitas
livremente pelo intelecto humano. Esse tipo de preocupação é objeto de uma
psicologia do conhecimento, e não da lógica do conhecimento científico. Além
disso, segundo ele, os fatos são de antemão impregnados por teorias, o que
impossibilita uma divisão clara entre estes e essas. Ainda sobre o problema da
indução, Popper defende que, apesar de teorias científicas não poderem ser
verificadas pela experiência, elas podem ser falsificadas por ela. Depois de
criadas, Popper sugere que o método de submeter criticamente à prova as
teorias deve ter caráter dedutivo. O cientista pode, com isso, deliberar sobre a
falsidade de uma teoria. Quanto ao problema da demarcação, de decidir o
status de uma teoria como científica, em oposição a uma teoria metafísica,
Popper sugere que seja estabelecida uma convenção. Segundo ele, “a primeira
tarefa da lógica do conhecimento é a de elaborar um conceito de ciência
empírica, de maneira a tornar tão definida quanto possível uma terminologia
até agora incerta” (POPPER, 2006, p.40). A partir disso, o status de uma teoria
passa a ser decidido devido a um acordo previamente estabelecido.
Popper desenvolve sua teoria do conhecimento abordando a história
da ciência de modo descritivo e, sobretudo, normativo. Escreve de maneira
descritiva ao utilizar frequentemente a história da física para sustentar suas
concepções. De modo normativo, ao propor, como um de seus objetivos
principais, uma teoria do conhecimento científico capaz de traçar uma linha
divisória aceitável entre aquilo que é e o que não é científico.
A atividade científica, para Popper, ocorre, ou deveria ocorrer,
conforme as seguintes etapas principais: uma teoria é criada – a teoria é posta
à prova por meio de testes – a teoria é falseada ou provisoriamente
corroborada – descarta-se ou coloca-se à prova novamente a teoria – procura-
se criar novas teorias mais abrangentes e mais falseáveis que a teoria vigente.
Este ciclo se repete constantemente, descrevendo o desenvolvimento da
ciência por meio de conjecturas e refutações. Entretanto, esse caminho
6
percorrido pela ciência, para Popper, não indica que ela esteja num percurso
em direção a um fim. Pode-se atribuir à ciência um eterno status de
explicações provisórias. A atividade do cientista se caracteriza, então, por um
constante interesse em questionar e contestar suas próprias teorias e, se for o
caso, criar novos sistemas teóricos.
1.1 O Teste de Teorias Científicas na Lógica da Pesquisa Científica
O teste de teorias científicas tem papel fundamental na filosofia de
Popper. Entre as principais regras propostas para o método científico está a
necessidade de que suas teorias possam ser testadas. De acordo com ele,
deve-se adotar “regras que assegurem a possibilidade de submeter à prova os
enunciados científicos, o que equivale a dizer a possibilidade de aferir sua
falseabilidade” (POPPER, 2006, p.51).
Segundo Popper, para extrair conclusões a partir de um processo
dedutivo de uma teoria, pode-se seguir quatro processos. Em primeiro lugar,
verifica-se a coerência interna de um sistema, examinando se ele próprio não
se contradiz. Faz-se isto comparando entre si as conclusões que dele derivam.
Em segundo lugar, faz-se uma investigação de sua forma lógica, analisando se
ele possui a forma de uma teoria científica ou empírica ou se é, por exemplo,
uma tautologia. Em terceiro lugar, compara-o com outras teorias para saber se
há um avanço científico em relação às teorias antigas. Este avanço ocorre,
basicamente, se uma teoria for mais universal e mais suscetível a ser colocada
à prova do que as suas concorrentes. Em último lugar, os cientistas devem
confrontá-la com a experiência por meio de observações e experimentos.
Segundo Popper, esse confronto acontece apoiado em enunciados básicos,
que são enunciados singulares e empíricos ocorridos numa determinada região
individual do espaço e do tempo (por exemplo, ‘existe isto na região k’). Esses
enunciados, por não excederem o resultado de uma decisão ou concordância
entre os cientistas, são aceitos de maneira convencional.
Depois desta série de etapas feitas para testar uma teoria,
principalmente depois da última, uma teoria pode ter dois destinos distintos: ou
ela é falseada ou corroborada. Se ela resistir ao teste feito pelos cientistas,
pode-se dizer que ainda não se descobriu motivo para descartá-la. Por isto,
diz-se que a teoria foi corrobora pela experiência. Caso a teoria, ou uma de
7
suas conclusões, não tenha passado nos testes, ela deve ser descartada. Ela
é, então, considerada falseada. Percebe-se que, no processo defendido por
Popper, uma teoria jamais atinge o status de verdade irrefutável. Entretanto,
ela pode ganhar força em resposta às reiteradas confrontações empíricas.
Conforme Popper, seu método de análise de teorias não deve permitir
tentativas de salvar uma teoria após essa não ter resistido a testes. Em outras
palavras, para que uma teoria obtenha o caráter de científica, não se deve
permitir que se recorra a estratagemas convencionalistas, como, por exemplo,
a criação de hipóteses auxiliares para ajudar a teoria em questão. Em
contrapartida, se é o caso de uma teoria resistir aos testes e ser corroborada, o
cientista deve confrontá-la com testes cada vez mais rigorosos. Sendo ele
responsável por colocar à prova uma teoria de maneiras cada vez mais
elaboradas, com a finalidade de legitimá-la ou rejeitá-la.
2. A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS DE KUHN
Thomas Samuel Kuhn, em sua principal obra, “A Estrutura das
Revoluções Científicas”, publicada em 1962, tem por objetivo principal
descrever e analisar como ocorre a atividade científica e suas revoluções.
Kuhn, físico de formação, foi levado pelo estudo da história da ciência
ao debate de questões de cunho filosófico. No início de seu ensaio, o autor
comenta que as questões de filosofia da ciência, tal como vinham sendo
tratadas até então, não levavam em consideração seu aspecto histórico. Para
ele, conceitos empregados como fundamentos por filósofos, não podem ser
sustentados após uma análise histórica da ciência.
Levado pelo anseio de preencher o vazio historiográfico das
discussões filosóficas sobre os fundamentos da ciência, os escritos de Kuhn
são desenvolvidos de maneira normativa e, principalmente, descritiva. Os
aspectos referentes à maneira normativa de seu ensaio são encontrados nas
entrelinhas de seu texto, sendo raramente expostos de forma direta. Já os
aspectos descritivos, ou interpretativos, são abertamente defendidos e
apresentados, visto que grande parte de suas conclusões deriva da análise do
trajeto histórico da ciência.
8
A história da ciência para Kuhn tem o seguinte percurso: atividades
desorganizadas – ciência normal – época de crise – ciência extraordinária –
revolução científica – ciência normal.
Segundo Kuhn, a ciência, apesar de aparentar ser um
empreendimento cumulativo e estar em constante progresso, não está
caminhando em direção a um fim e aproximando-se cada vez mais da verdade.
O progresso, para Kuhn, acontece somente durante os períodos de ciência
normal, dentro de um paradigma em vigor. Ao ser aceito pela sociedade após
uma revolução, um novo paradigma, em geral, é capaz de explicar alguns
problemas extraordinários e grande parte daqueles problemas que o anterior
explicava. Mas, com freqüência, muitos problemas antes relevantes são
abandonados. Outro aspecto a ser salientado é o fato de que o respeito à
autoridade nas ciências, como os manuais, é comparável, dentre aos
empreendimentos teóricos, talvez, somente à teologia. O aprendizado de um
cientista é fruto de uma educação destinada a preservar e disseminar a
autoridade de um corpo já articulado de problemas, dados e teorias, fato esse
que faz do baixo anseio dos cientistas para produzir novidades e, até mesmo,
da sua incapacidade de propor novas abordagens para antigos problemas,
indicadores muito mais do êxito do que fracasso educacional.
2.1 O Teste de Teoria Científica na Estrutura das Revoluções
Científicas
No decorrer da “Estrutura das Revoluções Científicas”, Kuhn parece
dar pouca importância para o teste de teorias dentro da atividade científica. Ele
utiliza dois termos principais que podem ser associados ao tema. São eles:
‘quebra-cabeça’ e ‘anomalia’. Entretanto, mesmo quando os utiliza, não os
oferece como nomes ou descrições de critério último para substituição de uma
teoria por outra. Uma exposição sumária da atividade científica segundo a
interpretação kuhniana, como a que segue, pode clarificar os conceitos e as
diferenças entre ambos os termos.
Na ciência normal, a atividade exercida pelo cientista está dirigida para
a articulação dos fenômenos e teorias fornecidas por um paradigma. Esse
paradigma é, basicamente, um conjunto de suposições teóricas e realizações
exemplares que guiam a atividade científica, impondo-lhe modelos, padrões e
9
limites. Segundo Kuhn, o cientista, durante esse período, está preocupado com
três tipos de problemas. São eles: determinação do fato significativo,
harmonização dos fatos com a teoria e articulação da teoria.
Os cientistas adeptos a uma determinada tradição da ciência normal
têm como atividade diária a resolução de enigmas ou quebra-cabeças. Isto é,
detêm-se em problemas com soluções asseguradas, que somente a falta de
criatividade pode impedi-los de encontrar uma resposta. Um problema, para ser
considerado um quebra-cabeça, deve limitar-se à natureza de soluções
aceitáveis e aos métodos para obtê-las. Uma tentativa frustrada na execução
desse tipo de teste raramente recai sobre o paradigma, sendo considerado, em
geral, como um fracasso pessoal do cientista, que foi incapaz de resolvê-lo.
