FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS
CULTURAIS
DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
“Trabalhadores Favelados”: identificação das favelas
e movimentos sociais no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte
APRESENTADA POR
SAMUEL SILVA RODRIGUES DE OLIVEIRA
PROFESSORA ORIENTADORA: DULCE CHAVES PANDOLFI
Rio de Janeiro, Setembro/2014
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
“Trabalhadores Favelados”: identificação das favelas
e movimentos sociais no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte
APRESENTADA POR
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira
Rio de Janeiro, Setembro/2014
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS
DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTUR AIS
PROFESSORA ORIENTADORA: Dulce Chaves Pandolfi
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira
“Trabalhadores Favelados”: identificação das favelas
e movimentos sociais no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte
Tese de Doutorado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito parcial para a obtenção do grau de
Doutor em História,
Política e Bens Culturais.
Rio de Janeiro, Setembro/2014
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV
Oliveira, Samuel Silva Rodrigues de
“Trabalhadores Favelados”: identificação das favelas e movimentos sociais no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte / Samuel Silva Rodrigues
de Oliveira. - 2014.
331 f.
Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em História Política e Bens Culturais.
Orientadora: Dulce Chaves Pandolfi. Inclui bibliografia.
1. Favelas – Brasil. 2. Política urbana. 3. Movimentos sociais. 4. História social – Rio de Janeiro. 5. História social – Belo Horizonte
I. Pandolfi, Dulce Chaves. II. Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil. Programa de Pós-Graduação em História Política e Bens Culturais. III. Título.
CDD – 301.3630981
Para Juliana
Agradecimentos
“Eu atravesso as coisas - e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido na
ideia dos lugares de saída e de chegada".
(ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001. p. 51.)
Seria impossível numa nota de agradecimento nomear as inúmeras luzes que encontrei
na travessia da pesquisa e escrita da tese. Mas não tenho dúvidas sobre aquela que foi a maior,
aquela que me acompanhou como um farol: Dulce Chaves Pandolfi. Essa orientadora tem
nome pomposo, mas é simples, fina e agradável no trato. A cada encontro de orientação,
queria mais um para desfrutar do prazer de sua companhia. Intelectual exemplar pela
capacidade de refletir sobre diferentes objetos e pontos de vista, assim como pela sua ação no
espaço público, Dulce foi minha leitora crítica, maior incentivadora e analista das inúmeras
dúvidas e percalços da travessia. Obrigado pela orientação, amizade e, principalmente, pelos
exemplos – impossível arrolá-los numa lista fria, pois já fazem parte de minhas lembranças
formadoras.
No CPDOC, durante quatro anos, encontrei, além de minha orientadora, pessoas
importantíssimas, que me ajudaram a segurar o leme diante dos revezes. Na condução do
programa de pós-graduação, Ângela de Castro Gomes, Mônica Kornis e Luciana Heymann
trabalharam, coordenando, esclarecendo dúvidas e lutando para o crescimento do programa.
Ao trabalho delas, do corpo docente e dos funcionários do CPDOC, devo o acolhimento no
programa e a bolsa de doutorado pela FAPERJ. O apoio do programa de pós-graduação e da
FAPERJ foram fundamentais para a realização de uma pesquisa que cobria as instituições de
arquivo e memória de duas cidades, e constantes deslocamentos. Obrigado!
Na travessia da tese, mudei de cidade e fui ao encontro de novos lugares para o
diálogo. A mudança já começou quando, sob a orientação de Rodrigo Patto no mestrado, fui
alertado para a possibilidade de comparação com o Rio de Janeiro. Participando do grupo de
pesquisa História e Culturas Políticas na UFMG, fiz uma primeira apresentação da pesquisa
de doutorado, com indicações e discussões de novos caminhos a serem trilhados. No CPDOC,
meu repertório intelectual ampliou-se. Na disciplina cursada com Marly Motta sobre a
Historiografia da Cidade do Rio de Janeiro, pude compreender os desafios de construção de
uma escala de comparação entre cidades com instituições e campos políticos distintos. Na
pesquisa para o Dicionário da Política Republicana do Rio de Janeiro, sob a coordenação de
Alzira Alves Abreu e Cristiane Jalles, aprofundei pesquisas e leituras acerca da história do
estado e da cidade do Rio de Janeiro. No Laboratório de Estudos Urbanos (LEU), Julia
O’Donnel e Mariana Cavalcanti coordenaram inúmeras sessões que discutiam as cidades em
perspectivas diversificadas. No Laboratório dos Mundos do Trabalho e Movimentos Sociais
(LEMT), coordenado por Paulo Fontes, participei de um grupo de estudos sobre a obra de
Thompson e de discussões sobre a história contemporânea do Brasil. Incentivado pela minha
orientadora e pelos grupos de pesquisa de que participei no CPDOC, aprofundei
conhecimentos sobre a relação entre as Ciências Sociais e a História. As possibilidades de
travar esse diálogo foram variadas, mas a disciplina Sociologia Urbana, feita com Márcia
Leite na UERJ, foi central pela intensidade das discussões e da professora. Nesses vários
lugares, encontrei generosidade e franqueza de interlocutores que possibilitaram o
deslocamento do meu olhar sobre o material de pesquisa. O novo foco de análise foi
apresentado e discutido em minha qualificação – Mário Grynszpan, Mariana Cavalcanti,
Márcia Leite e Paulo Fontes, obrigado pela leitura atenta, pelas críticas e pelos comentários
quanto ao material apresentado.
Uma travessia não se faz sem companheiros. Eles nos dão a felicidade de não estarmos
sós nas dificuldades e alegrias do trabalho intelectual. Raimundo Hélio, Vicente Saul, Evelyn
Morgan, Lucas Correa, Juliana Gagliardi, Vivian Fonseca, Aline Portilho, Luciana Wollman e
Mauro Amoroso são os colegas do programa de pós. À Carla Mattos, devo poucas e boas
conversas, e o primeiro apartamento que permitiu minha mudança para o Rio. À Sônia Fleury,
Sabrina Guergue, Júlio César e Juliana Kabab, devo um dos círculos de discussão mais ativos
e interessantes de que participei. Marina Camisasca, Priscila Gontijo e Letícia Schirm são
amigas inseparáveis e estiveram ao meu lado em todas as horas, da seleção à reta final.
Miriam Hermeto foi uma amiga-irmã de orientação no mestrado, e se tornou mais amiga-irmã
ainda no doutorado – sou muito feliz por ter lhe encontrado nessa longa travessia, Miriam!
Quando o meu barco balançou, olhei para o lado e encontrei outros iguais que continuavam,
seguiam em frente. Mesmo que não saibam, esse gesto foi de incomparável valor. Obrigado!
A aqueles que estiveram dentro do barco comigo, não tenho palavras. Só eles sabem o
quão importante foram. Juliana me abasteceu com amor, comidas, cafunés, descontração e
companheirismo sem igual. Márcio e Zilá nunca deixaram de me apoiar e me amar de forma
incondicional. César e Túlio são meus iguais de alma, são irmãos em tudo que sou, naquilo
em que me diferencio e me identifico – espelhos invertidos que me completam. Vocês que
estiveram dentro do barco são únicos, são minhas fontes de coragem e amor.
Em Grande Sertão: Veredas, o personagem Riobaldo sabia: quando atravessamos um
rio, nos preocupamos com o lugar de chegada, mas quase sempre chegamos num lugar
diferente do imaginado. Na travessia de uma margem para a outra, mudamos junto com o rio
e com os outros que nos acompanham. É essa cegueira da travessia que descubro pouco a
pouco ao escrever os agradecimentos. A todos aqueles que, citados ou não neste
agradecimento, proporcionaram a travessia da tese e minha (trans)formação, meu sincero
obrigado.
RESUMO
A tese aborda o processo de identificação das favelas e sua apropriação pelos movimentos de
“trabalhadores favelados”. Em A Invenção das Favelas (2005), Valladares discutiu as favelas
como uma representação e invenção social do século XX. Partindo desse marco analítico
compartilhado e discutido por outros autores, construímos uma escala de comparação entre
Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Na primeira parte da tese, compreendemos essa
representação como o resultado de um processo identificação. Como observou Noriel, em
L’Identification (2006), o Estado moderno foi um dos maiores produtores de tecnologias de
identificação, dispositivos de poder que visam conhecer, classificar e governar as populações
num dado território. Investigamos como as práticas estatais no Rio de Janeiro e em Belo
Horizonte constituíram representações das favelas, delineando um discurso e um dispositivo
de poder sobre os territórios da pobreza através de legislações, censos e comissões de estudo.
As analogias, particularidades e trocas instituídas no processo de identificação são analisadas,
observando a formação de uma retórica da marginalidade social no âmbito do Estado,
reproduzindo estigmas sociais, mas também gerando oportunidades para reivindicação de
direitos. Nesse sentido, na segunda parte da tese, analisamos os movimentos dos
“trabalhadores favelados”, organizados pela União dos Trabalhadores Favelados (UTF) no
Rio de Janeiro e Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH).
Compreendemos a forma como esses movimentos sociais organizaram repertórios de
ação, apropriando-se da identificação das favelas para reivindicar direitos, mobilizaram-se
eleitoralmente, vinculando-se a grupos de esquerda, e propuseram projetos de reforma urbana.
Palavras-chave: Favelas. Políticas Urbanas. Movimentos Sociais Urbanos. História Social do
Rio de Janeiro e de Belo Horizonte.
ABSTRACT
This thesis analyses the process of identification of favelas and the appropriation of this
process by the social movements of the workers from the favelas, which we will call them
“favelados workers”. In A invenção das favelas (2005), Valladares presents the favelas as a
social representation of the twentieth century. Based on this analytical framework which is
shared and discussed by other authors, the thesis constructed comparative scales between Rio
de Janeiro and Belo HorizonteIn the first part of the thesis, it is proposed a way to understand
this social representation as a result of an identification process. As noted by Noriel in
L'Identification (2006), the modern state was one of the largest producers of identifying
technologies and power strategies which aims to understand, to categorize and to govern the
populations (population) in an specific territory. The thesis investigates how the state in Rio
de Janeiro and Belo Horizonte produced the identification of favelas, outlining a speech and a
power strategy on the poor territories through legislation, censuses and studies commissions.
Analogies, particularities and exchanges established in the identification process are analyzed,
by observing the formation of a social marginality rhetoric that has reproduced not only a
social stigma, but also has generated opportunities of claiming for rights. The second part of
the thesis analyses the movements of the favelados workers, formed by the Favelados
Workers Union (UTF) in Rio de Janeiro and Favelados Workers Federation in Belo
Horizonte” (FTFBH). It proposes a way to understand how these social movements have
organized repertoires of collective action, how they have made electoral mobilization tying
up to Lefts, and how they have proposed urban reform projects by appropriating the
identification of favelas to claim for rights.
Key Words: Favelas. Urban Politics. Urban Social Movement. Social History of Rio de
Janeiro and Belo Horizonte.
Compreender não é fugir para a ideologia, nem dar pseudônimo ao
que permanece oculto. É encontrar na própria informação histórica o
que a torna pensável. (...) Permite levantar uma série de indícios até
então inobservados e, daí por diante “notáveis”, porque se sabe
aproximativamente a que funções deve corresponder. Mas pode
também recolocar em questão conceitos, as “unidades” históricas ou
os “níveis” de análise adotados até então. (CERTEAU, 2006: 122)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 14
PARTE I
A IDENTIFICAÇÃO DAS FAVELAS
1 A IDENTIFICAÇÃO DA “FAVELA”: A FORMAÇÃO DE UMA
CATEGORIA NO LÉXICO URBANO............................................................
23
1.1. Um topônimo presente em duas cidades................................................................ 24
1.1.1 “Favela”, “favela” e “vila-favela”: de ícone a símbolo da pobreza........................ 25
1.2 A Legislação urbana e favela.................................................................................. 42
1.2.1 Rio deJaneiro............................................................................................................. 44
1.2.2 Belo Horizonte........................................................................................................... 52
1.2.3 A favela como status jurídico e sociourbano........................................................... 59
2 A QUESTÃO DAS FAVELAS E A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
PARA RECUPERAÇÃO DOS “MARGINAIS”...................................................
62
2.1 As políticas de “desfavelamento” no Rio de Janeiro............................................. 63
2.1.1 Fundação Leão XIII................................................................................................. 67
2.1.2 Comissão de Favelas da PDF................................................................................... 70
2.1.3 Cruzada São Sebastião e SERFHA.......................................................................... 80
2.2 As políticas de “desfavelamento” em Belo Horizonte........................................... 90
2.2.1 Departamento de Assistência Social e Saúde........................................................... 97
2.2.2 A Comissão de Desfavelamento e o DHBP.............................................................. 99
2.3 Serviço Social, políticas habitacionais/assistenciais e igreja católica.................. 108
3 OS CENSOS E A IDENTIFICAÇÃO DAS FAVELAS NO RIO DE
JANEIRO E EM BELO HORIZONTE.................................................................
114
3.1 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e os censos de
favela..........................................................................................................................
117
3.2 A imagem do trabalhador e da favela.................................................................... 123
3.2.1 Os “inativos”............................................................................................................. 128
3.2.2 “Desenvolvimento” e pobreza.................................................................................. 132
3.3 O habitat das favelas................................................................................................. 135
3.3.1 Narrativas históricas da ocupação da paisagem urbana......................................... 137
4 A “COMISSÃO NACIONAL DE BEM-ESTAR SOCIAL” E A
“SUBCOMISSÃO DE HABITAÇÃO E FAVELA”.............................................
145
4.1 Comissão Nacional de Bem-Estar Social (CNBS)................................................. 146
4.1.1 A criação da CNBS................................................................................................... 148
4.1.2 A CNBS no contexto do Segundo Governo Vargas................................................. 150
4.1.3 Bem-Estar Social e o contexto internacional........................................................... 152
4.2 Subcomissão de Habitação e Favela....................................................................... 155
4.2.1 A Fundação da Casa Popular e a política nacional de habitação.......................... 158
4.3 O projeto de “desfavelamento” na visão da Subcomissão de Habitação e
Favela.........................................................................................................................
165
4.3.1 Êxodo rural e favela: a construção da dualidade entre o rural e o
urbano........................................................................................................................ 166
4.3.2 Êxodo rural, debate público e a produção de diagnóstico social-urbano............... 170
4.3.3 Migração, direitos sociais e política de exceção....................................................... 172
4.4 A crise habitacional e municipalização da habitação popular............................. 176
4.4.1 A casa rústica “racionalizada” e o mutirão............................................................. 179
4.4.2 A política de mutirão................................................................................................. 182
4.4.3 Reformas administrativas de cunho municipalista e modelos administrativos
para construção de habitações populares.................................................................
185
PARTE II
OS MOVIMENTOS DE “TRABALHADORES FAVELADOS”
5 AS ASSOCIAÇÕES DE “TRABALHADORES
FAVELADOS”........................................................................................
190
5.1 A interpretação dos movimentos de trabalhadores favelados nas
Ciências Sociais e na História................................................................
195
5.1.1 Movimentos sociais urbanos................................................................... 199
5.2 Uma mudança nas performances dos associativismos de bairros e
favelas: o momento das articulações dos movimentos sociais
através de coligações e federações.........................................................
204
5.2.1 O associativismo de trabalhadores favelados......................................... 211
5.2.2 “Centros de Trabalhadores Favelados” e “Uniões de Defesa
Coletiva”..................................................................................................
213
5.2.3 Porta-vozes............................................................................................... 216
5.3 A imprensa e os trabalhadores favelados............................................. 218
5.3.1 “Favela em Revistas” e “Notas sociais”................................................ 222
5.3.2 As passeatas e a imagem dos trabalhadores “favelados”...................... 224
5.4 Congressos de trabalhadores favelados................................................ 228
5.4.1 A linguagem dos direitos nos congressos dos trabalhadores
Favelados.................................................................................................
230
5.4.2 Cultura de direitos e congressos de trabalhadores favelados................ 233
6 MOBILIZAÇÕES ELEITORAIS DOS TRABALHADORES
FAVELADOS..........................................................................................
238
6.1 Direitos políticos e a política nas favelas.............................................. 240
6.2 A UTF, a FTFBH e as mobilizações eleitorais..................................... 245
6.2.1 Partido Comunista e política urbana no período da legalidade............ 246
6.2.2 Os trabalhadores favelados, a bancada comunista e a constituição da
aliança nacionalista no Rio de Janeiro..................................................
249
6.2.2.1 A agenda da UTF e a aliança reformista.............................................. 253
6.2.3 Os trabalhadores favelados, os católicos e a aliança reformista em
Belo Horizonte.........................................................................................
260
6.2.3.1 O Movimento de Mobilização Popular e atuação em vilas e favelas
em 1954....................................................................................................
263
6.2.3.2 A FTFBH e a aliança reformista........................................................... 266
7 REFORMAS SOCIAIS E POLÍTICAS PARA AS FAVELAS.................... 271
7.1 A “Lei das Favelas” e a luta da UTF no Rio de Janeiro
(1954-1956)........................................................................................................
273
7.1.2 A proteção aos “trabalhadores favelados”........................................................ 274
7.1.3 A “Comissão Parlamentar de Inquérito das Favelas” e a “Lei das
Favelas”..............................................................................................................
279
7.2 Os embates pela “reforma urbana” na FTFBH em Belo Horizonte (1961-
1964)...................................................................................................................
284
7.2.1 O Conselho Estadual de Planejamento e Habitação Popular (CEPHAP) e a
“Fundação Mineira de Bem-Estar Social (FUMBES)” (1961)......................
285
7.2.2 As iniciativas de reforma urbana em Belo Horizonte...................................... 291
7.3 Nacionalismo e reforma urbana nos anos 1950 e 1960.................................. 299
7.3.1 Reformas sociais e discurso moral sobre a injustiça........................................ 301
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 303
14
INTRODUÇÃO
Segundo a tradição, os pioneiros desse gênero de coletividade acomodaram-
se no morro da Providência e a aglomeração formada ficou sendo conhecida por
Favela, adotando toponímico que na época tanto impressionara as camadas
populares, por isso que evocava local nos sertões baianos onde as forças legais dos
primeiros anos da República tinham travado dramático combate contra os fanáticos
de Antônio Conselheiro. A denominação generalizou-se para todas as aglomerações
análogas criadas na época que posteriormente vieram a se constituir.
Foram assim as favelas incorporadas à tradição da cidade. Passaram a
inspirar temas para os teatros e cantos populares, e ocupar lugar de destaque nas
crônicas policiais1.
Publicado em 1949, o primeiro censo das favelas cariocas caracterizou-as como
“morros”, “sertão” na cidade e lugar de classes perigosas, mazelas e cultura popular. Esses
traços definiriam o contorno de uma “tradição da cidade”, como se os limites da vida social e
do Estado fossem dados por essas classificações que opunham a favela ao urbano. A
narrativa, assim formalizada, foi incorporada ao discurso público de diversos atores em outras
localidades do Brasil. Ao escrever sobre as favelas de Belo Horizonte em 1962, o repórter e
militante comunista Mauro Santayana recuperou o mesmo discurso de “origem”: contou a
história do Morro da Providência, do locus da pobreza e do samba para falar de outra
formação social e urbana, de outra cidade que não era o Rio de Janeiro2. Relendo a
reportagem, as dúvidas e incertezas quanto à precisão dessa categoria se expandem. Como
formações sociais e urbanas tão distintas compartilharam uma mesma narrativa de origem? A
categoria nomeia uma morfologia urbana ou um “estigma”? A partir de que situação histórica,
a representação da favela instituiu-se nas práticas e rotinas cotidianas das cidades brasileiras?
O que era a “favela” carioca e a “favela” de Belo Horizonte? As ações coletivas organizadas
em cada lugar forjaram demandas e convenções políticas semelhantes ou diferentes?
As respostas para essas perguntas não são simples e requerem uma investigação a
partir de um corpus documental ampliado – que dê conta da experiência social e política de
cidades distintas – para não se reproduzir as estereotipias do social e os discursos
regionalizados. O trabalho apresentado ao Programa de Pós-graduação em História, Política
e Bens Culturais estabelece uma comparação entre a cidade do Rio de Janeiro e de Belo
Horizonte, busca, dessa forma, compreender a formação e apropriação da categoria favela na
prática estatal e política das duas cidades. Na capital mineira, o termo nativo para designar as
áreas de pobreza no início do século XX eram “vila” e “cafua”, a proeminência da categoria
1DISTRITO FEDERAL. Censo das Favelas – aspectos gerais. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1949. p. 5.
2SANTAYANA, Mauro. Primeira Favela Nasceu com Canudos. Binômio, Belo Horizonte, 23/07/1962, p. 1.
15
“favela” em substituição à noção de cortiço no Rio de Janeiro, entretanto, levou a alterações.
Por analogia com a capital brasileira, os espaços de pobreza urbana belo-horizontinos
passaram a ser retratados como “ambientes de morro” e “favelas”. Essa mudança trouxe
significados bastante amplos, pois sinalizava também para a circulação de práticas estatais de
gestão do território urbano.
Como muitas vezes pude observar, houve certo “ar de surpresa”, ao falar de meu
projeto de pesquisa para outros pesquisadores, e curiosidade acerca das “favelas” em Belo
Horizonte. Dessa maneira, entendemos que a construção da escala de comparação contribui
para desnaturalizar uma imagem que tem sido, muitas vezes, reproduzida como “tradição da
cidade” do Rio de Janeiro – como a que foi exposta na epígrafe desta introdução. E aqui
reforçamos um detalhe importante: a maior parte da bibliografia sobre o tema debruça-se
sobre o Rio de Janeiro, existe pouca ou nenhuma referência a outras cidades, num discurso
autocentrado na experiência carioca, tomada como exemplo nacional. Por outro lado, a
literatura da História e das Ciências Sociais sobre o tema em Belo Horizonte é escassa e
continua presa ao texto clássico de Roger Teulières, “Favelas em Belo Horizonte” (1957), que
forjou um discurso de origem para a favela na fundação da cidade em 1897.
A favela é uma invenção social. Como notou Valladares (2005), reconhecer a
invenção da favela não significa negar a concretude da segregação socioespacial e dos
conflitos inscritos na rotina das cidades, mas compreender a construção de uma representação
cultural3. Assim, a história da evolução das representações desse espaço social “não deve ser
confundida com a sua história propriamente dita, baseada em datas, eventos e conjunturas,
além de marcada pelas ações/intervenções implementadas pelo poder público em distintos
momentos político-administrativos” (VALLADARES, 2005: 23).
Se, ao investigar a invenção da favela, Valladares preocupou-se em descobrir os
paradigmas de análise da pobreza urbana constituídos nas Ciências Sociais e a forma como as
“descobertas” rompiam ou se aproximavam do “mito da favela”, neste trabalho procuramos
compreender o processo de identificação das favelas. A noção de identificação foi
3Usamos a noção de “mundo como representação” articulada por Chartier (1990), com o intuito de que se pense
a sociedade fora da categorização de unidades pré-significadas: “mais do que o conceito de mentalidade, ela [a
noção de representação] permite articular três modalidades da relação com o mundo social: em primeiro lugar, o
trabalho de classificação e de delimitação que produz configurações intelectuais múltiplas, através das quais a
realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer
reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um
estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns “representantes”
(instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, classe
ou comunidade” (CHARTIER, 1990: 23).
16
estabelecida por Gérard Noiriel no livro L’identification (2007) para se referir à forma como
as práticas estatais reconfiguram as identidades no mundo contemporâneo. Na visão do autor,
o Estado moderno produziu classificações sociais que não só refletiam o mundo, mas também
o conformavam4. A partir da produção de tecnologias de identificação, as práticas estatais
exerceram um poder simbólico e redefiniram parâmetros de avaliação e percepção da vida
cotidiana e da cidadania. Na perspectiva de Noiriel,
o problema não é mais, então, de se interrogar infinitamente sobre a definição de
identidade nas diferentes “culturas”, mas de estudar as práticas concretas e as
técnicas de identificação “à distância”, encarando-as como relações de poder,
colocando em contato indivíduos que possuem os meios de definir a identidade dos
outros e aqueles que são objetos de seus empreendimentos (p. 5).
Assim, analisamos como as classificações sociais produzidas em legislações urbanas,
políticas públicas, censos e comissões de estudo produziram um efeito prático na vida social
das cidades, uma hierarquia territorial e um sentido na administração desses espaços que são
reapropriados por atores sociais, redefinindo os limites das práticas estatais e construindo suas
identidades. Na primeira parte da tese, analisamos o processo de identificação das favelas,
dando ênfase às conexões entre as práticas constituídas no Rio de Janeiro e em Belo
Horizonte, no momento de nacionalização da categoria favela nos anos 1950, através das
políticas de habitação e assistência social, dos censos e da Comissão Nacional de Bem-estar
Social. Na segunda parte, tratamos do movimento social organizado pela União dos
Trabalhadores Favelados (UTF) e da Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo
Horizonte (FTFBH), discutindo os repertórios da ação coletiva, a participação no sistema
político e os projetos para alteração da identificação das favelas.
É fácil perceber como a noção de “trabalhador favelado” e a dicotomia
“operário/marginal” foram operadas, tanto na retórica da marginalidade social, justificando a
intervenção do poder público, como nas práticas de protesto acionadas pelas associações civis
da UTF e da FTFBH. A análise desses fenômenos está permeada pela observação de que as
práticas estatais e políticas não se definem por interesses racionais, universais e materiais
utilitaristas, mas por códigos culturais que constituem legitimidade a um conjunto de práticas
e rejeitam outras, definindo hierarquias, desigualdades e significados acerca do sistema social.
Destarte, este estudo inspira-se na História cultural do político e Antropologia política, que
evitam reproduzir a imagem de uma modernidade incompleta para caracterizar e explicar a
4Para outra apropriação da noção de identificação de Noiriel na análise do discurso sobre as favelas, cf.
BIRMAN, 2008; LEITE, 2012.
17
vida social brasileira. Para tanto, buscam realizar um inventário das práticas estatais e
representações políticas para complexificar e desconstruir os pressupostos teleológicos de
universalidade e homogeneidade na formação do Estado moderno5. A identificação das
favelas e suas apropriações é uma das modalidades das relações de poder no mundo social e
político brasileiro.
A tese concentra-se no período que sucede a Segunda Guerra Mundial, no momento de
nacionalização da identificação das favelas e do surgimento de federações de associações de
moradores. A análise comparada aproxima e diferencia as temporalidades sociais instituídas
nas duas cidades e está dividia em sete capítulos, cada qual com uma discussão pertinente ao
tema investigado. No primeiro capítulo, analisaremos a gênese do vocábulo “favela” e o
surgimento das legislações urbanísticas que definiam um status para esses territórios nos dois
centros urbanos. Aqui faremos a revisão da bibliografia, o cruzamento de fontes de jornais
citadas na bibliografia e a análise da forma como a categoria favela foi articulada na
legislação e nos relatórios oficiais pertinentes a cada cidade. O texto destaca o processo de
transformação do nome próprio “Favela” em substantivo comum, a maneira como as imagens
de pobreza da capital da república serviram de referência e analogia na comparação com as
“cafuas” e “vilas” de Belo Horizonte, e a formação de uma legislação urbanística que
reproduzia as desigualdades de poder implícitas na constituição de uma denominação para os
territórios urbanos estigmatizados.
No segundo capítulo, retornaremos às políticas públicas organizadas pelo poder
municipal. No processo de expansão dos direitos sociais e na ênfase em políticas de Bem-
estar Social após a Segunda Guerra Mundial, constituíram-se práticas estatais e projetos de
“solução” da questão das favelas, articulando políticas habitacionais e assistenciais para
“inserir” e “humanizar” os grupos “marginais” na sociedade urbano-industrial. A análise
desenvolver-se-á a partir de legislações municipais, discursos públicos oficiais, e algumas
situações e imagens produzidas pela imprensa. O capítulo mostra como as municipalidades se
articularam com a assistência social e igreja católica em torno da questão das favelas,
apresentando diferenças temporais na implantação das políticas públicas e construção da
retórica da marginalidade social nos projetos de “desfavelamento” das cidades.
O terceiro capítulo está centrado na análise dos censos de favelas elaborados no Rio de
Janeiro e em Belo Horizonte. A estatística não foi discutida como um retrato da realidade
5Para uma discussão sobre a relação entre cultura e política, cf. ALMOND & VERBA, 1963; ALMOND, 1980;
CEFAÏ, 2001; GEERTZ, 1989; BERSTEIN, 1998; BERSTEIN, 1999; KUSCHNIR & CARNEIRO, 1999;
DUTRA, 2002; GOMES, 2005 (b); MOTTA, 2009.
18
(uma “transparência” do real), todavia como produtora de uma mediação para a compreensão
da sociedade e o exercício de uma forma de poder estatal. Organizados em torno da
comunidade de produção estatística forjada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, os censos de favelas são exemplares para mostrar a nacionalização de uma
categoria que teve como referência a cidade carioca e a maneira como se fundamentava a
dicotomia “trabalhador/marginal” nas práticas estatais. Simultaneamente, os censos
forneceram uma base para a releitura da história das cidades e de seus habitats, reafirmando
os estereótipos e a narrativas sobre as favelas.
O quarto capítulo organiza-se a partir da documentação da Comissão Nacional de
Bem-Estar Social (CNBS) no acervo privado de Alzira Vargas e Getúlio Vargas, guardados
pelo CPDOC-FGV. A documentação produzida e acumulada pela CNBS do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio distribui-se entre nesses dois acervos privados, de onde
fizemos uma seleção, enfocando a Subcomissão de Habitação e Favela. Nesse momento, foi
articulada uma reflexão acerca dos problemas urbanos, numa tentativa de nacionalizar uma
política habitacional e de assistência social de combate à pobreza urbana. Tanto a criação do
Serviço de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (1956) no Rio de Janeiro
quanto o nascimento do Departamento de Habitação e Bairros Populares (1955) em Belo
Horizonte são adaptações contextualizadas pelo debate nacional formulado no Ministério do
Trabalho, sob a influência da Fundação da Casa Popular. Nossa análise centra-se na discussão
sobre a maneira como era interpretada a migração campo-cidade, a noção de mutirão e a
política de habitação nos projetos de ação sugeridos para as favelas da CNBS.
Esses quatro capítulos integram a primeira parte da tese, que tem como cerne a
discussão da identificação das favelas. Na segunda parte, analisamos a ação da UTF e da
FTFBH em três capítulos, mostrando como a identificação foi reapropriada nos movimentos
de trabalhadores favelados. A investigação sobre esses atores é difícil, porque não existem
arquivos organizados sobre essas entidades que atuaram durante um curto período da história,
elas tiveram suas ações reprimidas pela polícia política e se identificaram com grupos sociais
excluídos da sociedade brasileira. Para pesquisar a trajetória desses atores, recorremos a
vários tipos de fontes acumuladas em acervos da polícia política, jornais diversificados,
documentos oficiais e memórias. Conferimos maior ênfase à análise das fontes primárias
produzidas nas conjunturas políticas de atuação dos movimentos sociais, procurando situar o
posicionamento coletivo dos trabalhadores favelados.
No capítulo cinco, revisamos o debate sobre movimento social no Brasil e as releituras
sobre a história da UTF e FTFBH, estabelecendo um quadro comparativo que evoca a
19
circulação de práticas de protesto. A partir da pesquisa em jornais, principalmente, e no
acervo da polícia política do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, analisamos o repertório da
ação do movimento de trabalhadores favelados. A formação de associações supralocais, a
escrita de jornais, a realização de congressos, a difusão de modelos associativos e o papel dos
“advogados de favelas” que defendiam o direito de moradia são analisados em perspectiva
comparada. Ainda que fossem desconectados e inseridos em dinâmicas políticas urbanas
específicas, pode-se observar uma circularidade de performances e de significados para a ação
política.
No sexto capítulo, debruçamo-nos sobre a participação do movimento social no
processo eleitoral de cada cidade. Durante a expansão do direito político e a formação de
partidos nacionais, as associações civis urbanas foram um importante vetor para a formação
de corpos eleitorais. A partir de manifestações públicas em jornais e dos manifestos e
panfletos políticos lançados pela FTFBH e UTF, apresentamos as diferentes trajetórias de
mobilização eleitoral dos movimentos em pauta. A importância das lideranças católicas na
formação da FTFBH em contraposição à maior evidência dos comunistas na UTF é pontuada
nesse capítulo. Da mesma forma, mostra-se como as candidaturas dos movimentos de
trabalhadores favelados apresentavam projetos reformistas e nacionalistas, numa aliança com
as esquerdas comunista, trabalhista e esquerda católica (esta última no caso de Belo
Horizonte).
No último capítulo, enfocamos os projetos de lei que foram apoiados nos movimentos
de trabalhadores favelados arrolados. A partir da análise de periódicos e anais dos legislativos
pertinentes a cada cidade, demonstramos como o discurso e a aliança reformista de esquerda
organizada através dos movimentos sociais tentaram alterar o status das favelas. As
campanhas para aprovar esses projetos de lei, que em alguma medida eram vinculados aos
“advogados” da UTF e da FTFBH, explicitavam as disputas pela posse dos lotes ocupados
pelos moradores das favelas, defendiam a legalização do direito de moradia, e reivindicavam
uma reforma na administração municipal para implantar equipamentos públicos de
infraestrutura urbana nas favelas. Os projetos contestavam o status ilegal e o discurso da
marginalidade social presentes na identificação das favelas. A partir da ideologia política das
esquerdas e do discurso das reformas de base, esses movimentos traçaram como objetivo
reformas urbanas que ampliassem os direitos dos trabalhadores favelados.
Para formarmos o corpus documental analisado na tese, recorremos a jornais,
relatórios oficiais, legislação, censos, memórias, acervos privados e fundos documentais em
arquivos públicos acumulados no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. As principais
20
instituições pesquisadas foram a Biblioteca Nacional, a biblioteca da Assembleia Legislativa
do Estado do Rio de Janeiro, o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, o Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, a Hemeroteca Histórica da
Biblioteca Luiz de Bessa, o Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, o Arquivo Público
de Minas Gerais, acervos formados por José Maria Rabelo e pelo projeto Condutores de
Memória, e algumas entrevistas que foram consultadas e realizadas6. Na formação do corpus
documental e em sua análise, realizou-se aquilo que Certeau (2006) chamou de operação
histórica: “não se trata apenas de fazer falar estes ‘imensos setores adormecidos da
documentação’ e dar voz a um silêncio, ou efetividade possível. Significa transformar alguma
coisa, que tinha sua posição e seu papel, em alguma outra coisa que funciona diferentemente”
(p. 83). Deslocamos os documentos centrados num lugar, numa cidade, numa
institucionalidade, para apresentar as conexões inscritas no processo de identificação das
favelas e nos protestos dos trabalhadores favelados.
Nessa operação que Certeau chamou de “redistribuição do espaço” para o
“estabelecimento das fontes”, o comparatismo construtivo nos acompanhou em cada passo,
problema e capítulo. Em 1928, Bloch escreveu o texto Por uma história comparada da
Europa (1928), evocando o método comparativo na história. Para além do gesto de comparar
o que é inerente em qualquer análise, Bloch evocou a necessidade de romper com os quadros
espaciais nacionais definidores das práticas políticas e sociais, mostrando como realidades
próximas e de mútua influência podiam ser analisadas, evitando os bairrismos e
anacronismos. Em 2000, no livro Comparar o Incomparável, o antropólogo Detienne retomou
Bloch de forma crítica, a fim de que se ampliasse sua suspeita de quadros espaciais pré-
definidos na análise da História e da Antropologia. Para o autor, o comparatismo deveria se
fixar na construção de escalas de comparação para aproximar realidades distintas, discutir
problemas e analisar categorias singulares-plurais (DETIENNE, 2000: 45-52). A partir da
reflexão sobre a invenção social da favela – esse singular-plural – construímos escalas de
comparação ao longo da tese, desnaturalizando e complexificando quadros espaciais pré-
definidos na bibliografia.
Este trabalho é fruto de seu tempo, da ascensão do tema das favelas nos programas de
pós-graduação em História. Como Knauss e Brum (2012) observaram, foi “apenas na segunda
metade da primeira década do século XXI que começou a tomar corpo uma produção dos
programas de pós-graduação em história em que a favela é tomada como objeto de estudos
6Ver lista de acervos consultados nas referências bibliográficas.
21
históricos” (p. 121). A avaliação dos autores foi feita diante do levantamento elaborado por
Valladares e Medeiros (2003): de 665 títulos relacionados ao tema da favela carioca no século
XX, apenas 3% tinham como origem a História; havia uma concentração de estudos nas
Ciências Sociais, com predomínio da Sociologia (16%) e Antropologia (13%) urbana. Esse
tratamento quantitativo marcava as vinculações institucionais dos produtos intelectuais
relacionados às favelas, mas também apresentava classificações exageradamente fixas num
campo que é, por excelência, interdisciplinar e de fronteiras porosas.
A presente tese inscreve-se nesse campo, reconhecendo que o tempo social sempre foi
tratado, direta ou indiretamente, nas Ciências Sociais e em outros registros. O estudo “dos
homens no tempo” nunca foi uma exclusividade da “ciência histórica”, mas um lugar de
crítica que o profissional da História elegeu como prioritária, numa relação de aproximação e
distanciamento em relação a outras erudições. Esta tese inscreve-se nesse campo
interdisciplinar, construindo escalas de comparação entre o Rio de Janeiro e Belo Horizonte,
problematizando espacialidades e temporalidades pré-concebidas.
22
Parte I
A identificação das favelas
23
1 A IDENTIFICAÇÃO DA “FAVELA”: A FORMAÇÃO DE UMA CATEGORIA NO
LÉXICO URBANO
A representação da favela deve muito de seu sentido e sua significação ao trabalho de
administradores, políticos, arquitetos, engenheiros e outros que conhecem as cidades através
de práticas de identificação. As elites que governam uma cidade baseiam ou justificam suas
decisões em tecnologias do saber, que oferecem uma redução conceitual do território e
orientam práticas estatais. Dessa forma, conhecer a construção de uma categoria no espaço
público e a forma como ela é incorporada em legislações e planos urbanísticos, debates
estimulados pelo Estado, estatísticas e políticas públicas torna-se o eixo para a compreensão
das tecnologias de saber e poder constituídas por governantes no exercício da dominação.
Como observou Certeau (1994a), os governantes estabelecem uma maneira de ver o urbano
pelo alto, longe dos personagens que constroem o cotidiano das ruas e dos lugares. Esse olhar
totalizante “tritura em si mesma toda identidade de autores ou espectadores” de uma cidade,
produzindo um referencial e lugar distinto (CERTEAU, 1994a: 170).
Apesar de triturar a diversidade de significações e produções identitárias, esse olhar
constitui também uma prática. Ele oferece aos cidadãos novas maneiras de se perceber,
delimitando constrangimentos e oportunidades aos atores. Segundo Noiriel, as identidades são
produtos das relações interpessoais face a face, mas também são produzidas por “tecnologias
de identificação” que são instituídas por saberes especializados e “poderes exercidos à
distância” (NOIRIEL, 2007: 3-5). Para Noiriel, o Estado moderno constituiu-se um dos
maiores produtores de identificações a partir do século XVIII. Garantiu aos cidadãos certo
número de direitos em troca do respeito a deveres, inventando “regras” e “tecnologias” que
interferiam nas rotinas e na vida diária dos indivíduos, e em seus espaços de convivência
(NOIRIEL, 1993: 2).
É nesse sentido que compreendemos a “favela” como uma identificação que se
disseminou na reflexão sobre o urbano e em diferentes políticas aplicadas sobre cidades
brasileiras. Tanto no Rio de Janeiro quanto em Belo Horizonte, os códigos urbanísticos
sintetizaram uma identificação das favelas que marcaria a burocracia e suas práticas. Em
1937, o Código de Obras do Distrito Federal definiu uma política de gestão do território para
a cidade e um lugar para as favelas cariocas; em Belo Horizonte, a lei 572 de 1956
estabeleceu a definição de favela no campo da administração municipal. De um lado, essas
normas refletiam a percepção da expansão urbano-industrial a partir de meados do século XX,
24
assim como do crescimento da habitação pobre no interstício do tecido de bairros residenciais
e zonas industriais. Por outro lado, essas normas incluíram os moradores de favelas como
clientela de políticas habitacionais e assistenciais ligadas ou coordenadas pelo poder público.
As legislações acima identificaram os territórios das favelas como transitórios,
“marginalizados” pela sociedade e pelo regime de propriedade do lote. A semelhança e a
distância temporal da publicação desses regulamentos de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro
indicam caminhos distintos para o aparecimento da representação das favelas nas duas
cidades. A primeira parte da tese, subdividida em quatro capítulos, analisa essas distâncias,
recuperando parte da história urbana das duas cidades e problematizando a emergência da
categoria “favela” nos meios de comunicação, na legislação urbanística e na política urbana.
1. 1 Um topônimo presente em duas cidades
O topônimo “Favela” existiu tanto no Rio de Janeiro como em Belo Horizonte. Em
1897, soldados que retornaram da Guerra de Canudos pediram autorização do Exército para
construção de suas moradias no morro da Providência, atrás do Ministério da Guerra. O morro
já era ocupado por habitações populares; em 1893, com a destruição do cortiço Cabeça de
Porco, o prefeito Barata Ribeiro (1892-1893) havia autorizado os moradores do cortiço a
aproveitarem os restos da demolição, para construir casas no referido morro; um dos donos do
cortiço alugou os terrenos aos interessados em construir suas habitações naquele espaço. Após
a instalação dos soldados que voltavam de Canudos, o lugar ficaria conhecido como Morro da
Favela (FESSLER VAZ, 1988; ABREU, 1994; MARINS, 1998).
Em Belo Horizonte, o topônimo “Favela” liga-se a outra configuração. Em 1895,
quando se construía a capital do estado que substituiria Ouro Preto, os operários da Comissão
Construtora da Nova Capital (1894-1897) fizeram suas moradias no Alto da Estação, em
virtude da escassez de alojamentos. Essas moradias também foram construídas com
autorização da autoridade pública. Em 1897, o lugar foi designado como “Alto da Favela”.
Os habitantes do Alto da Favela foram removidos pelo poder público em 1902, sob a
justificativa higienista (BARRETO, 1950; GUIMARÃES, 1991).
A trajetória e as transformações da categoria favela nas duas cidades suscitam algumas
observações. Em primeiro lugar, pode-se distinguir a permanência do nome “Favela” na
cidade carioca e a pouca perenidade deste em Belo Horizonte no início do século XX. O curto
período de existência do “Alto da Favela” em Belo Horizonte contrasta com a continuidade
do “Morro da Favela”, que se tornou um dos ícones da habitação popular no Rio de Janeiro.
25
Em segundo lugar, durante o século XX, devemos observar a centralidade carioca no processo
de substantivação de um termo que depois foi replicado para designação das áreas de pobreza
na capital mineira. A distinção entre nome próprio e substantivo comum tem orientado as
pesquisas e a discussão do tema após a publicação do texto de Abreu, “Reconstruindo uma
história esquecida – origem e expansão das favelas no Rio de Janeiro” (1994). Para Abreu, a
palavra “Favela”, nome de um lugar específico, vai ser generalizado para outros espaços nas
décadas de 1910 e 1920. A genealogia dessa categoria evidencia a centralidade do Rio de
Janeiro no processo de construção do vocábulo “favela” - nome comum para designar áreas
pobres.
Essas diferenças são importantes para compreendermos o processo de construção do
vocábulo “favela” no léxico urbano das duas cidades. Todavia a historiografia e a reflexão
sociológica produzidas em Belo Horizonte, a partir da década de 1950, não observaram essas
diferenças na genealogia da categoria. São vários os textos que seguiram os parâmetros
narrativos e conceituais elaborados por Abílio Barreto, em “Resumo histórico de Belo
Horizonte” (1950), por Roger Teulières, em “Favelas de Belo Horizonte” (1957), e pelo
“Levantamento das favelas de Belo Horizonte” (1966). Essas publicações naturalizaram o
termo “favela” como algo presente na fundação da cidade, sendo o nome para todas as formas
espaciais da pobreza e desordem urbana. Esses textos foram fundadores de uma comunidade
discursiva e construíram uma memória baseada numa relação entre o desenvolvimento e
atraso, identificando as favelas como representação da ruína da cidade.
Ainda hoje, essas narrativas encontram eco nas produções acadêmicas que
desconsideram a historicidade da palavra e as implicações sociopolíticas nela embutidas.
Além de anacrônica, essa produção não fez a distinção entre o substantivo comum “favela” e
o nome próprio “Favela”. Nas primeiras décadas do século XX, em Belo Horizonte, o
substantivo favela não surgiu em relação ao “Alto da Favela”; ele apareceu a partir da
analogia com os espaços de pobreza urbana carioca. E, como mostrou Guimarães (1991)7, a
categoria favela foi aplicada ao espaço destinado aos operários, às áreas designadas como
“vilas” e “cafuas”, fundindo-se a esses vocábulos no léxico urbano para falar da pobreza.
1.1.1 “Favela”, “favela” e “vila-favela”: de ícone a símbolo da pobreza
7Berenice Guimarães (1991) ainda segue alguns parâmetros narrativos elaborados por Teulières (1957) e Barreto
(1950), mas complexifica esse paradigma com uma vasta pesquisa de jornais e legislações, mostrando como a
noção de vila e favela foi articulada para designar os espaços de pobreza.
26
A substantivação do termo favela ocorreu nas primeiras décadas do século XX, no Rio
de Janeiro. Após a Reforma Passos, com a demolição dos cortiços do centro, os morros
ganharam evidência na imaginação da pobreza urbana. Segundo Valladares, depois da
“ferrenha campanha contra o cortiço, foi despertado o interesse pela favela, um novo espaço
geográfico e social que despontava pouco a pouco como o mais recente território da pobreza”
(VALLADARES, 2005: 26). A promiscuidade, a insalubridade, o risco das classes perigosas,
a vadiagem e outros predicados morais atribuídos ao cortiço e a seus habitantes foram
transferidos para as favelas.
A imagem do cortiço como representação da pobreza urbana destacou-se no cenário
carioca na segunda metade do século XIX. A progressiva extinção da escravidão e a chegada
de imigrantes acentuaram o número de pessoas livres, numa progressiva mudança das
relações de trabalho - de escravistas para assalariadas. Isso acentuava o problema do custo da
habitação para os trabalhadores: o cortiço, os cômodos de aluguel, as estalagens, as vilas
operárias, a ocupação dos morros e dos mangues foram soluções de moradia encontradas
pelos escravos, libertos e assalariados. Essas soluções variavam de acordo com a renda e o
local onde se era empregado. E, como para muitos, o trabalho tinha de ser buscado
diariamente na região central, onde se concentrava o comércio e a indústria, a habitação
próxima ao trabalho foi uma estratégia para sobreviver no meio urbano e evitar gastos com
transporte (ABREU, 2003: 213).
No processo de formação da classe operária carioca, o discurso sobre o “cortiço” era
elástico, incorporando diferentes formas de habitar. Ele servia para culpabilizar os
trabalhadores pobres pelas condições de habitação reproduzidas no tecido urbano carioca,
desconsiderando o contexto de forte déficit habitacional. A partir de 1870, houve uma
intensificação da migração estrangeira, e do campo para a cidade. Entre 1870 e 1890, a
população cresceu em 120,2% e o número de habitações em 74,3%; entre 1890 e 1906, a
população aumentou em 54% e a quantidade de moradias em 16,5%. Nos períodos posteriores
à Reforma Passos (1902-1906) até a década de 1920, a população continuou a crescer, mas o
aumento do número de moradias não foi suficiente para suprir o déficit habitacional
(RIBEIRO, 1997: 181). Os dados sobre a população carioca (ver tabela I) são muito
significativos, pois, até meados da década de 1950, o Rio de Janeiro era a maior aglomeração
urbana do Brasil8.
8Na década de 1950, o Rio de Janeiro perde essa posição para São Paulo.
27
O problema da habitação popular ganhou publicidade na campanha para demolição
dos cortiços. A superlotação, a insalubridade, os problemas relacionados às epidemias que
atingiam a cidade, a baixa produtividade do trabalhador livre ou escravo, o medo em relação
às revoltas populares, o preconceito direcionado ao negro, tudo isso compôs a pauta dos
debates sobre o destino dos cortiços. As iniciativas, para eliminar as habitações anti-
higiênicas, foram várias. Em 1855, um projeto de reforma na postura municipal propunha
normalizar a construção dos cortiços. Definiam-se princípios higiênicos que deveriam ser
seguidos pelos exploradores do negócio imobiliário; estabeleciam-se regras para construção e
licenciamento dos cortiços. Em 1873, mais do que estabelecer normas para construção, uma
nova postura interditou a construção das estalagens na região central da cidade. Após a
Proclamação da República, em 1893, o primeiro prefeito do Distrito Federal, Barata Ribeiro,
ordenou a demolição do cortiço “Cabeça de Porco”. A ação foi notabilizada como uma
operação de guerra e uma ação do poder público em benefício de uma reformulação da
cidade. O intento de erradicar o cortiço foi seguido em 1900, quando se publicou um decreto9
que proibia reformas, ampliações, reparos e pinturas nos cortiços (ABREU, 2003: 217-220;
CHALHOUB, 1996: 29-36; GONÇALVES, 2013: 50-58).
A remodelação urbana ocorrida na administração de Pereira Passos (1902-1906) foi
decisiva para ao destino da questão “habitação popular”. De um lado, a reformulação do
porto, a abertura da Avenida Central, da Avenida Beira-Mar e de outras vias dinamizaram as
atividades comerciais e industriais do Rio de Janeiro. Por outro lado, a Reforma Passos
destruiu várias habitações coletivas. Os cortiços, que já vinham sendo proibidos na região
central, foram eliminados da cena urbana. Eles eram vistos como antiestéticos e anti-
higiênicos, sendo assim se tornaram um empecilho à remodelação urbana encaminhada pelo
prefeito. A reforma que eliminou os cortiços do centro da cidade acentuou o problema da
habitação e reforçou a criação de moradias populares no subúrbio, em loteamentos próximos à
linha férrea, e nos morros próximos à área central.
O prefeito Pereira Passos impôs restrições quanto à construção de moradias populares
nas áreas que receberiam investimentos do poder público, mas não limitou a ocupação dos
morros. No decreto nº 391 publicado em 1903, regulamentando “construções, reconstruções,
acréscimo e consertos de prédios”, restringiam-se as construções de chalés, estalagens, casas
de madeira na região central e na região ao sul do centro – na orla dos bairros Glória,
Flamengo e Botafogo. Quando construídas nessas regiões, as habitações populares não
9BRASIL. Decreto-lei 762, de 1º de junho 1900. Regula a Construção, Reconstrução e Consertos de prédios.
28
deveriam ser avistadas da rua, por descaracterizarem a estética que se imporia às construções
do perímetro central e na zona sul. Esse regulamento permitia a ocupação dos morros, através
da construção de “casas de madeira” (Capítulo VII, do decreto nº 391). Quando licenciados,
os “casebres” deveriam ter uma distância de 5 metros uns dos outros e possuir fundações
(baldrames de alvenaria). Mas o licenciamento não era um problema: o regulamento liberava
as construções provisórias de madeira em morros que ainda não tinham habitação. Esse foi o
fundamento jurídico que legitimou a expansão da autoconstrução em morros, bem como a
exploração de aluguel nesses espaços. Como notou Fesller Vaz (2002) e Silva (2005), a
ocupação desses espaços esteve articulada à expansão do mercado de aluguel para as classes
populares.
Tabela I – Quadro comparativo da População do Rio de Janeiro com a de Belo
Horizonte
Belo Horizonte Rio de Janeiro
Ano Nº de habitantes Ano Nº de habitantes
1872 - 1872 274.972
1890 - 1890 522.651
1900 13.472 1906 811.443
1920 55.563 1920 1.157.873
1940 214.307 1940 1.764.141
1950 360.313 1950 2.377.451
1960 683.908 1960 3.281.908
Fonte: IBGE, Censo de 1960.
A destruição dos cortiços do centro da cidade e a reforma urbana concorreram
para colocar em evidência a expansão da apropriação do espaço nos morros centrais. Em
1905, em vista do agravamento do problema da habitação popular e da campanha que
29
transcorria na imprensa, colocando em questão a intervenção do poder público, foi formada a
comissão para o estudo do problema da habitação popular no âmbito federal, no Ministério da
Justiça e Negócios Interiores10
. No relatório final da comissão, reconhecia-se a necessidade de
intervenção do poder público na questão habitacional, mas não eram vistas com bons olhos as
iniciativas das associações mutualistas dos operários. Ao contrário das iniciativas mutualistas,
o relatório da comissão privilegiava a ação dos empresários e industriais no investimento de
construção de casas populares. Ademais, incentivava ação do poder público no arrasamento
das habitações nos morros centrais, como meio para concretização da obra higienista iniciada
pelo “Dr. Pereira Passos”. Segundo o presidente da comissão:
É mesmo admirável que tenhamos encontrado, em vários casos, quem não
reconhecesse a urgência do caso. Não são, entretanto, necessárias cogitações muito
profundas para calcular que, tendo sido demolidas algumas centenas de casas, é
forçoso que os respectivos habitantes tenham ido procurar residência em outros
pontos. Eles não desapareceram com os prédios em que moravam. Convém mesmo
fazer notar que as demolições a que em geral se atende são as ruas alargadas. Há
outras. Há centenas de outras casas que, ou não tinham condições higiênicas, ou
ameaçavam a ruína. (…)
Quando, porém, as imaginações preguiçosas não seja possível evocar, em uma
imagem bem nítida, a soma de todas essas demolições parciais, espalhadas pela
vastidão da cidade, basta que qualquer pessoa lance os olhos para o morro do
Castelo. Há nele um formigueiro humano. São milhares de casas e casinhas, em que
se empilham homens, mulheres e crianças.
Ora, esse morro vai ser arrasado, arrasado em um período que não se excederá de
três anos. Para onde irão esses moradores? É forçoso pensar nisso. Não se pode
esconder urgência da questão. É forçoso pensar pelo ponto de vista da higiene,
porque são exatamente esses acúmulos insalubres de moradores pobres que tornam
impossível a sanificação completa da cidade. Eles já são atualmente focos
epidêmicos. Até hoje, porém, estavam concentrados em um ponto. Agora vão
irradiar11
.
O arrasamento dos morros da cidade do Rio de Janeiro como uma necessidade de
saneamento da cidade era uma percepção que se aguçava com a reforma de Pereira Passos. A
ocupação dos morros já vinha ocorrendo desde meados do século XIX; segundo Gonçalves
(2013), em 1853, há registro de construções no Morro do Santo Antônio que eram
consideradas “pouco sólidas”. Durante a maior parte do século XIX, havia ambivalência em
relação a essas moradias: enquanto, em algumas situações, as habitações em morros eram
consideradas precárias, noutras elas eram recomendadas, para evitar a proliferação dos
cortiços e por entender que os ares das montanhas eram mais salubres (GONÇALVES, 2013:
10
A comissão era formada por Ataulpho Napoles Paiva (presidente), Medeiros de Albuquerque (relator),
Everardo Backheuser (secretário), Milcíades Sá Freire, A. Indio Brasil, Dr. J. J. Azevedo Lima e Dr. Felipe
Frederico Meyer. Cf. BRASIL. Diário Oficial da União. 17/05/1906, p. 3. (Suplemento ao nº 112). 11
BRASIL. Habitações Populares – Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e
Negócios Interiores. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro. 17/05/1906, p. 2. (Suplemento ao nº 112).
30
44-46). Nesse viés ambíguo, os morros eram vistos como solução possível de habitação,
sendo uma concessão às classes populares num contexto de agudização da crise habitacional
com o crescimento da cidade. Em 1881, registra-se a ocupação do morro da Mangueira, Serra
Morena e Quinta do Caju por imigrantes europeus; em 1893, na destruição do cortiço Cabeça
de Porco, o prefeito Barata Ribeiro permitiu a utilização dos restos da demolição para se
construir no morro atrás do cortiço; em 1894, após a Revolta da Armada, o Morro do Santo
Antônio foi ocupado por soldados; em 1897, os soldados que voltavam de Canudos
conseguiram a concessão do Exército, para construírem moradias provisórias no Morro da
Providência, que ficou conhecido como “Morro da Favela”; em 1898, outros soldados de
Canudos conseguiram a mesma concessão, para ocupar o Morro de Santo Antônio
(GONÇALVES, 2013; VALLADARES, 2005; ABREU, 1994; FESSLER VAZ, 2002;
SEGALLA, 1982).
A reforma urbana de Pereira Passos, ao remodelar o centro da capital da República,
alterou a percepção sobre a ocupação dos morros centrais. Conforme fica claro no relatório,
seria impossível terminar a obra de “sanificação” da cidade sem o “arrasamento” das
“casinhas” dos morros, tidas como insalubres e contrárias ao ideal civilizatório que se
desejava construir na capital da república. Para compreender a oposição à imagem de
civilização, é interessante observar uma das primeiras imagens sobre os habitantes dos morros
centrais do Rio de Janeiro (ver imagens abaixo). A fotografia servia como elemento retórico
para contrapor os habitantes do morro ao modo de vida apregoado nas formas de habitação e
uso do espaço da região central remodelada. O texto que precedia as fotografias já indicava
essa leitura contrastante: “quem olha a Favela de longe tem, com certeza, uma impressão
lisonjeira, (...) mas quem sobe, desde logo, depara com essas horrendas choças figuradas nas
gravuras”12
.
As imagens foram produzidas pelo engenheiro e secretário da comissão de habitação
popular Everardo Backhauser. Ele foi um dos intelectuais mais ativos na campanha feita em
1905 para a construção de vilas operárias, dando concessões aos empresários do setor
imobiliário. Backhauser optou em dar destaque ao Morro da Favela, destacando as famílias
nas casas que destoavam com o projeto construído para região central remodelada. A
fotografia servia como elemento retórico de prova de seu discurso técnico-científico sobre a
promiscuidade e as más condições de higiene das habitações populares. Além disso, como
12
BACKHAUSER, Everaldo. Habitações Populares. In: BRASIL. Habitações Populares – Relatório apresentado
ao Exmo. Sr. Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Diário Oficial da União. 17/05/1906, p.
107. (Suplemento ao nº 112).
31
observou Mattos (2008), o enfoque na população negra era uma tentativa mostrar o Morro da
Favela como contrário ao ideal de civilização:
Aqui não podemos deixar de dizer que a família negra era vista na grande imprensa
como um palco propício para assassinatos e cenas de violência em geral, sendo a
mãe negra portadora de baixa conduta moral. A África seria o reino do barbarismo e
símbolo de inferioridade, ao passo que a cor branca, por si só, era um critério de
civilização (MATTOS, 2008: 51).
BACKHAUSER, Everaldo. "Onde moram os pobres?". Renascença. Rio de Janeiro, 13/03/1905. p. 90, 91 (apud
MATTOS, 2008: 50).
Diante da imagem do atraso que representava o Morro da Favela, o autor das
fotografias elogiava a destruição dos cortiços da área central, mas via essa obra como
incompleta: “O ilustre Dr. Passos, ativo e inteligente prefeito da cidade, já tem as suas vistas
de arguto administrador voltadas para a Favela e em breve providências serão dadas, de
32
acordo com as leis municipais, para acabar com esses casebres”. Ainda segundo o autor, “é
interessante fazer notar a formação dessa pujante aldeia de casebres e choças no coração
mesmo da capital da República, eloquentemente dizendo, pelo seu mudo contraste a dous
passos da Grande Avenida, o que é esse resto de Brasil pelos seus milhões de quilômetros
quadrados”13
.
Além da referência à campanha para eliminação dos cortiços, a obra de Euclides da
Cunha, Os Sertões (1902), constituiu uma das matrizes da construção simbólica da
representação da favela. Em 1897, o Morro da Providência foi renomeado pelos soldados de
Canudos como “Favela” - espécime de árvore que se encontra em região existente no nordeste
e sudeste brasileiro, e que dava nome a um dos morros que foi sítio da batalha contra
Canudos. Entretanto essa localidade só veio ter destaque após a publicação da obra de
Euclides. Após a publicação, o jornal Correio da Manhã mostrava o Morro da Favela como
um espaço “perigoso”, um território do “crime” e da “perda de controle” (ABREU, 1994: 57-
58). A imagem do sertão urbano tornou-se emblemática, em 1905, no texto clássico de
Everardo Backhauser “Onde moram os pobres?”, publicado na revista Renascença e
reproduzido no relatório sobre habitação popular do Ministério da Justiça e Negócios
Interiores. Ele contava que o Morro da Favela “nada mais [era] que o antigo morro da
Providência”, e “assim chamado depois da luta de Canudos pelos soldados que lá voltaram e
que, por certo, acharam o seu quê de semelhança entre o reduto de fanáticos e reduto da
miséria no Rio de Janeiro”14
.
Os critérios geomórficos, médicos e jurídicos que definiram o sertão na obra de
Euclides da Cunha serviram como metáfora para interpretação do Morro da Favela.
Reproduzindo trechos de Os Sertões, Valladares (2005) observou que todos os critérios
definidores do sertão e de Canudos incorporaram-se na descrição dos
observadores/jornalistas, para falar dos morros. Assim, a favela teria origem em um
“crescimento urbano rápido, desordenado e precário”; teria uma “topografia” que fazia dali
um verdadeiro “bastião, de acesso muito difícil”; haveria “ausência de propriedade privada”,
bem como “ausência de Estado e instituições públicas”; seria “dominada por um líder
carismático”; constituiria um “perigo à ordem social” republicana, mas também o lugar de
uma “liberdade” que se expressaria na inventividade de um povo (VALLADARES, 2005: 34-
35). A vida nos morros passou, então, a ser representada como “um outro mundo, muito mais
próximo da roça, do sertão, ‘longe da cidade’, onde só se poderia chegar através da ‘ponte’
13
Idem. 14
Ibidem.
33
construída pelo repórter ou cronista, levando o leitor até o alto do morro que ele, membro da
classe média ou da elite, não ousava subir” (Idem, 2005: 36).
O morro ganhava evidência como representação do “sertão urbano”, era espaço de
construção da diferença entre o povo e as elites políticas. Segundo Lima (1999), no início da
Primeira República (1889-1930), os significados da palavra sertão foram ampliados,
tornando-se uma metáfora para a idealização da distância entre as elites e o “povo real”. Os
intelectuais reformadores viam-se como “messias salvadores de um povo doente, analfabeto,
incapaz de ação própria, bestializados, senão definitivamente incapacitados para o progresso”
(LIMA, 1999: 89). Dessa forma, é importante notar que a menção ao “Arraial de Canudos”
servia também para designar não só o Morro da Favela, mas também as áreas pobres na Rua
General Severiano. Em 1902, os “barracões” ali construídos “estavam sendo chamados ‘na
gíria pitoresca’ de povo de ‘Arraial de Canudos’” (Arraial de Canudos, Correio da Manhã,
10/10/1902, apud MATTOS, 2008: 49).
Isso nos leva à seguinte pergunta: por que o Morro da Favela tornou-se um ícone para
representar a pobreza no início do século XX? Segundo Abreu (1994) e Mattos (2008), um
elemento fundamental para o destaque do Morro da Favela foi sua localização. Próximo da
região portuária, teve seus moradores diretamente envolvidos com a Revolta da Vacina
(1904). Após a revolta contra a vacinação obrigatória exigida por Osvaldo Cruz, a crônica
policial passou a associar o Morro da Favela aos vários casos de assassinatos, roubos e outros
crimes ocorridos na região portuária. Mesmo quando não havia uma ligação explícita com tal
localidade, fazia-se referência ao lugar. Formava-se um protocolo de leitura, ligando o “Morro
da Favela” ao crime e às classes perigosas. Isso ficou gravado no título de reportagens, como
na intitulada “Uma megera – Criança Espancada – na Favela”, publicada no Correio da
Manhã em 1905 (MATTOS, 2008: 106-107). A expectativa de violência e a contravenção às
regras vincularam-se a uma localidade, à “Favela”.
Os jornais podiam assumir posições ideológicas distintas em relação ao regime e à
Revolta da Vacina, mas partilhavam da estigmatização do Morro da Favela. Fosse o Correio
da Manhã, jornal oposicionista que foi porta-voz da desilusão com a república e do intento de
transformar a Revolta da Vacina num movimento político-militar contra o presidente
Rodrigues Alves (1902-1906), fosse o jornal governista, como a Gazeta de Notícias, que
defendeu a punição daqueles que realizaram a “violência” contra as ações civilizatórias do
prefeito Pereira Passos e de Osvaldo Cruz, ambos participavam do processo de estigmatização
do Morro da Favela. Segundo Mattos (2008), os jornalistas partilhavam de um habitus
cultural, onde a noção de classes perigosas ligava-se aos espaços de pobreza da cidade. Os
34
jornalistas projetaram, sobre o Morro da Favela, imagens que o associavam ao oposto dos
valores cultivados na sociedade burguesa (Idem, 2008: 103).
O Morro da Favela tornava-se proeminente na associação aos cortiços, ao sertão ou às
“classes perigosas”, destacando-se como um ícone para a compreensão das áreas de pobreza
do Rio de Janeiro. De 1910 a 1920, a imprensa continuou usando o termo “Favela” com “F”
maiúsculo, especificando o Morro da Providência. Contudo teve início um processo de
comparação da ocupação de outros morros com a “Favela”. Assim, noticiava-se que o bairro
do Andaraí, “em outros tempos tranquilo, se transformava pouco a pouco no Morro da
Favela”; do mesmo modo, em 1914, dizia-se que o Morro da Mangueira “sem dúvida alguma
[já era] uma Favela” (ABREU, 1994: 59). Essas comparações foram ampliadas com o avanço
das ocupações de outros morros no Rio de Janeiro, no período de 1900 a 193015
. Na década de
1920, há a passagem do ícone “Morro da Favela” ao símbolo “favela”. Consultando os
jornais, Abreu encontrou o termo “favela” com “f” minúsculo, indicando um substantivo
comum aplicado à construção e à aglomeração de habitações populares em morros, bem como
em outros espaços do subúrbio. Fala-se também de um “meio favelano” e do “faveleiro”, para
aduzir o comportamento do morador pobre (Idem, 1994: 59-60).
A cidade do Rio de Janeiro foi central na transformação do topônimo em um ícone, e
depois em um símbolo. Esse foi um processo em que a questão da habitação popular, antes
discutida através da categoria “cortiço”, vai ser deslocada para a questão da “favela”. Por
sintetizar a ideia de habitação anti-higiênica e do risco de degradação moral das classes
populares, a representação tornou-se central nas campanhas jornalísticas e políticas para
construção de vilas e casas operárias entre 1905 e 1920 (MATTOS, 2008). No esteio dessas
campanhas, legitimaram-se leis e projetos focados na habitação popular16
.
A partir desse processo de substantivação de uma palavra, devemos suspender um
julgamento precipitado sobre o topônimo Favela em Belo Horizonte, na forma como ele
aparece na década de 1890. Na imprensa e nos relatórios de prefeitos, “cortiço” foi o termo
ideológico usado para compreender as áreas de pobreza. A primeira referência sobre o termo
provém da fotografia “Antiga ‘Favella’ de 1897” (ver imagem seguinte).
15
Entre 1890 e 1900, morro da Providência e Santo Antônio; entre 1901 e 1910, Mangueira, Babilônia e
Salgueiro; entre 1910 e 1920, Leme Pasmado, São Carlos e Andaraí; entre 1921 e 1930, Cabritos, Praia do Pinto
e Rocinha. Cf. ABREU, 1994: 54-56; SILVA, 2005: 181 (nota 160). 16
BRASIL. Decreto nº 1.402, de 18 de julho de 1905. Autoriza o Prefeito a aproveitar parte das sobras de
terrenos dos prédios adquiridos com a abertura da Av. Salvador de Sá, para a construção de casas de operários.
BRASIL. Decreto nº 2.407, de 18 de janeiro de 1911. Concede diversos favores às associações que se
propuserem a construir casas para habitações de proletários e dá outras providências. BRASIL. Decreto nº 4.209,
de 11 de dezembro de 1920. Autoriza o Poder Executivo a construir casas para operários e proletários e dá outras
providências. Cf. MATTOS, 2008; FINEP-GAP, 1985.
35
MELLO, Thiz G. Antiga “Favella” de 1897, [1896-1897], Fotografia em Gelatina, 16,6 x 23 cm. MUSEU
HISTÓRICO ABÍLIO BARRETO. Fundo Comissão Construtora da Nova Capital. Arq. CCFot1896010.
Ao contrário da generalização de um substantivo comum para nomear as regiões
pobres da cidade, vemos aqui “Favella” como o nome próprio de um lugar – a ocupação do
Alto da Estação. Essa alusão singulariza a história urbana da cidade e as interpretações dela:
diferente de outros lugares que incorporaram a forma substantivada “favela” no léxico urbano,
tendo como referencial o Rio de Janeiro, na capital mineira, também se encontra referência ao
topônimo na década de 1890.
Entretanto devemos compreender essa imagem dentro de seu contexto social e
político. A fotografia “Antiga ‘Favella’ de 1897” monumentaliza o projeto de transformação
idealizado e executado pela Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC) – comissão
nomeada pelo governo de Minas Gerais que transformaria o arraial de Belo Horizonte (distrito
da cidade de Sabará, que foi emancipado em 1894) na nova capital do estado, substituindo
Ouro Preto. A imagem compõe o acervo do Gabinete Fotográfico da CCNC sob a guarda do
Museu Histórico Abílio Barreto e dialoga com uma série de outras iconografias do período de
fundação da cidade. As imagens produzidas pelo Gabinete Fotográfico da CCNC tinham
como característica a oposição entre o “antigo” e o “novo”, num apagamento dos sinais
ligados ao passado imperial e ao atraso da sociedade arcaica identificada com o “arraial”.
De acordo com Arruda (2008: 50), “como cidade planejada e construída a partir do
apagamento da continuidade espaço-temporal do arraial de Belo Horizonte, antigo Curral del
36
Rei, tudo deveria se criado a partir do zero, inclusive sua cultura visual”. Registrar e
propagandear essas transformações físicas e sociais do espaço da futura capital de Minas
Gerais foi uma das funções atribuídas ao Gabinete Fotográfico da CCNC – instituição que
funcionou entre 1894 e 1898, demarcando um primeiro momento da prática da fotografia em
Belo Horizonte (CAMPOS, 2008; ARRUDA, 2011). Era atribuída à imagem fotográfica a
função de “civilizar” a população, oferecendo uma educação do olhar capaz de desvelar a
urbanização do arraial. Junto com as plantas da cidade e os projetos arquitetônicos
urbanísticos, as fotografias compunham uma representação do panorama de modificações que
estavam sendo introduzidas com a edificação da nova capital. Segundo um relatório da
burocracia estadual, o “Gabinete Photographico executou variados serviços de sua
especialidade, fornecendo grande número de provas positivas, já de diversas vistas do arraial e
das suas principais habitações atuais [à época]” que serviriam de recordação do “arraial” na
sua transformação em “cidade moderna”17
. A fotografia “Antiga Favella de 1897” dialogava
com esse paradigma da imaginação social, em que a palavra “antiga” denotava a
contraposição entre aquilo que deveria ceder espaço e ser destruído na construção da “nova
capital”.
É interessante notar que a fotografia era uma “prova positiva” daquele “presente”, mas
também inseria o espaço num devir, anunciando transformações futuras. Realizada entre 1896
e 1897, a imagem em foco está estruturada em dois planos divididos por um acidente físico:
no primeiro plano, situam-se as duas linhas férreas, a estação e dois trabalhadores; no segundo
plano, um conjunto de habitações, ligadas à parte baixa por uma escada. A fotografia
enquadrava um lugar que seria central da cidade edificada pela CCNC: as linhas férreas que
ligavam a futura capital de Minas Gerais à linha da Central do Brasil e que foram o espaço
prioritário onde transcorria o trabalho de construção da capital, a circulação de mercadorias,
materiais e pessoas. Se consultarmos a Planta Cadastral do Arraial de Belo Horizonte (1894),
elaborada por Aarão Reis, veremos que as principais vias de acesso do arraial de Belo
Horizonte eram as estradas de Contagem e Sabará. A circulação, assim como a concentração
de residências e edificações religiosas ocorriam em torno do Largo da Matriz e do Largo do
Rosário, que margeavam as ditas estradas. Não havia menção às linhas férreas como
centralidade para o arraial de Belo Horizonte. Essa nova referência espacial decorria do
processo de edificação e reforma urbana iniciada pela CCNC.
17
MUSEU HISTÓRICO ABÍLIO BARRETO. Relatório do Gabinete Fotográfico e Observatório Meteorológico
sobre trabalhos realizados. Fundo Comissão Construtora da Nova Capital. Arq. CC Dt 11/004. 1895.
37
As moradias representadas na fotografia surgiram nos primeiros anos da construção de
Belo Horizonte. A chegada de operários, engenheiros, empresários da construção e
comerciantes levou a uma profunda alteração da dinâmica econômica e social que presidia o
arraial. A falta de gêneros alimentícios era algo tematizado no cotidiano, bem como as poucas
habitações e condições de “conforto”, para abrigar as pessoas. Ainda que a população de Belo
Horizonte fosse bastante reduzida (ver tabela I), o cenário do arraial alterou-se profundamente
com a chegada dos técnicos e operários, para edificar a nova capital de Minas Gerais. Com
fins de suprir a carência de moradias, entre 1894 e 1897, a CCNC autorizou a construção de
moradias provisórias, resultando na expansão urbana de duas regiões, o “Leitão” e o “Alto da
Estação” (também identificado como “Alto da Favella” e “Favella), e o adensamento da
ocupação dos lotes já existentes. Entretanto esses espaços construídos pelos operários foram
desde cedo identificados como um lugar da “desordem”, desconectados do planejamento da
nova capital de Minas Gerais. Eles estavam inscritos dentro da semântica do “novo” e do
“antigo”, onde o velho esteve associado ao incivilizado nos parâmetros das elites que
projetaram a cidade.
Não há nenhum documento que explique de maneira clara o significado do topônimo
“Favella” em Belo Horizonte. A fotografia nos fornece outro indício para refletir sobre esse
topônimo, na medida em que aponta para uma diferença entre o ano indicado de sua
produção, 1896, e o ano evocado no título, 1897. Belo Horizonte foi fundada em dezembro de
1897, dois meses após a conquista de Canudos. O topônimo “Favella” surgia no processo de
comemoração da vitória republicana no sertão, que foi rememorada na fundação de Belo
Horizonte. Segundo Antônio de Paula,
a condenação de Canudos como fruto do atavismo bárbaro, do apego ao arcaico que
a República queria extirpar tem como contrapartida a exaltação de Belo Horizonte.
A cidade planejada, higienizada, livre de toda a mácula do passado colonial, dos
vícios da monarquia, uma página em branco em que seria escrita a nova história do
Brasil, história do progresso, da modernização. Simétricas, têm trajetórias inversas:
uma morre, outubro de 1897, ao mesmo tempo [em] que a outra nasce, dezembro de
1897 (ANTÔNIO DE PAULA, 1997: 56).
Na memória da fundação da cidade, a capital do estado foi apresentada como uma
vitória do regime republicano, onde se relembrava o arraial de Antônio Conselheiro como
uma oposição à recém-fundada “Cidade de Minas”. Dessa maneira, a “Favela de Canudos e a
Favela de Belo Horizonte estabelecem então a verdadeira trama, as ligações ocultas para além
da estratégia da ordem” (Idem, 1997: 57).
38
A referência a Canudos aqui não aparece como um elemento que signifique
positivamente o espaço urbano, mas reforça a dinâmica da classificação do incivilizado,
daquilo que é tratado como algo ultrapassado. Assim, é importante observar que após a
fundação da cidade, as casas dos operários da CCNC passaram a ser combatidas pela
municipalidade, e foram vistas como um problema sanitário. Os relatórios de prefeitos nos
primeiros anos são enfáticos nesse ponto. Segundo o prefeito Bernardo Monteiro, o poder
público não permitiria que casa alguma situada na zona urbana fosse “habitada sem que”
tivesse “instalação sanitária e sem que” fosse “previamente examinada pelo médico”; da
mesma forma, o prefeito tinha “mandado demolir os barracões provisoriamente permitidos e
que foram construídos nos pátios de diversos prédios por terem os mesmos se convertido em
verdadeiros cortiços”18
. Em 1902, Bernardo Monteiro voltaria a apresentar o intento de
expulsar os operários da região central da cidade. Segundo o relato do prefeito:
A transferência da população operária do centro para o bairro onde acha atualmente
localizada foi tarefa dificílima, que, entretanto, conseguiu sem reclamações nem
violência. (...) Cerca de 600 cafuas no Leitão e 300 no lugar denominado Favella e
em outros pontos foram removidos com uma população de cerca de 2000 pessoas
para a 8ª Seção suburbana, onde fiz concessões a título provisório, para o
estabelecimento destes operários, que constituem elemento indispensável ao
progresso da Capital. (…) Todos estes operários estão matriculados e não podem
transferir suas casas sem prévia audiência da Prefeitura. Com esta medida sua
permanência se tornou segura. (MONTEIRO, Bernardo Pinto. Relatório ao
Conselho Deliberativo – 12 de setembro de 1899 a 31 de agosto de 1902. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1902. p. 43, apud
GUIMARÃES, 1991: 102).
As “cafuas” e “barracos” eram vistos como elementos que não caberiam na zona
central do projeto de capital de estado. Por isso, em 1902, os moradores do Leitão e da Favela
foram deslocados para VIII Seção suburbana, onde os operários teriam o “título provisório”
do lote19
. Esse processo permite vislumbrar o segundo motivo da qualificação de “antigo”
para a fotografia: as habitações construídas pelos operários eram tidas como anti-higiênicas e
antiestéticas, e contrárias ao projeto da capital do estado. O espaço que surgiu da ação dos
operários que trabalhavam na construção da capital era visto como algo que não comungava
com o higienismo que se desejava imprimir no território urbano.
18
MONTEIRO, Bernardo. Mensagem ao Conselho Deliberativo da Cidade de Minas – apresentado em 19 de
setembro de 1900. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1900. p. 40. 19
Até a década de 1940, esses operários permaneceram e expandiram o espaço que era identificado como “VIII
Seção”, construindo os lugares de residência identificados como “Barroca” e “Barro Preto”. Os nomes remetiam
a uma região estigmatizada como lugar da pobreza e do atraso, uma cidade que era feita de barro.
39
Após a destruição do “Alto da Favela” em 1902, não há indícios que indiquem a
continuidade do topônimo em Belo Horizonte. Todavia, através da analogia com o espaço
carioca, fazia-se uma aproximação agora entre a “área operária”, para a qual foram
transferidos os operários da CCNC (a Seção VIII) e o “Morro da Favela”, que ganhava fama
no Rio de Janeiro. Em 1908, no jornal A Rua, numa matéria intitulada “Os cortiços crescem”,
criticava-se a pobreza das cafuas construídas das áreas operárias de Belo Horizonte. Essas
seriam consideradas “cortiços”, enfatizando o risco de insalubridade para a população dos
centros urbanos. Comparavam-nas também ao “Morro da Favela”: nas palavras irônicas do
jornal, esses territórios seriam “phalanstérios do proletariado, como no Rio, [onde] o é o
morro da Favela” (A RUA, 08/01/1908, p. 2, apud GUIMARÃES, 1991: 114). A ironia
consistia na inversão do significado do termo “phalanstério”: ao invés de se operar uma
segregação espacial, para reformar os hábitos do operariado, a segregação criava o risco de
uma “contaminação” dos hábitos dos moradores das áreas nobres (Idem, 1991: 114). É
importante que se observe que essa referência não foi dominante na imprensa, que continuou
a tratar a seção VIII como área das “cafuas” e do atraso.
A categoria favela e a analogia com os espaços de pobreza carioca ganhariam terreno
no processo de expansão do tecido urbano experimentado por Belo Horizonte. Em 1919, a
Prefeitura de Belo Horizonte ampliou a forma de concessão de lotes para operários. Para além
da área operária na “Seção VIII”, o poder público estabeleceu a possibilidade de se delimitar
terrenos fora da zona urbana, para serem vendidos aos trabalhadores. Essas áreas seriam
chamadas de “vilas operárias”. Nelas permitia-se a construção de “habitações provisórias”
que, no prazo de quatro anos, seriam consideradas definitivas, desde que fossem obedecidas
as normas de construção e fossem aprovadas pela Prefeitura20
. No contexto de crescimento
das décadas de 1920 e 1930, delimitaram-se novas “vilas” em áreas suburbanas. Essa era a
designação tanto para os loteamentos sem infraestrutura feitos no subúrbio e vendidos para os
trabalhadores quanto para as regiões em que o poder público concedia o direito ao operário de
construir provisoriamente sua moradia (Ibidem, 1991: 158).
