A MÚSICA DE MATRIZ AFRICANA NA COMPOSIÇÃO DE UM HORIZONTE
REVOLUCIONÁRIO EM BARRAVENTO
Thiago Henrique Felício
Universidade Federal do Paraná
Este trabalho se propõe a análise de “Barravento” (Glauber Rocha, 1962), uma das obras clássicas que marcam o
advento do “Cinema Novo Brasileiro”. Após trazermos algumas reflexões a partir da bibliografia disponível, iremos
elaborar uma breve análise com enfoque na interação entre imagem e som, procurando pensar a música de matriz
africana como fonte de significações. Considerou-se a hipótese de que este filme de Glauber Rocha pode ser
enquadrado naquilo que o historiador Marcelo Ridente chamou de “estrutura de sentimento da brasilidade romântico-
revolucionária”, ou seja, significados e valores que foram compartilhados por amplos setores de artistas e intelectuais
brasileiros a partir do final dos anos de 1950, segundo os quais era preciso buscar nas raízes populares nacionais as
bases para construir o futuro de uma revolução nacional modernizante. Assim, ao final, defendemos que a cultura afro-
brasileira foi resgatada em “Barravento” de maneira a recuperar no passado uma cultura popular autêntica, mas sem
que, com isso, houvesse uma dissociação em relação a utopias de construção de um futuro que vislumbrava um
horizonte socialista.
Palavras-chave: Barravento; Romantismo; Revolução.
A problemática do misticismo
Reconhecido como o primeiro longa-metragem de ficção dirigido por Glauber Rocha,
Barravento (1962) é uma das grandes obras clássicas do cinema brasileiro. Ao lado de outros títulos
de grandes diretores, tais como Nelson Pereira Santos, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade,
entre outros, marca o advento do Cinema Novo Brasileiro, movimento este que, por sua vez, é
comumente elencado como um dos mais importantes da história do cinema mundial.
A fábula do filme gira em torno do reencontro de Firmino com a sua comunidade de origem,
uma aldeia de pescadores chamada de Buraquinho. O protagonista toma para si a missão de
compelir essa comunidade a libertar-se da exploração e da resignação. Sua estratégia é a de alertar
aos integrantes da aldeia para o mecanismo de dominação e de controle social que vem sendo
exercido sobre eles através do misticismo religioso – que, neste caso, é representado a partir de
elementos presentes na cultura religiosa de origem afro-brasileira. No início do filme, há a projeção
de um letreiro que parece querer alertar o espectador para o problema da alienação pela religião,
como se pode ver no extrato que transcrevemos a seguir:
No litoral da Bahia vivem os negros puxadores de "xaréu", cujos antepassados vieram
escravos da África. Permanecem até hoje os cultos aos deuses africanos e todo esse povo é
dominado por um misticismo trágico e fatalista. Aceitam a miséria, o analfabetismo e a
exploração com a passividade característica daqueles que esperam o reino divino (...).
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Neste momento inaugural do filme, a narrativa parece querer revelar uma preocupação com
a alienação religiosa. Poderíamos rapidamente aproximar a crítica que parece se desenhar à uma
categoria que recorrentemente é atribuída à algumas vertentes do pensamento marxista: “a religião é
o ópio do povo”. Também por este motivo, a fita muitas vezes foi recebida como parte integrante de
um movimento mais geral da década de 1960, que no Brasil ficou marcada pela presença da
alienação no centro das abordagens sobre a consciência de classe. Ismail Xavier (2007), no entanto,
foi um dos críticos que procurou rever a sua posição, ao chegar à conclusão de que essa
interpretação não dá conta do filme em sua complexidade. Para chegar a este ponto, o autor
observou alguns importantes elementos que surgem durante o desenrolar da trama de Barravento e
que contradizem a perspectiva da crítica a religiosidade. Um exemplo se pode ser observado na
posição do protagonista ao decorrer da narrativa. Inicialmente ele era um sujeito que se julgava
mais esclarecido, que retornava da cidade para o seu local de nascimento, a aldeia de pescadores,
onde agora passa a querer impor um discurso antirreligioso, que se propõe a transformação da
consciência mística da comunidade - Firmino surge como o “malandro”. Os moradores da aldeia,
que por seu turno não aceitaram o discurso do malandro, passaram a defender e reiterar o seu modo
de vida. Firmino então passa a adotar diferentes estratégias. Em um dado momento ele passa a
investir contra Aruã, um pescador que estava predestinado a vir ocupar o lugar de líder da
comunidade de Buraquinho. No seu primeiro ataque a figura mística do pescador, Firmino recorre
ao terreiro da comunidade no intuído de empreender um feitiço. Mesmo sem a ajuda da mãe-de-
santo, ele realiza um “despacho” na praia. Então chegamos a um ponto onde a perspectiva crítica ao
misticismo é fortemente posta em cheque. Isso porque a esta altura o espectador naturalmente se
pergunta: mas tal prática, a realização de um “despacho”, na verdade não é algo que pressupõe fé?