Frequentemente, nessas atividades, os cientistas deparam-se com
comportamentos da natureza que não se encaixam nas especificações
oferecidas pelo paradigma em vigor. Esses comportamentos são chamados de
anomalias. Os cientistas, por vezes, tentam trabalhar o paradigma com o intuito
de, com pequenas modificações, adequarem-no à natureza. Em alguns casos
as anomalias são solucionadas, em outros não. Apesar de existirem casos em
que realmente a anomalia não consegue ser assimilada pela atividade normal,
muitas vezes, não basta que isto ocorra para que o paradigma ou a teoria
sejam refutados. Quando assimilada, a anomalia é associada a uma
descoberta. Com isso, o cientista, com a substituição de algumas crenças ou
procedimentos, torna-se capaz de explicar um número maior de fenômenos
previamente conhecidos. Somente quando a anomalia persiste por muito
tempo, gerando um alto grau de insegurança nas atividades profissionais dos
cientistas, pode-se constituir uma crise no paradigma vigente. Além disso,
apesar de não ser tratado em profundidade por Kuhn, pressões sociais também
podem influenciar o surgimento de uma crise num paradigma. Segundo Kuhn,
“o fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas
regras” (KUHN, 2003, p. 95). É, então, na possibilidade de se instaurar uma
crise no paradigma vigente que a anomalia, ou as falhas consecutivas em
testes, podem afetar a teoria vigente. Resultados negativos por si só não são
suficientes para garantir que um paradigma seja substituído por outro.
Apesar dessa aparente divisão entre quebra-cabeças e anomalias,
parece que nem sempre é possível determinar quando um problema é uma
10
coisa ou outra. Afirmações de Kuhn como “quando [...] uma anomalia parece
ser algo mais do que um quebra-cabeça da ciência normal” (KUHN, 2003,
p.113) ou “cada problema que a ciência normal considera um quebra-cabeça
pode ser visto de outro ângulo: como contra-exemplos e, portanto, como uma
fonte de crise” (2003, p. 100), mostram que a distinção entre quebra-cabeça e
anomalia não é algo preciso. Além disso, nesse ponto, é necessário destacar
outro termo utilizado por Kuhn em referência ao teste de teorias, a saber,
‘contra-exemplos’. Entretanto, Kuhn utiliza esse termo para se referir aos
comportamentos inesperados da natureza que podem levar um paradigma a
uma crise. Ou seja, algo como uma anomalia persistente. Contudo, ele
somente utiliza essa palavra para defender que, ao contrário de como era visto
por filósofos anteriores, resultados inesperados não são tratados pelos
cientistas como um problema que afeta diretamente uma teoria:
“[os cientistas], embora possam começar a perder sua fé e a considerar outras alternativas, não renunciam ao paradigma que os conduziu à crise. Por outra: não tratam as anomalias como contra-exemplos do paradigma, embora, segundo o vocabulário da filosofia da ciência, estas sejam precisamente isso” (KUHN, 2003, p.107).
Kuhn também afirma não existir uma linha precisa para saber quando
um problema típico da ciência normal pode ser visto como um contra-exemplo,
ou como algo que afeta a teoria, e não o cientista:
“nem mesmo a existência de uma crise transforma por si mesma um quebra-cabeça em um contra-exemplo. Não existe uma linha divisória precisa. Em vez disso, a crise, ao provocar uma proliferação de versões do paradigma, enfraquece as regras de resolução dos quebra-cabeças da ciência normal, de tal modo que acaba permitindo a emergência de um novo paradigma. (KUHN, 2006, p. 110)”.
Um estado de crise pode acabar de três maneiras: ou o problema é
solucionado pelo paradigma vigente; ou é posto de lado para uma tentativa de
resolução futura, quando houver, por exemplo, instrumentos mais elaborados;
ou pode fazer emergir um novo candidato a paradigma. Nesse último caso,
inicia-se a atividade de ciência extraordinária e, com isso, uma batalha para
habilitar-se à posição de um novo paradigma.
Na disputa entre duas convenções teóricas rivais, cada grupo utiliza os
seus próprios recursos metodológicos para argumentar a seu favor. Esse fato
11
torna o debate entre paradigmas comparável a um diálogo de surdos, pois,
segundo Kuhn, dois paradigmas rivais são incompatíveis e incomensuráveis.
Por isso, para que um paradigma seja aceito em lugar de outro, em geral, deve
ocorrer uma combinação de diversos fatores, tais como: resolver os problemas
que precipitam a crise do antigo paradigma, maior precisão quantitativa,
predição de novos fenômenos, melhor poder de persuasão, influências de
compromissos comunitários, maior valor estético, entre outros. Com isso, fica
claro que na “Estrutura das Revoluções Científicas” o teste é somente um entre
um grande número de variáveis que influenciam a substituição de um sistema
de teorias.
3. JOHN WATKINS CONTRA A ‘CIÊNCIA NORMAL’
Em 1965, foi organizado pela Sociedade Britânica de Filosofia da
Ciência e pela Escola de Economia e Ciência Política de Londres o “Seminário
Internacional sobre Filosofia da Ciência”. Como resultado desse trabalho foram
publicadas atas com as transcrições dos debates ocorridos nesse evento.
Dentre elas, encontra-se “A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento”,
organizada por Imre Lakatos e Alan Musgrave, que foi publicada em 1969.
Nela, eminentes filósofos da ciência debatem as idéias de Karl Popper e,
sobretudo, Thomas Kuhn acerca do tema que dá nome à publicação. Entre os
artigos presentes, que incluem textos inéditos de Popper e Kuhn, encontram-se
contribuições de filósofos como Irme Lakatos, Paul Feyerabend e John
Watkins. Entretanto, entre eles, interessa ao presente trabalho o ensaio de
Watkins, intitulado "Contra a ‘Ciência Normal’". O autor foi o responsável,
substituindo Feyerabend e Lakatos, por responder o ensaio "Lógica da
Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?" de Thomas Kuhn, publicado na
própria ata do evento. Nele, o autor tece críticas aos escritos de Kuhn e os
compara à filosofia de Popper, da qual é um grande simpatizante.
Watkins desenvolve os argumentos de seu ensaio em três críticas
principais. Na primeira, o autor compara as concepções do teste de teorias
científicas de Kuhn e Popper, concluindo com uma discussão sobre o critério
de demarcação de ambos. Na segunda crítica, Watkins se questiona sobre os
motivos que podem ter levado Kuhn a superestimar a ciência normal. Segundo
12
ele, é equivocada a idéia de Kuhn ao comparar a ciência com a teologia,
sociedade estritamente fechada. Por fim, Watkins defende a impossibilidade da
ciência normal, tal como é descrita por Kuhn, dar origem a ciência
extraordinária. Além disso, nessa última crítica, o autor questiona a incoerência
de Kuhn ao afirmar que teorias incomensuráveis podem ser logicamente
incompatíveis.
Como o presente trabalho pretende-se tratar, sobretudo, da primeira
questão discutida por Watkins, a seguir será discutida a sua primeira crítica,
que incide no critério de demarcação defendido por Kuhn.
3.1 O Teste de Teorias como Critério de Demarcação
A primeira crítica de Watkins aborda, sobretudo, o teste de teorias
científicas. Entre os seus argumentos, dois são os de interesse para essa
discussão: quando ele enfatiza a diferença entre os critérios de demarcação de
Popper e Kuhn e quando questiona a utilidade do critério de demarcação desse
último. Sua argumentação, além disso, pressupõe que a sociedade científica
tem maior liberdade crítica do que a defendida por Kuhn.
Conforme o autor, nos períodos de ciência normal da filosofia de Kuhn,
o teste das teorias predominantes parece torna-se impossível por algum
misterioso fator psicossociológico. Isso porque, nesse período, o prestígio do
paradigma é tão elevado que ele dificilmente pode ser abalado por pequenas
dificuldades locais. Entretanto, de acordo com Watkins, comparado com
Popper, se todos os cientistas se encontrassem numa misteriosa compulsão
para preservar as teorias vigentes contra resultados incômodos, essas teorias
perderiam seu caráter científico e se assemelhariam às doutrinas metafísicas.
Isto porque Popper, apesar de sustentar que as teorias sejam defendidas com
certo dogmatismo e que elas não sejam descartadas com demasiada rapidez,
defende que esse tipo de atitude só é saudável se alguns cientistas não se
inibirem ao criticar e colocar à prova uma teoria estabelecida.
Segundo o autor, é a atividade de ciência normal que dever ser
considerada o critério de demarcação kuhniano. Isso porque, a ciência normal,
assim como diz seu nome, é a condição normal da ciência. Já a ciência
extraordinária, que é oposta a anterior, é a sua condição anormal. Ou seja, com
base naquilo que é defendido por Watkins, apesar de Kuhn não apresentar um
13
critério específico para a demarcação, a diferença entre ciência normal e
extraordinária pode ser adotada como tal. Sendo assim, a atividade científica
extraordinária, na qual as teorias científicas podem ser testadas, é tão diferente
da genuína, na qual “verdadeiramente não há teste algum de teorias”
(WATKINS, 1979, p. 38), que mal pode ser chamada de científica. Devido a
isso, aquilo que é científico para Popper, é o oposto daquilo que é para Kuhn. A
diferença entre a concepção de ambos sobre o teste de teorias científicas faz
com que a linha de demarcação de cada um deles tenha como resultado a
divisão do conhecimento de maneira oposta. Em suas palavras: “a condição da
ciência que Kuhn considera normal e apropriada é uma condição que, se fosse
realmente obtida, Popper consideraria não científica, um estado de coisa em
que a ciência crítica se teria convertido em metafísica defensiva” (WATKINS,
1979, p. 37). Esse é o ponto fundamental de sua primeira crítica.