A categoria “favela” foi aplicada sobre as vilas que permaneceram numa situação
semilegal. Nessa conjuntura, vamos encontrar denúncias nos jornais, narrando que “agora é
que principia a ser formar em Belo Horizonte esse ambiente de ‘morro’, isto é, esse
agrupamento de casebres em promiscuidade, de barracões e botequins em recantos afastados e
onde pululam malandros e as mundanas de baixa extração”21
. Observe que o termo “morro”,
20
BELO HORIZONTE. Lei nº 178, de 6 de outubro de 1919. Autoriza a Prefeitura a criar Vilas Operárias. 21
ESTADO DE MINAS, 09/8/1925. p. 8.
40
assim como em outras notícias, e o termo “favela”22
aparecem entre aspas, indicando o
procedimento analógico com o símbolo de origem carioca. A degradação moral era associada
não só aos aspectos do comportamento, mas também à cor da população e a seus hábitos
culturais “incivilizados”.
No mesmo período em que algumas reportagens indicam o procedimento analógico,
outras vão incorporar o termo de forma direta para falar de algumas vilas:
A Favela de Belo Horizonte
A Vila Santo André não é no Carlos Prates (...) é nos fundos do cemitério do
Bonfim, mas é melhor vista do Carlos Prates. Vimo-la de longe. Uma montoeira de
casa bonitas e de cafuas sórdidas. Ruas bem-alinhadas. Um campo de futebol (...) A
vila Santo André é a vila dos “barulhos” do “cangerê”.23
Logo, as áreas identificadas como vilas passaram a ser vistas como regiões de
degradação moral. Essa operação simbólica vai terminar por consolidar o termo “vila” e
associá-lo ao termo “favela”. Em Belo Horizonte, o nome “vila” aplicava-se retardatariamente
às aglomerações de casas nas zonas suburbana e rural, existiam poucas construções de casas
homogêneas em torno de um pátio ou avenida, forma urbana que foi característica no Rio de
Janeiro e em São Paulo. Guimarães (1991) observou que, com o passar do tempo, alguns
bairros que nasceram como vilas vão apagar essa designação, que passou a estar associada à
categoria favela. “Decorre daí a diferenciação entre vilas e vilas-favelas, deixando as
primeiras de usar, gradativamente, essa denominação” (Idem, 1991: 196). Em 1951, quando o
serviço de Assistência Social elaborou um estudo de “desfavelamento”, a instituição se referiu
majoritariamente às vilas de Belo Horizonte; no cadastro de favelas de 1955, veremos vários
locais com a designação de vila. Da mesma forma, é importante notar que, até 1959, a
utilização do termo favela, para nomear as áreas de pobreza na cidade, gerava muita
controvérsia, não havia consenso quanto à identificação desse tipo de ocupação desde o
princípio da ocupação da cidade 24
.
É importante notar aqui que as categorias “favela” e “morro”, consolidadas na
imaginação urbana carioca, ganhavam expressão em Belo Horizonte. Eram incorporadas à
imaginação urbana da cidade e associadas à expressão “vila”. Dois aspectos devem-se notar
na trajetória dessa identificação na imprensa e na esfera pública. O primeiro diz respeito à
capitalidade do Rio de Janeiro. Como observou Motta (2004), desde 1808, quando se tornou
22
ESTADO DE MINAS, 09/11/1935, p. 10. 23
ESTADO DE MINAS, 29/10/1931, p. 8. 24
DIÁRIO DA TARDE, 12/11/1959, Caderno 2, p. 1.
41
centro de poder da monarquia luso-brasileira, o Rio de Janeiro passou a se autorrepresentar
como cidade-capital. Ocupou, na comunidade nacional, um lugar privilegiado para a
imaginação da nação, orientando comportamentos e projetos de modernização (MOTTA,
2004: 9). Os símbolos de civilidade e barbárie construídos no espaço carioca tiveram
repercussão e projetaram-se em outros lugares do território nacional. É o caso da
representação da favela. Todavia, quando esses símbolos foram incorporados a cotidianos e
regimes de urbanidades distintos, eles ganharam outros significados e associações.
Em segundo lugar, a comparação entre as duas cidades acentua o traço ideológico da
categoria “favela”. Antes de nomear uma forma urbana, a representação da pobreza através
desse conceito designa um espaço moral no meio urbano. “Dito de outra maneira, na gênese
da construção social da favela como representação coletiva, parece que o núcleo de seu
significado estava na dimensão físico-espacial”, qualificando de forma “patológica os
territórios e moradias”, podendo ou não implicar na extensão dessas características aos
moradores (MACHADO DA SILVA, 2002: 227). É possível falar do uso rotineiro do
vocábulo favela como parte da produção de um estigma nas relações sociais e urbanas. Brum
observa que “a favela, desde sua origem, já possui estigma a ela associado. Mais do que isso,
os estigmas são partes essenciais para a construção do conceito de favela, estando a ela
associados de forma inexorável”. Dessa forma, “a favela é o estigma, pois aponta uma área
urbana onde existem os sinais do que não deveria haver numa cidade que se queria moderna e
civilizada” (BRUM, 2011: 50). A produção dessa categoria moral é dinâmica e deve,
portanto, ser historicizada, mas também estar invariavelmente ligada às diferenças de poder
constituídas entre os grupos sociais numa dada configuração social e urbana.
Como categoria moral, a representação das favelas ocultou as diferentes formas de uso
e de habitação, e apagou a heterogeneidade da composição social e dos vínculos dos
indivíduos e dos grupos com as instituições que organizam a vida urbana. A “opacidade”
dessa categoria deve nos levar à compreensão de que “as favelas não constituem unidades
fixas. Tomá-las como tal significa desconhecer não apenas a sua dinâmica espacial, mas
igualmente (...) as suas dimensões, tanto territoriais quanto populacionais” (PANDOLFI &
GRYNSPAN, 2003: 25). Nesse sentido, existe um conjunto múltiplo de identidades e
pertencimentos constituídos pelos moradores em suas relações de proximidade e com
instituições econômicas, sociais e políticas, que atuam tanto dentro quanto fora das
localidades/territorialidades identificadas como favelas.
A genealogia da categoria favela no léxico urbano das duas cidades foi elaborada
numa clara relação com a exclusão das classes populares do sistema sociopolítico, tratando-as
42
como uma alteridade negativa do Estado e da sociedade. A produção das tecnologias de
identificação e governo desse território através de urbanistas, da assistência social e dos
intelectuais/burocratas, vinculados direta ou indiretamente ao Estado, reproduziu em grande
medida os significados morais e políticos presentes na origem do discurso sobre as favelas.
Esses atributos da representação social, segundo Valladares (2005), permaneceriam ao longo
do século XX como uma espécie de mito da sociedade urbana brasileira, que tinha como
principal pressuposto a imaginação de um espaço que seria o locus da pobreza e a ausência
em relação aos bens e comportamentos identificados como característicos de um tipo ideal de
modo de vida urbano.
No surgimento e na consolidação da favela no léxico urbano, a legislação urbana e o
urbanismo socializaram conceitos inerentes à representação coletiva. Como veremos, esses
mecanismos de controle das sociabilidades nas cidades foram vetores centrais no processo de
identificação das favelas no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte.
1. 2 A Legislação urbana e favela
A categoria “favela”, quando historicizada, não se define nem como uma “unidade
fixa” (PANDOLFI & GRYSZPAN, 2003), nem como uma “forma urbana” homogênea e
específica da cidade (SILVA, 2010), contudo as prefeituras do Rio de Janeiro e de Belo
Horizonte construíram um aparato burocrático que homogeneizou o tratamento desses
espaços. Elaboraram leis que classificaram as favelas como marginais às normas urbanísticas
e ao regime de propriedade, independentemente da pluralidade de situações que as
caracterizavam. Elas poderiam ter origem em invasões, exploração de aluguéis de chão,
loteamentos regulares ou irregulares, ter sido uma área de ocupação consentida pelo poder
público e por agentes privados, entre outros. No Código de Obras de 1937, no Rio de Janeiro;
e na lei 572 de 1956, em Belo Horizonte, no entanto, toda essa heterogeneidade das formas de
uso social do espaço foi subsumida a partir do ponto de vista do título cartorial de propriedade
e de uma legislação urbanística, que propunham uma racionalidade e uniformidade ao tecido
urbano.
A legislação urbanística é um dos elementos centrais para a definição da noção de
favela na sociedade, porém não é exclusivo. Existem outras relações sociais travadas no
âmbito econômico, político e social que precedem as normas promulgadas pela legislação.
Uma pluralidade de situações atribui significado ao tecido urbano, não é possível
homogeneizar um sentido único para a representação e articulação socioespacial que se
43
nomeia com uma lei. Contudo, como observou Rolnik, a lei “organiza, classifica e coleciona
os territórios urbanos, conferindo significados e gerando noções de civilidade e cidadania”
(ROLNIK, 2003: 13). Destarte, as leis funcionam como importantes referências culturais,
contribuindo para fixar hierarquias sociais e constituir as noções de ordem e desordem na
sociedade. No caso das favelas, por definir um dos status social e jurídico da estrutura
sociopolítica brasileira, a legislação torna-se estratégica. Na visão de Gonçalves (2013),
o aspecto jurídico mostrou-se ser um elemento fundamental da construção dessa
categoria socioespacial [favela]. Ora, as funções sociais do direito não se delimitam
a punir ou a organizar as estruturas de poder, mas se manifestam também pela
faculdade de nomear as diferentes realidades sociais e institucionalizar uma
classificação específica da estrutura social. Essa função nominativa, ao atribuir um
sentido específico às diferentes realidades sociais, revela-se um poder ideológico
importante, que permite ocultar as contradições da sociedade, ao legitimar
determinado modelo específico de dominação política (GONÇALVES, 2013: 30).
Por essa capacidade de institucionalizar uma classificação, os códigos urbanos
definem formas e estratégias de governo e dominação sociopolítica. Ao nomear uma estrutura
social, a legislação traduz o mundo social, mas também produz uma forma de poder. Joga luz
sobre um traço da realidade e oculta outros; legitima um conjunto de relações sociopolíticas e
naturaliza hierarquias constitutivas da estrutura social. Por isso, a legislação urbanística
tornou-se elemento central nas políticas para as favelas e nas disputas travadas por
movimentos sociais e outros atores que atuam nos centros urbanos25
.
Além de configurar-se como um poder simbólico e expressar uma forma de
dominação e governo, as legislações urbanísticas também se ligam ao intento de
racionalização da organização do espaço. Ao analisar a formação das sociedades modernas,
em que a cidade torna-se locus da renovação econômica, política e cultural, Choay advertiu
sobre a duplicidade das legislações urbanísticas: nelas “podemos ler ao mesmo tempo um
discurso racional, cunhado nas teorias urbanísticas, que a administração não teme em citar, e a
expressão que esse discurso mascara, seja de decisões políticas, seja do livre jogo de
instituições e processos não discursivos” (CHOAY, 2010: 31). Tomando como base a história
europeia, o autor observou que as primeiras legislações que regulavam o uso do espaço datam
dos séculos XIV e XV, mas somente no século XVIII surgiram as compilações de leis e editos
25
Apesar de assumir a existência de disputas entre atores sociais, no que toca à elaboração das legislações e à sua
aplicação pelo Estado, não é nosso objetivo enfocar tal dimensão do social. Para o Rio de Janeiro, o trabalho de
Gonçalves (2013) é o melhor tratamento dado a esse tema, enfocando, numa perspectiva de longa duração, as
várias disputas em torno do tema; para Belo Horizonte, há uma escassez de bibliografia sobre o tema. Neste
capítulo, apenas buscamos traçar a codificação em torno de uma categoria, explicitando o consenso em torno de
algumas estratégias de controle do espaço e das relações sociais, estabelecendo uma escala de comparação na
expectativa de que o conhecimento de um caso possa iluminar o outro.
44
de regulamentação urbana. Essas compilações davam unidade e autonomia a um conjunto de
normas que estavam marcados pela arbitrariedade do tempo e das ações emanadas pelo poder
político e econômico. Os códigos de texto reunidos estavam imbuídos de um discurso
racionalizador sobre as cidades (Idem, 2010: 28-30). Nesse sentido, houve uma aproximação
das legislações modernas à razão utópica que justificava reformas sociais.
A imbricação entre legislação e utopia urbana é relevante, na medida em que
observamos uma simultaneidade na apropriação da representação “favela”, tanto nas teorias
de urbanistas quanto na visão dos legisladores. Na constituição do urbanismo como ciência no
Brasil, a partir da década de 192026
, a categoria favela aparece referida não somente nas obras
de engenharia e embelezamento pontuais, mas na compreensão da cidade como um
“organismo”, uma totalidade a ser reformada (VALLADARES, 2005: 43). No processo de
apropriação das teorias provenientes dos países centrais, a “favela” ganhou destaque no
urbanismo brasileiro e na ação de alguns atores ligados à administração pública, conformando
um processo de identificação e gestão do tecido urbano no país.
1.2.1 Rio de Janeiro
Em 1921, Ivo Pagani, Guilherme Velloso e Alexandre Dias editaram a Coletânea de
Leis Municipais Vigentes. O livro foi patrocinado pela Prefeitura do Distrito Federal,
reeditado e atualizado em 1925 e 1931. Organizou e transcreveu o emaranhado de leis e
posturas municipais que continuavam válidas e serviriam de orientação para os fiscais da
prefeitura.
Além disso, a Coletânea de Leis Municipais apresentava a memória da ação do poder
público na transformação da cidade do Rio de Janeiro. Nessa compilação, fazia-se uma
distinção entre as leis de “caráter geral”, que expressavam o interesse público, e as leis de
caráter “pessoal”. Com isso, diferenciavam-se os regulamentos que expressavam acordos
particulares a uma época daqueles que diziam respeito ao interesse de “todos” e que, por isso,
deveriam ser conhecidos pelo cidadão e observados pelo Estado (PAGANI & VELLOSO &
DIAS, 1921). Num gesto de hierarquização do mundo social e da história carioca, os autores
destacavam as ações e regulamentos editados durante a Reforma de Pereira Passos. O prefeito
Carlos Sampaio (1920-1922), que patrocinou a primeira edição do livro, aparecia como
26
Sobre o urbanismo no Brasil, cf. PECHMAN & RIBEIRO, 1996; LEME, 1999.
45
continuador de Pereira Passos, nas reformas que preparavam a cidade para a comemoração do
quarto centenário da Independência (1922).
Nas três edições do livro, publicadas até 1931, não encontramos nem no índice, nem
em qualquer lei, algo que especifique o que era uma favela. Nas posturas publicadas pela
Prefeitura do Distrito Federal, era o termo “morro” que estava em evidência. Recuperava-se a
legislação de construções editada por Pereira Passos, em 1903, que permitia a construção de
barracos nos morros27
. As “casas de madeira” nas colinas eram aceitas, se fossem elas
construídas com licença da Prefeitura ou de forma provisória. Até 1931, a legislação de
construção de Pereira Passos continuou aparecendo no índice da consolidação das leis, era
uma referência central para a burocracia municipal. O livro também registrava a forma como
o regulamento de edificações de 1925 (Lei nº 2.087, de 19 de janeiro de 1925) reformulava o
regulamento de Passos, de forma que a construção de casas de madeira nos morros articulava-
se a normas de zoneamento. Promulgado pelo prefeito Allaor Prata (1922-1925), o
regulamento realizava um zoneamento da cidade em quatro áreas: a central (primeira zona),
urbana (segunda zona), suburbana (terceira zona) e rural (quarta zona). Proibia-se a
construção de casas de madeira na zona central e na zona sul (equivalente à segunda zona),
mas mantinha-se a permissão na zona norte e no subúrbio, que concentrariam as indústrias e
os bairros identificados com os grupos populares.
Nesse compêndio de posturas, compreendem-se também o processo de estigmatização
dos morros e a transformação desses locais em mote para justificar reformas urbanas de largo
escopo. Sob a rubrica de “embelezamento” urbano, o índice do livro arrolava uma série de
obras que tinham por objeto as favelas centrais do Rio de Janeiro. Registrava-se o decreto nº
2.636, de 1914, que postulava a construção de fontes aos pés do Morro de Santo Antônio,
para evitar que os moradores dali frequentassem o Largo da Carioca (PAGANI & VELLOSO
& DIAS, 1922: 6-7). Na justificativa dessa lei, falava-se que as pessoas habitantes do Morro
do Santo Antônio “não faziam parte de uma cidade civilizada”. Eles tinham modos
“anacrônicos, dignos de Benguela e Moçambique”, fazendo os moradores lembrarem da
“triste herança do tráfico” na “principal avenida e hotel da cidade”. Na visão do legislador, os
“infectos barracos do morro de Santo Antônio, Favella, Babilônia, e outros podiam ser mais
degradados que aqueles da terra de Zulu” (Annaes do Conselho Municipal do Distrito
Federal, 1914 apud GONÇALVES, 2010: 51).
27
Essa legislação foi reformulada pelo decreto 2.087, de 19 de janeiro de 1925, que estabelecia regras para a
altura dos edifícios de acordo com o zoneamento da cidade. Cf. PAGANI & VELLOSO & DIAS, 1922: 124-144.
46
O maior destaque no tópico de “embelezamento” de morros era reservado às obras
conduzidas pelo Prefeito Carlos Sampaio (1920-1922). Em 1922, a cidade recebeu vários
investimentos e obras para a comemoração do Centenário da Independência e a organização
da Exposição Universal28
. Os morros do Rio de Janeiro receberam uma atenção especial do
prefeito. Carlos Sampaio deu início ao “arrasamento” do Morro do Castelo e propôs o mesmo
para o Morro de Santo Antônio, além de tencionar a realização de obras de “aformosamento”
do Morro da Favella29
. A Coletânea de Leis Municipais Vigentes foi patrocinada pelo prefeito
e não colocava em dúvida a centralidade dessas obras para a remodelação da cidade. Todos os
contratos firmados com empresas estrangeiras e nacionais para realização do
“embelezamento” dos morros foram publicados junto com a coletânea (PAGANI &
VELLOSO & DIAS, 1922: 915-928).
Dessas ações, apenas o arrasamento do Morro do Castelo teve início e, dessa maneira,
a obra continuou no horizonte de ação do poder público até a administração do Prefeito
Henrique Dodsworth (1937-1945), quando foi concluída. O desmanche do Morro do Santo
Antônio foi realizado na passagem dos anos 1950 para 1960. O problema das favelas, que
tinha como justificativa o “embelezamento” de áreas nobres, foi o cerne do pensamento e da
ação de engenheiros e urbanistas. O projeto de desmanche dos morros do Castelo e do Santo
Antônio se estenderia por várias administrações, estruturando um esforço contínuo de
reorganização da região central da cidade do Rio de Janeiro. Os desmanches transformavam-
se numa referência para o urbanismo, que sedimentava, no arrasamento dos morros, os
marcos do embelezamento e da remodelação urbana.
Essas obras públicas apontavam para um direcionamento do poder público em relação
à ocupação dos morros. Tomemos o caso do Morro do Santo Antônio, por ser emblemático:
em 1855, já havia propostas para o seu arrasamento; em 1889, o Estado fez uma concessão
para remoção deste e do morro do Castelo, para construção de um aterro na Glória30
; em
28
As Exposições Universais foram eventos internacionais, sediados em cidades do ocidente capitalista. Tiveram
início em meados do século XIX e celebraram o “progresso” da ciência, indústria e a liberdade de comércio. Em
1922, durante a comemoração do centenário da Independência do Brasil, o Rio de Janeiro foi sede de uma
Exposição Universal. Cf. MOTTA, 1992. 29
DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 2.247, de 11 de setembro de 1920. Autoriza o prefeito a providenciar, como
entender, sobre as obras que devem ser feitas para o embelezamento do Morro da Favela e dá outras
providências; DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 1.529, de 9 de março de 1921. Revoga, para todos os efeitos, o
decreto nº 1.415, de 17 de agosto de 1920 e aprova novos planos organizados para o arrasamento do Morro do
Castelo e melhoramentos na área resultante da desapropriação; DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 2.557, de 26
de dezembro de 1921. Autoriza o Prefeito a aplicar aos fins que menciona, o empréstimo externo de doze
milhões de dólares, contraído em virtude das leis municipal e federal que menciona e dá outras providências.
(PAGANI & VELLOSO & DIAS, 1922: 170-172). 30
DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 10.407, de 19 de outubro de 1889. Concede aos Engenheiros João Pedreira
do Coutto Ferraz Junior e Libânio Lima autorização para arrasar o morro de Santo Antônio.
47
1899, há novamente uma proposta de intervenção através do projeto nº 121. Na passagem do
século XIX para o XX, essas obras visavam à ampliação do espaço construído, assim como à
melhor circulação de ar e de tráfego na região central do Rio de Janeiro (GONÇALVES,
2010: 49). Todavia, em 1922, não era só isso que justificava o projeto: no ato de
embelezamento, pressupunham a eliminação da insalubridade, das marcas do atraso e de uma
população tida como “incivilizada” do centro do Rio de Janeiro31
. O Estado participava da
construção e incorporava, em suas políticas urbanas, os critérios morais de estigmatização das
áreas pobres, identificadas como favelas.
As alterações no teor dos decretos, que passaram a vincular a eliminação dos morros
ao embelezamento da cidade, tinham repercussão também no pensamento urbanístico. Na
década de 1920, nas tentativas de organizar um plano diretor, definindo novos objetivos em
relação ao crescimento da cidade, ficou clara essa nova posição em relação aos morros e
favelas. Entre 1926 e 1927, Augusto Mattos Pimenta, membro do Rotary Club, agente
imobiliário e construtor ligado ao Clube de Engenharia, propôs uma campanha “antifavela”,
visando ao embelezamento da cidade e à construção de habitações populares
(VALLADARES, 2005: 41; FREIRE & OLIVEIRA, 2008: 174-175).
Em 1927, sob a influência dessa campanha e de urbanistas da Prefeitura, o prefeito
Prado Júnior (1926-1930) contratou Alfred Agache, para organizar o plano diretor do Rio de
Janeiro. Agache foi um dos fundadores da Sociedade Francesa de Urbanistas (1913), alguns
de seus contemporâneos atribuíram a ele a invenção da palavra “urbanismo”32
. Agache
proferiu conferências sobre o assunto e elaborou um plano de remodelação, publicado em
1930, sob o título Cidade do Rio de Janeiro, Remodelação - Extensão e Embelezamento.
Se na década de 1920 havia vários departamentos na Prefeitura do Distrito Federal que
elaboravam projetos de embelezamento urbano, não existia ainda um plano para o conjunto da
cidade. O Plano Agache veio suprir essa demanda, e tornou-se fruto de um trabalho do
urbanista francês com os engenheiros da Prefeitura (FREIRE & OLIVEIRA, 2008: 17;
31
Essas obras não foram realizadas, ao que tudo indica, por falta de verbas, uma vez que o contrato foi firmado.
O arrasamento do “morro de Santo Antônio” ocorreu entre 1955 e 1959. 32
As genealogias para o surgimento da expressão “urbanismo” são diversas; essa atribuição a Agache da
invenção do termo é só mais uma das versões possíveis sobre a fundação da nova ciência no início do século
XX. O termo “urbanismo” apareceu na França em 1910, sendo simultâneo ao termo “town planing” na Inglaterra
(1908) e “städtebau” na Alemanha. Desde meados do século XIX, a questão urbana apresentava-se na forma de
modelos de análise derivados de diferentes concepções de ciência; Agache, bem como outros arquitetos-
urbanistas em princípio do século XX, transformaram esses conhecimentos em diretrizes, formalizando uma
ciência do planejamento das cidades, o urbanismo. Segundo a Sociedade Francesa de Urbanistas, que tinha
como um dos fundadores Agache, a nova ciência agrupava “as iniciativas e as competências consagradas ao
estudo específico do Urbanismo, ciência que trata do planejamento, das reformas, das sistematizações, dos
embelezamentos e das expansões a serem promovidas nas cidades”. Cf. BRUANT, 1996: 168.
48
VALLADARES, 2005: 46; SILVA, 2005: 55). Nesse trabalho, o urbanista aproveitou a
oportunidade para difundir a ciência do urbanismo e sistematizar seu próprio pensamento.
Segundo Bruant (1996), o plano elaborado para o Rio de Janeiro foi uma “obra teórica, na
qual propunha um método”. Na França, o plano do Rio de Janeiro foi publicado sob o título
Remodelação de uma capital. Planejamento, expansão e embelezamento (La remodelation
d’une capitale. Aménagement, extension, embellissement). O plano elaborado para o Distrito
Federal cumpria a função de proselitismo e sistematização da ciência do urbanismo.
A favela aparecia nesse plano devido à sua importância para a reflexão sobre a urbe
carioca. Ademais, a formação do urbanista francês contribuía para o destaque dado à temática
do que era percebido como uma forma de organização social e espacial no Rio de Janeiro. O
urbanismo praticado por Agache não era “apenas uma ciência e uma arte”, atento às questões
da engenharia e da arquitetura; ele era “também uma adaptação sociológica” (Idem, 1996:
179). A aproximação com as ciências sociais foi uma constante na vida e na obra do urbanista
francês, diferenciando-o de muitos dos arquitetos-urbanistas de sua época. Isso o levou a
pensar em uma “antropogeografia” das cidades e dos espaços humanos. Dentro dessa
concepção, as cidades não eram vistas como espaços vazios a serem construídos, havia uma
“organicidade” do espaço que precedia a intervenção do urbanista. Na composição do Plano
para o Rio de Janeiro, por exemplo, Agache agregava fatores da formação “econômica e
social, geográficos e topográficos, que revelavam o esforço de governantes no sentido de
amoldar a natureza às exigências da aglomeração urbana”. Diante desse “organismo vivo” que
era a cidade, o arquiteto-urbanista estabelecia o zooning de cada espaço, constituindo uma
função para cada território (OLIVEIRA, 2009: 32, 71; VALLADARES, 2005: 49).
O autor identificava a favela como uma formação urbana, mas também como um
perigo à racionalização do território. Na visão de Agache, as favelas eram o “resultado de
certas disposições nos regulamentos de construção”, que dificultavam a obtenção de
“autorização de edificar”; elas eram fruto da “indiferença do poder público” e da possibilidade
do operário “possuir uma residência perto do trabalho”. Na descrição do desenvolvimento de
uma favela, o urbanista imaginava que “pouco a pouco surgiam casinhas pertencentes a uma
população pobre e heterogênea”, dessa forma nasciam o “princípio de organização social”, o
sentimento de “propriedade territorial”, os “laços de vizinhança” e os “pequenos comércios”.
Apesar das péssimas condições “higiênicas e estéticas”, na sua avaliação, os moradores
permaneciam ali, porque “tais assentamentos são dotados de luz, ar e um horizonte invejável”
(OLIVEIRA, 2009: 61,71). Não obstante o autor compor um quadro sobre a lógica da
organização social da favela, ele afirmava que as favelas constituíam “um perigo permanente
49
de incêndio e infecções para todos os bairros”; a “sua lepra suja
a vizinhança das praias e os
bairros mais graciosamente dotados pela natureza, despe
os morros do seu enfeite verdejante e
corrói até as margens da mata na encosta das serras” (Idem, 2009: 62).
A análise de Agache constituiu um importante passo na formulação da identificação
da favela. O plano estabeleceu um marco para o urbanismo e o pensamento social carioca,
mas, em função da Revolução de 1930, não foi posto em prática. O prefeito Pedro Ernesto
(1931-1937) revogou o Plano Agache e o Serviço da Planta Cadastral da Cidade, entretanto o
plano foi retomado posteriormente. Em 1937, na gestão do prefeito Henrique Dodsworth, o
secretário de Obras e Viação, Edson Passos, coordenou as reformas urbanísticas intentadas
por Getúlio Vargas e instaurou a Comissão do Plano da Cidade. Segundo José de Oliveira
Reis, que foi chefe dessa comissão e diretor do Departamento de Urbanismo que substituiu
essa seção da prefeitura, o Plano Agache lhe foi entregue com uma série de plantas e projetos,
e esteve sob sua guarda até a década de 1950. O plano foi fundamental para o trabalho que foi
desenvolvido na gestão de Dodsworth. Numa entrevista concedida em 1980, a funcionários do
Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, José Reis fez uma série de ponderações sobre como o
Plano Agache e outros trabalhos elaborados na Prefeitura forneceram uma diretriz e foram
readaptados na Comissão do Plano da Cidade durante o Estado Novo (FREIRE &
OLIVEIRA, 2008: 21; LIMA, 1990: 29; FISCHER, 2006: 439).
A definição da favela, no Código de Obras de 1937, deve ser vista como resultado
desses esforços de urbanistas e legisladores interessados em conformar o processo de
crescimento da cidade e, nesse código, encontramos uma primeira definição jurídica sobre a
favela. Tal documento foi reiterado por outras legislações e políticas públicas, permanecendo
válido até 1971. Por isso, convém citar de forma integral a legislação:
Art. 349. A formação de favelas, isto é, de conglomerados de dois ou mais casebres
regularmente dispostos ou em desordem, construídos com materiais improvisados e
em desacordo com as disposições deste decreto, não serão absolutamente
permitidos.
§ 1º Nas favelas existentes é absolutamente proibido, ou construir novos casebres,
ou executar quaisquer obras nos existentes, ou fazer qualquer construção.
§ 2º A Prefeitura providenciará, através das Delegacias Fiscais, da Diretoria de
Engenharia e por todos os meios ao seu alcance, o impedimento à formação de
novas favelas ou à ampliação e execução de qualquer obra nas existentes, mandando
proceder sumariamente à demolição dos novos casebres, daqueles em que for
realizada qualquer obra e de qualquer construção que seja feita nas favelas.
§ 3º Verificada pelas Delegacias Fiscais ou pela Diretoria de Engenharia, à infração
ao presente artigo, deverá o fato ser levado com urgência ao conhecimento da
Diretoria de Engenharia que, depois de obtida a necessária autorização do Secretário
50
Geral de Viação e Obras Públicas, mandará proceder à demolição sumária,
independentemente da intimação e apenas mediante aviso dado com 24 horas.
§ 4º A demolição será precedida de despejo, quando necessário, feito também
sumariamente, requisitando-se, se conveniente, o auxílio da força pública.
§ 5º Tratando-se de favela formada ou construída em terreno de propriedade
particular, será o respectivo proprietário passível, pela infração das disposições do
presente artigo e de seu § 1º, da aplicação de multa correspondente à execução de
obra sem licença e com desrespeito ao zoneamento.
§ 6º A multa estabelecida pelo § 5º será aplicada em relação a cada casebre
construído ou a cada casebre em que for executada qualquer obra independente da
demolição sumária, cujas despesas serão cobradas do proprietário do terreno,
administrativa ou executivamente, sendo, neste último caso, acrescidas de 20%.
§ 7º Quando a Prefeitura verificar que existe exploração de favela pela cobrança de
aluguel de casebres ou pelo arrendamento ou aluguel do solo, as multas serão
aplicadas em dobro, observando o que prescreve o § 4º do artigo 348, no caso de
ultrapassar o montante da multa a ser aplicada, da importância de dois mil cruzeiros
(Cr$ 2.000,00).
§ 8º A construção ou armação de casebres destinados à habitação, nos terrenos,
pátios ou quintais dos prédios, fica sujeita às disposições deste artigo.
§ 9º A Prefeitura providenciará, como estabelece o Título IV do Capítulo deste
decreto, a extinção das favelas e a formação, para substituí-las, de núcleos de
habitação de tipo mínimo.33
O código de obras se estabeleceu como um conceito negativo de favela que era
definida como aquilo que se encontrava fora de uma ordem urbana. Proibia “conglomerados
de dois ou mais casebres regularmente dispostos ou em desordem, construídos com materiais
improvisados em desacordo com as disposições” urbanísticas prescritas em lei. Ficava vetado
“nas favelas existentes levantar ou construir novos casebres, executar qualquer obra nos que
existem ou fazer qualquer construção”. A prefeitura, por meio das Delegacias de Vigilância,
tinha plenos poderes para “demolir novos casebres” ou “destruir qualquer nova construção
nas favelas”. Também eram proibidas as aglomerações de construções de habitação
irregulares em pátios, prédios ou terrenos que poderiam se transformar em favelas. Por
último, era considerado ilegal o “aluguel de casebres” e o “arrendamento do solo” nesses
territórios.
Ainda que o código de obras fosse descumprido pela população e pelo próprio poder
público, o documento é um marco por tratar as áreas consideradas favelas como espaços
desordenados e transitórios do tecido urbano. A identificação da favela vai constar no capítulo
da “Extinção das Habitações Anti-higiênicas”. Aplicavam-se, a esses espaços, as mesmas
33
PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 6.000, de 1º de julho de 1937.
51
restrições impostas aos cortiços no início do século XX (GONÇALVES, 2013). A proibição
de reformas e de construção de casas nas favelas tinha, como fim, facilitar a desapropriação
por utilidade pública, tornando os desmanches menos onerosos para o Estado (OLIVEIRA,
2009: 62). Para o legislador, a favela seria um espaço provisório, que deveria permanecer sem
melhoramentos, para facilitar sua derrubada no processo de expansão do tecido urbano. Por
outro lado, esse mesmo código não abolia totalmente a permissão para construção de casas de
madeira em morros. No seu artigo 292, permitia as construções de madeira na zona rural e nos
morros, excetuando a zona comercial, industrial, portuária e “residencial nº 1” – a atual zona
sul do Rio de Janeiro. Além da valorização da zona sul, esse zoneamento previa a instituição
do distrito industrial do Rio de Janeiro, que se tornou o principal foco de expansão das favelas
cariocas nos anos 1930 e 1940 (FISCHER, 2006; GONÇALVES, 2013; SILVA, 2005;
ABREU, 2010).
A situação ambígua perpetuava a insegurança do direito de moradia das classes
populares. A identificação das favelas ocorria num período de intensos conflitos em relação à
propriedade de lotes na cidade. Nos anos 1920, em meio à expansão urbana, tiveram início
diferentes conflitos jurídicos em relação à propriedade dos lotes ocupados por favelas e
reivindicados por “grileiros”, companhias imobiliárias e outros proprietários privados.
Inúmeros grupos foram à justiça em ações de despejo coletivo, buscando “estabelecer a posse
ou o domínio legal sobre terras de títulos ambíguos”. Ao postular ilegitimidade da moradia e
da propriedade do lote, classificando toda favela como invasão e algo antiestético dentro da
cidade idealizada pelos urbanistas, o Código de Obras consolidava a fragilidade do direito de
moradia para os pobres. Os termos dessa lei e do processo de ilegitimidade das residências no
morro serão pontos questionados por ações individuais e coletivas organizadas por moradores
(FISCHER, 2006; GONÇALVES, 2013).
Por último, cabe notar que o Código de Obras propugnava a construção de “tipos
mínimos de habitação”, a fim de eliminar as favelas. Diferentes iniciativas da Prefeitura
tentaram colocar em prática essa legislação referente à questão habitacional. Em 1942, Victor
Tavares Moura iniciou e divulgou a construção de Parques Proletários Provisórios: moradias
de madeira, servidas de escola e outras instituições assistenciais com o objetivo de formar o
trabalhador, tirando-o da condição de “marginalidade”. O intento de servir as favelas de uma
assistência social e de habitações módicas continuou a ser perseguido pela Prefeitura em
união com a Igreja Católica, com a Fundação Leão XIII, criada em 1947, e pela Cruzada São
Sebastião, em 1956. Essas iniciativas sinalizavam para a criação de um sistema de assistência
social e habitacional voltado para o atendimento dos moradores em favelas. A legislação e a
52
identificação das favelas conformavam uma clientela em um arranjo institucional, que
propunha uma pedagogia civilizatória, visando recuperar e formar o trabalhador para a
sociedade.
Em Belo Horizonte tal como no Rio de Janeiro, a prefeitura também publicou uma
legislação com o fito de controlar a ocupação do solo urbano e justificar políticas assistenciais
para “recuperar” uma população. A categorização da “favela” surgia do imperativo de
fiscalizar uma expansão que era percebida como “desordenada”, fora de controle do Estado.
Todavia, como será explanado no tópico seguinte, a temporalidade para o surgimento da
categoria, a forte relação com a noção de “vila”, bem como as características do processo
urbanização da capital mineira diferenciam a maneira como a categoria favela consolidou-se
no âmbito da legislação urbana.
1.2.2 Belo Horizonte
Nas décadas de 1920 e 1930, Belo Horizonte teve um rápido processo de crescimento
urbano e industrial. Na visão de diferentes autores, esse foi o período em que Belo Horizonte
consolidou-se como centro econômico do estado de Minas, passando a atrair investimentos,
negócios e população. Estabelecer-se como centro de integração do estado foi um dos intentos
do projeto de construção de uma nova capital, mas isso só foi alcançado posteriormente com o
crescimento da cidade (DULCI, 1999; GUIMARÃES, 1991; LE VEN, 1977).
Nesse período, observa-se a preocupação de reorganizar o processo de ocupação do
tecido urbano com novos regulamentos, editados e revistos. Em vista dessas transformações
que associavam crescimento à desordem, a municipalidade patrocinou a obra Consolidação
das Leis, Decretos e Portarias da Prefeitura de Belo Horizonte em 1935. O livro tinha por
objetivo apresentar a legislação urbana para o cidadão, conscientizando-o, e também serviria
como referência para os fiscais do município, que teriam, por sua vez, mais trabalho. A
Consolidação das Leis, Decretos e Portarias da Prefeitura de Belo Horizonte era também
concebida como um tributo aos fundadores da cidade, que teriam executado uma obra
racional e civilizadora na construção de uma nova capital para o estado de Minas Gerais.
Retirando as leis e decretos de seu contexto social e político, como também lhes conferindo
um caráter orgânico, a obra esboçava uma cidade idealizada por legisladores, numa
continuidade com o intento dos fundadores da capital.
Na Consolidação das Leis, Decretos e Portarias da Prefeitura de Belo
Horizonte, não há indícios da categoria “favela”. Como salientamos no início do capítulo, as
53
expressões “favela” ou “morro” apareceram na imprensa aplicadas às vilas irregulares,
ocupadas por casas proletárias e “cafuas”. No entanto arrolavam-se vários dispositivos
jurídicos necessários para o reconhecimento das vilas regulares, que dariam origem aos
bairros e às vilas irregulares (favelas). Diferente do Rio de Janeiro, também não há o registro
de posturas para a ocupação de “morros” – talvez, na topografia acidentada de Belo
Horizonte, a distinção não tenha feito sentido para legisladores, que tinham como referência
as ladeiras de Ouro Preto, antiga capital do estado.
A obra Consolidação das Leis, Decretos e Portarias trazia várias entradas para a
categoria “vila”. Como já vimos, esse era o principal termo utilizado para nomear os
loteamentos populares no processo de crescimento urbano e a categoria intercambiável com
“favela” na designação das imagens da pobreza na cidade. Na expectativa de aumentar o
número de construções operárias, o poder público editou o primeiro regulamento sobre o tema
em 1919, a Lei nº 178. Previa a remoção de cafuas da zona urbana e suburbana, mas também
a aprovação de loteamentos em áreas distantes. Os lotes das vilas seriam vendidos ou
concedidos pelo poder público prioritariamente para operários34
. Os problemas habitacionais
da cidade seriam resolvidos com o incentivo à expansão do tecido urbano para as áreas
limítrofes entre a zona suburbana e rural. Como já observaram outros autores, a
regulamentação sancionava um zoneamento que restringia o uso das áreas centrais pelas
classes populares e naturalizava a segregação social e econômica entre centro e periferia (LE
VEN, 1977; GUIMARÃES, 1991). Essa segregação já se inscrevia no projeto que deu origem
à Belo Horizonte e acentuava-se nas estratégias de zoneamento urbano delineadas pelo poder
público.
Ao regular e incentivar o surgimento de vilas na década de 1920, o principal intento do
legislador foi a remoção da VIII Seção – a “área operária”. Situada dentro da Avenida do
Contorno, ocupada, no início do século XX, a partir de aforamentos concedidos a
trabalhadores que fixassem residência na recém-criada capital, a área operária se expandiu.
Ela perfazia uma área de difícil delimitação devido ao seu constante crescimento, era
identificada de forma pejorativa como “Barroca”, “Barro Preto”, ou, como notou Guimarães
(1991), “cidade das cafuas” - em contraponto à cidade planejada. Nos anos posteriores à
edição da regulamentação das “vilas”, persistiu o intento de remodelar a área operária,
removendo-a da cartografia urbana de Belo Horizonte. Em 1921, a Prefeitura editou o
regulamento, que não permitia, “sob nenhum pretexto, construções de cafuas ou qualquer
34
BELO HORIZONTE. Lei nº 178, de 6 de outubro de 1919. Autoriza o prefeito a criar “vilas”.
54
outra que não satisfaça a exigência dos regulamentos de construções e higiene, nas áreas
urbana e suburbana” (MENDONÇA, 1935: 33). No regulamento de construções de 193035
,
proibia-se na zona urbana e suburbana toda “construção e reconstrução nas subdivisões
denominadas vilas, fora do perímetro da cidade e nas já aprovadas, sem prévia licença da
Prefeitura” (Idem, 1935: 335).
Na Consolidação das Leis, Decretos e Portarias da Prefeitura de Belo Horizonte,
dava-se destaque para o empreendimento da Vila Concórdia. Criada pelo poder público em
1928, deveria servir de modelo para outras práticas36
. Segundo o prefeito Cristiano Machado,
a criação da “primeira Vila Operária” forçaria “a retirada dos intrusos do domínio municipal,
em grande número na zona denominada Barroca e na Lagoinha, nas imediações da Pedreira
Prado Lopes” (MACHADO, 1927: 40). No mesmo ano de criação da “vila Concórdia”,
publicou-se um decreto que impedia os moradores da Barroca, do Barro Preto e da Pedreira
Prado Lopes de validarem os títulos provisórios concedidos pela Prefeitura37
. O nome
“Concórdia” derivava do acordo feito com os moradores, para que deixassem suas cafuas. Tão
logo foram desapropriados, os lotes da zona urbana foram também loteados e vendidos a
companhias imobiliárias e a pessoas de mais alta renda (GUIMARÃES, 1991: 157-158). A
“Vila Operária da Concórdia” surgia como modelo de solução dos problemas de habitação
urbana e como meio de retirar as “cafuas” – casas pobres fora do padrão estético e higiênico –
da região central da cidade.
O reconhecimento das vilas pelo poder público foi dificultado no processo de rápida
expansão urbana, marcado por várias experiências de autoconstrução em lotes periféricos. Em
princípio, as vilas seriam permitidas apenas na zona rural, uma área que teve seus limites
constantemente modificados com o crescimento da cidade. Na década de 1930, a estratégia de
zoneamento do município previa a subdivisão em quatro zonas: central/comercial,
urbana/residencial, suburbana e rural. A zona urbana era definida pela Avenida 12 de
Dezembro (a Avenida do Contorno) – referência fundamental para o planejamento inicial de
Belo Horizonte38
. Em 1940, a zona urbana foi ampliada para bairros limítrofes à Avenida do
Contorno, fenômeno que foi reiterado posteriormente em 1956. Por outro lado, a zona
35
BELO HORIZONTE. Lei nº 363, de 4 de setembro de 1930. Regulamento de construções e reconstruções. 36
BELO HORIZONTE. Decreto nº 31, de 6 de setembro de 1928. Cria a Vila Operária Concórdia. 37
BELO HORIZONTE. Decreto n° 22, de 16 de janeiro de 1928. Declara caducidade de concessões provisórias. 38
BELO HORIZONTE. Decreto nº 165, de 1º de setembro de 1933. Modifica o Regulamento Geral de
Construções de Belo Horizonte. Na década de 1940, para além da diferenciação entre as zonas central, urbana,
suburbana e rural, a administração municipal passou a diferenciar a região da Pampulha e das “cidades-satélites”
do Barreiro e de Venda Nova. O zoneamento atual, por macrorregiões, com a formação de subprefeituras ou
regionais administrativas responsáveis por determinadas territorialidades só ocorreu em 1985.
55
suburbana foi ampliada de forma drástica em 1940, 1947 e 1956. As vilas criadas do
parcelamento do solo na zona rural eram incorporadas como parte do subúrbio, dispostas a
novas exigências urbanísticas. Em 1947, o reconhecimento da região do Barreiro e de Venda
Nova como “cidades-satélites” de Belo Horizonte redefiniam a postura para essas regiões39
.
Essa mudança jurídica atrasava e impossibilitava o reconhecimento de alguns loteamentos
direcionados a trabalhadores.
Diferentes figuras jurídicas foram criadas, numa tentativa de solucionar o problema do
reconhecimento dos loteamentos criados pela iniciativa privada e pública e das residências
constituídas a partir da experiência de autoconstrução. Em 1930, os moradores das vilas
ficaram impedidos de efetivar qualquer tipo de reforma e reconstrução sem a autorização do
poder público. Em 1937, em vista do aumento do déficit habitacional e da impossibilidade
dessa escassez ser suprida, a municipalidade retirou a proibição de construção e reconstrução,
como estava previsto no código de construções de 1930. Como era considerada a principal
forma dos operários terem acesso à moradia, a Prefeitura de Belo Horizonte tentou dinamizar
o reconhecimento das vilas40
. Com a redefinição dos limites do zoneamento entre subúrbio e
zona rural, por meio do regulamento de obras e edificações de 194041
, há a continuidade da
restrição à instituição de “vilas” na zona suburbana, mas se acrescentava um tipo de legislação
específica para as “construções operárias” nos interstícios do subúrbio com a zona rural. Essas
seriam permitidas, desde que o morador comprovasse ser trabalhador, não utilizasse materiais
inflamáveis na cobertura das casas e localizasse as construções em “pontos afastados da zona
suburbana”42
.
As “vilas” possuíam status jurídico próprio, o que marcaria a experiência de acesso
dos trabalhadores ao direito à cidade da década de 1920 aos anos 1960. De modo geral, as
legislações evidenciavam o caráter provisório ou semilegal das habitações operárias: os
trabalhadores as adquiriam no mercado imobiliário ou conseguiam uma concessão do direito
de ocupar um lote pela prefeitura, mas o reconhecimento e a regularização como bairro só
39
BELO HORIZONTE. Decreto nº 74, de 17 de setembro de 1940. Fixa os limites da zona urbana e suburbana
da capital e contém outras disposições; BELO HORIZONTE. Decreto-Lei nº 2.085, de 13 de março de 1947.
Limita a zona suburbana de Belo Horizonte; BELO HORIZONTE. Decreto nº 592, de 28 de novembro de 1956.
Dispõe sobre a ampliação da denominada “Zona Urbana” do Município de Belo Horizonte e contém outras
providências. 40
BELO HORIZONTE. Lei nº 363, de 4 de setembro de 1930. Aprova regulamento de construções de Belo
Horizonte. 41
Editado durante a administração municipal de Juscelino Kubitschek (1940-1945), essa legislação permaneceu
como principal documento para regular obras e edificações, e foi reformado durante todo o século XX. Apenas
em 2009 o regulamento foi revogado, com a promulgação de um novo Código de Obras e Edificações. 42
BELO HORIZONTE. Decreto-Lei nº 84, de 21 de dezembro de 1940. Aprova o Regulamento de Construções
da Prefeitura de Belo Horizonte.
56
aconteceriam quando o loteamento fosse aprovado posteriormente. A partir desse
reconhecimento, o poder público aumentava a taxa de impostos cobrados aos moradores e
ficava obrigado a estender serviços de infraestrutura urbana para esses locais. Tal situação
causava grande descontentamento entre os moradores de vilas, pois o reconhecimento da
habitação e das benfeitorias se arrastava por logos anos, e se tornava um impeditivo à chegada
dos serviços de infraestrutura. Em 1961, um jornalista observou esse status sui generis das
vilas em Belo Horizonte:
Existe na Prefeitura mais de uma centena de pedidos para aprovação de vilas,
espalhadas pela periferia da cidade. Embora a aprovação provoque aumento de
imposto, a municipalidade protela as aprovações, uma vez que teria de promover
melhorias consideradas desvantajosas para seus cofres. Enquanto isso, milhares de
pessoas (principalmente operários) que adquiriram lotes, enganadas pelas vantagens
apregoadas pelos corretores, não têm água, luz, calçamento, rede de esgoto e sequer
as ruas terraplanadas43
.
A análise aqui poderia se deter em vários casos e experiências de apropriação do
espaço nas periferias da cidade, observando a diversidade das articulações sociourbanas na
formação das vilas. Todavia pretendo aqui sinalizar que, dentro desse quadro de expansão da
periferia, as categorias vilas e favelas foram intercambiáveis, e a distinção entre uma forma
urbana e outra passou a figurar como tema de reflexão da burocracia municipal. Em função do
aumento da periferia e da necessidade de distinguir entre as situações legais e ilegais, a
Prefeitura de Belo Horizonte transpôs a diferença entre vila e favela em termos jurídicos e
urbanísticos na década de 1950. Um dos primeiros passos nesse sentido foi a criação do
Departamento de Fiscalização em 1951. O poder municipal tentava organizar estruturas
administrativas e arranjos jurídicos que fossem capazes de regular a rápida urbanização,
percebida como caótica e não planejada. Num viés negativo, uma das obrigações do órgão
que cuidava da vigilância das posturas municipais era “exercer a repressão às construções
clandestinas e à formação de favelas ou agrupamentos semelhantes”44
.
Nessa reestruturação da organização administrativa, a criação do Departamento de
Fiscalização foi a primeira tentativa de estabelecer um enfoque específico sobre as favelas.
Noutra iniciativa, o município buscou fixar um novo plano diretor para o crescimento da
capital do estado, assim o reordenamento do plano urbanístico da cidade foi discutido em
diferentes configurações sociopolíticas a partir da década de 1930. Na tônica do discurso
oficial dos relatórios de prefeitos, reconhecia-se que o plano de Aarão Reis estava superado
43
VILAS não aprovadas. Diário da Tarde, Belo Horizonte, 30/05/1961, p. 2. 44
BELO HORIZONTE. Lei nº 333, de 23 de maio de 1953. Dispõe sobre a estrutura administrativa da Prefeitura
e dá outras providências.
57
pelo crescimento urbano acelerado. Como já havia acontecido com outras capitais, esperava-
se que a construção de um novo plano diretor solucionasse os problemas urbanos45
. Em 1934,
foi criada a Comissão Técnica Consultiva, com liderança do engenheiro e professor da Escola
da Engenhara Lincoln Continentino, visando à elaboração de uma nova planta cadastral da
cidade e à redefinição do plano urbanístico de Belo Horizonte. Em 1940, a administração
municipal chegou a convidar Alfred Agache para realizar um plano urbanístico para a cidade
(GUIMARÃES, 1991: 177-184). Em 1951, novamente formou-se uma comissão, era
composta por membros do Instituto dos Arquitetos do Brasil e pela Sociedade Mineira de
Engenheiros. No mesmo ano, o Serviço do Plano Diretor da Cidade foi estruturado com a
colaboração de Prestes Maia, Oscar Niemeyer e Burle Marx46
. Em 1958, um novo plano
diretor foi encomendado à Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas aos Complexos
Sociais (SAGMACS).
Para compreender os desafios enfrentados nesse processo de redefinição de um plano
diretor na década de 1950, é importante observarmos os termos do contrato que justificavam o
acordo do poder público com a SAGMACS:
1) Localização desejável das áreas industriais;
2) Estruturação dos diversos escalões da vida coletiva, com localização desejável
para os centros;
3) Localização desejável de estações rodoviárias, grandes mercados;
4) Indicação das ligações viárias principais;
5) Sugestões de elementos de controle da ocupação do solo e do espaço47
.
Na década de 1950, o tema principal em discussão era a definição do que seria a
“greater Belo Horizonte” – a percepção de como se estruturava a região metropolitana no
delineamento de um planejamento regional para a cidade. A diferenciação entre áreas
industriais e residenciais, o abastecimento, a circulação e ligações viárias, bem como o
controle do uso do espaço eram centrais na discussão do plano diretor. A SAGMACS realizou
o maior esforço de pesquisa e planejamento de Belo Horizonte e manteve um contrato com o
município entre 1958 e 1963, elaborando vários mapeamentos sobre o que era e o que seria o
45
Essa crítica ao planejamento da cidade estendia-se também aos prédios e patrimônios urbanos que figuravam
como símbolos da estética urbana eclética que vigorou como cânone na Primeira República. Nesse período,
veremos a afirmação das vanguardas modernistas na cidade, principalmente após a construção do conjunto
arquitetônico da Pampulha. 46
BELO HORIZONTE. Lei nº 232, de 8 de setembro de 1951. Cria o Serviço do Plano Diretor da Cidade;
GIANNETI, 1951: 14-15. 47
ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara Municipal de Belo Horizonte.
Carta do Prefeito Celso Mello de Azevedo à Câmara Municipal, 1958. Arq. DR.010209-8117. 1958.
58
futuro da capital mineira48
. Observando a questão do uso e controle do espaço, ela chegou a
elaborar pela primeira vez um mapa das “Favelas de Belo Horizonte”. Da mesma forma, a
SAGMACS também analisou os equipamentos urbanos que existiam nas vilas e bairros da
periferia de Belo Horizonte49
.
Nesse debate urbanístico, a construção legal da categoria favela como meio de
controle do uso do espaço foi instituída na lei 572. Ela era fruto de discussões ocorridas no
Serviço do Plano Diretor, o que ajudou a SAGMACS em seu trabalho, e de uma série de
transformações propostas pela Comissão de Desfavelamento, instituída em 1955 por Celso
Mello de Azevedo (1955-1959). Essa comissão teve como liderança o engenheiro José
Aguinaldo Mourão – um dos atores centrais na administração de Celso Mello de Azevedo,
que acumulou o cargo de diretor no Serviço do Plano Diretor de Belo Horizonte e
coordenador da Comissão de Desfavelamento50
. A lei 572 reformava o regulamento de
edificações da seguinte maneira:
Art. 1º Aos responsáveis pelas obras clandestinas, como tais construídas sem a
observância do Regulamento de Construções em vigor, que explorem favelas,
mediante cobrança de aluguéis de casebres e arrendamento ou locação do solo, serão
impostas as multas, estabelecidas no art. 363 do Decreto nº 84, de 1940.
Parágrafo único. As multas, que variarão de quinhentos cruzeiros a mil cruzeiros,
serão cobras por unidade construída.
Art. 2º Para efeito da presente Lei, considera-se favela o aglomerado de dois ou mais
barracões, casebres ou qualquer tipo de construção semelhante, executados sem
obediências legais, em terrenos que não sejam de propriedade dos ocupantes51
.
A produção normativa buscou eliminar a ambiguidade da categoria vila e amparar o
trabalho da fiscalização municipal e de planejadores urbanos. O intento de homogeneizar o
tecido do urbano e legitimar a exclusão das vilas pobres e irregulares ficava justificado com a
regulamentação. Não obstante a pluralidade legal das formas de ocupação e uso do solo 48
O Plano Diretor de Belo Horizonte, executado pela SAGMACS, foi entregue em 1963, mas permaneceu
engavetado em função do Golpe de 1964 e da ruptura na estrutura política e administrativa do município.
Participação da coordenação, pesquisa e elaboração do plano diretor: Antônio Bezerra Baltar, Frei Benevenuto
de Santa Cruz, Celso Lamparelli, Francisco Whitaker Ferreira, Annibal Villola, Antônio Delornzo Netto. Contou
também com a participação de uma grande rede de pesquisadores recrutados nos cursos de Ciências Econômicas,
Sociais, Engenharia e Arquitetura da Universidade de Minas Gerais e da Universidade Católica. Cf. BELO
HORIZONTE. Estrutura Urbana de Belo Horizonte: estudo elaborado pela “Sociedade para a Análise Gráfica e
Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais” - SAGMACS. Belo Horizonte, 1959. 49
BELO HORIZONTE. Estrutura Urbana de Belo Horizonte: estudo elaborado pela “Sociedade para a Análise
Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais” - SAGMACS. Belo Horizonte, 1959. p. 13. Os
mapas indicados no estudo da SAGMACS não foram encontrados nos arquivos públicos e bibliotecas de Belo
Horizonte. 50
BELO HORIZONTE. Portaria nº 557, de 1º de abril de 1955. Cria a Comissão de Desfavelamento. 51
BELO HORIZONTE. Lei nº 572, de 12 de setembro de 1956. Altera as multas ao regulamento de construção,
quando houver favelas, e dá outras providências.
59
(mediadas por agentes imobiliários, com vendas de barracos e terrenos sem comprovação em
cartório e aluguel de casa ou chão; pelo consentimento ou autorização do município; pela
invasão; entre outros), a lei deslegitimava a propriedade, o comércio e o investimento das
famílias na autoconstrução da moradia. Ademais, devemos ter em vista também que a
definição da categoria favela no âmbito da legislação urbana tinha como ponto de partida a
resolução desses conflitos pela posse de terra. Nas décadas de 1940 e 1950, com a expansão
do tecido urbano, assistira-se ao crescimento das disputas pela posse dos lotes urbanos e à
formação de associações de favelas para defesa do direito de moradia52
.
A norma não apagou a ambiguidade e o entrelaçamento das categorias “vila” e
“favela” em Belo Horizonte. Ainda hoje podemos perceber a forma como essas duas noções
misturam-se nos topônimos das favelas da cidade; no primeiro censo de favelas, várias
localidades se autodeclaravam vilas, numa tentativa de se afastar do estigma. Contudo a
diferenciação no código urbano era eficaz na justificação da política de “desfavelamento”. Em
termos legais e administrativos, era importante essa distinção, uma vez que a partir dali a
municipalidade passou a contar com um departamento específico para atuar nas favelas – o
Departamento de Habitações e Bairros Populares (DHBP), criado em 1955. A identificação
das favelas era importante para definir as áreas regulares e irregulares, as que receberiam
investimento público e as que seriam removidas ou mantidas de forma provisória no tecido
urbano.
A importância dessa legislação esteve justamente atrelada à reforma do código de
edificações, reconhecendo uma categoria de estigma que era operada na esfera pública, e à
justificação de uma engrenagem política e administrativa, que passava a promover a política
de “desfavelamento”. A inovação jurídica formalizava um status subalterno aos moradores
das áreas pobres, identificadas como favelas.
1.2.3 A favela como status jurídico e sociourbano
A distância temporal entre as duas legislações que registraram e ainda corroboram a
categoria favela em 1937 no Rio de Janeiro, e em 1956 em Belo Horizonte, merece algumas
considerações. Primeiro, é importante reiterar a centralidade do espaço carioca na construção
da categoria. Assim, a partir da década de 1920, surgem debates sobre o tema, que
posteriormente fundamentou uma inovação no código urbanístico. Em Belo Horizonte, apesar
52
Ver, na Parte II da tese, a análise do associativismo de defesa coletiva e da Federação dos Trabalhadores
Favelados de Belo Horizonte.
60
do aparecimento do termo favela na imprensa, isso não consolidou a produção de uma
legislação e reflexão específica. Houve redefinições sucessivas de procedimentos burocráticos
sobre a organização e regularização de vilas – forma privilegiada do acesso ao lote e à
construção da casa própria para os trabalhadores. Apenas na década de 1950, com o intento de
organizar o zoneamento e controle sobre o uso do solo, a categoria foi incorporada na
legislação.
A distância dessas legislações refletia distinções no processo de expansão urbana.
Enquanto o fenômeno da favela no Rio de Janeiro teve um aumento nos anos 1920 e 1930
(ABREU, 1994; SILVA, 2005), em Belo Horizonte demarca-se a segunda metade da década
de 1940 como momento de maior crescimento das favelas (GUIMARÃES, 1992;
LIBERATO, 2007). Esses regulamentos surgiram num momento de redefinição das regras de
zoneamento urbano e das tentativas de controlar a ocupação do espaço. Eles respondiam a
expectativas de um urbanismo que desconsiderava as diferentes formas de uso do tecido
urbano, buscando a homogeneização dos espaços da cidade. No processo de expansão da
fronteira urbana, a legislação também respondia à expectativa de atores do mercado
imobiliário, que buscava a valorização das áreas residenciais contíguas às favelas e enfrentava
litígios para desapropriação de favelas.
O surgimento de uma lei não cria a realidade nem a irregularidade, mas propõe um
enquadramento das relações sociais sob um viés. A formação de um status jurídico para
favela produzia efeitos muito semelhantes nas relações sociopolíticas desenvolvidas nas duas
cidades. As favelas eram resultado de ocupações/invasões, loteamentos sem papel (títulos de
propriedade), deslocamento urbano–populacional incentivado pelo poder público, e outras
formas de articulação do espaço de habitação no tecido urbano. Apesar da heterogeneidade de
situações, a legislação suprimia essas diferenças, taxando-as de ilegais e desconsiderando a
semântica (e legitimidade) multifacetada dos loteamentos informais no tecido urbano. Ainda
que se vislumbrasse a possibilidade desses espaços estarem integrados ao mercado
imobiliário, uma vez que identificavam a proibição de aluguéis e de comércio de residências,
o Código de Obras de 1937 e a lei 572 de 1956 proibiam a construção e o reparo de
residências, buscando retirar esses espaços do campo de atuação do comércio informal de
imóveis.
O propósito das duas leis era o “desfavelamento” das cidades, a restrição das
construções e a expansão desses territórios. Essas leis consolidavam uma estrutura que
precarizava o direito de moradia, dessa forma surgiram, no contexto de agudização da
demanda por moradia, os conflitos pela posse das casas e dos lotes de títulos incertos. Como
61
observou Fischer, para o caso carioca, a “lei, nesse contexto, não servia para transformar a
realidade social ou para criar direitos confiáveis de moradia, mas para criar distinções entre
um grupo com direito à segurança da moradia e outro cujo local de residência seria marcado
pela insegurança e pela ambiguidade legal” (FISCHER, 2006: 435-437). Os regulamentos
sancionavam assim um poder aleatório, fazendo com que os pobres reconhecessem que sua
moradia não era um direito, mas uma concessão de um político, um administrador ou outra
instância de poder. Além disso, ao permitir a identificação de determinado espaço como
ilegal, a normatização coibia investimentos públicos em infraestrutura e serviços, temendo
que esses melhoramentos consolidassem as favelas no território da cidade.
Como analisamos, a questão favelas tornou-se um tópico da literatura urbana no
Brasil, muito antes da emergência e repercussão de seus movimentos sociais. Ela surgiu a
partir dos olhares que procuravam homogeneizar um padrão de higiene e civilização nos
trópicos, num processo de estigmatização dos grupos populares em contexto urbano. A
representação jurídica e urbanística da favela como marginal à propriedade privada e alheia
aos padrões estéticos da cidade reiterava essa estigmatização. Nesse sentido, pode-se
compreender como se constituiu a questão das favelas, eram “resultado de uma subordinação
extrema e a expressão de um imenso diferencial de poder” (MACHADO DA SILVA, 2002:
263). Os movimentos de “trabalhadores favelados” - eixo organizador da segunda parte desta
tese – e outros tipos de performances desenvolvidas pelos atores das (e nas) favelas, ao longo
do século XX, procuraram disputar esse enquadramento, que se constituiu como um
dispositivo de dominação.
62
2 A QUESTÃO DAS FAVELAS E A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL PARA
RECUPERAÇÃO DOS “MARGINAIS”
A identificação da favela como “problema” urbano muito cedo se vinculou à reflexão
do modo como se recuperaria o espaço urbano e os favelados – a alteração do modus vivendi
das populações classificadas como “marginais”. Na maior parte do século XX, a questão da
favela foi vista como um tópico do déficit habitacional e da assistência social, com poucas
considerações à visão de mundo e às práticas articuladas pelos moradores. O intento de
categorização jurídica das favelas no processo de urbanização das duas cidades seguiu de
perto as primeiras iniciativas “desfavelamento”, com a criação de órgãos e departamento
específicos para tratar do tema. O Código de Obras de 1937, no Rio de Janeiro, propugnava a
substituição dos espaços das favelas com a construção de habitações higiênicas – como foi
realizado com a criação dos parques proletários na década de 1940. Em Belo Horizonte, a lei
572 foi acompanhada da constituição da primeira repartição municipal a atuar com a
promoção de uma política habitacional para “desfavelar” a cidade – o DBP – criado em 1955.
A identificação tornou-se central na ação do Estado para abordar a questão social,
diante do déficit habitacional no processo de rápida urbanização brasileira. Como observou
Silva, a partir da década de 1930, assistiu-se “a um incremento da urbanização e
industrialização com base no modelo de substituição de importações, que adquiriu intensidade
especial nos anos do pós-guerra”. Assim, “de um lado, se investe em núcleos metropolitanos,
criando condições para aquela acumulação; de outro, depara-se com a crescente e intensa
migração para esses núcleos, migração que se aloja predominantemente em favelas e
periferias” (SILVA, 2005: 44). No imaginário da época e na linguagem estatal, os moradores
em favelas e migrantes foram percebidos como vítimas do desenvolvimento urbano-industrial
e “marginais” aos processos socioeconômicos.
Nos enquadramentos estabelecidos pelas diferentes políticas públicas, eles eram
caracterizados como migrantes deslocados da vida urbana, chamados de “rurícolas”,
“faveleiros”, “desajustados”. Essas caracterizações eram oriundas, principalmente, da
dicotomia “marginal/trabalhador”, que ganhava diversos sentidos, a depender da posição e
situação de interação social. Essa gramática relacionada ao problema urbano das favelas foi
um dos principais vetores para nacionalização da representação das favelas através das
estatísticas e do debate instituído na Comissão Nacional de Bem-Estar Social (CNBS) em
1952, como veremos nos dois próximos capítulos.
63
Nos anos 1940 e 1950, a retórica da marginalidade urbana tinha duas faces: acionava
um discurso de denúncia da desigualdade, com fins de justificar a expansão de direitos
sociais, ao mesmo tempo que reforçava os recursos de controle social e urbanísticos que
justificaram a percepção dos moradores como alheios a critérios de urbanidade. O paradoxo
da retórica da marginalidade constituiu-se na proposição de um discurso humanitário, que
pretendia estender direitos, bens de consumo e estilo de vida, mas que reafirmava os estigmas
e a expectativa de alteração do modo de vida das favelas e que, com o objetivo de controle
social, evitava (e mascarava) os confrontos e tensões com trabalhadores atendidos de forma
seletiva pelo poder público. Ademais, deve-se lembrar de que essa ambiguidade na
abordagem da questão social não é específica à questão das favelas, mas um traço constitutivo
de diversas práticas estatais que instituíram o direito social. Afinal, o período em foco
manteve como horizonte de expectativa a extensão do Estado de Bem-Estar Social – a
constituição da proteção ao trabalhador assalariado, mas o direito social não se generalizou,
nem atingiu a maior parte da população brasileira. Ficou restrito aos trabalhadores
assalariados, com Carteira de Trabalho, e sindicalizados no meio urbano (SANTOS, 1979;
CARVALHO, 2005; CARDOSO, 2010).
As propostas de desfavelamento das cidades foram, em sua maioria, constituídas na
perspectiva de extensão do direito dos assalariados por meio do Serviço Social, e com claro
intento de selecionar e transformar os marginais em famílias de “trabalhadores” inseridas no
mundo urbano-industrial. Ainda que a matriz prática e discursiva do Serviço Social fosse o
mote das iniciativas desenvolvidas em cada cidade, o processo de implantação foi diferente,
delineada por instituições e temporalidades específicas de cada lugar.
2.1 As políticas de “desfavelamento” no Rio de Janeiro
É importante reconhecer novamente a centralidade do Rio de Janeiro para o debate
público sobre as favelas e a política urbana. Capital da República até 1960, o tecido urbano
carioca serviu de vitrine para inúmeros projetos de remodelação do espaço e da sociedade no
processo de modernização brasileiro.
Em 1940, o prefeito Henrique Dodsworth (1937-1945), indicado por Getúlio Vargas
durante o Estado Novo, nomeou uma comissão subordinada ao Secretário de Saúde e
Assistência do Distrito Federal, com objetivo de elaborar um estudo sobre o problema das
favelas. Dessa iniciativa e do estudo realizado em 14 favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro,
64
coordenado por Victor Tavares Moura, foi introduzida a proposta dos “parques proletários”53
.
No Departamento de Assistência e Saúde, foi criado o Serviço de Parques Proletários
Provisórios, em 1943, com objetivo de construir habitações, remover favelados e promover
uma reeducação do morador em favela, construindo um projeto civilizacional de reeducação
para a sociedade urbano-industrial. Além das casas de madeira, os parques proletários seriam
providos de posto médico e escola, e ficariam sob a administração de um encarregado
nomeado pelo prefeito. Ao serem transferidos para o Parque Proletário, os moradores
cumpririam um código moral prescrito Estado (PARISSE, 1969; LEEDS & LEEDS, 1979;
VALLA, 1986; BURGOS, 2002; VALLADARES, 2005; MEDEIROS, 2009).
Entre 1943 e 1945, foram construídos o Parque Proletário nº 1 (Gávea), o nº 2 (Caju),
o nº 3 (Praia Pinto) e o nº 4 (Amorim). Eles permaneceram ligados à Prefeitura do Distrito
Federal até 1962, quando foram incorporados à Secretaria de Serviço Social do Estado da
Guanabara; durante todo esse período, foram reformados e administrados pela
municipalidade, servindo de lugar para realocação de favelas removidas ou atingidas por
algum tipo de desastre. Em 1950, os parques proletários já eram classificados como “favelas”,
criticados por não cumprir o objetivo de reeducação do morador, e deteriorados por não haver
reformas nos referidos espaços. Isso não impediu que a Prefeitura do Distrito Federal
continuasse a propugnar como solução para as favelas a construção de “parques proletários” e
a sua expansão, reforma e manutenção.
De acordo com Rodrigues, um dos componentes da política de “parques proletários”
foi a busca por terrenos em áreas intersticiais da cidade, a fim de transferir e reassentar
moradores de favelas ameaçados de despejo. Assim, “enquanto não encontrava solução para a
construção de habitações baratas, o governo lançava mão de uma política fundiária para
apaziguar os ânimos dos moradores de favelas, em meio a disputas com proprietários de
terrenos que impetravam contra eles ações de despejo” (RODRIGUES, 2009: 4). A criação de
assentamentos, aproveitando terrenos públicos para deslocamento de moradores em favelas e
ameaçados de perder a moradia, foi um dos traços da política pública que permaneceu nos
anos 1940 e 1950. Muitos desses assentamentos eram divulgados e reconhecidos como
“parques proletários”.
Os parques proletários, dentro dos parâmetros da medicina social de Victor Tavares
Moura, tinham o propósito de conter o “vício social” e a “promiscuidade” das favelas. Outra
53
Entre 1941 e 1943, foram recenseados Buraco Quente, Estrada da Gávea, São Vicente, Cezar Duarte, Olaria,
Praia do Pinto, Guarda Nacional, Humaitá, Morro Seco, Fonte da Saudade, Catacumba, Cabritos, Cantagalo,
Largo da Memória.
65
iniciativa contemporânea à política pública carioca foi a Liga Contra Mocambos, promovida
por Agamenon Magalhães Recife (PE). Ambas as políticas públicas tinham características
semelhantes, em Recife combatia-se e se pretendia erradicar os mocambos. Além disso, outra
perspectiva que contribuiu para a constituição da ação pública através dos Parques Proletários
Provisórios foi a do Serviço Social. Em 1939, a Secretaria Geral de Saúde e Assistência
formou uma turma para o curso que seria institucionalizado em 1944, com a Escola Técnica
de Assistência Social Cecy Dodsworth (posteriormente, a Faculdade de Serviço Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Segundo Maria Isolina Pinheiro, uma das
“pioneiras sociais”, os Parques Proletários
rapidamente transformaram três favelas em Parques interessantes. A criança era o
ponto culminante de qualquer iniciativa. E este era o caminho certo. Criou o Serviço
de Reeducação Familiar que esteve sob direção da Professora Maria Isolina
Pinheiro. Esse Serviço conseguiu junto às famílias e seus filhos resultados
extraordinários quanto à educação higiênica; frequência escolar, espírito de
cooperação e disciplina. As Visitadoras Sociais, penetrando nos lares, conseguiram
modificar, de um modo geral, o ambiente doméstico (PINHEIRO, 1985: 87).
A “ciência da solidariedade” tinha como ênfase a proteção social do pobre, mas
também a sua transformação, modificando seus hábitos e costumes, instituindo uma nova
ordem social. A política pública atuaria na indisciplina, promiscuidade e desordem urbana,
vistas como sinônimo de desajuste social e foco de “males anarquizantes” responsáveis pela
dissolução da solidariedade social. O Serviço Social em seus primeiros anos permanecia
ligado a um discurso utópico de caráter moralizador e disciplinador das famílias pobres e do
trabalhador.
A profissionalização da assistência social no âmbito da política pública governamental
colocou ênfase na distinção entre o serviço permanente, realizado por profissionais formados,
e a filantropia/caridade, organizada por instituições privadas. Por isso, é interessante notar
aqui o caráter neutro e técnico reivindicado pela chamada “ciência da solidariedade” que
procurou sua formalização como profissão e política de estado. Não só manuais enfatizavam
esse aspecto, como também a experiência das assistentes que foram reconhecidas e
consagradas na memória social como “pioneiras”. Maria Isolina, por exemplo, considerava
que “o conceito de filantropia, esmola, caridade, desapareceu de há muito para ser substituído
pelo dever, trivial obrigação para todos”; nesse novo tempo, a “solidariedade tornou-se uma
quase ciência, com caráter acentuadamente técnico” (Idem, 1985: 39). Ademais, durante o
Estado Novo, a profissão de Serviço Social foi institucionalizada e estimulada, com a criação
66
do Conselho Nacional do Serviço Social (1938), da Legião Brasileira de Assistência Social
(1942) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI (1942).
O discurso científico e utópico do Serviço Social confundia-se com o objetivo de
disciplinar o trabalhador pobre e sua família, “adaptando-os” à sociedade urbano-industrial.
Esse mote pode ser vislumbrado numa das imagens escolhidas para divulgar a Escola Técnica
de Assistência Social Cecy Dodsworth, quando “Dona Maria Isolina Pinheiro” era diretora da
instituição em 1944 (veja a imagem abaixo).
Folheto de divulgação da "Escola Técnica de Assistência Social", 1944, apud PINHEIRO, 1985: 8.
A imagem é bastante reveladora, uma vez que vislumbra os significados atribuídos à
ação do Serviço Social entre a década de 1940 e 1964. Num primeiro plano, em destaque,
observamos uma mulher cuidando de uma criança, evocando a função social da mulher como
mãe. O folheto, além de sugerir a maternidade, revela ao fundo, do lado esquerdo da imagem,
uma fábrica, um conjunto de casas reunidas e homens trabalhando em hortas. Separa-se o
lugar da fábrica e do lar, mas também sinaliza para a complementaridade dos dois espaços. A
ordem no universo doméstico reforçava e complementava a produtividade da indústria,
elemento central na modernização projetada durante o governo de Getúlio Vargas e
perseguida por outros governos após a década de 1930.
67
O paradigma do Serviço Social divulgado na fundação da Escola Cecy Dodsworth e
perseguido posteriormente por outras profissionais dialogava com o intento de promover o
desenvolvimento industrial e formatar um modelo de trabalhador e família adequado a esse
propósito. A temática de um tratamento “técnico” da pobreza urbana perpassava as políticas
públicas do período e contrapunha-se à caridade e filantropia de instituições religiosas e
privadas, uma vez que o Estado teria prioridade no enfrentamento da questão social. Como
observou Iamamoto, a fundação das escolas e a institucionalização do Serviço Social no
Brasil estavam fortemente entrelaçadas ao objetivo de controlar e disciplinar a classe operária
no processo de modernização social (IAMAMOTO & CARVALHO, 2013).
2.1.1 Fundação Leão XIII
Reconhecer o sentido das práticas instituídas pelo serviço social é bastante importante,
visto que esse foi um dos vetores centrais para a formação de políticas nas favelas ao longo
dos anos 1940 e 1950. Em 1947, o prefeito Hidelbrando de Araújo Góes (1946-1947) criou
outra instituição para promover a assistência social: a Fundação Leão XIII. Já que era parte de
um acordo da municipalidade com o cardeal Dom Jaime Barros, a Fundação Leão XIII foi
administrada por uma junta que representava a igreja católica e o município. O bispo auxiliar
Dom José Távora foi o principal patrono da instituição em seus primeiros anos e seu diretor
entre 1949 e 1955. Ainda que seja bastante complexa a história dessa administração conjunta,
convém salientar que a instituição foi um dos principais braços da política pública praticada
pela municipalidade, sendo incorporada à administração direta, ligada à Secretaria de Serviço
Social do Estado da Guanabara em 1961 (VALLA, 1986; HONORATO, 2012).
O principal objetivo da entidade era “prestar ampla assistência social aos moradores
dos morros, das favelas e de locais semelhantes na Cidade do Rio de Janeiro”, fornecendo
“assistência material e moral”. A instituição estava autorizada a manter “escolas,
ambulatórios, creches, maternidades, cozinhas e vilas populares”54
. Como é fácil perceber
pela legislação, a principal preocupação da instituição era a recuperação e o atendimento das
famílias e crianças, tendo em vista um projeto civilizacional de recuperação dos “pobres”.
Para tanto, foram construídos e mantidos seis Centros de Ação Social (Barreira do Vasco, São
Carlos, Jacarezinho, Morro dos Telégrafos, Salgueiro e Rocinha) e duas Agências Sociais
54
PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 8.797, de 8 de fevereiro de 1947. Diário Oficial da
União, 11/02/1947. p. 897.
68
(Praia do Pinto e Cantagalo). Nesses espaços, foram mantidos o ensino primário, o curso
noturno para adultos, o curso de corte e costura e de trabalhos manuais, o curso de ensino
religioso, vários lactários e serviços médico-dentários. Esses cursos e serviços eram
limitados, não universalizados para todos os moradores. Não é possível conhecer os critérios
de escolha entre quem seria atendido.
Entre 1947 e 1950, a Fundação Leão XIII, com auxílio de verbas do governo federal e
do Instituto de Previdência Social dos Industriários (IAPI), construiu e administrou uma vila
operária, um conjunto de casas geminadas na Barreira do Vasco. A iniciativa coadunava-se à
política habitacional que foi estimulada no governo Dutra (1946-1950)55
. No relatório de
1949, a Fundação Leão XIII divulgava a ideia de uma urbanização seletiva, visto que “há
favelas que se devem extinguir e seus moradores, localizados em vilas populares, [devem ser
relocados] noutras zonas. Há favelas que se devem transformar, aos poucos, em bairros
populares, pela construção de casas mediante planos de urbanização”56
. Entretanto essa foi
uma iniciativa que não teve continuidade em outras localidades; o principal mote da entidade
era a atuação no campo do serviço social e também na construção de alguns melhoramentos,
como torneiras públicas (bicas de água). Pelo programa, “A Fundação Leão XIII e seu plano
de trabalho”, escrito em parte pela assistente social Maria Luiza Moniz Aragão, a organização
tinha como finalidade
pugnar pela extinção progressiva das favelas, educar o habitante da favela e criar,
para ele, um ambiente de sadia moralidade por médio dos seus Centros de Ação
Social, célula mater de todo o movimento social popular. Implantados seus Centros
no próprio âmago da favela, procura o Serviço Social revolucionar o meio, de forma
a suscitar o aparecimento do espírito de responsabilidade familiar e social, de amor
ao trabalho e ao Brasil, de compreensão humana e solidariedade cristã57
.