Este ponto surpreende o espectador porque o protagonista, a princípio não tem fé, não acredita nos
valores místicos daquela comunidade e mesmo assim ele recorre a um “despacho”, pratica religiosa
que na verdade pressupõe fé.
Então, qual o significado desta ocorrência para a constituição do sentido da narrativa de
Barravento? Xavier responde a esta questão defendendo que o filme pode ser compreendido a partir
dos valores religiosos presentes na própria aldeia de pescadores. Pois deste ponto em diante, o filme
se desenvolve de maneira a revelar determinados procedimentos que, segue o autor, “nos colocam
diante de uma disposição de situações que faz do sistema religioso dos pescadores uma boa, senão a
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melhor, explicação para a lógica dos fatos”. A chave deste valor significante, portanto, passa por
uma ressignificação – ou por uma melhor compreensão – do papel do protagonista na composição
da trama:
A passagem de Firmino por Buraquinho constitui o núcleo da estória; é seu principal
elemento motor. Em termos da religião, Firmino é um autêntico Exu. Desde o primeiro
momento em que reencontra sua aldeia natal até seu desaparecimento de cena, ele tem seu
comportamento marcado pela constante militância. Ao seu estilo, agita sempre, tece suas
tramas e faz seus discursos a qualquer hora, como se tivesse uma missão a cumprir sem
descanso e não pudesse incluir nada mais em sua relação com os pescadores. (XAVIER,
2007: p. 46).
Ao observar este e alguns outros elementos que constituem a película, desde os movimentos
da câmera até a montagem, para além do desenrolar da trama, Ismail Xavier percebe que de uma
crítica à consciência religiosa passamos a um polo oposto, onde a própria religiosidade compõe os
elementos significantes. Tal interpretação contradiz a perspectiva de que Barravento se constitui
como uma obra que lança mão da categoria da alienação religiosa. E, mais ainda, pode sugerir
também que o filme, na verdade, tece um grande elogio a cultura e a religiosidade afro-brasileira.
Partindo destas observações, iremos avançar para alguns momentos em que imagem e música
surgem de maneira a gerar significantes também avessos a perspectiva da crítica ao misticismo.
Música e imagem na constituição de sentidos
O Barravento
A primeira consideração que se pode ser feita sobre a película de Glauber Rochas refere-se
ao título escolhido: Barravento. Também aqui são inseridas na projeção algumas informações que
parecem querer direcionar o olhar do espectador. Segue a transcrição daquilo que o letreiro inicial
nos informa acerca do título o filme:
“Barravento” é o momento de violência, quando as coisas da terra e mar se transformam,
quando no amor, na vida e no meio social ocorrem súbitas mudanças.
De maneira um tanto romantizada, o texto – ou poesia – associa o termo Barravento a mudanças. E
é basicamente este o significado que ele evoca. Curiosamente, tal definição não diverge daquilo que
podemos encontrar nos dicionários. A partir do dicionário Houaiss de língua portuguesa, por
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exemplo, se pode observar que Barravento é uma palavra utilizada no Candomblé brasileiro de
forma aparentemente polissêmica. Ela pode referir-se tanto ao “estado de estonteamento que
precede a posse da filha ou filho-de-santo pelo orixá, caracterizado por transe com movimentos
descoordenados, agitação, tremores” (HOUAISS, 2001), quanto ao toque dos atabaques que produz
esse estado. Uma mudança, portanto, que ocorre em um filho de santo e que é provocada pelo som
do atabaque em um terreiro de candomblé ou mesmo em um terreiro de umbanda.