Tomando, então, a ciência normal como critério de demarcação
kuhniano, Watkins desenvolve críticas à sua utilidade. De acordo com o autor,
visto que para Kuhn sempre existem anomalias e enigmas não solucionados na
ciência, a diferença entre um paradigma sustentar ou deixar de sustentar uma
tradição de quebra-cabeças é uma simples diferença de grau. Contudo, como
não é possível saber qual é um nível crítico de uma quantidade tolerável de
anomalias, o critério de Kuhn só pode ser usado de modo retrospectivo. Dessa
maneira, comparada à noção de testabilidade de Popper, o critério de
demarcação de Kuhn é essencialmente vago. Enquanto o critério de
demarcação popperiano pode ser aplicado em sistemas de teorias recém
criados, o critério de Kuhn só poderia ser utilizado depois de um sistema ter
cedido lugar a outro. Ou seja, somente depois de um paradigma ter sido
substituído por outro, seria possível afirmar que a pressão empírica tornou-se
intolerável. Além disso, Watkins afirma que uma teoria é passível de ser
substituída, não devido a uma crescente pressão empírica causada por falhas
consecutivas na resolução de enigmas, mas, sim, por uma teoria nova e
incompatível, inspirada, por exemplo, por uma concepção metafísica diversa.
Mas, se for esse o caso, conclui Watkins, deve existir maior liberdade de
pensamento na ciência do que presume Kuhn.
Tendo em vista a crítica de Watkins, permanecem, então, três
questões em aberto. A primeira, dividida em duas perguntas, refere-se à
14
diferença existente entre o critério de demarcação dos autores. Aceitaria Kuhn
a distinção proposta por Watkins sobre o seu critério de demarcação, a saber,
que ele se caracteriza pela diferença entre resolução de quebra-cabeças e
testes que afetam diretamente a teoria? Se sim, dessa maneira, pode-se
considerar que a diferença entre o critério de demarcação de Popper e Kuhn
divide o conhecimento de maneira oposta? A segunda questão diz respeito à
utilidade do critério de demarcação kunhiano. Seria ele aplicado somente de
maneira retrospectiva, ou seja, depois que um sistema teórico já tenha sido
substituído por outro?
4. SOBRE A DEMARCAÇÃO
Como dito anteriormente, há artigos de Kuhn e Popper na própria ata
do evento. Em ambos os textos, os autores tratam sobre as suas
concordâncias e divergências. Entra suas discordâncias, citam constantemente
suas oposições referentes aos fatores que consideram fundamentais para
caracterizar a atividade científica. Ao artigo de Kuhn, “Lógica da Descoberta ou
Psicologia da Pesquisa?”, Watkins teve acesso antes do desenvolvimento de
seu ensaio. Em seu artigo, Kuhn faz uma comparação bem articulada sobre
pontos específicos entre ambos os sistemas filosóficos. Entretanto, Popper, em
seu artigo “A Ciência Normal e seus Perigos”, desenvolve um breve comentário
comparando e criticando as suas idéias e as de Kuhn. O ensaio de Popper
baseia-se tanto no livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”, como no
artigo de Kuhn publicado na ata do evento. A seguir serão analisados os
argumentos de Kuhn referente aos aspectos que caracterizam a atividade
científica segundo ele e Popper. Entre os seus argumentos, eventualmente,
serão citadas algumas respostas de Popper ao seu ensaio.
4.1 Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?
Apesar de não ser tão otimista quanto à possibilidade de
confrontações, o objetivo de Kuhn no seu artigo é apresentar as concordâncias
e divergências existentes entre as suas idéias e as de Popper. Kuhn aceitou
fazer esse confronto para descobrir as razões que dividem seus leitores em
relação à comparação entre ambos os sistemas filosóficos.
15
Segundo Kuhn, em quase todas as ocasiões em que eles tratam do
mesmo tema, suas visões são muito parecidas. Entre essas concordâncias
estão: a importância atribuída aos aspectos históricos da ciência; a atenção
dedicada ao processo revolucionário pelo qual uma teoria antiga é substituída
por uma teoria nova incompatível com a anterior; a oposição em relação às
características do positivismo clássico; e o ceticismo referente à possibilidade
de existência de uma linguagem neutra. Conforme Kuhn, apesar dessa
simetria, na qual muitas vezes eles aparentam dizer as mesmas coisas, na
verdade, estão com intenções totalmente diversas. Isso pode ser evidenciado
em locuções que ele jamais usaria nas ocasiões em que foram utilizadas por
Popper. Para demonstrar algumas dessas divergências, Kuhn fundamenta
seus argumentos em quatro exemplos específicos. Esses exemplos se
referem, principalmente, ao emprego feito por Popper das expressões ‘teste’,
‘erro’, ‘falsificação’ e ‘lógica da descoberta’. Interessa diretamente ao objetivo
desse trabalho, principalmente, a análise das três primeiras.
4.1.1 Teste
No primeiro argumento, Kuhn analisa expressões nas quais Popper
defende que um cientista, após propor um enunciado, testa-o passo a passo. A
insatisfação de Kuhn ocorre devido à ambigüidade e ao equivoco histórico
presente em asserções como essas. Segundo ele, existem dois tipos de
enunciados. O primeiro tipo é aquele que o cientista submete a testes
sistemáticos. Em geral, são criados com o intuito de encaixar um problema
particular na teoria pré-estabelecida. Se esses enunciados passarem em um
grande número de testes, tem-se uma descoberta ou então a dissolução de um
enigma. Caso não passem, eles são descartados e fica a cargo do cientista
propor novas hipóteses ou abandonar o problema. Esse é o tipo de teste que
ocorre na ciência normal. Nele está em jogo, na maioria das vezes, a
habilidade do cientista, e não a teoria corrente. Apesar da semelhança com a
descrição do primeiro tipo de teste e o que na maioria das vezes Popper
descreve, não é nesse tipo de teste que ele está interessado. O que Popper
apresenta é o segundo tipo de teste, que são aqueles que ocorrem quando a
ciência cresce, não por acumulação, mas por episódios revolucionários, nos
quais uma teoria aceita é substituída por outra melhor. São testes realizados
16
para explorar as limitações das teorias vigentes. Esses tipos de provas são
raros no desenvolvimento da ciência, ocorrem somente nos momentos de
ciência extraordinária. Popper caracterizou, com isso, o empreendimento
científico em termos que só se aplicam em tempos de crise. Entretanto,
conforme Kuhn, nem a ciência, nem o seu desenvolvimento, podem ser
compreendidos se forem vistos somente pelas suas revoluções. Apesar de
Popper querer descrever o empreendimento real da ciência, ou seja, aquilo que
realmente acontece nela, ele dá conta somente de uma parte de sua atividade.
Para Kuhn, é justamente no abandono do discurso crítico que se caracteriza a
transição para a ciência normal. O discurso crítico, aquele que está preocupado
em colocar teorias à prova em todo momento, só aparece em momentos de
ciência extraordinária. Somente neles os cientistas agem como filósofos e
debatem os fundamentos das suas teorias.
Apesar de tudo isso, Kuhn afirma haver boas razões pra supor que o
teste tem um papel decisivo no empreendimento científico. Nenhum enigma
pode existir sem que os membros de uma comunidade científica possuam
critérios compartilhados. São esses critérios que permitem determinar o
fracasso ou sucesso na solução de um quebra-cabeça. Como foi dito, na
maioria dos casos dentro da ciência normal, a tentativa de solução de enigmas
pode gerar um malogro ou o prestígio pessoal. Entretanto, existem ocasiões
especiais em que um insucesso pode gerar uma crise no sistema vigente. Isso
pode ocorrer, por exemplo, devido a um acúmulo de fracassos ou frequentes
fracassos ocorridos com profissionais reconhecidos por sua autoridade no
campo. É nesse sentido que a severidade dos critérios de prova é somente
uma parte da atividade científica, sendo outra parte a resolução de enigmas.
Segundo Kuhn, embora eles concordem sobre aquilo que consideram
ser científico, o fazem de modo diferente. Enquanto para Popper o critério de
demarcação está relacionado aos testes, para ele está relacionado à resolução
de quebra-cabeças. Defendendo seu critério de demarcação, Kuhn afirma que,
embora dentre os exemplos favoritos de Popper existam teorias que não
tenham sido testadas antes de seu desalojamento, nenhuma teoria foi
substituída antes de ter deixado de apoiar adequadamente uma tradição de
solução de enigmas. Nesse ponto da argumentação de Kuhn, é possível
destacar um possível equivoco em sua defesa contra o critério de demarcação
17
popperiano. Isso porque, apesar de Kuhn citar que existem teorias que foram
substituídas sem terem sido testadas como algo contra Popper, parece que
isso não seria visto como algo diverso ao que ele defende. Afinal, para Popper,
uma teoria, para ser substituída por outra, não precisa ter falhado num teste,
mas pode, somente, ser mais universal que sua anterior. Pois, quanto mais
universal uma teoria for, mais possibilidades haverá de falseá-la. Nas palavras
de Popper, “não exijo que todo enunciado científico tenha sido efetivamente
submetido a teste antes de merecer aceitação. Quero apenas que todo
enunciado científico se mostre capaz de ser submetido a teste” (POPPER, p.