Criada num momento de crescimento do Partido Comunista (PCB), que elegeu um
senador pelo Distrito Federal (Luís Carlos Prestes) e formou a maioria na Câmara Municipal
da cidade (uma bancada com 14 vereadores), a Fundação Leão XIII objetivou conter a
mobilização operária de cunho esquerdista nas favelas. No movimento político eleitoral de
1946, o PCB ajudou a criar associações civis de moradores, os Comitês Populares, e interferiu
na dinâmica sociopolítica das escolas de samba (GUIMARÃES, 2009). Dado que vivenciou o
momento de recrudescimento do embate entre bloco capitalista (liderado pelos Estados
Unidos da América) e bloco socialista (liderado pela União Soviética) na Guerra Fria, a
55
A criação da Fundação da Casa Popular, em 1947, será analisada no capítulo 4 desta tese. 56
COMO trabalha a Fundação Leão XIII, 1950: 43. 57
Idem, p. 84.
69
Fundação Leão XIII foi um braço do anticomunismo oficial e católico na cidade do Rio de
Janeiro. Não por outro motivo, ela manteve um Serviço Associativo que tinha como objetivo
“orientar” os moradores, evitando “agitações que poderiam ser exploradas por empreiteiros da
desordem”58
A ação intensiva da igreja católica tencionava a interferência nas disputas
políticas que transcorriam nas favelas cariocas (VALLA, 1986; LIMA, 1989; BURGOS,
2002; VALLADARES, 2005; SOARES, 2013).
Em 1948, o Departamento Nacional de Gás e Iluminação, com objetivo de controlar o
fornecimento de luz em favelas por meio de um medidor único, apresentou a Fundação Leão
XIII como entidade organizadora da distribuição de luz59
. Tentava-se registrar um morador
como “responsável” pela distribuição, com objetivo de cobrar providências do mesmo em
caso de descumprimento ou irregularidade na distribuição de energia; o Centro de Ação
Social, anteriormente encarregado dessa distribuição, foi substituído pela Fundação. O
Serviço Associativo foi o órgão responsável pelo atendimento às demandas por instalação de
medidores em várias favelas e, dessa forma, a distribuição de energia tornou-se um importante
recurso associativo e político nas favelas.
Através dos Centros de Ação Social, das Agências Sociais e do Serviço de
Associação, estima-se que a Fundação Leão XIII esteve presente em cerca de trinta e três
favelas (VALLA, 1986; SOARES, 2013). Na década de 1950, ela mantinha um cadastro e um
controle sobre a população, o que seria importante na gestão dos territórios e da aplicação de
políticas públicas. Em 1952, por exemplo, a Prefeitura do Distrito Federal fez um acordo com
o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Servidores do Estado (IPASE) para construir casas
para os “trabalhadores favelados”; a Fundação seria a agência que avalizaria a condição de
“morador de favela” e que daria acesso ao financiamento das casas. Ademais, em várias
situações, a Fundação seria acionada para opinar e discutir os destinos das favelas cariocas,
bem como para direcionar e selecionar moradores de áreas removidas para outras localidades
(FERNANDES & COSTA, 2009:120).
A atuação da Fundação teve grande destaque e perenidade. Em várias situações, foi
acionada como exemplo de “solução”, com intuito de discutir os destinos das políticas
públicas para as favelas cariocas. Entre 1952 e 1955, foi uma instituição presente em todas as
Comissões de Favelas formadas no executivo municipal; quando foi criado o Serviço de
Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (SERFHA) em 1956, a Fundação
58
Ibidem, p. 100. 59
DEPARTAMENTO NACIONAL DE ILUMINAÇÃO E GÁS. Portaria nº 1, de 6 de abril de 1948. Diário
Oficial da União, 09/04/1948. p. 5685.
70
também tinha um representante no conselho do referido órgão. O trabalho da instituição,
como vários autores já apontaram, esteve alicerçado num forte sentimento anticomunista, para
evitar o domínio político e ideológico do PCB no cenário carioca e difundir a ideologia social
cristã através de uma prática assistencialista às famílias pobres. Na base de suas práticas,
estava a questão da formação de uma identidade social para a classe trabalhadora afinada com
os ideais de paz social e colaboração com o Estado.
2.1.2 Comissão de Favelas da PDF
Nos anos 1950, houve várias tentativas de coordenar e centralizar os órgãos de política
pública. Tanto o executivo quanto o legislativo municipal ensaiaram projetos que
centralizavam numa autarquia as várias funções e práticas desenvolvidas em diferentes
segmentos da administração que enfocavam a favela. Essa expectativa foi, em alguma
medida, alcançada com a Comissão de Favelas nomeada em 1952, diretamente ligada ao
gabinete do prefeito, com objetivo de coordenar as diversas políticas municipais. A
municipalidade já havia criado outras comissões de favelas: em 1940, uma subordinada à
Secretaria Geral de Assistência e Saúde e coordenada por Victor Tavares Moura; em 1948,
uma que reunia várias subcomissões para coordenar o Plano de Extinção de Favelas em apoio
à comissão interministerial formada pelo governo Dutra (1946-1951). A partir da iniciativa
de João Carlos Vital (1951-1952), em 1952, outra comissão foi institucionalizada com
objetivo de coordenar as várias secretarias, serviços e departamentos que tratavam da questão
da favela no município. Esse formato de comissão iria perdurar até 1956, quando foi criado o
Serviço de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas.
A Comissão de Favelas de 1952 tinha um caráter diretivo no governo da cidade.
Diferenciando-se da que existia anteriormente, tinha um presidente que assumia, na cena
pública, os posicionamentos do governo diante da questão das favelas. Segundo a portaria
municipal de janeiro de 1952, o médico Guilherme Romano foi nomeado chefe da referida
comissão, com a função de executar o estudo e a coordenação dos diversos serviços no âmbito
municipal que tinham atuação nas favelas, “promovendo a solução de seus problemas ligados
à engenharia sanitária, à assistência médica e social, incumbindo-lhe tomar todas as
providências aconselháveis para o cabal desempenho de suas atribuições, inclusive requisitar
ao Prefeito o pessoal e material necessários, e ficando-lhe facultado, outrossim, no exercício
de suas funções, dirigir-se diretamente aos Secretários Gerais e demais autoridades
71
municipais”60
. Esse caráter diretivo da Comissão de Favelas era percebido pelas elites
políticas e imprensa, que lhe atribuíam o nome de “Superintendência Geral de Favelas”. Na
bibliografia, a Comissão de Favelas é constantemente associada a Guilherme Romano e ao
“Serviço de Recuperação de Favelas” (PARISSE, 1969; LEEDS & LEEDS, 1979; SILVA,
2005; SOARES, 2013).
A Comissão de Favelas instituída a partir de 1952 tinha um caráter diretivo no governo
da cidade, diferenciando-a das comissões que existiram anteriormente. Ela coordenava várias
secretarias que já atuavam em favelas, era, portanto, diferente da comissão de 1948, que foi
formada por sete subcomissões (“Subcomissão de Busca e Aquisição de Terreno, de Projetos,
Construção e Recuperação de Material, de Finanças e Donativos, de Polícia, de Estatística e
Seleção dos Habitantes das Favelas, de Distribuição de Casas e Mudança e de Saúde e
Assistência Social”)61
. Além do caráter diretivo e centralizador na coordenação de diversos
serviços, a comissão organizada pelo prefeito João Carlos Vital era permanente; ela não era a
reunião de várias subcomissões para a execução do “Plano Geral para a Solução do Problema
das favelas” - como ficou definido em 1948. Esse traço permaneceria nos anos seguintes com
a nomeação de outras Comissões de Favelas na Prefeitura do Distrito Federal62
até a sua
extinção em 1956 – quando foi substituída pelo Serviço de Recuperação de Favelas e
Habitações Anti-Higiênicas (SERFHA).
A atuação de Guilherme Romano enquadrava o “problema das favelas” no projeto da
Comissão Nacional de Bem Estar-Social (CNBS). Criada no segundo governo de Getúlio
Vargas (1951-1955), CNBS era vinculada ao Ministério do Trabalho e ao debate sobre a
60
PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Portaria nº 59, de 23 de fevereiro de 1952. Diário Oficial da
União, 25/02/1952. Seção II, p. 1. 61
PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Portaria nº 2.148, de 3 de julho de 1948. Diário Oficial da União,
09/07/1948. Rio de Janeiro, p. 6976. 62
Em 1952, Guilherme Romano aparece como figura central da Comissão de Favelas, nomeada pelo prefeito
João Vital (1951-1952). Em 1953, Getúlio Vargas nomeia Dulcídio Cardoso (1952-1954), que nomeia outra
Comissão de Favelas, constituída por Osvaldo Melchiades, da Polícia de Vigilância (presidente da mesma
comissão); José Vicente Távora, da Fundação Leão XIII; Carmem Portinho, do Departamento de Habitação
Popular; Geraldo Moreira, diretor do Departamento de Indústria e Comércio; Almir de Castro, da Comissão
Nacional de Bem-Estar Social; e o engenheiro Benjamin de Araújo Carvalho. Em 1954, com a queda de Getúlio
Vargas e ascensão de Carlos Luz, nomeia-se outro prefeito para a cidade, Pedro Alim (1954-1955). Em 1955, ele
nomeou novos membros para a comissão: o engenheiro José Henrique Queiroz, que acumulou o cargo de
representante da prefeitura na Fundação Leão XIII e de presidente da comissão; Maria Luíza Muniz Aragão,
assistente social da Fundação Leão XIII; e o engenheiro Ronaldo Mathiesen Monteiro, chefe do Departamento
de Fiscalização Antônio de Sousa Teixeira. Cf. PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Portaria nº 59, de 23
de fevereiro de 1952. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro. 25/02/1953, p. 1; PREFEITURA DO DISTRITO
FEDERAL. Portaria nº 510, de 28 de janeiro de 1950. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 30/01/1953. p.
810; PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Portaria nº 70, de 30 de janeiro de 1953. Diário Oficial da
União. Rio de Janeiro, 02/02/1953. p. 872; PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Portaria nº 2, de 4 de
janeiro de 1955. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 05/01/1955. p. 71-72.
72
extensão da proteção social ao trabalhador brasileiro63
. Esse traço também era um diferencial
em relação ao “Plano Geral para a Solução das Favelas” do Distrito Federal promovido pela
gestão anterior. Em 1948, a ação da Comissão de Favelas era uma resposta do presidente
Eurico Gaspar Dutra e do prefeito Ângelo Mendes de Morais (1947-1951) à campanha
jornalística intitulada “Batalha do Rio de Janeiro”. A campanha liderada por Carlos Lacerda,
entre os meses de maio e julho de 1948 no jornal Correio da Manhã, ganhou repercussão em
vários outros periódicos. O plano municipal de 1948 não dialogava com todos os aspectos
levantados na campanha jornalística, mas aproveitou o mote da “batalha” para operar com a
ideia de uma rápida intervenção militar que eliminasse as favelas no período de um ano. O
plano era dividido em três fases: na primeira, realizar-se-ia o estudo estatístico da “Fase
Preparatória” para conhecer as favelas; na segunda, far-se-ia uma “Apreciação dos ‘meios’”;
na terceira, a municipalidade desencadearia uma ação final, O “Dia D”, que se prolongaria por
um ano. O documento fala em “Dia D+30”, “Dia D+60”, entre outros, num escalonamento
progressivo da ação. Seguindo um vocabulário e uma lógica de ação de guerra, o plano
realizaria vários “expurgos”, num plano de interdição da vida nas favelas e seleção dos
moradores através de várias categorias de exceção e acusatórias. Segundo o “Plano Geral para
a Solução das Favelas”, em sua fase final, haveria o “Desencadeamento da Ação” da seguinte
forma:
A) Iniciadas as providências da letra C, no dia D:
a) interdição absoluta da favela nesse dia.
b) encaminhamento dos “expurgados”:
1) Amparados pelos institutos de previdência e indústria (Ministério do
Trabalho);
2) Entrega à Polícia Civil (vadios, prostitutas, criminosos e
exploradores);
3) Fechamento e demolição das “biroscas” (biroscas, botequins
cabarés, casas de jogo e de tolerância);
4) Suspensão de pagamento de aluguel por todo e qualquer favelado;
5) Encaminhamento para asilos, institutos, internatos e hospitais dos
velhos, crianças, enfermos;
6) Destruição dos casebres abandonados ou desocupados e dos que
surjam depois do dia D;
7) Demolição dos que ofereçam perigo, encaminhando-se as famílias
para o Albergue e outros destinos;
8) Entrega aos governos estaduais, com transporte e auxílio, aos que
desejarem retornar à origem e à lavoura;
9) Encaminhamento dos desempregados que possuam profissão e
63
Criada na passagem de 1951 para 1952 pelo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), a CNBS funcionou até
1955. Tinha como objetivo a racionalização da política social, estabelecendo várias subcomissões que debatiam a
extensão da proteção social ao trabalhador. Na subcomissão de Habitação e Favela, estabeleceu-se pela primeira
vez um debate nacional sobre uma política para a questão das favelas. Cf. Capítulo IV desta tese.
73
desejam emprego no Distrito Federal (São Francisco, Siderúrgica e
outros);
10) Estrangeiros indesejáveis – Polícia Civil e Ministério do Exterior.64
Apesar de diferente, não devemos entender o plano de 1948 como a excrescência de
um regime político ou a expressão de uma pessoa. O plano era um fato público e inserido nos
parâmetros culturais e políticos da época que entendia a favela como um espaço transitório da
cidade. Não cometamos o anacronismo de achar que a violência dos “expurgos” (um
vocabulário de cunho higienista e racista, próximo ao discurso eugênico) é um elemento
exterior à sociedade e ao regime que o produziu. Essa noção de “expurgo” foi produto social
consumido e reproduzido em outras ocasiões, e teve forte lastro na produção dos regimes de
urbanidade lançados no âmbito do município carioca.
Destarte, podemos compreender que, apesar de colocar a questão social em evidência,
articulando-a ao Ministério do Trabalho, a Comissão de Favelas dirigida por Guilherme
Romano também enquadrava sua prática numa “batalha” de cunho moral e social. Identificava
na favela um “mal” a ser “expurgado” da cidade, com a respectiva “recuperação” dos
cidadãos para a sociedade urbano-industrial. Ainda que Guilherme Romano afastasse o
horizonte de uma guerra e de um plano militar para o “expurgo” das favelas no “Dia D” que
se estenderia para o prazo de um ano, também dialogava com as categorias de exceção
construídas pela ótica assistencial e pela dimensão jurídico-urbanística, tais aspectos
enfatizavam a ilegalidade das favelas.
Além disso, a “Batalha do Rio” em 1948 criou um tropos na retórica jornalística65
, que
seria recuperado ao longo da década de 1950, para legitimar os projetos de intervenção nas
favelas cariocas. A “Batalha das Favelas” era uma figura retórica de referência na imprensa
carioca, mesmo quando os projetos diferiam-se daquilo que foi elaborado em 1948. A
campanha de Lacerda teve tal repercussão nos órgãos de imprensa e fixação no imaginário
social que, em 1955, o jornalista Edmar Morel escreveu uma série de reportagens sobre os
descaminhos das várias “soluções” encontradas pelo poder público para as favelas. Ele
intitulou a série de reportagens da seguinte maneira: “A História secreta da Batalha das
64
PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Problema das Favelas do Distrito Federal. Diário Oficial da União,
15/07/1948. p. 4824-4825. 65
Na retórica, o tropos é uma figura de linguagem que pode ser classificada como uma metáfora, metonímia,
sinédoque ou ironia. Hayden White, em Tropos do discurso (2001), fala do tropos como uma “sombra” que
perpassa o sentido literal do discurso, apontando para a subjetividade e as conotações éticas e políticas que
estruturam a pretensão de objetividade e neutralidade de uma narrativa. A ideia de construir uma análise do
social e do discurso midiático a partir de modelos retóricos pode ser visto também no trabalho de Leite (2000),
quando aborda a “metáfora da guerra” para a análise do Rio de Janeiro nos anos 1990.
74
Favelas”.66
No mesmo ano da reportagem de Edmar Morel, Dom Helder Câmara lançou, no
período, a sua batalha religiosa, uma “cruzada” – a Cruzada São Sebastião. Por meio da figura
retórica da “batalha”, eram discutidas a ordem capitalista, o estilo de vida dos citadinos em
contraposição à “favelização” e os limites de vários tipos de intervenção urbana. No momento
da criação da Comissão de Favelas, em 1952, Guilherme Romano teve destaque na imprensa
carioca e também anunciou sua “batalha”:
O problema das favelas cariocas – acentuou o Dr. Guilherme Romano – está sendo
encarado por mim e pelos meus assessores, de acordo com um programa que
esbocei, como uma questão que não se solucionará senão com a ajuda de várias
entidades de Previdência e Assistência, dos Estados interessados e, sobretudo, dos
órgãos técnicos que mais diretamente entrarão em contato com o problema. Pelo
referido esboço, atendendo-se tanto possível ao que já existe estudado e planejado
até o momento – iniciaremos a chamada “batalha das favelas” ainda hoje, pondo em
execução: 1) medidas de urbanização, com um mínimo de higiene e segurança dos
seus habitantes que se dediquem ao trabalho e ao sustento de suas famílias; 2)
entregar aos respectivos órgãos de Previdência, Assistência etc., os problemas que
formos levantando aos respectivos contribuintes e associados das favelas; 3)
expurgar elementos indesejáveis, inclusive os exploradores das favelas. Será dado
todo apoio aos trabalhadores, dispensando todo o rigor possível, de acordo com a lei,
aos elementos que perturbam a vida das famílias ali residentes e da população em
geral; 4) garantir água, luz, esgoto, ordem e higiene, dentro das condições de sua
vida de trabalhadores favelados; construção de um Parque Proletário para o qual será
transferido, progressivamente, a população da primeira favela a ser atacada,
provavelmente a de Jacarezinho; 5) adoção de medidas em colaboração com a
Chefia de Polícia, visando a que novos barracos não sejam construídos e a que, por
consequência, não se criem novos núcleos de favelados67
.
Na reportagem publicada no diário A Noite, o médico destacava o intento de cumprir o
desejo do Presidente Vargas, de “dar aos favelados melhores condições de vida”, fazendo uma
referência ao plano nacional de extinção de favelas anunciado pela CNBS68
. Tendo em vista a
colaboração com a CNBS, que gerava uma expectativa de unificação de recursos para
aplicação na habitação popular e um planejamento de escala nacional, a norma que regulou a
Comissão de Favelas sugeria que a execução de obras de engenharia e de assistência médica e
social não prejudicava “a realização de empreendimentos de maior vulto à solução, em maior
profundidade, do chamado ‘problema das favelas’ do Distrito Federal, e que se empenha
somente no Executivo Municipal, programando, inclusive, a construção de grandes conjuntos
residenciais populares”69
. Na percepção de Guilherme Romano, o Ministério do Trabalho,
através da CNBS, traçou um “roteiro que [coordenava] as atividades da administração pública
66
Para a leitura do conjunto de reportagens de Edmar Morel, veja o mês de novembro de 1955 do jornal Última
Hora. No mesmo período, foi lançada a “batalha” da Igreja católica, a Cruzada São Sebastião. 67
COMEÇA hoje a Batalha das Favelas. A Noite. Rio de Janeiro, 03/03/1952, p. 1,6. 68
Idem. 69
PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Portaria nº 59, de 23 de fevereiro de 1952. Diário Oficial da
União, 25/02/1952. p. 1.
75
em todos os seus planos para a solução” do problema das favelas, oferecendo “ao órgão
executor que é a Municipalidade, a assistência para o planejamento”70
.
O programa esboçado por Romano tinha como foco a “urbanização” das favelas. O
termo não significava a generalização de bens e serviços para favelas, mas a promoção de
uma ideologia urbana e de um projeto de civilidade e de educação para os moradores de
favelas. Isso implicava uma distinção entre “trabalhador favelado” e “elementos
indesejáveis”, numa seletividade constituída entre as favelas que receberiam a “urbanização”.
As medidas de urbanização seriam direcionadas “[àqueles] que se dedicassem ao trabalho e ao
sustento da família”; nesse mesmo viés, falava-se em encaminhar as famílias de trabalhadores
à Previdência Social e à assistência. A favela do Jacarezinho, por situar-se na Zona Norte, no
distrito industrial da cidade do Rio de Janeiro, e por estar associada à representação da “favela
fabril”71
, era apontada como aquela que primeiramente seria “recuperada”. Na Zona Sul do
Rio de Janeiro, a Praia do Pinto, situada na Lagoa Rodrigo de Freitas, era caracterizada como
a favela a ser removida. É interessante pensar que em 1955, D. Helder Câmara, em sua
batalha, também falava em urbanizar as favelas, justificando a ação em vista da maioria de
trabalhadores e associados da Previdência Social. Contudo inverteria a lógica de Romano,
designaria a Praia Pinto, na Zona Sul carioca, como beneficiária da obra de recuperação dos
trabalhadores, com o objetivo cristão de denunciar o “egoísmo burguês”.
Nesse projeto de “urbanização” e “humanização” das favelas, ao mesmo tempo que
havia uma preocupação com a heterogeneidade das favelas, com o conhecimento e a
diferenciação dos tipos sociais e da caracterização das formas de ocupação, falava-se também
numa seletividade para a erradicação da marginalidade social. Tratar o morador de favela
como um trabalhador, reconhecer sua inserção no mercado e sua contribuição para os
Institutos de Aposentadoria e Pensão, não implicava apagar as categorias de exceção, mas
operar uma seletividade na ótica do serviço social. Falava-se em “expurgos” que seriam feitos
contra os indivíduos que não comprovassem serem trabalhadores e contra os “exploradores de
favelas” - o segmento que, vivendo ou não em favela, alugava barracos ou o chão, controlava
o acesso a fontes de água ou às “bicas” (torneiras públicas), e outros negócios articulados
naqueles espaços.
No intento de promover a reforma social e construir um ethos de trabalhador ordeiro, a
Comissão de Favelas promoveu acordos para construção de habitações populares. Em 1952,
70
HIGIENE e segurança aos habitantes das favelas. A Noite. Rio de Janeiro. 04/03/1952. p. 1. 71
Para a discussão sobre a relação entre a formação das favelas e a constituição da zona industrial do Rio de
Janeiro, cf. FONTES & CAVALCANTI, 2011; SILVA, 2005.
76
foram removidos os moradores da favela Hípica para o conjunto habitacional Dona Castriota,
no Horto/Jardim Botânico (SILVA, 2005: 130). No mesmo ano, a municipalidade firmou
acordo com o Instituto de Previdência e Assistência Social dos Servidores do Estado (IPASE)
para a construção de habitações populares “modestas”, tendo em vista a “solução da questão
das favelas”. O acordo era contextualizado pela atuação da Comissão de Favelas junto à
CNBS, que ampliava as possibilidades de negociação com as autarquias federais,
principalmente com os institutos de previdência social. Dois empreendimentos foram
acordados para beneficiar os moradores de favelas que contribuíssem para o IPASE: a
construção de um conjunto residencial em Marechal Hermes, em terrenos que eram de
propriedade da municipalidade e cedidos para o instituto previdenciário, e a construção de
casas em Jacarepaguá, na Rua Dr. Bernardino.
As casas e o conjunto do IPASE eram direcionados aos “trabalhadores favelados”.
Segundo uma reportagem do Correio da Manhã, o diretor do IPASE explicou que
as condições para a aquisição de moradia pelos associados são as mesmas a que tem
de satisfazer os demais funcionários (...) assim, deverá o interessado fazer prova da
sua condição de favelado, apresentando certidão fornecida pela Fundação Leão XIII,
entidade que procedeu ao levantamento das favelas e condições de vida dos seus
habitantes72
.
Os critérios de seleção dos servidores na “condição de favelado” seriam bastante
restritos, visto que se limitavam àqueles que trabalhavam na administração pública, tinham
carteira assinada e contribuíam para o IPASE. Além da inserção no mercado de trabalho
regular, havia o controle instituído pela Fundação Leão XIII na certificação das famílias que
teriam acesso à “condição de favelado”. De acordo com a Instrução nº 22 do IPASE, a
“situação de favelado” garantia aos beneficiários de noventa a trezentos e sessenta pontos, de
acordo com o tempo de moradia na favela, para se qualificar no acesso às habitações
construídas pelo IPASE. Para comprovar essa “condição de favelado”, o beneficiário
dependia da Fundação Leão XIII e do cadastro de moradores mantido pela instituição73
.
A passagem de 1954 para 1955 foi um momento chave para a redefinição da política
de favelas na prefeitura do Distrito Federal. Em 1954, o movimento dos “trabalhadores
favelados”, organizado pela União dos Trabalhadores Favelados (UTF) sob forte influência
do Partido Comunista, denunciou a atuação de “grileiros”, reivindicou o “direito de moradia”
72
APARTAMENTO para os Funcionários Favelados. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 26/04/1952. Caderno 1.
p. 4. 73
INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA DOS SERVIDORES DO ESTADO. Instrução nº 22,
27/05/1952. Diário Oficial da União, 10/06/1952, p. 9583-9584.
77
e questionou a atuação da Comissão de Favelas, principalmente as arbitrariedades da polícia
de vigilância que atuava despejando e restringindo reformas e novas construções 74
. Além
disso, a morte de Getúlio Vargas e a ascensão de Carlos Luz (1954-1956) acelerou o processo
de transformação da administração municipal. A nomeação de Alim Pedro (1954-1955), com
o apoio da União Democrática Nacional e do Partido Liberal, favoreceu a reorganização dos
postos chave para a administração pública e o fortalecimento da atuação do catolicismo no
campo das favelas. No intuito de fazer frente aos protestos da UTF e estruturar a aliança com
a igreja católica, o prefeito nomeou novos membros para a Comissão de Favelas, com
predomínio da Fundação Leão XIII. O engenheiro José Henrique da Silva acumulou os cargos
de presidente da Comissão de Favelas e representante municipal na junta administrativa da
Fundação Leão XIII75
.
A aliança da municipalidade com a igreja católica no campo das favelas foi reforçada
com a realização do 36º Congresso Eucarístico Internacional. A grande imprensa publicou
uma série de reportagens que exaltavam a união entre o catolicismo e o Estado brasileiro. O
primeiro congresso eucarístico ocorreu em 1881, com o apoio do Papa Leão XIII, numa
França republicana e laica, onde a apresentações religiosas eram proibidas no espaço público.
No século XIX, congresso surgia com intento de congregar autoridades públicas com a igreja
e proclamar a fé católica, na certeza de “salvar o mundo pela eucaristia”. No 36º Congresso
no Rio de Janeiro, a retomada da aliança entre igreja católica e Estado não reproduzia a luta
contra o anticlericalismo de um regime que buscava sua origem na Revolução Francesa, mas
o combate ao “materialismo” e ao “neopaganismo” comunista no contexto da Guerra Fria76
.
O congresso reforçava o lugar da doutrina social do catolicismo, tendo em vista o
período do pós-guerra e o embate entre o bloco comunista e capitalista. Foram lembradas as
inúmeras obras da Igreja que assistiam a população brasileira onde “faltava” o Estado,
74
Ver a parte II da tese, quando discutiremos a ação e os projetos dos movimentos de trabalhadores favelados,
tendo em vista a comparação da UTF com a Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte. Essas
entidades alicerçaram-se numa aliança entre moradores de favelas de diferentes localidades e políticos ligados à
esquerda comunista, trabalhista e socialista, e, no caso de Belo Horizonte, à igreja católica, na luta pelo direito de
moradia. Tentaram se contrapor à dinâmica do mercado imobiliário e das políticas de “desfavelamento” que
precarizavam o direito à cidade dos “trabalhadores favelados”. 75
O engenheiro José Henrique da Silva acumulou cargo de presidente da Comissão de Favelas e representante
municipal na junta administrativa da Fundação Leão XIII. Além de José Henrique, a assistente social Maria
Luiza Muniz de Aragão também ocupou um cargo na Comissão de Favelas. Ela era uma intelectual do Serviço
Social que atuava na Fundação Leão XIII, escreveu o relatório do Departamento de Serviço Social da entidade
em 1949, e publicou o texto “Favela – vivem ou vegetam as 1.111 famílias da Barreira do Vasco?” - trabalhos
que serviram de orientação aos Centros Sociais e às visitações em favelas da Fundação. Cf. PREFEITURA DO
DISTRITO FEDERAL. Portaria nº 668. Diário Oficial da União, 09/11/1954, p. 6838; FUNDAÇÃO LEÃO
XIII. Morros e Favelas – Como trabalha a Fundação Leão XIII – Notas e relatório do exercício de 1949. Rio de
Janeiro: Laemmert, 1950. p. 83-92 ; ARAGÃO, Maria Luiza Muniz de Aragão. Favela – vivem ou vegetam as
1.111 famílias da Barreira do Vasco? Serviço Social, nº 54, 1949, p. 66-75. 76
A SALVAÇÃO do Mundo pela Eucaristia. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 21/07/1955, p. 8.
78
complementando a ação civilizadora deste e atuando na questão social. Entre as Santas Casas
de Misericórdia, os Círculos Operários e as ações voltadas para o indígena e os camponeses
no meio rural, figurava a Fundação Leão XIII, agindo nas favelas cariocas. Dizia-se que a
Fundação, em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro durante seus oito anos de
existência, atingiu a cifra de 80 mil matrículas, “ensinando, educando e assistindo a população
favelada ”77
.
Em 1954, o anúncio do início das obras de desmanche do Morro de Santo Antônio
ganhou destaque com a organização do congresso eucarístico, uma vez que as instalações do
evento seriam planejadas no aterro a ser construído com o desmanche do morro. Como era
situado no centro do Rio de Janeiro, nas imediações da Igreja de São Francisco, havia planos
para a remoção do morro desde meados do século XIX. Argumentos estéticos, higiênicos e
ligados à modernização do trânsito foram mobilizados em vários projetos de remodelação
urbana78
. Tendo início em 1954 e continuidade até o início da década de 1960, o desmanche
do morro foi fortemente associado à modernização do Rio de Janeiro – que deixaria de ser a
capital federal – e à comemoração do Quarto Centenário (1965) da cidade. O “desmanche” do
morro deu lugar à Avenida República do Chile, e as terras foram usadas no Aterro do
Flamengo (MOTTA, 2009; FREIRE, GONÇALVES & SIMÕES, 2010; AMOROSO, 2011).
Para evitar a associação entre o despejo de moradores do Santo Antônio, sem aviso prévio, e a
atuação da igreja católica – discurso que ganhava destaque na mobilização e nos discursos
veiculados pela UTF, a Prefeitura do Distrito Federal e a cúria do Rio de Janeiro anunciaram
o intento de construir casas para as “famílias operárias” residentes nas favelas com a madeira
usada no congresso eucarístico79
. Segundo reportagem do Correio da Manhã,
Toda madeira usada na praça do Congresso Eucarístico será empregada
posteriormente na construção de casas para famílias operárias residentes nas favelas
– eis a importante declaração feita pelo cardeal D. Jaime Barros Câmara, arcebispo
do Rio de Janeiro, na solenidade de instalação da campanha de inscrições do
Congresso, realizada ontem no Teatro Municipal. Em ação conjunta com a
77
AÇÃO social inspirada no pensamento católico. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 16/09/1955, p. 4. 78
Sobre o Morro do Santo Antônio, ver o capítulo I. 79
Em 30 de dezembro de 1956, a Comissão de Favelas fecharia um contrato com uma empresa imobiliária para
construir casas de madeira no Morro do Borel, lugar onde se localizava a sede da UTF, e no Parque Proletário nº
4: “Aos vinte e oito dias do mês de dezembro de mil novecentos e cinquenta e cinco na sala da Comissão de
Favelas, Palácio da Guanabara, presentes o Senhor presidente da aludida Comissão (...) e o Senhor Joaquim
Correira dos Santos, (…) representante da firma Correia dos Santos Teixeira & Cia Ltda., que declarou vir
assinar o presente ‘Termo do Contrato, para fornecimento e prestação de Serviços relativos ao material, mão de
obra, e transportes necessários à construção de casas e conjuntos nas favelas, com o aproveitamento do XXXVI
Congresso Eucarístico Internacional, em terreno situado no morro conhecido como do Borel, à rua São Miguel,
junto e depois do número 400 e/ou em terreno do Parque Proletário nº 4, à Avenida dos Democráticos, número
30, Amorim’”. Cf. PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Termos de Contrato – Gabinete do Prefeito,
Comissão de Favelas. Diário Oficial da União, 30/12/1955, p. 11708-11709.
79
prefeitura, a Igreja já está procedendo a estudos no sentido de, assim que estiver
terminado o congresso Eucarístico, poder iniciar as obras. As casas serão
construídas em terrenos escolhidos juntamente por S. Eminência – através da
Fundação Leão XIII – e a Prefeitura do Distrito Federal – por determinação de Alim
Pedro.80
Após o término do congresso eucarístico, o presidente da república voltou a enfatizar a
questão das favelas e da habitação popular. Segundo reportagem do jornal Tribuna da
Imprensa, “antes de deixar o governo, a 31 de janeiro de 1956, Café Filho [quis] encaminhar a
solução das favelas no Distrito Federal e, se possível, em todas as capitais dos Estados do
Brasil”81
. Extinta a “Subcomissão de Habitação e Favelas” da Comissão Nacional de Bem-
Estar Social (CNBS) – fruto das ações do governo Vargas no Ministério do Trabalho, Café
Filho recuperava o intento de estabelecer diretrizes sobre a política habitacional em âmbito
nacional. O presidente reuniu-se com Dom Hélder Câmara, representando a Cúria
Metropolitana do Rio de Janeiro, e vários intelectuais, sob a liderança do coronel Cortês
Menezes, que se debruçavam sobre a questão das favelas82
.
Ainda que se objetivasse a construção de um programa habitacional para a
“recuperação” dos grupos marginais à sociedade urbano-industrial, havia claramente uma
disputa de poder e diferenças de abordagens na proposição de políticas públicas83
Ademais, o
debate tinha como mote “a solução do problema das favelas antes do dia 20 de janeiro de
1967, em que a cidade do Rio de Janeiro comemorará o seu quarto centenário de fundação”84
.
Juntamente com o presidente, os intelectuais reunidos por Café Filho tinham o intento de
esboçar um modelo na capital federal que poderia ser generalizado para o resto do país.
2.1.3 Cruzada São Sebastião e SERFHA
No âmbito da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro e sob a liderança de Dom Hélder
Câmara, foi criada a Cruzada São Sebastião – uma resposta ao desafio do presidente da
República e um reforço à aliança católica para enfrentar a “questão das favelas”. A Cruzada
80
FICARÁ para os favelados o material usado na praça do Congresso. Correio da Manhã, 30/04/1954, p. 4. 81
QUER o governo acabar com as favelas no Rio. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 16/09/1955, p. 4. 82
Fizeram parte desta comissão os engenheiros Stélio de Alencar Roxo, Luis Augusto Druprat, José Oliveira Reis
e José Henriques, o sociólogo José Arthur Rios, arquitetos Afonso Eduar Reidy, Carmem Portinho, a assistentes
social Maria Luiza Muniz de Aragão. Cf. QUER o governo acabar com as favelas no Rio. Tribuna da Imprensa.
Rio de Janeiro, 16/09/1955, p. 4. 83
Sobre as divergências no que toca à forma de “solucionar” a questão das favelas entre D. Helder Câmara e o
grupo reunido em torno do coronel Geraldo Cortês, ver o artigo de Luis Augusto Duprat sobre o planejamento do
Serviço de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (SERFHA). Cf. DUPRAT, 1958. 84
QUER o governo acabar com as favelas no Rio. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 16/09/1955, p. 4.
80
era uma associação civil que buscava “urbanizar” as favelas até 20 de janeiro de 1967 – ano
de comemoração do IV Centenário. De acordo com o cardeal Dom Jaime de Barros Câmara,
distinguia-se “um plano de longo prazo – a tentativa de urbanização de todas as favelas do
Rio de Janeiro, em 12 anos, tendo como alvo o IV Centenário da cidade, a 20 de janeiro de
1967 – e um plano emergencial – a urbanização em 4 meses da favela da Praia do Pinto”85
.
Estruturada a partir de um estatuto de autoria do cardeal Dom Jaime Câmara, presidente da
mesma, a associação tinha como secretário geral o bispo auxiliar do Rio de Janeiro Dom
Hélder Câmara, seu principal articulador e “fundador”, que vinculou seu nome à memória da
entidade86
.
Se a Fundação Leão XIII, criada em 1946, especializava-se na assistência social ao
longo da década de 1950, a Cruzada tinha o propósito de atuar na produção de habitação
social. Diferente da Fundação Leão XIII, que teve uma breve incursão na construção de uma
“vila operária” na Barreira do Vasco, a Cruzada surgia com intento de “urbanizar” a favela
Praia do Pinto, com auxílios e subvenções concedidas por Café Filho. De acordo com o
cardeal Dom Jaime Câmara, “a Cruzada São Sebastião, cuja grande glória será trazer um
reforço ocasional à benemérita Fundação Leão XIII que nos continua a merecer inteira
confiança, que atuará lado a lado com a Cruzada e que continuará trabalhando quando os
moradores já estiverem de todo integrados na vida social da cidade e já não tiver razão de ser
a Cruzada São Sebastião”87
. Instituída como uma associação civil, a Cruzada definia-se como
uma campanha para sensibilizar o Estado e a sociedade, tendo “duração limitada” e
procurando
para cada Favela a solução mais indicada, salvaguardando os seguintes princípios: a)
agir congregando ao máximo as forças disponíveis da iniciativa particular e do
Poder Público, acima das divisões político-partidárias e discriminações raciais; b)
conjugar medidas de solução direta com providências de ordem geral para que o
trabalho empreendido não redunde em agravação do problema das Favelas; c) dar à
ação educativa o lugar essencial que lhe cabe no campo educacional, ir à fonte que é
a família com a melhor providência em favor dos menores. 88
A Cruzada São Sebastião funcionou entre 1955 e início dos anos 1960, tentando
articular a iniciativa privada e o poder público em uma campanha para “urbanizar” as favelas
85
URBANIZAÇÃO das favelas: “nobre como um congresso”. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 08/11/1955,
p. 2. 86
CRUZADA São Sebastião – extrato de estatuto. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, 01/10/1955, p.
13174; ESTATUTO da Cruzada São Sebastião apud Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 26/01/1958, Caderno 2,
p. 8. 87
URBANIZAÇÃO das favelas: “nobre como um congresso”. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 08/11/1955,
p. 2. 88
ESTATUTO da Cruzada São Sebastião apud Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 26/01/1958, Caderno 2, p. 8.
81
– categoria usada num sentido histórico específico e que não deve ser reduzido apenas à
instalação de infraestrutura urbana. O personagem responsável por essa tarefa foi o bispo
auxiliar da cidade do Rio de Janeiro. Na década de 1950, Dom Hélder Câmara era um dos
interlocutores centrais na relação constituída entre a igreja católica e o Estado, foi conselheiro
da Fundação Casa Popular e mantinha contato com Josué de Castro – intelectual de renome
internacional através da ONU que também atuou como presidente da CNBS no governo
Vargas. O bispo auxiliar do Rio de Janeiro destacava-se na renovação do catolicismo no pós-
guerra, sendo um dos fundadores da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em
1952 e reconhecendo a questão social como um foco de atuação do catolicismo89
.
Ademais, um aspecto bastante lembrado na fundação da Cruzada São Sebastião foi o
“dinamismo” de Dom Hélder como organizador e secretário geral do 36º Congresso
Eucarístico Internacional. Essa qualidade foi reiterada em sucessivas reportagens divulgadas
na grande imprensa, que legitimavam a campanha para a “urbanização” das favelas, a
Cruzada São Sebastião. Na imprensa e na memória social, consta como momento chave e
fundador da campanha das favelas a sugestão do cardeal Gegier, de Lyon, que lhe teria dito:
“quem realizou este magnífico trabalho pode, sem qualquer dúvida, operar outro milagre,
fazendo desaparecer as favelas desta encantadora cidade”90
. Esse marco de origem ganhou tal
força que o início da Cruzada São Sebastião seria contado a partir da realização do 36º
Congresso Internacional e do reconhecimento das iniciativas de religiosos franceses no campo
da habitação popular (Cf. FREIRE, GONÇALVES E SIMÕES, 2010).
Ao defender a “urbanização” das favelas, o bipo auxiliar defendia que a maioria dos
favelados não eram “marginais”, mas “trabalhadores” que contribuíam com os Institutos de
Pensão e Aposentadoria. Segundo Dom José Távora, que presidia a Fundação Leão XIII e
defendia a campanha da Cruzada, a premissa para urbanização era o combate ao “horror
burguês que se apossa de certas pessoas bem instaladas na vida, que julgam ser as favelas
apenas centros de ‘malandragem’”, e à ideia de que a “solução proposta contra os
‘malandros’, é a remoção drástica e impiedosa das favelas do centro e da zona sul para a
periferia da cidade”91
. A dicotomia “trabalhador/malandro” nas favelas e o “horror burguês” à
pobreza serviram de mote para Dom Hélder Câmara concitar as classes médias e empresariais
89
A biografia de D. Hélder e as sucessivas reformulações de sua autoimagem devem ser encaradas como um
problema para a historiografia da religião e da política no Brasil. As informações que uso acima tem como base
uma longa reportagem na revista O Cruzeiro que enfatizavam D. Hélder como um dos bispos em maior
evidência no país, como uma liderança do movimento de Ação Católica e fundador da CNBB. Sua atuação nos
anos 1930, quando foi membro da Ação Integralista Brasileira (AIB), não era narrada na reportagem. Cf. DOM
HÉLDER: Vamos Humanizar as favelas. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 12/11/1955, p.7-12. 90
ESPERANÇA da favela: apelar para D.Hélder. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 14-15/01/1956, p. 2. 91
DOM HÉLDER: Vamos Humanizar as favelas. O Cruzeiro, 12/11/1955, p.7-12.
82
a colaborar com seu projeto. O bispo auxiliar do Rio de Janeiro circulou em reuniões de
família de classe média e alta, palestrou em associações comerciais e no Jockey Club, assim
como realizou diferentes estratégias de “campanha financeira”, pregando as doações e a
renovação do espírito cristão na solidariedade aos “humildes” operários que viviam nas
favelas92
. Além disso, a imagem do trabalhador servia como mote para justificar a ajuda do
poder público ao seu empreendimento, numa tentativa de ampliar as subvenções concedidas.
A “urbanização” ganhava aspectos particulares na visão da Cruzada São Sebastião. De
um lado, havia o reconhecimento das particularidades de cada favela, sendo necessário
reconhecer as diferenças de cada localidade na articulação entre poder público e agentes
privados. Por outro lado, urbanizar era “humanizar” as favelas, alterando o modus vivendi da
população: combater a “promiscuidade” e difundir preceitos cristãos era o foco de um
processo de humanização que tinha como eixo central a recuperação das famílias pertencentes
a esses grupos marginais à sociedade. Como notou Valla, a urbanização “traduzia-se em todo
um trabalho de persuasão da população no sentido de levá-la a aceitar e implantar um novo
modus vivendi” (VALLA, 1986: 72). Tentando reproduzir um pronunciamento feito por Dom
Hélder num programa de televisão, a revista O Cruzeiro acentuou o significado dessa
percepção das condições “infra-humanas” nas favelas:
Pintando esse quadro de miséria total, que foi o que surpreendeu nas favelas
cariocas, dizia D. Hélder Câmara, há dias, num programa de televisão, que a
situação de aviltamento humano dos favelados era tamanha que ele próprio não
sentia coragem de exigir deles a fiel observância aos Mandamentos da lei de Deus e
às lições do Evangelho. Como ensinar às crianças das favelas que devem honrar pai
e mãe, se elas nasceram e vivem numa promiscuidade absoluta, onde respeito e
pudor são coisas impossíveis? E como convencer aos que vivem atolados na lama e
no desamparo, que devem amar ao próximo, quando eles sentem nesse próximo uma
total indiferença pela sua sorte?93
A percepção da unidade de um habitat e um modo de vida “infra-humano” que
tipificava as favelas levou a Cruzada a corroborar as teses sobre a marginalidade social e a
necessidade de “adaptação” do rurícola ao modo de vida urbano. Respondendo às críticas ao
seu projeto, que era visto como um catalisador da migração para a capital da república,
acentuando o “problema das favelas”, Dom Hélder investiria num programa que tinha como
base a consideração do favelado como um migrante deslocado da vida urbana. Segundo o
92
Cf. CRISTO Favelado (Coluna Eles Não Usam Black Tie). Última Hora, Rio de Janeiro, 01/09/1955, Caderno
2, p. 4.; APOIO do Jockey club aos favelados. Última Hora. Rio de Janeiro, 21/03/1956, p. 3; UM ANO após o
Congresso a Cruzada vence a primeira Batalha das Favelas! Última Hora. Rio de Janeiro, 25/07/1956, p. 3;
DOZE ANOS para humanização das favelas. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 10/11/1955, p. 4; UMA
VIDA mais humana aos nossos irmãos favelados. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 27/12/1955, p. 6. 93
DOM HÉLDER: Vamos Humanizar as favelas. O Cruzeiro, 12/11/1955, p. 7-12.
83
jornal Tribuna da Imprensa, em uma coletiva no Palácio São Joaquim, o bispo auxiliar
declarava: “o que nos preocupa não é só dar moradia humana e decente aos favelados, é
também estudar o problema das favelas, suas causas e deter o êxodo rural. Instalaremos
postos nas barreiras para dissuadir os migrantes nordestinos a se fixarem no Rio de Janeiro.
Procuraremos fixá-los em fazendas da baixada fluminense, em núcleos rurais que serão
organizados nas margens do Rio São Francisco, etc.”94
.
Não há pesquisas que dissertem sobre colônias rurais inspiradas pela Cruzada São
Sebastião. No entanto, no jornal A Cruz, registra-se uma articulação entre a diocese de
Goiânia (GO), Dom Hélder e o governo federal, no sentido de viabilizar uma colônia para
“favelados” do Rio de Janeiro, durante o processo de construção de Brasília; sugere-se ainda
que haveria um entendimento entre outras dioceses para tal projeto de colonização e “reforma
agrária” no país 95
. Ainda que essas informações mereçam pesquisa e reflexão para qualificá-
las em termos sócio-históricos, elas são um indício de como o paradigma da marginalidade
social e a percepção dos favelados como deslocados de uma tipificação ideológica do que
seria um modo de vida urbana influenciou a ação da Cruzada São Sebastião. É importante
ainda salientar que durante a campanha das favelas, Dom Hélder participou da organização do
I e II Encontro de Bispos do Nordeste (1956 e 1959) e atuou em favor da criação da
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE (1959), mobilizando-se em
torno da questão das favelas e dos problemas rurais que causavam o êxodo rural.
A principal obra da Cruzada São Sebastião foi a construção do conjunto habitacional
“Bairro São Sebastião” – 916 apartamentos localizados no bairro do Leblon e distribuídos por
dez prédios. Iniciado seu planejamento em 1955 e inaugurado em 20 de janeiro 1957 (dia do
santo padroeiro do Rio de Janeiro), construído com subsídio do governo federal, o conjunto
situava-se numa das áreas mais valorizadas da zona sul carioca e destinava-se à “urbanização”
da favela da Praia do Pinto, localizada às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Essa foi a
obra de maior visibilidade e perenidade da Cruzada São Sebastião, monumentalizando o
ataque ao “horror burguês” às favelas e a pregação da solidariedade e colaboração entre
classes sociais – uma apologia à “paz social e cristã” contra a filosofia do comunismo e
materialismo histórico. Não obstante a intenção de integrar os moradores no bairro, o
conjunto destinado aos moradores da favela Praia do Pinto foi criticado e estigmatizado,
94
UMA VIDA mais humana aos nossos irmãos favelados. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 27/12/1955, p. 6. 95
“É provável que favelados do Rio, vindos do interior, e desejosos de possuir seu quinhão de terra, sejam
aproveitados no plano piloto. A exemplo da Arquidiocese de Goiânia, outras dioceses estariam também dispostas
a ceder parte de suas propriedades, proporcionando ao governo elementos para encetar a reforma agrária do
país.” Cf. EXEMPLO. A Cruz. Cuiabá, 22/03/1959, p. 2.
84
também tratado em diversas situações como um enclave na zona sul carioca (SIMÕES, 2008;
RIBEIRO, 2009: 49-53; GONÇALVES, 2013: 154-155).
Para ter acesso ao conjunto habitacional do “Bairro São Sebastião”, havia uma seleção
entre os moradores. Para garantir a ordem, a preservação da família e a ética do trabalho,
afastando os “malandros”, utilizar-se-ia como critério de acesso ao conjunto dados coletados e
mantidos pela Fundação Leão XIII. Como salientou Freire, Gonçalves e Simões “para ter
direito ao apartamento, seria preciso não somente assumir novos compromissos jurídicos
(pagamentos das mensalidades, luz, água, impostos), mas também civis e religiosos:
celibatários e concubinários não poderiam pleitear um imóvel no Bairro São Sebastião”
(FREIRE, GONÇALVES E SIMÕES, 2010: 110). Nem todos se enquadravam nos critérios
de seleção, nem estavam dispostos a conviver com o controle das condutas e comportamentos
cotidianos sugeridos pela Cruzada São Sebastião. Na imprensa, Dom Hélder foi acusado de
proselitismo religioso católico, mas sempre negou tal intento em jornais, argumentando que a
Cruzada São Sebastião atenderia aos favelados de todas as raças e religiões sem
discriminação.
Contudo é possível observar em diferentes práticas a influência da doutrina social-
católica e seu enfoque na recuperação da família operária na sociedade moderna. No Bairro
São Sebastião, assim como já ocorria com a Fundação Leão XIII, os propósitos educativos da
ação misturavam-se com a constituição de serviços assistenciais criados com objetivo de
atender à população que moraria nos apartamentos. Destarte, o bispo auxiliar do Rio de
Janeiro propôs a criação da “Ordem dos Cavalheiros de São Sebastião” como um dos
mecanismos de controle e “colaboração” dos favelados. Um jornalista do Última Hora
acompanhou uma palestra de Dom Hélder no Palácio São Joaquim e descreveu da seguinte
maneira o projeto de associativismo que pretendia implantar no Bairro São Sebastião e em
outras localidades:
D.Helder revelou que estava em pleno funcionamento a Ordem dos Cavalheiros de
São Sebastião, fazendo parte dela todos os favelados onde a cruzada iniciava sua
batalha pelos novos lares. Ela tem um código de honra que foi feito em estreita
colaboração com os moradores da favela, sendo respeitado por todos os Cavalheiros
da Ordem. Os artigos são os seguintes:
1. O homem tem uma só palavra;
2. Ajude seu vizinho;
3. Homem que é homem não bate em mulher;
4. Não se deve beber até perder a cabeça;
5. Jogo só o futebol;
6. Comunismo não resolve nada;
85
7. Sem Deus não somos nada.
96
Não é possível avaliar a extensão do que foi esse “código de honra” e essa proposta
associativa traçada por Dom Hélder, mas não há dúvida de que a Cruzada São Sebastião teve
ampla atuação na cidade, ultrapassando o conjunto no Leblon. Segundo Fischer, a campanha
construiu redes elétricas em 51 favelas, construiu redes de água em dez, instalou telefones
públicos em doze e construiu um prédio de 48 apartamentos, urbanizando parcialmente a
favela do Morro Azul e totalmente a Parque Alegria (FISCHER, 2008: 76). Marcadamente
anticomunista, a Ordem dos Cavaleiros de São Sebastião tinha como objetivo barrar a
mobilização da UTF, sob a influência do Partido Comunista, e difundir uma moral cristã num
cenário visto como caótico para o ponto de vista dos valores familiares. Nesse sentido, a
Cruzada era bastante próxima do paradigma de ação da Fundação Leão XIII. É importante
salientar que essa estratégia de cooptação de lideranças foi simultânea ao autoritarismo: em
1957, a UTF sofreu uma primeira intervenção da polícia política, desautorizando o
funcionamento da entidade, que foi considerada “ilegal”, porque fazia parte da “frente legal
do Partido Comunista”.
Alguns autores diferenciam a proposta da Cruzada São Sebastião pela existência de
uma ideologia comunitária católica (VALLA, 1986; SIMÕES, 2010; GONÇALVES, 2013).
Essa prática reconhecia as diferenças das associações civis que atuavam nas favelas e
estimulava a criação de entidades que fossem representativas das relações primárias de
amizade e vizinhança entre moradores. Essas instituições seriam mediadoras da população
com o poder público, numa ótica paternalista, para garantir a paz social e melhorias através do
mutirão. Em 1957, Dom Hélder chegou a promover o primeiro Congresso de Representantes
de Favela (PARISSE, 1969: 181). Ainda que a Cruzada propusesse uma ética comunitária,
essa estava distante do cenário que se abriu com o Concílio Vaticano II e as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), nos anos 1960 e 1970. Em termos práticos, a atuação da Cruzada
estava mais próxima do Estado e do objetivo de conter a mobilização comunista nas favelas.
A ideologia comunitária católica também se coadunava com a percepção
desenvolvimentista na qual as favelas eram resultado do subdesenvolvimento da sociedade
brasileira. Tal visão era compatível com o paradigma da marginalidade e o viés
socioeducativo que tentava domesticar as práticas e ações dos moradores, vistas como sinais
de atraso social. A “participação ativa na vida comunitária” tinha como intento conter a luta
de classe e instrumentalizar o mutirão como meio de conquista de melhorias. Essa visão foi
96
MALANDRO não é monopólio da Favela. Última Hora. Rio de Janeiro, 23/02/1956, p. 3.
86
apregoada por outras instituições coetâneas da Cruzada, como também vislumbrada na
justificativa para a criação do Serviço de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-
Higiênicas (SERFHA):
Considerando que o desenvolvimento das cidades em ritmo acelerado impõe
um controle por parte dos poderes públicos municipais dos movimentos migratórios
espontâneos, que contribuem para a formação e o aumento das áreas de habitação
sub-standarts e clandestinas, controle esse que vive primordialmente ao amparo
efetivo das populações migrantes por meio de um sistema de orientação e colocação;
Considerando que todas as iniciativas privadas, no Distrito Federal, que
visem à melhoria das condições de vida e à urbanização dos aglomerados do tipo
“favela” devem ser estimuladas e, ao mesmo tempo, orientadas e controladas, a fim
de que se subordinem a uma política habitacional e urbanística racional (…);
Considerando que, a qualquer programa habitacional, se deve conjugar uma
larga ação social e educativa, visando obter dos beneficiários um esforço para a
manutenção e melhoria de seus lares e uma participação ativa na vida comunitária,
por meio do sistema de ajuda mútua.97
No SERFHA, havia a compreensão da favela como um problema geral de “habitações
sub-standarts” e “anti-higiênicas” que seria comum em outras cidades e na zona rural
brasileira, um problema intimamente ligado à rápida urbanização e ao desenvolvimento
urbano-industrial brasileiro no pós-guerra. Pretendia-se também exercer o controle do espaço
urbano das favelas e seu melhoramento com auxílio dos moradores e sua “participação ativa
na vida comunitária”. O SERFHA pretendia estabelecer uma classificação entre as “favelas
condenáveis” e as “recuperáveis”. Naquelas vistas como “recuperáveis”, ele buscava
incentivar o mutirão que era entendido como uma prática social proveniente do meio rural e
que poderia ser aperfeiçoada pelo Estado, ajudando a urbanizar as favelas e economizar
recursos escassos do Estado, para enfrentar o problema habitacional. Como veremos no
capítulo IV, o mutirão nesse viés foi um dos eixos de discussão da Subcomissão de Habitação
e Favela no Ministério do Trabalho que teve forte influência no projeto de criação da
SERFHA.
O SERFHA ocupou o lugar da Comissão de Favelas na estrutura municipal de
governo. Assim como a instituição que o precedeu, tinha objetivo de congregar as várias
operações que existiam no âmbito municipal para controlar o espaço urbano e a população das
favelas. A tentativa de centralização da coordenação das políticas para as favelas municipais
perpassou toda a década de 1950. Criado em 1956, pelo prefeito Francisco Negrão de Lima
(1956-1958), o SERFHA tinha grande semelhança com o projeto de 1952 que foi organizado
97
PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 13.304, de 28 de agosto de 1956. Diário Oficial da
União. Rio de Janeiro, 29/08/1956, p. 1.
87
pela Comissão Nacional de Bem-Estar Social (CNBS)98
, no Ministério do Trabalho. Na
análise e interpretação do “problema das favelas”, o SERFHA estava fortemente impregnado
de uma visão geral constituída na Subcomissão de Habitação e Favelas da CNBS.
Quando comparamos o projeto sugerido pela Subcomissão de Habitação e Favelas da
CNBS e o aprovado por Francisco Negrão de Lima, observamos várias semelhanças –
algumas partes foram transcritas ipsis litteris. Destarte, na definição dos objetivos, dever-se-
iam realizar pesquisas sobre as tendências demográficas e socioeconômicas do Distrito
Federal; classificar as favelas existentes segundo o critério de possibilidade de sua remoção;
fazer o levantamento topográfico das habitações clandestinas, cujas populações não deveriam
ser deslocadas; instalar “centros de acolhida” para o controle e a orientação das populações
migrantes; estimular e controlar a iniciativa privada no campo da assistência social; incentivar
a criação de cooperativas de construção e de produção de materiais de construção; estudar os
tipos de financiamento compatíveis com as condições socioeconômicas das populações a
serem beneficiadas; promover a colaboração das classes patronais e das instituições de
previdência, e o estudo de medidas visando à melhoria das condições de habitabilidade, onde
quer que, dentro a área do Distrito Federal, se apresentem precárias99
.
Durante o período do governo de Juscelino Kubitschek e dos prefeitos cariocas
nomeados pelo presidente, o SERFHA permaneceu sem dotação orçamentária. Isso foi
particularmente explorado pelo engenheiro Luis Augusto Duprat. Em 1958, ele abandonou o
conselho do SERFHA – órgão que tinha ajudado a projetar - e escreveu um texto o intitulado
Plano das Favelas, atacando a política municipal. Em termos de dotação orçamentária, ele
questionava a não regulamentação de um tributo municipal visando à habitação popular –
sugestão da CNBS, com base na experiência da política habitacional de Porto Alegre, um
grande ponto de interrogação na organização do SERFHA. Além disso, Duprat manifestava o
ressentimento diante dos recursos recebidos pela Cruzada São Sebastião e do descaso com o
SERFHA. Para financiar sua campanha, Dom Hélder criou o Banco da Providência (1958) e
contou com a subvenção de 50 milhões de cruzeiros e doação de terrenos públicos. O espaço
conquistado por Dom Hélder no governo de JK foi alcançado pelo ostensivo apoio do bispo
auxiliar à posse do presidente, quando este foi atacado pela oposição, que questionava a
98
ALMEIRA, Rômulo. Relatório da Subcomissão de Habitação e Favelas ao presidente da CNBS. Anexo I –
Projeto de Lei, 23/12/1953. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA
CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Getúlio Vargas. Arq. GVc1952.12.23 99
Idem; PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 13.304, de 28 de agosto de 1956. Diário Oficial
da União. Rio de Janeiro, 29/08/1956, p. 1.
88
vitória no pleito de 1955100
. No governo JK, o SERFHA ficou em segundo plano frente à
campanha da Cruzada São Sebastião, que ganhou status de principal política pública no
campo das favelas. O prefeito Sá Freire Alvim (1958-1960) tentou criar o Concurso Esportivo
Municipal (CEM), uma loteria municipal em que parte dos recursos seria destinada à
SERFHA, mas a iniciativa não logrou sucesso e foi contestada pelos clubes de futebol101
.
Entre 1956 e 1960, o SERFHA atuou em conjunto com a Fundação Leão XIII e,
principalmente, com a Cruzada São Sebastião. Segundo Parisse, o primeiro coordenador do
órgão, Reinaldo Mattos Reis, era ligado à Cruzada São Sebastião, que também teve grande
representatividade no conselho do órgão (PARISSE, 1969: 206). Entre 1956 e 1959, o diretor
tentou ampliar a assistência social, realizando obras que favoreceram a ação da iniciativa
católica. Criou quatro Centros Sociais (Penha, Vila da Cachoeira no Alto da Boa Vista,
Vidigal e Baixa do Sapateiro em Manguinhos) que foram entregues, respectivamente, à
Cruzada São Sebastião e à Fundação Leão XIII102
. O relatório do SERFHA de 1959 dava
destaque a essas obras assistenciais, construídas pelo órgão e sob os cuidados da igreja
católica. Tal atuação conjunta produzia a crítica de “especialistas” da época, que
questionavam a função desempenhada pelo órgão na execução de uma política para as
favelas103
.
O SERFHA também atuou em conjunto com a polícia de vigilância e os órgãos da
assistência social católica no sentido de conter o crescimento das favelas. Em 1955, o
deputado comunista Bruzzi Mendonça, com a pressão e o apoio do movimento social da UTF,
aprovou uma emenda na lei que concedia subvenções à Cruzada São Sebastião, que proibia
despejos em favelas por dois anos104
. Em 1958, após a vigência do regulamento, o diretor do
SERFHA, juntamente com outros órgãos e departamentos da Prefeitura do Distrito Federal,
lançou o que chamou “Operação Cidade Maravilhosa”. Também visando à comemoração do
100
Quando Juscelino Kubitschek teve sua posse ameaçada por Carlos Lacerda, que questionava a legitimidade
dos votos no pleito de 1955, tentando articular um golpe de Estado, Dom Hélder lançou uma carta aberta ao
“amigo Carlos”, rompendo com Lacerda e manifestando claro apoio ao novo presidente. A partir dali, as alianças
da Cruzada São Sebastião no teatro político, uma articulação constituída no governo liberal de Carlos Luz, foram
reconfiguradas. Se isso permitiu a Dom Hélder expandir sua influência no governo JK, também foi responsável
pelo seu esvaziamento da Cruzada, quando Carlos Lacerda foi eleito governador do Estado da Guanabara. Cf.
OLIVEIRA, 2012. 101
CRIADO o Concurso Esportivo Municipal (CEM). Última Hora. Rio de Janeiro, 27/12/1958, p. 6. 102
Cf. FAVELADOS do Engenho Novo terão Assistência médico-social. Correio da Manhã. Rio de Janeiro,
22/06/1958, p. 12; INAUGURAÇÃO do Centro Social da Baixa do Sapateiro. Correio da Manhã. Rio de
Janeiro, 18/05/1958, p. 17; INAUGURADO na Penha o posto nº 1. Correio da Manhã. Rio de Janeiro,
03/05/1958, p. 3; DETENÇÃO de advogado causa reação de favelados. Correio da Manhã. Rio de Janeiro,
03/05/1958, p. 1. 103
RELATÓRIO do SERFHA está muito distante da realidade. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 07/02/1959, p.
3. 104
A Lei das favelas vai ser analisada no Capítulo VII da tese.
89
IV Centenário em 1965, a operação buscava deixar o espaço urbano livre das favelas e dos
camelôs. Segundo o diretor,
quando o Rio de Janeiro fizer quatrocentos anos, (…) espero ter concluído já essa
obra, ocasião em que [se] apresenta o Rio de feições novas, para o público e
visitantes. Ou seja, todas as favelas e os camelôs serão transferidos, e os camelôs
afastados do centro da cidade. (…) Essa tarefa não será desempenhada apenas pela
Prefeitura. Para seu pleno êxito, contarei com o auxílio de Dom Hélder Câmara
através da Cruzada São Sebastião105
.
Com modelo bastante similar aos “parques proletários”, em 1958, foi construído em
Ramos um assentamento, visando a remoções no Morro do São Carlos e Catacumba. A igreja
católica, assim como no caso da remoção do Morro de Santo Antônio, atuou através de seus
organismos, prestando assistência social e apoiando as medidas de reassentamento urbano,
com objetivo de recuperar o espaço da cidade, dar melhores condições de vida e reeducar os
favelados. Seguindo essa mudança de orientação, em julho de 1959, editou uma circular cujo
objetivo era, juntamente com a polícia de vigilância, fiscalizar a proibição de aluguéis nas
favelas. De acordo com Gonçalves, “como muitos favelados haviam deixado” de pagar seus
aluguéis imediatamente após essa circular, vários proprietários apelaram para a violência, com
a finalidade de exigir seus pagamentos, ou entraram com ações judiciais, o que aumentou
consideravelmente as tensões sociais (GONÇALVES, 2013: 193).
A criação do Estado da Guanabara e o governo de Carlos Lacerda (1961-1965)
alteraram profundamente o quadro da política para favelas. O SERFHA passou a ter uma
dotação orçamentária significativa e uma linha de atuação diferenciada, quando José Arthur
Rios assumiu a coordenação do órgão. Intelectual ligado ao Movimento Economia e
Humanismo, Rios difundiu uma ideologia comunitária, visando criar associações, e
normatizou a vinculação das mesmas ao quadro de ação da administração pública. Essas
iniciativas tinham como perspectiva o controle dos movimentos de trabalhadores favelados,
coordenados por políticos ligados à aliança trabalhista-comunista, mas também tinha como
contrapartida a extensão dos mutirões e de melhorias nas favelas. Em 1962, com a criação da
Companhia de Habitação Popular do Estado da Guanabara (COHAB), a saída de Arthur Rios
do governo e a ascensão de Sandra Cavalcanti na condução da política para as favelas, o foco
da ação do poder público caracterizou-se pelo viés remocionista, ancorando-se na construção
de conjuntos habitacionais e projetos de renovação do tecido urbano carioca na zona sul
105
OPERAÇÃO Cidade Maravilhosa para acabar com favelas e camelôs. Correio da Manhã, 05/12/1958, p. 5.
90
(MACHADO DA SILVA, 1969; VALLADARES, 1978; LEEDS & LEEDS, 1979; LIMA,
1989; GONÇALVES, 2013; BRUM, 2011).
2.2 As políticas de “desfavelamento” em Belo Horizonte
Ao contrário do Rio de Janeiro, onde há um longo lastro bibliográfico para tratar da
política da (e nas) favelas, em Belo Horizonte o objeto é lacunar. Alguns textos como o de
Corrêa (2004), tangenciam essa discussão, especificando o debate para um momento e um
caso específico – a da favela da Cabana do Pai Tomás, mas sem compreender a dinâmica das
políticas de desfavelamento na história urbana do período que vai de 1940 a 1960. A escala de
comparação com a favela carioca enriquece o debate e ajuda a compreender a forma como a
retórica habitacional, médica e assistencial, por meio de agências municipais específicas para
“recuperar” os favelados, surgiu nos anos 1950.
Nos anos 1940, discutia-se a remoção da pobreza da área central – a demolição das
“cafuas”. O debate estava organizado em torno de uma política fundiária de cessão de lotes
públicos e incentivo à iniciativa privada para a formação de vilas. Essa estratégia de ação
estava inscrita nas formas de zoneamento do tecido urbano que, como vimos, desenhava uma
cidade em que as “casas operárias” e “vilas” só poderiam existir na zona rural e em áreas
afastadas dos subúrbios. Entre as décadas de 1920 e 1940, a política fundiária de criação de
vilas buscou transferir as cafuas da zona central, localizadas na Barroca, no Barro Preto e na
Pedreira Prado Lopes para áreas periféricas. Não havia um órgão, serviço ou departamento
específico, para coordenar essas iniciativas. Era no setor de engenharia e obras públicas que
se delineavam as intervenções urbanas e o “desfavelamento”. A criação de vilas era anunciada
como uma benesse do prefeito para a população pobre e uma modernização do tecido urbano.
A política fundiária de assentamentos e transferências para a periferia urbana
inspirava-se na regulamentação de vilas operárias e no modelo da Vila Operária da
Concórdia. Como vimos, em 1928, a municipalidade inaugurou a referida vila para onde foi
feita a transferência de parte dos moradores da Barroca e Pedreira Prado Lopes através de um
“acordo”. Em 1940, o prefeito Juscelino Kubitschek (1940-1945) continuou a promover a
política fundiária de incentivo à expansão das “vilas” e reeditou a política com a criação da
Vila Operária Mato da Lenha, enfocando o deslocamento da pobreza da região central da
cidade. Segundo a reportagem publicada no Observador Econômico e Financeiro,
91
A Barroca, um outro bairro assemelhado à Pedreira, sem higiene alguma, sem
esgoto, sem água canalizada, foi também destruída. Estava mesmo junto à área
urbana e era um atentado não só à estética, ao bom gosto da higiene.
Hoje dela não há mais vestígio. Há ruas, avenidas, construções
moderníssimas, e uma valorização enorme, espantosa das áreas de terrenos.
Mas os habitantes da Barroca não sofreram com isso. Não foram lançados ao
abandono. O aspecto humano do problema foi estudado previamente. A população
que vivia ali sem qualquer conforto foi transferida para a Vila Operária106
.
Na reportagem paga pela municipalidade, comemorava-se o aniversário da cidade,
exaltando o interventor nomeado pelo Estado Novo, Benedito Valladares (1933-1945), e o
prefeito Juscelino Kubitschek como inauguradores de um novo tempo para a capital mineira –
“seu mais luminoso período de progresso”, num inovador e “inteligente” projeto de
“urbanismo”. A criação do bairro Pampulha em torno da lagoa, do Cemitério da Saudade
(1942), do Teatro Municipal, e do Cassino da Pampulha, assim como a terraplanagem de vias
e a extensão das Avenidas Antônio Carlos e Amazonas, tudo isso era proclamado como uma
iniciativa para o progresso da cidade. O projeto estético-urbano seria também alcançado com
a remoção da Pedreira Prado Lopes e Barroca, áreas de pobreza próximas ao centro urbano e
ligadas às duas avenidas que sinalizariam a modernização da cidade – a Pedreira ficava no
caminho para a Pampulha (Avenida Antônio Carlos) e a Barroca, no eixo oeste, nas
proximidades da Avenida Amazonas.
O discurso governamental desconsiderava os possíveis conflitos de classe nas obras
públicas. Os “operários” das regiões pobres seriam atendidos em suas necessidades de
moradia e encaminhados para o subúrbio, nas proximidades da Gameleira, na “vila operária”
próxima à Cidade Industrial, que vinha sendo projetada pelo estado de Minas Gerais no
mesmo período. Ademais, acentuava-se o caráter benéfico das vilas para os operários: eles
deixariam as “cafuas” e “barracos”, para terem acesso a casas em ambientes melhores. Num
gesto de “saneamento e proteção das classes populares”, dizia o texto da reportagem, a
Barroca, que “era uma espécie de Favela de Belo Horizonte, desapareceu, foi demolida e
[incorporou-se] à cidade em ruas regulares”107
.
Na linguagem de propaganda da modernização urbana, as áreas centrais e pobres não
deviam existir e já estavam “demolidas”. A reportagem paga pela municipalidade não
reconhecia as habitações populares da região central e as tratavam como uma imagem do
passado que sucumbiria frente ao progresso. Todavia a Pedreira Prado Lopes permaneceu na
paisagem urbana e existe até hoje; e a Barroca, ao contrário do que pressupunha a reportagem
106
BELO Horizonte. Observador Financeiro, Rio de Janeiro, jan. 1943, p. 54-55. 107
Idem.
92
de 1943, só foi completamente demolida em 1945. O discurso do governo de Juscelino
Kubitschek filiava-se à retórica do progresso que embasou práticas e representações da cidade
de Belo Horizonte na primeira metade do século XX. O tratamento das áreas de pobreza como
um atraso que deixaria de existir, antes mesmo da efetiva ação governamental, pode-se
observar na forma como a demolição da Barroca era anunciada na imprensa na década de
1930: “últimos dias da Barroca lendária, a latolândia da Capital, que desapareceu para dar
lugar ao bairro novo que surge, para abrigar a nova gente, de outra linhagem que aquela que,
por quase quarenta anos deu vida e trabalho às crônicas da cidade” (Gazeta Mineira,
26/10/1938 apud Guimarães, 1991: 226).
Os trabalhadores e suas estratégias para permanecer no local de moradia ficavam
ocultados na linguagem e propaganda da modernização da cidade. Na visão estigmatizante da
desordem urbana como contrária à modernização, havia a referência ao fato de a Barroca ser
“lendária” na imprensa, identificada com as classes perigosas, grupo que daria trabalho às
crônicas policiais e que deveria ser apagado da memória da cidade. Em 1940, novamente na
revista Observador Econômico e Financeiro, numa reportagem de cunho propagandístico do
desenvolvimento de Minas Gerais, tomava-se o exemplo da destruição da Barroca como o
signo da expansão urbana e do progresso econômico da capital e do estado de Minas Gerais.
Em seu lugar, o governo mineiro de Benedito Valadares e a prefeitura de JK projetaram a
construção do Bairro de Lourdes, destinado a profissionais liberais e às classes médias em
ascensão no desenvolvimento urbano-industrial. A imagem de um bairro ordenado ficava
exposta em fotografias como a que segue.
93
Belo Horizonte. Observador Financeiro, Rio de Janeiro, jan. 1943, p. 54-55.
Divulgada como sinal do progresso da cidade, a fotografia vinha acompanhada da
legenda: “Uma rua do Bairro de Lourdes, local que, há três anos, era mato e brejo”.
Explicava-se ainda que a história do novo bairro era “curiosíssima”: “ali era o bairro das
cafuas de Belo Horizonte – a antiga Barroca, semelhante à Favela carioca. A administração
municipal promoveu, em 1937, a urbanização da área extensa, prolongando ruas
interrompidas e dotando-as das redes regulares de água e esgoto”108
. A imagem dialogava
com o texto, representando o progresso das ruas abertas, com calçada, eletricidade e casas
bem construídas no lugar das cafuas. O espaço tinha a função residencial, era visto como o
espaço privilegiado pela infraestrutura urbana e por ser próximo do centro comercial e
administrativo de Belo Horizonte.
Outra iniciativa anunciada pelo prefeito Juscelinho Kubitschek para o “saneamento
das classes populares” e a valorização da área urbana foi a construção do conjunto
habitacional do Instituto de Pensão e Aposentadoria dos Industriários (IAPI). Em 1940, a
Prefeitura de Belo Horizonte cederia parte do terreno em frente à Pedreira Prado Lopes para a
construção de um conjunto habitacional pelo Instituto de Aposentadoria e Pensão dos
Industriários (IAPI). Projetado por Oscar Niemeyer, assim como o conjunto arquitetônico da
Pampulha, o conjunto deveria ser um marco do modernismo, contra a estética eclética que
vigorou na Primeira República. Na propaganda do governo, os apartamentos modernos seriam
vendidos aos trabalhadores, os moradores da Pedreira Prado Lopes, a preços módicos.
No projeto estético-urbano da administração Juscelino Kubitschek, propugnava-se a
necessidade de proteção e “saneamento” das classes trabalhadoras, mas ao mesmo tempo não
108
ANDRADE, Moacyr Assis. Economia em Minas Gerais. Observador Econômico Financeiro, jul. 1940, p. 53.
94
se reconheciam os lugares de habitação popular como parte do tecido urbano reformado.
Segundo Juscelino Kubitschek, o
bairro residencial da Pampulha tinha de ser contrabalançado em respeito à própria
função social da Administração (...). Em vários anos sucessivos, a dois passos da
cidade, vinham-se localizando classes de menor capacidade econômica, operários e
até mendigos. (...) Nele fomos encontrar 483 casebres e cafuas, em lamentáveis
condições de construção, verdadeira chaga, rasgada em nossa estrutura urbanística e
social. (...) Considerando que a construção das chamadas vilas-operárias ou
populares, com que se tem procurado resolver esse problema, não constitui a sua
melhor solução (...). Consideramos que a solução mais viável consiste em fazer
grandes prédios de apartamentos (KUBITSCHEK, 1942: 76).
O conjunto do IAPI não foi concluído na administração de JK e a venda dos
apartamentos não foi destinada aos moradores da favela. Na memória do modernismo, o IAPI
ficou relegado a segundo plano, frente ao bairro residencial da Pampulha. Contudo, num
período em que o centro de Belo horizonte começava a se verticalizar, o conjunto IAPI
destacava-se como símbolo de modernidade e servia para ocultar a visão daquela que ficou
reconhecida como a maior favela da região central, a Pedreira Prado Lopes.
Na década de 1940, prevaleceu o discurso que reconhecia as “cafuas” como problema
estético urbanístico. Elas eram vistas como “chagas” da estrutura urbana. Na retórica de
proteção ao trabalhador, JK mantinha a política fundiária de expansão da moradia operária em
lotes suburbanos, mas abria uma questão: construir vilas operárias ou conjuntos habitacionais,
para resolver o problema da moradia insalubre da capital. O prefeito eleito pelo Partido
Trabalhista Nacional (PTN), Octacílio Negrão de Lima (1947-1951), deu continuidade à
retórica de proteção social ao operário, reforçando a política fundiária de assentamento e
expansão da periferia. Num outro diálogo com o governo federal, estabeleceu um discurso
diferencial em relação à JK, não investindo no viés modernista das reformas da cidade. Ao
contrário de prédios, equipamentos públicos e espaços que se tornariam ícones da arquitetura
modernista, optou por uma agressiva política fundiária de expansão dos subúrbios, visando ao
desenvolvimento urbano-industrial da cidade e fazendo alianças com os órgãos de
financiamento à habitação.
Eleito na primeira eleição para o cargo executivo municipal, Octacílio Negrão de Lima
tinha, em seu programa de governo, um tópico específico no que dizia respeito às favelas.
Nele ficava explícito o intento de desenvolver as “cidades-satélites” do Barreiro e Venda
Nova como caminho para a absorção da mão de obra rural e solução para o abastecimento de
95
gênero das cidades109
. Seu governo foi o primeiro a reconhecer essas regiões na estratégia de
zoneamento urbano, tentando articulá-las à viabilização do desenvolvimento urbano-
industrial. No relatório apresentado à Câmara Municipal, ele explicitaria ainda mais seu
posicionamento sobre a questão das favelas:
As cidades brasileiras, dado o abandono das populações rurais, exerce poderoso
encantamento sobre os homens do campo. Acostumados sem qualquer conforto,
chegando às cidades, levantam pobres habitações sem conforto. O conjunto de tais
choupanas forma o problema angustioso das favelas, que atormenta as cidades de
Recife, São Paulo, Niterói, Rio de Janeiro, e também Belo Horizonte. O poder
municipal é impotente para equacionar e resolver, sozinho, a angustiante questão
(LIMA, 1948: 150).
A declaração à Câmara Municipal mostrava uma maneira ambígua de se posicionar
diante da questão das favelas. De um lado, reconhecia-se o discurso da marginalidade social
com a migração do campo para os centros metropolitanos como o centro da discussão da
pobreza urbana. Por outro, abstinha-se de uma atuação autônoma do município frente ao
“problema das favelas”. Em 1949, quando foi confrontado em relação ao despejo de
moradores da Vila São Vicente de Paulo (Marmiteiros) e à reivindicação do direito de
moradia, voltou a afirmar a necessidade de conjugação de esforços, visto que as favelas “não
constituem problema exclusivamente municipal” e “para resolvê-lo definitivamente é preciso
que se conjuguem os esforços dos governos federal, estadual e municipal”110
.
Negando uma atuação específica da prefeitura para construir moradias, o governo de
Octacílio Negrão de Lima deu continuidade à política fundiária de loteamentos suburbanos na
formação de “vilas”. Além de direcionar Venda Nova e Barreiro como regiões preferenciais
para receber os migrantes, o prefeito Octacílio Negrão de Lima legalizou a política fundiária
de doação lotes para assentamento de famílias pobres - uma prática que já transcorria no
âmbito informal do município em outras administrações. Em 1948, o prefeito assinou a lei nº
32, autorizando a Prefeitura a “doar terrenos às famílias pobres que se encontram na
contingência de serem despejadas ou ameaçadas de ações possessórias e possuam algum
recurso para edificação”, desde que comprovassem também ser de trabalhadores, ficando
também impedidas de vender e penhorar o terreno111
. As doações de lotes deveriam ocorrer de
forma seletiva e individualizada, visto que se reconhecia que a municipalidade não tinha
terrenos para abrigar todos moradores de favela. Tentava selecionar os “trabalhadores”
109
Plano de governo, 1947 apud LIMA, 1948. Anexo I. 110
EXISTEM na capital 59 favelas. Estado de Minas, Belo Horizonte, 25/05/1949. p. 6. 111
BELO HORIZONTE. Lei nº 32, de 20 de junho de 1948. Autoriza a Prefeitura a doar terrenos.
96
laboriosos dos marginais e controlar o “incentivo para que do interior venham levas e levas de
pessoas, despovoando os campos e superpovoando os nossos bairros já congestionados”112
.