Como música, sabe-se que o Barravento possui características especificas, configurando-se
a partir de um ritmo marcado, que é capaz de provocar o estado de atordoamento que precede o
transe em que ocorre a possessão de um filho de santo. O ritmo é usado em diferentes canções, e
durante a projeção do filme ele aparece de forma recorrente. É possível identifica-lo a partir da sua
configuração em um compasso binário composto, em 6/8, conforme transcrevemos a seguir:
Figura 1- Transcrição do ritmo do Barravento.
Após o termino da segunda frase rítmica descrita na transcrição acima, inicia-se a primeira
frase novamente, e assim por diante, até o término da canção. O andamento da batida, por sua vez,
pode variar de música para música ou mesmo dentro de uma mesma canção, podendo iniciar com
um ritmo um pouco mais lento, mas sempre chegando a um ponto mais acelerado e é sempre
possível acelerar a batida mais ainda – podendo mesmo chegar a um andamento que na notação
musical erudita equivaleria ao chamado Prestissimo (200 batidas por minuto ou mais). No
candomblé a percussão que executa este ritmo se constituí, em geral, por três instrumentos, o Rum,
o Rumpi e o Lê, que são três tipos de atabaques, com timbres distintos e todos eles executados com
varetas, chamadas Aguidavi. Na umbanda a batida é feita também com as palmas das mãos.
As duas versões da batida, com as mãos e com o Aguidavi, aparecem durante a projeção do
filme de Glauber Rocha, marcando a trilha em diversas cenas ao longo da película. No entanto, ele
não é o único ritmo utilizado e nem mesmo marca as ações mais importantes do personagem
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central, tal como veremos adiante. Por hora, para entender, então, a escolha do título do filme é
preciso que tomemos o significado do termo por completo, e não apenas o seu significado parcial,
ou seja, o ritmo dos atabaques.
Talvez o elemento chave aqui seja a definição etimológica do termo Barravento. O
dicionário Houaiss alude neste ponto o trabalho de Olga Cacciatore (1977), autora que explica que o
termo foi composto a partir das palavras barra e vento, em referência a um elemento da natureza
característico de uma localidade bem especifica, o vento forte da região da Barra, que fica na
entrada para a Baía de Todos os Santos na cidade de Salvador. Neste ponto, então, estamos mais
próximos de entender alguns dos significantes impressos a partir da articulação entre imagem e
áudio no filme Barravento. Pois, ao longo da projeção, ouvimos em diversos momentos o ritmo
binário sendo produzido pelos atabaques, principalmente nas transições entre as cenas – o que
demonstra que há também um esforço para que a montagem, nas mudanças entre uma cena e outra,
corresponda ao sentido de mudança que imprime o termo Barravento –, mas há também uma forte
presença do ruído produzido pelos ventos, que em certos momentos acentuam o sentido das ações e
falas dos personagens. E mais do que isso, também os ventos, ou o barravento, servem para
demarcar acontecimentos de extrema relevância narrativa, como modificações que ocorrem na vida
dos personagens centrais. Neste ponto, Ismail Xavier também identificou uma importante
correlação entre os valores míticos e o desenvolvimento da trama, mais especificamente no
momento do filme em que finalmente é profanada a virgindade de Aruã, o que para Firmino era
algo que iria ajudar a esclarecer os pescadores da aldeia sobre a problemática do misticismo:
De início, o plano geral o situa num contexto sereno, onde a praia e o mar fornecem o
quadro para a afirmação de um ser integrado, cujo retrato vem nos três planos seguintes.
Nestes, a angulação procura reforçar o vigor que vem da própria postura do ator, e a
sucessão de imagens marca um cerco obsessivo do seu corpo, coroado pela posição final da
câmera, que, de frente para Aruã, deixa-se atropelar pela sua caminhada. É preciso que seu
corpo ocupe todo o quadro antes de ser abruptamente substituído pela imagem, em primeiro
plano, do pé da árvore. A passagem tão ostensiva de Aruã para a árvore, seguida do
movimento ascensional da raiz ao topo, estabelece uma relação direta entre seu corpo
sexuado, como raiz, e a convulsão da natureza, como resposta à profanação, deflagrada pelo
céu nublado e pelo trovão (XAVIER, 2007: p.40).