50. 2006). Além disso, insiste Popper em seu ensaio "Science: Conjectures and
Refutation", “toda ‘boa’ teoria científica é uma proibição: proíbe certas coisas
acontecerem. Quanto mais a teoria proíbe, melhor ela é” (POPPER, 2002, p.
50). Ou seja, quanto mais universal uma teoria for, consequentemente, mais
possibilidades de falseá-la haverá. O fato de existirem exemplos históricos em
que uma teoria tenha sido substituída sem ter sido testada, não vai contra o
que Popper defende.
Até esse ponto da crítica de Kuhn, também é possível extrair as
primeiras respostas às perguntas levantadas pela crítica de Watkins. Quanto à
primeira, a qual ele afirma que o critério de demarcação de Kuhn é relacionado
à resolução de quebra cabeças, Kuhn parece aceitar essas idéias com
algumas ressalvas. De acordo com ele:
“um olhar cuidadoso dirigido à atividade científica dá a entender que é a ciência normal, onde não ocorre os tipos de testes de Sir Karl, e não a ciência extraordinária, que quase sempre distingue a ciência de outras atividades” (KUHN, 1970, p. 11).
Entretanto, logo em seguida, acrescenta: “a existir um critério de
demarcação (entendo que não devemos procurar um critério nítido nem
decisivo), só pode estar na parte da ciência que Sir Karl ignora” (KUHN, 1970,
p. 11). Ou seja, Kuhn afirma que a possibilidade de um critério de demarcação
está na ciência normal. Contudo, não se pode estabelecer um critério último
para tal empreendimento. Conclui-se, com isso, que a generalização de
Watkins é aceitável. Kuhn concorda que a atividade de resolução de enigmas
pode ser vista como critério de demarcação. Embora, ainda seja possível
acrescentar que a afirmação de que o critério de demarcação kuhniano é a
18
resolução de enigma precisa ser ampliada. É preciso lembrar que por trás da
resolução de enigmas está o que possibilita sua existência, a saber, como
escreveu Kuhn, a ciência normal. Essa que é orientada pelo paradigma e pelas
regras impostas por ele. Os valores e regras compartilhados pela comunidade
científica são indispensáveis para a existência de quebra-cabeças ou
problemas com tipos determinados de soluções aceitáveis.
Percebe-se também que, apesar de n“A Estrutura das Revoluções
Científicas” ter tomado uma posição mais descritiva, Kuhn defende em seguida
de maneira mais direta aspectos normativos de sua filosofia.
Tendo, então, a resposta afirmativa quanto ao seu critério de
demarcação, pode-se tentar responder a segunda pergunta dentro da primeira
questão de Watkins: o critério de demarcação de ambos os autores divide o
conhecimento de maneira oposta? Quanto a isso, Kuhn não parece ser tão
radical em sua resposta. Afirma ele:
“Num sentido, portanto, a severidade dos critérios de teste é tão-só um lado da moeda cujo verso é a tradição de solução de enigmas. Daí que a linha de demarcação de Sir Karl e a minha coincidem com tanta freqüência. A coincidência, contudo, está apenas no resultado delas; o processo de aplicá-las, muito diferente, isola aspectos distintos da atividade científica” (KUHN, 1970, p. 13).
Sobre a afirmação de Kuhn, é preciso prestar atenção para a sentença
“coincidem com tanta freqüência”. Isso significa que, de acordo com Kuhn, eles
chegam às mesmas conclusões muitas vezes. Ou seja, concordam que
determinado conhecimento é ou não é científico. No entanto, coincidir com
tanta freqüência não significa coincidir sempre. Há casos em que eles devem
discordar quanto ao parecer da cientificidade de uma teoria. Isso confirma, até
certo ponto, que a conclusão de Watkins, na visão de Kuhn, pode estar
parcialmente correta. O critério de demarcação de ambos pode separar o
conhecimento de maneira oposta, pelo menos em alguns casos, mas não em
todos. Até porque, parece pouco provável que ambos discordem, por exemplo,
que a teoria da relatividade de Einstein não seja científica.
Percebe-se que Kuhn está defendendo que sua pretensão de
“persuadir Sir Karl, que sabe tudo o que [ele sabe] acerca do desenvolvimento
científico [...], de que o que ele [Popper] chama de pato pode ser visto como
coelho” (KUHN, p. 08, 1970), é uma tentativa de mostrar a Popper que ele
19
tratou apenas de uma parte do empreendimento científico. Sendo essa parte os
momentos de ciência extraordinária. Com isso, Kuhn quer indicar também que
há menos divergências entre eles do que muitos pensam.
O que levou Watkins a afirmação radical de que o que é científico para
um, não é científico para outro, foi o fato dele haver considerado a atividade de
ciência extraordinária como não-científica. Afirma ele,
“lançarei aos ventos a cautela de prudência de Kuhn e lhe renunciarei a sugestão sem qualquer preocupação de prudência: a Ciência Normal (em que verdadeiramente não há teste algum de teorias) é a ciência autêntica; a Ciência Extraordinária (em que ocorre teste autêntico de teorias) é tão anormal, tão diferente da ciência genuína, que não se pode chamar de ciência” (WATKINS, p. 38. 1970).
O problema é que Kuhn parece discordar que as épocas de ciência
extraordinária não sejam científicas. Isso porque, apesar da ciência
extraordinária se aparentar à época pré-científica, quando ainda há a
necessidade de se debater fundamentos, o que possibilita a sua existência é a
anterioridade da ciência normal. Ou seja, somente pode ocorrer a ciência
extraordinária, na qual resultados negativos afetam diretamente a teoria
vigente, porque já se constitui uma ciência sobre aquilo que está em questão.
De acordo com Kuhn,
“a disposição de tentar qualquer coisa, a expressão de descontentamento explícito, o recurso à filosofia e ao debate sobre os fundamentos, são sintomas de uma transição da pesquisa normal para a extraordinária. A noção de ciência depende mais da existência desses fatores do que da existência de revoluções” (KUHN, p.123. 2003).
Essa questão da necessidade prévia de valores compartilhados ficará
mais clara no segundo argumento de Kuhn, no qual ele discute a utilização do
termo ‘erro’ por Popper.
Contudo, há ainda uma questão a ser levantada. Se Kuhn afirma que
não é a ciência extraordinária, a qual se encontra o tipo de teste de Popper,
que caracteriza a ciência, como eles poderiam concordar sobre o status de
certas áreas do conhecimento? Quanto a isso, poder-se questionar que o que
Watkins defende é que somente de acordo com a visão de Popper o
empreendimento científico, se observado da maneira de Kuhn, seria dividido de
maneira oposta. Ou seja, Watkins não estaria se referindo ao que ambos, ou
20
Kuhn, pensavam sobre as divergências de seus critérios de demarcação, mas
somente ao que Popper considera. Resta perguntar, então, se Popper
realmente considera a ciência normal, tal como Kuhn defende, como sendo
não-científica. Para chegar a essa resposta, em primeiro lugar, é necessário
saber se Popper aceita a existência da ciência normal kuhniana. Respondendo
a isso, espera-se encontrar a resposta de outra pergunta: Popper aceitaria a
acusação de Kuhn, a qual ele afirma que ele só deu conta de uma parte do
empreendimento científico? Para encontrar as repostas a essas perguntas, é
possível analisar uma rápida passagem da réplica de Popper a Kuhn em seu
artigo “A Ciência Normal e seus Perigos”.
4.1.1.1 Karl Popper e os perigos da ciência normal
Popper, em seu artigo, comenta que a crítica de Kuhn às suas
opiniões é a mais interessante que ele já encontrou. Entretanto, segundo ele,
há alguns pontos que Kuhn o interpreta mal. Entre eles, a aparência de que em
sua obra não havia a consciência da existência de uma estrutura teórica
definida dentro da ciência, tal como ocorre em sua ciência normal. Contudo,
mesmo reconhecendo a existência de teorias pré-concebidas que guiam a
atividade científica, Popper admite que a distinção entre ciência normal e
extraordinária não estava tão clara em sua obra quanto está na obra de Kuhn.
Devido a isso, Popper chega a agradecer Kuhn por ter lhe esclarecido essa
diferença que, segundo ele, tem grande importância. Em suas palavras:
“Creio que a distinção entre as duas espécies de atividade talvez não seja tão nítida como o quer Kuhn; entretanto, estou pronto para admitir que, na melhor das hipóteses, não tive mais do que uma obscura consciência dessa distinção [...], porém, não diminui meus sentimentos de gratidão a Kuhn por haver assinalado a distinção e por haver assim aberto meus olhos para uma série de problemas que eu não tinha visto com clareza” (POPPER, p.64, 1970).