Em 1949, visando ampliar o acesso à moradia nas vilas, o prefeito propôs o projeto de
lei nº 11, para isentar de impostos a construção de residências e diminuir os rigores para a
construção de casas proletárias em vilas e loteamentos do subúrbio. Na justificativa do
projeto, apontava-se a necessidade de atenuar a crise habitacional, baixar os preços dos
aluguéis e evitar a “promiscuidade” e “perda da moralidade” da população pobre. O projeto
foi aprovado pelo legislativo e transformado em lei que regularizava e aprovava a construção
de “casas proletárias” em um mesmo lote, rompendo com a restrição que existia na lei de
edificações de 1940. Desde que ficasse provado que a construção destinava-se à residência do
trabalhador, seria permitida a construção de mais de uma habitação provisória em um lote. A
habitação provisória deveria apenas evitar os materiais combustíveis na construção e seguir
alguns princípios de higiene e divisão de cômodos, para prevenir a “promiscuidade”.
Esperava-se que as habitações provisórias, no futuro, tornar-se-iam edifícios normais,
regularizados junto ao município113
.
Para dar conta da construção de habitações nos lotes que seriam subdivididos, o
município tentava se articular com os órgãos federais e as indústrias para o financiamento da
habitação. O regulamento previa a isenção de impostos aos Institutos de Previdência e às
Caixas de Aposentadoria que se propusessem construir casas proletárias nos referidos lotes.
Também concedia a isenção de impostos às empresas industriais e comerciais que
construíssem casas proletárias num mesmo lote; essas residências seriam vendidas ou
alugadas aos empregados a preços acordados com a Prefeitura114
. Além disso, ao que tudo
indica, o prefeito deixava a responsabilidade de construção de conjuntos habitacionais para o
Governo Federal. Nesse período, vários terrenos foram doados à Fundação da Casa Populares
para a construção de conjuntos habitacionais. A Vila Mato da Lenha, criada por Juscelino
Kubitschek, foi também expandida com o auxílio da Fundação da Casa Popular. Segundo o
prefeito,
algumas favelas, como a do Urubu, localizaram-se fronteiriças ao perímetro urbano,
em lugar higienicamente condenado, vizinho e a jusante do grande emissário do
esgoto sanitário. Com o poderoso auxílio da Fundação da Casa Popular, tentamos
112
Idem. 113
Projeto de lei nº 11. Isenta temporariamente de impostos casas residenciais e a aprovação de plantas e terrenos
de vilas. ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara Municipal de Belo
Horizonte. Arq. DR.010209-7419. 114
Ver artigo 11. Cf. Nota 111. Não encontramos indícios em jornais, ou no acervo da prefeitura, de empresas ou
pessoas que foram beneficiadas pela lei.
97
melhorar a sorte da infeliz população das favelas. Para tanto, tratamos da construção
de vários núcleos residenciais. O primeiro núcleo residencial construído pela
Fundação, com colaboração da Prefeitura, formou a Vila Operária Mato da Lenha
(LIMA, 1948:150).
Entre 1948 e 1955, a “Vila dos Urubus”, ou “Ilha dos Urubus”, tornou-se um dos
principais focos de interesse de assistentes sociais lotadas no Departamento de Saúde e
Assistência Social (DAS) da Prefeitura de Belo Horizonte. Situada no bairro Santa Efigênia,
próxima do centro, fazendo fronteira com a Avenida do Contorno, a linha férrea e o Hospital
Militar, a localidade foi um espaço para a reprodução do discurso sobre a marginalidade
social. Em 1951, as assistentes sociais apresentaram um plano para o “Desfavelamento da Ilha
dos Urubus” (GIANNETI, 1951: 205).
2.2.1 Departamento de Assistência Social e Saúde
O discurso de proteção social do trabalhador ganhava conotação distinta a partir da
atuação do Departamento de Assistência Social e Saúde. Tal como no Rio de Janeiro, onde as
instituições do Serviço Social tiveram destaque na formulação e no estabelecimento de
políticas públicas que tinham como objetivo o controle social dos pobres, o DAS destacou-se
no atendimento das demandas das vilas e favelas, e na formulação de um discurso sobre a
pobreza urbana. O plano de desfavelamento da Vila dos Urubus foi executado entre as
administrações de Octacílio Negrão de Lima e Américo René Giannetti (1951-1955). Era uma
intervenção pontual, bastante similar ao intento declarado por Juscelino Kubitscheck de
demolir as áreas pobres do centro de Belo Horizonte, ancorava-se, todavia, num discurso
“técnico” do serviço social, preocupado em conhecer cientificamente a área de intervenção
social. Nesse período, vemos aumentar a visitação das assistentes sociais às vilas irregulares,
principalmente as localizadas próximas à região central: “Vila Edgard Werneck”, “Vila dos
Urubus”, “Vila Pombal”, “Vila Mendonça”, “Vila Mato da Lenha”, “Vila Nossa Senhora de
Fátima” (Idem, 1952: 217). Essas profissionais vão, cada vez mais, instituir e justificar uma
atuação específica para as favelas como meio de alcançar a paz social.
Diferente do Rio de Janeiro, em que o anticomunismo foi uma referência constante
nos discursos para legitimação da instituição do serviço social; em Belo Horizonte, era o
caráter “dissolvente” da modernização e o desenvolvimento das “grandes cidades” que
legitimava o investimento no campo assistencial:
98
As administrações modernas não podem descurar da assistência social, pois se trata
de terreno sobre o qual se lançam as sementes dissolventes. Se não merecer a devida
atenção do poder público, esse setor administrativo pode concorrer para alargar os
desajustamentos sociais, criando um clima de agitação incompatível com o
progresso dos povos (GIANNETTI, 1951:215).
Criado em 1948, na reorganização administrativa da prefeitura, o DAS tratava da
questão social na cidade do ponto de vista da medicina social, coordenando os Serviços
Hospitalares, a Polícia Sanitária e o Serviço Social. Essa instituição reeditava medidas
higienistas na normatização do espaço urbano, mediadas pelo discurso da assistência social.
De acordo com Souza, o Departamento de Assistência Social apoiava outras instituições de
caridade e filantropia da cidade e tinha como objetivo “recuperar” aqueles que eram taxados
como “indigentes”:
à assistência social cabia a missão relevante de recuperar os indivíduos desajustados
e abandonados à própria sorte, em estado de depauperamento orgânico e psíquico, e
na maioria dos casos, regenerar seu caráter moral e espiritual. Transformar esses
indivíduos em cidadãos úteis significava, sobretudo, colocá-los na situação de
trabalhadores (SOUZA, 2012: 230).
Tentando expandir a abrangência do serviço social através do DAS, o prefeito
Américo René Giannetti lançou um “Plano Programa” para construir Centros Sociais,
atendendo às “vilas” situadas na periferia urbana. O prefeito Américo René Giannetti era
engenheiro formado pela Escola de Engenharia da Universidade de Minas Gerais, membro da
União Democrática Nacional (UDN), ligado à Federação das Indústrias do Estado de Minas
Gerais (FIEMG). Participou do governo estadual de Milton Campos (1946-1951) e era um
dos articuladores da política de desenvolvimento industrial regional para Minas Gerais
(DULCI, 1999). Nesse período, deve-se salientar a articulação do serviço social ao projeto de
formação da educação profissional através do SESI e SESC, este último liderado pelas
associações empresariais.
Na prefeitura de Belo Horizonte, os Centros Sociais seriam responsáveis pela
expansão do trabalho do Serviço Social, tornando os critérios de atendimento mais
“científicos”, baseados no conhecimento técnico da realidade local. Na mensagem que
justificava a criação dos Centros Sociais, o prefeito tratou da ausência de racionalidade na
assistência aos pobres. Explicava que o “diagnóstico social era baseado na maior ou menor
habilidade do interessado em fazer-se passar por necessitado” e “logicamente, o tratamento do
caso se ressentia da apuração de dados indispensáveis para se proceder a um critério justo de
seleção e aplicação de medidas razoáveis” (GIANNETTI, 1951: 92). O principal objetivo da
99
assistência social era amparar os pobres, recuperando-os e adaptando-os à sociedade urbano-
industrial, ou seja, transformando classes “marginais” em trabalhadoras.
Entre 1951 e 1954, foram construídos doze Centros Sociais, atendendo tanto a vilas
taxadas como favelas (Serra - Pindura-Saia, Vila Oeste, Vila São Jorge, Vila Santo André)
quanto a bairros (Bairro São Paulo, Barreiro, São Geraldo, Parque Santa Inês, Bairro Sagrada
Família, Vila Nossa Senhora da Paz - Cachoeirinha, Bairro Senhor Bom Jesus). Uma das
características de todos esses Centros Sociais foi a articulação com a Ação Social
Arquidiocesana (ASA) e as paróquias da igreja católica, tanto na construção desses espaços
quanto na oferta de serviços (GIANNETTI, 1954: 97; BRITO, 1955: 176-177). Segundo
Souza, uma das principais características da Prefeitura de Belo Horizonte nesse período foi a
associação com entidades filantrópicas, com o objetivo de ampliar a rede de assistência
médica e educacional para “recuperar” as classes consideradas marginais aos benefícios da
civilização (SOUZA, 2013: 214-246). Eles reuniram os serviços de educação e saúde -
lactário, salão para projetos sociais - onde ocorriam atividades educacionais básicas e
profissionais, e atendimento médico-dentário algumas vezes na semana.
A criação de Centros Sociais não era uma política específica para as favelas, mas
pretendia atender a várias localidades, atuando nos espaços identificados como “vilas” e
“favelas”, por isso eles foram um importante passo para a institucionalização do Serviço
Social na prefeitura e de um tratamento específico para os “marginalizados”. Através dos
Centros Sociais, abriu-se espaço para atuação dos profissionais formados em Serviço Social
pela Associação Mineira de Amparo e Proteção à Infância (AMOAMI) e pela Escola de
Serviço Social da Universidade Católica, criada em 1946 por Padre Agnaldo Leal, um dos
coordenadores da Ação Católica e da Juventude Operária Católica (JOC).
2.2.2 A Comissão de Desfavelamento e o DHBP
A maior integração dos quadros do serviço social na burocracia municipal foi central
para a formação da Comissão de Desfavelamento em 1955. Essa comissão foi responsável
pela articulação dos primeiros estudos específicos sobre o tema e pelo projeto de lei que criou
o Departamento Habitações e Bairros Populares (DHBP), articulando um amplo programa
com foco específico no “desfavelamento”. De acordo com o relato do prefeito Celso Mello
de Azevedo (1955-1959),
100
Desde sua instalação [a Comissão de Desfavelamento], em reuniões semanais, em
pesquisas e no exame de soluções encontradas em outros grandes centros, [os
profissionais] vêm estudando o angustioso problema das favelas em nossa Capital.
Foi com base em tais soluções examinadas, pessoalmente, por membros da
Comissão (Engenheiro Paulo Lima Vieira, em Porto Alegre, Padre Luís Viegas, em
Recife, senhorita Maria da Conceição Machado, no Distrito Federal, e em Vitória)
que uma subcomissão composta dos professores Edgar de Godói da Mata Machado
e Raul Machado Horta elaborou o projeto de lei.115
A Comissão de Desfavelamento era formada por engenheiros, assistentes sociais e
advogados, com destaque para a influência dos profissionais do Serviço Social. O trabalho do
padre Luís Viegas, professor da Escola de Serviço Social da Universidade Católica e
assistente da Juventude Universitária Católica (JUC), e Maria da Conceição Machado,
assistente social, foram centrais para o relatório que se produziu sobre as favelas de Belo
Horizonte. Eles coordenaram estudos no Morro do Querosene, na Vila São Vicente de Paulo e
na Cerâmica Santa Maria, que, juntamente com o censo da seção municipal do Instituto
Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE), fundamentaram o conhecimento das favelas no
período. A influência desses trabalhos do serviço social de base católica influenciaria a
política que seria instituída em âmbito municipal, nesse contexto o padre Luís Viegas foi
conselheiro do órgão e constantemente chamado no início dos anos 1960 para falar sobre a
questão dos “desfavelamentos”.
Além disso, a influência da assistência social aparece na escolha do relatório da
Subcomissão de Habitação e Favela da Comissão Nacional de Bem-Estar Social (CNBS) do
Ministério do Trabalho como elemento central na orientação e justificação da ação do
município. Com o propósito de racionalizar os diversos campos de ação da assistência social
para enfrentar o “problema das favelas”, a CNBS definiu as experiências do Rio de Janeiro,
Recife, Vitória e Porto Alegre como modelares para uma política nacional de habitação. São
justamente esses lugares que serão visitados pelos membros da Comissão de Desfavelamento
de Belo Horizonte. Muitas das sugestões propostas pela subcomissão de Habitação e Favelas
da CNBS seriam incorporadas pelo DHBP, na expectativa de qualificação do município, para
receber investimentos e estabelecer parcerias com os Institutos de Aposentadoria e Pensão e
com a Fundação da Casa Popular.
As discussões nacionais sobre favelas e habitação popular já vinham ganhando terreno
na política municipal e no serviço social em Belo Horizonte no pós-guerra, todavia o tema
115
AZEVEDO, Celso Mello de. Apresentação do projeto de lei 107/55 à Câmara Municipal pelo prefeito,
29/10/1955. ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara Municipal de Belo
Horizonte. Arq. DR.01.02.09 - 7894
101
ganhou relevância no governo de Celso Mello de Azevedo (1955-1959)116
. Ligado à doutrina
social-católica, o prefeito mantinha em seu horizonte uma preocupação com as condições de
vida dos operários e com o crescimento da cidade e dos grupos “marginalizados”. Um de seus
primeiros atos após a posse foi nomear a Comissão de Desfavelamento, “para o fim especial
de fazer o completo levantamento das favelas existentes em Belo Horizonte, estudar as
soluções viáveis e humanas no que concerne ao assunto e oferecer as necessárias sugestões
para a urgente solução do problema”117
. Nessa mesma seara, em 1958, Celso Mello de
Azevedo realizou acordo com a Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas
(SAGMACS) para a elaboração do Plano Diretor da cidade. A empresa de planejamento
regional, fundada em São Paulo por Padre Lebret, era representante do movimento de
Economia e Humanismo – um dos representantes mais proeminentes da “terceira via” no
período do pós-guerra e, como vimos, uma das instituições que participaram do delineamento
da categoria favela em termos urbanísticos na cidade.
Tal como seu antecessor no governo municipal, Celso Azevedo estruturava seu
governo em oposição à aliança pessedista e trabalhista. O que diferenciava seu governo do
estabelecido por Américo René Giannetti era o vínculo com grupos católicos e a maior
abertura para o diálogo com o governo federal de Carlos Luz, que também tratava a questão
das favelas cariocas, enfatizando uma união com a Igreja através da Fundação Leão XIII e da
Cruzada São Sebastião. A iniciativa do prefeito de Belo Horizonte foi apoiada por Dom
Hélder Câmara. Em 1956, em vista do descontentamento de empresários da construção civil
com a criação de uma taxa de habitação popular para financiar o DHBP, Dom Hélder fez uma
palestra na Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG) onde teria criticado
a posição dos empresários da construção civil. Segundo o jornal Última Hora, “D. Hélder
esfarinhou os argumentos daqueles que procuram impedir a solução da favela em Belo
Horizonte”, argumentando que o econômico não deveria “perder o senso do humano”118
. Em
vista da demora na aprovação do projeto de lei do DHBP, os párocos progressistas também se
manifestariam a respeito do tema no jornal O Diário, evocando a autoridade de Dom Hélder:
Os jornais de sexta-feira passada noticiaram que está sendo discutido na Câmara dos
Vereadores desta cidade o projeto de lei que “cria o Departamento Municipal de
Habitação e Bairros Populares e dá outras providências” (...) No momento em que,
no Rio de Janeiro, o virtuoso e dinâmico arcebispo-auxiliar do Cardeal Câmara,
116
Nascido em Belo Horizonte, o médico e engenheiro formado pela Universidade de Minas Gerais na década de
1940, era membro do Partido Democrata Cristão (PDC). Foi eleito por uma coligação que unia a UDN, o Partido
Republicano (PR) e o Partido Trabalhista Nacional (PTN). 117
BELO HORIZONTE. Portaria nº 557, de 2 de abril de 1955. Cria a Comissão de Desfavelamento; BELO
HORIZONTE. Portaria nº 588, de 2 de junho de 1955. Amplia a atribuição da Comissão de Desfavelamento. 118
PROBLEMAS. Última Hora. Rio de Janeiro, 24/01/1956, p. 2.
102
Dom Helder, o magnífico organizador do XXXVI Congresso Eucarístico
Internacional inicia a “Cruzada São Sebastião” para recuperar os favelados,
mediante a humanização e cristianização das favelas, nada mais oportuno do que
este projeto que ora cumpre na Câmara dos Vereadores os trâmites legais119
.
A taxa de habitação popular foi uma recomendação da CNBS do Ministério do
Trabalho para os governos municipais. Tomava-se como exemplo a ser difundido em nível
nacional a ação do Departamento de Habitação Popular de Porto Alegre, que criou um fundo
municipal para construir habitações populares. Na visão descentralizadora da Subcomissão de
Habitação e Favela, a taxa, juntamente com a autarquia especializada no trabalho com a
marginalidade urbana, funcionaria de forma descentralizada com a ajuda dos Institutos de
Aposentadoria e da Fundação da Casa Popular. No pré-projeto que inspirou o SERFHA,
elaborado pela CNBS e com o foco na capital federal, também havia a recomendação para a
criação de uma taxa de habitação, contudo essa não foi instituída. Na visão de Luís Duprat,
como vimos, a atuação de Dom Hélder na Cruzada São Sebastião colaborou para o
apagamento da SERFHA, que se tornou uma autarquia sem acesso a fundos públicos. Em
Belo Horizonte, a taxa foi instituída, mas sofreu forte oposição do sindicato empresarial da
indústria da construção civil.
De acordo com a lei que criou o DHBP, a taxa de habitação popular que subsidiaria a
atuação da nova autarquia municipal seria cobrada em 3% sobre o valor dos loteamentos
aprovados e dos prédios a serem construídos120
. Contra a taxação, Danilo Andrade,
representante do setor imobiliário, entrou com uma ação na justiça, considerando
“demagógica” e incapaz de resolver o problema das favelas, que seria de ordem nacional. Na
expressão da peça de propaganda que circulou entre políticos e empresários municipais, a taxa
de habitação popular representava uma “orgia tributária” do município121
. A demanda recebeu
apoio da bancada petebista na Câmara dos Vereadores, que, atuando na oposição ao governo
de Celso Azevedo, considerava que “a taxa de 3% [era] considerada excessiva e mesmo uma
das mais elevadas ou a mais elevada cobrada pelo município, principalmente considerando
que a população [havia sofrido à época] um pesado aumento do imposto predial”. Ainda que
119
O DIÁRIO. Belo Horizonte, 03/12/1955, p. 5. 120
BELO HORIZONTE. Lei nº 517, de 29 de novembro de 1956. Cria o Departamento Municipal de Bairros e
Habitações Populares, institui a Taxa de Habitação Popular e dá outras providências. 121
Danilo Andrade mandou publicar um livro que servia como propaganda de sua ação judicial contra a
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. O livro a que tive acesso na biblioteca do Instituto Cultural Amilcar
Martins foi endereçado a Hernani Maia, deputado estadual petebista que, no início dos anos 1960, teve grande
destaque na luta pelas reformas de base, chegando a participar da organização do I Congresso Nacional dos
Trabalhadores Agrícolas. Cf. ANDRADE, Danilo. Orgia Tributária em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Gráfica
Santa Maria, 1958.
103
considerasse justo o intento de retirar “os favelados da vida à margem da sociedade”, ele via
no DHBP uma “autonomia” administrativa excessiva122
.
A aprovação do DHBP e da taxa de habitação popular contou com ampla mobilização
de setores progressistas da igreja católica. Além da visita de Dom Hélder Câmara, o jornal
arquidiocesano O Diário cobriu a importância da habitação na doutrina social-católica,
enfatizando a necessidade de dar uma solução “cristã” às favelas. A Juventude Operária
Católica (JOC) e Juventude Universitária Católica (JUC) mobilizaram-se e enviaram
telegramas à Câmara dos Vereadores. Uma vez que tinha influência em algumas “vilas” na
cidade, a JOC lançou a campanha “Quem casa, quer casa”, no combate contra a
“promiscuidade” na classe trabalhadora e na tentativa de “alertar a consciência cívica e cristã
do nosso povo acerca de tão grave problema”123
. O projeto na Câmara foi defendido pelo
vereador eleito pelo Partido Democrata Cristão (PDC), o dentista Leopoldo Garcia Brandão –
vereador eleito pelos laços sociais com os movimentos laicos da Ação Católica124
.
Constituída dentro da perspectiva da democracia cristã, a taxa de habitação popular e o
DHBP transformariam o modo de vida dos pobres, retirando-os da “marginalidade”.
Disputando com o trabalhismo a intervenção na questão social, o prefeito Celso Melo
Azevedo pagou uma longa reportagem no jornal Tribuna da Imprensa, apresentando as
conquistas de sua gestão no ano de 1958, quando seria eleito o novo prefeito de Belo
Horizonte:
A jovem Capital de Minas, florescente cidade, terra de cultura e pesquisadora da
arte, carrega também o peso de 27 favelas com 40 mil habitantes, vivendo em 9.343
barracos. A Prefeitura, sentindo a necessidade do desfavelamento, na gestão do
prefeito Celso Mello Azevedo, criou o Departamento de Habitação e Bairros
Populares, o DBP, que vem atuando com seriedade o decantado problema. (...)
Havia 150 famílias residindo na Barragem Santa Lúcia, querendo deixar o local. Daí
o DBP iniciou o seu trabalho. Construiu 4 apartamentos experimentais. Com
resultado favorável, principiou a construção de mais 92. São apartamentos de dois
quartos, sala, cozinha com fogão a gás e acomodações. As redes de luz e água foram
construídas com os recursos do próprio DBP. Em frente ao bloco de apartamentos,
haverá play-grounds para os filhos dos favelados, livrando-os da escola do crime,
122
CARTA do líder do PTB a Geraldo Renault, presidente da Câmara dos Vereadores, 25/11/1955. ARQUIVO
PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara Municipal de Belo Horizonte. Arq.
DR.01.02.09 - 7894 123
CARTA da Juventude Operária Católica a Geraldo Renault, presidente da Câmara de Vereadores, em
23/11/1955. ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara Municipal de Belo
Horizonte. Arq. DR.01.02.09 - 7894 124
Leopoldo Garcia Brandão foi eleito pelo Movimento Político Popular, que tentou organizar a base política
católica nas favelas de Belo Horizonte (no capítulo VI analisaremos esse movimento). Durante o seu mandato de
vereador (1955-1959), migrou para o Partido Trabalhista Brasileiro. Nos anos 1960, participou do Congresso da
Juventude Trabalhista Brasileira, que reunia políticos ligados à plataforma das reformas de base, uma ala mais à
esquerda no diretório municipal do PTB, que não era alinhada ao prefeito Amintas de Barros.
104
para onde entram cedo, quando se encontram desocupados, à mercê da prática de
atos delituosos. (...)
Por apenas Cr$ 660,00 mensais, os favelados podem adquirir seus apartamentos que
lhes custarão Cr$ 100 mil. As primeiras unidades já estão ocupadas e vendidas. Com
esse plano, a Prefeitura pretende extinguir as favelas, primando pelo traçado da
cidade e enfrentando a séria luta social das grandes cidades – as favelas125
.
O DHBP e a taxa de habitação popular foram marcos fundamentais para a política
habitacional da cidade. A taxa de habitação popular existe, até os dias de hoje, incorporada ao
Fundo de Habitação Popular, e voltada para a finalidade de “urbanizar vilas e favelas,
recuperar unidades habitacionais, adquirir imóveis destinados a programas de habitação e
interesse social”.126
Contudo, quando foi criada a taxa de habitação, os objetivos da política de
“desfavelamento” eram outros, distintos do intento de consolidar as vilas e favelas no espaço
urbano. O DHBP buscava extinguir as favelas do tecido urbano e alterar o modo de vida dos
“marginalizados”. Segundo a reportagem, o Serviço Social seria incumbido de importantes
funções. Em primeiro lugar, o Conjunto habitacional Santa Maria – projetado por Sylvio
Vasconcellos (um dos profissionais que foi ícone da arquitetura modernista em Belo
Horizonte) – teria seu espaço habitacional planejado com o claro objetivo de ressocializar os
moradores, elevando-os à modernidade urbano-industrial, e retirando as crianças da “escola
do crime”. Em segundo lugar, o Serviço Social teria uma função especial, ao oferecer “cursos
práticos de preparação para a mudança de domicílio, incluindo noções de decoração, higiene e
de corte e costura, além de alfabetização”127
.
Entre 1956 e 1964, o DHBP construiu o Conjunto Santa Maria, o Conjunto São
Vicente e a Vila São Bernardo, para transferir os moradores que seriam removidos no
desfavelamento da cidade. O desfavelamento também significava retirar os moradores das
condições “sub-humanas” e a disseminação dos bens de consumo civilizados. Os
apartamentos eram constituídos em estilo moderno e providos de fogão a gás, luz e outros
itens de consumo valorizados. A Vila São Bernado diferenciava-se dos dois conjuntos
habitacionais pelo tipo de construção, de casas geminadas, e por ser realizado a partir de
mutirões, reunindo moradores, técnicos e assistentes sociais. Buscava-se economizar recursos
e desenvolver o “espírito comunitário”, estimulando os mutirões. O mutirão também deveria
servir como meio para a construção de “Centros Cívicos” nas favelas, um espaço que reuniria
“mercado, escola, ambulatório médico-dentário e capela”128
. Esses Centros Cívicos eram
125
BELO Horizonte iniciou seu desfavelamento. Tribuna da imprensa. Rio de Janeiro, 28/02/1958. p. 7. 126
BELO HORIZONTE. Lei nº 6.326, de 18 de janeiro de 1993. Dá nova regulamentação ao Fundo Municipal de
Habitação Popular e dá outras medidas. 127
BELO Horizonte iniciou seu desfavelamento. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 28/02/1958. p. 7. 128
Idem.
105
bastante semelhantes aos “Centros Sociais”, criados pelo prefeito Américo René Gianneti,
seriam espaços onde agiriam prioritariamente agentes do Serviço Social público e privado.
O DHBP também construiu arruamentos, caixas de água e “bicas” (torneiras públicas)
em favelas. Essas obras não ganharam o mesmo destaque que a construção dos conjuntos
habitacionais e das casas populares. Elas não estavam previstas no programa de
desfavelamento do DHBP e, em algum sentido, eram o oposto do projeto encampado pela
Prefeitura. Para compreendermos as circunstâncias em que essas obras foram incorporadas,
devemos considerar a atuação das associações de favelas junto ao DHBP. Em 1959, numa
assembleia para discutir as obras de habitação popular, lideranças de associações da FTFBH
apontavam vários problemas na construção de conjuntos habitacionais – principal enfoque do
plano de desfavelamento – e negociavam obras de melhoramentos nas favelas129
.
Diferentemente do Rio de Janeiro, onde a União dos Trabalhadores Favelados marcou
uma forte oposição e contestação das ações desencadeadas pela Prefeitura do Distrito Federal,
em Belo Horizonte, a Federação dos Trabalhadores Favelados (FTFBH) assumiu uma
interlocução com o DHBP. Em grande parte, isso ocorria devido à existência de lideranças
católicas, que participavam do movimento social de favelas e mantinham relação com padres
e grupos da Ação Católica, e em razão da tentativa dos prefeitos de transformarem o cargo de
diretor do DHBP em uma alavanca política para a penetração eleitoral nas favelas. O
estreitamento da relação do DHBP com associações de moradores implicava aceitar parte do
programa de desfavelamento, mas também ampliar as obras assistenciais em detrimento das
ações de remoção com a construção de conjuntos habitacionais e casas populares. Felipe
Cupertino, morador e engajado na associação da Vila Nossa Senhora dos Anjos, referiu-se a
essas distâncias e proximidades do programa do DHBP da seguinte maneira:
Devemos exigir do DHBP que a assistência às favelas continue. Quem vai poder nos
ajudar a não ser o DHBP? Construir milhares de casas, o DHBP não pode, e sair da
favela, para longe, o favelado também não quer. Portanto, o justo é dar assistência –
água, luz, terraplanagem, encascalhamento, posto médico, escola etc. Isso é o que o
favelado reclama e merece.130
Através do discurso da assistência ao pobre e ao necessitado, havia um conteúdo de
demandas bastante amplo. Reivindicavam água, luz, arruamento, posto médico e escola. Eram
itens providos pelo poder público aos bairros residenciais regulares, mas que não estavam
129
PARA miséria de Favelas Ilegais, Sem Água, Esgoto ou Luz, apartamento está cada vez mais longe de ser
solução infernal. DIÁRIO DA TARDE. Belo Horizonte, 24/11/1959, p.5. 130
ASSISTÊNCIA e lotes do DHBP só podem ser para favelados. O Barraco. In: BINÔMIO. Belo Horizonte,
Caderno 2, 11/03/1963. p. 6.
106
incluídos na pauta do que seria generalizado nas favelas, pois implicaria a consolidação
desses espaços na cidade. A imagem da pobreza e da solidariedade para construção de uma
sociedade “humana”, evocada como meio de mobilizar a consciência das classes sociais para
legitimar a atuação em prol do desfavelamento, passou a ser usada de forma tática pelos
moradores. Considera-se “tática” aquela que Certeau chama de “ação calculada que é
determinada pela ausência de um próprio, nenhuma delimitação de fora lhe fornece a
condição de autonomia, e por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o
organiza a lei de uma força estranha” (CERTEAU, 2002a: 100). Os moradores usavam do
discurso da assistência social para ampliar o conteúdo das responsabilidades do DHBP.
Longe de ser um dispositivo para integrar as “classes marginais” na sociedade do
trabalho, como discorrido no discurso da administração municipal, a linguagem da assistência
era manipulada pelo movimento de favelas, na tentativa de consolidar os espaços de moradia.
Os ganhos que os moradores tiveram com essa performance foram vários. Se acompanharmos
o livro de contas do DHBP, entre 1961 e 1964, foram construídas “bicas” (torneiras públicas),
arruamentos, ajuda para construção de casas, postos médicos e caixas de água nas favelas com
recursos do órgão. Essas obras não estavam previstas na pauta de ação da Prefeitura para o
desfavelamento da cidade e nem foram divulgadas em propagandas, como os conjuntos
residenciais, mas foram incorporadas como parte do clientelismo da relação entre as
associações e os diretores.
Além disso, as associações ligadas à FTFBH apropriaram-se também dos Centros
Sociais construídos para prestar assistência aos favelados. Esses espaços criados pelo poder
público foram usados como “sedes” das associações. As entidades e o poder público tentavam
firmar acordos para oferecer vários tipos de serviço: lactários, cursos de corte e costura,
turmas de alfabetização, atendimento médico. Esses serviços eram prestados de forma
temporária e precária, variando com os acordos firmados por lideranças associativas e pela
Prefeitura. Defender a assistência social e a construção desses centros sociais, através do
programa de desfavelamento, garantia um dos principais símbolos das associações: a sede.
Nas manifestações da FTFBH, não se fazia distinção entre os centros sociais e as sedes das
associações. Como se observa na reunião da FTFBH, em julho de 1961, havia uma grande
confusão entre as sedes construídas pelos moradores e os centros sociais incorporados à
estrutura de assistência do DHBP:
A respeito ainda da inoperância do DHBP, foi lida carta do Sr. Antonio Morais,
diretor do Comitê de Defesa Coletiva da Vila Caetano Furquim, que informou sobre
o desinteresse do DHBP sobre os problemas dos favelados daquele núcleo. Disse o
107
Sr. Antonio Nogueira (sic) que, há um ano, vem pleiteando a construção da sede do
comitê. O diretor promete ir à vila para resolver o assunto e nunca aparece, deixando
dezenas de trabalhadores favelados à espera várias vezes.
Ainda para evidenciar a inoperância do Departamento de Habitação e Bairros
Populares na atual administração, foi lembrado que, de 1959 para cá, foram
construídas apenas quatro sedes de Comitês de Favelados – assim mesmo mais pelos
próprios favelados do que pelo DHBP – contra dezoitos construídos durante a
administração do Prefeito Celso Azevedo131
.
Não foi possível averiguar se Celso Azevedo ou Amintas de Barros construíram o
que se discrimina acima. Nesse trecho, há o indício de uma representação que se tornou
corrente no final de 1961 e 1962. Às vésperas do ano eleitoral, a FTFBH passou a fazer
comparações entre Celso Azevedo e Amintas de Barros (1959-1963), mostrando a
“humanidade” do primeiro em contraposição ao desprezo do segundo. Nessa comparação, não
havia nenhuma valoração de partidos políticos. Havia, na verdade, a contraposição entre duas
personalidades e seus respectivos carismas. Essas representações foram usadas de forma
estratégica para tornar pejorativa a imagem do prefeito. No ano eleitoral, quando tentava a
eleição de deputado federal, Amintas de Barros tentou reverter esta imagem, nomeando
Ubaldo Pena para diretor do DHBP e ampliando as obras de assistência nas favelas. O
resultado dessa ação foi um tanto curiosa: a mulher de Ubaldo Pena, Maria Luiza Pena,
conseguiu se eleger como deputada estadual com o apoio da FTFBH e outras entidades de
classe, mas Amintas de Barros não obteve o mesmo sucesso. Sua imagem continuou a ser
lembrada de forma pejorativa pelo movimento social.
O prefeito Jorge Carone (1963-1965) foi quem melhor reconheceu e se utilizou da
injunção política em que o DHBP estava envolvido. A FTFBH não o apoiou na eleição de
1962. O apoio tinha sido direcionado ao candidato José Maria Rabelo, do Partido Socialista
Brasileiro (PSB), contudo Carone buscou apoio em lideranças de favelas não vinculadas à
FTFBH, construindo redes de apoio à sua candidatura. Quando assumiu a Prefeitura, nomeou
Raimundo Tinti como diretor do DHBP, que entrou em um acordo com a FTFBH. Conforme
se pode verificar no livro de contas do Departamento, a partir de 1963, a sede da FTFBH, uma
sala no centro de Belo Horizonte, na Rua Rio de Janeiro, passou a ser paga com recursos do
DHBP. Em 1963, veremos a FTFBH organizando vários memorandos e abaixo-assinados,
recorrendo ao DHBP para ampliar a “assistência” às favelas, como também dando apoio a
Raimundo Tinti e ao prefeito Jorge Carone. Como veremos no Capítulo VII, essa relação
131
FAVELADOS em assembleia protestam contra perseguição da Prefeitura. Última Hora – Edição de Minas,
Belo Horizonte, 04/07/1961, p. 7.
108
também foi de tensão, com a FTFBH apoiando um projeto que buscou reorganizar a atuação
do DHBP para a realização da reforma urbana.
Em 1964, o DHBP foi incorporado à política habitacional do governo federal,
fazendo parte da estratégia articulada pela União através do Banco Nacional de Habitação
(BNH). Sua estrutura política de ligação com as associações de moradores e os projetos de
reforma do órgão, para atender aos pressupostos da reforma urbana pretendida pelas
esquerdas e pela FTFBH, foi devassada no Golpe de 1964, com denúncias e acusações de
infiltração comunista no referido órgão. Como resultado da nacionalização das políticas de
habitação, em 1967, o DHBP foi incorporado à administração direta da Prefeitura e, em 1971,
substituído pela CHISBEL - Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo Horizonte
- que operou um vasto programa de remoção de favelas. Essa iniciativa teve como ponto alto
a construção da “Via Expressa”, que ligou a Cidade Industrial ao centro de Belo Horizonte
(OLIVEIRA, 2012).
2.3 Serviço Social, políticas habitacionais/assistenciais e igreja católica
Como se observa na trajetória das práticas estatais do Rio de Janeiro e de Belo
Horizonte, o processo de identificação das favelas através da retórica da marginalidade
destacou-se na construção do Estado de Bem-Estar Social no Brasil132
. Em torno das imagens
“marginal/classes perigosas” e trabalhador, “inadaptado” e “adaptado”, “rural” e “urbano”
foram construídos os principais sentidos das práticas estatais. Reiteravam-se as oposições
entre anomia e normalidade, para enquadrar a representação do espaço e das classes
populares. Esse discurso justificava uma seletividade no atendimento dos grupos e
indivíduos, assim como ações de cunho pedagógico-autoritárias nas práticas estatais em
relação aos pobres, desconsiderando os estilos de vida e as ações dos atores.
Ao discutir a relação entre a ideologia da marginalidade e a pobreza urbana, Perlman
argumentou sobre a “utilidade estrutural, funcional e política dos mitos em relação às
condições objetivas da pobreza e do desenvolvimento dependente” (PERLMAN, 2012: 222).
No seu trabalho de campo, Perlman (1977) se preocupava em desconstruir o “mito da
marginalidade”, mostrando a funcionalidade o espaço urbano da favela para muitos aspectos
132
Como observa Machado da Silva, até os anos 1980, os debates sobre a questão das favelas colocam-se no
âmbito da expansão “da proteção social com a incorporação progressiva das massas às relações de classe e seu
reconhecimento como atores no debate público” (MACHADO DA SILVA, 2012: 60). Esse quadro é alterado de
forma substancial a partir dos anos 1990. A metáfora da guerra e a construção de um discurso da “cidade
partida”, limitada no seu atendimento às demandas pela extensão de direitos sociais e urbanos, foi a tônica que
contrasta com o passado recente do Brasil (LEITE, 1996).
109
da vida de seus moradores. A autora concentra suas pesquisas no intervalo de tempo que
sucedeu as décadas de 1960 e 1970, período de fortes investimentos na habitação popular e
aumento das remoções conduzidas pelo poder público. Esse quadro ocorreu num contexto de
ditadura civil-militar e de restrição dos canais representativos das demandas e reivindicações
dos trabalhadores. Todavia a noção de marginalidade já estava presente na semântica
histórica das políticas sociais e do discurso estatal sobre as favelas nas décadas de 1940 e
1950. As práticas estatais assumiam o processo de adaptação e inserção dos migrantes ao
meio urbano como principal questão a ser resolvida através de políticas habitacionais e
assistenciais. Mesmo assim, ainda havia um processo amplo de apropriação e refiguração de
sentido desse discurso nos movimentos sociais e relações de sociabilidade instituídas dentro e
fora das favelas, no sentido de reivindicar o direito à cidade.
O conhecimento produzido pelo Serviço Social foi central na institucionalização da
retórica da marginalidade e na ação das práticas estatais em favelas. Como notou Iamamoto e
Carvalho (2013), a instituição do Serviço Social decorre de um processo histórico de
emergência da questão social e de seu reconhecimento “do crescimento numérico do
proletariado, da solidificação dos laços de solidariedade política e ideológica que perpassam
esse conjunto, base para a construção e para a possibilidade objetiva e subjetiva de um projeto
alternativo de dominação burguesa” (IAMAMOTO & CARVALHO, 2013: 135). Ou seja, o
Serviço social foi instituído em grande medida por instituições privadas e públicas que se
contrapunham ao rompimento da ordem social e política, receosas da ameaça de “revolução
social” simbolizada pelo crescimento do movimento operário e da esquerda.
A configuração do trabalho do Serviço Social decorre também da relação entre a
assistência social e a emergência da economia da caridade133
em recusa ao paternalismo. Na
institucionalização da assistência social na modernidade capitalista, um conjunto de
representações, práticas e instituições foram estruturadas em contraposição às obrigações do
paternalismo nas relações familiares, de trabalho e de proximidade comunitária. No século
XIX, “apesar de não desaparecer totalmente com a implantação da economia política e seus
novos valores [liberais], a ação paternalista deixou de ser o móvel do assistencialismo,
transferindo-o para o dever social, que é não privilégio de uma classe ou grupo, é tarefa
entendida como sendo coletiva” (SOUZA, 2004: 16). A expansão do pauperismo nas cidades,
a generalização do contrato de trabalho assalariado e a vigência da economia política liberal,
alterando os sistemas de regulação moral do mercado e das relações de trabalho vigentes no
133
CASTELLS (2010) designa “economia social” para se referir à assistência social privada e pública, o que não
nega o primado da economia política liberal.
110
século XVIII na Europa134
, transformam as formas de se referir à proteção social, sem tocar
no primado do liberalismo econômico135
.
No caso brasileiro, Souza (2004) analisa a Primeira República (1889-1930) como uma
“Era de ouro da assistência” e da economia da caridade. A assistência, principalmente de
cunho privado e religioso, tinha como pano de fundo a difusão de um disciplinamento para o
trabalho, com o fim do escravismo e a institucionalização da assalariação. A assistência
pública e a privada tinham como pano de fundo o reconhecimento do “dever” de toda
sociedade combater a pobreza, sem que o Estado interferisse nas relações de trabalho.
Atribuíam-se valores morais aos excluídos e aos seus comportamentos, que deveriam ser
alterados, para garantir a inserção num padrão considerado “normal”. Ao final de quarenta
anos de república, as instituições de assistência passaram a demandar cada vez mais recursos
e iniciativas públicas, para executar suas ações e cumprir com o “dever” de atender aos
pobres.
A institucionalização do Serviço Social decorre da progressiva incorporação dos
campos instituídos na economia da caridade pelo Estado. Declarando o caráter “técnico”
(neutro) de seu trabalho e a sua utilidade para organização da sociedade, o Serviço Social
incorporou o atendimento aos órfãos, indigentes, desvalidos e pobres, que eram os objetos
privilegiados da assistência. Recuperando o primado da economia da caridade, o Serviço
Social também rejeitava o paternalismo em favor do “dever” social de todo cidadão para com
os excluídos da sociedade capitalista, tendo como objetivo a “recuperação”, “adaptação” e
“educação” desses grupos para a inserção na sociedade urbano-industrial. Como vimos, o
principal eixo de ação do Estado nas favelas, entre as décadas de 1940 e 1960, transcorreu
através da institucionalização de ações ligadas ao Serviço Social e à assistência social
prestada pelo poder público. Como já enfatizou Valla (1986) e Burgos (2002), as ações
públicas estimuladas, em princípio na favela, tinham um viés educacional, enfatizando um
“processo civilizatório” para as classes populares.
A reflexão sobre o “desfavelamento” das cidades ocorria no âmbito da constituição de
ações que pudessem “adaptar” os grupos tratados como “marginais” da sociedade e proteger
as “famílias” trabalhadoras da dissolução social. No Rio de Janeiro, o Serviço de Parques
134
Thompson (1998) conceituará essas relações tipificadas no paternalismo do século XVII como “economia
moral”. Na historiografia do assistencialismo (PINTO, 1999; SOUZA, 2012; SOUZA, 2004), fala-se de uma
passagem da economia moral para a economia da caridade. Para uma reflexão sobre a relação entre as
obrigações morais econômicas e o nascimento da economia política liberal, cf. THOMPSON, 1998; POLANYI,
2000; CASTELLS, 2010. 135
Num diálogo bastante intenso com Vigia e Punir (1991), de Michel de Focault, os autores vão mostrar a
assistência social e a institucionalização da economia da caridade como um contraponto e uma alternativa à
prisão e ao hospício, e como mecanismo para lidar com os excluídos da ordem social capitalista.
111
Proletários, o Serviço de Recuperação de Favelas, a Fundação Leão XIII, a Cruzada São
Sebastião e o SERFHA foram claramente instituídos dentro desse quadro; em Belo Horizonte,
algumas práticas do Departamento de Assistência Social e do Departamento de Habitação e
Bairros Populares viram a institucionalização do serviço social no âmbito municipal e a
construção de um lócus específico para atuar nas favelas, distinguindo-as das vilas
suburbanas. Esses órgãos do poder público municipal quase sempre sofreram com a limitação
de recursos para ação136
. Enquanto o Rio de Janeiro era a capital da República, as instituições
ligadas ao executivo municipal dependiam de uma intrincada relação entre Presidência da
República, Câmara Federal, Senado e Câmara Municipal. Essa estrutura de governança tem
sido estudada como uma característica da política carioca durante o período republicano em
que foi Capital Federal, e em que Executivo Federal e Câmara Municipal se confrontavam na
definição da autonomia do governo da cidade (FREIRE, 2000; FERREIRA & DANTAS,
2000; MOTTA, 2004; OLIVEIRA, 2011). Dentro dessa estrutura, a política para as favelas
não tinham verba definida e oscilava de acordo com os tempos e as iniciativas do governo
federal. Diferentemente, em Belo Horizonte, a política para as favelas seguia a dinâmica
política da eleição municipal e teve algum grau de autonomia em relação à instituição da
“taxa de habitação popular” – ainda que não possamos avaliar a forma como essa verba foi
usada pelo município.
Entre 1945 e 1964, a igreja católica, em aliança com o Estado, teve um papel central
na institucionalização das instituições privadas, que cuidavam da assistência social e do
Serviço Social. Os problemas relativos à pobreza e indigência social não eram novidades no
cristianismo, nem na atuação católica brasileira, entretanto eles ganharam uma roupagem
institucional e política distinta. Os brasilianistas Mainwaring (1989) e Serbin (2008)
concentraram-se nesse ponto, com o intuito de observar uma identidade “progressista” para
parcela significativa da comunidade católica no Brasil. O debate sobre a pobreza e o
subdesenvolvimento nos países de terceiro mundo levou a uma “nova modernização católica
após a Segunda Guerra mundial e desencadeou no Brasil e na América Latina um movimento
em prol de uma Igreja baseada no poder do laicato e na luta pela justiça social” (SERBIN,
2008: 31).
136
Ainda que não seja possível abordar em termos de números orçamentários os valores direcionados para os
órgãos de desfavelamento arrolados, lembro aqui da leitura de Victor Nunes Leal, em Coronelismo, Voto e
enxada. O livro que ficou célebre para pensar o coronelismo e as relações pessoais de dependência econômica e
política na Primeira República foi escrito como uma tese de doutoramento, cujo principal tema era o
municipalismo no Brasil. Ao observar a onda municipalista na Constituição de 1946, Leal questionava-se sobre a
não regulamentação dos orçamentos dos municípios, temendo que se reproduzisse a experiência da Primeira
República, onde o município se tornou uma das principais ferramentas de controle político e eleitoral.
112
Essa onda de renovação das práticas levou os religiosos ao confronto com a agenda
política nacional. Após a Segunda Guerra Mundial, a igreja católica buscou novos aportes e
posições, sintonizando-se com as discussões em torno da “realidade brasileira”, incorporando
temas debatidos no meio intelectual e na sociedade civil. Essa abertura vinha seguida de
críticas, de adaptações e de reformulações das práticas religiosas constituídas no Brasil a
partir de modelos europeus. Um dos aportes fundamentais desse processo foram os
movimentos da Ação Católica Brasileira (ACB), criada em 1935, e as práticas coordenadas
pela Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBS). É importante notar que Dom
José Távora, na Fundação Leão XIII, Dom Hélder Câmara, na Cruzada São Sebastião, e padre
Luís Viegas e Agnaldo Leal, no Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais e
no DHBP estiveram todos vinculados aos movimentos de ação católica no Brasil. E eles, bem
como os leigos coligados a essas personalidades, foram de grande importância para a
discussão das políticas das favelas e a formação da retórica da marginalidade urbana.
Apesar de muitos personagens ligados a essa atuação tornarem-se símbolos da
renovação católica após o Concílio Vaticano II (1962-1967), essa modernização católica tinha
um caráter diferente. No caso das favelas, pode-se perceber que os grupos católicos optaram
por uma aliança com o poder público municipal, no intuito de combater o comunismo e
difundir valores religiosos entre as classes populares. Isso não significa dizer que os católicos
não fomentaram formas associativas nas favelas, mas elas não tinham grande repercussão nas
práticas religiosas como ganharam após o Concílio Vaticano II137
. Na análise do caso da UTF,
no Rio de Janeiro, as iniciativas do poder público associadas com os católicos para forjar
associativismos vão sofrer forte oposição dos comunistas; no início dos anos 1960, a ação do
SERFHA, sob a coordenação de José Arthur Rios, fomentou a formação de associações e uma
maior aproximação com as iniciativas do poder público. Em Belo Horizonte, a FTFBH
constituiu-se num espaço de associação entre os católicos e grupos de esquerda, bem como
das ações do poder público.
A modernização da igreja católica ganhou formas heterogêneas na história, variando
de acordo com o lugar e a experiência individual e coletiva dos membros da comunidade
católica. O projeto de “recuperação” dos favelados tinha um claro viés moral, valorizando a
família monogâmica tradicional, disciplinando o cidadão pobre para o trabalho e promovendo
a “paz social”, como também evitando confrontos de classe. Ainda que se constituísse como
137
O Concílio Vaticano II (1962-1965) e a II Conferência Geral do Episcopado Latino Americano, em Medellín,
fomentaram uma religiosidade próxima das classes populares e de seus problemas através das Comunidades
Eclesiais de Base, questionando o status quo da sociedade capitalista e assumindo alianças com grupos de
esquerda.
113
um campo de práticas distintas, que tentavam se diferenciar da filantropia e assistência
religiosa, o Serviço Social esteve nas favelas envolvido e bastante próximo desse projeto de
modernização católica. Como bem observou Iamamoto e Carvalho (2013), a Igreja teve
iniciativa central na fundação dos cursos de Serviço Social e parcelas significativas das
profissionais foram recrutadas entre as mulheres com experiência na assistência social de tipo
católica. O avanço do poder público, do Serviço Social e dessa corrente ideológica da paz
social foi parte constitutiva da retórica da marginalidade social, tanto no Rio de Janeiro
quanto em Belo Horizonte.
Além das ações municipais associadas à igreja católica nos casos estudados, a retórica
da marginalidade no processo de identificação das favelas ganhou importantes vetores de
difusão através do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Subcomissão de
Habitação e Favelas da Comissão Nacional de Bem-Estar Social (CNBS) no Ministério do
Trabalho. Essas instituições foram instâncias fundamentais para construção da identificação
das favelas nos anos 1950, estando intimamente ligadas com as ações públicas que foram
desenvolvidas nas ações de “desfavelamento” das cidades.
114
3 OS CENSOS E A IDENTIFICAÇÃO DAS FAVELAS NO RIO DE JANEIRO E EM
BELO HORIZONTE
A identificação das favelas consolidou a especialização e a formação de um campo de
ação do poder público. Nas duas cidades, essa mudança institucional fundou uma demanda
para a produção de um saber que legitimaria e orientaria as ações e debates do Estado. Os
censos de favelas foram um dos principais caminhos para o estabelecimento desse
conhecimento do território e parte constitutiva do processo de identificação produzida nas
décadas de 1940 a 1960. Os relatórios e estudos estimulados por agências estatais sobre
favelas davam centralidade às estatísticas para justificar os caminhos da administração
pública.
No Rio de Janeiro, após a legislação que homogeneizava o status das favelas, Victor
Tavares Moura realizou um estudo específico sobre o tema. Em 1940, Victor Tavares Moura
coordenou uma produção censitária, para orientar a política de construção de Parques
Proletários Provisórios. Em 1948, 1950 e 1960, esses censos continuaram sendo produzidos,
só que agora prioritariamente no âmbito do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), e envolvendo uma ampla divulgação dos resultados. Em Belo Horizonte, o primeiro
censo divulgado ocorreu em 1955. Produzido pela agência municipal do IBGE, a estatística
subsidiou a discussão sobre a formulação de um status jurídico para as favelas e a
especialização de um setor da Prefeitura, para atuar no desfavelamento. Em 1965, outro censo
foi feito, com diretrizes bastante próximas da estatística de 1955, pela Secretaria de Trabalho
e Educação Popular em associação com a seção estadual do IBGE de Minas Gerais.
A relação entre a produção estatística e a formação de um campo de atuação estatal
não é uma particularidade do censo das favelas. Essa relação pode ser compreendida como
uma condição para produções censitárias em diferentes esferas, desde a economia até a saúde.
Segundo Starr (1980), a própria palavra “estatística” surgiu no século XVIII e se difundiu no
século XIX, concomitante ao processo de centralização e racionalização do poder estatal na
Europa. Estatística significava mensuração de fatos relativos ao Estado, sendo reconhecida
sua importância para o controle, o governo e a dominação. Juntamente com a
institucionalização dessa forma de conhecimento, alteraram-se o significado e a prática do
censo. Os censos modernos se impuseram como uma linguagem de governo, eram feitos com
alguma periodicidade, abrangiam toda a população do território, numa coleta de dados a partir
do domicílio, e eram divulgados na esfera pública. Por todas essas características, o censo
moderno distingue-se do tradicional, outrora praticado por monarcas no período anterior ao
115
século XVIII. Este era fragmentário, não atingia todos os indivíduos, não tinha tempo certo de
começo e término, como também era secreto (STARR, 1980: 11-17).
As estatísticas constituem uma das tecnologias de identificação mais efetiva do Estado
Moderno. Elas oferecem uma antecipação da população, do território e de suas necessidades.
Pode-se relacionar esse tipo de conhecimento como um dos sistemas especializados de
reflexão da vida social na modernidade. Segundo Giddens (2002: 21-26), nas sociedades em
que as tradições culturais são constantemente dissolvidas e postas em “xeque”, formam-se
sistemas abstratos e especializados que oferecem parâmetros de compreensão das relações
humanas. Os principais agentes desse decurso são formados pela velocidade das mudanças
sociais, pelo desencaixe das estruturas de compensação do espaço e do tempo, assim como
pelo intenso processo de diferenciação social. O conhecimento estatístico é um desses
sistemas abstratos e especializados de controle e antecipação das relações sociais constitutivos
da vida moderna.
A lógica estatística fixa, num território determinado, como também as posições e
dinâmicas sociais mutáveis do cotidiano permitem governar à distância. “A ideia fictícia do
censo é que todos estão presentes nele, e que todos ocupam um – e apenas um – lugar
extremamente claro. Sem frações” (ANDERSON, 2008: 234). Por essas características, os
censos possuem um poder particular: a capacidade de operar uma abstração, interligando
diversos pontos do espaço e formando uma comunidade imaginada. Eles constroem
homologias entre conjuntos de habitantes e situações étnicas, econômicas e sociais distintas,
propondo uma interpretação do território na contínua e abstrata ideia de que um lugar é igual,
ou deveria ser igual, a qualquer outro. Os censos ajudam a sedimentar uma representação
homogênea do espaço e do tempo.
A estatística, assim, funciona como um diagnóstico da realidade social, mas também
como uma construção simbólica do território. Todas as práticas e representações que
permitem “o conhecimento do território são indissociavelmente uma produção do território”
(REVEL, 1990: 104). Para Revel (1990), assim como para Anderson (2008), por proporem
uma homogeneização do tempo e do espaço, os censos cumpriram um papel fundamental na
constituição do desenho e da invenção simbólica dos territórios e da soberania dos Estados.
Os censos das favelas traduzem essa longa vinculação entre a estatística e a
constituição da soberania e das funções estatais numa determinada área. Eles trazem forte
relação com a legislação e as atribuições burocráticas relacionadas às favelas. Tanto o Código
de Obras do Distrito Federal de 1937 como a Lei 572 de 1956 de Belo Horizonte
sedimentaram a distinção entre “bairro” e “favela”, enquadrando esse segundo território em
116
políticas habitacionais e assistenciais. As estatísticas reproduzem essa distinção, produzindo
uma visibilidade numérica e uma reinterpretação das narrativas sobre esse conjunto
populacional. Como os estudos de demografia histórica têm notado, os dados censitários
guardam relação estreita com as classificações jurídicas e administrativas do poder público.
Essas informações reiteram, objetivam e legitimam as práticas estatais na governança do
território e da população, atuando numa “lógica da justificação” (ROSENTAL-ANDRÉ,
2009; SENRA, 2008; TOPALOV, 1992). Não obstante os censos também permitiram a
percepção de uma realidade plural e heterogênea. Segundo Valladares (2005), os censos
foram um dos vetores da complexificação da representação das favelas, diferenciando-as entre
si e internamente. Ao contrário das categorias duais (“legal/ilegal”, “formal/informal”,
“ordem/desordem”, “elite/popular”), Victor Tavares Moura, por exemplo, disse que, nos anos
1940, o “problema das favelas do Rio de Janeiro tornou-se ainda mais grave e complexo,
porque tem aspectos diferentes, seja quanto ao tipo, à localização e à espécie de seus
moradores, e porque envolve interesses individuais e coletivos”138
.
Silva (2005) também assinalou que os censos mostravam a diversidade da composição
social e da morfologia da ocupação urbana139
, mas também reafirmavam uma
homogeneidade, em que “as favelas ganharam importância como representação nacional do
‘problema habitacional’, numa nítida projeção da realidade do Rio de Janeiro para todo país”
(SILVA, 2005: 37). O diagnóstico plural da realidade não deve, portanto, ocultar a demanda
fundadora dessas estatísticas, visto que foram produzidas em ampla sintonia e diálogo com a
legislação e as políticas de desfavelamento então estabelecidas, numa projeção da realidade
carioca para outras cidades.
No Brasil, os anos 1940 e 1950 foram prósperos de debates e estudos sobre a questão
das favelas. Embora a administração pública tenha discutido as soluções desse “problema”,
poucas intervenções nesse campo foram realizadas, quando comparadas à política
habitacional dos anos 1960 (LEEDS & LEEDS, 1978). Todavia esse período em que a
densidade do pensamento supera a das ações não deve ser menosprezado ou diminuído. A
construção da identificação das favelas no âmbito estatístico foi fundamental para sedimentar
um saber que orientou as práticas de desfavelamento. As estatísticas representaram um
138
MOURA, Victor. Favelas do Distrito Federal (apud SILVA, 2005: 95). 139
Na bibliografia sobre a história e sociologia urbana de Belo Horizonte, os censos de favelas foram muito
pouco explorados. Não se conhece a vinculação conceitual entre o primeiro e o segundo censo, houve bastante
questionamento dos dados colhidos nessas duas estatísticas. O primeiro foi divulgado no Rotary Club (por Paulo
de Tarso, primeiro diretor do DHBP), na Câmara Municipal e na imprensa, mas não ganhou uma publicação em
livreto, como ocorreu com o segundo. Apenas em 2009, com a abertura do Fundo da Câmara Municipal de Belo
Horizonte, foi possível localizar esse documento de forma completa. Antes havia informações dispersas desses
censos em estudos pontuais de Luiz Silva (1960) e de Hiroshi Watanabe (1962).
117
“problema”, construindo e difundindo um olhar sobre o urbano. Elas descreveram um
território, suas necessidades e suas demandas que seriam (ou deveriam) ser incorporadas à
ação do poder público.
Na construção de nossa escala de comparação entre o Rio de Janeiro e Belo Horizonte,
focaremos apenas os censos de favelas produzidos sob a influência do IBGE140
. A partir da
realidade carioca, o IBGE formou um paradigma de análise que foi aplicado em várias regiões
do país141
. Na análise desenvolvida neste capítulo, os primeiros censos serão enfatizados por
formularem um paradigma estatístico, que foi seguido e reproduzido em outros. Nesse
sentido, o censo realizado em 1950 pelo Serviço Nacional de Estatística terá maior destaque,
por fundamentar muitos traços conceituais e metodológicos adotados pelas agências
vinculadas ao IBGE.
3.1 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e os censos de favela
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística possuiu várias agências distribuídas
nas esferas de governo nacional, estadual e municipal. Elas estavam unidas pelo Conselho
Nacional de Geografia e por diversas publicações que circulavam entre os profissionais da
área. Por apresentar essa estrutura federativa, o IBGE foi central na difusão da categoria
favela na análise da pobreza urbana.
No Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, os primeiros censos de favelas, sob a
influência do IBGE, foram produzidos entre 1948 e 1955. Em 1948, o prefeito Ângelo
Mendes de Morais (1946-1950) pediu ao diretor da seção de estatística do Distrito Federal um
trabalho para o esclarecimento do problema das favelas. Dessa demanda, surgiu o inquérito
intitulado Censo das Favelas – aspectos Gerais, coordenado pelo engenheiro-geógrafo Major
Durval Magalhães Coelho. Este era membro Conselho Nacional de Geografia, assim como
representante do Departamento de Estatística e Geografia do Distrito Federal. Em 1950, o
Serviço Nacional de Recenseamento elaborava o censo demográfico brasileiro. Em vista do
debate da questão das favelas no Rio de Janeiro, publicou-se um censo especializado sobre o
tema, coordenado pelo engenheiro-geógrafo Alberto Passos Guimarães. Em 1955, o prefeito
de Belo Horizonte, Celso Melo Azevedo (1955-1959), nomeou uma comissão de estudos
sobre as favelas, a Comissão de Desfavelamento. Esta era coordenada pelo engenheiro Paulo
140
Não incluiremos o estudo de Victor Tavares Moura (1942) nem o da Sociedade de Análises Gráficas e
Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (1960). 141
Essa matriz continua a ser reproduzida no IBGE, que caracteriza as favelas como “aglomerados subnormais”.
(Cf. COSTA & NASCIMENTO, 2005).
118
Lins Vieira Lima, que entrou em contato com a agência municipal de estatística, pedindo um
“cadastro das favelas”. Todas essas estatísticas do final de 1940 e início de 1950 estavam
ligadas à estrutura federativa do IBGE: eram produzidas por agências públicas conectadas aos
conselhos, às publicações e aos paradigmas discutidos no âmbito do IBGE.
Para os administradores públicos, os censos eram diagnósticos dos problemas das
cidades de um ponto de vista “técnico” e não “político”. As estatísticas permitiriam traçar o
melhor caminho para a solução desses problemas. Segundo o Major Durval Magalhães
Coelho, o censo servia ao desenvolvimento da administração da Capital da República,
executando “trabalhos básicos, necessários ao esclarecimento tão objetivo e completo quanto
possível da questão, capaz de possibilitar posterior adoção, por parte das autoridades, das
medidas mais indicadas para extinguir as favelas ou pelo menos sustar o seu
desenvolvimento” (DISTRITO FEDERAL, 1949: 6). Para Alberto Passos Guimarães, sejam
“quais forem os rumos escolhidos para equacionar os problemas surgidos com a proliferação
dos núcleos de favelados, o acerto das medidas que possam a ser postas em prática dependerá
do melhor conhecimento das características individuais e sociais dessas populações” (1953:
256). Em Belo Horizonte, segundo a visão da Comissão de Desfavelamento, o censo daria as
“bases para uma ação planificada e coordenada em favor dos favelados”, fornecendo
“completo levantamento das favelas existentes” 142
.
Na elaboração dos censos, partilhava-se o intento de racionalizar a administração
estatal. A produção de estatísticas, mapas e a formulação de categorias de análise do mundo
social ligavam-se ao processo de planejamento e burocratização do Estado brasileiro, tentando
despersonalizar práticas e rotinas do poder público. O IBGE foi uma dessas instituições
voltadas à formação de especialistas e de sistemas de conhecimento e controle que
objetivavam a racionalização da ação do Estado (ALMEIDA, 2000: 65-67). Os trabalhos
censitários partilhavam das intenções previstas e declaradas na reforma administrativa
realizada na década de 1930. Segundo a Revista Brasileira de Estatística:
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística é uma entidade de natureza
federativa, subordinada diretamente à Presidência da República. Tem por fim,
mediante a progressiva articulação e cooperação das três ordens administrativas da
organização política da República e da iniciativa particular, promover e fazer
executar, ou orientar tecnicamente, em regime racionalizado, o levantamento
sistemático de todas as estatísticas nacionais, bem como incentivar e coordenar as
atividades geográficas dentro do País, no sentido de estabelecer o conhecimento
metódico e sistematizado do território brasileiro. Dentro do seu campo de atividades,
coordena os diferentes serviços de estatística e de geografia, fixa diretivas,
estabelece normas técnicas, faz divulgação, propõe reformas, recebe, analisa e
142
BELO HORIZONTE. Portaria do Prefeito nº 557, de 2 de abril de 1955. Cria a Comissão de Desfavelamento.
119
utiliza sugestões, forma especialistas, prepara ambiente favorável às iniciativas
necessárias, reclamando, em benefício dos seus objetivos, a colaboração das três
órbitas de governo e os esforços conjugados de todos os brasileiros de boa
vontade.143
A reforma administrativa da década de 1930 “aperfeiçoou e diversificou os
instrumentos de intervenção do Estado nas diferentes esferas da vida social e política,
viabilizando a implementação de um projeto nacional por cima da rivalidade entre as elites”
(DINIZ, 1999: 250). Esse projeto tinha como objetivo a ruptura com a tradição e com a
República oligárquica, visando à eficiência da máquina pública. Na perspectiva do reforço do
poder central contra a descentralização da Primeira República, o IBGE exerceu o monopólio
da estatística pública e padronizou diversos métodos e práticas censitárias e cartográficas. O
conhecimento do território brasileiro submeteu-se a um paradigma de representação
controlado pelo Conselho Nacional de Geografia e pelas estratégias do governo da União.
Ainda que contasse com uma estrutura federativa, o IBGE era vinculado diretamente à
presidência da República. Dessa maneira, periodicamente, para incorporar algumas demandas
e normatizar os procedimentos estatísticos e analíticos, realizaram-se consultas aos produtores
e usuários de dados censitários (ALMEIDA, 2000: 41).
Apesar da centralização no poder executivo da União, o IBGE conformava-se ao
federalismo brasileiro. O órgão respeitava as três ordens administrativas da organização
política da República: o estado, o município e a União estavam representados na estrutura
institucional do IBGE. O órgão foi fundado em 1937, herdando a estrutura do Instituto
Nacional de Estatística (INE), que havia sido instituído em acordo com o federalismo da
Constituição de 1934. O INE estimulou a organização de uma rede de coleta de dados
censitários, incentivando a integração das seções estaduais de estatística e a fundação de
Agências Estatísticas Municipais. Contudo a institucionalização dessa rede contou com a
força do regime autoritário de Vargas. Em 1938, a “Lei Geográfica do Estado Novo”144
condicionou o reconhecimento da autonomia municipal à elaboração de mapas dentro dos
critérios do Conselho Nacional de Geografia. A lei foi um forte indutor na formação das
agências municipais e no fortalecimento do vínculo destas com o IBGE. Essa medida,
juntamente com o Recenseamento Geral de 1940, fortaleceu a formação de uma rede de coleta
de dados que abrangia as três esferas de governo em todo Brasil (ALMEIDA, 2000; PENHA,
1993; GOMES, 2002). A Constituição de 1946 reforçou o município e os estados como
143
INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatísticas. Revista Brasileira de Estatística, Ano XII, nº47, jul./set.
1951, p. 3. 144
BRASIL. Decreto-Lei 311, de 2 de março de 1938. Dispõe sobre a divisão territorial do país e dá outras
providências.
120
unidades autônomas do poder central, mas não desestruturou a organização da coleta e
produção da estatística nacional.
Os censos de favelas são amostras de como as questões locais e nacionais interferiam
na ordem da demanda e da produção das agências ligadas ao IBGE. Primeiro, indicam a
circulação da categoria “favela” como conceito da geografia urbana, para pensar a questão
habitacional e a pobreza nas cidades. A ficha de coleta do censo de 1948 estabeleceu uma
série de critérios para a coleta de informações que seria retomada em outros. No censo do
Serviço Nacional de Estatística de 1950, usou-se a mesma ficha de 1948, que foi adaptada ao
tempo, ao recurso e às características da população que se desejava enfocar na visão de
Alberto Passos. Em 1960, no censo do Estado da Guanabara, observa-se o mesmo diálogo
com os critérios observados na coleta da ficha referente ao censo de favelas de 1948
(GUIMARÃES, 1953; COELHO, 1970). Em Belo Horizonte, a ficha usada na coleta de
dados em 1955 e 1965 também dialogava com a ficha de 1948, divulgada pelo Serviço
Nacional de Estatística, foram feitas somente algumas adaptações.
Em segundo lugar, o censo de 1950 formulou uma discussão do conceito de favela, e
definiu o critério de mais de 50 moradias em terrenos irregulares e sem infraestrutura para a
contabilização dos aglomerados da pobreza urbana (VALLADARES, 2005). No censo da
Guanabara de 1960, essa conceituação foi reproduzida e repetida também em Belo Horizonte
em 1955 e 1965. As tentativas de aplicar na capital mineira esse critério de mais de 50
moradias, para se identificar uma favela, levou a operações bastante curiosas. Em 1955,
reuniram-se vilas-favelas vizinhas, para inteirar o número mínimo de moradias e se produziu
uma tabela para comprovar a ausência de serviços públicos em cada área. Em 1965, também
ajuntavam-se aglomerados pobres vizinhos, para se identificar uma favela, mas também
apresentavam o resultado, em separado, de cada comunidade (ver Tabela I)145
.
Além de instituir um paradigma de análise, que foi seguido e adaptado a diferentes
aglomerados de pobreza urbana, é possível perceber, pela estrutura federativa do IBGE, a
relação dessa produção com as esferas administrativas locais. Os primeiros censos de favelas
atendiam à demanda do funcionamento das agências voltadas para a assistência social e para a
habitação popular nas respectivas cidades. No Rio de Janeiro, o Serviço de Parques
Proletários (1942), o Departamento de Habitação Popular (1946) e a Fundação Leão XIII
(1947)146
responderam por essas funções e colocaram em foco a questão da favela,
145
Cf. MINAS GERAIS, 1966; ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara
Municipal de Belo Horizonte. Cadastro de Favelas, 1955. Arq. DR.010209-7894. nov. 1955. 146
Cf. BRASIL. Decreto nº 9.124, de 4 de abril de 1946. Diário Oficial da União. p. 4962, abr. 1946.; BRASIL.
121
justificando as estatísticas de 1948 e 1950. Em Belo Horizonte, o Departamento de Habitação
e Bairros Populares (1955)147
tinha como atribuição a questão habitacional nas favelas, mas
também coordenou funções assistenciais. Essas instituições, que se especializaram em atender
às favelas, somaram-se a outras que justificariam a produção do censo carioca de 1960 e o
belo-horizontino em 1965.
Tabela I - Habitantes, domicílios e favelas nos censos do IBGE no Rio de Janeiro e em
Belo Horizonte148
Rio de Janeiro Belo Horizonte
Nº de favelas Nº de domicílios Nº de habitantes Nº de favelas Nº de domicílios Nº de habitantes
1948 105 34.064 169.305 -* - -
1950 58 - 138.837 - - -
1955 - - - 23 9.343 36.432
1960 147 70.353 335.063 - - -
1965 - - - 79 25.076 119.799
* Não houve trabalhos censitários nesse período ou o dado não foi coligido à estatística. O mesmo ocorreu nos
demais quadros em branco.
Os serviços estatísticos ligados ao IBGE engendram um paradigma de conhecimento
articulado à política pública de desfavelamento. Em torno deles, formavam-se corpos de
especialistas comprometidos com uma visão exterior à percepção e à experiência dos
moradores, formulando sistemas abstratos de conceituação do território. Os engenheiros
constituíam a liderança do corpo de especialistas, para efetuar o conhecimento do território
das favelas. Entre 1930 e 1960, os técnicos e os quadros do IBGE eram principalmente de
engenheiros vindos das Escolas Politécnicas ou do Exército (ALMEIDA, 2000). No Rio de
Decreto nº 22.498, de 25 de janeiro de 1946. Diário Oficial da União. p. 1146, jan. 1946. 147
BELO HORIZONTE. Lei nº 517, de 29 de novembro de 1955. Cria o Departamento de Habitação e Bairros
Populares. 148
Para o Rio de Janeiro, cf. DISTRITO FEDERAL, 1949; GUIMARÃES, 1953; COELHO, 1970. Para Belo
Horizonte, cf. CADASTRO de Favelas, 1955. ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE.
Fundo Câmara Municipal de Belo Horizonte.. Arq. DR.010209-7894. nov. 1955; MINAS GERAIS.
Levantamento da População Favelada de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado, 1966.
122
Janeiro, o Departamento de Geografia e Estatística era coordenado pelo Major Durval
Magalhães Coelho, militar com formação em engenharia. Esta também era a formação de
Alberto Passos Guimarães e, em Belo Horizonte, onde quatro membros da Comissão de
Desfavelamento eram engenheiros, teve destaque Paulo Lins Vieira Lima, que era engenheiro
e membro da seção estadual do IBGE. Outro grupo de especialistas que também teve destaque
na formulação dos referidos censos foi o das assistentes sociais. No Rio de Janeiro, em
colaboração com o censo do Departamento de Estatística e Geografia do Distrito Federal, a
Fundação Leão XIII realizou coleta de dados no Jacarezinho e no Morro de São Carlos. Em
Belo Horizonte, Padre Luis Viegas149
foi o coordenador de uma equipe de estudantes no curso
de assistência social, que coletou dados na Vila São José, colaborando com o censo de
favelas150
.
As favelas representavam para esses especialistas um enclave à organização da cidade,
fruto de desequilíbrios no crescimento urbano-industrial. Essa produção dialogava com o
senso comum, o urbanismo e a legislação do período, mesmo assim constituíram o
deslocamento de um olhar pautado em juízos de valor para um que buscasse maior
“objetividade”. A procura desse conhecimento seguro envolvia a discussão do
“desfavelamento” da cidade, termo que era usado para indicar a necessidade de extinguir esse
locus da pobreza urbana.
A partir dos censos, organizou-se uma polêmica em torno do “desfavelamento”, se
ocorria pela construção de conjuntos habitacionais ou pela urbanização. O Major Durval
Magalhães Coelho, por exemplo, produziu em 1949 um folheto, intitulado Contribuição para
campanha de Extinção das Favelas. Indicava a necessidade da construção e venda de
conjuntos habitacionais como o melhor meio de solucionar a questão das favelas (COELHO,
1949). Essa também era a perspectiva sobre a produção e os comentários das estatísticas de
Belo Horizonte. Essa posição foi defendida por Paulo de Tarso, que era diretor do
Departamento de Habitação e Bairros Populares em apresentação no Rotary Club de Belo
Horizonte em 1955151
. O texto introdutório do censo de 1965 falava em construção de
“Parques Proletários”, lembrando a solução encontrada por Victor Tavares Moura (MINAS
GERAIS, 1966). Destruir as favelas e prover habitação “digna” supriria o déficit habitacional
149
Padre Luis Viegas foi um dos fundadores do curso de Serviço Social da Universidade Católica de Minas
Gerais. 150
Para esses dados, cf. DISTRITO FEDERAL, 1949; GUIMARÃES, 1953; CADASTRO de Favelas, 1955.
ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara Municipal de Belo Horizonte.
Arq. DR.010209-7894. nov. 1955. 151
O PROBLEMA das favelas, objeto de reunião do Rotary Club. Estado de Minas, Belo Horizonte, 11 nov.
1956, p. 6.
123
e alteraria o habitat dos moradores, favorecendo a recuperação “humana” desse conjunto
populacional. Essa postura ideológica e política, por outro lado, foi questionada por Alberto
Passos Guimarães. Referindo-se a debates ocorridos no Conselho Nacional de Geografia, ele
colocava a questão: “as favelas devem ser urbanizadas ou simplesmente extintas?”
(GUIMARÃES, 1953: 11). O argumento de Passos era de que a técnica de construção de
engenharia estava evoluindo, permitindo a construção e a urbanização de morros. Para ele, as
“batalhas para extinção das favelas” atendiam aos interesses imobiliários, que desejavam
construir nas áreas ocupadas pelos pobres. O “desfavelamento”, então, deveria ocorrer pela
urbanização e melhoria da condição de vida nas favelas.
Existe uma ambivalência na posição de Alberto Passos Guimarães, própria do lugar
sociopolítico que ocupava: ele era um técnico do IBGE, mas também era um membro do
quadro do Partido Comunista, chegou a ocupar importante cargo no Comitê Central. Por um
lado, sua posição era próxima às intenções declaradas em ações coletivas estabelecidas no
campo das esquerdas, mostrando a filiação do autor ao Partido Comunista. Por outro lado,
Guimarães ajudou a constituir uma visão exterior à favela e próxima do tecnicismo que
propugnava o desfavelamento. Nesse período, a produção estatística do IBGE tinha uma fina
articulação com a legitimação das políticas públicas (SENRA, 2008). Guimarães compôs a
identificação do habitat da favela, que se tornaria modelar para a época, coadunando-a com os
intentos declarados na legislação e na política pública de extinguir esse espaço físico-moral
das cidades.
3.2 A imagem do trabalhador e da favela
As práticas censitárias dos Estados modernos vinculam-se a lógicas administrativas,
mas também à imaginação nacional. A partir de meados do século XIX, os censos tornaram-
se compulsivos: quantificavam não só recursos econômicos e humanos que seriam
estratégicos para a tributação e a guerra, mas todo um conjunto social. Crianças, mulheres,
homens, famílias etc. passaram todos a serem incluídos nas séries de números, independente
do interesse estatal imediato. Para Anderson (2008), essa mudança dos censos reforçou a
crença de que todos participavam de uma “comunidade imaginada”152
. Com o tempo, as
classificações e categorias estatísticas passavam a constar como “hábitos de tramitação”: as
152
Após desenvolver a tese de que o romance e a imprensa eram os principais meios de formação das nações no
declínio do sentimento religioso, Anderson escreveu um texto apontando para o censo, o museu e o mapa como
outras formas de constituição comunidade nacional.
124
identificações serviam aos indivíduos em diversas situações em que eram interpelados pela
burocracia estatal e na vida cotidiana (2008: 229).
Os censos de favelas constituem um sistema de representação e compreensão do
urbano e são fundamentais para o entendimento do modo como o Estado e seus agentes
constroem uma visão particular do urbano, numa escala de percepção que não é universal,
mas orientada por interesses. Um dos pressupostos deste estudo é o de que a cidade não pode
ser “considerada ‘uma coisa’ que eu possa ver, nem ‘um objeto’ que eu possa apreender como
totalidade. Ela torna-se um todo decomposto, um holograma perceptível, apreensível e vivido
em situação” (AGIER, 2011). Para pensar o urbano, devemos refletir sobre os atores e as
representações da cidade, percebendo os regimes de urbanidade que guiam ações, práticas e
projetos. Por mais que as estatísticas de favelas insistam em oferecer um diagnóstico da
totalidade de um município, elas são instrumentos parciais, orientadas por um viés político.
Nessa perspectiva, devemos refletir sobre os paradigmas imagéticos e narrativos que
estruturam a produção e a recepção dos censos. A identificação estatística extrai sua força de
“narrativas legendárias”, que exercem “uma função explicativa, fornecendo certo número de
chaves para a compreensão do presente, constituindo uma criptografia através da qual se pode
ordenar o caos desconcertante dos fatos e dos acontecimentos” (GIRADET, 1987: 13-15). Ou
seja, apesar dos dados estatísticos almejarem ser uma transparência da realidade (uma visão
objetiva, científica e neutra do mundo), eles extraem sua legitimidade de paradigmas
narrativos, “mitos” que reproduzem algumas noções relacionadas à pobreza urbana.
Entretanto essas narrativas não devem ser tomadas como falsas ou ilusórias, pois elas
estabelecem uma forma de conhecimento, vivência e experiência numa situação.
Os censos de favelas representaram uma transformação na maneira como as classes
populares figuraram na comunidade política brasileira. Na década de 1930, diferentes
vertentes do nacionalismo investiram na conclamação do “povo” como parte da nação. Contra
o pessimismo e a visão negativa herdada das teorias raciológicas e mesológicas – que
refletiam a crença na incapacidade do elemento nacional (o escravo e o liberto) em aderir ao
trabalho assalariado e promover o desenvolvimento, a Era Vargas investiu na representação
positiva do cidadão como operário. De incapaz de alçar o Brasil à modernidade capitalista, o
povo passou a ser visto como principal motor do desenvolvimento político e social – o
“trabalhador brasileiro”. A formação de uma sociedade urbano-industrial trazia como
pressuposto a incorporação das massas na política e a superação do pessimismo em relação ao
trabalhador nacional (ORTIZ, 2006).
125
Essas mudanças significaram a alteração de postura em relação às classes populares e
a mudança do próprio fundamento da comunidade imaginada. Ainda que o mito das três raças
tenha permanecido e assumido a forma de um elogio à mestiçagem e à integração de
diferentes classes na comunidade política, o fundamento da nação passava, cada vez mais, a
ser estritamente econômico.