A cena em especifico, na verdade, sucede o momento em que Aruã havia cedido a sedução
de Cota, deitando-se com ela. A perda da virgindade de Aruã, vale dizer, foi algo que modificou de
forma importante o rumo dos acontecimentos, pois a pureza do personagem, segundo os preceitos
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da fé dos pescadores, é algo que garante que ele mantenha um poder sobrenatural. Vale ressaltar
também que aqui a trilha do filme age de forma fundamental na geração de significados. Nesta cena
anterior, Aruã e Cota deitados com o corpo nu, um sobre o outro, alternam-se as imagens com os
detalhes de um ritual no terreiro de Candomblé. Ao fundo sonoro ouve-se o som dos atabaques, que
executam o Barravento de forma intensa. Toda a operação parece culminar em uma importante
intensificação dramática. Após esta cena ocorre o trecho analisado por Ismail Xavier. No primeiro
dos seis planos vemos Aruã acordando na areia da praia. Ele levanta-se, ainda com o corpo nu, e
começa a caminhar lentamente pela praia. A trilha continua agindo fortemente, pois o atordoamento
causado pela batida frenética dos atabaques agora é aliviado com o silêncio, como se ocorresse uma
pausa na canção, e agora mantêm-se ao fundo apenas o leve ruído do vento. No plano seguinte
vemos Aruã de perfil. Ele caminha e olha para a paisagem com um olhar sereno, como que
satisfeito com o que havia ocorrido. Mais uma mudança de plano e agora vê-se Aruã de costas. Esta
fotografia serve como que de prelúdio para os três planos seguintes, os quais irão demarcar a
modificação psicológica do personagem. Assim, o plano seguinte foca novamente em Aruã de
perfil, mas agora ele interrompe sua caminhada. Na imagem percebe-se a mudança em seu rosto,
que agora parece ostentar um olhar mais decidido. Em um instante, ele recomeça a andar, mas agora
em direção ao quadro. Antes que seu corpo tome totalmente o quadro, há um corte que nos leva ao
quinto plano desta sequência, onde vê-se apenas um coqueiro. A câmera faz um movimento em L
subindo pelo tronco da arvore até a copa, ao passo que no plano sonoro ouve-se mais claramente o
ruído do vento, que sopra cada vez mais forte. A sequência termina com a imagem do Céu, nublado
e com os sons de vento e trovoadas – o que parece ser o pronunciamento de uma grande
tempestade.
De um breve lapso de calmaria, há a retomada do barravento, que agora irá vir com maior
intensidade, não apenas porque deste ponto em diante o fundo sonoro se constituirá pelo ruído de
um vento mais forte, ou porque a batida dos atabaques também ressurgirá, mas também pela
intensidade dos acontecimentos que marcarão o desfecho da história. Essa pontuação, embora possa
parecer uma operação usual, possuí fortes elementos significantes: há uma relação entre os
personagens e a natureza, e na continuação dessa passagem acentua-se mais essa relação. O
argumento de Xavier, no entanto, aponta para o fato de que todas essas imagens atuam não apenas
no sentido de dar sequência aos fatos que constituem a história, mas também de maneira a mediar e
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aproximar as coisas que acontecem no céu e na terra, relacionando assim o microcosmo da
comunidade de pescadores e o macrocosmo da natureza. E essa relação entre o céu e terra, por sua
vez, não deve ser vista como uma mera coincidência, pois trata-se de um acontecimento
coordenado, para que o desejo de Firmino se cumpra com o auxílio das forças da natureza.
Exu Firmino
Exu pode ter matado um pássaro ontem, com uma pedra que jogou hoje! Se zanga-se, ele
sapateia uma pedra na floresta, e esta pedra põe-se a sangrar! (VERGER, 1996: p. 8).