De acordo com Popper, então, a ciência normal existe. Ela é aquela
atividade do profissional não revolucionário e não muito crítico. Aquele que, de
acordo com Popper, aceita dogmas facilmente e não deseja contestá-los, que
só aceita uma teoria revolucionária quando quase todos os outros cientistas já
a aceitaram. Até esse ponto, pode-se dizer que Kuhn não discorda do parecer
de Popper quanto ao cientista normal. Contudo, conforme Popper, esse
21
profissional avesso à crítica foi mal ensinado, vítima da doutrinação. É o
cientista aplicado, oposto ao que Popper chama de cientista puro. De acordo
com ele, esse cientista contenta-se em resolver enigmas, problemas não muito
sérios nem muito profundos. Enquanto para Kuhn é necessário que os
cientistas defendam suas teorias de maneira dogmática, Popper, apesar de
admitir que isso ocorra, descreve essa característica de maneira pejorativa.
Além disso, Popper acrescenta que, embora defenda que um cientista
não deva ceder às críticas com demasiada facilidade, não é nesse dogmatismo
que Kuhn está interessado. Isso porque Kuhn acredita em dogmas existentes
por longos períodos e “não acredita que o método da ciência seja,
normalmente, o método de conjecturas audazes e de crítica” (POPPER, 1970,
p.68).
Pode-se, aqui, obter resposta as duas perguntas levantadas ao final da
seção anterior. Popper concorda, como dito, com a existência da ciência
normal e, aparentemente, poderia aceitar a acusação de Kuhn de que ele deu
conta de apenas uma parte do empreendimento científico, mesmo sabendo
que para ele esses períodos não são tão longos quanto são para Kuhn.
Em relação a isso, vale lembrar algo que foi defendido por Watkins:
“De um ponto de vista sociológico pode ser correto não dar credito a algo em função de sua raridade. Mas de um ponto e vista metodológico, algo raro em ciência [...] pode ter muito mais peso do que alguma coisa que acontece todo o tempo” (WATKINS, 1970, p.42).
Segundo Watkins, como o objetivo de Popper era caracterizar o
método científico, ele não precisava se importar com a quantidade de um
evento, mas sim com a sua importância.
Essa questão de sociologia contra metodologia pode estar relacionada
com a pretensão de ambos os autores. Enquanto um apresenta caráter mais
normativo, outro apresenta caráter descritivo. Entretanto, nem um nem outro se
restringe a somente um estilo. Esse fato gera dúvidas quanto às suas
intenções em diferentes partes de seus textos. Como foi visto na ata desse
evento, Kuhn, que até então escrevia de maneira descritiva, passa a adotar
uma posição mais normativa. Além disso, enquanto Popper possuía fortes
traços normativos, nesse ensaio defende idéias claramente descritivas.
Trechos como o que seguem podem esclarecer isso:
22
“A Ciência “normal”, no sentido de Kuhn, existe. É a atividade do profissional não-revolucionário, ou melhor, não muito crítico [...] O cientista “normal”, descrito por Kuhn, [...] aprendeu uma técnica que se pode aplicar sem que seja preciso perguntar a razão pela qual pode ser aplicada” (Popper, p. 64-65. 1970).
Ou seja, Popper está se referindo ao que de fato ocorre na ciência, e
não o que deveria ocorrer. Aqui é enaltecido um ponto de dificuldade na
comparação entre ambos os autores. Para tal empreendimento, é preciso
interpretar os dois de maneira descritiva ou normativa. Ou ainda, que é o que
está sendo feito até agora, balancear essa divergência. Ora focando uma
característica, ora outra.
Essa discussão também pode levar a uma necessidade de um
aprofundamento no diálogo de ambos sobre a lógica ou psicologia da pesquisa
científica. Argumento que é discutido com mais detalhes na última sentença
analisada por Kuhn e na última parte desse ensaio do Popper. Contudo, não
abrange o objetivo desse trabalho tratar desse aspecto. O que se pode tirar de
proveito sobre esse comentário de Popper é aquilo que já foi dito. Kuhn parece
ter razão sobre seus argumentos em que tenta mostrar para Popper que aquilo
que ele vê como pato pode ser visto como coelho. Popper aceita a existência
da ciência normal, mas não considera que seus períodos sejam tão longos
quanto defende Kuhn. Mesmo assim, a quantidade de um evento não deveria
importar a Popper, que, segundo Watkins, está interessado exclusivamente no
método científico, e não no que ocorre na sociedade científica, ou no estudo de
sua sociologia.
Adiante são discutidas as outras comparações feitas por Kuhn em seu
ensaio. A partir desse ponto, apesar dele ter defendido que Popper estava
tratando do que ele chama de ciência extraordinária, Kuhn passa a criticar a
concepção de Popper de que, mesmo na ciência extraordinária, cientistas
abandonam sistemas teóricos com demasiada facilidade. Lembrando que até
aqui ficaram sem respostas algumas perguntas anteriormente levantadas.
Sendo elas: A afirmação de Watkins que o critério de demarcação kuhniano
somente pode ser utilizado de maneira retrospectiva procede?; e, segundo
Popper, a atitude do cientista normal kuhniano assemelha-se a atitude do
pseudo-cientista? Ou, a ciência normal de Kuhn pode ser considerada por
Popper como não-científica?
23
Em relação à primeira questão, sobre a crítica ao caráter retrospectivo
da aplicação do critério de demarcação kuhniano, Watkins parece estar
parcialmente correto. Isso porque quando se trata de dizer se uma teoria é ou
não científica, segundo o critério de demarcação kuhniano, depende apenas do
fato de já se ter constituído uma ciência normal. Isso pode ser visto quando se
percebe que os cientistas, que antes discutiam frequentemente os
fundamentos de seu conhecimento, podem desenvolver suas atividades sem
essa preocupação. Já quando se trata de uma teoria resistir ou não a pressão
empírica, ou até mesmo social, e ser substituída por outra, somente pode-se
saber que isso aconteceu depois de uma nova ciência normal ter se
estabelecido. De acordo com Kuhn, não é possível saber claramente quando
uma teoria vai ceder lugar a outra. Isso depende de uma relação complexa
entre fatores históricos e sociais. Conclui-se, então, que para saber se uma
atividade atingiu o status de ciência normal, não é necessário analisá-la de
maneira retrospectiva. Entretanto, para saber se um, ou quando um, sistema
será substituído por outro, somente pode-se ter certeza depois do evento ter
ocorrido.
Quanto a essa segunda questão, que trata sobre o status da ciência
normal para Popper, aparentemente não faria sentido ele considerar a ciência
normal como a-científica. Isso porque, como foi visto, ele chega a admitir a sua
existência. Além disso, não questiona acusação de Kuhn de que ele tratou de
apenas uma parte do empreendimento científico. Contudo, como aceitar a
existência da ciência normal, na qual um indivíduo está disposto a lutar pelo
seu paradigma mesmo contra resultados incômodos, e defender ao mesmo
tempo seu critério de falseabilidade? Uma possível resposta a isso pode ser
encontrada no texto “Science: Conjectures and Refutations” em que Popper
aparenta não ser tão radical quanto à refutação irrevogável de uma teoria.
“Algumas das teorias genuinamente testáveis, quando descobre serem
falsas, ainda servem como hipóteses auxiliares, ou ainda podem ser
reinterpretadas ad hoc de uma maneira que escapem de serem
refutadas. Este procedimento é sempre possível, mas ele apenas pode
resgatar a teoria de uma eventual refutação se destruir, ou ao menos
reduzir seu status científico” (POPPER, p. 50. 2002).
Nesse trecho de seu ensaio, Popper comenta numa rápida passagem
sobre a possibilidade de uma teoria receber modificações ad hoc e não ser
24
simplesmente refutada, mas somente ter seu status científico diminuído. Nesse
caso, as teorias passariam a ser classificadas como sendo mais ou menos
científicas dependendo do seu grau de universalidade e, quem sabe, da
quantidade de modificações, ou "salvamentos", que teriam recebidas.
Certamente um ponto como esse necessita de maiores detalhamentos, mas
por enquanto, serve como uma dica sobre um possível caminho a ser seguido
por Popper.
4.1.2 Erro
O segundo argumento de Kuhn refere-se à tese de Popper de que se
pode aprender com os próprios erros. Conforme Kuhn, expressões desse tipo
têm origem na experiência cotidiana. As pessoas aprendem com os seus erros,
isolando-os e corrigindo-os. Até mesmo as crianças aprendem assim. No
entanto, de acordo com Kuhn, no contexto em que Popper utiliza esse
imperativo familiar, parece fazê-lo de forma inapropriada.
Segundo Kuhn, em geral, os erros apresentam algumas características
em comum, tais como: serem cometidos num espaço e tempo específico por
um indivíduo particular; não obedecerem a regras lógicas, ou de linguagem,
estabelecidas, ou a relações entre uma destas e a experiência. Igualmente, um
indivíduo pode errar ao não reconhecer as conseqüências de uma escolha
particular entre as alternativas permitidas pela regra vigente. Apesar disso, as
classes de erros a que Popper aplica seu imperativo não se referem a um
insucesso pessoal no entendimento de regras preestabelecidas.