Tal forma de pensar a construção da nação fundamentava-se em interesses
nitidamente industrialistas. Era uma concepção muito próxima do modelo
nacionalista alemão do século XIX, que identificava o Estado-nacional como espaço
físico e humano capaz de dar sustentação ao desenvolvimento capitalista. Neste tipo
de nacionalismo os possíveis “inimigos internos e externos” não se definem por
oposições culturais, étnicas, linguísticas ou religiosas. É, ao contrário, um
nacionalismo estritamente econômico (LOSADA, 1998: 336).
As visões e explicações sobre a pobreza ganhavam um conteúdo distinto das
elaboradas na Primeira República. “Relativizava-se a ideia de que a pobreza é de
responsabilidade individual, sendo pobres aqueles cujas fraquezas morais não haviam ainda
respondido ao ‘chamado do trabalho’” (VALLADARES, 1989: 97). Uma visão econômica
sobre a nação mostrava que a pobreza era consequência de fatores externos ao indivíduo,
ligada ao processo produtivo e à inserção do indivíduo no mercado. Ademais o trabalho
assalariado era tido genericamente como constitutivo de todas as relações sociais. Se, na
virada do século XIX para o XX, associava-se a “pobreza à recusa dos indivíduos em vender
sua força de trabalho e às dificuldades de aceitar o assalariamento”, agora “entendia-se que os
indivíduos queriam trabalhar, queriam se inserir no processo produtivo” (Idem, p. 97).
Essa mudança de postura foi simultânea à instituição de reformas no aparato
institucional e político do Estado, reconhecendo a questão social e disciplinando as forças
produtivas do país. A criação do Ministério do Trabalho (1930), dos sindicatos únicos (1931),
da Carteira de Trabalho (1932), da jornada de oito horas (1932), da previdência social (1932),
do salário-mínimo (1938), da Justiça do Trabalho (1940) e da Consolidação das Leis do
Trabalho (1943) constituiu um Estado de Bem-Estar Social no Brasil entre 1930 e 1943. As
transformações jurídicas e administrativas mostravam a interferência do Estado nas relações
entre empregador e assalariado, regulando os conflitos de interesses no mercado de trabalho.
Essas transformações, ainda que ao longo dos anos seguintes fossem ampliadas por
movimentos e ações de trabalhadores, tiveram um caráter limitado em sua aplicação mais
imediata: os direitos sociais não foram universalizados, atingindo principalmente os setores
modernos da economia e o funcionalismo público (MEDEIROS, 2001; MEDEIROS, 2009).
126
Diferente de outros países, o Brasil não construiu o Estado de Bem-Estar Social por
meio de barganhas feitas por partidos social-democratas e sindicatos organizados em escala
nacional. Na institucionalização dos direitos sociais, o Estado relia os interesses e os valores
do movimento operário, atendendo a suas demandas materiais e vinculando a identidade do
trabalhador ao sentimento de gratidão e generosidade em relação ao presidente da República
(GOMES, 2005a: 327; VIANNA, 1999).
Os dados censitários articulados pelo IBGE mostravam vários aspectos dessa mudança
de perspectiva do Estado em relação à sociedade. No Recenseamento Geral de 1940, foi
mantida e ampliada a série iniciada em 1920 sobre a industrialização e a agricultura do país,
assim como acrescentadas as estatísticas sobre comércio, serviços, transporte, comunicações e
sociedade. Essas novas séries foram duradouras, sendo reeditadas no recenseamento geral de
1950 e 1960. Elas resultavam da adesão brasileira aos acordos internacionais de estatística.
Em 1937, o Brasil entrou na Union Geographique Internationale e teve a perspectiva de
“ativar uma cooperação geral de todos por um conhecimento sistematizado do território e da
pátria” (ANGOTTI-SALGUEIRO, 2005: 24). A opção do Estado brasileiro em produzir
novas séries estatísticas e em aderir aos tratados internacionais indicava também uma maior
preocupação com a economia e com as condições de vida dos assalariados.
Os censos de favelas explicitavam essa nova preocupação do Estado, representando os
assalariados nos aglomerados de pobreza urbana. Segundo o censo de 1948, o homem era
compreendido como um “agente de produção”, podendo “ser comparado a uma usina, um
motor, um tear... As despesas com o seu nascimento, a sua criação e a sua educação traduzem
custos sociais de produção. Indivíduo doente, ou produz pouco, ou não produz de todo”
(DISTRITO FEDERAL, 1949: 12). Os censos de favela respondiam a essa concepção
utilitária do trabalhador, à nação e ao desenvolvimento. Como definiu Alberto Passos
Guimarães, os censos eram fundamentais, por oferecerem um diagnóstico do “potencial
humano do País”, colocando em evidência o “progresso ou atraso do povo” (GUIMARÃES,
1953: 256). Essa também era a função declarada no censo de favelas de 1955 e 1965, em Belo
Horizonte153
.
As estatísticas construíram uma topografia das favelas e do mercado de trabalho. O
censo de 1948 indicava que as favelas surgiam como “problema da administração pública”
devido à intensificação do processo de industrialização do Rio de Janeiro. O censo de 1950
foi além e estruturou uma teoria do desenvolvimento urbano, seguindo as tendências do
153
CADASTRO de Favelas, 1955. ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo
Câmara Municipal de Belo Horizonte. Arq. DR.010209-7894. nov. 1955; MINAS GERAIS, 1966.
127
mercado de trabalho. Para Guimarães, à medida que a indústria se expandia, nas décadas de
1920 e 1930, agravava-se o problema de moradia e transporte. A localização das favelas
devia-se ao desequilíbrio entre construção de domicílios e expansão industrial: “uma nova
fábrica instalada em um bairro oferece ocupação imediata a, digamos, 500 trabalhadores,
muito antes que surjam novas casas em número suficiente para alojá-los” (Idem). Além disso,
percebia-se que a expansão da indústria de construção tinha, no problema da moradia, algo
“insolúvel”, visto que “seu caráter flutuante e temporário, não contribui para fixar nas suas
proximidades toda a mão de obra dependente” (Ibidem). Juntando a expansão industrial
carioca à crise do sistema de transporte, teríamos a consequente expansão das favelas cariocas
e a autoconstrução em locais próximos ao mercado de trabalho em expansão. Em 1960, o
censo seguiu essa direção, buscando evidências de uma topografia para o mercado de trabalho
da população das favelas (IBGE, 1968: 37). Os resultados mostravam uma maior
concentração dos trabalhos industriais na zona norte e oeste do Rio de Janeiro, enquanto, na
zona sul, as favelas estavam articuladas ao setor de serviços (SILVA, 2005: 110,111;
FESSLER VAZ, 2002: 129-131; ABREU, 2010).
Em Belo Horizonte, o cadastro de favelas de 1955 pouco colaborou para esclarecer o
tópico anterior. O único registro feito sobre o mercado de trabalho foi o produzido por uma
equipe de assistentes sociais que estudou a favela Pedreira Prado Lopes, mostrando a
ocupação e o salário dos moradores, e que foi anexado ao censo154
. Contudo, em 1957, o
geógrafo francês Roger Teulières155
interpretou os dados relativos à localização das favelas, a
partir dos dados colhidos pelo censo, relacionando-os à formação do mercado de trabalho na
cidade. Para o autor, elas surgiam nas proximidades das zonas industriais e do centro da
cidade, onde se concentra a maior parte dos postos de trabalho. Na década de 1950, as favelas
localizavam-se principalmente nas regiões próximas ao Ribeirão Arrudas, aos bairros Calafate
e Cachoeirinha (TEULIÈRES, 1957). Em 1965, o censo confirmou essa hipótese de Teulières.
Dividiu-se a cidade em oito zonas de trabalho, e pediu-se que os moradores indicassem os
territórios onde trabalhavam. Os dados recolhidos davam relevância a quatro regiões de Belo
Horizonte: 19,16% dos trabalhadores, a maioria, tinham na região central, delimitada pela
Avenida do Contorno, o principal local de trabalho; 9,63%, nos bairros Santa Efigênia, Serra
e Pompeia; 7,42% no Sion, Cidade Jardim, Barroca, Salgado Filho; e 6,36% na Cidade
Industrial. As principais favelas expandiam-se nas proximidades da área central e nos bairros
154
Idem. 155
Roger Teulières foi um geógrafo francês, que usou os dados do censo de 1955 para estruturar uma história da
favela na cidade, publicada no Boletim Geográfico Mineiro. Essa publicação foi muito influente no debate sobre
a questão das favelas na cidade. Esse tema será retomado adiante.
128
residenciais em expansão na década de 1950 e 1960, assim como na direção da Cidade
Industrial.
As estatísticas mostravam que o crescimento ou decréscimo das favelas associava-se à
expansão ou retração do mercado de trabalho urbano-industrial. No Rio de Janeiro, a
expansão industrial dos anos 1920 e 1930 marcaram a generalização das favelas na cidade.
Esse crescimento teria levado à maior migração para a cidade e ao aumento do déficit
habitacional (DISTRITO FEDERAL, 1949; GUIMARÃES, 1953). Em Belo Horizonte, essa
virada seria identificada no pós-Segunda Guerra, quando a cidade tornou-se locus de
investimentos sistemáticos para sua industrialização e quando a Cidade Industrial começava a
dar resultados na economia e demografia urbana (TEULIÈRES, 1957; MINAS GERAIS,
1966). Comparando os dados das duas cidades, chegaríamos à conclusão de que o migrante
era peça chave da expansão do mercado de trabalho, principalmente, no setor de serviços e no
industrial, em atividades de menor qualificação. Em Belo Horizonte, o setor de serviços tinha
mais peso que o industrial na composição da topografia do trabalho nas favelas.
As conclusões e os dados censitários que comprovaram a relação entre favela,
migração e topografia do mercado de trabalho urbano foram reproduzidas em pesquisas
posteriores à publicação dos censos. Entretanto as reflexões que fizeram uso das estatísticas
como diagnóstico da realidade, quase sempre, tomaram uma posição ideológica na discussão
da “marginalidade”.
3.2.1 Os “inativos”
Nos censos, a noção de “marginalidade” em relação ao mercado de trabalho e ao
desenvolvimento urbano-industrial ganhou grande destaque. A favela era parte da questão
social, constitutiva do problema de integração do assalariado à sociedade e da luta por
habitação. Essa visão relativizava a imagem das classes “perigosas”, mas não neutralizava
esse discurso presente na gênese da representação das favelas.
Definir as condições de marginalidade tornou-se um debate extremamente polarizado.
Um dos pontos controversos apresentados nas estatísticas era a contabilização dos “inativos”.
Quem seria esse grupo? No Rio de Janeiro, conforme podemos observar na tabela II, o censo
de 1948 identificou que 64, 6% da população das favelas era composta por inativos. Estes
eram contados a partir de 13 anos de idade, sendo representado por aqueles que não tinham
profissão ou que não a conseguiam definir. Assim, o número ficava inchado, coadunando-se
com a visão do diretor de serviço estatístico, que apresentava as favelas como um risco à
129
segurança pública e fruto da incapacidade da população em se integrar ao mercado de
trabalho. O Major Durval Magalhães Coelho chegou a retomar os argumentos do discurso
racialista para caracterização do que chamava de “grupos inferiores”.
No censo de 1950, Alberto Passos Guimarães afirmava que os moradores de favelas
não eram “marginais”. O número de inativos era de 8,7% da população e, para chegar a esse
dado, Guimarães alterou os critérios que definiam os inativos. Guimarães contabilizou os
maiores de 10 anos, entretanto separou, do número de inativos, as pessoas que realizavam
“atividades domésticas não remuneradas e atividades discentes” e os indivíduos que tinham
“profissões mal definidas ou não declaradas”. Dessa forma surge a radical diferença entre as
informações do censo de 1948 e 1950. O censo de 1960 retomou os critérios do censo de
1950, mas não manteve a diferenciação entre os estudantes e os que tinham atividade
doméstica não remunerada. O número de inativos voltou a crescer, passando para 51%.
Em Belo Horizonte, o debate sobre essa questão não teve a mesma repercussão que no
Rio de Janeiro. O cadastro de favelas de 1955 não fez um levantamento extenso do número de
trabalhadores. Ainda que o operário aparecesse nas interpretações do censo e num
levantamento parcial da Pedreira Prado Lopes, era consensual a visão de que eles eram
marginais à sociedade. Em 1965, a marginalidade do favelado também foi tomada como
consensual: contabilizou-se 72,32 % da população favelada de Belo Horizonte como inativa
(Tabela III). Nessa estatística, não se fez distinção entre maiores e menores de 10 anos na
quantificação dos inativos, nem entre estudantes e profissões domésticas não remuneradas.
A opção por esse tipo de contabilização dos indivíduos nas favelas não era um erro
estatístico. Fazia parte de um conceito que afirmava que o maior número de crianças e
dependentes nas favelas aumentava também a pobreza e a marginalidade dos moradores. A
produção estatística de Belo Horizonte valorizou esse aspecto na contagem do número de
inativos.
Tabela II - Ramos de atividade e população de favela do Distrito Federal
Ramo da Atividade Censo de
1948
Ramo da Atividade Censo de
1950
Censo de
1960
Agricultura 136
(0,1%)
Agricultura, Pecuária e
Silvicultura
190
(0,15%)
588
(0,25%)
Indústria Geral 12.239
(10,3%)
Indústrias Extrativas 1.179
(0,94%)
1.262
(0,55%)
130
Indústria de construções 10.573
(7,6%)
Indústrias de transformação 28.292
(22,79%)
37.111
(16,38%)
Comércio 5.210
(3,8%)
Comércio de mercadorias 5.559
(4,47%)
12.439
(5,49%)
Comércio de imóveis e valores
mobiliários, créditos e seguros, e
capitalização
190
(0,15%)
*
Atividade de utilidades
coletivas e economia
doméstica
11.906
(8,6%)
Prestação de serviços 17.886
(14,40%)
31.340
(13,83%)
Transporte e Comunicações 4.704
(2,9%)
Transporte, comunicações e
armazenagem
5.890
(4,74%)
8.963
(3,95%)
Profissionais liberais 116 *
Administração Pública,
defesa nacional e segurança
pública
2.930
(2,1%)
Administração pública, Casas
legislativas e Justiça
876
(0,70%)
1.632
(1,35%)
Segurança Pública e Defesa
Nacional
1.197
(0,96%)
3.058
(1,35%)
Inativos 89.710
(64,6%)
Inativos 11.130
(8,97%)
116.965
(51,65 %)
Atividades domésticas não
remuneradas e atividades
escolares discentes
48.103
(38,75%)
*
Atividades incompreendidas nos
demais ramos, mal definidas ou
não declaradas
594
(0,48%)
9.699
(4,28%)
Total 101.116 Total 124.135 226.446
Fonte: DISTRITO FEDERAL, 1949; GUIMARÃES, 1953; IBGE, 1968.
* Não houve trabalhos censitários nesse período ou o dado não foi coligido à estatística.
Tabela III - Profissões e nº de trabalhadores nas favelas de Belo Horizonte
Profissões Nº de trabalhadores
Ajudante de Pedreiro 3.021( 2,52 %)
Doméstica 2.422 (2,02 %)
Pedreiro 2.406 (2,01 %)
Lavadeira 2.239 (1,87 %)
Empregada em casa de família 1.756 (1,47 %)
Funcionário 1.748 (1,46 %)
131
Comerciário 1.088 (0,90 %)
Militar 833 (0,70 %)
Carpinteiro 817 (0,68 %)
Motorista 696 (0,58 %)
Mecânico 666 (0,56 %)
Comerciante 590 (0,49 %)
Operário 542 (0,45 %)
Industriário 532 (0,44 %)
Trabalhador Braçal 500 (0,42 %)
Pintor 495 (0,41 %)
Cozinheira 389 (0,32 %)
Costureira 355 (0,29 %)
Outras 12. 065 (10,07 %)
Inativos 86.639 (72,32 %)
Total 119.799
Fonte: MINAS GERAIS, 1966.
O debate sobre quem são os “inativos” nas favelas, incluindo ou excluindo os jovens e
crianças, inserindo ou não os estudantes e as mulheres com atividades domésticas não
remuneradas, diferenciando ou não aqueles que tinham atividades não definidas, ganhou
conotações distintas nas estatísticas das duas cidades. As diferenças em relação à
quantificação dos “inativos” mostravam quão controversa era a identificação e delimitação
dos grupos “marginais” à sociedade. A noção de classes perigosas foi relida em outros termos
no paradigma estatístico em construção. As conceituações fluidas e imprecisas, bem como as
narrativas sobre o desenvolvimento e o habitat das favelas renovavam os termos da percepção
das favelas, relacionado-as às classes perigosas. Ainda que o censo de 1950 tenha sido uma
grande referência para o paradigma estatístico, sua posição em relação ao assalariado da
favela, cuja análise o excluía da marginalidade, não foi seguida por recenseamentos de outras
cidades e não teve continuidade no Rio de Janeiro.
Por outro lado, deve-se enfatizar que o conhecimento da profissão e do trabalhador
vinculava-se ao intento do Estado de produzir e vender habitações para os trabalhadores.
Comentando os dados censitários de 1948, o Major Durval Magalhães Coelho assim se
expressou sobre o ponto: “o censo concluído pelo Departamento de Geografia Estadual
revelou que perto de 15% dos favelados (ou seja, cerca de 22.000) tem renda superior a Cr$
800,00, e, por conseguinte, são capazes de arcar com um pagamento mensal fixo” (COELHO,
132
1949: 5). Na produção de Belo Horizonte, esse intento ficou declarado nos relatórios de
pesquisa do Departamento de Habitações e Bairros Populares que mostravam a filiação dos
moradores aos Institutos de Aposentadoria e Pensão (SILVA, 1960; WATANABE, 1962).
Em 1965, o levantamento de favelas incorporou essa preocupação de identificação dos
assalariados atendidos pelos Institutos de Aposentadoria e Pensão nas favelas, visto que esse
dado interferiria na justificação do financiamento da habitação junto ao sistema previdenciário
(MINAS GERAIS, 1966: 38). Da mesma forma, pensar num grande número de “inativos”,
justificava a atuação da assistência social nesses territórios.
3.2.2 “Desenvolvimento” e pobreza
A relação entre o mercado de trabalho e a distribuição topográfica de uma população
pode ser aplicada a qualquer outro espaço urbano. Então, por que a insistência de sua
aplicação somente às favelas através de dados censitários? Por que não encontramos esses
dados de “inativos” para os bairros residenciais? A resposta a essa pergunta deve ser
compreendida dentro das narrativas que estruturaram a percepção do desenvolvimento
urbano-industrial brasileiro e da discussão da favela como habitat.
Como observamos, os censos definiam as favelas em relação ao mercado de trabalho.
Logo, as narrativas do “progresso” e dos desequilíbrios do crescimento urbano-industrial
delimitavam também o debate sobre o tema. No Rio de Janeiro, a relação entre favela e
desenvolvimento industrial foi uma constante nos trabalhos censitários de 1948, 1950 e 1960.
O fenômeno,
característico do rápido crescimento contemporâneo dos centros urbanos em
consequência da revolução industrial, a condensação de populações empobrecidas
em núcleos mais ou menos importantes vêm trazendo, nos anos que correm, graves
preocupações para os governantes (...) Nos últimos quinze anos, porém, com a
ampliação das atividades industriais e o empobrecimento de zonas rurais limítrofes à
Capital da República, cresceram e proliferaram com tal vigor que se transformaram
em palpitante problema econômico-social para a administração pública (DISTRITO
FEDERAL, 1949: 5).
Em Belo Horizonte, não foi uma narrativa diferente que estruturou a percepção do
fenômeno. Como já dissemos, Roger Teulières fez uma interpretação do “cadastro de
favelas”, inserindo-o na história da economia da cidade e nos limites da economia urbano-
industrial. A interpretação foi reproduzida no censo de 1965 (TEULIÈRES, 1957: 9; MINAS
GERAIS, 1966).
133
Na busca de maior objetividade, os censos formularam o problema urbano, fazendo
uma distinção entre a visão socioeconômica e o ponto de vista urbanístico e arquitetônico. Em
1948, verificaram-se várias imprecisões na coleta de dados, que foram atribuídas aos
“exageros dos recenseadores”. Afinal, o diretor do Departamento de Estatística perguntava-se
o que “era uma favela?” (DISTRITO FEDERAL, 1949: 6-7). Essa dúvida foi partilhada e
aprofundada por Alberto Passos Guimarães, que refutava o senso comum, questionando o que
teria levado aos “exageros dos recenseadores” de 1948 (GUIMARÃES, 1953: 256). Para ele,
não eram os casebres ou a habitação em morros que caracterizavam as favelas. A
“denominação popular de favela não teria, pois, surgido da diferenciação entre o tipo
arquitetônico das vivendas dos morros, mas do conjunto de condições que a caracterizaram,
entre estas, notadamente o aspecto típico de seu agrupamento desordenado e denso” (Idem,
1953). Assim, a qualificação surgia dos aglomerados pobres, rústicos e desordenados; não
havia algo na arquitetura que os particularizava.
Essa dimensão socioeconômica das favelas foi acentuada na conceituação de Alberto
Passos Guimarães e promovia a nacionalização do debate da relação entre favela e
desenvolvimento. A identificação não retirava a carga subjetiva, imprecisa e moral do termo,
mas tornava possível a formação de uma abstração e de critérios “técnicos”, para generalizar a
categoria e aplicá-la a vários lugares. Primeiro, como já enfatizamos, Alberto Passos
Guimarães estabeleceu um critério numérico, para compreender os aglomerados de casas
pobres. O próprio autor admitiu a dificuldade para estabelecer a delimitação espacial de uma
favela, mas, para ele, era possível construir uma média e alguns critérios normativos que
resolvessem esse problema. Seria favela o aglomerado de mais 50 moradias de “tipo rústico”,
num espaço de propriedade irregular e desordenado, sem arruamento, número e infraestrutura.
Junto a isso, o autor estabeleceu uma autonomia entre a categoria favela e sua vinculação ao
Rio de Janeiro. Como expressão da questão social, as favelas deixavam de ser “um fenômeno
à parte, próprio e exclusivo do Distrito Federal”; suas populações representavam “uma
parcela, como tantas que integram a sociedade brasileira, constituída de grupos sociais de
níveis econômicos inferiores” (Ibidem, 1953: 258). As características conceituais da definição
de Alberto Passos Guimarães eram bastante abstratas e gerais, favorecendo a recepção do
texto em escala nacional. Em Belo Horizonte, é válido lembrar, sua conceituação foi
referência para os trabalhos de 1955 e 1965.
Além dessa virada conceitual e da nacionalização do debate sobre as favelas, o
enfoque socioeconômico estava afinado com o contexto internacional do pós-Segunda Guerra
Mundial. As interpretações dos censos traziam referências a vários debates sobre “habitação
134
popular” em fóruns internacionais. A África, Ásia e América Latina trocavam informações
sobre essas referências formadas e criavam categorias comuns para o debate sobre o
desenvolvimento, a rápida urbanização, o déficit habitacional e a pobreza no Terceiro Mundo.
Nesse período, os congressos interamericanos sobre habitação popular e urbanismo tornaram-
se uma constante na própria justificativa e constituição desses problemas156
.
Ainda que tenhamos poucas informações e estudos que subsidiem uma avaliação
dessas instâncias institucionais internacionais, dois aspectos se sobressaem nos textos que
mostravam a orientação conceitual das estatísticas. Primeiro, ficava claro o enfoque
habitacional, enfatizando que o direito de moradia do cidadão estava em “xeque” no Terceiro
Mundo. Segundo, estabelecia-se uma relação entre o padrão de desenvolvimento dos países
pobres e a formação dos “tugúrios”, “barriadas”, “vivendas insalubres” e “favelas”.
Sobre esse segundo aspecto, é interessante a reflexão constituída na Subcomissão de
Habitação e Favela da Câmara Federal em 1953, contemporâneo desse enquadramento das
favelas no debate internacional. Segundo o relatório dessa subcomissão, a escassez de
moradia no rápido desenvolvimento urbano levava os pobres a submeter-se
à sublocação de cômodos, sacrificando o seu padrão habitacional e criando
problemas sociais insanáveis, dada a promiscuidade; ou seja, pelo aviltamento total
do padrão habitacional, procurando ocupar casas “sub-standarts” infetas, nos
aglomerados tipo “favelas” etc.
As causas do fenômeno são complexas (...) o problema não é apenas
circunstancial, simples decorrência de uma fase de instabilidade financeira; à parte
dessa causa evidente, deve-se ter em conta a própria natureza de nossa economia em
sua fase de expansão, que possibilita uma extraordinária mobilidade vertical à
sociedade. Isto é, como vivemos numa economia em franco desenvolvimento e
numa sociedade em formação, não possuímos uma estratificação de classe, quer do
ponto de vista econômico, quer do ponto de vista “status social”, há, por isso, uma
intercomunicação muito rápida entre os vários níveis da mesma forma que nos
Estados Unidos nos fins do século passado e princípios deste, e diferentemente das
economias da Europa Ocidental e dos Estados Unidos atualmente, onde tanto o
processo de crescimento econômico quanto a estratificação social tendem a uma
estabilização.157
156
Em 1950, o relatório elaborado por Alberto Passos Guimarães fazia referência ao I Congresso Pan-americano
de Vivenda Popular (1939), ao VI Congresso Pan-americano de Arquitetura (1948) e ao II Congresso Histórico
Municipal Interamericano (1948), (GUIMARÃES, 1953: 262). Em 1955, a comissão que elaborou o texto
interpretativo do cadastro de favelas de Belo Horizonte citava os trabalhos de “Habitação e Urbanismo” nos
encontros da Divisão do Trabalho e Assuntos Sociais da União Pan-americana realizada em Quito (1950), São
Salvador (1950) e Porto Alegre (1951); também se referia ao IV Congresso Interamericano de Municípios. Cf.
ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara Municipal de Belo Horizonte..
Arq. DR.010209-7894. nov. 1955. Em 1965, fazia-se menção às publicações da Organização das Nações Unidas
para o problema da “vivenda popular” (MINAS GERAIS, 1966: 11-13). 157
ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara Municipal de Belo Horizonte..
Arq. DR.010209-7894. nov. 1955; CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Habitação e favela, 1953. Arq. AVAP vpu. Sgv.
1951,04.04.
135
O interessante desse texto não é a ênfase na questão do déficit habitacional que, desde
o início do século XX, estava no centro do debate sobre a favela. O curioso do texto é essa
vinculação entre o déficit e um estágio de desenvolvimento do Brasil. Para a Subcomissão de
Habitação e Favela, o país vivia um processo intenso de urbanização, estando no mesmo
estágio de desenvolvimento dos Estados Unidos no final do século XIX, quando este realizou
sua Revolução Industrial. Em segundo lugar, vemos nessa produção uma clara negação dos
conflitos de classe em favor de uma visão de que o desenvolvimento promoveria a mobilidade
e a “estabilização” da estratificação social. A favela, bem como a pobreza, seria a expressão
de um momento do desenvolvimento, que se dissolveria com o progresso nacional.
Representaria um estágio transitório no desenvolvimento do país. Anos mais tarde, essa
análise sobre o processo de desenvolvimento seria questionada por intelectuais que
produziram a “teoria da dependência” (PERLMAN, 1977).
No entanto, foi essa análise que levou a uma percepção da favela como um habitat
deslocado do desenvolvimento urbano-industrial, um enclave “primitivo” e pouco
desenvolvido das cidades. A relação entre desenvolvimento e favela mostrava a segunda
como algo atrasado, que seria eliminado pelo progresso e crescimento urbano. Além disso,
essa imaginação permitiu a reprodução de um pensamento dualista, que enfatizava o contraste
entre população “normal” e “anormal”, integrados e “marginalizados”.
3.3 O habitat das favelas
Na conceituação da Geografia dos anos 1940 e 1950, existia uma íntima relação entre
o meio/paisagem e o elemento humano que o constituía. A geografia humana e a física não se
separavam, não eram disciplinas autônomas; essa divisão só ocorreu na década de 1960
(ALMEIDA, 2001). Um dos problemas mais duradouros do debate geográfico era a relação
do homem com a paisagem: como as relações humanas transformavam a natureza e como a
paisagem era humanizada, tornando-se a expressão de um tipo de sociedade (SIMÕES, 2011).
Esse é um tema que pode ser buscado na produção naturalista sobre o Brasil, nos sanitaristas
do início do século XX e nos escritores modernistas que mostravam as influências
“mesológicas” e do ambiente no caráter do povo brasileiro (GOMES, 2002;
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001). Ainda citando esse debate, em meados do século XX, a
noção de habitat relativizou o determinismo implícito de análises anteriores, discutindo o
processo de “humanização” do território brasileiro.
136
Segundo Angotti-Salgueiro (2005), essa noção permitia que a geografia operasse em
dois polos na construção da comunidade imaginada. De um lado, ela reforçou o traço
homogêneo do território, do clima e da natureza no Brasil, afirmando a soberania da nação e
do povo sobre um espaço. Por outro, discutia-se a diversidade nacional através de “etnotipos”,
diferenciando os homens na luta pela humanização da natureza e na composição das
paisagens do território brasileiro (ANGOTTI-SALGUEIRO, 2005: 29). Os “etnotipos” e a
diversidade eram retratados, prioritariamente, na paisagem rural brasileira, onde se
localizavam os tipos humanos que se extinguiriam no processo de modernização. Contudo
uma exceção apresentava-se nessa produção: a representação das “favelas” e “mocambos”
como elementos característicos dos contrastes da paisagem urbana brasileira (Idem, 2005: 43).
Eles representavam o “atraso” diante do avanço e desenvolvimento da sociedade urbano-
industrial158
.
A identificação dos habitats concebia a unidade e a diversidade dentro de um mesmo
território nacional. Na linha vidaliana159
, o habitat era o resultado da interação do “solo-
cultura-ocupação”, dos “lugares-habitações-traços psicológicos” de uma população. O livro
“Tipos e aspectos do Brasil” foi uma das contribuições mais evidentes dessa matriz de
pensamento. Publicado em partes na Revista Brasileira de Geografia, em 1939, foi relançado
numa edição comemorativa do XVIII Congresso Internacional de Geografia, realizado no Rio
de Janeiro, em agosto de 1956. Nessa publicação, arrolava-se uma série de habitats
brasileiros, compondo um mosaico de tipos humanos brasileiros.
O conceito de habitat recolocava o paradoxo da relação entre meio e formação do tipo
humano. Era o meio, o resultado ou o formador dos hábitos sociais? Era a pobreza do meio
rural e urbano que formava as favelas ou elas que reproduziam a pobreza? O paradoxo foi
expresso da seguinte maneira no censo de 1950:
não são as favelas que produzem os baixos padrões de remuneração, de instrução, de
higiene de seus habitantes, mas justamente pelo contrário, são os baixos padrões de
remuneração, de instrução e de higiene existentes em nosso País que geram as
favelas. Essa afirmação, todavia, não importa em negar que, nascidas de causas mais
longínquas e mais profundas, as favelas, por sua vez, condicionam a formação de
hábitos e relações peculiares ao seu meio. (GUIMARÃES, 1953: 254)
158
Cf. GENTE das “favelas”. In: DEFFONTAINE, Pierre. Geografia Humana do Brasil. Revista Brasileira de
Geografia, v. 1, n. 2, 1939, p. 31. 159
Vidal de La Blache foi um dos fundadores dos estudos geográficos na França. Nos anos 1940 e 1950, foram
vários os intercâmbios entre Brasil e França no campo da Geografia (ALMEIDA, 2001).
137
A concepção de habitat reproduzia uma das características fundamentais da
representação coletiva da favela: o termo classifica uma “dimensão físico-espacial” da cidade,
qualificando a “a patologia de territórios e moradias”, sem que se identificassem ali seus
atores sociais. (MACHADO DA SILVA, 2002: 227). Por meio da manutenção do pressuposto
da peculiaridade de um meio sócio-humano, a tradição narrativa que deu visibilidade às
favelas como espaço da “promiscuidade” e “insalubridade” era mantida de forma intacta. Os
censos mostravam, como prova disso, o elevado número de crianças com até 15 anos, o baixo
número de casados e o número de cômodos que uma casa apresentava. Esses termos
reproduziam preconceitos de classe e as concepções de normalidade ou anormalidade
presentes na concepção de família ou de intimidade burguesa.
3.3.1 Narrativas históricas da ocupação da paisagem urbana
Para justificar uma abordagem particularizada de um espaço e um tipo humano, os
censos reconstruíram e estimularam as narrativas genealógicas das favelas no espaço urbano-
carioca e belo-horizontino. Assim, voltava-se aos primórdios da história republicana, para se
falar de uma origem da favela, buscando enquadrá-la na memória coletiva da cidade. É
importante pensar como os regimes de narrativa histórica das cidades foram reconstruídos,
para mostrar a maneira como o homem pobre formou um habitat particular.
No Rio de Janeiro, a memória do tema estava consolidada. No censo publicado em
1949, as favelas eram um problema urbano-industrial, assim como uma manifestação típica
do Rio de Janeiro. O habitat do pobre tinha sua origem no Morro da Favela, que formou uma
“tradição da cidade”. Nesse paradigma, afirmava-se que
os pioneiros desse gênero de coletividade acomodaram-se no morro da Providência
e a aglomeração formada ficou sendo conhecida por Favela, adotando toponímico
que na época tanto impressionara as camadas populares, porque evocava local nos
sertões baianos, onde as forças legais dos primeiros anos da República tinham
travado dramático combate contra os fanáticos de Antônio Conselheiro. A
denominação generalizou-se para todas as aglomerações análogas criadas na época
que posteriormente vieram a se constituir. Foram assim as favelas incorporadas à
tradição da cidade. Passaram a inspirar temas para os teatros e cantos populares e a
ocupar lugar de destaque nas crônicas policiais (DISTRITO FEDERAL, 1949: 5).
A narrativa em nada diferia daquela que circulava no início do século XX, elaborada
por jornalistas e literatos. Ao aderir ao mito de fundação da favela, o censo reproduzia a
imaginação sobre o “sertão urbano”. Seguindo essa narrativa, afirmava-se que
138
o intrincado dos morros íngremes torna difícil identificar casebres e moradores. O
jogo, a prostituição, a mendicância, o furto, o crime violento, as superstições, tem
raízes profundas nas favelas. A elite é formada pelos “bambas”, isto é, por aqueles
que lograram ascendência graças à perícia e familiaridade adquiridas no manejo do
cacete, da faca e do revólver (DISTRITO FEDERAL, 1949: 10).
A favela era vista como um enclave ao desenvolvimento capitalista pela criminalidade
e pelo ambiente “turbulento” que favorecia a “malandragem”. Como já afirmamos, o Major
Durval Magalhães Coelho mostrava como a discussão sobre as “classes perigosas” podia ser
reproduzida na quantificação dos “inativos”, trazendo inclusive referências raciológicas à
população. Para o autor, os negros eram “hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição,
e mal ajustados às exigências sociais modernas, fornecem em quase todos os nossos núcleos
urbanos os maiores contingentes para as baixas camadas da população” (Idem, p. 8).
Na conceituação do censo de 1950, a história da favela carioca vai ser distinta.
Promoveu-se uma readequação da narrativa que naturalizava o Morro da Favela como algo
típico do espaço urbano carioca. A relação entre desenvolvimento e habitat da favela deixava
de ser um traço típico e exclusivo do Distrito Federal, passando a se referir a todos os tipos de
aglomerados de classes pobres brasileiras. Mencionava-se a publicação de Tipos e aspectos
do Brasil, para justificar o estudo demográfico das favelas (GUIMARÃES, 1953: 254);
contudo, ao contrário da distinção entre o “mocambo” e a “favela”, em seus traços físicos e
paisagísticos, optou-se por uma justaposição dos habitats. Barracos e mocambos
aproximavam-se, tornando “inexistente a diversidades entre os casebres das várias regiões do
território nacional”, não havia sentido em “isolar o problema da favela do problema da
vivenda pobre em geral” (Idem). Além disso, usava-se a referência a Gilberto Freyre, em
Sobrados e Mocambos, para se identificar um “padrão clássico” de moradia pobre que se
disseminou no Brasil. Esse padrão de habitação rústica difundiu-se para todo o território
nacional, eram “os mesmos casebres, tanto no campo quanto na cidade” (Ibidem).
Além de generalizar o habitat da favela como um tipo humano das cidades brasileiras,
a história do Rio de Janeiro foi recontada. As noções de “centro” e “periferia”, no processo de
diferenciação econômica da cidade após a Reforma Passos, organizavam o texto de Alberto
Passos Guimarães, com fins de explicar a origem da favela. A destruição dos cortiços teria
levado à formação de uma “periferia no centro” e à ocupação dos morros; depois, nos anos
1920, esse tipo de ocupação teria se expandindo para outros lugares, com a crise de habitação
e transporte. A favela fazia parte da periferia, diferenciando-se do centro pela “ausência de
melhoramentos públicos” (Id. Ibidem, p. 253). O habitat do pobre seria identificado com essa
noção alargada e ideológica de “periferia”.
139
As diferenças nessas duas genealogias são grandes. Mas fosse pela história do Morro
da Providência e do “sertão urbano” ou pela história da relação entre “centro” e “periferia”
que generalizava o habitat da favela como tipo brasileiro, as narrativas organizavam um
passado específico para uma ocupação humana e uma paisagem da cidade. Assim,
legitimavam uma história particularizada e o tratamento desse habitat de forma diferenciada e
específica. A favela seria o habitat rural e pobre no meio urbano, sendo expressão da
“singular associação de personagens que constituem esta população brasileira onde os tipos
mais primitivos andam lado a lado com os mais evoluídos”160
.
Em Belo Horizonte, a Comissão de Desfavelamento em parceria com a Inspetoria
Municipal do IBGE não elaboraram uma narrativa da história da ocupação humana das
favelas. A fim de justificar o censo e o uso da categoria favela para descrever as “cafuas” e
“vilas” próximas ao centro, a comissão de estudos usou várias referências e analogias em
relação às favelas cariocas: os relatos de viagem, a exaltação das conquistas da Fundação
Leão XIII e as reportagens que apresentavam o locus da pobreza na Capital Federal. Nas
palavras da Prefeitura, o censo respondia à necessidade de integrar “nossa Capital na
realidade do Brasil”161
. Na analogia com o Distrito Federal, existia o desejo de adequação da
administração pública à representação nacional do problema da habitação popular e da
pobreza no meio urbano. De acordo com excerto anterior, a representação nacionalizada do
habitat das favelas pelo Serviço Nacional de Estatística, as comparações das “vilas” com as
favelas no senso comum, e o debate sobre habitação no contexto internacional favoreciam a
adoção dessa categoria.
Contudo esse censo também moveu o intento de regionalizar o discurso sobre o
habitat das favelas de Belo Horizonte. A primeira das diferenças dizia respeito ao tipo de
habitação, as cafuas. Em 1955, a agência municipal de estatística procurou mostrar como as
habitações nas favelas de Belo Horizonte eram em sua maioria de cobertura de telha e de
paredes de tijolos de adobe (ver Tabela IV). Em 1965, o censo declarou que “os barracões das
nossas favelas, diferentemente do que ocorre em outras cidades como Rio de Janeiro e Recife,
são geralmente de tijolo e cobertos de telha” (MINAS GERAIS, 1965: 53). Afirmava-se que
as condições do habitat da favela eram melhores em Belo Horizonte que nas cidades carioca e
pernambucana. Os censos ilustravam fartamente esse registro da paisagem e produziam uma
convenção visual que balizou tanto o censo de 1955 quanto o de 1965. Em 1955, as
160
GENTE das “favelas”. In: DEFFONTAINE, Pierre. Geografia Humana do Brasil. Revista Brasileira de
Geografia, v. 1, n. 2, 1939, p. 31. 161
Projeto de lei nº 107, de 26 de novembro de 1955. In: ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO
HORIZONTE. Fundo Câmara Municipal de Belo Horizonte. Arq. DR.010209-7894. nov. 1955.
140
fotografias que ilustravam o trabalho da comissão de estudo de favelas focalizaram
principalmente a Pedreira Prado Lopes. Localizada no centro de Belo Horizonte, ela era a
mais antiga ocupação humana identificada como favela, era também a mais densa, com 1.700
moradias. A Pedreira Prado Lopes marcava, visualmente e historicamente, o ideal-tipo do
habitat da favela na cidade.
Tabela IV - Número de Habitações segundo material de construção162
Material de Construção das Paredes
Externas
Material da Cobertura
Adobe 7.229 Telha 8.596
Tijolo 1.917 Madeira 7
Madeira 58 Sapê 101
Taipa 100 Zinco 113
Outros 39 Outros 501
162
Adaptação dos números absolutos do cadastro de favelas, que apresenta o levantamento por favela. Cf.
CADASTRO de Favelas, 1955. ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara
Municipal de Belo Horizonte. Arq. DR.010209-7894. nov. 1955.
141
“Vista Parcial da Pedreira Prado Lopes”, 1955. ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE.
Fundo Câmara Municipal de Belo Horizonte. Arq. DR.010209-7894. nov. 1955
Após a divulgação do censo de 1955, surgiu uma releitura do passado da cidade,
identificando a favela no momento de sua fundação. O fato de o memorialista Abílio Barreto,
fundador do Museu Histórico de Belo Horizonte, registrar o topônimo “Favela” em 1895, não
foi em princípio relevante nem para o memorialista, nem para a Comissão de Desfavelamento.
Ao coordenar a edição comemorativa dos 50 anos de Belo Horizonte, na Enciclopédia de
Municípios organizada pelo IBGE, Abílio Barreto não reconhecia a existência de favelas na
cidade. Ele preferia falar em “vilas populosas” na zona urbana e suburbana. Segundo texto do
IBGE, as favelas teriam surgido recentemente na zona rural, e algumas tinham aparelhos
radiorreceptores e as condições de higiene não eram das mais precárias (1957: 46). Contudo o
cadastro de favelas motivou a produção de outra percepção da história. No texto “Favelas de
Belo Horizonte”, o geógrafo Roger Teulières usou o cadastro, para recontar a história de Belo
Horizonte.
Criada em 1897 por decisão do Parlamento de Minas e ultrapassando, atualmente,
400.000 habitantes, [Belo Horizonte era] uma cidade onde se nota a cadência
acelerada em matéria de construções, que não chega, entretanto, a resolver os
142
problemas oriundos da crise de crescimento de sua população. (...) A cidade foi
construída perto da calha que o Rio das Velhas abre na aresta do Espinhaço; aí chega
do Sul, a estrada difícil que conduz às montanhas de ouro e ferro; mais além se
espraiam, na direção do Norte, vastas terras abertas à conquista agrícola. Belo
Horizonte é, pois, o centro de atração de imensa área. A grande aglomeração atrai
toda espécie de gente, vinda na esperança de achar melhores condições de vida e que
se amontoa nas favelas. (...) As favelas que proliferam em torno da Capital de Minas
apareceram em datas diferentes. As mais antigas remontam à própria origem da
cidade (1895). Os trabalhos de sua construção atraíram muitos operários,
aventureiros, imigrantes sem profissão definida. Estavam concentrados em duas
zonas: o Córrego Leitão (atual bairro do Barro Preto) e a Favela ou Alto da Estação
(hoje Santa Tereza). Lá viviam, mais ou menos, 10.000 pessoas muito turbulentas,
entre as quais os crimes e as disputas eram frequentes. (TEULIÈRES, 1957: 8)
No senso comum, as “cafuas”, as “vilas” e os “casebres” construídos nos subúrbios e
na área central eram classificados como favelas. Teulières projetou essa imagem para o
passado, na história da fundação da cidade, elaborando uma “origem da favela” em Belo
Horizonte. A criação da capital de minas e a topografia que a tornava centro de atração
humana levaram ao aumento da população de “deserdados” e “aventureiros”, “sem profissão
definida”. O autor relacionava esse crescimento acelerado à desordem, mostrando que o
planejamento da cidade não comportava a gama de pessoas que afluía para o meio urbano.
Esse quadro identificado no momento de fundação da cidade repetia-se no processo de
intensificação da migração e na formação urbano-industrial, após 1945.
A afirmação dessa genealogia e temporalidade para as favelas não interditou o
procedimento analógico com o Rio de Janeiro. Ao contrário, essa operação foi reforçada,
justificando a visão regionalizada do habitat. Tal como a Comissão de Desfavelamento,
Roger Teulières recheou seu texto de analogias. O autor sugeria até proporções estatísticas:
segundo sua observação, podia-se “calcular 40.000 o total dos ‘favelados’, um décimo da
população de Belo Horizonte. A proporção é a mesma no Rio de Janeiro” (Idem, p. 8).
Teulières também definiu a favela como um tema da “realidade brasileira”. Na abertura de seu
texto, ele advertia:
Se desejasse conhecer todos os aspectos das grandes cidades do Brasil, o turista não
deixaria de notar os bairros de estranha originalidade: as “favelas”. (...) A favela
brasileira é um agrupamento de população miserável, escapando mais ou menos ao
controle das autoridades administrativas e vivendo em pobres cabanas sem higiene,
numa lamentável promiscuidade, geradora de doenças e perversões, onde a família
não se pode constituir normalmente (Ibidem, p. 7).
Roger Teulières concluiu sua tese de doutorado em geografia humana na França, em
1961, estudando o caso de Belo Horizonte. O fato de ter uma posição importante e um título
no meio acadêmico foi um dos motivos para que outros estudos reproduzissem sua
143
interpretação. Além disso, o texto “As favelas de Belo Horizonte” foi publicado no Boletim
Geográfico Mineiro, órgão oficial da seção mineira da Associação dos Geógrafos Brasileiros,
e foi amplamente divulgado através de um folheto163
. Todos os estudos conduzidos pelo
Departamento de Bairros e Habitações Populares referendariam seu texto e sua narrativa
histórica sobre o tema (SILVA, 1960; WANTANABE, 1962). Em 1965, o censo reproduziu
também o texto sobre a origem das favelas belo-horizontinas, bem como as analogias com o
espaço carioca.
A discussão em torno dos censos mostra como um paradigma de apreensão e análise
do espaço urbano foi nacionalizado. A favela foi “originada e batizada desta forma no Rio de
Janeiro”, mas “tanto o nome favela como o conceito passaram a ser generalizados para o
restante do Brasil”164
. Em Belo Horizonte, essa nacionalização implicava o debate sobre a
habitação popular na “realidade brasileira” e a realização de analogias com a cidade do Rio de
Janeiro, produzindo também uma regionalização do discurso do habitat do pobre.
A identificação do habitat da favela inscrevia-se na história da ocupação urbana das
duas cidades. Mobilizavam-se recursos culturais distintos para inserir a favela na trajetória das
cidades e em regimes de urbanidade diferentes: no Rio de Janeiro, a narrativa do Morro da
Favela ou da Reforma Passos, na produção de uma “periferia no centro”, para depois
acontecer sua expansão; em Belo Horizonte, o desejo de se modernizar, incorporando o
debate da realidade brasileira, o do “desequilíbrio” entre a cidade planejada e o da desordem
trazida pelos migrantes “deserdados”. Não obstante a representação da favela se inscrever em
regimes de historicidade distintos, o termo demarcava o espaço da pobreza e o lugar das
“classes perigosas”. Permitia a reinvenção de uma memória cultural que estigmatizava uma
população e um território.
Para muitos intérpretes das estatísticas das favelas, pode-se constituir uma contradição
representar o morador de favela como um trabalhador e como fruto de um habitat. Este
segundo pode ser lido como resquício de uma imaginação social elitista da Primeira
República. Percebemos isso de outra maneira: ao operar com essas duas escalas de análise,
conduzia-se à produção de uma identificação que naturalizava a favela como parte da cidade
urbano-industrial, todavia levava à construção de uma hierarquia nas relações entre moradores
e outros atores.
163
TEULIÈRES, Roger. As favelas de Belo Horizonte, 1957. Arquivo Público Mineiro. Coleção de Folhetos. 164
COSTA, Valéria Grace; NASCIMENTO, José Antônio Sena do. O conceito de favelas e assemelhados sob o
olhar do IBGE, das prefeituras do Brasil e da ONU. Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina, São
Paulo, Universidade de São Paulo (USP), 20 a 26 de março de 2005, p. 3795.
144
Essas duas vertentes e leituras do passado cristalizavam a imagem da “marginalidade”
no espaço urbano. A noção de marginalidade impregnou a visão dos burocratas e da sociedade
brasileira nos anos 1950 e 1960. Essa teoria ganhou muitas funções para burocratas, classes
médias e industriais: reproduziu a representação dos grupos populares como “dependentes,
isolados e impotentes”, colocando-os como clientela das estruturas de governo; construiu um
sistema de representação que legitima a “existência de desigualdades extremas e a
incapacidade do sistema de proporcionar padrões de vida mínimos”; e serviu à
autorreprodução da exploração do trabalho dos assalariados, representando os “marginais”
como incapacitados e não qualificados à civilização (PERLMAN, 1977: 292-294).
Pode-se dizer que a identificação da favela justificava um tratamento específico para
os moradores, legitimando hierarquias socioeconômicas para esses grupos, nas relações de
trabalho assalariado, que constituíam a cidade e definiam uma gestão específica desse
território. As políticas de “desfavelamento” estavam focadas justamente no objetivo de
eliminar um espaço que prejudicaria a formação do “ser humano”. A noção de habitat era
nesse sentido central, porque permitiu a elaboração da percepção da relação entre a paisagem
e homem, legitimando a política assistencial, que resgataria as famílias e os homens, ou da
política habitacional que faria o “desfavelamento”, oferecendo outro habitat, mais “digno” e
“humano”. O censo compôs parte fundamental da linguagem política que balizou a construção
de ações no âmbito estatal.
145
4 A “COMISSÃO NACIONAL DE BEM-ESTAR SOCIAL” E A “SUBCOMISSÃO
DE HABITAÇÃO E FAVELA”
Nos anos 1950, a habitação popular foi discutida pelo prisma da extensão da proteção
social ao trabalhador nacional. A generalização das relações assalariadas de diferentes tipos
(com e sem proteção na legislação social), a inserção da moradia como parte do cálculo sobre
o custo de vida, o processo de urbanização e o reconhecimento da habitação como direito
social na Constituição de 1946 compunham um quadro amplo para a discussão econômica e
política. Sindicatos, partidos políticos, igrejas, intelectuais, associações de moradores, em
contextos políticos diversos, buscavam projetos que equacionassem a temática da habitação
social e do direito à moradia.
Os debates e disputas entre projetos era permeada pela rápida expansão urbana do país
a partir da década de 1940. Entre 1940 e 1970, a população urbana do Brasil cresceria e
ultrapassaria a população rural (ver tabela abaixo). Nesse período, havia uma tendência de
rápido crescimento da população urbana e redução da população rural, nas décadas seguintes
essa propensão diminuiu. A política de habitação dos governos federal, estadual e municipal
dialogava com essa dinâmica, apontando para uma “crise”, tendo em vista a expectativa de
crescimento urbano-industrial. A industrialização era percebida como um problema, por
agudizar a crise habitacional, e como um objetivo, sendo estimulada através na formação de
áreas e zoneamentos urbanos, que viabilizavam a expansão dos investimentos no setor
secundário.
Segundo Santos, o crescimento econômico, vivenciado principalmente após a Segunda
Guerra Mundial, significou a generalização da urbanização no Brasil, o aumento das cidades
brasileiras com mais de 50.000 habitantes a partir dos anos 1950. Houve ainda a expansão e a
diversificação do mercado de trabalho e consumo em escala nacional, com maior divisão do
trabalho em diferentes centros, e a constituição de uma “crise social”. Os investimentos no
tecido urbano visavam ao aumento do lucro dos loteamentos, à reprodução das desigualdades
de classe e à exploração do trabalho, sendo desigual o acesso aos bens e serviços públicos
(SANTOS, 1979). Dentro desse processo complexo, marcado por grande heterogeneidade
regional e pela multiplicidade de atores, surgiu um mercado imobiliário com grande
especialização e diversificação de unidades habitacionais e o aprofundamento da
(in)segurança econômica e social na conquista da moradia e do direito à cidade.
População Urbana e Rural brasileira (milhões)
146
1940 1950 1960 1970 1980 1990
Urbana 12,9 18,8 31,3 52,1 80,4 111
Rural 28,3 33,2 38,8 41,1 38,6 35,8
Fonte: IBGE. População residente por situação do domicílio e por sexo, 1940-1996. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censohistorico/1940_1996.shtm>. Acesso em 13 de junho
de 2014.
A despeito das intenções declaradas pelos governantes em vários discursos, a
bibliografia sobre o tema é unânime em reconhecer as poucas unidades habitacionais
construídas nesse período e a baixa quantidade de recursos disponibilizados para a habitação.
Além da baixa quantidade de recursos, a política para habitação popular não se federalizou
como política pública, havendo uma multiplicidade de estratégias desconexas para o tema
(VALLADARES, 1978; FINEP, 1983; MELO, 1992; BONDUKI, 2004). Não obstante essa
avaliação dos autores da bibliografia anterior, não devemos perder de vista que os anos 1950
foram um momento rico de disputa e discussão sobre projetos de política de habitação
popular.
No debate público, as noções de “periferia”, “subúrbio”, “bairro operário”, “malocas”,
“vilas de malocas”, “vilas”, “mocambo”, “invasão”, “favela” eram politizadas, para se referir
aos problemas urbanos das cidades brasileiras e aos projetos para sua modificação. Rastrear as
formas como essas imagens foram construídas, experimentadas e articuladas por vários atores
no tecido urbano e no debate público constitui um imenso desafio para a historiografia. Neste
capítulo, vamos pontuar a importância da Comissão Nacional de Bem-estar Social (CNBS),
entre 1951 e 1954, na proposição de um projeto nacional de política habitacional. Nessa
comissão, vinculada ao Ministério do Trabalho, funcionou a Subcomissão de Habitação e
Favela, formando uma reflexão que ajudou a nacionalizar a representação da favela e
influenciou as políticas municipais de habitação desenvolvidas no Rio de Janeiro e em Belo
Horizonte. Assim como os censos, esse órgão foi outro vetor importante para a nacionalização
da identificação das favelas no debate sobre a política habitacional.
4.1 Comissão Nacional de Bem-Estar Social (CNBS)
A Comissão de Bem-Estar Social, um lado muito importante do governo Getúlio
que não tem sido também muito focalizado, estava começando a racionalizar a
política no país. Foi talvez o maior esforço de racionalização da política social que
se fez no país. Que infelizmente foi interrompido (ALMEIDA, Rômulo. Entrevista
concedida ao CPDOC - Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil - em 1988).
147
O trecho acima é importante, porque nos situa num debate acerca da memória e da
história do Segundo Governo de Getúlio Vargas (1951-1954), através da fala de um
personagem da época. Rômulo Almeida acumulou as seguintes funções nessa administração:
oficial do Gabinete Civil da Presidência, organizador da Assessoria Econômica da
Presidência, membro do Conselho Consultivo da Companhia Hidroelétrica do São Francisco,
economista da Confederação Nacional da Indústria e presidente da Subcomissão de Habitação
e Favela na Comissão de Bem-Estar Social (CNBS). Na entrevista concedida ao CPDOC em
1988, ele enfatizou sua trajetória pessoal, destacando sua participação no Segundo Governo
de Vargas, e indicando ações que foram importantes, mas não tiveram reconhecimento
posterior. Ele sinalizava para a centralidade da CNBS na promoção de uma racionalização da
política social do país.
A sua entrevista com as pesquisadoras do CPDOC era uma tentativa de deixar sua
marca na história e na memória política do período, reivindicando para si o envolvimento em
vários projetos de relevância. Mas a observação e interpretação do passado elaborada por
Rômulo Almeida teria como função apenas ressaltar o seu lugar na história? A maneira como
o entrevistado construiu uma representação da importância da CNBS deve ser levada em
consideração e melhor analisada, principalmente, quando observamos os relatórios do
governo Vargas e o Arquivo Privado de Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Nesse arquivo, por
exemplo, deparamo-nos com uma coleção de documentos que monumentalizava a ação de um
governo e apontava para a centralidade da CNBS. São mais de mil e quinhentas páginas sobre
a comissão de bem-estar social, constituindo uma importante fonte para a discussão e
pesquisa do tema.
Os poucos estudos dedicados a essa comissão na historiografia e a relevância atribuída
a ela por atores que participaram do Segundo Governo Vargas, leva-nos a uma releitura sobre
o que foi a CNBS, para depois abordarmos o tema central do capítulo, que é a Subcomissão
de Habitação e Favela e o projeto de habitação popular por ela articulado. Tal procedimento
analítico justifica-se, pois os documentos produzidos e acumulados no âmbito da
Subcomissão de Habitação e Favela não podem ser vistos de forma isolada, mas inseridos
num diálogo mais amplo sobre do Estado de “Bem-estar Social”. Sem esse “pano de fundo”,
perderíamos o processo que informou as ações locais, instituídas posteriormente.
4.1.1 A criação da CNBS
148
A proposta de criação da “Comissão Nacional de Bem-estar Social” surgiu no início
do segundo governo de Getúlio Vargas. O tema vinha sendo discutido como reforço e
racionalização da política social, reunindo num mesmo órgão a coordenação de várias
iniciativas feitas pelo governo no campo da assistência ao trabalhador.
No projeto original, lançado por Danton Coelho – primeiro ministro do trabalho do
Segundo Governo Vargas, a CNBS destinava-se a ser uma subsecretaria de governo. No mês
de abril de 1951, Danton Coelho propôs a criação de uma “Subsecretaria de Estado”,
“abrangendo todos os serviços de assistência social ao trabalhador brasileiro e às suas
famílias, que se incumbiria de planificar e por em execução (…) as atividades” que se
destinavam a esse objetivo e constituíam “esforços parcelados de serviço e órgãos que na
esfera de competência” do Ministério, se ocupavam “dos problemas fundamentais ligados à
conquista desse bem-estar”165
. Ligada ao Ministério do Trabalho, a subsecretaria unificaria o
serviço da previdência social, a política habitacional, o serviço social, e discutiria a extensão
da proteção social ao trabalhador rural. A proposta tinha como eixo organizador a expansão
dos direitos sociais e o planejamento da ação do Estado, para que atingisse o maior número de
cidadãos. O projeto de uma subsecretaria de governo não se institucionalizou. Criar tal
subsecretaria significava enfrentar os conflitos entre as diferentes esferas de governo, os
interesses divergentes entre setores sindicais e elites governantes, como também os projetos
de desenvolvimento das classes empresariais. Eram conflitos de difícil equacionamento
político e social.
Visto que o projeto não se institucionalizou como subsecretaria, o governo reduziu o
intento original e constituiu uma equipe para o “planejamento estatal”, mantendo o objetivo
de racionalizar as políticas públicas voltadas ao trabalhador nacional. Reuniu os
representantes de várias instituições governamentais das áreas da saúde, colonização,
habitação, previdência e serviço social, e formou a Comissão Nacional de Bem-estar Social,
com o propósito de estudar “soluções” para a política social. Destacavam-se, na comissão de
planejamento, os intelectuais e especialistas em diversas áreas sociais, reforçando o caráter
“técnico” do trabalho em contraposição com a ação política do governo; porém, isso não
significou a ausência de conflitos e de confrontos entre visões de mundo e interesses
divergentes, como veremos no caso da Subcomissão de Habitação e Favela.
165
Correspondência de Danton Coelho ao Presidente, 04/04/1951. CENTRO DE PESQUISA E
DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral
Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04.
149
A composição da CNBS e a definição de sua esfera de atuação foram bastante amplas.
Atrelada à comissão, o governo criou as subcomissões de Seguro Social, Serviço Social,
Habitação e Favela, Saúde, Indústrias Domésticas e Artesanato, Colonização e Bem-Estar
Rural, Recreação e Cultura, e Assistência Técnica166
. Em todas essas subcomissões,
destacavam-se os órgãos públicos ligados ao serviço social: havia uma representação
permanente do Serviço Social da Indústria (SESI), do Serviço Social do Comércio (SESC), da
Legião Brasileira de Assistência (LBA) e do Ministério da Educação e Saúde – no período, a
pasta de assistência social e educação eram conjuntas167
. Além dessa formatação institucional,
devemos lembrar que Alzira Vargas, na condição de filha de Getúlio, articuladora do Partido
Trabalhista Brasileiro e representante da LBA, foi nomeada para participar da Comissão
Nacional de Bem-estar Social168
. Ela cumpriu um papel bastante expressivo na
institucionalização do serviço social no Brasil e ganharia destaque como uma das porta-vozes
da CNBS.
Além dos profissionais ligados ao serviço social, a cúpula de decisão da comissão
congregava vários intelectuais de “conhecimentos destacados”, ligados à Economia, à
Engenharia, à Geografia e às Ciências Sociais. Esperava-se que os intelectuais promovessem
as “medidas capazes de acelerar o progresso econômico, através da elevação dos padrões de
vida das classes trabalhadoras, assegurando-lhes um mínimo de bem-estar social, sem o qual
não há possibilidade de realizar-se, em sua plenitude, a expansão econômica do país”169
. O
planejamento, a intervenção na economia e a elucidação de “deficiências técnicas” eram
intentos intercambiáveis, que apontavam para a crença nos intelectuais como artífices de uma
ordem social e política mais justa. Podem-se citar os seguintes intelectuais que participaram
da CNBS e pactuaram, em alguma medida, com o intento de promoção do bem-estar social
declarado pelo governo Vargas: o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, o geógrafo Josué de
Castro, o economista Rômulo Almeida, o economista Heitor Lima Rocha, o sociólogo José
Arthur Rios, o engenheiro Arnaldo Godoy, o engenheiro Augusto Luiz Duprat (da Fundação
da Casa Popular), o arquiteto Ângelo Murgel, o engenheiro Stélio Emanuel de Alencar Roxo,
166
VARGAS, Getúlio Dorneles. Mensagem de Governo à Câmara Federal – apresentada pelo Presidente da
República por ocasião da abertura da sessão legislativa de 1952. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1952. p. 327. 167
BRASIL. Decreto nº 30.020, de 29 de setembro de 1951. Cria a Comissão Nacional de Bem-estar Social,
diretamente subordinada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e dá outras providências. 168
Nomeação de Alzira Vargas do Amaral Peixoto, 23/10/1951. CENTRO DE PESQUISA E
DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral
Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04. 169
Correspondência de Danton Coelho ao Presidente, 04/04/1951. CENTRO DE PESQUISA E
DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral
Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04.
150
entre outros. Nesse critério de recrutamento de intelectuais que partilhavam do objetivo de
promover o bem-estar social, percebe-se também um predomínio de grupos que fizeram
carreira como técnicos na administração federal, ou que atuaram em instituições do Rio de
Janeiro, capital da República. Na estratégia desses intelectuais, a CNBS pode ter constituído
uma oportunidade de trabalho e uma importante vitrine para os trabalhos de alguns
acadêmicos. Entre esses intelectuais, a grande liderança e porta-voz da CNBS era Josué de
Castro. Ele presidiu-a por um curto período de tempo, mas contribuiu de forma direta para a
organização da CNBS.
4.1.2 A CNBS no contexto do Segundo Governo Vargas
A CNBS funcionou dentro do horizonte político do Segundo Governo de Getúlio
Vargas. Analisando o período, Soares D'Araújo observou a fragilidade das alianças políticas e
as várias tentativas de solucionar esse problema para garantir a governabilidade. Em 1950, a
eleição de Vargas tinha como componente o arranjo entre o Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB) e o Partido Social Progressista (PSP), o que não garantia o apoio da maioria na Câmara
Federal, criando uma constante instabilidade no governo. Além de compor os ministérios,
tentando uma aliança ampla entre os grupos partidários, organizou-se a estratégia de formar
comissões com grupos de tecnocratas, como uma tentativa de formar consenso, projetos e
evitar a imobilidade do governo. A CNBS pode ser vista dentro desse quadro social e político
da instabilidade governamental do Segundo Governo Vargas (D'ARAÚJO, 1982). Ademais,
devemos observar, nessa aproximação com intelectuais de diferentes matizes ideológicas, o
objetivo de promover reformas sociais, uma continuidade presente em outros momentos em
que Vargas governou o país. Nos diferentes governos formados sob sua direção, entre 1930 e
1945, Getúlio Vargas também se aproximou das elites letradas e acadêmicas, para construir
projetos de reforma social.
A CNBS retomava o intento propagandístico da campanha eleitoral coordenada, em
parte, pelo mesmo Danton Coelho. Essa campanha foi carregada de críticas ao governo de
Dutra (1946-1950) pela “desnacionalização” da economia e pelo abandono da questão social,
com a repressão aos sindicatos e aos trabalhadores. No início do governo Dutra, a política
econômica de câmbio flutuante e a abertura a movimentação de capital – na esperança de
retomada da competitividade do mercado interno – favoreceu a importação de produtos, a
restrição da economia, a alta inflacionária e a permanência da tendência de alta do custo de
151
vida. Nessa política, as reservas cambiais acumuladas pelo governo federal, durante a guerra,
foram dissipadas. As tentativas de alterar essa configuração foram operadas com o controle
cambial, o lançamento do Plano SALTE (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia) em
1949, e a constituição da assessoria de planejamento econômico norte-americano (Missão
Abbink). Junto a isso, o governo Dutra reprimiu as manifestações operário-sindicais e
restringiu a atuação dos sindicatos e do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Para se eleger,
Vargas criticou as várias iniciativas do governo Dutra e construiu um governo em que se
intentava marcar uma diferença em relação às apostas políticas do governo anterior
(SKIDMORE, 1975: 92-100; PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002:99-100; D'ARAÚJO,
1982: 81-102).
O retorno de Vargas, por meio da eleição, significava uma maior sensibilidade em
relação às questões políticas relacionadas à classe trabalhadora e uma mudança em relação à
crise social e econômica do governo anterior. A CNBS foi criada nesse contexto, numa
tentativa de compatibilização entre progresso econômico e bem-estar social. Quando propôs a
criação da CNBS, Danton Coelho, o primeiro a ocupar a pasta de Ministro do Trabalho,
Indústria e Comércio, tinha em vista a rearticulação dos órgãos ligados à segurança social e
econômica do trabalhador. Segundo o ministro, nos países de economia altamente
desenvolvida, “o bem-estar social decorre como um corolário natural da produtividade
coletiva e a elevação dos níveis de vida se processa, automaticamente, pela expansão da
economia”; no Brasil, ao contrário, “dada a incipiente estrutura econômica nacional e as
deficiências técnicas existentes, não pode o Governo aguardar, impassível, que se processe a
lenta elevação dos níveis de vida, em decorrência natural do desenvolvimento econômico
nacional”170
.
Os relatórios produzidos pela CBNS investigavam esse “desequilíbrio” de uma
sociedade subdesenvolvida e as formas do governo atuar, para solucionar o problema social.
Um dos relatórios, considerado exemplar para a comunidade de técnicos e intelectuais ligados
ao órgão, foi o inquérito intitulado Pesquisa de Padrões de Vida (1951). A pesquisa foi
coordenada por Alberto Guerreiro Ramos, contando com a colaboração de Josué de Castro e
dos principais Institutos de Aposentadoria e Pensão. Objetivou compreender o padrão de
consumo na alimentação, habitação, vestuário, lazer e cultura em 100 municípios, oferecendo
um registro do bem-estar social da população brasileira para além dos grandes centros
170
Correspondência de Danton Coelho ao Presidente, 04/04/1951. CENTRO DE PESQUISA E
DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral
Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04.
152
urbanos, observando um “padrão” de bem-estar social também nas “grandes cidades” e no
“interior”. O trabalho era inédito, porque tentava agrupar várias pesquisas que ocorriam em
caráter limitado nas capitais, estendendo-as para a reflexão sobre o contexto nacional,
uniformizando uma maneira de observar o problema171
.
4.1.3 Bem-Estar Social e o contexto internacional
A combinação entre progresso econômico e social era um objetivo almejado no âmbito
do governo brasileiro e no cenário internacional. No contexto de expansão do Estado de Bem-
estar Social (Welfare State), diferentes autores identificam, no período de pós-guerra, a
ascensão de governos e políticas que combinavam crescimento, distribuição de renda,
instituição de direitos sociais e formação de uma sociedade do consumo (JUDT, 2008;
HOBSBAWM, 1995; FRIEDEN, 2008). Nesse quadro internacional, que se estende dos
Estados Unidos da América aos países europeus em processo de recuperação da destruição
produzida pela Segunda Guerra Mundial, o Brasil era tido como atrasado, num estágio
anterior na escala de desenvolvimento econômico e social. São vários os termos arrolados
para marcar essa condição: “economia incipiente”, “subdesenvolvido”, “país jovem”.
A CNBS sintonizou-se com esse cenário e procurou estender a proteção social ao
trabalhador, em colaboração com a Organização das Nações Unidas (ONU). Ela tinha como
objetivo “tomar conhecimento da política de bem-estar social dos organismos especializados
das Nações Unidas, com a finalidade de articular a política nacional com os programas dos
mesmos, visando ao máximo de rendimento para o país, das oportunidades de colaboração e
assistência por parte desses organismos”172
. Foram estabelecidos projetos de cooperação com
a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), para Educação,
Ciências e Cultura (Unicef) e do Fundo Internacional de Socorro à Infância173
.
A CNBS tentava explorar as possibilidades dessa colaboração com ONU em questões
atinentes ao desenvolvimento econômico e social. A ONU tem como principal objetivo a
manutenção da paz entre as nações após o término da Segunda Guerra Mundial, também está
previsto no seu estatuto o auxílio para o desenvolvimento econômico e social. A reconstrução
171
O trabalho foi referendado e discutido em todos os relatórios de governo de Getúlio Vargas. Cf. VARGAS,
1951; VARGAS, 1952; VARGAS, 1953; VARGAS, 1954. 172
BRASIL. Decreto nº 30.020, de 29 de setembro de 1951. Cria a Comissão Nacional de Bem-Estar Social,
diretamente subordinada ao Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, e dá outras providências. 173
VARGAS, Getúlio Dorneles. Mensagem de Governo à Câmara Federal – apresentada pelo Presidente da
República por ocasião da abertura da sessão legislativa de 1952. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1952. p. 328.
153
dos países destruídos pela Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e a desigualdade no
sistema internacional reforçou a posição da ONU no debate sobre as questões sociais. Ela
propugnava uma política intervencionista e planificada como meio para estender a paz social
entre as classes e nações. Na América Latina, na década de 1950, a planificação da economia
e a superação do atraso levaram à criação da Comissão de Planejamento Econômico da
América Latina (CEPAL). Com a criação da CNBS, o Segundo Governo Vargas vislumbrava
ampliar a colaboração com técnicos internacionais e a ampliação de investimentos no país.
A colaboração em programas de assistência técnica era uma maneira de o país
consolidar uma posição no sistema internacional rearticulado após a Segunda Guerra
Mundial. Nesse período, o governo buscou um alinhamento pragmático com os Estados
Unidos, de modo que ampliasse as formas de desenvolvimento econômico; tentava reproduzir
a estratégia, que garantiu a colaboração americana no início da década de 1940 em setores
estratégicos da economia, em troca do alinhamento brasileiro (HIRST, 1990;
QUINTANEIRO, 1988). No plano interno da comunidade política, a política internacional de
alinhamento pragmático aos EUA agitou o debate nacionalista do Segundo Governo Vargas.
A CNBS, em comparação com a Guerra da Coreia, o Acordo Militar Brasil-Estados Unidos e
a questão dos minerais atômicos estratégicos não foi um ponto central da disputa, todavia foi
o lugar onde se encenava a retórica do nacionalismo, do progresso social e do alinhamento ao
bloco do Ocidente.
Essa retórica do alinhamento ao Ocidente e a exaltação nacionalista fica evidente
quando se observam as notícias em que a CNBS era abordada nas falas de Josué de Castro.
Entre 1951 e 1953, Josué de Castro foi principal porta-voz da comissão. Ocupando o cargo de
vice-presidente da CNBS, um abaixo do ministro do trabalho (que ocupava o cargo máximo
da comissão), ele foi um dos principais responsáveis pela idealização e construção da
burocracia. Esse aparato organizaria o grupo de tecnocratas que planejaria a política de bem-
estar social. No período, ele ainda venceu a disputa pela direção da Organização das Nações
Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), acumulando o cargo na ONU e no governo de
Vargas. Na imaginação política da época, esses componentes estariam unidos na consecução
do objetivo da CNBS. O próprio Josué de Castro evidenciou esse ponto numa carta em tom
bastante pessoal a Alzira Vargas:
Foi um espetáculo inédito e de estarrecer, este do Brasil (país lá-bás) ganhar
uma luta contra as grandes potências unidas (a Inglaterra, os Estados Unidos e a
França). Até hoje as delegações das grandes potências estão atordoadas com a
surpresa. Mas palavra que foi bom!
154
Agora, com a eleição, sou forçado a demorar um pouco mais aqui, para
presidir a sessão do Conselho que se reúne logo depois da Conferência. Tenho, no
entanto, a impressão de que a demora será bem recompensada com as vantagens que
poderemos tirar da FAO para o país, no programa do Bem-estar Social ora em
planejamento.
Já estou encaminhando uma série de convênios em materiais de assistência
técnica que, a meu ver, serão de utilidade nos nossos planos174
.
Ainda que endereçado à “amiga Alzira”, o conteúdo da carta não tinha conteúdo
restrito ao foro íntimo. A vitória na disputa contra as grandes potências pela direção da FAO
foi celebrada na imprensa e um evento dramatizado em várias notícias. No jornal Última
Hora, o repórter dava a chamada de destaque com Josué de Castro, evidenciando que o
“nosso representante naquele órgão pelos países latino-americanos” na FAO “disputou um
pleito renhido, conseguindo vencer o candidato do grupo anglo-saxônico, apresentado pela
Inglaterra com o apoio dos Estados Unidos. Houve embate no primeiro escrutínio, sendo a
vitória obtida no segundo, por 34 votos contra 30”175
. Em sequência, o jornal salientava que,
apesar de o escritório da FAO ser em Roma, Josué de Castro não se deslocaria do Brasil; ele
realizaria uma ponte entre a FAO, o Ministério da Agricultura e o Ministério do Trabalho,
favorecendo o intercâmbio de técnicos.
Como porta-voz da CNBS, Josué de Castro explorava sua função de intelectual
universitário, membro da FAO e participante do governo de Vargas. Numa entrevista ao
jornal A Noite, o médico-geógrafo salientava a mensagem de Vargas à Câmara Federal e a
centralidade que, em sua visão, assumia a CNBS no plano de governo. Na condição de
“estudioso dos problemas sociais brasileiros, com constante preocupação pela condição de
vida do povo e seus reflexos na estrutura e na evolução econômica”, frisou a importância
atribuída pelo presidente em sua mensagem aos “problemas brasileiros de acomodação social
e de repartição da felicidade humana” e a “abolição da vergonhosa barreira que separa em
duas castas os favorecidos da sorte e os desgraçados”176
. Na visão de Castro, havia uma clara
mistura entre nacionalismo, bem-estar social e progresso econômico; a CNBS seria central no
estudo “dos problemas nacionais relacionados à melhoria de existência do povo”177
.
Um dos momentos chave para a discussão internacionalizada do debate sobre “padrão
de vida” e “bem-estar do brasileiro”, assim como para a encenação dessa retórica do
174
Carta de Josué de Castro à “grande amiga” Alzira Vargas, 01/12/1951. CENTRO DE PESQUISA E
DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral
Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04. 175
REINTEGRAR os povos marginais na Comunidade Econômica Mundial. Última Hora, Rio de Janeiro,
14/01/1952, p. 3. 176
HARMONIA dos grupos sociais e bem-estar dos indivíduos. A Noite, Rio de Janeiro, 20/03/1952. p. 11. 177
Idem.
155
alinhamento pragmático com os Estados Unidos, foi a Conferência dos Estados da América,
com os membros da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Realizada em Petrópolis,
em abril de 1952, como preparatória da conferência da OIT, a conferência contou com vários
representantes da CNBS. Até então, haviam ocorrido quatro conferências: Chile (1936),
Havana (1939), México (1946), Montevidéu (1949). Ali, mais uma vez, o debate sobre a
discussão da questão social era colocado em âmbito internacionalizado, através de instituições
que tinham ampla influência dos Estados Unidos e de uma ideologia da modernização social
para a América Latina.
Ao consultar os trabalhos guardados no arquivo privado de Alzira Vargas, vemos que
a preocupação central na conferência preparatória da OIT era o “homem do campo”,
figurando como uma classe social excluída dos benefícios da civilização. É importante
salientar esse ponto, uma vez que os debates nacionais e latino-americanos serão pautados
pela imagem do camponês que é tido como símbolo do atraso nacional e como grupo
fragilizado no âmbito da proteção social. Os intelectuais da CNBS enfatizaram o bem-estar
social de diferentes tipos dentro das dualidades rural-urbano, centro-periferia,
desenvolvimento-subdesenvolvimento, localizando o Brasil na faixa de atraso de uma escala
de evolução.
4.2 Subcomissão de Habitação e Favela
Até agora contextualizamos a CNBS no enredo político e social do período, visto que
não há trabalhos acadêmicos sobre a comissão. O interesse dos autores da bibliografia sobre o
Segundo governo de Vargas concentra-se na Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, nas
articulações político-partidárias, para explicar a crise de agosto de 1954 e a ascensão de João
Goulart no Ministério do Trabalho e no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Caso não se
descrevesse a trama institucional que constituiu o lugar da CNBS, correríamos o risco de fazer
uma análise dos documentos sem explicar a conjuntura que dialogava com a Subcomissão de
Habitação e Favela.
A Subcomissão foi criada em fevereiro de 1952. Na documentação, ela aparece com
os nomes “Habitação e Favela”, “Habitação” ou só “Favela”. Seus principais objetivos eram
anunciados nacionalmente: realizar os estudos e pesquisas sobre as “condições de vida das
populações brasileiras, no tocante ao problema da habitação”; planejar genericamente a
conjugação de esforços de todos os órgãos e serviços oficiais, paraestatais e particulares para
enfrentar o problema da habitação; sugerir medidas para submeter a decisão da CNBS;
156
entrosar-se com as outras subcomissões técnicas178
. O órgão tinha como referência a
experiência das várias cidades brasileiras, mas dava especial destaque à capital federal da
república. O nome da entidade comprova tal enfoque, ao anunciar a forte interdependência
entre a reflexão sobre a favela e o problema habitacional.
A imagem da favela projetava-se nacionalmente e servia como referência para pensar
diversas situações urbanas. Em 1952, foram listadas setenta comunicações e trabalhos
acadêmicos, enfocando a “crise habitacional”, as “favelas”, os “mocambos” e as “malocas”179
.
Não encontramos nem a metade da produção intelectual e política envolvida na subcomissão.
Foram as seguintes comunicações encontradas: “Causas socioeconômicas e técnicas
determinantes do problema das aglomerações tipo ‘favelas’, ‘mocambos’, ‘vilas de malocas’,
etc.”, de Armando Godoy, representante do ministério da Fazenda e da Fundação da Casa
Popular (FCP); “A Casa Rural Brasileira, subsídio para o governo”, do arquiteto Angelo A.
Murgel, professor da Faculdade Nacional de Arquitetura; “Aspectos Sociais da Habitação
Popular”, do engenheiro Nélson Corrêa Monteiro, representante da Fundação Leão XIII; “As
Cooperativas e a solução financeira da habitação”, do engenheiro Augusto Luiz Duprat, da
FCP; “Tributação e Habitação”, do economista Heitor Lima Rocha, da Confederação das
Indústrias; “Os municípios brasileiros e o moderno urbanismo”, do engenheiro Stélio
Emanuel de Alencar Roxo, da Prefeitura do Distrito Federal; “Síntese de um programa para o
encaminhamento da solução do problema das ‘favelas’, a começar pelo caso daquelas
localizadas na cidade do Rio de Janeiro”, da Fundação da Casa Popular. Através da consulta
ao acervo privado de Alzira Vargas e daquilo que foi publicado sobre as favelas, é possível
perceber a centralidade da Fundação da Casa Popular e do Rio de Janeiro como locus para
discussão do problema.
Os trabalhos da subcomissão indicavam duas estratégias para institucionalização da
política de habitação e assistência social aos pobres: uma nacional e federalizada, reforçando
a posição da Fundação da Casa Popular; e outra que seria descentralizada, interiorizando a
ação estatal a partir dos municípios e estados. O controle da migração, o estímulo à
colonização, o anúncio de uma política de mutirão e a construção de apartamentos e casas
eram os eixos de discussão dos projetos. Além disso, os planos de habitação popular
ensaiados em alguns centros urbanos na década de 1940 receberiam novo impulso numa
178
Portaria nº 2, de 04 de abril de 1951. Cria a Subcomissão de Habitação. CENTRO DE PESQUISA E
DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral
Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04. 179
ALMEIDA, Rômulo. Relatório da Subcomissão de Habitação e Favela (Anexo). CENTRO DE PESQUISA E
DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Getúlio Vargas. Arq. GVc
1952.12.23.