A compreensão de alguns aspectos do universo místico da religiosidade afro-brasileira pode
ajudar a esclarecer alguns pontos em Barravento, pois trata-se de uma narrativa construída
justamente a partir dos mitos, ritos e músicas de matriz africana. Iremos dialogar na medida do
possível com a bibliografia disponível acerca deste tema, afinal o universo místico afro atua na
narrativa como uma importante fonte de significações, de maneira que o filme se torna até mesmo
inapreensível na medida que não procuramos abrir os olhos e ouvidos para o sentido da cultura
religiosa que a obra se propõe. A apresentação do personagem de Firmino, que se dá logo durante
os primeiros planos do filme, é um importante exemplo nesse sentido. As suas primeiras imagens
vão se alternando as primeiras imagens da aldeia de pescadores. Uma montagem paralela,
construída de forma que é possível afirmar que as principais características do personagem se
encontram logo de saída bastante definidas. Basta atentarmos ao arquétipo que ele traz em sua
aparição: ele é o típico malandro da cultura popular brasileira. Nosso ponto neste tópico é reafirmar
a identificação de Firmino como um autêntico Exu.
E isso é algo que se pode perceber desde o seu aparecimento na aldeia dos pescadores,
durante os planos inicias, que já trazem elementos suficientes para que possamos afirmar essa
característica especifica do personagem central. A primeira imagem dialoga com a canção que
estava sendo reproduzida ainda nos créditos iniciais. Vê-se um grupo de pescadores puxando a rede
de pesca na praia. Eles trabalham e cantam. A sequência de músicas que sucedem-se mesmo antes
do aparecimento destas imagens inaugurais proporcionam toda uma ambientação que não deixa
dúvidas da composição a partir de uma estética negra. O segundo plano do filme mostra um homem
caminhando pela areia da praia ao anoitecer, ao passo que há também uma nova canção, executada
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pela voz de um barítono: Quando eu vim de Aruanda/Eu vim só/deixei lá pai/deixei lá vó/só, só, eu
venho só.
Vai desenhando-se uma narrativa musical, muito aparentada ao gênero dos musicais
clássicos, nos quais o drama avança através da música, das canções e até mesmo da dança - vale
lembrar que os termos utilizados nas canções já trazem elementos significativos, mas que vão
ganhando o seu sentido fundamentalmente na medida que o filme avança. Assim, o plano seguinte
apresenta uma nova trilha, dessa vez o ritmo característico utilizado na capoeira de angola,
conhecido como toque de angola, um ritmo binário simples, como se pode ver na transcrição abaixo
(fig. 2) que é executado com um berimbau, batida de palmas e voz:
Figura 2 - Transcrição do ritmo do de Capoeira Angola, berimbau.
Firmino salta, saindo de traz de um farol e para no meio das pedras a beira-mar. Neste
momento ouve-se apenas o berimbau. Nesta aparição, chama atenção as suas vestes, terno, chapéu e
sapato, tudo em cor clara, talvez branco, o que não podemos afirmar com toda certeza, visto que o
filme foi rodado em preto e branco. O fato é que na cultura afro-brasileira as suas roupas
assemelham-se às vestes utilizadas nas imagens do Zé Pelintra (fig. 3), uma das mais conhecidas
entidades de cultos afro-brasileiros:
Figura 3 - Fotografia da Imagem de Zé Pilintra,
importante Exu da cultura afro-brasileira.
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Figura 4 - Quadros referentes a sequência da entrada de Firmino, no filme Barravento
Os quadros reproduzidos acima ajudam a evocar a fotografia, a caracterização do
protagonista e os seus movimentos dentro do quadro. E isto é importante, pois trata-se de um
momento chave para a compreensão do filme como um todo. Firmino surge, em seguida fica de
costas, mas em um movimento ele gira novamente em 180 graus, ficando de frente, para só então
começar a descer das pedras em direção a areia da praia. Neste momento a letra é entoada: Oia tu
que é moleque/Moleque é tu/Cala boca muleque. Muleque é tu/Te assunta muleque/Muleque é tu/Te
arrebento muleque/Muleque é tu. Por fim, acreditamos que este plano deixa bastante clara, logo
durante a primeira aparição do personagem no filme, a identificação entre o protagonista e Exu.