Conforme Kuhn, embora esse tipo de erro seja característico da
atividade da ciência normal, não é nela que Popper os procura. Afinal, seu
critério de demarcação chega a obscurecer a existência desta. Os erros que
Popper aponta são basicamente teorias ultrapassadas, como a astronomia
ptolomaica e a teoria do flogístico. De modo correspondente, para Popper,
aprender com os erros é substituir uma teoria científica rejeitada por outra. Isso
parece ocorrer, afirma Kuhn, devido ao apelo que Popper faz ao indutivista
residual que há em todas as pessoas. Isto é, ao pensar que as teorias são o
resultado de induções corretas, o indutivista pensa também que uma teoria
falsa é resultado de um engano de indução. Nesse sentido, segundo Kuhn, é
difícil entender o que Popper quer ao dizer que um sistema ultrapassado é um
25
erro. Afinal, o significado familiar de erro é aquele que pode ser isolado e
corrigido. No entanto, os erros de Popper afetam o sistema inteiro e só podem
ser corrigidos pela substituição do mesmo.
Para Kuhn, tanto o termo ‘teste’ como o termo ‘erro’ foram retirados do
funcionamento da ciência normal, circunstância em que seu uso é
razoavelmente claro. Contudo, ao serem empregados para descrever as
atitudes próprias dos períodos de ciência extraordinária, tais termos tornam-se
problemáticos. Esse emprego abusivo reforça a impressão de que teorias
inteiras podem ser julgadas com os mesmos critérios de quando se julgam
teorias numa aplicação individual. Devido ao papel fundamental dado ao teste
nas ciências, Kuhn suspeita que, apesar dos repúdios explícitos, Popper
estivesse em busca de procedimentos “apodíticos, característicos das técnicas
pelas quais se identificam os erros na aritmética, lógica ou mensuração”
(KUHN, p. 19, 1979) para o seu critério de demarcação. Conforme Kuhn,
somente dessa maneira é possível encaixar o termo erro dentro dos contextos
invocados por Popper.
Sobre a crítica de Kuhn ao uso do termo ‘erro’, que indica que Popper
está à procura de procedimentos apodíticos, ela parece ser difícil de ser
sustentada. Isso porque, Kuhn dá indícios de ter ignorado todo o caráter
convencional da filosofia popperiana. Ou seja, visto que, segundo Popper, sua
teoria “diz respeito à escolha de métodos” (POPPER, p. 51, 2006) e que, além
disso, os próprios cientistas ao escolherem um enunciado básico devem se
colocar “de acordo” (POPPER, p. 111, 2006) sobre sua aceitação, uma
afirmação como a de Kuhn aparenta estar fora de contexto. Antes de ser uma
descrição da atividade científica, ou além de ser isso, a filosofia de Popper tem
objetivos claros de propor uma metodologia para resolução de problemas
epistemológicos específicos, metodologia essa que também é convencional.
Por isso, na crítica à utilização do termo ‘erro’, Kuhn excede seu julgamento e
passa por alto aquilo que é claramente defendido por Popper.
Repassando o que foi discutido até esse ponto do debate sobre o
termo ‘erro’, tem-se o seguinte. Kuhn acusa Popper de utilizar o termo ‘erro’ de
maneira equivocada. Isso porque um erro tem a particularidade de poder ser
corrigido. Ele ocorre quando alguém viola uma regra pré-estabelecida.
Entretanto, Popper utiliza-o em tempos de ciência extraordinária, o que o torna
26
problemático. Afinal, nesses casos, sistemas inteiros são substituídos e não há
possibilidade de voltar atrás para corrigi-lo. Fracassos não são causados por
motivos particulares, mas pelo próprio sistema. Fato, então, que compromete
todo o sistema vigente. A questão é que a filosofia de Popper possui um
caráter convencional. Não é, de maneira alguma, tão arbitrário como acusa
Kuhn. Popper poderia dizer que, mesmo na ciência extraordinária, a base
empírica, que pode refutar uma teoria, somente é aceita de maneira
convencional. Um teste deve poder ser intersubjetivamente avaliado e, além
disso, os cientistas devem entrar num acordo para aceitar ou rejeitar um
enunciado básico. De acordo com Popper:
“Toda prova de uma teoria, resulte em corroboração ou em seu falseamento, há de deter-se em algum enunciado básico que decidimos aceitar. Se não chegarmos a qualquer decisão e não aceitarmos esse ou aquele enunciado básico, a prova terá conduzido a nada” (POPPER, p. 111. 2006).
Um cientista pode questionar o resultado de um teste e até mesmo
rejeitá-lo. Desde que seu grupo tenha chegado a um acordo. Talvez, nessa
possibilidade de acordo é que estejam envolvidas as teorias pré-concebidas
que Kuhn acusa Popper de ignorar sua existência. Afinal, deve haver critérios,
ou valores, que influenciam essa decisão.
4.1.3 Falsificação
Seguindo a mesma linha de raciocínios do argumento anterior, Kuhn
apresenta sua terceira critica, na qual questiona a utilização do termo
‘falsificação’. Segundo ele, tanto o termo ‘falsificação’ como ‘refutação’ são
antônimos de ‘prova’, que provém, principalmente, da lógica e da matemática.
A invocação desses termos implica a capacidade de obrigar à sua aceitação
qualquer membro de uma comunidade. No entanto, para Kuhn, os argumentos
científicos raramente são tão apodíticos assim. Todo tipo de argumento pode
ser impugnado, tanto pela sua importância, como pela sua precisão. Além
disso, no entender de Kuhn, teorias podem sofrer alterações sem deixar de ser,
pelo menos em sua essência, a mesma teoria.
Apesar disso, Kuhn não considera que Popper seja um falsificacionista
ingênuo. Isso porque ele cita em alguns fragmentos a possibilidade de se julgar
alguns resultados experimentais como não confiáveis. Ou até mesmo de se
27
defender que algumas discrepâncias de certa teoria são aparentes, e
desapareceram com o avanço da compreensão do cientista. Mas o que é uma
ameaça ao status de científico para Popper, é fundamental para Kuhn. Por
isso, afirma ele, embora Popper não seja um falsificacionista ingênuo, pode
facilmente ser tratado como tal. Isso porque, apesar de ter impedido a
impugnação conclusiva de uma teoria, ele não ofereceu nenhum substituto
para ela. Ficou mesmo com a falsificação lógica, aparentemente apodítica.
Segundo Kuhn, se o interesse de Popper fosse somente o critério de
demarcação, então os problemas postos pela falta de disponibilidade de
refutações concludentes seriam menos sérios e talvez elimináveis. A
demarcação poderia ser alcançada por critérios puramente sintáticos. O ponto
de vista de Popper seria, ou talvez seja, de que os enunciados observáveis
(principalmente suas negações) pudessem ser deduzidos da própria teoria,
talvez em conjunto com um plano de fundo constatado. Isso faria com que
alguns problemas, como os de decidir se um enunciado laboratorial justifica a
afirmação de um enunciado observacional, fossem irrelevantes. Afinal, esse
tipo de questão pertence à pragmática ou à semântica da linguagem em que a
teoria foi moldada. Para ser científica, a teoria precisaria ser apenas falsificável
por um enunciado de observação, e não um enunciado real.
De acordo com Kuhn, mesmo que as teorias científicas pudessem ser
expressas de uma forma a permitir juízos puramente sintáticos, isso apenas
forneceria base para a demarcação. De nada valeriam para a lógica do
conhecimento, que também é de interesse de Popper. Entretanto, ao afirmar
que de uma investigação do método científico devem-se derivar regras ou
convenções metodológicas, Popper não está tratando de regras simplesmente
sintáticas. É na relação de enunciados derivados da teoria com as observações
e experimentos reais que a falsificação deve funcionar, e não na relação de
enunciados com outras proposições. Todavia, conforme Kuhn, Popper não fala
sobre como isso pode acontecer. Segundo ele, “em vez de uma lógica, Sir Karl,
forneceu uma ideologia; em vez de regras metodológicas, forneceu máximas
de procedimentos” (KUHN, p. 23. 1970) e na prática nenhuma teoria satisfaz
essas exigências rigorosas. Na visão de Kuhn, um cientista que se confronta
com o inesperado deve empregar-se a investigar de maneira mais profunda, na
tentativa de articular a sua teoria na área em que se tornou problemática.
28
Nenhum critério exclusivamente lógico pode ditar a conclusão que se deve
estabelecer quanto à aceitação ou não de uma teoria.
Essa é uma diferença entre ambos que não pode ser contornada.
Enquanto para Popper a atitude crítica é a engrenagem principal da ciência,
para Kuhn é seu avesso. É justamente a postura dogmática que caracteriza a
ciência. Embora, para cada um deles, essas posturas levadas ao extremo faz
emergir uma série de complicações que devem ser explicadas. Se bem que, de
acordo com o que Kuhn parece defender e Popper aceitar, esse dogma
presente na ciência existe para ambos, mas com duração mais longa para um
e mais curta para outro.
Esse terceiro argumento de Kuhn recai sobre os mesmos problemas
de sua segunda crítica, sobre a utilização do termo ‘erro’ por Popper. Ou seja,
está claro na obra de Popper que um resultado negativo não é tão apodítico
assim. Isso devido ao caráter convencional da aceitação de um enunciado
básico, como foi dito anteriormente. Apesar disso, pode-se dizer que Kuhn
tenha alguma razão em suas afirmações. Afinal, há partes de textos de Popper
em que ele dá demasiada ênfase na impossibilidade de se tentar salvar uma
teoria e, em outras partes, admite a recusa de resultados incômodos. Por
exemplo, escreve Popper em algumas ocasiões, “coloca-se, de início, uma
regra suprema [...] as demais regras do processo científico devem ser
elaboradas de maneira a não proteger contra o falseamento qualquer
enunciado científico” (Popper, p. 56. 2006). Já em outras comenta, “em
verdade, jamais pode ser apresentada uma refutação conclusiva de certa
teoria, pois sempre será possível afirmar que os resultados experimentais não
são dignos de crédito” (Popper. p. 52, 2006).