157
releitura contextualizada pelo debate internacional da expansão do Estado de Bem-Estar
Social. Haveria, assim, uma conjugação entre o controle social, por meio do serviço social,
para formar o ethos do “trabalhador ordeiro”, e a conquista da casa própria como sinal de
ascensão social dentro do projeto de desenvolvimento urbano-industrial.
A Fundação da Casa Popular era o órgão de maior importância, tanto na direção
quanto no volume da reflexão sobre a temática da habitação popular na Subcomissão de
Habitação e Favela. Essa liderança era conquistada principalmente pela ocupação de posições
diretivas. Entre maio e julho de 1952, quem coordenou a subcomissão foi Jorge Mattos,
representante da Fundação da Casa Popular (FCP). Posteriormente, Rômulo Almeida dirigiu a
subcomissão, ele também tinha trabalhado na FCP em 1946 no setor de pesquisa econômica e
social e, durante o governo Vargas, acumulava o cargo de oficial de gabinete da Presidência
Civil e membro da Assessoria Econômica da presidência.
Por acumular vários cargos, ele era central na articulação do órgão, mas isso também
contribuía para prejudicar os trabalhos da subcomissão. No acervo de Alzira Vargas, há
alguns documentos que informam sobre o cotidiano político da CNBS antes de ela se
organizar institucionalmente; ali, já se observava a centralidade de Rômulo Almeida na
subcomissão. Em abril de 1951, portanto, há um ano da institucionalização da subcomissão,
dizia-se que
Já selecionamos os elementos para a Subcomissão; estou providenciando a
atualização das informações sobre o problema junto à Fundação e aos Institutos. Daí
por diante, temos que receber a orientação do Rômulo, que desejou dirigir o grupo e
que se interessa vivamente pelo problema. Receio que os encargos do Rômulo
retardem o desenvolvimento dos trabalhos. Peço ativá-lo ou solicitar para a urgência
das atividades no setor180
.
É interessante pensar que, antes da criação da subcomissão, os Institutos de
Aposentadoria e Pensão (IAPs) e a FCP eram vistos como instituições centrais para o debate
sobre a política habitacional. Na instalação da subcomissão, vemos a importância dos IAPs
diminuírem com o crescimento da representatividade da FCP e a incorporação de outros
interlocutores. A Subcomissão de Habitação e Favela tinha um claro intento de revigorar o
papel da FCP como órgão de coordenação da política de habitação popular no Brasil. Além de
relativizar o peso dos IAPs, a subcomissão reuniu representantes de várias esferas do governo,
provenientes dos ministérios da fazenda, agricultura, justiça, educação, viação e obras, do
Banco do Brasil, além de um representante da prefeitura do Rio de Janeiro e outro da
180
Carta a Dona Alzira Vargas, 04/04/1951. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA
CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04.
158
Fundação Leão XIII. Além desses, havia profissionais liberais com formação em economia,
serviço social, engenharia, medicina e arquitetura. Essas instituições e intelectuais entraram
em cena com claro propósito de reforçar a posição da FCP na política nacional de habitação
popular.
4.2.1 A Fundação da Casa Popular e a política nacional de habitação
O conflito entre os IAPs e a FCP foi constitutivo da política nacional de habitação
popular no período de 1946 a 1964. Em 31 de março de 1946, o presidente anunciou o
anteprojeto que criaria um novo órgão para política habitacional, tema que foi discutido na
imprensa, nos sindicatos e no legislativo federal. Em primeiro de maio, após um mês de
debate, sancionou a lei que criou a Fundação da Casa Popular; ela era vinculada ao Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio e tinha como foco a expansão dos direitos e a proteção
social do trabalhador 181
.
O mesmo governo Dutra (1946-1951), que reprimiu greves, interveio nos sindicatos e
limitou a atuação das esquerdas, tentou forjar uma imagem de benfeitor do operário,
cumprindo promessas que já vinham sendo anunciadas. O projeto de uma instituição
centralizadora no campo da política de habitação já era discutido no final do Estado Novo,
através da Comissão de Aplicação das Reservas da Previdência Social (1944). Quando o
governo Dutra recuperou o projeto, seu intento era a expansão dos direitos sociais, o
estabelecimento de um maior controle dos trabalhadores e o cumprimento de parte dos
compromissos eleitorais, entre eles a redução do déficit habitacional e o controle do custo de
vida.
A FCP buscou conciliar os interesses da igreja, de setores populares, da indústria de
materiais de construção e da construção civil. O discurso anticomunista dava a marca
conservadora dessa coligação. Reproduzindo o discurso oficial, o Jornal do Comércio
publicava que a ação do novo organismo conformaria um “revigoramento de nossa
organização social capaz de opor-se às influências dissolventes” das esquerdas 182
. Além
disso, havia uma estreita interdependência entre a produção de habitação e o objetivo de
interferir nos hábitos e comportamentos dos grupos populares, visando à atenuação dos
conflitos de classe. Diferentes autores já observaram a afinidade entre o projeto que orientou a
181
BRASIL. Decreto-lei nº 9.218, de 1º de maio de 1946. Autoriza a instituição da “Fundação da Casa Popular”;
BRASIL. Decreto nº 9.777, de 06 de setembro de 1946. Estabelece bases financeiras para a Fundação da Casa
Popular e dá outras providências. 182
JORNAL DO COMÉRCIO. 02-03/05/1946. p. 3 apud MELO, 1992: 6.
159
criação da FCP e o conservadorismo, tendo em vista o reforço do controle social sobre os
trabalhadores (MELO, 1992; BONDUKI, 2004; TROMPOWSKY, 2004; AZEVEDO &
ANDRADE, 2011).
Nesse contexto, a legitimidade da FCP ficou abalada por seu vínculo com o projeto
conservador do governo Dutra e pelo conflito que criava com os IAPs. Se consultarmos os
jornais no período de debate sobre o anteprojeto do órgão, veremos notícias que indicavam a
ida dos “trabalhadores” ao Ministério do Trabalho com sugestões para alteração do texto. Em
finais de abril, encontramos o “memorial” de ferroviários paulistas, que demandou o
cancelamento da extinção do Serviço da Caixa Predial de Aposentadoria e Pensão, pediu o
fim dos impostos estaduais e municipais sobre os empréstimos e financiamentos de casa
própria, e reclamou mais recursos para o instituto de aposentadoria183
. O memorial sinalizou
para a tensão entre os interesses do governo e o dos trabalhadores na disputa sobre o destino
dos recursos que seriam geridos pela previdência social. O anteprojeto determinava que as
operações imobiliárias e o financiamento das carteiras prediais dos IAPs seriam incorporadas
à FCP, para financiamento da política habitacional.
A institucionalização dos IAPs na década de 1930 colocava o investimento em
habitação ora como uma função social, ora como um meio de capitalizar os recursos
arrecadados para as aposentadorias dos trabalhadores. A criação de um órgão de habitação
ameaçava a autonomia dos IAPs no investimento de parte dos recursos pagos pelos
trabalhadores, com a transformação da habitação social como prioridade do governo federal.
Em 1946, esse impasse seria resolvido através do artigo 16 do decreto que instituiu a FCP,
definindo que a decisão sobre a destinação dos recursos previdenciários para a habitação seria
adiada e uma futura norma regulamentaria a finalidade dos investimentos em habitação
popular. Durante o governo Dutra, não houve definição sobre o destino dos recursos da
previdência para a habitação popular. No governo Vargas, a Subcomissão de Habitação e
Favela, bem como a atuação da CNBS buscaram amparar de recursos a FCP, cogitando alterar
o destino dos recursos da previdência social geridos pelos IAPs.
Entre 1951 e 1954, as mensagens presidenciais de Getúlio Vargas ao Congresso
Nacional enfatizariam a necessidade de “rever os planos e os métodos da organização
especializada, suprindo deficiências de recursos privados e públicos, locais ou autárquicos,
para o encaminhamento da solução do problema [habitacional], e coordenando os vários
programas e empreendimentos descentralizados numa política nacional, articulada com as
183
MEMORIAL dos ferroviários. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28/04/1946, p. 32.
160
outras medidas tendentes a promover o desenvolvimento da Nação”184
. Esses objetivos seriam
reiterados em todas as mensagens, na passagem que discutia as atividades da CNBS e a
política de habitação no âmbito do Ministério do Trabalho. O intento de fortalecer a FCP seria
perseguido principalmente com a reformulação do sistema de financiamento do órgão através
de legislação185
e da discussão de um de Banco Hipotecário da Habitação Popular para o
financiamento da entidade.
A unificação dos recursos dos IAPs manteve-se no horizonte da Subcomissão de
Habitação e Favela. Contudo, na conjuntura do governo Vargas, também houve resistência à
iniciativa de reforço da FCP. Na imprensa, veremos novamente os ataques ao caráter
“técnico” das comissões formadas no âmbito da CNBS, que não representavam os
trabalhadores; denunciava-se também a corrupção, ou seja, o desvio de recursos para
beneficiar alguns poucos, indicando uma postura voltada para o ressentimento quanto à perda
de controle sobre os recursos dos IAPs 186
. Na análise de Melo, “a resistência de setores do
aparelho de Estado afetados – em particular aqueles que tinham nos IAPs suas bases
institucionais de poder e que haviam obstacularizado a implantação da FCP – seria grande
frente à nova tentativa de enfraquecer seus recursos político-organizacionais” (MELO, 1992:
46). Nesse jogo de forças, contribuiu para a não unificação dos recursos dos IAPs: o
“clientelismo” daqueles que tinham acesso privilegiado ao Ministério do Trabalho e aos
institutos de aposentadoria, bem como o risco de “perda de autonomia” dos trabalhadores
(Idem).
Visto que não avançava a unificação dos recursos da previdência social, a
Subcomissão de Habitação e Favela investiu na construção da FCP como órgão de
coordenação, incentivando o planejamento regional municipalista. A descentralização da
política habitacional estava implícita no governo Dutra e na Constituição de 1946, que
reforçaram o lugar do município na estrutura federativa do Estado brasileiro. Após o período
de centralização política do Estado Novo, a autonomia dos municípios foi uma bandeira
associada à democracia e à mudança de regime político. A fundação da Associação Brasileira
de Municípios (1946) e os Congressos Nacionais de Municípios Brasileiros foram um dos
184
VARGAS, Getúlio Dorneles. Mensagem ao Congresso Nacional. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1952, p.
317. 185
BRASIL. Lei nº 1.473, de 24 de novembro de 1951. Dispõe sobre recursos financeiros para a Fundação da
Casa Popular, altera a Lei do Selo e dá outras providências. 186
“Segundo nos informou o chefe do gabinete do ministro, dos nove membros que a constituem, seis serão
indicados por organizações estranhas àquela secretaria de Estado e três por designação do ministro do Trabalho,
sendo que esses últimos serão técnicos em assistência social.” Cf. A COMISSÃO de Bem-Estar Social. A Noite,
Rio de Janeiro, 03/10/1951, p. 13; O MINISTRO desmente acusações. A Noite, Rio de Janeiro, 12/11/1951, p.
20.
161
principais vetores para esse movimento que teve impacto entre as elites políticas e
burocráticas 187
.
A Subcomissão de Habitação e Favela incentivou o municipalismo como caminho
para um projeto de política coordenado pela FCP. Em 1952, a Subcomissão de Habitação e
Favela enviou um conjunto de propostas ao II Congresso Nacional de Municípios Brasileiros,
em São Vicente. Este aprovou a Resolução nº 24, indicando a cooperação da CNBS:
- à criação de centros de estudo de habitação;
- à criação de serviços sociais urbanos e rurais;
- ao fomento de cooperativas de crédito de produção, de consumo, de habitação, etc.;
- à criação de um fundo social para fins de financiamento dos serviços sociais;
- ao fomento da ajuda própria na construção de habitações populares urbanas e
rurais, revendo-se o respectivo código de obras para facilitar essas construções;
- à organização do planejamento urbanístico;
- à cooperação com os órgãos federais ou estaduais de colonização, assistência
social, educação rural, ensino profissional, etc;
- ao estudo das condições socioeconômicas do Município para fins de
planejamento188
.
Esse pacto anunciado entre a subcomissão da CNBS e os municípios deve ser visto
como parte do esforço de interiorização da máquina administrativa e de descentralização da
política habitacional, diante da configuração que impedia a unificação dos recursos
previdenciários. Chegava-se ao municipalismo pelo debate sobre a escassez material para
manter uma política habitacional. As primeiras discussões da subcomissão enfatizavam as
questões de ordem financeira que cercavam a política pública. Segundo relatório, importava
“mais ao Poder Público criar facilidades e estímulos para o desenvolvimento geral da
produção de habitação do que empenhar todas as suas forças num pequeno programa direto,
que esgota a capacidade do Tesouro e das entidades públicas”189
. Evitando abordar a
configuração de poder que impedia a unificação de recursos previdenciários, falava-se da
“escassez do fundo público” diante da magnitude do problema do déficit habitacional no
Brasil. A solução do problema seria a “racionalização da construção autônoma” e o estímulo
às organizações “locais” e “regionais” como meios de equacionar a questão social.
A vinculação com o movimento municipalista surgiu com a intenção de reforçar a
capacidade técnica dos governos municipais em conhecer as realidades regionais e encontrar
soluções originais para o problema da habitação insalubre e da “crise” de materiais de
187
Para um debate sobre o municipalismo nos anos 1950, cf. LEAL, 1997; MELO, 1993; SENRA, 2008. 188
ALMEIDA, Rômulo. Relatório da Subcomissão de Habitação e Favela (Anexo 4), 23-12-1952. CENTRO DE
PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Getúlio
Vargas. Arq. GVc 1952.12.23. 189
Relatório preliminar apresentado pelo Dr. Rômulo Almeida, coordenador da Subcomissão de Habitação, na 4ª
reunião da Comissão Nacional de Bem-Estar Social em 7 de fevereiro de 1952.
162
construção. Argumentava-se que os municípios podiam “estudar a sério o problema da
habitação” para não cair em “mirabolantes soluções financeiras e gigantescos planos de ação
direta”. Na visão da CNBS, um exemplo que tinha falhado na construção de moradias
populares eram os IAPs: criaram recursos para investir de forma “direta” na habitação
popular, mas terminaram por construir poucas unidades e edifícios de luxo que não atingiam a
massa popular. Além disso, com a descentralização, o governo federal transferia os custos do
investimento em habitação popular para os municípios. No relatório da Subcomissão de
Habitação e Favela, aconselhava-se que o governo federal deveria “realizar, ao lado do
programa direto inevitavelmente limitado, uma política mais ampla, mobilizando recursos
públicos e privados de toda sorte, inclusive dos governos locais, das entidades privadas e dos
próprios beneficiários, para melhorar o ‘standard’ geral da habitação popular no Brasil”190
.
O viés municipalista ficaria explícito no decreto-lei 33.427, que reformou a FCP em
1953. Ele definia a colaboração da Fundação, “mediante financiamento e assistência técnica,
com as entidades existentes ou que se criarem sob a jurisdição dos Estados ou das Prefeituras
Municipais dotadas de personalidade jurídica e patrimônio próprio, e com as sociedades de
economia mista, cooperativas ou outras entidades públicas e privadas sem fins de lucro,
quando constituídas” com objetivo de “construir ou financiar a construção de habitações do
tipo popular ou promover melhoria das existentes, levando em conta as condições de
segurança e salubridade”, “promover aquisição de terrenos para loteamentos populares e
construção de casas, e produzir, a baixo custo, materiais de construção” 191
. A FCP figurava
como um órgão que coordenaria um conjunto de instituições locais e regionais, instaladas nos
estados e municípios, voltados para resolver o problema da habitação popular e das casas
insalubres.
A historiografia tem visto essa inflexão municipalista e a descentralização da política
habitacional como resultante do “pacto populista”. O termo tem um significado bastante
preciso na bibliografia em pauta. Num primeiro plano, indica a proeminência de técnicos do
núcleo desenvolvimentista na CNBS. Esses buscavam bloquear as propostas que financiavam
o investimento direto na construção de habitações, tendo em vista a necessidade de fundos
públicos para financiar o investimento do Estado na industrialização do país. Essa leitura pode
ser contextualizada pela presença de figuras como Rômulo Almeida na coordenação da
Subcomissão de Habitação e Favela e pela insistência dos “técnicos” afirmarem a necessidade
190
Idem. 191
BRASIL. Decreto nº 33.427, de 30 de julho de 1953. Autoriza as instituições de previdência social a colaborar,
através de financiamento e assistência técnica, com as entidades que menciona, observada a respectiva
legislação.
163
de desenvolver a indústria de materiais de construção. Assim, o “núcleo desenvolvimentista”
da burocracia do Segundo Vargas interferia na ordem de funcionamento da política
habitacional, formulando uma estratégia que impedia o investimento direto em habitação
popular192
.
A leitura do “pacto populista” no campo habitacional pode ganhar tons rígidos, ao
enfatizar a relação entre desenvolvimentismo e política habitacional. Para Bonduki, o rápido
crescimento urbano e industrial do período posterior aos anos 1930 foi condicionado por um
arranjo legal, em que “para financiar a montagem do parque industrial era preciso reduzir a
forte atração que a propriedade imobiliária exercia no campo do investimento” (BONDUKI,
2004: 248). Para Bonduki, a lei do inquilinato de 1942 e o congelamento do preço dos
aluguéis, a ideologia da casa própria e a fragmentação dos investimentos habitacionais nos
IAPs eram parte de uma estratégia desenvolvimentista, para tornar menos atrativo os
investimentos imobiliários e priorizar a expansão industrial. Ainda segundo sua interpretação,
essa visão explica o surgimento do crescimento urbano periférico através da autoconstrução
explica-se, em parte, por uma política econômica industrializante que desconsiderava a
habitação popular como área prioritária.
O segundo traço dessa interpretação do “pacto populista” aponta para a incapacidade
de se desconstruir a estrutura corporativa formada no Estado Novo. Houve uma clara
resistência dos representantes dos trabalhadores e da burocracia vinculada aos órgãos de
previdência contra os projetos que visavam unificar os recursos previdenciários. A
concretização da unificação representava a perda de poder. Além disso, os trabalhadores com
carteira assinada tinham como horizonte de expectativa o acesso à habitação via IAPs e
lutavam para manter as estruturas políticas que lhes garantiriam possivelmente uma extensão
de direitos. O resultado disso é que, ao final do período de funcionamento da CNBS, após a
morte de Vargas e ascensão de Café Filho (1954-1956), os recursos da previdência social
continuaram fragmentados, e só vieram a ser unificados após 1964, com a criação do Banco
Nacional de Habitação e do Instituto Nacional de Previdência Social (1967). Com a
desorganização das estruturas de representação dos trabalhadores na ditadura civil-militar,
conseguiram-se unificar os recursos da previdência social.
Dessa forma, os analistas, em sua maioria, observaram, na trajetória da política
habitacional do período de 1946 a 1964, uma tendência ao declínio da FCP. Quando se
192
Melo faz uma análise semelhante, observando os primeiros técnicos alocados na Fundação da Casa Popular
em 1946. Para ele, Rômulo Almeida, Ewaldo Correia Lima e Heitor Lima Rocha foram a expressão do núcleo
“desenvolvimentista” que alcançou posições na FCP, interferindo na lógica de atuação da instituição. Cf. MELO,
1992: 57.
164
comparam os resultados alcançados pelos IAPs com a FCP, tem-se uma clara imagem da
incapacidade em construir habitações desse órgão. Entre 1937 e 1964, os IAPs produziram
37.725 unidades habitacionais193
contra 18.082 da FCP entre 1946 e 1964 (Idem, p. 131). Ao
deixar de expandir e generalizar o acesso à habitação, os escassos números de unidades
construídas seriam disputados através de estruturas clientelistas e corporativistas (FINEP,
1985; MELO, 1992; BONDUKI, 2004; TROMPOWSKY, 2004; AZEVEDO & ANDRADE,
2011). A falência da instituição em expandir o acesso à habitação já era percebida nos anos
1960, no intento do governo de Jânio Quadros (1961) e de João Goulart (1961-1964) de
reformar o órgão (MELO, 1992: 56-57).
A leitura da política habitacional através da noção de um “pacto populista” explicita a
estrutura de poder que presidiu a relação entre a FCP e os IAPs, mas despreza qualquer
contribuição da instituição à política de habitação. Até mesmo Bonduki, que tem recuperado a
experiência da arquitetura constituída pelos IAPs, desconsidera o legado da FCP. Para ele, o
“fracasso da FCP atrasou em vinte anos a formulação de uma política habitacional
consistente, adiando-a para um momento político – o do regime militar – no qual as forças
empenhadas em um equacionamento social da questão haviam sido alijadas do processo
político e destituídas de qualquer influência” (BONDUKI, 2004: 115).
Contra a imagem do “fracasso” e do “atraso”, projetando um cenário de ruína da FCP,
Trompowsky analisou os modelos arquitetônicos experimentados em Guadalupe, sinalizando
para a forma como se construiu aquele bairro sob a influência de uma união entre a igreja
católica e a Fundação (TROMPOWSKY, 2004). A iniciativa de Trompowsky sugere que
devemos investir em análises pontuais sobre as ações da FCP, tendo em vista a alteração do
cotidiano urbano, cotejando com outras experiências de urbanismo. No caso de nossa análise,
vamos também contra a imagem de ruína, indicando a forma como a Subcomissão de
Habitação e Favela projetou um saber sobre a cidade em escala nacional, reforçando a
nacionalização da identificação das favelas para representação da pobreza e desordem urbana.
A CNBS produziu um conjunto de reflexões que utilizava da capitalidade do Rio de Janeiro –
como já observamos no processo de formação da representação da favela – mas também
impunha um projeto para transformação da realidade social.
A guinada municipalista da FCP não pode ser analisada a partir de uma única face, a
do “fracasso” em centralizar a política de habitação. O próprio significado da “habitação
193
Esse número considera apenas habitações do “Plano A”, o que incluía a locação ou venda de conjuntos
residenciais, sem considerar o financiamento aos associados para construção em próprio lote (Plano B) e os
empréstimos hipotecários para operações imobiliárias (Plano C).
165
popular” era disputado. No âmbito da subcomissão, como já afirmamos, foram produzidos
vários estudos e documentos que seriam reproduzidos e revistos até 1954, definindo um modo
de operar com os problemas associados à habitação. Posteriormente as proposições desse
órgão seriam retomadas em outras experiências bastante pontuais, mas de grande significado.
No caso do Rio de Janeiro, através da Cruzada São Sebastião (1955) e do Serviço de
Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (1956), e no caso de Belo Horizonte,
através do Departamento de Bairros e Habitações Populares (1955)194
.
4.3 O projeto de “desfavelamento” na visão da Subcomissão de Habitação e Favela
O problema da habitação nos centros urbanos maiores se agrava pela falta de fixação
no interior. Nestas condições, o programa do Governo é no sentido de levar aos
Estados e ao interior o programa da habitação popular, e de associá-lo com o de
colonização.195
Nas primeiras reuniões da subcomissão, foi divulgada na imprensa a discussão de um
“Plano Nacional de Extinção das Favelas”. Convocavam-se técnicos de todos os estados, para
discutir os problemas das favelas, mocambos, malocas, invasões etc. A pauta principal dos
debates era:
a) complementação dos inquéritos existentes para identificação da população
favelada;
b) planejamento das soluções que envolvem o problema com a determinação dos
fatores econômicos e sociais que entram na sua formação, promovendo ao mesmo
tempo o estudo dos motivos de âmbito nacional que ocasionam o fenômeno;
c) adoção de medidas, desde logo, para iniciar as obras de engenharia necessárias e
assistência técnica e social;
d) coordenação dos serviços públicos, federais e municipais, a fim de obter unidade
de orientação nos trabalhos a serem realizados196
.
Como em outras subcomissões da CNBS, estimulava-se um planejamento estatal que
“desse conta” da compreensão científica do fenômeno, da articulação das várias esferas da
federação, e da proposição de medidas para solucionar a questão social. Como fruto desse
debate, a Fundação da Casa Popular produziu, sob a presidência de Jorge Mattos, um dossiê
que reunia vários estudos, intitulado “Solução das Favelas”. Parte dos estudos referidos em
194
Nesse sentido, a análise do projeto abre uma inflexão que deve ser pesquisada não só nas cidades que são
pauta dessa pesquisa, mas também no Serviço Social dos Mocambos, em Recife; o Instituto de Bem-Estar
Social, no Espírito Santo; o Departamento de Bairros Populares, em Porto Alegre. Todas essas instituições são
referendadas e citadas nos documentos da subcomissão. 195
COMISSÃO NACIONAL DE BEM-ESTAR SOCIAL. Subcomissão de Habitação e Favela. Explicação
preliminar aos representantes municipais. In: PROBLEMAS da Habitação Popular. São Vicente: Comissão
Nacional de Bem-estar Social, 1952. 196
PARA A SOLUÇÃO do problema das favelas. A Noite, Rio de Janeiro, 25/03/1952. p. 10.
166
1952 seriam divulgados também através do documento Problemas da Habitação Popular no
congresso nacional dos municípios, e do Habitação e Favela na Semana de Estudos da
Favela.
No acervo de Alzira Vargas e de Getúlio Vargas, acumulou-se um conjunto de
documentos produzidos, tendo em vista esse plano nacional, e que permite refletir sobre o
escopo desse projeto de “desfavelamento” das cidades. Propomos aqui uma leitura
topográfica em torno de alguns temas centrais, que articulavam o esforço para analisar o
desenvolvimento urbano industrial e propor uma intervenção; faremos um esforço de
recuperação da semântica histórica que cercava a discussão sobre as favelas e a habitação
popular no país, na ótica da subcomissão. Num primeiro momento, vamos observar a
centralidade da discussão do êxodo rural e, num segundo, mostrar como a política do mutirão
que previa a melhoria das casas foi estruturada como projeto, ligado a um tipo de reflexão
sobre a habitação popular. Em ambos os casos o mito, ou melhor, o paradigma da
marginalidade, constitui um conjunto de textos e práticas que reiteram uma maneira de ver e
praticar o mundo, ou seja, o esteio de uma reflexão sobre a desordem social e urbana no país.
4.3.1 Êxodo rural e favela: a construção da dualidade entre o rural e o urbano
Nada impede e, ao contrário, tudo indica que os dois programas sejam
complementares [habitação popular e colonização], pois, ao êxodo rural, é ação
indispensável, para prevenir maior acúmulo nas cidades de populações marginais,
sem emprego, praticamente desajustadas, vivendo em aglomerações insalubres de
“favelas”, “palhoças”, “mocambos” etc., e agravando os problemas sanitários e
sociais197
.
O eixo central que organizava os estudos, as obras de assistência e engenharia, e a
integração dos serviços públicos no atendimento às favelas era a percepção de que elas não
constituíam um modo de vida urbano. Nesse sentido, colocava-se a necessidade de organizar
ações que teriam como pano de fundo a adaptação do morador naquilo que imaginavam ser o
seu habitat natural ou a transformação desse ambiente. Essa visão generalista do homem e seu
“meio” trazia no seu bojo uma visão utópica sobre a sociedade e a forma como ela se
organizava, vendo nas cidades a expressão de uma “desordem” que deveria ser “corrigida”.
A associação entre a temática do êxodo rural e o crescimento urbano desordenado não
era novidade. A discussão acomodava-se num largo espectro de categorias que serviam para
197
Organizações locais para habitação popular (e colonização) e sua articulação com os órgãos centrais. In:
COMISSÃO DE BEM-ESTAR SOCIAL. Subcomissão de Habitação e Favela. Problemas da Habitação
Popular. Rio de Janeiro: Comissão de Bem-estar Social, 1952. p. 9.
167
acusar essa exterioridade do morador de favela em relação ao espaço urbano. Uma das
expressões que perderam o uso, nos dias de hoje, é o termo “faveleiro”. O vocábulo era usado
na imprensa e em discursos políticos para nomear o morador em favela, mas perdeu seu uso e
significado nos dias de hoje198
. Se buscarmos a expressão num dicionário de época (e ainda
hoje), veremos que a palavra nomeia um espécime de árvore existente no sertão – a favela. A
caracterização do morador como “faveleiro” era a metáfora viva da associação entre o mundo
natural e social para marcar um habitat deslocado da urbanidade. Nesse sentido, “faveleiro”
nomeia um espaço, um grupo social, um modo de vida, mas também estigmatiza-o
identificando-o como a representação do oposto da cidade e urbanidade.
Nos anos 1950, o centro do debate dentro das instituições estatais era a
heterogeneidade das habitações populares problematizadas à luz do êxodo rural e da
tipificação do “rurícola” no meio urbano. Essa imagem dos moradores deslocados do espaço
urbano marcava o próprio jargão da época em diversos tipos de inflexões culturais e políticas.
Num texto publicado em 1958, o advogado Augusto Luis Duprat, membro da CNBS,
conselheiro da Fundação Leão XIII, e idealizador do plano de ação do Serviço de
Recuperação de Favelas e Habitações Anti-higiênicas, explicou que “a favela não é fenômeno
peculiar; encontramo-la em outros países, em outras cidades, apenas com nomes diferentes:
slum, na Inglaterra; slum shack towns e hoovervilles nos Estados Unidos; tugúrios, nas
Repúblicas espanholas; rancheiro, no Uruguai; e, entre nós, educandos, em Manaus,
mocambos no Nordeste, favelas, na Região Leste, vilas de malocas, em Porto Alegre, vilas,
no Rio Grande e Pelotas” (DUPRAT, 1958: 60).
A temática era debatida no âmbito da teoria social e da opinião pública sobre o
desenvolvimento na América Latina. Como observou Leeds & Leeds (1978), “os mitos que
prevalecem entre os cidadãos das capitais e outras cidades, tanto do Brasil como do Peru,
acerca das áreas invadidas por posseiros – favelas e barriadas – sustentam, por um lado, que
os moradores têm uma organização social e valores altamente rurais e são desajeitados em
relação a, e não familiarizados com os modos de vida da cidade” (p. 86). Diferentes cientistas
sociais brasileiros e afeitos aos estudos latino-americanos produziam um saber, tendo como
pressuposto esse viés e olhar normativo que observava a favela como não “integrada” à
cidade. O etnocentrismo dessa visão foi denunciado pela sociologia urbana, pois os
198
“As pessoas residentes na Vila dos Marmiteiros esperam atenção e vontade do governo do Estado a quem foi
dirigido um apelo, para que sejam tomadas atitudes idênticas às que beneficiaram os faveleiros cariocas”. Cf.
PROSSEGUIU o processo de despejo na Vila dos Marmiteiros. Estado de Minas. Belo Horizonte, 19/09/1949, p.
6. Ver também o discurso do vereador Gama Filho, quando se refere aos “faveleiros da cidade”. Cf. DISTRITO
FEDERAL. Câmara Municipal do Distrito Federal. Anais da Câmara do Distrito Federal. Rio de Janeiro:
Imprensa Oficial, 1949 (vol.1). p. 196.
168
“cientistas sociais deveriam dirigir esforços intensivos para a compreensão dessas formas de
integração, em seus próprios termos, como formas viáveis independentes dos modelos
‘americano’ e ‘ocidental’” (LEEDS & LEEDS, 1978: 90).
Dessa forma, a partir do questionamento de um mito bastante parcial da realidade,
construiu-se uma crítica contundente aos dualismos sociais presentes nessa visão de mundo.
Zaluar e Alvito consideram que “a classificação bipolar surge de uma ordem social
imaginada, de tal modo que qualquer ambiguidade, fronteira sombreada e experiência
contínua oferecem poucos instrumentos para pensar”, constituindo “uma classificação
devedora de uma ordem social que se estriba na clareza de quem são os amigos e os inimigos,
ou seja, uma ordem pré-moderna das sociedades de pequena escala” (ZALUAR & ALVITO,
2006: 20). Denunciada como etnocêntrica e incapaz de compreender a complexidade da
sociedade moderna, ignoramos, contudo, a forma como essa visão de mundo articulou
práticas e projetos políticos de variadas matizes e foi moderna na forma de ancorar uma
reflexão social estruturada nos métodos e no discurso acadêmico qualificado. Os documentos
acumulados no Arquivo de Alzira Vargas permitem aprofundar essa relação entre migração e
tipificação social na lógica etnocêntrica do desenvolvimentismo, mostrando o entrelaçamento
entre pressupostos científicos e as sugestões de controle social.
Ao compartilhar essas referências culturais, a Subcomissão de Habitação e Favela
sublinhava o tópico do “êxodo rural” como elemento estratégico do seu projeto de política de
habitação popular. Em dezembro 1952, num relatório enviado a Getúlio Vargas, Rômulo
Almeida sistematizava uma orientação ao legislador federal, estadual e municipal. Em seu
diagnóstico,
o problema da habitação popular se vem agravando em todo o país e programas
unilaterais de assistência habitacional nas grandes cidades animam o êxodo rural,
sendo, pois, necessária a solução do problema das favelas:
a) ligá-lo ao êxodo rural; e
b) convocar o esforço dos Estados, dos Municípios e das forças representativas da
sociedade local199
.
Essa estratégia enfocava a necessidade de municipalização da política pública, como já
sinalizamos. No relatório de Rômulo Almeida, bem como em outros documentos, enfatizar-
se-ia a necessidade de colaboração entre município, estado e governo federal para a solução
da crise habitacional e contenção da migração. Na subcomissão de Habitação e Favela, o
199
ALMEIDA, Rômulo. Comissão Nacional de Bem-Estar Social, Subcomissão de Habitação e Favela,
23/12/1952. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO
BRASIL. Arquivo Getúlio Vargas. Arq. GVc 1952.12.23.
169
êxodo rural servia como mote para reforçar a necessidade de uma ação coordenada dos entes
da federação em escopo nacional. Ações unilaterais por parte dos municípios de maior porte –
as grandes metrópoles – acentuariam o problema da migração para as grandes cidades,
estimulando o êxodo rural e a reprodução de um desequilíbrio no movimento de população e
ocupação do território. Se os IAPs buscavam atender à classe trabalhadora nos centros
urbanos, a FCP sinalizava para a intenção de enfocar o problema no “interior”. Em 1947, num
dos primeiros relatórios da FCP, já se podia entrever essa forma de enquadramento do
problema: após descrever investimentos em todo território nacional, concluía-se a intenção de
“fixação do homem do campo no seu habitat, criando condições de conforto e higiene, para
evitar ou atenuar o êxodo crescente para os centros urbanos (…), que tem dado incumbência à
entidade de construir casas adequadas aos nossos camponeses”200
. A federalização e
interiorização da política pública nos municípios era uma meta que deveria ser alcançada na
visão da FCP, para conter o déficit habitacional nos centros urbanos.
Além de municipalizar a política habitacional, a imagem de um habitante deslocado da
vida urbana era um dos aspectos centrais na difusão do plano nacional de desfavelamento,
atrelado à política de habitação. A escala dessa relação pode ser percebida nos passos que
deveriam ser dados para a “solução do problema da favela”:
1º) cessar o afluxo constante [de migrantes] e, consequentemente, o aumento
contínuo das favelas;
2º) conseguido que seja acabar o aumento, ter-se-ia conseguido a estabilização da
população, em número. Aliás, seria uma estabilização relativa, pois sempre existiria
um pequeno afluxo. Porém, desde que seja pequeno, não alterará a situação;
3º) Diminuir o número de habitação, digo, habitantes. A diminuição constante e
progressiva será a fase final e definitiva201
.
O trecho acima não tem uma autoria especificada, consta como parte de um dossiê
construído pela FCP, sob a presidência de Jorge Mattos, que se encontra no acervo de Alzira
Vargas. Em primeiro lugar, o texto lida com o problema social na perspectiva de quem
observa um “fluxo” de migrantes, como se esses fossem estranhos ao meio urbano. Em
segundo, o texto tratava como tema central a discussão sobre o controle da movimentação da
população. As ações para solucionar esse problema seriam de ordem repressiva-civilizatória
das populações tidas como marginais e inseridas no âmbito de uma política de migração e
colonização. Abaixo vamos analisar os projetos políticos lançados na Subcomissão de
200
BRASIL. MINISTÉRIO DO TRABALHO INDÚSTRIA E COMÉRCIO. Relatório do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio de 1947. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1948. p. 153. 201
O PROBLEMA das favelas, [s/d]. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA
CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04.
170
Habitação e Favela, observando como a figuração do êxodo rural e a migração eram vertentes
importantes para a linguagem da política da época, conformando um modo de ver e
representar as cidades brasileiras.
4.3.2 Êxodo rural, debate público e a produção de diagnóstico social-urbano
A temática do “êxodo rural” na condução do debate público reforçava uma postura
ambígua. Ainda que a subcomissão difundisse suas ações na imprensa, as discussões
deveriam ser constituídas entre intelectuais e estadistas, numa clara exclusão dos grupos que
eram objeto da política pública, daqueles tratados como “marginais” à sociedade. A Semana
de Estudo das Favelas, ocorrida entre 30 agosto e 6 setembro de 1952, e a coletânea de
propostas intitulada Problemas da Habitação Popular, enviada ao II Congresso Nacional de
Municípios Brasileiros em São Vicente no mês de outubro são exemplos disso, pois,
paradoxalmente, buscavam ampliar o debate, mas também mantê-lo em segredo. Segundo o
relatório da subcomissão, “apesar de trazer ao Rio representantes técnicos de todos os Estados
e de ter produzido um trabalho altamente fecundo, [a Semana] foi mantida propositalmente
em sigilo, para evitar que uma propaganda desavisada sobre a solução do problema das
favelas nas grandes cidades viesse fomentar ainda mais o êxodo rural”202
.
Além de tentar manter o “sigilo” como um meio de reforçar a distância entre a opinião
comum e a posição adotada pela política de Estado, enfatizou-se a necessidade de “estudos”
para traçar um perfil estatístico e definir o sentido da política. Os trabalhos produzidos no
âmbito da subcomissão de Habitação e Favela são quase todos invariáveis quanto à
necessidade de se contabilizar e produzir estatísticas como meio de esclarecimento e desenho
do escopo do debate sobre a política pública, com fins de afastar a ação do poder público do
favorecimento político. O coordenador da Subcomissão de Favelas e Habitação lamentava a
“limitação dos meios técnicos e materiais” para o estudo do “complexo problema da habitação
popular” e para sua “racionalização”203
. Até então, só haviam sido publicados os dados
censitários compilados pelo Departamento de Estatística e Geografia do Distrito Federal em
1949. O estudo elaborado pelo Serviço Nacional de Estatística no decorrer do Censo de 1950
foi publicado em 1953, ganhando destaque na Revista de Estatística Brasileira.
202
ALMEIDA, Rômulo. Comissão Nacional de Bem-Estar Social, Subcomissão de Habitação e Favela,
23/12/1952. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO
BRASIL. Arquivo Getúlio Vargas. Arq. GVc 1952.12.23. 203
Idem.
171
A ausência de dados estatísticos fomentava dúvidas quanto ao acerto do diagnóstico
sobre a solução do problema, mas não levantava incertezas quanto ao método estatístico como
meio de encontrar a “média” das necessidades que deveriam ser atacadas pelo Estado. Em
cerca de sessenta comunicações apresentadas na Subcomissão de Habitação e Favela em
1952, tiveram destaque os trabalhos forjados principalmente por engenheiros, economistas e
arquitetos, que faziam observações sobre aspectos econômicos e sociais do déficit
habitacional; como sugestão para o diagnóstico do problema social, havia o texto intitulado
“Estatística, pesquisa social e ação social”, dos engenheiros Nelson Correia Monteiro, da
Fundação Leão XIII, e de Augusto Luiz Duprat. Esse esforço de realizar uma ação social em
termos neutros e realistas deu impulso a vários estudos de caso sobre as favelas. A linguagem
dos números era a forma mais adequada para apresentar um discurso “técnico” na esfera
pública e, ao mesmo tempo, evitar a divulgação das “miragens urbanas”. Ele constituía uma
representação realista, sem o alarde “político demagógico” 204
.
Por último, a estratégia de esclarecimento envolvia também uma ação pedagógica para
o “rurícola”, o migrante seduzido pela cidade. Existia a percepção de que a forte migração
para as áreas urbanas transcorria em função da ampliação do direito social do trabalhador
urbano e da “sedução dos ordenados miraculosos”. Nessa equação política, o anúncio de uma
ação política para resolver o problema de ordem econômica, ampliando a proteção social ou a
possibilidade de que os moradores de favelas fossem atendidos em sua demanda aumentaria o
problema urbano, pois incentivaria a migração. No relatório “Solução das favelas”, seria
enfatizada a necessidade de fazer campanhas publicitárias no interior: a “Imprensa, o rádio e o
cinema seriam utilizados em larga escala (a Agência Nacional faria a coordenação) numa
grande campanha de publicidade”, onde “mostrar-se-iam o que era a vida das favelas,
condições etc.”205
. Além de inibir a migração, a propaganda tinha função pedagógica de
instruir os trabalhadores a evitarem a migração e os “aliciadores” de mão-de-obra para as
fábricas e para a construção civil. O relatório tinha a consciência de que a migração
transcorria não só por vontade dos habitantes do interior, mas também decorria da ação de
intermediários, todavia não propunha nenhuma forma de reprimir esses outros atores.
204
Há vários matizes do debate político-científico sobre as estatísticas que não cabem neste trabalho, mas que se
podem entrever nos relatórios. Cf. ALMEIDA, Rômulo. Anexo 12 do Relatório da Subcomissão de Habitação e
Favela. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL.
Arquivo Getúlio Vargas. Arq. GVc 1952.12.23. 205
Exposição da subcomissão incumbida de reunir e estudar os elementos para a solução do problema das
favelas, [s/d]. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO
BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04.
172
4.3.3 Migração, direitos sociais e política de exceção
A Subcomissão de Habitação e Favela propôs o retorno dos “desajustados” ao campo
como um dos eixos do projeto de reforma social. Apesar de encarar a promessa de direitos
sociais como uma “miragem”, a “carteira de trabalho” cumpria a principal função no processo
de classificação social na reforma em vista. Para qualificar quem deveria permanecer e quem
deveria deixar a cidade, retornando ao campo, o critério definidor era possuir ou não a carteira
de trabalho. Na tentativa de identificar os moradores em favelas, os técnicos propuseram a
divisão das pessoas na seguinte ordem: os “oriundos do campo e que, desajustados na cidade,
se abrigam nas favelas”; “os chamados ‘marginais’, vadios, malandros, desajustados de toda
espécie”; “os que dispõem de assistência social, associados de instituições de previdência
social”; “as famílias sem chefe e desamparadas pelas instituições” previdenciárias; e “os que
trabalham em atividades não disciplinadas na legislação trabalhista”. Ter ou não acesso ao
Estado previdenciário era o critério de distinção dos indivíduos 206
.
As várias categorizações dos “deslocados” do mundo do trabalho demarcavam um alto
grau de arbitrariedade, mas também o reconhecimento da forte relação entre mercado de
trabalho e a formação das favelas. Dessa maneira, previa-se que a identificação dos
“desajustados” para o retorno ao interior e para a política de colonização colocaria uma série
de problemas, por lidarem com famílias e indivíduos que buscavam trabalho ou já tinham
profissões na cidade. Algumas não eram reguladas pela carteira de trabalho, cujo acesso nem
todos tinham207
. Para lidar com esse desafio, a subcomissão propôs uma ação um tanto
curiosa e que merece ser citada: o poder público, junto com o Ministério do Trabalho,
ofereceria a carteira profissional aos trabalhadores das favelas e, em meio à elaboração do
documento, far-se-ia a identificação dos indivíduos que retornariam ao interior ou seriam
encaminhados para algum projeto de colonização. Observava-se que
de fato, a identificação está associada, no espírito do homem da rua, à ideia de
penalidade e de ação policial. Foi aventada, então, pelo representante do Ministro do
Trabalho, a ideia logo esposada por todos os membros da Subcomissão, de ser
realizada a identificação, mediante a oferta de carteira profissional a todos aqueles
encontrados nas favelas sem esse documento e que ao mesmo tempo façam jus ao
trabalho em que se ocupam, e bem assim a revisão das carteiras apresentadas. 208
206
Idem. 207
Para uma análise sobre a relação entre o acesso à carteira de trabalho e as favelas cariocas, cf. FISCHER,
2008: 130. 208
Idem.
173
A relação entre favela, migração e direito social, na perspectiva anunciada na década
de 1950, nos coloca diante de um projeto que se articula dentro dos parâmetros do que se
convencionou chamar de cidadania regulada. Não se trata de um código de valores políticos,
mas de um sistema de estratificação ocupacional definido por norma legal. Segundo Santos,
após a legislação trabalhista da década de 1930, “a cidadania está embutida na profissão e os
direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal
como reconhecido por lei. Tornam-se pré-cidadãos, assim, todos aqueles cuja ocupação a lei
desconhece” (SANTOS, 1979: 75-76). O instrumento jurídico para o reconhecimento desse
contrato era a carteira profissional209
. O espectro de subcategorias elencadas na identificação
produzida pela Subcomissão de Habitação e Favela e as estratégias para cadastro e controle
social traziam nitidamente a marca da cidadania regulada. A exclusão da ampla maioria dos
pobres sem profissões reconhecidas, dos autônomos, dos que trabalhavam em serviços
temporários, dos trabalhadores rurais e domésticos tornava possíveis as estratégias anunciadas
pela subcomissão.
Era dentro desse parâmetro de identificação que o projeto de colonização tinha o claro
propósito de se oferecer como conscientização do migrante sobre seu lugar na estrutura
produtiva. Aqueles que tivessem trabalho comprovado por carteira assinada ou uma ocupação
fixa deveriam permanecer na cidade, como também receberiam assistência social para
adaptarem suas famílias ao meio urbano. Para os outros, os “deslocados”, haveria a condução
para as políticas de colonização e de volta ao interior. No projeto, a política de colonização
seria especialmente:
3) Para os desocupados, deveriam ser estudados meios de ser promovida a sua volta
às localidades do interior, de onde emigraram;
4) Para os malandros, ou indivíduos de vida pregressa pouco recomendável, seria
talvez conveniente a criação de Fazendas, ou Núcleos Rurais adequados, para a sua
recuperação psicológica, social e econômica210
.
A política de colonização atrelada às favelas tinha uma clara conotação pedagógica,
visando a uma reforma do indivíduo direcionada ao mundo trabalho. A ênfase na assistência
social, a volta ao mundo rural e às colônias agrícolas eram formas de readaptar os migrantes
“deslocados” de seu habitat e reeducar os malandros. “De acordo com esse programa,
esboçado pelos titulares da Comissão, ao Ministério da Agricultura competiria atuar sobre os
209
Sobre a relação entre direito social do trabalho e a população pobre no Rio de Janeiro, cf. FISCHER, 2008:
128-148. 210
O PROBLEMA das favelas, [s/d]. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA
CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04.
174
extraviados da lavoura que povoam as favelas, não só lhes oferecendo lotes de terra no
interior, animando-os ao regresso mediante exibição de folhetos e fotografias esclarecedoras,
como providenciado, em coordenação com outros órgãos, a mais eficiente fixação do homem
ao meio rural”211
. O informativo do Ministério da Agricultura sobre a política de colonização
foi anexado no relatório da FCP, esclarecendo sobre as possibilidades do programa que
incentivaria os “habitantes pobres” a serem “proprietários rurais”212
. O projeto de
“readequação” dos “deslocados” no mundo urbano tinha como pano de fundo a imagem de
um mundo rural idealizado. Nesse cenário utópico, o campo está longe das desigualdades e
hierarquias subjacentes à estrutura produtiva do latifúndio no Brasil; nele a terra seria livre
para aqueles que desejassem trabalhar e se tornar proprietários, o campo ofereceria condições
à recuperação de uma vida que estaria degradada na cidade e as dificuldades sociais seriam
mais fáceis de serem vencidas no interior.
O limite dessa proposta de colonização e retorno ao interior era a extensão dos direitos
aos trabalhadores rurais. A Subcomissão de Habitação e Favela participava dos debates
travados pela CNBS na Organização Internacional do Trabalho, onde se discutia, em termos
prioritários, a regulamentação do direito do trabalhador no campo. Ao mesmo tempo que
propunham uma representação idealizada do “interior”, havia certa consciência da degradação
do trabalho rural, como um elemento que impulsionava o deslocamento do campo para a
cidade. Num dos documentos anexado no relatório, faziam-se críticas aos “atrasos” de
pagamento e às formas de endividamento relacionadas ao salário pago em parcelas:
Medidas de proteção aos homens do interior, isto é, melhoria do seu padrão de vida,
para tornar efetiva a fixação do homem do campo (criação de grandes cooperativas
agrícolas no interior, etc.). Criação de cooperativas agrícolas nos Estados. Julgo ser
melhor a cooperação estadual ser apenas a de fornecer as terras. O Governo Federal
encarregar-se-á do resto. Evitar o que acontece no interior, nas obras governamentais
e que tem enriquecido muita gente. Suponhamos que o trabalhador ganhe 20
cruzeiros por dia. Como sempre o pagamento “atrasa”, ele é obrigado a pedir
emprestado a determinados indivíduos que “por acaso” sempre se encontram nas
proximidades.213
A proposta de colonização anunciava uma perspectiva de controle e racionalização do
uso da terra. Ainda que se abordasse a questão do direito do trabalhador agrícola, não havia
211
Exposição da subcomissão incumbida de reunir e estudar os elementos para a solução do problema das
favelas, [s/d]. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO
BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04. 212
DIVISÃO de Terras e Colonização, [s/d]. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA
CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04. 213
O PROBLEMA das favelas, [s/d]. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA
CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04.
175
uma crítica ao latifúndio ou a qualquer outro segmento que representasse o grande
proprietário. Aqui a imagem é de um atraso econômico e social que deveria ser sanado com
cooperativas agrícolas, colonização do hinterland e isenção de impostos – perspectiva
anunciada na política de colonização. Como pano de fundo, as relações de trabalho dos
“homens do interior” deveriam ser sanadas com o progresso das políticas agrícolas. Além
disso, a imaginação do “interior” desocupado envolvia a crença na possibilidade de alcançar
melhor rendimento econômico e social no uso do espaço e da força de trabalho, a melhora da
soberania e controle sobre o espaço da comunidade política e a regeneração de uma ordem
social. No relatório da FCP, havia ainda referências à “Marcha para o Oeste”, um programa
de iniciativa de Getúlio Vargas no Estado Novo, voltado para a colonização do Centro-Oeste
brasileiro, como uma solução para a questão das favelas214
.
Na imaginação social sobre a relação entre favela e colonização, além de uma visão
idealizada do campo, projetava-se um cenário de exceção. No debate articulado pela
subcomissão, cogitava-se a criação uma figura de exceção na Constituição, com o objetivo de
controlar o crescimento das favelas e o uso racional do território. Os retornos das famílias e
indivíduos ao “interior” eram incentivados através de estratégias de convencimento, mas
também seria possível a partir da restrição do direito de ir e vir do migrante. O relatório da
FCP sugeria que:
o Governo Federal armar-se-ia de uma legislação apropriada (os Governo Estaduais
também) que permitisse, não só o combate legal ao afluxo (sic) constante de homem
do interior para as grandes cidades, como também permitissem fazê-los regressar.
(…) Caso necessário, a reforma da lei básica, isto é, a Constituição. Explico-me
melhor: a Constituição reza que todo cidadão brasileiro tem completa liberdade de
movimento, podendo ir para onde bem entender. Não diz, porém, que este cidadão
pode ir para outro local do Brasil, sem meios de subsistência, criar embaraços e
problemas aos seus semelhantes, tornar-se um pária, um vagabundo, vivendo de
ocupações diversionárias, expedientes etc. O nosso Código possui artigos contra
vadiagem, pelo direito de propriedade etc. Atualmente os cidadãos, com a maior
calma, se instalam em terrenos que possuem proprietários, constroem barracões e
depois, para acabar com a favela, é um Deus nos acuda.215
O debate sobre o uso racional do território poderia ser conduzido para a discussão
sobre o direito individual. Em algumas partes do documento intitulado “O problema das
favelas”, há a referência do morador como um “aventureiro”, um tipo de ator que pensava de
214
“As medidas econômico-sociais seriam em linhas gerais: (…) 3) Marcha para o Oeste (programa do Dr.
Getúlio, infelizmente não executado ainda), que talvez seja a solução quase total”. Cf. O PROBLEMA das
favelas, [s/d]. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO
BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04. 215
O PROBLEMA das favelas, [s/d]. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA
CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04.
176
modo imediatista e migrava sem condições de subsistência, sem trabalho e sem respeito à
propriedade privada. Contra esse tipo irresponsável pela própria vida, sugeria-se uma ação
tutelar para obrigar o morador em favelas a regressar ao interior. Para legitimar esse viés,
apontava-se para o Código Civil de 1916 e, dessa forma, para a repressão à vadiagem e o
direito de propriedade como critérios que deveriam ser defendidos contra esse aventureiro que
deveria ser tutelado. À medida que o indivíduo tornava-se um “pária”, sem trabalho, e podia
se unir às classes perigosas, o Estado deveria intervir no direito individual.
Essa perspectiva autoritária, que criava uma exceção no direito individual para
penalizar e controlar os grupos “marginais à civilização”, foi um dos tópicos do debate sobre
a relação entre êxodo rural e favela. Esse viés ancorava-se na proposta de criar uma
superintendência que reunisse trabalhos de assistência social e “policiamento permanente das
‘Favelas’, ou bairros proletários higienizados que as mesmas se transformassem”216
. A
reunião entre assistência social e polícia reiterava a argumentação de que os favelados não
seriam capazes de gerir a própria vida, sendo necessário reeducá-los.
4.4 A crise habitacional e municipalização da habitação popular
Um dos destaques do relatório de Rômulo Almeida, para comprovar a relação entre
êxodo rural e o déficit habitacional, era a atualização da pesquisa elaborada pela FCP em
1946, quando se realizou um relatório tomando como referência o Censo de 1940 e a
estatística predial das capitais de cada Estado, a fim de mostrar a deficiência habitacional do
país. Rômulo Almeida criticava nesse relatório a tentativa de transformar os dados referentes
às capitais como a imagem nacional do déficit habitacional. Como ficaria a discussão da
habitação popular no “interior” e no mundo rural brasileiro? Na visão da subcomissão, a crise
de habitação tinha características nacionais, não era restrita à imagem do que era feito nas
cidades de maior porte, normalmente nas capitais estaduais e na federal.
Não obstante a crítica quanto à incapacidade da FCP de diagnosticar o problema em
termos nacionais e amplos, complementar-se-ia o relatório de 1946, porque era necessário
observar de forma mais precisa o drama do déficit habitacional nas cidades. O quadro abaixo
é uma seleção feita de duas séries elaboradas na Subcomissão de Habitação e Favela para
complementar o trabalho da FCP. Os dados acompanhavam o crescimento urbano na década
216
FUNDAÇÃO DA CASA POPULAR. Síntese de um programa para o encaminhamento da solução do
problema das “favelas”, a começar pelo caso daquelas localizadas na cidade do Rio de Janeiro, [s./d]. CENTRO
DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira
Vargas do Amaral Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04.
177
de 1940 e demonstravam a situação de “crise” que se experimentava. No relatório, fazia-se a
ressalva de que o incremento no licenciamento de prédios não significava o mesmo número
de “habite-se” - a licença definitiva para ocupar o imóvel. Recife, São Paulo, Porto Alegre e
Belo Horizonte tiveram a maior porcentagem de licenciamentos por ano, sendo que São Paulo
e Rio de Janeiro tinham a maior quantidade de licenciamento em números absolutos. Sem
considerar o déficit já existente, afirmava-se que a porcentagem de licenciamento de prédios
era bastante inferior ao crescimento demográfico.
Estatística de licenciamentos de prédios nas capitais brasileiras (1941-1951)
Estados/Capitais Nº de prédios existentes
em 1940
Nº total de construções
licenciadas entre 1941-
1951
Construções licenciadas -
média anual 1941-1951
Crescimento (%)
Rio Branco (AC) 4.103 663 48 1.17
Manaus (AM) 22.664 699 51 0.23
Belém (PA) 41.980 3.028 303 0.72
São Luís (MA) 17.834 766 68 0.38
Teresina (PI) 16.742 695 50 0.30
Fortaleza (CE) 37.102 6.087 442 1.19
Natal (RN) 13.136 6.116 445 3.39
João Pessoa (PB) 23.700 3.171 230 0.97
Recife (PE) 71.521 44.018 3.202 4.48
Maceió (AL) 25.541 3.354 244 0.96
Aracajú (SE) 16.063 4.535 330 2.05
Salvador (BA) 66.810 9.440 686 1.03
Belo Horizonte (MG) 35.679 19.220 1.398 3.92
Vitória (ES) 8.758 1.425 104 1.92
Niterói (RJ) 26.771 5.900 429 1.6
Distrito Federal (RJ) 284.973 84.180 6.122 2.15
São Paulo (SP) 224.837 173.660 12.631 5.62
Curitiba (PA) 29.644 11.323 823 2.78
Florianópolis (SC) 10.204 1.372 100 0.98
Porto Alegre (RS) 50.876 31.247 2.273 4.47
Cuiabá (MT) 10.624 432 43 0.40
Goiânia (GO) 9.596 1.602 128 1.33
Adaptação das tabelas intituladas “Estimativa do incremento das construções nas Unidades da Federação – 1940/1951” (Anexo 1) e “Construções Civis
Licenciadas – Municípios Capitais” (Anexo 2). Cf. ALMEIDA, Rômulo. Comissão Nacional de Bem-Estar Social, Subcomissão de Habitação e Favela,
23/12/1952. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Getúlio Vargas. Arq. GVc
1952.12.23.
Juntamente com esse quadro estatístico, seriam incluídos dados do censo de 1950, que
comprovariam a carência de habitação, a superlotação dos cômodos e o aumento do número
de construções ilegais num quadro majoritário de construções de “madeira”. A proliferação
das casas de madeira transcorria nas “grandes cidades” e no “interior”, sendo um dos motivos
178
de preocupação expresso no relatório da Subcomissão de Habitação e Favela217
. Essa
complementação dos dados, em princípio aparece como uma mera crítica à incapacidade
técnica dos órgãos de governo, mas contribuía para reforçar a complementaridade entre o
“interior” e a “grande cidade” na propagação das habitações “sub-standard”. A conformação
da crise habitacional se generalizava para todo território nacional, não era um particularismo
das metrópoles. O relatório de governo concluía que a habitação popular era uma imagem de
completa desordem e falta de higiene, sendo que o problema das favelas, malocas, mocambos,
invasões, etc. requeriam uma “mudança completa na política até aqui seguida”218
. Ao se
atacar a política de habitação popular nessa direção, era clara a oposição aos IAPs que
construíam seus edifícios de maior porte nas grandes cidades e centros urbanos.
Na visão do relator, o quadro de crise de habitação era explicado pela conjuntura do
pós-guerra. De um lado, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) seria um dos fatores de
restrição econômica que explicariam o aumento do custo de vida e o encarecimento dos
materiais de construção. A guerra era descrita como uma contingência “anormal” na ordem
econômica e produziria muitas mazelas para a sociedade brasileira. De outro, acentuava-se
que as aplicações imobiliárias aumentaram durante o período da guerra, havendo aumento dos
investimentos em apartamentos de luxo nas grandes cidades. O mercado imobiliário
reproduzia a desigualdade, deixando de atender à maior parte da população que necessitava de
casas de tipo popular. Assim, explicava-se o quadro contraditório de imensas edificações que
surgiram nas grandes cidades e a proliferação de habitações anti-higiênicas. Os IAPs eram
vistos e representados como participantes da reprodução dessa desigualdade, visto que
“quanto mais as instituições de previdência e as caixas econômicas” construíam, mais o
problema se agravava; desse modo, reconhecia-se que não se havia chegado “ainda a um
ajustamento entre os programas de aplicação imobiliária em casas populares pela previdência
e suas necessidades de rentabilidade para fazer face aos seus indeclináveis e precípuos
compromissos de aposentadoria, pensões e outros benefícios” 219
.
Como já afirmamos, a imagem da crise habitacional na comunidade política suscitava
uma reforma administrativa que colocava em pauta a coordenação da ação pela FCP, mas
217
Os anexos do relatório traziam vários dados sobre a situação das habitações: o tipo de construção que
prevalecia no território brasileiro (“alvenaria”, “madeira” ou “outros”); estipulava-se a quantidade de domicílios
sobre o número absoluto da população para traçar a “superlotação” das habitações; chegando a determinar um
número aproximado de casas que deveriam ser construídas no país para se pôr fim ao déficit habitacional (2,3
milhões). Cf. ALMEIDA, Rômulo. Comissão Nacional de Bem-Estar Social, Subcomissão de Habitação e
Favela, 23/12/1952. CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
DO BRASIL. Arquivo Getúlio Vargas. Arq. GVc 1952.12.23. 218
Idem. 219
Ibidem.
179
principalmente a municipalização dos órgãos. Imaginava-se que “a centralização das
aplicações só se [tinha] revelado possível a altos custos de habitação e uma limitação de áreas
favorecidas, frequentemente, aquelas que já dispõem de maiores recursos de assistência, e
para as quais, em consequência disso, afluem crescentemente o êxodo rural”220
. Desse modo,
cada municipalidade deveria encontrar os meios regionais de melhor execução de um
programa de habitação popular e uma reforma administrativa. O mais surpreendente do
diagnóstico constituído pela Subcomissão de Habitação e Favela foi o incentivo à política de
mutirão como meio de educar e poupar recursos.
4.4.1 A casa rústica “racionalizada” e o mutirão
Os estudos oficiais e não oficiais para o estabelecimento de modelos de casas
econômicas de caráter rural ou urbano, têm, entretanto, falhado por não se nortearem
pelo estrito respeito às constantes do problema – material, mão de obra – restritora
sobremodo da exibição do técnico que, visando tão somente ao lado econômico e
empregando materiais caros e inexistentes no interior221
.
Distante da construção de edifícios modernos, uma das vertentes valorizadas na
subcomissão era um modelo de “casa rural” a ser implantado nos subúrbios e nas zonas rurais
do país e das cidades. Nos debates da subcomissão, “a ideia da construção em tijolo, como
única construção digna, foi considerada como mais um preconceito social do que uma
necessidade técnica”222
. A denúncia do preconceito tinha em vista a mudança de visão sobre
as construções rústicas e anti-higiênicas, alterando o referencial de apreciação sobre a
autoconstrução num viés folclórico: em parte aceitando a autoconstrução rústica como um
feito original do brasileiro, em parte criticando sua falta de higiene, propondo melhorá-la. Um
dos assessores da Subcomissão de Habitação e Favela, o professor da Faculdade de
Arquitetura da Universidade do Brasil Angelo A. Murgel, ganhou destaque no debate sobre o
tema. Ele foi citado em mais de um documento como uma referência para equacionar o
problema das habitações anti-higiênicas. Muitas vezes fazia-se uma apropriação de suas ideias
para além de seu universo de pesquisa, numa transposição política de suas reflexões
acadêmicas para um quadro político mais amplo.
220
Id. Ibidem. 221
MURGEL, Angelo A. A casa rural brasileira. In: COMISSÃO NACIONAL DE BEM-ESTAR SOCIAL.
Subcomissão de Habitação e Favela. Problemas da Habitação Popular. São Vicente: Comissão Nacional de
Bem-estar Social, 1952. p. 26. 222
Relatório Preliminar apresentado pelo Dr. Rômulo Almeida, coordenador da Subcomissão de Habitação, na 4ª
reunião da Comissão Nacional de Bem-Estar Social em 7 de dezembro de 1952. CENTRO DE PESQUISA E
DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral
Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04.
180
O arquiteto Ângelo Murgel foi autor de uma reflexão que se coadunava com as várias
preocupações em conhecer as potencialidades de cada região, com o intuito de produzir a
habitação popular e economizar materiais de construção. Seu principal eixo de referência era
o cenário rural e regional brasileiro, mas, como vimos na epígrafe, era no campo o lugar para
se buscar um modelo para a “casa econômica rural ou urbana”. No texto intitulado Casa rural
brasileira, ele enfatizava que as casas rústicas eram anti-higiênicas, mas também eram
soluções originais e dignas de orgulho:
Assim, nelas [nas casas rurais] se abrigam e nelas vivem os anônimos heróis que,
conquistando a terra, constroem com seu sacrifício a nação brasileira (…). Como o
humilde trabalhador que acabamos de seguir na sua faina construtiva, também os
obreiros anônimos de toda a nossa hinterlândia, desde datas remotas, trabalharam na
constituição da casa brasileira, faltos de conhecimento técnico, mas ricos de um bom
senso compensador. Por isso, dentro dos limites de seus recursos mínimos,
poderíamos dizer que sua obra resultou boa e sincera, própria e verdadeira. Como é
salutar para o técnico de hoje, cheio de preconceitos e compromissos da própria
técnica, tentando a cada instante pela dialética engenhosa de publicistas teóricos e
empíricos, que procuram tornar universal a solução de um problema eminentemente
local como o da casa, observar o método singelo e intuitivo de pensar e inventar uma
habitação223
.
A discussão da casa rural trazia como pano de fundo uma romantização da ação dos
trabalhadores em todas as partes do país e as suas soluções da habitação popular. O povo
surge como uma figura unitária, sem divisões de classe e caracterizado por uma origem pré-
industrial idealizada, vivendo em isolamento no campo. Na opinião do intelectual-arquiteto,
se olhássemos para a experiência da casa rural, “descobriríamos a fragilidade e a
inconsistência das artificiosas soluções de gabinete, de falsa técnica, com que procuramos
resolver o problema da habitação popular nas nossas metrópoles, no preciosismo de formas
emprestadas exóticas”. Contra essas soluções arquitetônicas importadas, haveria a casa
rústica, uma originalidade da cultura brasileira frente ao estrangeiro. Na imaginação do
arquiteto, o “boiadeiro”, o “jeca”, o “caipira”, o “sertanejo”, os vários tipos de homem que
habitam o campo seriam os “heróis” para a solução da habitação popular no Brasil.
Nesse sistema de observação e valoração, os técnicos deveriam apreender os “estilos
constituídos pela espontaneidade e pela lógica das soluções racionais de cada obreiro,
empenhados em satisfazer suas necessidades comuns em função dos mesmos elementos
locais”224
. Era uma tentativa de tipificar a moradia de acordo com os fatores regionais, os
223
MURGEL, Ângelo A. A casa rural brasileira. In: COMISSÃO NACIONAL DE BEM-ESTAR SOCIAL.
Subcomissão de Habitação e Favela. Problemas da Habitação Popular. São Vicente: Comissão Nacional de
Bem-estar Social, 1952. p. 26. 224
Idem.
181
materiais e os tipos climáticos de cada lugar, aproveitando as formas de construir inventadas
pelo povo. Palafitas no norte, casas de pedra e couro na região do sul de fronteira, pau-a-pique
e barro no sudeste, cada tipo regional produziria uma forma de habitação de acordo com o
habitat que lhe seria próprio 225
. Os saberes de cada região seriam reconhecidos pelos técnicos
que, ao contrário de publicizar as reflexões “importadas” e o “cosmopolitismo”, buscariam no
regionalismo as soluções para a habitação popular.
Depois de uma longa exaltação da originalidade do “povo” e execração do
cosmopolitismo “universalista”, era apresentado o reconhecimento da casa rural como um
movimento internacional, em sintonia com o que havia de mais moderno no mundo. Segundo
o autor, os métodos de construção dentro desses parâmetros estariam em desenvolvimento no
estrangeiro, principalmente nos Estados Unidos, sendo estudados e discutidos em
universidades. Além disso, a casa rural planejada e pensada por técnicos teria vantagens e
eficiências econômicas. A principal vantagem seria o emprego de “materiais de fácil
obtenção”. Segundo o autor, os “obreiros rústicos nos apontam para os materiais [de] que
dispõem, sem dispêndio, que não implicam transporte oneroso, nem os impedem de usarem
uma técnica que desconheçam” 226
.
O reconhecimento do saber popular e das potencialidades regionais, somado aos
saberes técnicos de arquitetos e engenheiros, delineava um projeto. Vários tipos de casa
rústica padronizada poderiam ser difundidos no território para suprir a necessidade de
moradias. Dentro dessa perspectiva, o que era representado como parte da crise habitacional e
da desordem poderia ganhar outro valor na visão do intelectual que projetava a difusão da
melhoria das casas rústicas como modelo de política de habitação popular. Ademais, a
autoconstrução orientada podia ganhar outro valor nessa perspectiva. Na orientação da
subcomissão, cada secretaria de obras municipais e a secretaria de agricultura dos estados
deveriam ter um “mestre de obras” especializado em construção de casas rústicas. Essas
seriam construídas em zonas rurais e nos subúrbios das cidades. O apoio técnico estruturaria
um diferencial na atuação dos grupos populares: “a diferença será, e nisso consiste o grande
valor do método que preconizamos que, enquanto eles, dado a sua ignorância, só conseguem
fazer um precário abrigo anti-higiênico e impróprio, com seu mesmo braço e com os
mesmíssimos materiais poderemos ENSINAR-LHES a fazer ótimas moradias”227
.
225
Ibidem. 226
Id. Ibidem, p. 20. 227
MURGEL, Angelo A. A casa rural brasileira, subsídio à ação do governo. In: COMISSÃO NACIONAL DE
BEM-ESTAR SOCIAL. Subcomissão de Habitação e Favela. Problemas da Habitação Popular. São Vicente:
Comissão Nacional de Bem-estar Social, 1952. p. 29.
182
4.4.2 A política de mutirão
Os estudos sobre os movimentos sociais, as experiências de autoconstrução e a
formação das periferias têm enfatizado o mutirão como uma prática que envolve a
solidariedade e a organização local para a conquista da moradia. Muitas vezes, por essa linha,
a política social valoriza o mutirão e as iniciativas dos moradores para construírem suas
moradias, tendo em vista a consolidação dos espaços autoconstruídos, reconhecendo-os como
parte do tecido urbano. A Subcomissão de Habitação e Favela colocaria em cena o mutirão
como parte da política habitação, mas daria outro sentido para essa prática. Ao contrário da
exaltação do elemento “autônomo” na organização da sociedade civil e na formação dos
espaços de habitação, estaria ali um elemento romantizado da vida rural. O mutirão estaria
incluído como um elemento folclórico, uma tradição antiga de raiz religiosa. Segundo o
intelectual, eram aconselháveis “os trabalhos pelo sistema do mutirão, tão do gosto dos nossos
avós. Para os que não conhecem o seu significado, explicaremos, como Jacó em seu leito de
morte, que ‘a união faz a força’. É o trabalho conjunto dos vizinhos em ajuda de um só, em
rodízio que a todos favorece sucessivamente”228
.
No projeto da subcomissão, o mutirão apareceu como um elemento folclórico,
despolitizado da sociedade, mas que assumiu uma função econômica. A escassez de mão de
obra qualificada era colocada como problema central nos relatórios da subcomissão. Assim,
um dos problemas da habitação popular seria “ampliar a formação de bons operários
instaladores em geral, pintores, pedreiros e mestres, ora em falta em quase todos os países, e
divulgar métodos eficientes de construção”229
. Além de enfatizar a importância do Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) para a formação da mão de obra, o debate
sobre a casa rústica e o incentivo aos mutirões como meio principal de construir habitações
populares tinha em vista o processo de “racionalização” e a formação da força de trabalho. O
processo de racionalização da casa rústica seria um dos lugares onde transcorreria o encontro
entre os técnicos e os operários, quando “engenheiros e arquitetos através uma assistência
228
“Como primeira recomendação, aconselhamos aos leitores executarem os trabalhos pelo sistema do mutirão,
tão do gosto dos nossos avós. Para os que não conhecem o seu significado explicaremos, como Jacó em seu leito
de morte, que ‘a união faz a força’. É o trabalho conjunto dos vizinhos em ajuda de um só, em rodízio que a
todos favorece sucessivamente”. Cf. MURGEL, Angelo A. A casa rural brasileira. In: COMISSÃO NACIONAL
DE BEM-ESTAR SOCIAL. Subcomissão de Habitação e Favela. Problemas da Habitação Popular. São
Vicente: Comissão Nacional de Bem-estar Social, 1952. p. 21. 229
Explicação preliminar aos representantes municipais. COMISSÃO NACIONAL DE BEM-ESTAR SOCIAL.
Subcomissão de Habitação e Favela. Problemas da Habitação Popular. São Vicente: Comissão Nacional de
Bem-estar Social, 1952. p. 4.
183
mais direta e pessoal às obras, de sorte a examinar e resolver pessoalmente certos problemas
da produção e a instruir mestres e operários” provocar-nos-iam “a resolver problemas, e
estimulando, com sua própria presença, a maior produtividade”230
.
Por fim, a política de mutirão desenvolvimentista, num arranjo entre tradição e
modernidade, seria um elemento para a evolução do país. Augusto Luiz Duprat, engenheiro
técnico na Fundação da Casa Popular, participante da Subcomissão de Habitação e Favela,
num dos relatórios, dava destaque ao mutirão como estratégia para produção de habitações,
tendo em vista a escassez de recursos: “dada a carência de habitações, de materiais, de mão de
obra e de fundos, muitos países têm se socorrido da mão de obra dos próprios interessados. É
um velho costume de nossa população – o mutirão – ou muxirão, isto é, o auxílio gratuito que
se prestam uns aos outros para a prestação de um determinado serviço ou execução de
determinada tarefa”231
. Para seguir o exemplo das nações desenvolvidas, destacando-se as
civilizações de matriz anglo-saxônicas no incentivo ao cooperativismo, poder-se-ia recuperar
uma tradição brasileira e reinventá-la como meio de forjar uma sociedade moderna e
solidária.
De acordo com essa perspectiva cooperativista que dialogava em grande medida com
o projeto da recuperação da casa rústica brasileira, o mutirão desenvolveria a paz social.
Contrária à política “paternalista”, aquela em que o poder público interferia diretamente na
realidade, produzindo a habitação com recursos do Estado, o mutirão exigiria o
comprometimento do agente privado, do beneficiado pela política. Ademais, o mutirão seria
uma forma de produzir uma sociedade solidária, menos individualista, onde não se aboliria “a
propriedade individual” que seria generalizada, “tornando-a acessível a todos sob a forma de
pequenos lotes”232
. Na perspectiva da subcomissão, o mutirão seria uma resposta que apagaria
o conflito de classe e contribuiria para a consolidação do capitalismo.
No discurso do serviço social, além de promover a paz social, o mutirão seria um
importante meio de integrar o trabalhador ao espaço urbano, adaptando-o à moradia higiênica.
Segundo a Fundação Leão XIII, o “sistema da ajuda mútua dirigida” teria como vantagem “o
baixo custo da obra, notadamente quando são utilizados materiais locais e o alto valor
230
Relatório Preliminar apresentado pelo Dr. Rômulo Almeida, coordenador da Subcomissão de Habitação, na 4ª
reunião da Comissão Nacional de Bem-Estar Social em 7 de dezembro de 1952. CENTRO DE PESQUISA E
DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL. Arquivo Alzira Vargas do Amaral
Peixoto. Arq. AVAP vpu sgv 1951.04.04. 231
DUPRAT, Luiz. As cooperativas e a solução financeira da habitação. COMISSÃO NACIONAL DE BEM-
ESTAR SOCIAL. Subcomissão de Habitação e Favela. Problemas da Habitação Popular. São Vicente:
Comissão Nacional de Bem-estar Social, 1952. p. 15. 232
Idem.
184
educativo que representa, integrando, desde logo, o morador na vida da casa”233
. Criada em
1946, a Fundação Leão XIII tinha participação na subcomissão, como um órgão especializado
no tratamento das favelas cariocas. Para ela, o envolvimento do trabalhador na construção de
sua casa tinha um significado educativo, ambientando-o com a sua moradia e entendendo as
funções que ela cumpriria. Tal iniciativa também retiraria o beneficiário do programa dos
hábitos anti-higiênicos e promíscuos.
Esses discursos reproduziam uma cultura de classe, onde a tradição popular ganhava
um valor no sistema cultural propugnado pelos técnicos da Subcomissão de Habitação e
Favela, cumprindo funções estéticas, políticas e ideológicas. A racionalização da casa rústica
era uma forma de reafirmar os preconceitos de classe, implícitos no processo de afirmação da
representação da favela como elemento de desordem no espaço da cidade. Ademais, o
mutirão, nessa perspectiva difundida como política pública desenvolvimentista, permitia a
integração dos “marginais” à civilização, bem como viabilizava a exploração dessa força de
trabalho. Para não arcar com os custos da mão de obra, o poder público acionava um discurso
integracionista, onde o trabalhador usaria seu tempo de lazer na edificação de melhoramentos
em benefício próprio. Segundo Kovarick, esse seria um dos meios como transcorreria a
espoliação urbana, a diferenciação e exploração de classe na produção do espaço urbano
(KOVARICK, 1980).
4.4.3 Reformas administrativas de cunho municipalista e modelos administrativos para
construção de habitações populares
Nos relatórios e debates na subcomissão, como estamos enfatizando, considerava-se
“impossível” um órgão centralizado de habitação popular ou de favelas realizar um programa
de construções e serviço social em todo País. A ênfase no mutirão e no aperfeiçoamento da
casa rústica, assim como na questão da colonização, dirigia a atenção às soluções regionais
para a habitação popular. Segundo o documento intitulado “Organizações locais para
habitação popular (e colonização) e sua articulação com órgãos centrais”, uma das funções
dessas instituições municipais era “orientar e dirigir as atividades locais no sentido do
aproveitamento, o mais possível, do trabalho cooperado dos próprios beneficiários, a fim de
reduzir os custos, bem como é indispensável para, a um tempo, tornar as habitações higiênicas
233
MONTEIRO, Nelson Correa; MANCINI, Luís Carlos. Aspectos sociais da habitação popular. COMISSÃO
NACIONAL DE BEM-ESTAR SOCIAL. Subcomissão de Habitação e Favela. Problemas da Habitação
Popular. São Vicente: Comissão Nacional de Bem-estar Social, 1952. p. 11.
185
ao alcance do maior número de baixo poder aquisitivo e possibilitar que os recursos dos
órgãos públicos beneficiem a maior porcentagem de necessitados”234
.
As instituições municipais exerceriam função de pesquisa sobre os materiais de
construção típicos do lugar e de readaptação da figura do “rurícola” ou “marginal” à
sociedade, aproveitando sua mão de obra. Nas atividades de reeducação e adaptação dos
“marginais” à vida urbana, a conjugação de um programa de construções e de serviço social
seria central. A orientação era que
o Município deveria desenvolver um esforço social, técnico-administrativo no
sentido de constituir um serviço social-educativo que procure melhorar as condições
higiênicas e sociais das populações, mobilize-as para um esforço de melhoria de
suas condições de habitação, sem prejuízo da alimentação; contribua para organizar
a “ajuda própria”; selecione os mais necessitados que estejam aptos para habitar
novas casas e acompanhe os grupos melhor alojados até que eles estejam habituados
a cuidar bem de suas casas; esse serviço social tenderia a considerar o problema da
habitação dentro do problema de melhoria das comunidades.235
O serviço social era parte integrante dos projetos de habitação popular, a ausência de
um especialista na área era cogitada apenas na ausência de recursos econômicos para mantê-
lo. A presença de Darcy Vargas, como representante da Legião Brasileira de Assistência,
contribuía para a construção do lugar do serviço social nos projetos ligados à Subcomissão de
Habitação e Favela. Contudo havia outros sujeitos que se destacavam no serviço social.
Dentro da Comissão Nacional de Bem-estar Social, existia uma subcomissão de Serviço
Social que mantinha contato com outras subcomissões e ainda havia a participação de
representantes da Fundação Leão XIII – o engenheiro Nelson Correia Monteiro e Waldecir
Freire Lopes.
A pesquisa sobre a população necessitada, a escolha dos que seriam beneficiados, a
instrução para a autoajuda dirigida e o cuidado da casa e cooperativismo seriam diretamente
ligados ao serviço social. Esse trabalho de investigação e ação teria como função primordial a
construção da noção de “comunidade” como mediadora entre os sujeitos marginalizados na
sociedade. Segundo o relatório da Fundação Leão XIII para a subcomissão, “todo o trabalho
de habitação se confunde no prévio conhecimento das condições sociais do meio, no estudo
234
Organizações locais para habitação popular (e colonização) e sua articulação com os órgãos centrais.