Os planos que se seguem irão revelar um repertório sonoro ainda maior, com a inserção de
outras músicas. Mas até o final, na verdade, o filme continuará sendo construído através da
utilização de um amplo repertório musical. As canções que compõem este seu universo diegético,
vale dizer, são todas provenientes do universo afro-brasileiro, tais como o Samba de Roda, o ritmo
da Capoeira, o ritmo do barravento ou mesmo dos Xirês, canções que comumente são executados
nos terreiros durante os ritos do padê ou ao longo das giras de santo.1 Entre as músicas de terreiro,
estão os Xirês de Iemanjá, de Exu, de Oxalá, além de outras, tais como as canções utilizadas durante
as imagens dos rituais dentro dos terreiros que surgem ao longo da projeção. Aqui as escolhas
1 Nos terreiros de umbanda e de candomblé da Bahia, ocorrem periodicamente as giras de santo, momento em que
ogans trabalham na execução dos xirês dos Orixás, para que os outros filhos de santo, sob a orientação do Babalaorixá,
ou do pai ou mãe de santo, realizem danças e se dedicam às incorporações das entidades espirituais. Mas o primeiro
passo, geralmente antes de qualquer coisa, é a execução do padê, que é o momento em que invoca-se o Exu para que
todos o saúdem. O rito é necessário, conforme Pierre Fatumbi Verger, por dois motivos: “convocar os outros deuses
para a festa e, ao mesmo tempo, afastá-lo para que não perturbe a boa ordem da cerimônia com um dos seus golpes de
mau gosto” (VERGER, 2002: p. 40). O primeiro motivo, o de convocar os outros deuses para a festa, diz respeito ao
papel atribuído a Exu como o Orixá mensageiro e único capaz de estabelecer o diálogo entre os demais Orixás e os
humanos (PRANDI, 2001: p. 20). O segundo, talvez mais controverso, refere-se ao mito que informa que “para haver
paz e tranquilidade entre os homens, é preciso dar de comer a Exu, em primeiro lugar” (PRANDI, 2001: p. 20), ou seja,
apenas saciados os anseios de Exu é que ele irá permitir que as coisas aconteçam.
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também foram feitas não sem nenhum cuidado, de forma que os universos diegéticos das canções
acabam dialogando com o próprio espaço diegético do filme. Neste ponto, e para exemplificar, vale
atentar para o fato de que os Xirês dedicados a Exu surgem no plano sonoro em alguns momentos
com a função de acentuar as ações de Firmino, personagem que possui muitas das características
atribuídas aos arquétipos dos filhos de Exu. Assim, o Xirê de Exu soma-se a ação do personagem
fortalecendo ainda mais a identificação entre as duas figuras.
A música dedicada a Exu ilustra justamente a identificação de Firmino com o seu Orixá. Um
exemplo marcante desse diálogo entre os diferentes espaços diegéticos, ou seja, entre as ações de
Firmino e a natureza de Exu segundo a tradição mística, pode ser observada na cena em que o
protagonista recorre a Mãe-de-Santo no intuito de solicitar ajuda em seu intento contra Aruã. Nesta
altura do filme, o personagem já havia sido apresentado: uma figura maliciosa, com uma fala
controversa, e que será capaz de utilizar-se das peripécias necessárias para causar a mudança que
ele deseja que aconteça na aldeia de pescadores. O estratagema utilizado na montagem não é
exatamente o usual, pois o início da sequência não é marcado por um corte, mas pelo movimento do
personagem, que levanta-se da areia da praia e caminha, movimento que é feito de forma
sincronizada com o plano sonoro das batidas dos atabaques que precedem o canto referente ao Xirê
de Exu. Nos planos que seguem, vemos que a mãe-de-santo recusa o seu pedido, em seguida em
primeiro plano sonoro o canto agora deixa claro a quem dedica-se a canção que estava sendo
introduzida. A primeira voz irrompe a saudação dedica a Exu: Laróyè! (Salve Exu). E tem início a
canção: Bara un Bebe/Tiriri Lonan/Exu Tiriri/Bara un Be Be/Tiriri Lona/Esú Tiriri (Exu realiza
proezas maravilhosas, Tirirí é o Senhor dos Caminhos, Exu Tirirí). Ao que o coro responde com
uma variação do refrão: Bará ô bébé/tirirí lónã/Exú tirirí/Bará ô bébé/tirirí lónã/Exú tirirí.
Considerações Finais: Revolta e Melancolia
Nesta comunicação procurou-se trazer alguns exemplos que servem para ilustrar a
importância da interação entre imagem e som, tendo a música de matriz africana como fonte de
significações. Estas questões fazem parte do trabalho que está sendo desenvolvido em fase ainda
inicial, em função da escrita da tese de doutorado em história para a linha de pesquisa de Cultura e
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Poder, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História do Setor de Ciências Humanas,
Letras e Artes da UFPR.