Se bem que isso pode ser visto como um problema para Popper
somente se visto do ponto de suas intenções descritivas, sobre o
empreendimento científico real. Se observado de um ponto de vista somente
normativo, Popper poderia simplesmente responder: “a primeira tarefa da
lógica do conhecimento é a de elaborar um conceito de ciência empírica”
(Popper, p. 40. 2006) e “segundo minha proposta, aquilo que caracteriza o
método empírico é a sua maneira de expor à falsificação, de todos os modos
concebíveis, o sistema a ser submetido a prova” (Popper, p. 44. 2006). Em
29
outras palavras, os problemas que ele se propôs a resolver, de acordo com a
sua argumentação, são solucionados.
Voltando a discussão para aspectos não somente normativos, Kuhn
parece ter razão ao afirmar que, apesar de não ser, Popper aparenta a um
falsificacionista ingênuo. Afinal, ele admite a existência de modificações ad hoc
numa teoria, repudia isso, mas não propõe uma solução em sua teoria para
abranger esse tipo de atitude, sem que uma teoria tenha que ser descartada
por completo. O único momento em que Popper propõe algo como uma
solução para isso é quando ele escreve sobre a possibilidade de uma teoria ter
seu status científico reduzido. Mas, pelo menos até esse momento, com os
elementos disponíveis nos textos popperianos até aqui analisados, essa idéia
ainda não poderia ser explicitada com os detalhes necessários.
Destaca-se aqui uma diferença quanto ao teste de teorias ser ou não
apoditíco entre os dois. Existem momentos em que os autores discutem como
se estivessem falando das mesmas coisas, mas, na realidade, estão se
referindo a aspectos ligeiramente diferentes. Enquanto Kuhn comenta sobre
modificações ad hoc como uma operação de salvamento de paradigmas,
Popper escreve sobre a possibilidade de existir um acordo ou não na aceitação
de um enunciado básico. Ou seja, enquanto discutem sobre aceitar e modificar
teorias, um fala sobre uma coisa, enunciados básicos, e outro sobre outra,
paradigmas. Isso ocorre, provavelmente, devido a uma dificuldade consciente,
mas ignorada até esse ponto do trabalho. Essa dificuldade acontece em razão
da ambigüidade do termo paradigma na obra de Kuhn. Margaret Masterman,
que estava entre os participantes do referido congresso de filosofia da ciência,
já havia levantada essa mesma dificuldade. Segundo ela, em seu artigo “A
natureza do Paradigma”, publicado também na ata do evento, na obra de Kuhn,
há vinte e uma definições de paradigma (MASTERMAN, p. 75. 1970). Dentre
diversas possibilidades de sua interpretação, estão, por exemplo, valores
sociológicos, exemplos de práticas científicas, concepções metafísicas
compartilhadas e teorias científicas. Por essa razão, quando Kuhn está
comentando sobre teste de teorias, muitas vezes está falando não somente
sobre um enunciado ou uma teoria expressa, mas sobre toda uma relação de
valores e crenças dos cientistas. Enquanto Popper argumenta sobre
enunciados teóricos, Kuhn está tratando de termos que envolvem outro tipo de
30
complexidade. Mas, poder-se-ia perguntar, então, por que manter essa
informação suspensa até esse momento e descrever todo esse debate sem
apresentá-la de antemão? A resposta é baseada na própria percepção dos
autores envolvidos na discussão. Tanto Popper, como Kuhn, e até mesmo
Watkins, não fazem essa distinção durante seu debate. O próprio Kuhn só foi
clarificar seu conceito de paradigma anos depois em artigos posteriores ao
congresso. Essa questão foi deixada de lado propositalmente para uma
clarificação futura. Pretende-se neste momento, como dito, tratar de textos que
não ultrapassassem a data da publicação da ata do seminário de filosofia da
ciência em que os dois se encontraram. O texto mais tardio utilizado foi a
edição inglesa (revisada e ampliada) da “Lógica da Pesquisa Científica”
publicado em 19591.
Quase tudo que foi dito até aqui sobre as críticas dos termos utilizados
por Popper, foram variações de um mesmo tema: os critérios com que os
cientistas determinam a validade de uma articulação ou uma aplicação da
teoria existente não são, segundo Kuhn, por si só suficientes para determinar a
escolha entre teorias rivais. De acordo com Kuhn, Popper se equivocou ao
aplicar as características da ciência normal aos episódios de ciência
extraordinária. Além disso, ele procurou resolver o problema da escolha entre
teorias durante as revoluções por meio de critérios lógicos que são
completamente aplicáveis quando já se pressupõe uma teoria. Entretanto,
pode-se questionar se, para Popper, a questão de se aceitar ou não um
enunciado básico envolve algum tipo de critério lógico kuhniano.
5. CONCLUSÃO
Confrontar e acompanhar o debate entre os sistemas filosóficos de
Popper e Kuhn acarreta algumas peculiaridades. Uma delas é a dificuldade de
comparação de suas teorias, relacionada à diferença de estilo e objetivo de
cada autor. Enquanto Popper possui fortes traços normativos, Kuhn assume
um posicionamento com fortes características descritivas. Além disso, Popper
apresenta claramente os problemas que sua filosofia pretende tratar,
1 A primeira edição reduzida, “Logik der Forschung”, foi publicada em alemão em 1934.
31
característica não realçada na filosofia de Kuhn. Soluciona-se isso, ora focando
aspectos mais normativos de um, ora mais descritivos de outro. Essa
"incomensurabilidade" dificilmente pode ser superada em sua totalidade.
Sempre haverá a possibilidade de questionar se realmente a intenção de um
ou de outro era realmente aquela em determinado ponto da discussão.
Popper em sua principal obra tem objetivos epistemológicos explícitos.
Pretende, com sua filosofia, analisar o método das ciências empíricas. Junto
com isso, estabelecer um critério de demarcação entre a ciência e as
pseudociências. A característica fundamental desse método, segundo ele, é a
falseabilidade. Em suma, uma teoria, para ser científica, precisa se dar a
possibilidade de ser refutada. A função do cientista é propor testes cada vez
mais rigorosos para por à prova suas teorias. Quanto mais universal é, e
quanto mais possibilidade de falseá-la existe, melhor é a teoria. Kuhn, n”A
Estrutura das Revoluções Científicas”, pretende dar conta dos aspectos
historiográficos negligenciados nos debates filosóficos anteriores a sua
filosofia. Para ele, a ciência se constitui após a formação do primeiro
paradigma, que é, basicamente, um conjunto de crenças e valores
compartilhados entre os cientistas. Nessa obra ele emprega dois termos que
podem ser relacionados com a atividade de testes ou resultados incômodos a
uma teoria. O primeiro é a resolução de ‘quebra-cabeças’, que descreve a
atividade do dia-a-dia do cientista. Trata-se de resolver problemas com
soluções pré-determinadas pelo paradigma. Um resultado negativo nesse tipo
de teste, raramente recai sobre a teoria. Em geral, uma falha na solução de um
quebra-cabeça, incide sobre a capacidade do cientista. O segundo termo é a
‘anomalia’, que se refere aos comportamentos da natureza que não se
encaixam no paradigma vigente. Um resultado como esse não é o suficiente
para provocar a substituição de uma teoria. Somente falhas consecutivas de
profissionais treinados na resolução de quebra-cabeças podem ser vistas
como contra-exemplos e iniciar a época de crise e ciência extraordinária.
Nessa fase, fatores como valores estéticos, simplicidade, persuasão, qualidade
e poder de previsão influenciam na escolha entre teorias rivais.
Sobre os aspectos anteriores, a crítica de Watkins pode ser dividida
em dois pontos principais. No primeiro, ele sugere que o critério de
demarcação kuhniano, apesar da cautela do autor, é caracterizado pela
32
atividade de resolução de quebra-cabeças. Além disso, Watkins defende que,
se visto desse modo, o critério de demarcação de Kuhn e Popper divide o
conhecimento de maneira oposta. O que é científico para um, não o é para
outro. Isso porque na ciência normal o cientista tenta frequentemente salvar
suas teorias, e o método popperiano tem como característica fundamental a
falseabilidade, na qual o cientista tenta constantemente pô-las à prova. O
segundo ponto da crítica de Watkins refere-se à eficiência do critério de
demarcação kuhniano, comparado ao popperiano. Segundo ele, visto que não
é possível saber qual é a quantidade de falhas na solução de enigmas aceita
por um paradigma, o critério de demarcação de Kuhn somente pode ser usado
de forma retrospectiva. Já o critério de demarcação de Popper pode ser
utilizado logo que uma teoria é criada.
Quanto ao primeiro aspecto da primeira crítica de Watkins, que trata
do que consiste o critério de demarcação, Kuhn parece aceitar essa idéia. Em
seu texto “Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?”, Kuhn defende
que, embora não se deve procurar um critério último para o empreendimento
da demarcação, se ele existe, está na atividade de ciência normal. Essa que é
precedida por um paradigma e que possibilita a existência de problemas com
soluções asseguradas.