COMISSÃO NACIONAL DE BEM-ESTAR SOCIAL. Subcomissão de Habitação e Favela. Problemas da
Habitação Popular. São Vicente: Comissão Nacional de Bem-estar Social, 1952. p. 15. 235
Idem.
186
dos moradores e na educação dos mesmos para a vida comunitária, ressalvada sempre a
participação ativa do interessado no próprio reajustamento”236
.
A construção desse lugar do serviço social interdependente com a questão da
habitação popular também se deve ao processo de institucionalização dessa profissão na
formação do Estado brasileiro, principalmente durante o Estado Novo. A abertura de cursos
de assistência social, a regularização da profissão, e a criação de órgãos dotados de recursos
públicos para o exercício da profissão a partir da década de 1940 mostravam um
reposicionamento do Estado frente à questão social. De acordo com Honorato, o pacto
político em gestão, ao longo do período, incluía os empresários e os trabalhadores urbanos,
mas faltava atrair os que se encontravam à margem do processo de desenvolvimento
capitalista, os não trabalhadores, os que não conseguiam se situar no mercado formal de
trabalho, identificados ora como miseráveis, ora como desvalidos (HONORATO, 2013: 142).
Assim, os programas de habitação popular, como já foi analisado, conjugavam-se com o
serviço social num claro intento de recuperar e formar o cidadão-trabalhador; na visão do
poder público, a falta de habitação degrada, gera criminalidade, dessa forma o cidadão
inadaptado à vida urbana seria integrado ao bairro popular e ao mundo o trabalho.
A Subcomissão de Habitação e Favela arrolou algumas experiências institucionais que
tinham em vista a conjugação entre habitação popular e serviço social na recuperação do
trabalhador. Podendo recuperar órgãos públicos que foram criados durante o Estado Novo
para tratar das habitações anti-higiênicas e da recuperação do cidadão marginal, a
subcomissão optou por apontar projetos que haviam se constituído após 1945. Esse
posicionamento era importante por afastar a memória do autoritarismo centralizador, que
restringiu o papel e o lugar do município durante parte significativa da vida política brasileira,
quando o serviço social e a habitação popular ganharam destaque. O mais curioso disso tudo
era o tratamento dado ao Serviço Social Contra o Mocambo. A autarquia foi criada em
fevereiro de 1945, durante a vigência do Estado Novo, pelo interventor Agamenon
Magalhães. Entre 1939 e 1945, numa tentativa de romper com o passado e se legitimar no
projeto estado-novista de “paz e harmonia social”, o interventor fez da campanha contra os
mocambos sua principal bandeira política (PANDOLFI, 1984: 60-67). Na orientação da
subcomissão, apagava-se essa trajetória, exaltando os objetivos da autarquia: “construir casas
higiênicas e populares destinadas às classes menos favorecidas da fortuna, protegendo-as
236
MONTEIRO, Nelson Correa; MANCINI, Luís Carlos. Aspectos sociais da habitação popular. COMISSÃO
NACIONAL DE BEM-ESTAR SOCIAL. Subcomissão de Habitação e Favela. Problemas da Habitação
Popular. São Vicente: Comissão Nacional de Bem-estar Social, 1952. p. 11.
187
contra os males da habitação insalubre e da promiscuidade da vida nos mocambos”,
promovendo “ampla obra de assistência que visa ao alevantamento moral, intelectual e
econômico dos trabalhadores e suas famílias”. Rememorava-se também a reforma na
constituição do estado pernambucano, em 1947, permitindo o maior desenvolvimento dos
programas de habitação popular.
Na proposição de modelos para a reforma administrativa nos municípios, fazia-se uma
acomodação das propostas de articulação entre serviço social e habitação popular que
surgiram durante o Estado Novo com o novo momento. Nesse sentido, citava-se a criação do
Instituto de Bem-estar Social do Espírito Santo, em 1952. O órgão teria o intuito de promover
“o bem-estar físico e social e, particularmente, a aquisição ou locação de casas higiênicas, em
zona urbana ou rural, de modo a proteger os menos favorecidos contra os males da habitação
insalubre e da promiscuidade da vida nas favelas”237
. Esse órgão teria sido criado por
incentivo direto da Comissão de Bem-estar Social no governo Vargas. Interessante, nesse
mesmo sentido, era a ausência da experiência dos parques proletários provisórios que
surgiram em 1942 durante a ação do interventor Henrique Dodsworth. Ao contrário dessa
experiência, mostrava-se um projeto de uma nova autarquia, a Comissão Municipal de
Urbanismo e Habitação – um órgão que não chegou a ser criado, mas que figurava como uma
proposta que articularia a prefeitura e a FCP na solução da habitação popular. Esse
apagamento da memória dos parques proletários devia-se, em grande medida, à forte presença
de intelectuais ligados a outros departamentos da Prefeitura do Distrito Federal. Esses
estudiosos buscavam projetos de habitação popular que desconsideravam a experiência
concebida pelo interventor Henrique Dodsworth.
Esses novos modelos de autarquia deveriam ter fundamentalmente autonomia
administrativa, para assumir acordos e contratos com a Fundação da Casa Popular e criar
maneiras de arrecadar recursos municipais visando à habitação popular. Esse modelo
autárquico de uma instituição municipal, tendo em vista o acúmulo de reflexão e trabalho
constituídos nos quatro anos de existência da Comissão Nacional de Bem-estar Social,
tornou-se efetivo. Foi, em grande parte, contemplado na criação da Cruzada São Sebastião
(1955) e do Serviço de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas no Rio de
Janeiro, mas também na instituição do Departamento de Bairros e Habitações Populares em
Belo Horizonte.
237
Organizações locais para habitação popular (e colonização) e sua articulação com os órgãos centrais.
COMISSÃO NACIONAL DE BEM-ESTAR SOCIAL. Subcomissão de Habitação e Favela. Problemas da
Habitação Popular. São Vicente: Comissão Nacional de Bem-estar Social, 1952. p. 15.
188
Como vimos, essas agências tentavam formar fundos públicos para investir
diretamente na construção de habitação popular, com objetivo de alterar comportamentos e
hábitos sociais dos favelados. A CNBS, assim como os censos de favela, buscaram
racionalizar dispositivos de poder para a gestão dos territórios pobres urbanos. Assim,
nacionalizavam a representação das favelas e um discurso da marginalidade social, que
difundia o intento de atuar junto às classes populares para integrá-las através da disciplina
para o trabalho e de valores sociais afinados com um ideal de “normalidade” da sociedade
urbano-industrial em formação no país. A identificação das favelas reproduzia estereótipos,
criava formas de controle da sociedade urbana e também abria possibilidade de negociação de
direitos, como veremos na segunda parte da tese.
189
Parte II
Os movimentos de “trabalhadores favelados”
190
5 AS ASSOCIAÇÕES DE “TRABALHADORES FAVELADOS”
O foco de análise da segunda parte da tese são as práticas articuladas pela União dos
Trabalhadores Favelados do Rio de Janeiro (UTF) e Federação dos Trabalhadores Favelados
de Belo Horizonte (FTFBH). Entre 1954 e 1964, ambas tiveram como objetivo congregar
várias associações civis, com a finalidade de evitar despejos coletivos e reivindicar
melhoramentos urbanos e obras assistenciais. Apropriaram-se da identificação das favelas
para reivindicar direitos, deslocando a imagem do estigma e o discurso da marginalidade
social que estruturavam as práticas estatais. A configuração dos movimentos de
“trabalhadores favelados” tem um desdobramento na forma de ocupar o espaço público, nas
disputas eleitorais desenvolvidas em cada cidade e na proposição de projetos de lei para
alterar o status das favelas. Neste e nos próximos capítulos da tese, analisaremos a maneira
como a identificação das favelas foi apropriada nos movimentos de “trabalhadores de
favelados” na reivindicação de direitos.
Nascidas em cidades diferentes, não houve uma relação direta entre a UTF e a
FTFBH. A disjunção entre os associativismos fica evidente quando analisamos os períodos de
maior força e presença dessas entidades no espaço público. No Rio de Janeiro, a UTF atuou
de forma mais intensa entre 1954 e 1960. Em 1957, ela sofreu um processo judicial e foi
acusada de subversão da ordem política e social, contudo voltou a se organizar no ano
seguinte. Em 1960, os atores ligados à UTF tentaram formar a Coligação dos Trabalhadores
Favelados do Rio de Janeiro, reunindo lideranças de favelas aos trabalhistas e comunistas na
luta pelo direito de moradia e pela reforma urbana238
. Contudo, com a eleição de Carlos
Lacerda para governador (1961-1965) e reorganização administrativa no Estado da
Guanabara, a Secretaria de Serviço Social, durante a gestão de José Arthur Rios, passou a
realizar obras de infraestrutura e fundar associações de favelas, atrelando-as ao seu controle
(MACHADO DA SILVA, 1967; LEEDS & LEEDS, 1978; LIMA, 1989; AMOROSO, 2012;
GONÇALVES, 2013). Isso levou a um refluxo do movimento de trabalhadores favelados no
Rio de Janeiro. Em Belo Horizonte, a FTFBH existiu entre 1959 e 1964. Nesse período, o
movimento de trabalhadores favelados reuniu lideranças de favelas com grupos trabalhistas,
comunistas e da esquerda católica em torno da luta pelo direito de moradia e pela reforma
urbana (OLIVEIRA, 2010). Com o Golpe de 1964, a FTFBH foi dissolvida. Instituiu-se um
Inquérito Policial em maio de 1964, criminalizando a luta pelo “direito de morar”. O coronel
238
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo Polpol. Arq. Pasta 1042.
191
da Polícia Militar Gradinor Soares foi nomeado interventor na Federação, indiciando
lideranças, fechando associações e apreendendo documentos do associativismo em pauta239
.
As trajetórias das associações eram diferentes e vinculavam-se à dinâmica
sociopolítica das cidades em que estavam inseridas. As mobilizações, por sua vez,
vincularam-se às contingências das agendas políticas de cada cidade – entre elas a luta contra
despejos – e por demandas locais. Além disso, os movimentos de trabalhadores favelados
formaram redes associativas que se organizavam dentro e fora das favelas com algum grau de
estabilidade, construindo “sedes” nas centralidades políticas de cada cidade. No Rio de
Janeiro, a UTF declarava a finalidade de “em cada favela do Distrito Federal, congregar todos
os seus moradores em Centros de Trabalhadores Favelados, de modo que esses “'Centros'”,
filiados à União dos Trabalhadores Favelados, pela força do número, imponham aos governos
e, aos que os oprimem e exploram, respeito e atendimento aos direitos que os trabalhadores
têm a uma existência digna”240
. Segundo os estatutos, esses “Centros” reunir-se-iam
mensalmente, através de um “conselho” e “assembleia geral”, que podiam ocorrer em
diferentes favelas, entretanto a “sede” da entidade localizava-se no Morro do Borel. Outro
lugar central para o funcionamento do movimento dos trabalhadores favelados era o escritório
do advogado Magarinos Torres: localizado no centro do Rio de Janeiro, na Rua México, nº
21, sala 601 – local de referência que aparece nos papéis que tinham o timbre da UTF desde
1954. Em 1961, se observarmos uma carteirinha da Coligação dos Trabalhadores Favelados,
veremos que o escritório de advocacia era apontado como a “secretaria geral” da entidade241
.
Em Belo Horizonte, a FTFBH tentou difundir e agregar as “Uniões de Defesa
Coletiva” (UDC), a fim de reivindicar direitos. Segundo os estatutos da FTFBH, poderiam ter
voz e deliberar nas reuniões os moradores que contribuíssem ou participassem de alguma
associação de defesa coletiva, representando o interesse do lugar em que residiam242
. Entre
1959 e 1964, não há informações que precisem um lugar para as reuniões da FTFBH; muitas
assembleias ocorreram em sedes de associações nas favelas e em associações sindicais - no
Centro dos Choferes e na sede estadual da Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Indústria. A sede da associação funcionou em salas do centro de Belo Horizonte: entre 1960 e
1963, na Avenida Afonso Pena, nº 323, sala 7 – sala próxima da sede do Partido Socialista
239
Inquérito DVS 096, 1964. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS. Arq. Pasta 3049. 240
Projeto de Estatuto da União dos Trabalhadores Favelados, 04/04/1954. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO
DO RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Pasta 1046. 241
Carteirinha de filiação de Magarinos Torres à UTF, 1961. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO. Arq. Prontuário 47727. 242
Estatuto da Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte, 27/01/1960. CARTÓRIO GERO
OLÍVA.
192
Brasileiro (PSB), que tinha vínculos com Francisco Nascimento, liderança da Vila Nosso
Senhor dos Passos e “presidente” da FTFBH entre 1962 e 1964. A partir de 1963, a “sede” foi
na Rua Rio de Janeiro, nº 243, sala 202. Ali era o espaço que funcionava como escritório para
os “advogados de favelas” que cuidavam dos casos de despejo coletivo defendidos pela
FTFBH.
Os movimentos de “trabalhadores favelados” se estruturaram com alguma
proximidade histórica, mas não há nenhum indício que demonstre relações diretas entre a
UTF e a FTFBH. No corpus documental levantado durante a pesquisa, não encontramos
nenhum indício que sustente qualquer tipo de vínculo direto entre os movimentos de
trabalhadores favelados. O único registro que salienta a circularidade de práticas de protesto e
a desconexão dos movimentos sociais dos trabalhadores favelados é essa nota no jornal O
Barraco243
:
Serão organizados: Federação e UDCs de BH serão modelos
A Liga Nacional da Mocidade Trabalhista enviou à Federação dos
Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte um ofício, comunicando que foi
aprovado um voto de louvor ao Sr. Francisco Nascimento pela sua atuação firme nas
lutas em defesa dos interesses dos trabalhadores das nossas favelas.
FEDERAÇÃO MODELO
No mesmo ofício, a Mocidade Trabalhista (com sede no Rio de Janeiro)
solicita informações sobre a organização e atividades da nossa Federação, para que
ela sirva de modelo para outras entidades a serem fundadas noutras capitais. Sabe-se
que o reverendo Padre Alípio deseja organizar as favelas do Rio, tomando como
base o trabalho e as experiências das Uniões de Defesa Coletiva de Belo Horizonte.
O BARRACO sente-se satisfeito em poder transmitir esta notícia, pois nossa
Federação já atravessou as fronteiras de Belo Horizonte e serve de modelo para
organizar os favelados de outras terras para a defesa do direito de morar, contra a
derrubada de favelas, contra a transferência para locais distantes, enfim, pela
segurança e tranquilidade da família favelada244
.
Diante de tantos outros movimentos associativos na cidade do Rio de Janeiro, o
interesse da “Mocidade Trabalhista” carioca possivelmente foi suscitado por umas poucas
reportagens editadas pela imprensa carioca sobre a FTFBH, após a organização do I
Congresso dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (1962)245
. Num período em que os
243
O jornal O Barraco era editado pela Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte entre 1962 e
1964. Contou com seis edições mimeografadas, de periodicidade mensal, entre fevereiro e julho de 1962.
Posteriormente foi editado dentro do jornal O Binômio. Esse periódico editou em seu interior, além de O
Barraco, o jornal Tribuna Universitária do Diretório Central de Estudantes da Universidade de Minas Gerais –
DCE-UMG. 244
FAVELADOS do Rio de Janeiro serão organizados: Federação e UDCs de BH serão modelos. O Barraco In:
BINÔMIO. Belo Horizonte, 03/09/1962. Caderno 3, p. 3. 245
FAVELADOS de Minas vão provar que só Reforma Urbana resolve. Novos Rumos. Rio de Janeiro, 20 a
26/04/1962, p. 3; UNIDADE dos favelados contra a violência da polícia de Magalhães. Novos Rumos. Rio de
193
movimentos de trabalhadores favelados estavam em refluxo no Rio de Janeiro, com o avanço
das associações criadas pelo no governo de Carlos Lacerda (1961-1965), buscava-se uma
alternativa política para se contrapor à ação da Secretaria de Serviço Social. Em 1963,
reunindo lideranças de oposição e grupos pró-governo, constituiu-se no Rio de Janeiro a
Federação de Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG). Ela participou da
luta pelo direito de moradia no período de intensificação das remoções das favelas na década
de 1960, nos governos de Carlos Lacerda e Francisco Negrão de Lima (1965-1970).
Não obstante a trajetória do movimento de favelas carioca, é importante observar a
forma como a FTFBH recebeu a carta da Mocidade Trabalhista. A recepção da
correspondência indicava uma distância em relação às associações civis supralocais de favelas
em outras cidades. Se acompanharmos o jornal O Barraco, veremos uma série de notícias que
pontuavam a crença na excepcionalidade do movimento de Belo Horizonte, como se em
outros lugares os favelados não fossem “organizados”. Persistia a afirmação do aspecto
“evoluído” do que se realizava na cidade, num claro exemplo de orgulho regional, reforçado
pela distância de outros atores. Para eles, “não existia movimento similar no Brasil”246
.
Essas notícias atestavam o orgulho do associativismo e diferenciavam as favelas de
Belo Horizonte do imaginário da marginalidade social, legitimando as práticas associativas
locais. As reportagens mostravam que, em um contexto marcado por uma nacionalização da
identificação da favela que atestava a capitalidade do Rio de Janeiro, abria-se a possibilidade
de produção de discursos regionalizados, demarcando diferenças em relação ao estigma,
afirmando o caráter mais “evoluído” e “organizado” de uma localidade em relação à outra.
Ademais, essas notícias também mostravam a circularidade de estratégias de ação entre as
capitais do Brasil. Além da referência ao Rio de Janeiro, no mesmo jornal, dizia-se que os
“moradores de uma grande favela de Porto Alegre – Vila Trevo – estavam em pé de guerra
contra a transferência para local distante. Maloqueiros de lá dizem que não sairiam de jeito
nenhum a não ser para local condizente e próximo”247
. O jornal esclarecia que, em Porto
Alegre, favela era “maloca e favelado” era “maloqueiro”. Em outro registro, afirmava-se que
“enquanto os favelados de São Paulo não se” organizavam, “os de Goiânia” contavam
atualmente com 15 associações. Em Goiânia, favela é ‘invasão’”248
. Assim, eram tecidas
Janeiro, 27 a 08/07/1962. p. 5. 246
FAVELADO é ser humano e merece respeito e amparo, O Barraco In: BINÔMIO, Belo Horizonte,
20/08/1962, Caderno 3, p. 3. 247
REGISTRO rápido, O Barraco. In: BINÔMIO, Belo Horizonte, 29/07/1963, Caderno 2, p. 6. 248
REGISTRO rápido, O Barraco. In: BINÔMIO, Belo Horizonte, 15/07/1963, Caderno 2, p. 6.
194
comparações com outras cidades e capitais do país, criando homologias entre a insegurança
dos moradores pobres na questão de moradia.
As notícias são indícios da circulação de notícias e pessoas no país, mas também
apontam para o caráter modular e cosmopolita das ações coletivas na contemporaneidade.
Como ponderou Tarrow, após a formação dos Estados nacionais, as ações coletivas tendem,
cada vez mais, a ser “cosmopolitas ao referir-se com frequência a interesses e questões que
diziam respeito a muitas localidades ou afetavam centros de poder cujas ações atingiam
muitas outras” e a ser “modulares por serem facilmente transferíveis de um local ou
circunstância para outros” (TARROW, 2009: 52). Os conflitos relativos às favelas não
atingiam um mesmo centro de poder, visto que as ações ficavam polarizadas nas esferas
políticas restritas à cidade e estrutura política municipal ou estadual, mas elas foram
modulares. As informações que circularam no jornal O Barraco e a difusão de algumas ações
da FTFBH na imprensa carioca mostram a forma como estava ocorrendo uma homologia na
representação dos conflitos, a mistura de diferentes referentes na composição da interpretação
da ação coletiva. Assim, a “associação” civil era vista como sinal de uma organização; o
“despejo” para locais distantes como um problema do morador pobre; a luta para o
reconhecimento do “direito de moradia”, o tema da “reforma urbana”; e o questionamento dos
estigmas, supostos nos termos “favela”, “maloqueiro”, “invasão”.
A presença de uma imprensa nacional e a integração do território permitiam a difusão
de performances de protesto que extrapolavam uma cidade. Cabe notar ainda o papel central
de militantes ligados aos partidos na produção dessas homologias e organização dos
movimentos de favelas. Trabalhistas, comunistas, católicos progressistas cumpriam uma
função primordial na articulação das lutas sociais de favelas com programas e ideários
políticos. O testemunho que apresenta o interesse da Mocidade Trabalhista carioca pela
FTFBH nos dá um indício de como as forças políticas de esquerda tentaram construir uma
agenda reformista, associando as lutas dos sindicatos e das organizações de bairros, favelas e
do campo. Enquanto, na história do movimento de trabalhadores favelados no Rio de Janeiro,
as referências a líderes trabalhistas e comunistas eram centrais na construção da agenda
reformista, no jornal O Barraco, cita-se como difusor do “modelo” da FTFBH a figura de
“Padre Alípio”– liderança da esquerda católica, fundador da Ação Popular (AP), e ligado à
luta pela reforma agrária. Esse é um dos sinais que marca a diferença da configuração
sociopolítica formada pela FTFBH, mais permeável aos valores e lideranças católicas quando
comparada à experiência da UTF na passagem dos anos 1950 e 1960.
195
Ao contrário da imagem caricatural do “populismo”, usada para enfatizar a
“demagogia” de lideranças carismáticas e a debilidade da “consciência da classe
trabalhadora” no intervalo entre 1945 e 1964, a UTF e FTFBH mostram a importância da
experiência de democracia no referido período. A historiografia brasileira recentemente tem
criticado a expressão “populista”, por ser um conceito corrente para denegrir inimigos
políticos (populista é sempre o “outro”) e construir uma leitura da história que desconsidera a
diversidade das experiências de aprendizado social e político da classe trabalhadora no
período anterior ao Golpe de 1964249
. A história dos movimentos de “trabalhadores
favelados” demonstra como a formação de uma arena de conflito e luta pelo direito de
moradia se constituiu no período, conformando práticas e representações na história social e
política do país.
5.1 A interpretação dos movimentos de trabalhadores favelados nas Ciências Sociais e
na História
Por mais inovador que seja, todo debate parte de ideias anteriores, mesmo quando
vêm a ser formuladas ou rejeitadas. Falar de um campo de discussão é
necessariamente falar de sua construção e, portanto, de sua historicidade
(MACHADO DA SILVA, 1993: 39).
A maior parte da historiografia da experiência liberal-democrática dedica-se à análise
de partidos e sindicatos, pouco abordando outros tipos de conflitos de classe, raça, gênero,
bem como as estratégias desenvolvidas pelos grupos populares, com o intuito de reivindicar
direitos em outros espaços sociais. Um dos campos que merece melhor enfoque são os
estudos urbanos, que pautaram suas análises nos movimentos sociais e nas sociabilidades
constituídas em bairros e favelas250
.
Entretanto identificar uma lacuna na historiográfica clássica de um período não
significa atestar a ausência de debates sobre o fenômeno. Os movimentos sociais da UTF e
249
O debate sobre “populismo” tem sido feito na História Social e Política com bastante intensidade nos últimos
anos, numa tentativa de reconhecer a diversidade das experiências sociais e políticas desenvolvidas no período
de 1945 a 1964. Cf. FERREIRA, 2001; GOMES, 2001; CAPELATO, 2001; REIS FILHO, 2001; NEGRO, 2004;
DUARTE & FONTES, 2004; FORTES, 2007; LEAL, 2011. 250
Na primeira parte da tese, analisamos o processo de identificação das favelas e contribuímos para a
compreensão da forma como se constituíram as práticas estatais de controle social nesses territórios. A análise
comparada ofereceu um subsídio, para mostrar a importância da nacionalização da representação da favela,
assim como para refletir e atuar sobre os espaços de pobreza urbana, mas pouco avançou na compreensão da
heterogeneidade das articulações constituídas no tecido urbano e consequentemente na dinâmica de surgimento e
consolidação das favelas nas cidades em outra escala de análise (Cf. SILVA, 2005; FISCHER, 2008; SOARES,
2012; CAVALCANTI & FONTES, 2011; BRUM, 2011). Na segunda parte da tese, avançaremos na discussão
sobre os trabalhadores em perspectiva comparada, enfocando a circulação dos repertórios do movimento social
de favelas.
196
FTFBH muito cedo chamaram a atenção de analistas políticos. Em torno deles, formou-se um
campo de discussão que extrapolava a academia e a historiografia feita por profissionais.
Destarte, estabelecer um empreendimento analítico das práticas da UTF e da FTFBH significa
necessariamente situar-nos nesse campo de discussão. A própria noção de movimento social
usada em nossa análise comparada subscreve aporias que não temos a pretensão de esgotar,
mas historicizar o seu sentido. Nas décadas de 1950 e 1960, as práticas da UTF e da FTFBH
eram tratadas como “movimento de favelas” ou de “trabalhadores favelados” por veículos de
comunicação de massa (principalmente os ligados às esquerdas), lideranças políticas e
comunitárias e intelectuais. A expressão não era neutra e nem sempre foi usada por aqueles
que testemunharam as práticas articuladas pelas associações em pauta.
As posições em torno do uso da expressão eram heterogêneas, sendo assim tornava-se
impossível demarcar um sentido unívoco para o uso ou rejeição da noção de movimento
social. Todavia, pelos desdobramentos acadêmicos e analíticos, merece destaque a discussão
desenvolvida nos primórdios da Sociologia Urbana, em estudos que tangenciaram os
associativismos dos trabalhadores favelados, abordando-os no diálogo com a noção de
marginalidade social. Observadores coetâneos da UTF e da FTFBH rejeitaram o senso
comum explícito na categoria “movimento social”, com fins de se referir às práticas dessas
associações. Em 1960 em Belo Horizonte, por exemplo, um estudo marcado pelo marxismo e
pelos clássicos da sociologia americana analisou a estrutura social do Morro do Querosene.
Os sociólogos Hiroshe Watanabe e Welber da Silva Braga realizaram o trabalho a partir da
articulação entre o Curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia da Universidade de
Minas Gerais, Departamento de Habitações e Bairros Populares (DHBP) e Centro Brasileiro
de Pesquisas Educacionais (vinculado ao Ministério da Educação e Cultura), e publicaram a
pesquisa no livro Morro do Querosene – aspectos da formação de uma favela (1960).
O trabalho de Watanabe e Braga trazia uma descrição do espaço bastante rica, atenta
às contradições de classe do Morro do Querosene com o entorno e dentro da própria
comunidade. Diferenciava a renda dos moradores de duas regiões: os moradores da “área da
Prefeitura” e da “área do Exército”. Esses eram os recortes de identificação territorial
empregados pelo DHBP e que os sociólogos usaram como pressuposto da análise
sociodemográfica. A “área da Prefeitura” fazia fronteira com o bairro Cidade Jardim e tinha
renda superior quando comparada com o segundo grupo, situado na fronteira da Avenida Raja
Gabaglia. O critério de propriedade era definidor da classificação espacial do DHBP e dos
pesquisadores, entretanto não há nenhuma indicação de que essa diferenciação fosse usada
197
pelos moradores. Ainda que observassem as distinções internas na favela, os sociólogos
reiteravam a pobreza e o caráter marginal daquele grupo na sociedade urbano-industrial.
Distinguiam o Morro do Querosene de uma favela. Por critérios físicos e sociais, ele
era diferente, tanto de bairros de elite quanto de bairros operários suburbanos que existiam na
região da Cidade Industrial, Cachoeirinha, entre outras. Afirmando o caráter marginal daquela
comunidade, Watanabe e Braga observavam que não se haviam desenvolvido à época “na
maioria das favelas de Belo Horizonte, atividades recreativas de caráter local ou formas
associativas próprias do grupo” (BRAGA & WATANABE, 1960: 78). Ainda segundo os
pesquisadores, “talvez a principal característica da favela seja sua forma de vida inteiramente
anárquica, com falta absoluta de qualquer forma de autoridade socialmente estabelecida e
válida para todo o grupo, no qual não se desenvolve também nenhum sentimento de
solidariedade especificamente grupal” (Idem, 1960: 80). Assim, apesar de a pesquisa registrar
a existência do Centro de Defesa Coletiva, criado em 1952, que atuaria na formação da
FTFBH em 1959, os autores preferiam tratar a associação como algo amorfo, típico de uma
população pobre e marginalizada no processo de modernização social e política vivida no
contexto urbano251
.
Se o trabalho sociológico acima ficou restrito ao circuito da Universidade de Minas
Gerais e do Departamento de Bairros e Habitações Populares, o estudo Aspectos Humanos
das favelas cariocas constituiu-se uma das referências para a sociologia urbana no Brasil.
Rompeu com a tradição de estudos estatísticos sobre as favelas, valorizando as sociabilidades
constituídas nos locais de moradia. Sob a influência da Sociologia Urbana americana – a
“Escola de Chicago” (VALLADARES, 2005), os autores do estudo estabeleceram uma
pesquisa qualitativa a partir da “observação” e de “entrevistas”. O trabalho reconhecia que o
inquérito estatístico era pouco confiável, “porque levaria a dados de pronta manipulação
matemática”, visto que seria muito difícil conhecer a “vida interna das favelas e se tornaria
extremamente difícil estabelecer, a priori, as camadas, os estratos para a amostra” estatística.
Os estudos qualitativos sobre essa realidade “heterogênea” deveriam orientar a formulação do
questionário e as amostras estatísticas252
.
251
Outro estudo realizado nesse mesmo período, feito pela articulação entre o Curso de Ciências Sociais da
Universidade de Minas Gerais e o Departamento de Habitações e Bairros Populares, foi o Vila São Vicente de
Paulo (1961), de Luis Antônio Machado. Ambos eram locais visados pelo programa de “desfavelamento”
encadeado pelo DHBP. Nessa outra monografia, a Associação de Defesa Coletiva e o conflito travado durante
toda a década de 1950 contra a Companhia Mineira de Terrenos LTDA. eram também pouco abordados. 252
SOCIEDADE DE ANÁLISES GRÁFICAS E MECANOGRÁFICAS. Aspectos Humanos das favelas
cariocas. Estado de São Paulo – Suplemento Especial. São Paulo, 13/04/1963, p. 1.
198
Ao se referir sobre um dos tipos de solidariedade, criticaram a imagem estereotipada
da marginalidade:
À primeira vista, parece que o povo das favelas é incapaz de se organizar
espontaneamente. Há mesmo quem generalize aos favelados uma impressão
superficial colhida nas zonas rurais brasileiras e, de um modo geral, aplicada às
camadas inferiores da nossa população. Diz-se que são individualistas. Esse pretenso
individualismo resulta do diagnóstico apressado de organizações e instituições
exteriores à favela, que abordam seus problemas de um ângulo paternalista. De
representantes de organizações é frequente ouvirmos que os favelados “são como
crianças”, “não têm capacidade de se organizar” ou, então, que “não conhecem seus
verdadeiros problemas”. Esses são, ao contrário, perfeitamente conhecidos pelo
agente da organização.253
O estudo Aspectos das favelas cariocas reconhecia como exemplos de sociabilidade as
“biroscas”, as relações de vizinhança pautadas pelos conflito/intrigas e “ajuda mútua”, as
estratégias de “assistência aos enfermos”, bem como as associações de moradores. Todavia o
termo movimento social não era usado na análise. No trabalho de campo realizado pelos
sociólogos, citava-se como exemplo de associação a União de Defesa e Melhoramentos da
Barreira do Vasco. Essa surgiu em reação à atuação da Fundação Leão XIII, que proibia e
controlava as construções e reformas de moradias na Barreira do Vasco.
A partir do caso da Barreira do Vasco e da observação de outras situações,
generalizava-se a percepção de que os “grupos de interesse” das associações “não coincidiam
inteiramente com a maioria” da população das favelas. Ademais, reconhecia-se que “os
interesses políticos deturpavam a entidade”, desviando-a da função de representar a
população254
. Assim, denunciavam a visão “paternalista” da retórica da marginalidade,
enfatizando a diversidade das formas de sociabilidade constituída nas favelas e a maneira
como as associações de moradores eram importantes, mas dominadas por grupos específicos
que não representavam a maioria e agiam por interesses “políticos”. Por outro lado, nesse
procedimento de generalização, o estudo estabelecia uma leitura normativa dos vínculos
políticos das associações. Na visão da SAGMACS, a associação “devia ser estimulada e
reproduzida em outras favelas”, uma vez que “a existência de entidades dessa natureza
representa um dado positivo a ser considerado num plano geral de recuperação das favelas e
dos favelados”. Por outro lado, os vínculos políticos eram um traço a ser barrado na
253
Idem, p. 33. 254
Ibidem.
199
incorporação dessas organizações no “plano geral de recuperação das favelas e dos
favelados”255
.
Na parte destinada a analisar o comportamento político da publicação Aspectos
Humanos das favelas cariocas, a percepção da associação de moradores e de seus vínculos
políticos era ainda mais clara. As favelas eram consideradas “verdadeiros quistos rurais na
metrópole carioca e suas populações” viviam “um momento de transição que corresponde
rigorosamente a uma etapa do desenvolvimento. Seus valores ainda” pertenciam “a uma
cultura que” sobrevivia “nas zonas rurais brasileiras e que se” desintegrava “ao encontro das
necessidades e problemas urbanos”. Numa imagem etnocêntrica que desqualificava membros
e grupos envolvidos com o movimento social, a UTF, bem como a atuação do Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido Comunista eram vistas como parte da política
“demagógica”. Eram fruto da reprodução da cultura rural no meio urbano. O comportamento
político observado nos vínculos construídos pelas associações de moradores era tido como
“incompatível com a própria vida urbana”256
. Os estudos posteriores balizados pela noção de
“movimentos sociais urbanos” iriam enfatizar justamente o contrário. Ainda que
questionassem a distância entre lideranças e moradores representados, argumentavam que era
a politização do espaço urbano que levava ao surgimento de mobilizações, práticas
associativas e reivindicações.
Na década de 1950 e 1960, num período anterior à institucionalização das pós-
graduações de Ciências Sociais e História nas universidades, o olhar sobre os grupos
subalternos na sociedade brasileira era marcado pelo viés do discurso da marginalidade social.
Dentro de um discurso que enfatizava a modernização da sociedade e a continuidade de uma
tradição rural no meio urbano, complexidade das práticas desenvolvidas por atores são
subsumidas por análises que reiteram o atraso da sociedade e do Estado brasileiro frente aos
países “desenvolvidos”. Os vínculos sociopolíticos instituídos pelos movimentos de
“trabalhadores favelados” dentro e fora das favelas eram, ora ignorados numa recorrente
imagem da marginalidade e passividade políticas, ora vistos de forma exagerada como
“comunistas” ou “esquerdizantes”. Ou, então, eram percebidos como fruto da “demagogia” de
cabos eleitorais e políticos – tema que merecerá nossa atenção no próximo capítulo.
5.1.1 Movimentos sociais urbanos
255
Id. Ibidem. 256
SOCIEDADE DE ANÁLISES GRÁFICAS E MECANOGRÁFICAS. Aspectos Humanos das favelas
cariocas. Estado de São Paulo – Suplemento Especial. São Paulo, 15/04/1963, p. 27.
200
Nos anos 1970 e 1980, existe um processo de crítica em trabalhos intelectuais que
desconsideravam as formas de agir e seus significados nas “classes populares”, havia, dessa
maneira, uma progressiva requalificação da categoria “movimento social”. Num esforço de
ponderar essa crítica, Paoli e Sader (1986) observaram a permanência nas Ciências Sociais de
uma imagem do “povo” como alteridade negativa do Estado e da sociedade. Segundo os
autores, “a visão de uma sociedade fragmentada e em decomposição diante dos imperativos
históricos de mudança social, esta representação do ‘povo’ e do ‘caráter popular’ brasileiro,
inventou sua fórmula que fez eco por todo pensamento intelectual do século XX, apesar da
crítica que se fez aos seus termos” (PAOLI & SADER, 1986: 42). Essa visão caricatural do
“povo” e dos grupos subalternos eram revistas nas Ciências Sociais (Antropologia,
Sociologia, Ciência Política) e História, que buscavam analisar a diversidade dos modos de
vida e das estratégias de ação nos grupos subalternos.
As pesquisas traziam novas formas de compreensão das práticas e representações dos
grupos populares, por conseguinte os movimentos sociais se tornaram um dos temas de estudo
ligado a essa renovação. De acordo com Gohn, esse campo de pesquisa foi construído no
momento de institucionalização da pós-graduação das Ciências Sociais no Brasil, durante a
ditadura militar (1964-1985). Os pesquisadores estavam sintonizados com os paradigmas de
análise dos movimentos sociais do exterior e
ávidos por entender os processos sociais que estavam ocorrendo e desejosos de
participar de alguma forma da luta contra o regime militar, tendo em vista o controle
social e a ausência de espaço para debates. Dessa forma, a produção latino-
americana sobre movimentos sociais muitas vezes esteve bastante permeada por
pressupostos ideológicos que as derivavam de matrizes político-pragmáticas
(GOHN, 1997: 215).
No desejo de ampliação do escopo da ação política, as categorias constitutivas do
senso comum foram muitas vezes replicadas na esfera acadêmica, assim houve um forte
intercâmbio entre a ação política e a produção intelectual. O enlace entre prática política e
reflexão permitiu várias inovações analíticas e interpretativas da sociedade brasileira.
Destarte, a noção do senso comum de “movimento social”, rejeitada nas teorias da
marginalidade que enfatizavam o atraso dos comportamentos das classes populares, ganhou
um campo de discussão nas universidades: os paradigmas de análise e modelos de ação
circulavam entre atores e pesquisadores dos movimentos sociais. Para parcela da Ciência
Social e da História interessada em afirmar algum tipo de “neutralidade” ou “distância” do
201
objeto de pesquisa, esses estudos eram vistos com alguma parcimônia, pois não
problematizavam a inserção sociopolítica do pesquisador na realidade social analisada, um
ponto cego das investigações.
Uma das noções que estruturou esse campo de discussão foi a classificação de “velho”
e “novo” movimento social. Esses termos expressavam a surpresa dos intelectuais com os
protestos dos anos 1970 e 1980, e a construção de uma temporalidade que contrastava a
experiência democrática do período de 1945 a 1964 com a que se estava constituindo. Essa
imaginação sobre o tempo legitimava as pesquisas sobre a renovação das organizações da
sociedade civil e dos modos de agir político, evidenciando, sobretudo, a pluralidade das vozes
e das formas de lutar por direitos. Contudo, como observou Boschi, muitas lideranças e
organizações envolvidas no processo de redemocratização tinham sua origem nos anos 1940,
1950 e 1960. As análises e estruturas temporais que antagonizam o “velho” e o “novo” na
compreensão das práticas de protesto
superestimam os movimentos sociais contemporâneos, vistos como um corte radical
com a esfera das instituições democráticas liberais. A ênfase na inovação e na
descontinuidade, por sua vez, pressupõe um tal grau de autonomia dessas práticas
coletivas que a mudança ocorreria sem reproduzir nenhumas das condições
existentes (BOSCHI, 1987: 17).
A memória social produzida, em diferentes perspectivas políticas, pelos movimentos
sociais do período enfatizaram as temporalidades que escapavam à visão dicotomizada do
“velho” e “novo”, mas também a reafirmavam à medida que justificavam uma nova inserção
política. Velho e novo, assim como antigo e moderno, constituíam-se em noções para a
análise da história e também para a construção de projetos políticos. Nesse contexto, as
memórias da UTF e FTFBH foram revisitadas. O livro As lutas do povo do Borel (1979), de
Manoel Gomes, e o memorial Cabana do Pai Tomás – História (1984), da Secretaria de
Trabalho e Assistência Social, refazem o percurso da luta pelo direito de moradia, mostrando
a importância da experiência política dos movimentos de favelas da UTF e da FTFBH,
respectivamente, nos anos 1950 e 1960.
As memórias de As lutas do povo do Borel e Cabana do Pai Tomás - História
inseriam-se na semântica política dos movimentos populares dos anos 1970 e 1980. Como
analisou Sader (1988) e Doimo (1997), os discursos políticos constitutivos dos movimentos
populares reivindicavam a democratização do regime e a ampliação da noção de cidadania,
numa extensão da participação para além do sistema de representação político-partidária. A
ideia do “povo como sujeito” compareceu no discurso de diversos atores: “a Igreja Católica,
202
especialmente seus atores progressistas”; segmentos da intelectualidade acadêmica,
principalmente os que fundaram centros independentes de pesquisa; e “agrupamentos de
esquerda, dilacerados pela ditadura e desencantados com fórmulas violentas de ação
transformadora” (DOIMO, 1997: 75).
No campo heterogêneo das práticas e representações políticas do “povo como sujeito”,
as imagens do passado da UTF e da FTFBH eram resignificadas por grupos católicos e
comunistas que disputavam a mobilização política nas favelas (LIMA, 1983; CUNHA, 2003;
OLIVEIRA, 2009; AMOROSO, 2012257
). Além disso, os discursos de fundo reformista e
nacionalista que balizaram as mobilizações supralocais da UTF e FTFBH eram minimizados.
Na refiguração da memória social, valorizou-se uma noção difusa de “comunidade” que podia
obscurecer o amplo escopo de alianças dos “trabalhadores favelados” com partidos e
sindicatos na conformação da luta pelas reformas de base nos anos 1950 e 1960. Essa
mudança de perspectiva nas ressignificações da memória não foi gratuita. De acordo com
Lima (1989), os movimentos sociais no período de 1950 e 1960 quase sempre foram taxados
como populistas e clientelistas, eram vistos como secundários para a compreensão das
práticas sociais pertencentes às classes populares:
Como legado dessas abordagens [em torno do conceito de populismo], os estudos
sobre movimentos sociais urbanos no Brasil tenderam a desqualificar as
mobilizações que surgiram no período anterior a 1964. Esses estudos, que podem ser
vistos como que determinados pela conjuntura de redemocratização da sociedade
brasileira, observaram as mobilizações dos anos 70 a partir de uma concepção
analítica, segundo a qual manifestações coletivas são vistas como expressões
populares, alternativas, independentes e espontâneas. Se a participação política dos
trabalhadores urbanos nos anos 50 e 60 for interpretada como fenômeno atrelado ao
Estado populista, os estudos sobre movimentos sociais urbanos que se multiplicaram
nos anos 70 procuravam explicar a emergência das massas urbanas agora com uma
nova face política (ativa, mobilizada, consciente de seus direitos de cidadania)
(LIMA, 1989: 34).
Na academia, as primeiras interpretações que se interessaram pelas mobilizações da
UTF e da FTFBH, tentando cumprir a tarefa de historicizar essas experiências, surgiram do
questionamento e diálogo com a memória social. A UTF recebeu um tratamento específico
em O Movimento dos favelados do Rio de Janeiro, numa dissertação de mestrado de Lima
(1989). Ela buscava recuperar a história das mobilizações que ocorreram em outros
momentos, “tanto como forma de resgatar experiências de organização das classes populares
quanto como contribuição para a análise do que de fato existe de novo nos movimentos que
257
Destaco principalmente a tese de Amoroso (2012), que analisa de forma vertical como se constituíram a
editora Muro, ligada ao Partido Comunista, os confrontos entre o Partido Comunista e a Ação Popular no Morro
do Borel e o resgate dessa memória de luta nos anos 1990.
203
vêm se desenvolvendo no período mais recente” (LIMA, 1989: 2). A autora percorreu o
período de 1954 a 1973 e mostrou a perenidade de alguns sentidos nas ações coletivas em
favelas, tanto no âmbito da UTF quanto no da Federação das Associações de Favelados do
Estado da Guanabara (FAFEG). Em Belo Horizonte, Somarriba coordenou o estudo as Lutas
urbanas em Belo Horizonte (1984). A partir de um levantamento das associações existentes
na década de 1980, construiu um quadro histórico da formação dos associativismos de bairros
e favelas desde o início do século XX. A FTFBH era parte importante e recebia algum
destaque na sua análise, evidenciando que a mobilização ocorrida no final da década de 1950
tinha algum tipo de continuidade na União dos Trabalhadores de Periferia (UTP), fundada em
1970 na favela Pedreira Prado Lopes (SOMARRIBA; VALADARES & AFONSO, 1984: 70).
De forma indireta ou direta, analisando conjunturas diferentes, Lima (1989) e
Somarriba (1984) mostravam como as favelas eram parte da evolução urbana no século XX,
marcada pelas políticas higienistas, práticas de controle social e distribuição de recursos
desiguais. A sociologia urbana francesa de corte marxista (CASTELLS, 1989; LOJKINE,
1981) foi referência constante na análise dos associativismos civis urbanos dos dois trabalhos.
Tencionaram explicar as reivindicações de moradores e os confrontos com o Estado dentro
dos quadros do capitalismo. Para tanto, lançaram mão do conceito de bens de consumo
coletivo: itens que eram produzidos pelo poder público, necessários à reprodução do capital e
de um modo de vida nas cidades (o transporte público, esgoto, ruas, escolas). A produção
desses bens de consumo realizou-se na fase do capitalismo monopolista, quando o Estado
concentrou investimentos no meio urbano, visando à reprodução da força de trabalho e à
viabilização de investimentos industriais e comerciais. Ao contrário da suposta “desordem”
do crescimento urbano e da figura de um Estado “neutro”, os trabalhos produzidos nesse
marco teórico mostravam o poder público como indutor e construtor de uma ordem urbana
desigual. Os movimentos sociais urbanos surgiram nesse contexto, explorando a politização
da cidade e expressando as contradições de um Estado que se legitimou como provedor de
“desenvolvimento/bem-estar coletivo”, mas reprodutor das desigualdades engendradas pelo
capitalismo. Dessa forma, as pesquisadoras colocavam uma interrogação na pressuposta
divisão entre luta operária na fábrica e no local de moradia.
O espaço deixava de ser uma categoria neutra e passava a ser estruturante de ações e
práticas sociais258
. De acordo com Santos (1981), a “cidade e o urbano seriam loci, palcos
258
Tal viés interpretativo teve vários desdobramentos. Na História social, ele tem ganhado destaque em várias
outras análises que revisitam a produção intelectual sobre movimentos sociais urbanos, para discutir as culturas
“operárias” ou “populares” (Cf. DUARTE, 2002; FORTES, 2004; FONTES, 2010; DUARTE & FONTES,
204
naturais dos conflitos e ajustamentos pelo poder nas sociedades modernas” – o lugar em que
cotidianamente surgiam “o conflito social ligado diretamente a organização coletiva do modo
de vida” (SANTOS, 1981:22). Nessa seara, que compreende o espaço urbano como locus das
disputas de poder, argumentamos que os espaços classificados como favelas foram
submetidos a formas de classificação, saber e práticas estatais que foram estruturadas nos
anos 1950. A identificação das favelas foi um dos modos de definir um território na
comunidade política para justificar um conjunto de controles sociais e legitimar uma visão
desses territórios como espaços transitórios da cidade. Neste capítulo e nos que seguem,
vamos compreender como a identificação das favelas foi apropriada pelos movimentos da
UTF e da FTFBH para ampliar a noção de direitos dos “trabalhadores favelados”. Interessa-
nos compreender a circulação das práticas de protestos no movimento social da UTF e
FTFBH entre 1954 e 1964.
5.2 Uma mudança nas performances dos associativismos de bairros e favelas: o momento
das articulações dos movimentos sociais através de coligações e federações
As imagens de “desordem”, “turba”, “ralé”, “irracionalidade”, “espontaneidade”,
“anarquia”, “comunismo”, entre outras, permearam a descrição e análise dos protestos sociais
do século XVIII, XIX e XX. As ações coletivas que contestam as formas poder na
comunidade política foram constantemente estereotipadas. Em A multidão na História (1991),
Rudé criticou a Sociologia e Psicologia Social que, a partir de um estatuto de normalidade
para o comportamento individual nas sociedades e de lugares comuns para retratar as
manifestações coletivas, construíram “uma concepção geral da multidão que, ignorando toda a
evolução social e histórica, seria igualmente adequada a todas as épocas e todos os lugares”
(p. 8). Fugindo da estereotipia das mobilizações sociais e das teorias sociais normativas, Rudé
e outros historiadores buscam explicar as manifestações a partir da compreensão dos
2004; LEAL, 2011; FONTES & CAVALCANTI, 2011). Na Antropologia, o trabalho de Zaluar (1994) é uma
referência clássica para compreender como a análise das organizações populares foi paulatinamente deslocada
para a interpretação da violência urbana; vários outros fizeram trajetória semelhante a partir dos anos 1990 (Cf.
LEITE, 2000.; ALVITO, 2000; CAVALCANTI, 2003). Esses deslocamentos analíticos conduziram ao
apagamento da categoria “movimento social” e à diversificação de pesquisas. As investigações, cada vez mais,
reduziam a escala de análise sobre as práticas e representações dos atores e complexificavam a análise dos
conflitos urbanos. Ademais, o apagamento da noção de movimento social ocorre também com o declínio e
revisão da tradição marxista na História e nas Ciências Sociais. Para as ortodoxias marxistas, “movimento
social” e “luta de classes” eram expressões intercambiáveis na interpretação dos conflitos. Com a redução da
escala de análise, evidenciaram-se as dinâmicas de luta não só pelo viés de classe social, mas também de gênero,
etnia e outros caracteres da vida social.
205
objetivos, das estratégias de ação, das formas de organização e das motivações dos diferentes
grupos que se mobilizam259
.
O estudo das ações coletivas ganhava densidade e um terreno próprio para discussão.
Um dos autores da sociologia histórica que avançou na compreensão das manifestações
sociais e políticas foi Charles Tilly. Num diálogo com a historiografia dos protestos sociais, o
sociólogo observou que as mobilizações coletivas eram uma combinação paradoxal de ritual e
flexibilidade, constituem-se no aprendizado de repertórios de ações coletivas - “performances
relativamente familiares e modulares na qual um ator político faz reivindicações a outro”
(TILLY & TARROW, 2007: 440-442). Essas performances não existem em número irrestrito
e nem são inventadas a cada novo contexto de luta, elas se organizam como rotinas de
protesto: constituem-se no processo de aprendizado, escolha e legitimação na sociedade e no
grupo social de um número limitado de formas de ação, numa disputa que envolve conteúdos
materiais e culturais260
. A compreensão dos conflitos a partir do conceito de repertório não é
consensual e ganhou várias acepções na obra de Tilly e na literatura das Ciências Sociais
(ALONSO, 2012). Todavia é inegável que as metáforas do teatro (repertório e performance)
usadas na compreensão dos protestos surgiram num contraponto aos paradigmas mecanicistas
e sincrônicos, que não consideram a história de uma dada formação social e política.
Nesse sentido, a ação coletiva é compreendida quando colocada em perspectiva
histórica, reconhecendo a maneira como as formas de agir em conjunto variaram no tempo e
no espaço. Ao recorrer à noção de “movimento social” para nomear um fenômeno, estamos
invariavelmente reconhecendo certo repertório corrente na contemporaneidade. Os
movimentos sociais foram “inventados no último quartel do século XVIII, na Europa
Ocidental e na América do Norte, [quando] as pessoas começaram a criar um novo e
promissor fenômeno político. Elas começaram a criar movimentos sociais” (TILLY, 2010:
135)261
. Assim, o repertório do movimento social não se refere a todos os tipos de conflito.
Existem outras possibilidades para desenvolver um confronto (motins, cismas, revoluções,
disputas eleitorais, terrorismo, golpes de estado). Movimento social conjuga um conjunto de
performances que reúnem um número significativo de pessoas, para demonstrar “vontade,
unidade, comprometimento e orgulho” com alguma pauta ou programa (MACADAM,
TARROW, TILLY, 2004).
259
Para uma discussão e análise das manifestações na história, cf. HOBSBAWN, 1979; RUDÉ, 1991; JULIA,
1998; THOMPSON, 1998. 260
Os repertórios de ação coletiva modificam-se paulatinamente, ao longo de vários anos, ou de forma abrupta,
no momento crítico – hinge (na tradução literal do inglês, dobradiça). Para discussão e observação do uso do
conceito de repertório de ação coletiva, cf. TRAUGOTT, 1995; TILLY, 1995; ALMEIDA, 2008. 261
TILLY, 2010: 135.
206
O repertório do movimento social e suas variações tiveram como pressuposto a
existência de sociedades desiguais, mas calcadas no princípio da igualdade jurídica e do
direito de expressão. De acordo com Tarrow (2001), a difusão da imprensa e a formação dos
Estados nacionais no século XVIII e XIX “não produziram, por si só, novos
descontentamentos e conflitos, mas difundiram maneiras de preparar reivindicações que
ajudaram as pessoas comuns a pensar-se como parte de coletividades mais amplas e no
mesmo plano que seus superiores” (p. 66). Assim os movimentos sociais tornam-se comuns
em comunidades políticas que se estabeleciam com algum tipo de igualdade civil e uma esfera
pública que dava algum tipo de visibilidade às manifestações262
. Em princípio, o fenômeno do
“movimento social” surgiu colado às lutas operárias da década de 1840, mas depois ganhou
outras esferas. Destarte,
a maioria dos analistas de movimentos sociais no século XIX distinguiu-os por
programas, organização e contexto. O próprio Engels adotou o plural em seu
prefácio da edição inglesa de 1888 do Manifesto, observando que “Onde quer que
movimentos proletários independentes continuaram a mostrar sinais de vida, eles
foram implacavelmente perseguidos”. A partir do final do século XIX, os analistas
políticos não apenas regularmente pluralizaram os movimentos sociais, como
também os estenderam para além dos proletários organizados, para camponeses,
mulheres e uma ampla variedade de outros demandantes (TILLY, 2010: 110).
Ao longo dos séculos XIX e XX, o movimento social foi um recurso usado por aqueles
não tinham poder no sistema político. Nesse período, difundiu-se a percepção de que grupos
sociais sub-representados no sistema social podiam interferir no quadro político e econômico,
num esforço conjunto de combinação de campanhas, programas e manifestações de unidade.
Os grupos subalternos e dominados colocavam em xeque o consentimento com as estruturas
dominantes, reivindicando algum tipo de soberania popular na definição dos limites do
exercício do poder. Embora os movimentos singulares discordem ardentemente entre si a
respeito de suas pautas, eles apreenderam que “o aparato conjunto de campanhas e
demonstrações de vontade, unidade, orgulho e comprometimento corporifica a alegação mais
geral de que os assuntos públicos dependem, e devem depender, do consentimento dos
governados” (Idem, p. 150). Em consequência disso, variações do repertório dos movimentos
sociais foram acionadas por categorias de trabalhadores, feministas, negros, ambientalistas,
bairros, favelas, presos políticos, índios, entre outros.
262
Para a relação entre a formação do Estado moderno e o surgimento dos movimentos sociais, numa análise
sincrônica e diacrônica, cf. TARROW, 2001; TILLY, 2006; MACADAM, TARROW & TILLY, 2004. .
207
Os movimentos sociais de “trabalhadores favelados” em pauta estavam numa longa
trajetória de aprendizado e legitimação de protestos urbanos ao longo do século XX. Tanto no
Rio de Janeiro quanto em Belo Horizonte, cartas, memorandos, abaixo-assinados, petições
públicas, denúncias de jornais, formações de associações e outros recursos foram acionados
por bairros e favelas, a fim de travar conflitos diante do processo de urbanização ocorrido na
Primeira República. No Rio de Janeiro, em 1913, os moradores do Morro de Santo Antônio
encontravam “recursos no Poder Judiciário para dilatar, protelar e até anular a ação” da
Diretoria de Saúde Pública no intento de remoção. Na década de 1920, já encontramos a
fundação do Centro Político de Melhoramentos do Morro Pinto, fundado em 12 de outubro de
1925, estabelecendo como objetivo “empregar todos os esforços possíveis aos poderes
públicos, para que fossem melhoradas as ruas que dão acesso ao Morro do Pinto e
adjacências, assim como garantir que tais ruas fossem servidas por bonds e luz elétrica”
(AMOROSO & GONÇALVES, 2012). Em Belo Horizonte, os moradores da vila Pedreira
Prado Lopes, em 1926, escreveram um memorial ao prefeito, pedindo a regularização da
posse do lote. O documento expunha que, há muitos anos, obtiveram a concessão de se
estabelecerem nos terrenos da localidade, onde construíram suas “habitações, com
dificuldades, realizando benfeitorias (sic) nos lotes, na expectativa de que poderiam adquiri-
los da Prefeitura em título definitivo”; reconheciam “que já havia sido enviado ao Prefeito
anterior requerimento, pedindo que fossem concedidos os referidos lotes mediante condição
de pagamento estipulado, como já se tinha dado em outras áreas suburbanas, e que a resposta
foi positiva, mas não cumprida” (GUIMARÃES, 1991: 153-154).
Essas ações expunham injustiças constitutivas do segregacionismo que as reformas
urbanas de cunho higienista legaram a cada cidade no início do período republicano. Elas
evidenciavam a precariedade dos serviços, a estrutura urbana desigual e, no caso das favelas,
os riscos dos moradores em relação à perda da moradia, da posse do lote e das benfeitorias
construídas com recursos próprios. Além disso, à medida que o sistema político tornava-se
competitivo nos centros urbanos e as mobilizações dos trabalhadores evidentes, lideranças
políticas de massa surgiram, tendo como foco a denúncia das desigualdades sociais nas
cidades e a mobilização de associações de moradores. No Rio de Janeiro, um dos marcos
dessa dinâmica política foi o governo municipal de Pedro Ernesto (1933-1937). Esse foi um
dos primeiros a reconhecer a importância política das favelas: visitou-as, favoreceu o
atendimento aos moradores e a fundação de Centros de Melhoramento, concedeu subvenções
às escolas de samba. No reformismo social propalado pelo prefeito e por Vargas, as favelas
ganhavam destaque com a proteção contra possíveis ações de despejo, como ocorreu no
208
Morro de São Carlos em 1932. Em Belo Horizonte, não existiu um prefeito ou um marco
político que tivesse tal expressão para as vilas e favelas, pois os poderes da municipalidade
foram subordinados ao governo estadual na maior parte do tempo. Entretanto se reconhece
que, com a abertura política dos 1930 e o aumento da disputa eleitoral, houve uma
proliferação de criação de Centros Pró-Melhoramento em diversas vilas263
.
A estrutura de governo das cidades era central nas mobilizações de bairros e favelas.
Após o fim do Estado Novo, a Constituição de 1946 deu vazão ao municipalismo, ampliou os
direitos políticos e colocou o urbano como lugar central para exercício da política de massa.
Em 1947, os cidadãos do Rio de Janeiro voltaram a eleger membros da Câmara Municipal,
deputados federais e um senador pelo Distrito Federal; nutriam-se esperanças de que o
prefeito fosse eleito, mas, após a aprovação da Lei Orgânica do Município (1947), ele
continuou sendo escolhido pelo presidente da República. No mesmo ano, Belo Horizonte,
pela primeira vez em sua história, passou a contar com um prefeito e uma câmara
regularmente eleitos. Rompia-se com o arranjo político que existiu na maior parte da metade
do século XX, cujos prefeito e Conselho Deliberativo eram escolhidos pelo governador de
Minas Gerais. No processo de expansão da política de massa e de reorganização dos
municípios, acelerava-se a constituição de associações civis em bairros, vilas e favelas na
interiorização das estruturas partidárias, formação de grupos de eleitores e politização dos
conflitos urbanos. A atuação do Partido Comunista na fundação de Comitês Democráticos foi
um dos marcos nacionais dessa nova configuração, mas que deve ser analisado tendo em vista
a experiência da política urbana de cada localidade 264
.
As práticas associativas da UTF e da FTFBH estavam inseridas nesse longo lastro nas
oportunidades geradas pela competição eleitoral, aproximação de partidos das associações de
bairros e legitimidade da luta por moradia e reivindicações de melhorias na arena política
urbana. Na segunda metade da década de 1950, as Federações, Confederações ou Uniões de
associações de moradores surgiram tendo como base as formas associativas já constituídas ao
longo da história republicana, revitalizadas num momento de expansão da democracia de
massa. Nessa conjuntura, as estratégias de formar federações ou uniões, nem eram fatos
isolados às favelas, nem algo particular ao Rio de Janeiro e à Belo Horizonte. Elas
263
Para uma história social da política de massa e sua relação com as associações de moradores no Rio de
Janeiro, cf. CONNIFF, 2006; GONÇALVES, 2010: 75-82; SILVA, 2005: 51-56; SARMENTO, 2011. Para a
trajetória de Belo Horizonte, cf. GUIMARÃES, 1991: 195-197; SOMARRIBA, VALADARES & AFONSO,
1984: 57; SILVA, 1998. 264
Para a discussão sobre essa relação entre política urbana e comunistas, cf. PANDOLFI, 1995: 144-155;
PANDOLFI & GRYNSZPAN, 2002: 238-255; GUIMARÃES, 2009; SOARES, 2010: 103-119; SILVA, 2005:
62-65; PEREIRA, 2007; FONTES, 2010: 211-237; DUARTE, 2002: 21-40.
209
relacionavam-se com um quadro de mudança nas performances associativas de moradores
que passaram a se organizar de maneira supralocal: em São Paulo, criou-se a Federação das
Sociedades de Amigos de Bairros e Vilas de São Paulo (Fesab) no ano de 1954; sobre o ano
de 1959, encontrei o registro de um evento que congregava as Sociedades de Bairros na
cidade de Salvador265
.
Nas duas cidades em pauta, a mudança na forma de ação dos cidadãos ocorreu não só
nas favelas, elas foram extensivas aos bairros. No Rio de Janeiro, nos anos 1950, foram
fundadas várias Sociedades de Amigos de Bairro, com a seguinte orientação: “reúnam os
moradores do seu bairro e salvemos a cidade”266
. Em 1959, essas entidades realizaram o seu
IV Congresso de Amigos dos Bairros. Tinham como proposta a formação da Federação de
Amigos de Bairros, que não foi organizada: entendiam que cada bairro deveria trabalhar por
conta própria seus problemas e que uma federação traria questões políticas prejudiciais às
associações e seus embates267
. Segundo Boschi, outro congresso foi realizado no início dos
anos 1960, como também foi cogitada a organização de uma federação, mas o projeto perdeu
força na administração de Carlos Lacerda, com a estruturação administrativa do Estado da
Guabanara268
. Em Belo Horizonte, em 1963, moradores de bairros e vilas reuniram-se na
Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI) “a fim de estudarem a
formação de uma Federação dos Comitês Pró-melhoramentos desses núcleos”, anunciando a
realização de um congresso de moradores, para enviar uma “carta de reivindicações” à
Prefeitura269
. Nesse mesmo ano, várias associações de bairro já haviam organizado
manifestações conjuntas contra o aumento das passagens de ônibus270
.
265
FONTES, 2010: 276; SOCIEDADE de Bairros realiza congresso – declaração de princípios nacionalistas.
Novos Rumos. Rio de Janeiro, 07 a 13/8/1959, p. 10. 266
PREZADO LEITOR. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 03/04/1958, p. 3. Eram regiões que participaram
do movimento de Sociedades de Amigos de Bairro: Leblon, Lagoa, Botafogo, Cabuçu, Gávea, Guadalupe,
Inhaúma, Leme, Madureira, Tijuca, Rio Comprido, Tomás Coelho, Urca, Lido, São Cristóvão, Santo Antônio,
Grajaú, Realengo, Jardim Botânico, Copacabana, Pavuna, Santa Tereza, Engenho Velho, Catumbi, Colégio,
Rocha Miranda, Brás de Pina, Marechal Hermes, vinte e nove associações ao todo. Número bastante expressivo,
levantado a partir do jornal Tribuna da Imprensa, e que vai além do número de associações registradas por
Boschi (1984). Este identificou o início do associativismo de bairros nos anos 1950 e demarcou a permanência
das atividades de 15 associações desse período nos anos 1980. Cf. BOSCHI, 1984: 64-65. 267
A TIJUCA e a Federação dos Amigos de Bairro. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 31/04/1959, p. 6. 268
A criação de várias sub-regiões na administração do espaço carioca trazia o conflito desenvolvido nas
associações para essas novas estruturas administrativas, retirando a força de entidades supralocais. Cf. BOSCHI,
1984: 64-65. 269
BAIRROS e Vilas em reunião hoje. Diário da Tarde. Belo Horizonte, 17/08/1963, p. 2. Segundo o grupo de
pesquisa coordenado por Somarriba, vários Comitês Pró-Melhoramentos surgiram em bairros a partir da
redemocratização em 1946, em momento correlato à criação de associações de favelas. Cf. SOMARRIBA,
VALADARES, AFONSO, 1984: 50. 270
CAMPANHA dos Comitês de bairros contra o aumento de passagens e ônibus. Diário da Tarde, 08/07/1963,
p. 2.
210
Na dinâmica dos conflitos urbanos, os associativismos representavam interesses de
classes, com o confronto de estilos de vida e de apropriações do espaço urbano. Vale a pena
apresentar as opiniões de algumas lideranças de associações de moradores de bairro em
relação às favelas, que mostravam concepções diferentes do direito à cidade. Essas
manifestações de líderes de associações de bairro, nem podem ser representativas da maioria
dos moradores, nem podem ser igualadas em virtude da configuração dos espaços de moradia
de cada cidade, mas servem para ilustrar a posição do associativismo de bairros em relação às
favelas na configuração do poder no período. Em 1959, em Belo Horizonte, por exemplo,
Waldemar Lima, líder do Comitê Pró-Melhoramentos do Bairro São Geraldo, procurou o
jornal para reclamar da proliferação de favelas. Na opinião dele, elas surgiam em todo lugar
da cidade: “exploradores” construíam casas em terrenos impróprios e as anunciavam nos
“Pequenos Anúncios dos jornais”; favelados “invadiam” lotes de propriedade privada ou do
poder público; e lugares públicos de uso comum dos moradores dos bairros eram
desrespeitados por “favelados” e “exploradores”. Nesse cenário de uma cidade em ruína, o
morador do bairro São Geraldo concluía que “o direito de propriedade passou a ser mito, já
que os terrenos, sejam eles de quem for, [eram] ocupados indistintamente por favelados ou
criminosos exploradores do povo”; cobrava-se rigor da fiscalização e soluções “drásticas”
para as favelas 271
. O bairro São Geraldo estava próximo das margens do Rio Arrudas, lugar
de concentração de grande número de favelas que foram removidas na passagem dos anos
1960 para 1970. No Rio de Janeiro, Claudio Ramos, presidente da Associação dos Amigos do
Leblon (SALE) e um dos defensores da federalização das sociedades de Amigos de Bairro,
discursou, nos seguintes termos, numa assembleia: “as verdadeiras autoridades, os donos
desta cidade, somos nós, os contribuintes, que sustentamos a administração e temos, por isso
mesmo, o direito de exigir que o nosso dinheiro seja bem empregado”; em seguida, ele
“abordou o programa das favelas, pois [considerava] que o saneamento da Praia do Pinto, pela
assistência moral e material aos seus moradores, [deveria] ser um dos principais objetivos da
SALE”272
. Quando o presidente do SALE falava em “saneamento moral e material”, referia-
se à remoção dos moradores da Praia Pinto; posteriormente, a favela foi removida no governo
Lacerda.
Ainda que representem lugares muito diferentes – não é intenção desta pesquisa
aprofundar o tema – nos dois casos, e nas consultas dos jornais da época, a favela aparecia
271
PRESIDENTE de Comitê protesta contra a proliferação de favelas. Diário da Tarde. Belo Horizonte,
09/11/1959, p. 8. 272
QUEM MANDA na cidade é quem paga impostos. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 08/05/1958, p. 2.
211
como alteridade negativa dos moradores de bairros e de suas associações. Na arena de conflito
da cidade, os comitês e sociedades de amigos de bairro aceitavam e defendiam soluções para
o problema das favelas que não levavam em conta a representação dos interesses dos
moradores dessas áreas. Tomavam como parâmetro de intervenção uma visão que reforçava a
imagem da favela como um espaço ilegal e estigmatizado pela pobreza, ela devia ser excluída
do espaço urbano próximo dos bairros. Apesar dessa oposição, a opção de reunir várias
associações de moradores estava inserida dentro de um parâmetro de época. Essa iniciativa foi
intentada, com a finalidade de conceber uma nova unidade a um coletivo de moradores,
redesenhando interesses comuns e pressionando as autoridades públicas a atenderem às
reivindicações. A formação de coligações, uniões e federações era uma inovação na forma de
realizar os conflitos urbanos.
O partilhar e a adaptação de repertórios de ação coletiva não significaram uma
semelhança no conteúdo das reivindicações. Nesse sentido, merece explicação sobre o porquê
de as favelas conseguirem formar federações ou coligações que os bairros não chegaram a
concretizar. Primeiro, as associações de bairro estavam insatisfeitas com a vida na cidade, os
governantes e os problemas urbanos, mas não encontravam um ponto em comum para
demandarem. No caso das favelas, havia algo consensual em torno do direito de moradia, do
risco que compartilhavam de perder o abrigo e os investimentos cotidianos feitos na casa e
nas suas adjacências. Em segundo lugar, deve-se observar como o processo de identificação
das favelas contribuiu para esse processo, estabelecendo um parâmetro comum de práticas
estatais, que consideravam as favelas um espaço transitório que seria extinto das cidades. A
gestão dos territórios dos bairros estava marcada por grandes diferenças, o que dificultava a
formação de uma pauta comum de ação.
Analisando os movimentos sociais de favelas, Leite e Machado da Silva têm chamado
a atenção para a dificuldade em “falar para e pelos(as) moradores(as) de favelas”,
reconhecendo que “raramente suas organizações e seus movimentos têm obtido sucesso de
evitar a fragmentação de suas demandas e de sua base social” (LEITE & MACHADO DA
SILVA, 2004: 65). Em que pese a heterogeneidade da base social e dos espaços urbanos
constituídos nas diferentes favelas, tanto a UTF quanto a FTFBH tiveram perenidade no
tecido social, conseguiram reunir grande quantidade de moradores e associações e
mantiveram aberto o conflito para conquista de melhorias e do direito de moradia. Ou seja,
foram minimamente bem-sucedidas no intento de formar e representar interesses dos
212
moradores nos conflitos pelo direito à cidade. Isso deve nos levar a refletir sobre a maneira
como esses associativismos se articularam no período273
.
5.2.1 O associativismo de trabalhadores favelados
Os movimentos da UTF e da FTFBH estavam relacionados ao contexto de pós-guerra,
ao processo de abertura política, à luta dos trabalhadores pela expansão e ao cumprimento dos
direitos sociais e à retomada dos direitos civis.
Registradas em cartório, as associações de favelas usavam dos direitos de livre
associação para fundar entidades que lutavam por melhoramentos urbanos e para evitar
despejos coletivos. Como expressão do gozo de direitos civis, a solidariedade tecida entre as
associações postulava a não discriminação quanto a “credos religiosos ou políticos”274
.
Reiterar a laicidade e representação dos interesses de um grupo social, sem especificar
finalidades políticas, era parte do rito de fundação das associações civis desde a instauração
da república no país. Na virada do século XIX para o XX, a proliferação de sociedades para
diferentes finalidades, sem uma clara vinculação com a esfera política, foi uma clara resposta
à ampliação dos direitos civis após o fim da escravidão e com a instauração do regime
republicano (GRINGBERG, 2001; FONSECA, 2008; VISCARDI, 2011). O rito jurídico que
relembrava a liberdade de associação independente de fins políticos era enfatizado em vários
documentos e discursos: num papel timbrado da UTF, podemos encontrar o seguinte bordão –
“Defesa dos interesses dos favelados, sem objetivos políticos”. Numa explicação sobre a
finalidade da FTFBH em seu jornal, lia-se que a “Federação começou com apenas 9 favelas e
hoje conta com 41. Tal crescimento é motivado pela linha independente e democrática que
não faz qualquer imposição política ou religiosa aos seus membros”275
.
No caso dos movimentos sociais de trabalhadores favelados, a ênfase nessa liberdade
civil ultrapassava o sentido legal, para ganhar um significado prático. Primeiro, deve-se
considerar que a formação de sociedades civis era considerada um direito do cidadão, mas
convivia com a vigilância feita pela polícia política que se instituiu no país a partir no final da
273
As diferenças da base social das associações de moradores e a história da formação e mobilização social e
política de cada favela permanecerão como ponto cego de nossa análise. Optamos por construir uma escala que
enfatizasse as performances assumidas pela UTF e FTFBH, na tentativa de formar uma orientação comum em
relação à luta política. 274
Estatuto da Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte, 27/01/1960. CARTÓRIO GERO
OLÍVA; Projeto de Estatuto da União dos Trabalhadores Favelados, 04/04/1954. ARQUIVO PÚBLICO DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Pasta 1046. 275
Cabeçalho de um papel timbrado da UTF. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
Fundo DPS. Arq. Pasta 1046; O BARRACO. Binômio. Belo Horizonte, 20/08/1962, Caderno 3, p. 6.
213
década de 1920, em contraponto ao crescimento do movimento operário. Essa opressão se
robusteceu na ditadura do Estado Novo (1937-1945) e durante o período da Guerra Fria
(1945-1989). As duas entidades analisadas conviveram constantemente com a repressão da
polícia política, sendo ambas, em algum momento de sua trajetória, fechadas e proibidas de
funcionar. A polícia política podia incriminar e reprimir certos tipos de solidariedade, desde
que fossem vistas como contrárias a “ordem pública” e acusadas de serem “comunistas” –
caso que ocorreu com as duas entidades.
Em segundo lugar, a ênfase na liberdade civil de associação e no pluralismo era
contextualizada por inúmeras relações tecidas entre as associações com partidos políticos,
igrejas, sindicatos, autoridades públicas e outras instituições que tinham o foco de ação em
áreas pobres. A defesa do interesse dos moradores ficava sujeita à capacidade de circulação e
atendimento em diversas esferas, o que tornava importante a afirmação de pluralismo político.
Por último, a afirmação do pluralismo era uma maneira de congregar o maior número de
participantes. Era importante enfatizar a aceitação a diferentes posições religiosas e
perspectivas políticas para garantir adesões e conseguir a participação “da maioria”, com o
objetivo de efetivamente interferir no jogo político. No Rio de Janeiro, a UTF colocava-se
como representante de “450 mil favelados”; em Belo Horizonte, a FTFBH falava em nome de
“170 mil favelados”. Esses eram números retóricos, mas evidenciavam o intento de atingir e
representar a maioria dos moradores em favelas através de práticas de protestos que se abriam
para a participação de massa.
O número de associações listadas como participantes as entidades supralocais também
oculta a dinâmica fragmentada de mobilização, de acordo com a conjuntura de cada favela e
sua demanda. No Rio de Janeiro, quatro anos após a sua fundação, arrolava-se uma
participação de 38 associações próximas a UTF276
. Esse era um número bastante expressivo
diante do número de favelas identificadas nos censos (em 1949, 105; em 1950, 58; em 1960,
147 – números incertos, mas que servem de parâmetro para a afirmação da extensão do
associativismo supralocal). Em Belo Horizonte, a Federação foi fundada em 1959 com nove
entidades e, em 1964, reunia 55 associações277
; no censo de 1965, foram identificadas 77
favelas. A UTF e FTFBH conseguiram atingir grande parte das favelas e, em diferentes
contextos, criar vínculos de solidariedade entre diferentes localidades em torno de pautas de
reivindicação e na difusão de modelos de associativismos.
276
Folheto Estatuto da União dos Trabalhadores Favelados, 1958. Arquivo Pessoal de Ruth Pereira Barros. 277
Cf. SOMARRIBA, VALADARES & AFONSO, 1984: 70.
214
5.2.2 “Centros de Trabalhadores Favelados” e “Uniões de Defesa Coletiva”
Nem todas as associações civis de favelas participavam da UTF e da FTFBH. Os
movimentos sociais de trabalhadores favelados atuaram numa arena específica de conflito,
criando modelos associativos que conformavam uma pauta e discurso político acerca das
favelas e da luta pelo direito de moradia. Associações para fins recreativos, religiosos, entre
outras entidades que existiam nas favelas, não estavam necessariamente ligadas ao
movimento social de trabalhadores favelados, podiam assumir atitudes de colaboração,
contraposição ou competição, a depender de cada localidade e contexto.
Os movimentos sociais criaram formas associativas voltadas especificamente para
atuar na luta pela moradia nas favelas. No Rio de Janeiro, a UTF difundiu um associativismo
específico: os “Centros dos Trabalhadores Favelados” (CTF). Ainda que algumas fossem
fundadas com diferentes nomes em seus estatutos – “Associações Pró-Melhoramentos”,
“Centro Pró-melhoramentos”, “Associação de Moradores”, procurava-se, no espaço público,
dar certa unidade a essas entidades, reconhecendo-as como “Centros de Trabalhadores
Favelados”, “diretório” da UTF, “centros da UTF” ou “Centros de União”. Esse
enquadramento do associativismo civil levou à formação de símbolos que representassem o
intento dos trabalhadores favelados, como o “hino” abaixo:
União dos Trabalhadores Favelados
Uma esperança nos nossos corações!
Todos unidos para a luta organizados
Em defesa de nossos barracões! (bis)
Nós já temos Centros de União
Não vivemos sem defesa nem à toa
Ombro a Ombro nos mostraremos à Nação
Que quem mora na favela é gente boa!278
O hino foi composto por Rafael Carvalho, artista do Morro Salgueiro e membro do
Departamento Cultural da UTF. Ele foi cantado em festas de fundação de entidades, em
shows de calouros e outras ocasiões festivas organizadas pelas associações, e numa
manifestação da UTF na Câmara Federal279
. O hino apresentava uma contraposição ao
estigma de classes perigosas. Narrando que “quem mora na favela é gente boa”, que eram
“unidos” e “organizados”, que se identificavam como “trabalhadores favelados”, as imagens
278
MAIS UNIDOS favelados na defesa de seus lares. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 08/02/1955, p. 8. 279
CONCENTRAM-SE, na Câmara, favelados da Independência. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 19/02/1955,
p. 2.
215
difundidas no hino contrapunham-se à retórica da marginalidade social. Além disso, o hino
identificava que o principal motivo da luta dos moradores era a defesa “dos barracões”. Nesse
mesmo sentido, as “lutas” do morro do Borel contra as tentativas de despejo tencionadas na
justiça pela Borel Meuron Imóveis S.A eram divulgadas e tidas como exemplares para as
favelas. Defendendo o direito de posse contra o de propriedade reivindicado pela Borem
Meuron, foi fundada a União de Trabalhadores Favelados em 1954. Nas palavras de Edmar
Morel, o Morro do Borel era o “quartel general” das favelas280
.
Em Belo Horizonte, as associações de moradores que participavam da FTFBH eram
identificadas como “UDC” – União de Defesa Coletiva. Elas também eram registradas com
vários nomes (Associação Pró-Melhoramentos, Comitês de Defesa Coletiva, Associações de
Defesa Coletiva, Associação de Moradores), mas publicamente elas reconheciam-se como
UDCs. O reconhecimento do associativismo de defesa coletiva remetia à importância da luta
contra o despejo coletivo na Vila dos Marmiteiros (depois nomeada como Vila São Vicente
de Paulo). Em 1949, a primeira UDC foi criada na Vila dos Marmiteiros quando essa foi
ameaçada de despejo coletivo pela Companhia Mineira de Terrenos Ltda. Esse tipo de
associação cresceu para outras localidades nos anos 1950 e início de 1960, divulgando um
discurso que reconhecia a exemplaridade da Vila dos Marmiteiros e o significado daquela luta
política. Em 1964, quando foi fundada a UDC da Vila Frei Josafá, um orador relembrou a
origem do movimento: ele “fez um ato de louvor aos moradores pela iniciativa que tiveram
em organizar uma diretoria para dirigir os destinos da vila”, dizendo que em Belo Horizonte
surgiu essa “iniciativa”, “daqui da Vila São Vicente”281
.
Através de mobilizações públicas, formação de associações e ações travadas na
Justiça, os movimentos sociais de trabalhadores reivindicaram o direito de posse sobre os
lotes, assim como o direito de moradia. Criticavam os “exploradores”, “grileiros”,
“latifundiários urbanos” e as trajetórias de “fundação” e vivência em favelas durante bastante
tempo, reclamaram o direito de posse e usucapião, previsto no Código Civil de 1916.