Além disso, procurou-se contribuir para o entendimento de que de que a ideia de que
Barravento tem como prerrogativa a alienação causada pela religiosidade é uma interpretação que
na verdade não dá conta do filme em sua complexidade. Além disso, apenas após perceber isso é
que é possível compreendê-lo a partir de um espectro mais amplo. Em outros termos, percebemos
que entender a fábula do filme em si acaba sendo um pré-requisito para que possamos compreendê-
lo também dentro do seu contexto de produção.
O resgate da cultura mística afro-brasileira em Barravento, em nossa perspectiva, ocorre em
um contexto marcado no plano das ideias não tanto pela crítica a alienação, mas essencialmente por
uma vertente romântica do pensamento marxista (LÖWY; SAYRE: 2015), ou, ainda, marcada por
aquilo que o historiador Marcelo Ridente chama de “estrutura de sentimento da brasilidade
(romântico-) revolucionária” (RIDENTI, 2005: p. 82). Este conceito é importante, pois refere-se a
algo que Ridente identificou de forma bastante pontual, a saber, o fato de que existiu uma linha de
pensamento compartilhada por amplos setores de artistas e intelectuais brasileiros a partir do final
dos anos de 1950. Romantismo e revolução pode parecer uma formulação ambígua, pois tratam-se
de conceitos a princípio contraditórios. Mas tal formulação se justifica quando observamos o
contexto com o qual estamos trabalhando. Ela é possível graças a uma correlação com um período
anterior ao golpe de 1964, principalmente com o período do governo de João Goulart (1961- 1964),
quando se difundia uma ideia essencialmente enraizada no modernismo, a ideia de que havia dois
brasis, um Brasil moderno e outro atrasado. Trata-se, em suma, de procurar no passado uma cultura
popular autêntica para construir uma nova nação, esta moderna e também “desalienada”.
A leitura mais geral do filme, por sua vez, foi elaborada justamente no intuito de poder
desenvolver a hipótese que pretende-se levantar no desenvolvimento da pesquisa de doutorado, a
saber, a de que, nos anos 1960, os filmes de Glauber Rocha representaram esta vertente, romântico-
revolucionária, de forma bastante eloquente.
No caso de Barravento, consideramos que é importante afastar-se da interpretação de que o
filme se constitui pura e simplesmente a partir de uma crítica a alienação, também porque tal leitura
poderia sugerir, entre outras coisas, que no fundo o que a narrativa defende é que as personagens do
filme, que sofrem com a fome e com a miséria, são elas mesmas as responsáveis pela sua
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pauperização social. Ao contrário, procuramos demonstrar que o filme buscou resgatar na cultura
tradicional da religião afro-brasileira, que tem se desenvolvido ao longo dos séculos, principalmente
no nordeste brasileiro, os elementos necessários para construir uma narrativa que traz uma história
marcada por uma revolução social, provocadas por mudanças ocorridas a partir de uma crítica
interna da mística afro-brasileira a partir da mística afro-brasileira.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E BIBLIOGRAFIA BÁSICA
Fontes Primárias:
BARRAVENTO. Direção: Glauber Rocha. Produção: Rex Schindler; Braga Neto. Roteiro: Glauber
Rocha; José Telles de Magalhães. Fotografia: Tony Rabatony. Elenco: Antonio Pitanga, Luiza
Maranhão, Lucy de Carvalho e Aldo Teixeira. Salvador: Iglu Filmes, 1961. Material: 2 DVDs (80
min), P&B, cópia restaurada distribuída por Sonopress.
Bibliografia:
CACCIATORE. Olga G. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, l977.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia: Romantismo na
Contracorrente da Modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RAMOS, A. As Culturas Negras do Novo Mundo. São Paulo: Companhia Editorial
Nacional, 1979.
RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960. In: Tempo Social, Revista
de Sociologia da USP, v. 17, n. 1, p. 81-87, jun. 2005a.
VERGER, Pierre. Lendas Africanas dos Orixá. Salvador: Corrupio, 1997.
_______. Os Orixás. Salvador: Corrupio, 2002.
XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac
Naify, 2007.
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