Tendo a resposta afirmativa de Kuhn sobre o seu critério de
demarcação, pode-se tentar resolver o impasse levantado por Watkins: a
demarcação de Popper e Kuhn divide o conhecimento de maneira oposta?
Para encontrar uma resposta para a acusação de Watkins, pode-se tentar
seguir dois caminhos. Primeiro, verificar se a concepção de ciência de Kuhn
impossibilitaria o critério de demarcação popperiano e, em seguida, verificar o
oposto, se o critério de demarcação de Popper considera realmente a ciência
normal de Kuhn como não científica.
A resposta de Kuhn aparenta ser clara. Segundo ele, Popper deu
conta somente de uma parte do empreendimento científico, a saber, da época
de ciência extraordinária. Nesse momento, de acordo com Kuhn, diferente do
que ocorre na ciência normal, na qual são realizados testes que avaliam a
capacidade do cientista, na ciência extraordinária são realizados testes para
explorar as limitações da teoria vigente. Esses que são os testes que se
assemelham aos descritos por Popper. Por isso, para Kuhn, o teste de teorias
33
defendido por Popper é apenas uma das características da atividade científica,
e não podem ser considerados como não científicos, característica essa que só
pode ocorrer após já se ter estabelecido uma ciência normal. No entanto,
mesmo na ciência extraordinária, resultados negativos em testes não são, por
si só, tão apodíticos como quer Popper. Se visto com óculos kuhnianos,
Watkins, então, se equivocou. Isso porque considerou a atividade de ciência
extraordinária como não científica. O problema é que Kuhn discorda dessa
idéia, visto que a ciência extraordinária, apesar de se assemelhar à época pré-
paradigmática, quando não há ciência propriamente dita, somente pode ocorrer
após a existência anterior de uma ciência normal.
A posição de Popper já não é tão explicita quanto a de Kuhn. Mesmo
assim, é possível tirar um posicionamento quanto a essa questão. Popper, em
seu artigo A Ciência Normal e seus Perigos, admite a existência da ciência
normal e, além disso, chega a agradecer Kuhn por ter tornado mais clara sua
existência para ele. No entanto, para Popper, seus períodos não são tão longos
quanto são para Kuhn. Segundo ele, a ciência normal é a atividade do cientista
não revolucionário, que aceita dogmas sem questioná-los. Enquanto para Kuhn
essa é uma característica fundamental do cientista, para Popper é uma atitude
que precisa ser evitada. Esse é um ponto em que os dois divergem de maneira
marcante. Para Kuhn, a sociedade científica é estritamente fechada à crítica, já
para Popper, é o oposto. Mesmo assim, Popper admite a existência da ciência
normal e não questiona a acusação de Kuhn de que ele deu conta somente de
uma parte do empreendimento científico. Isso ocorre, provavelmente, devido a
diferente intenção dos dois autores. Segundo Watkins, de um ponto de vista
metodológico, algo raro na ciência, como a ciência extraordinária, pode ter
muito mais peso devido a sua importância, do que algo que ocorre a todo o
momento. Mas, como Popper pode aceitar a existência da ciência normal e
ainda assim defender o falseacionismo? Uma possível resposta a isso é
encontrada numa rápida passagem de um artigo de Popper em que ele
comenta de maneira menos rigorosa sobre salvamentos de uma teoria. Nesse
artigo, ele escreve algo sobre a possibilidade de uma teoria não ser refutada,
mas ter seu status científico diminuído após ter recebido modificações ad hoc.
Entretanto, ainda não foi levantado o número de informações suficientes para
34
defender essa posição. Mas, a principio, Popper não seria tão radical quanto
Watkins sobre o caráter não científico da ciência normal.
Quanto ao segundo ponto da crítica de Watkins, no qual ele critica a
utilidade do critério de demarcação kuhniano, ele parece estar parcialmente
correto. Isso porque Watkins tem razão ao afirmar que não existe uma
quantidade determinada de falhas na resolução de enigmas para um
paradigma ser substituído por outro. Fato esse que faz com que não seja
possível afirmar exatamente quando uma teoria será substituída por outra,
antes do fato em si já ter ocorrido. Entretanto, isso não prejudica o objetivo
principal de um critério de demarcação, que é saber, no caso de Kuhn, quando
se constitui uma ciência. Para Kuhn, quando os cientistas não precisão mais
debater os fundamentos de suas teorias para desenvolver seus trabalhos é que
se constitui a ciência normal. E isso não precisa ser feito de maneira
retrospectiva, basta observar a atividade cotidiana de um cientista.
Sobre o que foi dito até aqui, a comparação feita por Kuhn de sua
filosofia e a de Popper merece alguns comentários à parte. Como dito, Kuhn
defende que Popper tratou somente dos momentos de ciência extraordinária.
Entretanto, segundo Kuhn, nem mesmo nesses momentos resultados
negativos em testes de teorias são tão apoditícos como quer Popper. Kuhn o
acusa de ter trazido termos como ‘falsificação’ e ‘refutação’ da lógica e da
matemática. Lugar que torna sua utilização aceitável, mas que, trazidos para as
ciências, sugere a capacidade de obrigar à aceitação de resultados qualquer
membro da comunidade científica. Além disso, Kuhn critica Popper por utilizar
o termo ‘erro’ para descrever momentos em que sistemas inteiros são
substituídos, diferente de seu uso comum, no qual ele pode ser isolado e
corrigido. Com isso, Kuhn indica que, apesar de não ser um falsificacionista
ingênuo, Popper pode ser tratado como tal. Isso porque, apesar de admitir a
existência de operações de salvamento de teorias, ele não dá conta em sua
filosofia de como abordar esse acontecimento, sem que uma teoria tenha que
ser descartada por completo. Nisso, Kuhn parece ter razão. Tirando o momento
em que comenta sobre a possibilidade de uma teoria ter seu status científico
diminuído após uma modificação, Popper não trata do tema com maior
profundidade, pelo menos até esse momento do debate. Contudo, em relação
ao caráter apodítico da filosofia de Popper, Kuhn parece se exceder um pouco.
35
Isso porque, embora Popper defenda, na maioria das vezes, que uma teoria
deva ser descartada após resultados incômodos, sua filosofia e a aceitação de
enunciados básicos pelos cientistas têm caráter convencional. Para aceitar
uma prova, é preciso que os cientistas entrem em acordo sobre acolher ou não
seu resultado. Ou seja, o método de Popper não pretende ser comparado a
operações matemáticas como sugere Kuhn.
Mas, o que leva, para Popper, um cientista aceitar ou não um
enunciado básico? Talvez nesse ponto sejam encontrados aspectos de Popper
referente aos valores compartilhados entre os cientistas, aspectos esses que
Kuhn acusa Popper de não ter se dado conta de sua existência. Destaca-se,
com isso, outro ponto de divergência entre ambos: enquanto Popper trata
sobre aceitar ou não enunciados básicos, Kuhn escreve sobre a possibilidade
de modificações de paradigmas. Aqui se encontra uma dificuldade deixada de
lado propositalmente nessa pesquisa. O debate inteiro ocorreu sem definirem
ao certo do que Kuhn trata quando utiliza o termo paradigma. Ora está se
referindo a valores compartilhados, ora a sistemas teóricos inteiros, ora
somente a uma teoria, etc. Ou seja, um paradigma é muito mais do que um
enunciado teórico, o qual Popper se refere constantemente. Entretanto,
somente em ensaios posteriores aos textos utilizados nessa pesquisa, Kuhn
organizou o significado desse termo. Esse foi o motivo de ter se dado uma data
limite para as referências utilizadas. Espera-se que, com a continuação da
pesquisa, venha a se aprofundar a interpretação de Popper sobre as diferenças
entre ambos os autores e descobrir quais problemas e soluções podem ser
encontrados com a clarificação dos termos kuhnianos, principalmente do termo
paradigma.
36
6. REFERÊNCIAS UTILIZADAS
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 8ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
KUHN, Thomas S. A tensão essencial. Lisboa: Edições 70, 1977.
LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan. A crítica e o desenvolvimento do
conhecimento: quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre
filosofia da ciência, realizado em Londres em 1965. São Paulo: Cultrix,
1979.
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. 12. ed. São Paulo:
Cultrix, 2006.
POPPER, Karl Raimund. Conjectures and refutations. 2ª ed. New York:
Routledge. 2006.
7. REFERÊNCIAS CONSULTADAS
CHALMERS, A. F. O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993.
CURD, Martin and COVER, J. A. Philosophy of science: the central issues.
USA: Norton. 1998.
DUTRA, Luiz Henrique de A. Introdução à teoria da ciência. Florianópolis:
UFSC, 1998.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 8ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
KUHN, Thomas S. A tensão essencial. Lisboa: Edições 70, 1977.
LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan. A crítica e o desenvolvimento do
conhecimento: quarto volume das atas do Colóquio Internacional sobre
filosofia da ciência, realizado em Londres em 1965. São Paulo: Cultrix,
1979.
LAUDAN, Larry. La ciencia y el relativismo. Madrid: Alianza Editorial. 1993.
OKASHA, Samir. Philosophy of Science: a very short Introduction. New York:
Oxford. 2002.
POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. 12. ed. São Paulo:
Cultrix, 2006.
Top Related