Ademais, a Constituição de 1946 reconhecia a função social da propriedade privada (art. 145),
garantindo a intervenção do Estado na economia em favor do “trabalhador e sua família”. Os
movimentos de trabalhadores favelados constituíam uma arena de conflito, arregimentando os
moradores e setores de uma esquerda anticapitalista contra empresas imobiliárias e outros
280
MOREL, Edmar. Xarope não resolve drama de favela. Última Hora. Rio de Janeiro, 05/11/1955, p. 6. 281
Ata de Assembleia Geral da Vila Frei Josafá, 19/10/1964. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS.
Arq. Pasta 0121.
216
atores econômicos que almejavam a remoção, o despejo coletivo ou o controle do comércio
de lotes e moradias nas favelas.
Nessa arena de conflito, a UTF e a FTFBH colocavam em evidência as desigualdades
urbanas no capitalismo brasileiro e o reconhecimento da autoconstrução como meio de acesso
à moradia na cidade. Segundo Bonduki (2004), o fenômeno da autoconstrução no Brasil
generalizou-se nas periferias e favelas a partir da década de 1930. O processo de expansão das
favelas, das vilas e de outras formações urbanas informais esteve associado à alteração do
padrão de consumo nos grupos populares, que deixou de ser a casa ou o cômodo de aluguel e
passou a ser a conquista da casa própria e a posse ou propriedade do lote. Nesse período,
houve o rápido crescimento das cidades brasileiras, o cenário de uma inflação em expansão, o
controle dos preços dos aluguéis com a Lei do Inquilinato e a consequente tendência à
diminuição do mercado de construção de moradias voltadas para o aluguel e para segmentos
de baixa renda. Aconteceram ainda o surgimento da ideologia da “casa própria” e a
transformação da conquista da moradia em meio de poupança para os trabalhadores. Esses
fatores configuravam a habitação para as classes populares (BONDUKI, 2004).
5.2.3 Porta-vozes
No conflito constituído pelos movimentos de trabalhadores favelados, os
associativismos estiveram abertos a múltiplas manifestações, que eram encampadas por
moradores, lideranças políticas e diretorias de associações civis de favelas. As relações de
poder tecidas entre as “lideranças” de cada localidade, os moradores e as instituições
organizavam-se por vínculos constituídos dentro e fora das favelas, e assumiram dimensões
diferenciadas a depender da posição ocupada pelos atores. Isso permitia que concepções
plurais de engajamento se confrontassem no espaço dos movimentos sociais. Entretanto é
importante observar que os porta-vozes mais recorrentes desses associativismos supralocais
eram os “advogados de favelas” e as lideranças ligadas à esquerda.
A figura do “advogado da favela” ligado à UTF ou à FTFBH foi central na
configuração dos movimentos sociais. No Rio de Janeiro, Magarinos Torres Filho foi a
personagem chave na organização do movimento de trabalhadores favelados. Sócio e
“fundador nº1”, e “secretário geral” da UTF, o “advogado das favelas” era filho de jurista,
morava no bairro da Tijuca (Rua Conde de Bonfim, nº 1.381), e era membro do Partido
Comunista do Brasil (PCB). Participou da Associação de Juristas Democratas (1951), da
Confederação Mundial pela Paz (1952) e do Movimento Nacionalista Popular Trabalhista
217
(1955-1956), empenhando-se nos debates sobre a legalização do PCB e nas lutas
nacionalistas. Durante o período em que atuou como advogado das favelas, construiu uma
forte aliança com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e tentou se eleger mais de uma vez a
cargos eletivos para o legislativo da cidade 282
. Em Belo Horizonte, os “advogados das
favelas” eram também figuras centrais e dois tiveram destaque: Fabrício Soares e Dimas
Perrin. O primeiro foi deputado estadual em duas legislaturas pela União Democrática
Nacional (UDN); em 1958, rompeu com o partido, engajando-se nas lutas nacionalistas pela
defesa do petróleo e do minério. Nesse período, ele aproximou-se do Partido Socialista
Brasileiro (PSB) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), atuando junto ao movimento
sindical e no movimento de favelas. A partir de 1963, Fabrício Soares afastou-se da FTFBH, e
outro advogado assumiu a posição de “advogado das favelas”. Dimas Perrin foi operário,
formou-se em advocacia em 1962, e era membro do Partido Comunista filiado ao PTB. Entre
1963 e 1964, Dimas Perrin foi advogado da FTFBH e conquistou um mandato de vereador.
No Rio de Janeiro, Magarinos Torres Filho ocupou espaço central de articulação com
as associações. Vários representantes comunistas, trabalhistas e socialistas que atuavam no
legislativo carioca articularam-se com o “advogado das favelas”. A centralidade do advogado
tornou-o uma figura mitológica na memória das favelas (AMOROSO, 2012). Em Belo
Horizonte, os advogados de favelas não ocuparam essa mesma centralidade. Talvez isso se
explique pelo fato de a articulação entre as associações ser feita principalmente por Francisco
Nascimento. Em meados da década de 1950, ele mudou-se com sua família do interior da
Bahia para Belo Horizonte na Vila Nosso Senhor dos Passos, e trabalhou no Departamento de
Correios e Telégrafos. Na Bahia, ele foi membro do Partido Comunista, fazendo parte da
redação do jornal O Posseiro; em Belo Horizonte, ele fez parte do Partido Socialista
Brasileiro (PSB), participou do sindicato dos empregados de correios e telégrafos, e se
envolveu com campanhas que reuniam a esquerda em Belo Horizonte. Entre 1959 e 1961,
Hermogêneo Moura, morador da Vila Perrela, foi o presidente da FTFBH e Francisco
Nascimento foi “secretário geral” da entidade; entre 1961 e 1964, o segundo foi eleito
presidente da FTFBH e fez grande esforço para conectar as lutas políticas das associações
civis às esquerdas283
.
282
Essas informações foram coletadas a partir de uma pesquisa no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Cf. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Arq. Prontuário 47727; ARQUIVO PÚBLICO
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Pasta 40. Dossiê 2; ARQUIVO PÚBLICO DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Pasta 47. Dossiê 1. 283
Essas informações biográficas foram pesquisadas no Arquivo Público Mineiro. Cf. ARQUIVO PÚBLICO
MINEIRO. Fundo DOPS. Arq. Pasta 3020.
218
A UTF e FTFBH construíram relações distintas com os segmentos políticos, sobretudo
com as esquerdas. De comum, havia a aproximação de projetos e posições que alicerçaram a
aliança trabalhista-comunista a partir de 1954, com uma agenda de reformas nacionalistas. De
diferente, há a forma como os grupos católicos inseriam-se na dinâmica da cidade. No Rio de
Janeiro, a atuação da UTF opôs-se à Igreja Católica e aos projetos anticomunistas de
intervenção, visando ao controle social mais estrito das favelas. Desde 1947, a Fundação Leão
XIII criou Centros Sociais, com os objetivos de fornecer educação e assistência aos
moradores, bem como buscar melhoramentos para “subir os morros, antes que deles desçam
os comunistas”. A atuação da Cruzada São Sebastião tinha como um dos propósitos se
contrapor ao avanço da UTF. Isso criou um conflito com as lideranças ligadas à UTF e com
os católicos. Em Belo Horizonte, a formação do movimento social de trabalhadores favelados
era atravessada por figuras e lideranças católicas.
Personagens como padre Lage, padre Tarcísio Rocha, entre outros, criaram relações
estreitas com o associativismo de defesa coletiva. O personagem mais expressivo dessa
relação era o padre Francisco Lage Pessoa. Em 1949, o lazarista atuou na luta dos moradores
da Vila dos Marmiteiros contra o despejo. Nessa época, o Padre Lage era abertamente
anticomunista e antitrabalhista. Advertia os moradores dos riscos de contaminação pela
aproximação com os comunistas e trabalhistas. No início dos anos 1960, essa postura se
alterou, ele participava de reuniões na FTFBH, apresentava-se como “fundador” das UDCs e
defendia um discurso radical, pregando as reformas nacionalistas. Em 1962, Padre Lage foi
um dos fundadores da Ação Popular (AP) e do jornal homônimo. A AP reunia católicos da
Juventude Universitária Católica (JUC) e Juventude Estudantil Católica (JEC), rompendo
com a hierarquia da igreja. Em Belo Horizonte, a AP formou um “setor de favelas” que reunia
lideranças de UDCs. No governo João Goulart, Padre Lage também foi incorporado como
técnico da Superintendência de Reforma Agrária (SUPRA) e, posteriormente, esteve próximo
da teologia da libertação – expôs o vínculo entre a sua trajetória religiosa e política na
biografia Padre Lage – o “padre do diabo” (1981).
A trajetória e inserção de Padre Lage na dinâmica política de Belo Horizonte nos
ajudam a entender o viés religioso no movimento dos trabalhadores favelados, que podia
assumir tanto um caráter conservador quanto mais próximo das esquerdas. Essa dualidade não
deixou de aparecer na história do movimento de favelas de Belo Horizonte. Em 1963,
lideranças dissidentes da FTFBH tentaram formar a Organização Social dos Trabalhadores
Favelados de Belo Horizonte, com o intento de se contrapor às esquerdas que tinham
influência no movimento social. A organização era anticomunista e colaborava com a polícia
219
política, denunciando ações esquerdistas em associações de moradores (OLIVEIRA, 2011).
No caso do Rio de Janeiro, nos anos 1950 e 1960, desconheço algum personagem que tenha
penetração e possa simbolizar essa presença do catolicismo no movimento em pauta. Dom
Hélder Câmara, ainda que esteja vinculado à memória de apoio aos movimentos populares e à
luta por uma igreja aberta aos problemas sociais durante a ditadura militar no Brasil, estava no
campo oposto à UTF, que era tida como uma de suas adversárias na construção da Cruzada
São Sebastião.
5.3 A imprensa e os trabalhadores favelados
Tanto a UTF como a FTFBH mantiveram o intento de publicar algum tipo de jornal,
para difundir valores e notícias das várias associações coligadas. Os periódicos eram
constitutivos das redes forjadas pelos movimentos sociais, para lhes garantir a unidade entre
lideranças e moradores de favelas, e a visibilidade de discursos e reivindicações políticas.
Ocupar o espaço na imprensa permaneceu no horizonte de expectativa desses movimentos
sociais.
No caso do Rio de Janeiro, não encontramos exemplares, nem conhecemos o período
de circulação do periódico, mas tivemos a indicação da existência do jornal União dos
Favelados. Em 1955, encontramos a notícia de que ele custava 1 cruzeiro, era de Cr$ 25,00 o
custo da assinatura anual. Na época, o valor de um exemplar do Última Hora era de 2
cruzeiros o exemplar; o Imprensa Popular, 1,45; o Jornal do Brasil, 1,50; o Correio da
Manhã, 1,50. Portanto o União dos Favelados era barato e, possivelmente, tinha uma
periodicidade quinzenal. A redação do periódico era na Rua México, nº 21, sala 1.610: no
escritório de advocacia de Magarinos Torres Filho, o diretor do jornal, que exercia também a
condição de “Secretário Geral da UTF”284
.
284
“ÓRGÃO DA UNIÃO DOS TRABALHADORES FAVELADOS.
Direção de Magarinos Torres, filho, Secretário Geral da U.T.F
Redação: Rua México, 21, 16º, sala 1610, tel.22-6819.
Número avulso ….............................................................. 1.00
Número atrasado…........................................................... 2.00
Assinatura….................................................................... 25.00
Anúncio
Na 1ª página, por linha de 1 coluna................................. 25.00
Na 2ª, 4ª e 6ª página, por linha de 1 coluna...................... 10.00
Na 3ª, 5ª e 7ª página, por linha de 1 coluna....................... 2.00
Na 8ª e última página, por linha de 1 coluna.................... 20.00
AVISO: Os que tomarem assinatura de “UNIÃO DOS FAVELADOS”, durante os meses de Setembro e
Outubro do corrente ano, terão direito a concorrer, pela Loteria do dia 15 de Novembro, aos seguintes prêmios: 1
220
Entre 1956 e 1957, o jornal do Partido Comunista, o Imprensa Popular, publicou uma
coluna intitulada “Morros e Favelas”. Esta não tinha direção da UTF, nem estava vinculada a
uma direção específica. Segundo o impresso, a coluna era “inteiramente dedicada ao
noticiário dos acontecimentos de interesses dos favelados e de suas organizações”, de forma
que, “para viver e atingir os objetivos que determinaram a sua criação” a seção teria de “ser
feita com o noticiário vivo enviado pelos próprios e verdadeiros donos dessa seção”285
. A
coluna ocupava o espaço de uma coluna no periódico e anunciava nascimentos, festas de
aniversário, campeonatos de futebol, além das campanhas elaboradas por associações. Estava
aberta a qualquer manifestação que expressasse o interesse dos “trabalhadores habitantes em
favelas”, por isso as manifestações ligadas à UTF tiveram destaque na seção. A seção teve um
fluxo inconstante, não havia uma lógica e temporalidade certa para sua publicação.
Em Belo Horizonte, o jornal criado como “órgão da Federação dos Trabalhadores
Favelados” foi O Barraco. Circulou entre 1962 e 1964, com variabilidade na forma e
periodicidade. Entre janeiro e agosto de 1962, foi mimeografado e publicado mensalmente.
Ele tinha quatro páginas, divididas em duas colunas. Não temos certeza se era vendido ou
distribuído entre associações, nem temos precisão da tiragem por edição. Na sexta edição, em
agosto de 1962, havia a informação de que “o último número de O BARRACO teve uma
tiragem de 3 mil exemplares”, um número bastante expressivo 286
. Em princípio, não aparece
nenhuma pessoa responsável pela publicação, sugerindo que a edição era compartilhada entre
os diretores da FTFBH; posteriormente, Gumercindo Mendes de Morais, membro da UDC da
Nova Brasília, foi indicando como diretor-responsável. Ele recebia as notícias das diversas
associações que lhe eram enviadas para a sede da FTFBH. Obituários, aniversários,
nascimentos, torneios esportivos, além das reivindicações tinham espaço no jornal.
Entre agosto de 1962 até 1964, O Barraco alterou sua estrutura. Deixou de ser
mimeografado e passou a ser publicado como uma parte do jornal O Binômio, publicação
semanal dirigida por José Maria Rabelo. Membro do Partido Socialista Brasileiro, José Maria
Rabelo fundou o jornal em 1952 quando ainda era universitário. Tinha como objetivos
realizar a oposição ao governo estadual de Juscelino Kubitschek e conferir expressão às
manifestações estudantis que ocorriam em Belo Horizonte. Durante todo o período de sua
existência, O Binômio distinguiu-se por sua vinculação com os movimentos sociais da cidade.
Entre 1961 e 1962, publicou o jornal Tribuna Universitária, órgão do Diretório Central
máquina de costura de 4 gavetas, 1 liquidificador; 1 aparelho de café de porcelana; 1 aparelho de jantar e 1
serviço para refresco.” Cf. ÚLTIMA HORA. Rio de Janeiro. 30/08/19, Caderno 2, p. 4. 285
AOS NOSSOS LEITORES residentes em favelas. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 01/03/1956, p. 8. 286
O BARRACO. Binômio. Belo Horizonte, 13/08/1962, Caderno 3, p. 3.
221
Estudantil da Universidade de Minas Gerais. Posteriormente O Binômio incorporou O
Barraco em sua publicação, dando continuidade ao traço oposicionista do periódico, somado
ao interesse eleitoral do diretor do jornal. Em 1962, José Maria Rabelo candidatou-se a
prefeito de Belo Horizonte. No período eleitoral, O Barraco foi impresso quinzenalmente em
uma página inteira do Binômio. Após esse período, ele foi publicado em uma coluna, e sua
periodicidade foi diminuída. Até 1964, quando o Binômio foi “empastelado” devido ao Golpe
de 1964, o jornal da FTFBH manteve a publicação no periódico.
Ao que tudo indica, essas publicações ligadas à UTF e FTFBH tiveram vida efêmera e
dependiam de articulações políticas com grupos de esquerda para serem mantidas. Elas
cumpriam o intento de formar um espaço de comunicação entre as associações de moradores
e com a sociedade em geral, apresentando a pauta de reivindicação dos trabalhadores
favelados. Além desse espaço impresso articulado pela UTF e FTFBH, acompanhando a
imprensa carioca e belo-horizontina, veremos vários esforços de lideranças para repercutirem
suas ações na esfera pública. Em ocasiões de maior mobilização, os movimentos de
trabalhadores favelados surpreendiam as redações das publicações com manifestações em
frente aos edifícios sede dos jornais.
No Rio de Janeiro, por exemplo, após realizar uma concentração em frente ao Palácio
do Catete, os moradores do morro do Borel, Coelho Neto e Turano dirigiram-se a várias
redações de jornais. Com as faixas que protestavam contra injustiças sofridas pelos
trabalhadores favelados, eles foram recebidos na redação de O Dia, Imprensa Popular e
Diário de Notícias, e rejeitados na redação de A Noite e Diário Carioca. Magarinos Torres
representou os moradores que pediam a suspensão do despejo autorizado na Justiça287
. Em
Belo Horizonte, não era diferente. A partir da análise do jornal Diário da Tarde, observa-se
que, algumas vezes, o presidente da FTFBH, Francisco Nascimento, juntamente com
moradores, dirigiu-se à redação dos Diários Associados para protestar. A ocupação da
recepção do jornal com várias famílias era um momento emblemático, fotografado e
publicado no jornal, como na imagem abaixo. No centro da fotografia, localiza-se Francisco
Nascimento, que se colocava como porta-voz de mães, filhos(as) e os membros da UDC da
Vila Santa Terezinha. Em 1961, a vila Santa Terezinha esteve ameaçada de despejo; a FTFBH
organizou uma concentração no Palácio da Liberdade, visando a uma negociação com o
287
Boletim Reservado nº 193, 26/10/1954. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo
Polpol. Arq. Setor DPS. Pasta 1046; VÃO em massa ao Catete para reclamar garantias. Imprensa Popular. Rio
de Janeiro, 24/10/1954, p. 8.
222
governador, e depois seus membros se dirigiram para o balcão de recepção dos Diários
Associados.
FAVELA organizada contra explorador da miséria. Diário da Tarde. Belo Horizonte,
10/06/1961, Caderno 2, p. 2.
Pressionar a imprensa para publicar notícias de manifestações compunha parte das
rotinas de protesto dos movimentos sociais, contudo é importante salientar o grau de incerteza
a que essa atividade estava sujeita. Analisando o Última Hora, o Correio da Manhã, a
Tribuna da Imprensa, o Diário da Tarde, o Última Hora-Edição de Minas e o Estado de
Minas, observa-se que esses jornais tinham espaços reservados para a apresentação dos
problemas das cidades e se apresentavam como tribunas de reclamações da população.
Todavia podiam aceitar ou rejeitar a representação dos moradores a partir de critérios não
explicitados. Além disso, os protestos dos movimentos de trabalhadores favelados raramente
ganhavam destaque no noticiário, que priorizava os embates políticos. Quando essas
manifestações foram registradas, estavam deslocadas das primeiras páginas e da seção
política. Eram colocadas na parte do jornal que tratava da cidade, juntamente com crimes,
outras reclamações, sem nenhum destaque específico. Dessa forma, quando conseguiam
repercussão, seus movimentos ficavam diminuídos, ou diluídos em uma série de outros
conflitos urbanos.
Organizar os próprios jornais ou negociar algum tipo de espaço em jornais de
esquerda, para publicar notícias relacionadas às associações de moradores, era uma maneira
de fugir desses enquadramentos e das possíveis recusas dos veículos de comunicação de
massa, com fins de publicar notícias e reivindicações. Essa era uma maneira de ocupar o
223
espaço público e explicitar estilos de vida, valores e interesses diferentes daqueles atribuídos
consensualmente às favelas e aos favelados.
5.3.1 “Favela em Revistas” e “Notas sociais”
Tanto na coluna Morros e Favelas, mais diretamente ligada à UTF, quanto no jornal O
Barraco da FTFBH, solicitava-se aos moradores que enviassem notícias sobre eventos que
ocorriam nas favelas. No primeiro, formou-se uma seção intitulada “Notas Sociais”, “Sociais”
e “Notas Esportivas”; no segundo, formou-se a coluna intitulada “Favela em Revistas”.
Essas colunas publicavam casamentos, festas, obituários, eventos sociais que
aconteciam e pudessem reunir as pessoas de alguma favela. Na coluna Morros e Favelas,
encontramos as seguintes notícias na seção intitulada “Sociais” e “Notas esportivas”: “A
garota Ariléia Alves, filha de Ary e Itabar Alves fez aniversário domingo último. Reside com
seus pais no Arará”; “No Morro do Santa Marta, nasceu, no dia 23 último, Francisco de Assis,
filho dos nossos amigos Augusto e Teresa Martins Pedro”288
; “Realizou-se, domingo último
no campo do Esperança, na Favela da Rocinha, um festival esportivo com a participação de
doze clubes.”289
Em O Barraco, em 1962, havia a seção “Favela em Revista” e, quando o
jornal foi reduzido, em 1963, a seção passou a se chamar “Notas sociais”: “Com tristeza
anunciamos, ainda, o falecimento do companheiro Divino José de Freitas, associado da UDC,
um dos moradores mais antigos da Favela Jardim das Oliveiras e funcionário da Prefeitura,
deixando três filhos e a viúva Maria de Freitas.”290
; “Realizou-se no dia 15 de setembro o
casamento de Maria Miranda, com o jovem Almir Figueiredo [ilegível]. Ela é filha de Dona
Geralda Rosa Micronia”291
; “Será dia 1º a festa do Rosário, do Congado da Vila Santa Rita de
Cássia, segundo nos informa o ‘rei’ do Congado”292
.
Percebe-se que essas seções ocupavam parte significativa da coluna Morros e Favelas
e de O Barraco. Como observou Spínola, os veículos de comunicação configuram “uma das
especificidades do viver contemporâneo”, isso se comprova “na intensividade e na
extensividade dos processos comunicativos mediáticos presentes em todos os campos da vida
social” (SPÍNOLA, 1997: 19)293
. As mídias estruturam uma dupla relação com o social: de
288
SOCIAIS. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 04/03/1956, p. 5. 289
NOTAS Esportivas. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 06/03/1956, p. 4. 290
O BARRACO. Binômio. Belo Horizonte, 17/09/1962, Caderno 2, p. 5. 291
O BARRACO. Binômio. Belo Horizonte, 24/09/1962, Caderno 3, p. 3. 292
O BARRACO. Binômio. Belo Horizonte, 22/10/1962, Caderno 2, p. 6. 293
SPÍNOLA, Maria Ceres Pimenta. Na tessitura da cena: a vida cotidiana em Belo Horizonte na década de
1970. Belo Horizonte: UFMG, 1997. p. 19.
224
um lado reverberam o processo comunicativo instituído na vida cotidiana, por outro instituem
esse mesmo social, propondo equivalências, comparações, influenciando as maneiras de ver e
perceber a realidade. As seções de “Notas sociais”, ou “Favela em Revista”, mostram como as
relações de vizinhança e eventos sociais nas favelas eram importantes para os associativismos.
Os laços de solidariedade que uniam as diferentes comunidades nas favelas e o destaque às
“lideranças” e aos moradores que participavam das associações eram destacados nessas
seções.
Ademais, ao desvelar as relações cotidianas tecidas nas favelas, o anedotário
acumulado nesses jornais ligados ao movimento social evidenciava os vários “lugares” que se
instituíam nos espaços de moradia favelas. De acordo com Augé, a residência constitui o
“lugar”, a superfície primeira e imóvel de um corpo, o espaço no qual um corpo está situado
numa ordem segundo a qual elementos são distribuídos em relação de coexistência (AUGÉ,
2005). Augé (2005) define “o ‘lugar’ como uma configuração instantânea de posições, o que
vale dizer que, num mesmo lugar, podem coexistir elementos distintos e singulares, sem
dúvida, mas sem que isso signifique que nos proibamos de pensar, nem nas relações nem na
identidade partilhada que lhes confere a ocupação do lugar comum” (p. 45). Os jornais dos
movimentos de favelas, ao aproximar referências de vizinhança em localidades tão distintas,
estavam de forma consciente ou não conformando uma representação de favela que era aberta
à experiência das pessoas, sem afirmar o traço negativo presente no processo de identificação.
Evidenciar a vida social das favelas era uma forma de se contrapor à visão que as
reduziam a um espaço transitório do tecido urbano, cuja remoção ou transformação com o
desenvolvimento social eliminaria a marginalidade. Ademais, semelhante à retórica das
passeatas, nessas colunas sociais representavam-se “famílias” que estavam ameaçadas de
despejo e os trabalhadores favelados que não tinham seu direito reconhecido. Nessas
performances buscava-se afastar a imagem das “classes perigosas”, que seria corrente na
imprensa, para abordar as favelas.
5.3.2 As passeatas e a imagem dos trabalhadores “favelados”
Outra maneira de ocupar esses espaços eram as manifestações de massa, desfiles nas
ruas de maior destaque das cidades, e a ocupação dos órgãos do poder público nos centros
administrativos da cidade. As manifestações públicas organizadas pelos movimentos de
trabalhadores favelados ocupavam o centro político de cada cidade, apresentando palavras de
ordem e denúncias de injustiças. A performance e os desfiles em locais públicos era comuns a
225
sindicatos e a outros movimentos sociais, mas é importante compreender como os
movimentos de trabalhadores favelados adaptaram tal estratégia de luta.
Tanto no Rio de Janeiro quanto em Belo Horizonte, era comum a presença de crianças
e mulheres encenando a injustiça praticada contra os trabalhadores que viviam em favelas. As
fotografias difundidas na imprensa das manifestações de favelas quase sempre evocavam a
presença das famílias (ver fotografias). As passeatas eram constantemente taxadas de
“demagógicas” e “comunistas” e se questionava a autenticidade da manifestação. Todavia a
participação das mulheres e crianças no desfile público dos trabalhadores favelados era
eloquente quanto ao caráter pacífico e à autenticidade das reivindicações.
Os constrangimentos, para desqualificar a manifestação e reprimir os movimentos,
podem ser percebidos num testemunho de um investigador do DOPS: “os favelados estão
sendo orientados por elementos reconhecidamente comunistas. Tais elementos utilizam das
famílias dos favelados e vêm causando sérios transtornos à nossa ação, dificultando
sobremaneira a manutenção da ordem pública”294
. O mesmo pode ser observado no relato de
um investigador da polícia política do Rio de Janeiro, ao descrever a passeata dos moradores
do Borel: “Os favelados conduziam diversos cartazes, tais como, ‘Queremos justiça! Viva a
UTF! Abaixo Grileiros etc. etc.’ Uma bandeira nacional, tendo cada uma das extremidades
segurada por mocinhas, manteve-se desfraldada no interior da Câmara. (...) Na mais deslavada
demagogia, pouco se importando com as razões de ordem jurídica, [os vereadores]
solidarizaram-se com os favelados integralmente”295
. Os policiais denunciavam os riscos à
ordem pública e à comunização das favelas, mas não deixavam de observar como a estratégia
da passeata criava uma legitimidade para o conflito e para as reivindicações dos moradores.
TRIBUNA DA IMPRENSA. Rio de Janeiro, 19/06/1954, p. 2.
294
Relatório de investigação, 18/09/1961. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS. Arq. Pasta 107. 295
Informação – Assunto – Concentração de Favelados, 21/10/1954. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO
RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Pasta 1046.
226
IMPRENSA POPULAR. Rio de Janeiro, 07/04/1957, p. 5.
ÚLTIMA HORA – Edição de Minas. Belo Horizonte, 03/09/1961, p. 10.
227
DIÁRIO DA TARDE. Belo Horizonte, 05/12/1961. p. 5.
Os slogans e palavras de ordem usadas evidenciavam o drama dos moradores e o
sentimento de injustiça que moviam as manifestações contra despejos coletivos e por
reivindicações de melhorias. Uma breve seleção de mensagens presentes em cartazes das
passeatas evidencia o discurso encenado nessas passeatas. No Rio de Janeiro: “Queremos
abrigos para filhos”, “Viva a União dos Trabalhadores Favelados”, “Queremos Justiça”,
“Abaixo grileiros”296
, “Não se acaba com as favelas, derrubando barracos, espancando
favelados”, “Abaixo Coronel Melquíades, inimigo dos pobres”297
, Não queremos
metralhadoras – Queremos é leite para os nossos filhos”, “Não temos onde morar – O
Barracão é do Morro”298
“Os bichos daqui tem o seu lugar, nós não temos”, “Reivindicamos
abrigo para nossas famílias. Também somos humanos!”299
. Em Belo Horizonte: “Os
Favelados exigem Justiça Social”, “Violência gera violência, cuidado Tubarõe$”300
, “Se não
há amor, pelo menos que haja justiça”301
, “Elegemos os governadores para que eles nos
governem com justiça”, “Não queremos violência policial, pobres também querem justiça”,
296
Boletim Reservado nº 191, 22/10/1954. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo
DPS. Arq. Pasta 1046. 297
800 FAVELADOS lutam nas ruas pelo sagrado direito de um lar. Imprensa Popular. Rio de Janeiro,
22/06/1954, p. 8. 298
Relatório – Atividades dos Favelados do Morro do Borel, março de 1955. ARQUIVO PÚBLICO DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Pasta 1046. 299
MORADORES da favela do esqueleto desceram para reclamar casas. Imprensa Popular. Rio de Janeiro,
20/07/1957, p. 6. 300
PASSEATA de favelados. Diário da Tarde. Belo Horizonte, 05/12/1961, p. 5. 301
FAVELADOS saem às ruas para pedir justiça. Última Hora – Edição de Minas. Belo Horizonte, 16/09/1961,
p. 1.
228
“Somos pobres e humildes, mas também somos honrados”, “Justiça do governador e
educação da polícia”302
.
5.4 Congressos de trabalhadores favelados
Os congressos de trabalhadores favelados foram tentativas de reunir todas as favelas
em torno de uma pauta comum. A performance do congresso teve destaque tanto na UTF
quanto na FTFBH. No Rio de Janeiro, no seu ano de sua fundação, a UTF já anunciava a
realização de um congresso e tentou organizar o evento em dezembro de 1954. João
Damasceno Silva, líder comunitário do Jacarezinho, deu um longo depoimento, que explicava
as motivações e a forma de organização do evento:
Será um encontro de todos os favelados do Rio de Janeiro, que, nele, discutirão
problemas e reivindicações. Os centros da UTF realizarão festas ou assembleias
gerais em cada favela, durante as quais serão eleitas delegações. Os delegados
debaterão com os favelados problemas e reivindicações locais, que serão
apresentados no Congresso, e debatidos conjuntamente com os problemas e
reivindicações de todas as outras favelas. De lá sairão resoluções concretas, capazes
de dar ao favelado união e força suficiente para a conquista do que ele precisa. A
luta do favelado é difícil e suas reivindicações são as mais numerosas. Ora é falta de
esgoto, ora falta de luz, de assistência médica, de escola, enfim, um sem número de
necessidades para a sobrevivência humana. Mas hoje temos um projeto de lei,
elaborado pela nossa gloriosa UTF, que engloba nossas principais reivindicações.
Sua aprovação pela Câmara Municipal, porém, exige de nós esforços decididos e,
sobretudo, uma luta unida de todas as favelas. É para isto que o Congresso
contribuíra decididamente 303
.
O prognóstico de ação descrito pela liderança contou com o proselitismo do advogado
e secretário geral da UTF, Magarinos Torres Filho. Ele circulou em várias favelas, anunciou o
evento que ocorreria no Maracanã, formulou o projeto de lei que seria encaminhado ao
legislativo municipal, expandindo, assim, a rede de associações ligadas à UTF 304
. Em 1954,
o congresso não se concretizou, mas cumpriu o objetivo de promover uma maior união entre
associações, difundir o programa da UTF e sinalizar para um tipo de performance que foi
retomada em outros contextos, em momentos definidores de programas para o governo da
cidade.
302
Relatório de investigação, 15/09/1961. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS. Arq. Pasta 0119 303
PERMANECEM as ameaças contra os favelados: é preciso união. Imprensa Popular. Rio de Janeiro,
07/11/1954, p. 8. 304
Boletim Reservado nº 222, 08/12/1954; Boletim Reservado nº 217, 01/12/1954. ARQUIVO PÚBLICO DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Pasta 1042. No capítulo VII, o projeto de lei encaminhado
por Magarinos Torres Filho será analisado.
229
Em 1955, as associações civis de favelas, ligadas ou não à UTF, participaram do
Congresso pró-autonomia do Rio de Janeiro e tiraram como proposta a reedição da tentativa
de fazer seu próprio evento. Em janeiro 1956, o propalado congresso de favelas aconteceu; ele
não teve relação explícita com a UTF, mas contou com sua participação e a apresentação de
uma pauta de reivindicações do movimento. A autonomia carioca gerava oportunidades para a
mobilização e a abertura das elites políticas às demandas de associações. Esse cenário repetiu-
se no momento da eleição para o recém-emancipado Estado da Guanabara.
Em 1959, o movimento de trabalhadores favelados organizou um congresso, com
intenção de discutir propostas de reivindicações das diferentes comunidades, difundir o
associativismo para constituir a Coligação dos Trabalhadores Favelados do Estado da
Guanabara e aprovar uma série de propostas no que toca ao direito social e de moradia dos
trabalhadores favelados. Num momento de reorganização administrativa, o evento apoiava,
em sua declaração final, a criação do Estado da Guanabara e contou com o patrocínio de José
Talarico, Ministro do Trabalho, interessado em forjar uma aliança eleitoral que fortaleceria
comunistas e trabalhistas para a eleição no novo estado. O mais curioso desse congresso de
favelas é sua duração: com assembleias em várias favelas, foi iniciado em maio de 1959 e se
estendeu até março de 1960, véspera das eleições305
.
Em Belo Horizonte, o ensejo para a tentativa de organização do congresso ocorreu em
1961, durante o I Congresso Nacional dos Trabalhadores Agrícolas. O deputado estadual
Hernani Maia (PTB) e o professor José Tiago Cintra participaram da comissão organizadora e
articularam-se à FTFBH. Durante o congresso, o movimento dos trabalhadores favelados
reuniu-se na “Comissão de trabalhadores agrícolas radicados em favelas”. Há poucos indícios
sobre a pauta de discussão da comissão, mas, após o evento, deliberou-se a
invasão/desapropriação de terrenos públicos em favor do direito à moradia. Formou-se a “Vila
Camponesa”. Em 1962, parte do grupo articulado no congresso dos trabalhadores agrícolas
mobilizou-se em torno da divulgação e articulação do congresso dos trabalhadores favelados.
O evento ocorreu em maio de 1962, no auditório da Secretaria de Saúde e Assistência Social,
o mesmo em que ocorreu o congresso dos trabalhadores agrícolas. Reuniu Francisco Julião, o
prefeito Amintas de Barros, o governador Magalhães Pinto, vereadores, lideranças sindicais e
estudantis em torno de uma pauta de reforma urbana que favorecesse os trabalhadores
favelados.
305
Congresso dos Favelados. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq,
Pasta 1042.
230
Em 1963, houve outra tentativa de organizar o evento, mas sem o sucesso e a
repercussão do ano anterior. O congresso foi descentralizado, restrito às associações de
moradores – sem reunir políticos, e construiu um memorial encaminhado à Prefeitura de Belo
Horizonte. Ocorreu na sede de várias associações na forma de assembleias, portanto longe do
auditório da Secretaria de Saúde e Assistência Social, o que deu menor visibilidade em
relação ao evento de 1962, por isso não ganhou repercussão na grande imprensa. O ano de
1963 não era eleitoral, logo sem apelo para a colaboração das elites governantes – a eleição de
1962 foi decisiva para a repercussão no congresso306
.
Na passagem dos anos 1950 para os anos 1960, a realização de congressos foi uma
prática utilizada por associações rurais, sindicatos e associações de moradores, contudo a
performance adaptada pelos movimentos de trabalhadores favelados ganhou características
particulares. Esses eventos reuniram o maior número de favelas, estabeleceram um programa
de reivindicações e fortaleceram a união entre os moradores. Além disso, os documentos
aprovados em congressos de favelas reforçavam pactos e compromissos com as elites
políticas convidadas para os eventos. Essas aproximações com as elites políticas fortaleciam a
credibilidade das associações reunidas em entidades supralocais e nutriam a expectativa de
que seriam atendidas as demandas dos moradores – esperança quase sempre não concretizada,
mas que movia as pessoas à participação.
Na maioria das vezes, os congressos contaram com a aquiescência de governantes e
forjaram pontes entre possíveis eleitores de favelas e um grupo político partidário. Tendo em
vista os interesses de agentes políticos, as tentativas de organizar os congressos ocorreram em
proximidade com as eleições: em 1954, a tentativa da UTF ocorreu em meio à eleição
municipal; em 1960, a realização do evento esteve articulada com o lançamento da
candidatura de João Goulart. Em Belo Horizonte, o evento de maior repercussão ocorreu em
1962, no ano da eleição para vereadores, prefeitos e deputados federais.
5.4.1 A linguagem dos direitos nos congressos dos trabalhadores favelados
Art 7º O trabalhador favelado reivindica afinal o direito de viver (…). Viver para ele
significa trabalhar por salário justo, morar em condições decentes, participar das
decisões coletivas, manifestar livremente sua opinião, associar-se com seus
companheiros, frequentar sua igreja, criar uma família sadia, liberta do medo, da
insegurança, da doença, do analfabetismo e da miséria. (Carta dos Direito dos
Trabalhadores Favelados, 30/04/1962).
306
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo Dops. Arq. Pasta 0121
231
Os congressos dos trabalhadores favelados, de forma consciente ou não, reproduziam
aspectos da dinâmica política institucional. A palavra “congresso” expressa não só o intuito
de reunir as pessoas numa assembleia, para deliberar em favor ou de acordo com a maioria
que ali se representa; ela também nomeia um lugar onde representantes eleitos dão forma aos
direitos e deveres da comunidade política. Esse aspecto ficou gravado no nome do evento,
mas também nos documentos aprovados ou discutidos, que quase sempre faziam alguma
referência à Constituição Federal de 1946 e aos direitos civis e sociais. No Rio de Janeiro de
1960, o documento aprovado na sessão final iniciava com a citação dos direitos
constitucionais que deveriam ser efetivos na vida do morador de favela: “1º - Lutar sem
distinção de credo político, filosófico ou religioso, raça, cor, nacionalidade ou sexo, pelos
meio legais, para a obtenção de um mínimo de Justiça Social a todos assegurada no Artigo nº
145 da Constituição”307
. Em Belo Horizonte, em 1962, o documento discutido, lido e
aprovado foi um similar da carta constitucional – a “Carta dos direitos dos Trabalhadores
Favelados” (ver imagem seguinte).
Ao evocar a carta constitucional brasileira, a linguagem dos documentos finais e a
performance dos congressos questionavam a facticidade dos direitos garantidos aos
trabalhadores favelados. Eram textos e gestos orientados, ou de autoria dos “advogados dos
favelados” – sujeitos fundamentais na rede dos movimentos de favelas e nas suas
mobilizações. No Rio de Janeiro, na tentativa de realização do primeiro congresso em 1954,
Magarinos Torres Filho assinou um projeto de lei, que ficou conhecido como “Lei das
Favelas”, para reformar os direitos dos moradores, caso fosse aprovado na Câmara Municipal.
Em 1959, tal perspectiva esteve presente no texto base do congresso, reafirmando traços das
experiências dos moradores nas contendas jurídicas travadas contra os despejos. Em Belo
Horizonte, na divulgação e preparação do congresso, Fabrício Soares percorreu favelas,
sindicatos e assembleias da FTFBH, discutindo o texto “Reforma Urbana Democrática –
R.U.D”. Este trazia aspectos que seriam reafirmados no texto final, levado ao evento, também
considerados nos embates do movimento308
. Em 1963, foi discutido um memorando com as
reivindicações das favelas e o programa da FTFBH, que novamente enfatizava a recusa dos
despejos coletivos e das “remoções para lugares distantes”.
307
Folheto do encerramento do Congresso dos Trabalhadores Favelados, 27/03/1960. ARQUIVO PÚBLICO DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Cx.2526. Pasta 1042. 308
Relatório de investigação, 14/02/1962. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo Dops. Arq. Pasta 282.
232
Carta dos Direitos do Trabalhador Favelado, 01/05/1962. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS. Arq.
Pasta 0119.
Havia grande centralidade no direito de moradia, do qual o trabalhador favelado era
privado, por viver em um território classificado como transitório nas legislações urbanísticas –
privado de serviços públicos – e por sofrer constantes ameaças de despejo coletivo – seja por
parte do poder público e/ou em virtude de ação movida na Justiça. O aspecto jurídico das
contendas, levadas a cabo pelos movimentos sociais e por esses advogados das favelas,
ganhou proeminência nos temários dos congressos. No Rio de Janeiro, na agenda do evento
em 1960, havia vários itens relacionados ao que segue:
Promover, através de todos os meios possíveis, a conquista da casa própria ou gleba
de terra para cada família, reivindicando a posse dos terrenos que ocupam, quando
ocorra caso de usucapião (sic), lutando pela desapropriação de terrenos cujos donos
tenham legítimo título de propriedade, de modo que sejam loteados e aforados aos
ocupantes ou por meio de financiamento; pleiteando junto ao governo da união ou à
municipalidade o aforamento das áreas de domínio público, em favor das famílias; e
impedindo, enfim, por todos os meios legais, a exploração imobiliária,
especialmente em relação às locações de aluguéis altos e todos demais abusos.
O usucapião, em caso de comprovada posse dos terrenos; a desapropriação pelo poder
público, a partir da justificativa da função social da propriedade, para atender ao trabalhador e
à sua família; o impedimento da exploração imobiliária em favelas; a inviolabilidade do lar; o
congresso de favelas davam visibilidade a todo um discurso que legitimava o direito de
moradia. A Constituição de 1946 foi um ordenamento jurídico que podia ser lido e
233
interpretado por agentes públicos e cidadãos a partir de diferentes vieses, dessa maneira os
congressos procuravam estabelecer margens e facticidade ao estado de direito que
favorecessem os trabalhadores favelados. Em Belo Horizonte, não foi diferente, a Carta de
Direitos dos Trabalhadores Favelados era clara quanto aos direitos dos moradores que
deveriam ser observados: “Art. 2º – O trabalhador favelado reivindica o direito de não sofrer
violências, seja por parte da polícia, quer da parte das autoridades municipais, quer da parte
da autoridade judiciária (…) Art. 3º – O trabalhador favelado reivindica o direito de
morar”309
. Como explicava, o direito de morar significava “o direito de não ser expulso do
lote abandonado, onde ele fixou o barracão humilde”.
O congresso de favelas dava centralidade ao direito de moradia, repetindo gestos e
temas que perpassaram outras performances do movimento de favelas e que estavam
presentes na experiência de moradores e participantes de associações. Na defesa do direito de
moradia, era central a percepção do favelado como trabalhador, como um cidadão, não um
marginal. Ele tinha expectativas de direitos sociais e garantias constitucionais que não eram
atendidas. Os congressos colocavam isso em evidência de uma forma bastante especial:
formavam uma pauta de luta, unindo o movimento sindical, a agenda das reformas de base e o
associativismo de favelas. Mostravam que o associativismo de favelas, o sindicalismo e a luta
por direitos sociais não eram campos distintos do jogo político. Para sustentar esse
argumento, deter-me-ei na análise do congresso realizado em 1960, no Rio de Janeiro, e o de
1962, em Belo Horizonte; eventos de maior sucesso, expressão e visibilidade nas duas
cidades, sobre os quais há mais fontes de informações disponíveis para análise.
5.4.2 Cultura de direitos e congressos de trabalhadores favelados
Os congressos evocaram a expectativa de direitos sociais, à espera de regulamentação
da ordem econômica e social em favor dos trabalhadores favelados. Num panfleto volante
distribuído em favelas cariocas, convocavam-se os moradores para uma “Concentração
preparatória do Congresso dos Trabalhadores Favelados” durante a comemoração do 1º de
Maio, no Largo da Carioca, com a presença de João Goulart. Tal como o folheto já citado,
cobrava-se “um mínimo de justiça social a todos assegurada no artigo 145 da Constituição” de
1946310
. Esse artigo prescrevia que “a ordem econômica deve[ria] ser organizada conforme os
309
Carta dos Direitos do Trabalhador Favelado, 01/05/1962. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS.
Arq. Pasta 0119. 310
Concentração Preparatória do Congresso dos Trabalhadores Favelados, abril de 1959. ARQUIVO PÚBLICO
234
princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do
trabalho humano”311
. Esse imbricamento entre a data do calendário sindical e a organização
do congresso no Rio de Janeiro também estruturou o congresso em Belo Horizonte. Realizado
às vésperas do primeiro de maio, entre 29 e 30 de abril, teve uma importante implicação, e
uma das decisões aprovadas no congresso foi a de que todos ficariam concentrados na Praça
“em comemoração ao Dia do Trabalho, com todos outros trabalhadores, para debaterem suas
reivindicações em praça pública”. Nesse ano, Francisco Nascimento, presidente da FTFBH,
participou da comemoração oficial e discursou em nome dos trabalhadores favelados312
.
A interpenetração entre calendário de lutas operárias e movimentos de favelas estava
para além da comemoração do 1º de Maio. Primeiro, havia as campanhas para aumento
salarial e aprovação de novas leis de proteção do trabalhador. No Rio de Janeiro, um dos
pontos de discussão nas assembleias do congresso era atender às “necessidades vitais dos
trabalhadores, não só no que concerne aos reajustamentos salariais, como regulamentações
específicas das diversas profissões, melhor aplicação dos recursos das instituições da
previdência; por melhores condições de saúde e pela assistência educacional através de
escolas e cursos”313
. Em Belo Horizonte, a difusão do congresso em sindicatos somou-se às
tentativas de participação nas campanhas pelo salário família extensivo a todos os
trabalhadores. O benefício reconhecia um adicional de 5% sobre o salário mínimo, para cada
filho menor de 14 anos. Em janeiro de 1962, num momento de preparação para o congresso, o
jornal O Barraco publicou uma notícia que foi repetida em outros momentos: “Nossa
Federação vai iniciar a luta pela decretação imediata do salário-família para todos os
trabalhadores, de acordo com o que determina a Constituição Federal. (…) Há 15 anos que é
lei, mas não é pago a ninguém. Isto é, só o recebem militares e funcionários públicos”314
. A
reivindicação da regulamentação do salário-família para todos trabalhadores era antiga no
movimento sindical, mas, em 1962, um projeto de lei do ministro do Trabalho e Previdência
Social Franco Montoro colocou o tema na pauta do congresso de trabalhadores favelados e do
movimento sindical.
Em segundo plano, um dos pontos centrais das pautas que unia sindicatos e
associações de bairros e favelas era a carestia. Nas décadas de 1940 e 1950, o estado
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Cx.2526. Pasta 1042. 311
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao46.htm. Acesso em 04 de janeiro de 2013. 312
PREFEITO assume compromisso de promover os melhoramentos reclamados pelos favelados. Diário da
Tarde, 02/05/1962, p. 3 e Caderno 2, p. 4. 313
Concentração Preparatória do Congresso dos Trabalhadores Favelados, abril de 1959. ARQUIVO PÚBLICO
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Arq. Cx.2526. Pasta 1042. 314
O BARRACO, 31/01/1960. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS. Arq. Pasta 0119.
235
legitimou intervenções na economia e no comércio, para barrar o aumento de preços.
Sindicatos, associações de moradores e indivíduos participaram em suas respectivas cidades,
formando redes que uniam a luta operária no aspecto supostamente mais banal do cotidiano
urbano: a compra cotidiana de itens básicos para sobrevivência. A questão do abastecimento
do comércio era um item central do cotidiano dos trabalhadores: no Rio de Janeiro, um dos
temas discutidos foi a “melhoria do abastecimento e fornecimento de gêneros e artigos de
consumo por preços justos”. Em Belo Horizonte, foi aprovada a proposta das UDCs de
formarem cooperativas de alimentos, mas também organizada pelo movimento sindical, no
mês de junho, uma série de concentrações articuladas pelo movimento na Semana da Carestia.
Havia ainda a linguagem das reformas da base social no Brasil, que impregnou os
congressos de favelas. Tal programa colocou como central a intervenção na ordem
econômica, para promover o desenvolvimento nacional e garantir uma sociedade mais
igualitária. Nessa agenda, havia centralidade para a reforma agrária e o movimento de favelas
forjava uma união do tema da luta pela moradia nas favelas à luta pela terra do camponês. Um
dos objetivos do congresso no Rio de Janeiro era assegurar
aos trabalhadores residentes em favelas ou a lavradores que cultivam terras
devolutas, o direito de nelas prosseguir morando e trabalhando, defendendo-se
contra as ações de despejo, derrubadas criminosas de suas moradias ou plantações e
contra a inviolabilidade do lar; (...) Reiterar o empenho pela lei de reforma agrária
que atenda aos trabalhadores do campo e ponha, assim, um dique ao êxodo dos
mesmos para os grandes centros.
As terras devolutas no campo e os lotes urbanos abandonados, despejos de lavradores
e trabalhadores residentes em favelas, a derrubada criminosa de lavouras ou moradias, as
aproximações entre as causas das favelas e a dos lavradores eram evidentes. Ambos lutavam
pela prerrogativa jurídica que permitia desapropriar propriedades privadas com fins de
utilidade social. Ou seja, travavam embates no campo da instituição e na factibilidade da
propriedade social; o direito à propriedade era previsto em Constituição, mas ignorado pela
exploração agrícola do latifúndio e pelo mercado imobiliário. No Rio de Janeiro, esteve
associada à UTF uma associação de lavradores da cidade. Como já afirmamos, isso diferencia
o movimento de favelas carioca e o de Belo Horizonte, que não tinha esse tipo de associação
filiada. Por outro lado, como constatado anteriormente, na capital mineira, o congresso de
favelados foi organizado por lideranças da FTFBH que participaram da “Comissão de
trabalhadores agrícolas radicados em favelas”, no I Congresso Nacional de Trabalhadores
Agrícolas. Um dos participantes do congresso de favelas foi Francisco Julião, nesse encontro
236
foi aprovada uma moção de apoio às Ligas Camponesas. Os instrumentos jurídicos para os
embates da reforma urbana, tal como imaginava o congresso de favelas, podia ser semelhante
ao da reforma agrária.
Nos anos 1960, num período de luta pela extensão da regulamentação social no
campo, vincular-se à causa da reforma agrária era uma maneira de cobrar a proteção social
também aos trabalhadores favelados. Ademais, existia ainda a questão da migração. Esta
permeou a vida de diversos moradores, gerando tensões e exploração experimentadas no
mundo da lavoura e que podiam permanecer na memória dos trabalhadores favelados. A
reforma agrária e a extensão dos direitos sociais ao campo era um meio de sanar a questão da
exploração do trabalhador e minorar a migração para as favelas (voltaremos a esse tema
adiante).
Através desses múltiplos dispositivos e discursos, os favelados reiteravam sua imagem
aos “trabalhadores”, àqueles que podiam reivindicar direitos e uma intervenção na ordem
econômica em seu favor. A Constituição Federal (1946) e o Código de Leis Trabalhistas
(1943) eram taxativos quanto à condição de trabalhador, para reivindicar a proteção do poder
público, como também reclamar a intervenção do Estado na esfera econômica. Através dos
congressos, os movimentos maximizavam a representação do “trabalhador favelado” na esfera
pública, reivindicando dignidade e inserção na comunidade política, criando possibilidades de
usufruir direitos aos quais estavam excluídos no senso comum e em termos práticos.
Os congressos encenavam o horizonte da “cidadania regulada” para as classes
populares na sociedade brasileira. Como observou Santos (1979), o direito social outorgado
no Brasil excluiu camponeses e uma grande gama de trabalhadores que não foram
sindicalizados, nem tinham profissões regulamentadas, nem podiam provar residência ou
emprego fixo para adquirirem a Carteira de Trabalho. Por não ser extensivo a todo
trabalhador, o direito à cidadania social passou a ser visto como privilégio; ainda que
permitisse maior mobilidade e proteção social, reforçava diferenças e desigualdades, dando
acesso restrito a alguns trabalhadores. Não obstante os inúmeros mecanismos de exclusão, os
discursos e dispositivos de regulação da ordem econômica permitiram diversos tipos de
apropriação, em que os cidadãos reinterpretavam as leis e se enquadravam nela para
conseguirem o benefício. Segundo Cardoso, “a legislação trabalhista e social terminou por
instaurar, no ambiente em que incidiu, um campo legítimo de disputa por sua facticidade, cuja
matriz de legitimação é o próprio Estado. Com isso, o horizonte da luta por direitos tornou-se,
legitimamente, o horizonte da luta de classe no país.” (CARDOSO: 2010, 223). Os
237
dispositivos jurídicos eram reinterpretados, para garantirem direitos aos trabalhadores
favelados.
Os congressos encenavam um discurso sobre a injustiça, as hierarquias e as diferenças
sociais do Brasil. Noutro sentido, a pergunta sobre quem seria beneficiado por essas
reivindicações, nos faz pensar nas exclusões supostas nessa linguagem política. Os
movimentos de trabalhadores favelados distinguiam seus participantes e comunidades dos
marginais e das classes perigosas, reiterando a dicotomia entre trabalho e malandragem no
universo social das favelas. Ao afirmar o direito de ter direito, o movimento social excluía
aqueles que estavam nessa outra faixa da imaginação e estratificação social das favelas? Os
trabalhadores favelados, assim como outros segmentos da classe operária, estavam imbuídos
de uma ética que reiterava a oposição entre trabalho e malandragem na expansão dos direitos
sociais. Tanto em Belo Horizonte quanto no Rio de Janeiro, os movimentos de favelas
cobraram através dos congressos a instituição de guardas especiais para as favelas, de
policiais que reconhecessem a distinção entre “bandido” e “trabalhador”, e que, portanto,
dessem outro tratamento aos moradores de favelas.
As performances do repertório de ação do movimento de trabalhadores favelados eram
bastante semelhantes, apesar de utilizar recursos e inserir-se em dinâmicas políticas restritas a
cada cidade. Esses movimentos construíram pautas que disputavam os dispositivos de poder
para o governo das favelas e buscaram construir uma agenda que foi reconhecida por
diferentes forças políticas partidárias.
238
6 MOBILIZAÇÕES ELEITORAIS DOS TRABALHADORES FAVELADOS
(...) uns e outros representam o voto da mesma maneira: como uma ação individual,
intencional, envolvendo escolha, voltada para objetivos precisos e previamente
definidos. Ocorre, todavia, que a “separação do eleitor dos múltiplos laços que o
definem socialmente” não implica supressão desses laços (PALMEIRA &
HEREDIA, 2005: 454).
Tanto a UTF como a FTFBH participavam e tentavam interferir no jogo político
eleitoral. Denunciavam os políticos “demagogos” e indicavam candidatos que pudessem
representar os interesses dos “trabalhadores favelados”. Nas eleições de 1954, 1955, 1958 e
1960 no Rio de Janeiro, como nas eleições de 1954, 1960 e 1962, os movimentos sociais
construíram um voto de classe: apoiavam candidatos que defendessem o direito de moradia e
uma agenda política para a classe trabalhadora.
Para analisar o fenômeno da mobilização eleitoral nas favelas através dos movimentos
sociais em pauta, devemos desnaturalizar a individualização do voto. A adoção da cédula, da
cabine e as práticas censitárias eleitorais condicionaram a percepção do voto como fruto de
uma escolha individual. Todas essas práticas concorreram para separar o eleitor dos grupos
sociais que definiam sua identidade, fazendo com que a sua opção fosse interpretada como um
gesto de autonomia. No entanto, como observaram Heredia e Palmeira (2005), “a ‘separação
do eleitor dos múltiplos laços que o definem socialmente’ não implica supressão desses laços”
(p. 454). A naturalização desse processo de individualização do eleitor tem sido
problematizada nos estudos de antropologia e cultura política. A história social do voto faz
com que olhemos para os “cabos eleitorais” e as associações civis de moradores com mais
atenção, percebendo a posição de intermediação que elas assumiram no jogo político.
As mediações estabelecidas por associações/“cabos eleitorais”, políticos e moradores
adquiria diversos sentidos. Valladares (1978) descreveu da seguinte forma a política nas
favelas: os “políticos tornaram-se verdadeiros intermediários entre a população e o ‘mundo de
fora’, de onde provinham os recursos e os serviços. Estabelecia-se uma nítida relação de troca
entre voto e o favor obtido” (p. 26). Bicas de água, luz, calçamento, aterro, material de
construção, empregos, vagas em escolas, leitos em hospitais, escadas, todo tipo de
equipamento e serviço que poderia ser oferecido pelo estado era foco de trocas eleitorais. Os
moradores na relação de clientela tinham seus interesses atendidos, e, principalmente,
“sabiam que esses políticos, ao utilizar a favela como curral eleitoral, na realidade
‘defendiam-na’, na medida em que [...] serviam de proteção e garantia contra a investida das
forças hostis a ela” (VALLADARES, 1978: 27). Nessa seara, o direito político foi
239
instrumento para a conquista de melhorias pontuais e para a proteção das favelas e de alguns
moradores ameaçados de remoção315
.
A prática descrita acima ficou conhecida como a “política da bica de água”. A
expressão faz referência à instalação de torneiras públicas em lugares que não eram servidos
de rede de água, mas nomeia a totalidade de práticas que envolviam a troca de serviços pela
lealdade política. A lealdade significava a lembrança de um benfeitor da comunidade.
Segundo Gonçalves, às vésperas das eleições, “as favelas eram sempre invadidas por
candidatos assessorados por cabos eleitorais de campanha. Ávidos pelos votos dos favelados,
uma de suas promessas era a instalação de água corrente”; forjava-se assim uma relação
desigual, constituindo “vínculos personalizados entre indivíduos pertencentes a grupos sociais
que dispõem de recursos materiais e símbolos de valor bastante desigual, repousando em
trocas duráveis de bens e serviços” (GONÇALVES, 2013: 160).
Diversos estudos mostraram a importância dos cabos eleitorais e das associações para
a atuação de lideranças partidárias do período de 1945 a 1964. A política da “bica de água”
era motivo de orgulho para os políticos. No caso da política das favelas, encontraremos atores
de sucesso na carreira política, notabilizando-se pela instalação de água nas favelas. No Rio
de Janeiro, o vereador Geraldo Moreira, por exemplo, tinha orgulho de afirmar que, a partir de
sua atuação como vereador, as favelas passaram a ter “direito” a instalar uma “torneira
d'água”. Em Belo Horizonte, da mesma forma, o tema da campanha do prefeito Jorge Carone
foi a imagem de uma torneira com água, seguida do seguinte texto, “Jorge Carone faz
mesmo”. A política urbana da bica d'água era corrente e certamente encontrava reciprocidade
no eleitorado das favelas, como também era usada como parte dos discursos e propagandas
políticas.
Contudo, para além do vínculo personalizado e da troca social de “melhorias”, as
campanhas eleitorais foram momentos estratégicos para a difusão de valores político-
partidários. Formar um corpo de eleitores significava também produzir programas que fossem
capazes de dividir a sociedade. A UTF e a FTFBH foram instituições de referência na
organização do voto e dos conflitos em torno das imagens e representações do universo
político e partidário. Esses movimentos traçaram alianças, tendo por horizonte um conteúdo
reivindicativo, de modo que é necessário compreender como as culturas político-partidárias
315
Como observou Valladares, essa lógica política permitia a perpetuação das favelas na cidade; quando foi
rompida e embaçada pelo autoritarismo da ditadura militar, iniciaram-se as remoções em larga escala. Maurício
Abreu acompanha essa leitura do território urbano, indicando que, entre 1930 e 1964, o “populismo” permitiu
um desenvolvimento urbano diferente (ABREU, 2010).
240
incorporaram a pauta e a agenda de reformas propostas pelo movimento social e quais
partidos participaram desse enquadramento em cada cidade. Qualquer tentativa de resposta a
essas perguntas deve compreender os vínculos transversais que perpassaram as organizações
dos trabalhadores favelados e a política em geral. Só através dessa operação podemos
compreender as formas de articulação política no processo de formação dos corpos de
eleitores nas favelas.
6.1 Direitos políticos e a política nas favelas
O peso das mobilizações eleitorais dos movimentos de trabalhadores favelados deve
ser compreendido a partir da forma como o sistema eleitoral incorporava de forma desigual os
segmentos da população não escolarizada, reproduzindo as hierarquias e desigualdades
sociais. Se perdermos de vista esse contexto maior, que foi uma das marcas da República
brasileira ao longo do século XX, não conseguiremos compreender como o clientelismo tinha
impacto na participação e nas mobilizações eleitorais.
O regime liberal-democrático instituído em 1945 começou a ser construído no final da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O engajamento do Brasil ao lado dos Aliados e a
derrota dos Estados fascistas na Europa colocaram em pauta a reforma política e a instauração
de uma democracia política no país. No cenário internacional, assistia-se à ascensão de
regimes democráticos e ruína de vários regimes autoritários que dominaram a cena europeia
na década de 1930. Muito antes da queda de Getúlio Vargas, o Estado Novo (1937-1945)
sinalizou para a mudança nas regras da representação política.
Um dos momentos chave para essa transformação foi o ano de 1945, com a
convocação de eleições e a aprovação da nova regulação para as eleições. A tendência à
liberalização e ampliação do direito político foi confirmada na Constituição de 1946 e no
Código eleitoral de 1950, que definiram o sufrágio como um dos componentes fundamentais
da cidadania. O voto era obrigatório e universal, abarcando homens e mulheres maiores de
dezoito anos. Em 1945, o alistamento foi feito de forma voluntária ou ex-officio, cadastrando
de forma compulsória os funcionários públicos e os trabalhadores sindicalizados; em 1950, o
Código eleitoral extinguiu o alistamento ex-officio. A formação do corpo de eleitores excluía
os analfabetos, os que não conseguiam se exprimir em língua nacional (os estrangeiros), os
soldados e cabos nas Forças Armadas, os incapazes civis e os que tivessem os direitos
políticos cassados.
241
A legislação garantiu o significativo aumento do número de votantes no Brasil. Pela
primeira vez na história política, assistia-se a uma democracia de massa. Ainda que o sufrágio
tenha uma longa história no Brasil, na Primeira República, foi uma parcela reduzida da
população que votava; na eleição de 1933, a primeira após o fim da República dos oligarcas,
3,3% da população foi cadastrada no pleito (NICOLAU, 2004: 46-47). As estatísticas do
Tribunal Superior Eleitoral sobre a participação eleitoral do período democrático são
expressivas ao indicar um crescimento constante do número de eleitores sob o conjunto da
população.
Número de Eleitores sobre o conjunto da população
Ano %
1945 15
1950 22
1955 25
1958 22
1964 25
1966 27
1969 28
1974 34
1978 40
1982 48
Fonte: TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL apud TEIXEIRA DA SILVA, 1990: 355.
A norma eleitoral que vigorou até 1965316
manteve parte das inovações introduzidas
no Código Eleitoral de 1932. Esse ordenamento jurídico foi escrito a partir da crítica à
república oligárquica. A experiência do voto na Primeira República (1889-1930) trazia como
marca a fraude eleitoral institucionalizada com a adulteração das atas de eleitores (as eleições
a “bico de pena”). As Comissões de Verificação na Câmara Federal sofriam o controle de
facções políticas, o que permitia a “degola” dos candidatos eleitos pela oposição ao governo.
Nas normas eleitorais de 1932 e 1945, instituíram-se o voto secreto e a justiça eleitoral,
preservando maior lisura na apuração e contabilização dos votos. A modificação permitiu a
316
Em 1965, o Ato Institucional nº 2 e um novo Código Eleitoral reformaram o sistema político, que ganhou
outra forma – o bipartidarismo com um alto grau de interferência do governo militar no Legislativo, no intuito de
controlá-lo.
242
formação de uma democracia em que havia maior concorrência entre os candidatos pela
renovação do quadro das elites políticas (MOTTA, 1999; NICOLAU, 2004; CARVALHO,
2005; PANDOLFI, 2006).
Além disso, diferente do período anterior, quando as oligarquias regionais dominavam
os partidos estaduais, a obrigatoriedade do partido nacional trouxe como consequência um
novo arranjo sociopolítico e viabilizou a redução do poder dos oligarcas estaduais. É
importante salientar que as estruturas e lideranças regionais continuaram a ter importância; e
muitas “famílias tradicionais”, descendentes das antigas oligarquias, continuaram a comandar
as disputas eleitorais317
. Contudo, de maneira geral, ocorreu a mudança dos instrumentos de
controle político e formação do corpo de eleitores, principalmente nas áreas urbanas. Nas
cidades, não era mais a coerção e o aliciamento o padrão dominante das relações políticas,
mas o convencimento através de comícios, associações, propaganda e imprensa, ou seja,
instrumentos da política de massa.
A restrição de voto aos analfabetos foi um elemento de continuidade em relação ao
sistema eleitoral instituído na Primeira República. Essa norma iria vigorar até a Constituição
de 1988. Num país em que o ensino básico foi de difícil acesso durante a maior parte do
século XX, o não alistamento dos analfabetos trazia várias implicações para a formação do
corpo de votantes e para a dinâmica eleitoral. O peso mais significativo da restrição do
alistamento aos alfabetizados era a sub-representação dos pobres e da população rural no
sistema político. Assim, mesmo que as plataformas eleitorais e agendas políticas
incorporassem e fizessem coro para a expansão da democracia, setores significativos da
população ficariam excluídos do sistema político. No período de 1945 a 1964, observa-se que
a quantidade de eleitores crescia em números absolutos, mas permanecia baixa a porcentagem
de votantes em relação ao total da população (passou de 15% em 1945 para 25% em 1964).
Em parte, isso se explica pela abstenção política, mas também pela barreira da alfabetização.
Mesmo com a maior concorrência eleitoral, parcela significativa da população estava
excluída do processo eleitoral. Foi nesse sentido que Burgos (2006) afirmou que a “restrição
ao direito de voto dos analfabetos” explicaria “a invisibilidade política das favelas” (p. 27). O
significado dessa afirmação que vincula a invisibilidade social, pobreza e capacidade de fazer
parte do corpo de eleitores deve ser matizado com as estatísticas sobre as favelas. Em 1960,
os censos de favelas trouxeram dados sobre a alfabetização dos moradores (ver tabelas). Não
317
Para o caso de Minas Gerais, existe um longo ensaio do professor Cid Rebelo Horta, mostrando a
continuidade de algumas famílias na formação das elites políticas desde o século XVIII até o século XX. Cf.
HORTA, 1986.
243
aferiram a habilidade de leitura e escrita, mas representavam a forma como o indivíduo se
autodeclarava em relação ao conhecimento da língua e da escolaridade. Não se devem
justapor os dados do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte, pois eram perguntas e metodologias
diferentes que nortearam a aplicação do questionário pelos recenseadores.318
No entanto, com
essas informações, pode-se construir uma noção sobre o efeito do analfabetismo na
composição do voto urbano.
No Rio de Janeiro, o estudo tomou 5 anos como o limite para a idade pré-escolar,
aferindo que 55,24% da população era alfabetizada; em Belo Horizonte, o levantamento
estatístico estabeleceu sete anos como o limite pré-escolar, aferindo que 66,4% dos moradores
eram alfabetizados. Ambas as médias estatísticas indicavam que mais da metade da população
que moravam nas favelas do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte eram alfabetizadas. A taxa de
alfabetização aproximava-se da média nacional, 61,5%. Nem todas as pessoas que declaravam
saber ler e escrever formavam o corpo de eleitores alistados, devemos excluir os menores de
dezoito anos; porém, considerando a obrigatoriedade do voto, parcela significativa dos que se
declaravam alfabetizados poderia fazer parte do corpo de eleitores.
Por outro lado, o quadro estatístico não tem valor por si, e pode adquirir outro sentido
quando comparado com a mesma média para a totalidade dos moradores de cada cidade.
Quando contrastados esses dados com os da população em geral na cidade-estado da
Guanabara, vemos a forte desigualdade no acesso à educação, pois, seguindo as mesmas
regras, 81,9% da população declarava ser alfabetizada (IBGE, 1960: 12). Não é possível
estabelecer comparações com os dados da população em geral de Belo Horizonte, visto que o
IBGE publicava os quadros estatísticos, usando como referência a unidade da federação, mas
descartando a relação dos dados com os municípios. Entretanto, se calcularmos uma média
para a população urbana do estado, ainda observaríamos a tendência para a baixa
representação da população pobre319.
Além dessa disparidade, devemos ainda considerar outro
fator: a desigualdade no acesso ao registro civil, ou a qualquer espécie de documento que
comprovasse a identidade da pessoa. Tomando como exemplo o Rio de Janeiro, Fischer
318
Enquanto, em Belo Horizonte, perguntou-se simplesmente pelo “grau de instrução” do entrevistado, no Rio de
Janeiro, o censo seguiu de perto os critérios adotados no recenseamento de 1960 e os recenseadores arguiram se
o indivíduo sabia, ou não, ler e escrever (classificando-os por idade), o tempo da vida gasto com a formação em
qualquer tipo de estabelecimento escolar (escolas públicas, privadas, de cunho religioso, assistencial, de
alfabetização de adultos etc.), e a relação entre formação e participação em atividades econômicas. O censo do
Rio de Janeiro estava mais próximo das definições do recenseamento geral, permitindo maiores comparações. 319
Além disso, o fato de as estatísticas estabelecerem sete anos de idade como idade pré-escolar impede a
comparação com os dados do IBGE, que tomam como limite a idade de cinco anos. Se ainda considerarmos
essas observações e compararmos a média de alfabetização para a população urbana do estado, observaríamos
uma forte diferença, visto que a média de alfabetização da população urbana é de 66,9%.
244
(2008) observou que era alto o número de pobres que não tinha documentação civil, o que
também era um impeditivo para o alistamento e para o acesso à cidadania.
Ainda que inseridas em um sistema eleitoral que preservava características elitistas,
parcela significativa dos moradores estava habilitada a votar. Houve grande investimento na
mobilização eleitoral nas favelas no período de vigência da democracia política. Isso era um
efeito do acirramento das disputas eleitorais nos centros urbanos, onde havia maior taxa de
alfabetização e menor interferência de laços de parentela e de coerção na construção social do
voto. No cenário urbano, a criação de mecanismos e técnicas para a formação de corpos de
eleitores deu origem a diferentes estratégias de política de massa. O clientelismo era uma
eficaz estratégia para a conquista de benefícios e proteção. Ele dependia da capacidade de
cada localidade em negociar com políticos de diferentes legendas as melhorias urbanas.
Além disso, as regras do alistamento eleitoral, ainda que tivessem como horizonte a
isonomia na sua forma jurídica, tinham efeitos diferenciados nos grupos sociais. Para os
grupos mais atingidos pela dificuldade de se alistar para as eleições, o custo da participação e
representação no sistema político era mais alto. Segundo Machado da Silva, as direções de
associações reconheciam a incapacidade de se organizar numa mobilização de massa e
buscavam acumular e mobilizar recursos e contatos com o Estado, beneficiando, de forma
fragmentada, uma localidade (MACHADO DA SILVA, 1967). Além disso, os cabos
eleitorais, as direções e lideranças de associações esforçavam-se em divulgar e mobilizar o
corpo de eleitores para além da troca social de “melhorias” ou “benefícios” pela lealdade
política. Em diferentes espaços e escalas sociais, o conflito eleitoral e as culturas partidárias
buscava incorporar demandas e agendas que fossem capazes de dividir a sociedade e o
comportamento social quanto à orientação para o sistema político. No caso, os movimentos de
trabalhadores favelados se aproveitaram dessa dinâmica para criar uma agenda de
reivindicações e direitos.
Grau de Instrução em Belo Horizonte
Grau de Instrução Nº de Pessoas
Absoluto Relativo (%)
Em idade pré-escolar 28.644 23,91
Analfabeto 22.298 18,61
Em idade escolar sem instrução 5.966 4,98
Primário incompleto 41.207 34,39
245
Primário Completo 15.344 12,79
Curso Médio 1.976 1,64
Outros 448 0,37
Não declarado 3.926 3,27
Fonte: MINAS GERAIS, 1966: 23.
Alfabetização de pessoas com mais de 5 anos nas favelas no Rio de Janeiro
Nº de pessoas
Absoluto Relativo (%)
Não sabem ler
e escrever
112.844 41,06
Sabem ler e
escrever
151.517 55,14
Não declarado 420 0,15
Fonte: IBGE, 1960.
6.2 A UTF, a FTFBH e as mobilizações eleitorais
Problematizar as formas de participação torna-se ainda mais importante quando
percebemos o processo de institucionalização dos partidos e das eleições. Como notou
Lavareda (1991), ao final da experiência de democracia iniciada no pós-guerra, os partidos e
sua participação caminhavam para a institucionalização no sistema político. A primeira
pesquisa do IBOPE, realizada nas principais capitais do país em 1964, às vésperas do golpe
civil-militar, mostrou uma identificação partidária dos eleitores, eram minoria aqueles que não
tinham preferência por algum partido (LAVAREDA, 1991: 135). A proibição da existência de
um Partido Comunista na experiência democrática fundada em 1945 criava uma deformação
nessa identificação partidária, pois os cidadãos não podiam se manifestar de forma livre em
relação à preferência por um partido ou por lideranças comunistas.
A experiência da democracia de massa trouxe a política para a rotina e o cotidiano da
sociedade brasileira, com eleições em tempos regulares e com constante ampliação do corpo
de eleitores. Entre 1945 e 1964, um dos vetores para socialização política e disputa do voto
urbano era a criação de associações civis. As associações fundadas por iniciativa de
moradores, do Estado e de políticos foram elementos estruturantes para formação dos corpos
246
de eleitores. Na opinião de um dos agentes político-partidários que lutou para a mobilização
eleitoral,
antes de 1964, ao lado da imprensa escrita, as conferências e os comícios eram
instrumentos essenciais na propaganda política. (…) Para o bem ou para o mal,
naquele tempo não havia pesquisas de opinião pública e, assim, a repercussão de
certas teses era medida pelo que sucedia nos comícios. Esses eram o ponto
culminante das batalhas políticas, especialmente nas eleições (COELHO, 2000: 129
apud PEREIRA, 2007: 66).
Ou seja, na ausência de pesquisas eleitorais, os comícios, bem como as associações e
cabos eleitorais que os promoviam eram vetores da construção de identidades políticas e
peças fundamentais na dinâmica de conquista do voto.
Os movimentos que estudamos não foram exceção nessa dinâmica. Longe de serem
fenômenos isolados, eles construíram-se em relação bastante próxima com as instituições
político-partidárias, forjando corpos de eleitores nas favelas. Assim, existe uma história das
disputas eleitorais nos centros urbanos que não pode ser concebida sem a análise da forma
como os movimentos de trabalhadores favelados tentou orientar a votação. A despeito da
política de bica de água e do clientelismo, a UTF e a FTFBH tentaram formar um voto que
alinhava os moradores das favelas com a cultura operária.
Tanto a UTF quanto a FTFBH colaboraram para a instituição de uma agenda
reformista que reconhecia o direito de moradia nas favelas como um tópico central das
políticas urbanas. Mas as trajetórias para conformação dessas plataformas eleitorais são muito
diferenciadas, pois se relacionam com configurações políticas diferentes.
6.2.1 Partido Comunista e política urbana no período da legalidade
Um dos atores centrais para explicar as diferenças na formação das alianças
reformistas da UTF e da FTFBH é a compreensão da influência do Partido Comunista do
Brasil (PCB) em cada cidade na formação dos associativismos. O PCB foi um dos atores
centrais na percepção da funcionalidade das associações e sociabilidade urbana para a
conquista do voto. Em 1945, ele foi uma força política pioneira na formação de associações
de base em sindicatos, fábricas, bairros, vilas e favelas.
A posição do PCB na sociedade brasileira no período de 1945 a 1964 pode ser
atribuída ao prestígio do comunismo no período do pós-guerra. Após o fim do Estado Novo, a
participação da União Soviética na aliança que derrotou o nazifascismo na Europa trouxe
247
prestígio para os comunistas em várias partes do mundo. Com a derrocada e destruição das
potências imperialistas europeias, a URSS, juntamente com os Estados Unidos, apareceu
como potência mundial e como modelo para organização política e social de diferentes
nações. A posição do comunismo na reorganização mundial influenciou o crescimento e a
adesão aos partidos comunistas e explica, em parte, seu sucesso no Brasil. No período em
foco, o PCB foi um dos partidos de maior destaque na América Latina, angariando grande
proeminência no cenário internacional (PANDOLFI, 1995).
Em 1945, com a promulgação da Lei Agamenon Magalhães e a conquista da
legalidade, o PCB buscou a formação de um “partido de novo tipo”, um partido de massa sob
a liderança de Luiz Carlos Prestes. Como teve oportunidade de participar de forma legalizada
da política institucional, optou pelas alianças com outras frentes de esquerda e pelas bandeiras
nacionalistas e democráticas. Na visão dos comunistas, o Brasil estava num estado de atraso
em relação aos países capitalistas e ao resto do mundo. A sociedade brasileira era vista como
“feudal” e, para evoluir, a estratégia lançada seria a aliança entre os setores da “burguesia
nacional” para a transformação das estruturas sociais. No campo oposto ao intento de
modernização, identificava-se a influência imperialista, fortemente identificada com a ação
norte-americana, que assumia a liderança do ocidente capitalista com a progressiva perda de
influência dos países europeus na política internacional. Esse projeto e essa visão de mundo
galvanizaram várias forças políticas do campo da esquerda em torno de um projeto nacional
(Idem, 1995: 157-179).
A experiência foi única e uma exceção quando comparada com a história do PCB ao
longo do século XX. Durante o curto período da legalidade, entre 1945 e 1947, o PCB foi a
quarta força política do Brasil, ficando atrás apenas do PSD, da UDN e do PTB. Além da
inserção em associações de classe, do prestígio alcançado com Luiz Carlos Prestes, e da
perenidade do partido, o mais antigo do sistema político em formação, nesse período houve
grande investimento na formação de associações de bairro, uma vez que elas eram
estratégicas no sistema eleitoral. Vários trabalhos reconhecem o pioneirismo do PCB na
politização da questão urbana. Essas associações reconheciam os direitos e problemas
enfrentados pelos moradores em seu cotidiano, dando voz e expressão política para parcela da
população que estava excluída do jogo político, e também ofereciam um alinhamento com a
política partidária. Tão logo se observou o sucesso dessa linha de atuação, outros partidos e
outras correntes políticas passaram a investir num mesmo viés, conseguindo disputar esse
espaço político com os comunistas.
248
No Rio de Janeiro, nas eleições de 1947, os comunistas conseguiram eleger quatorze
vereadores para a Câmara Municipal do Distrito Federal, formando a maioria no legislativo
municipal; para o Senado, em 1945, os cariocas elegeram Luís Carlos Prestes – secretário
geral do partido e principal liderança política. O sucesso eleitoral na capital da república foi
conquistado com a influência no meio intelectual, e nos setores operários, através de
sindicatos e da politização dos problemas da cidade. Os Centros Democráticos Populares
(CDPs) e a aproximação com a cultura popular, por meio da valorização das escolas de
samba, constituíram o esteio dos comunistas nos subúrbios e favelas cariocas (GUIMARÃES,
2009). Em 1947, quando foi cassado, o PCB era um partido com lastro político e social nas
classes populares e tinha grande proeminência na cidade. Essa importância pode ser vista nos
anos posteriores, quando políticos do partido continuaram a se eleger para os órgãos
legislativos, mesmo com o peso da proibição legal e com a orientação contrária assumida pela
linha política e partidária.
Em Belo Horizonte, durante o período da legalidade, o PCB fundou diversas células
em bairros e vilas. De acordo com Pereira, foram criadas 52 células do partido, distribuídas
por sete comitês distritais320
. A distribuição dessas células mostrava o esforço do partido em
conseguir lastro nos diversos espaços da cidade, mobilizando segmentos sociais variados.
Havia um maior número de células em regiões próximas ao centro da cidade, com
predominância na região da Lagoinha, da Floresta e do Prado (PEREIRA, 2007: 58). A maior
concentração de manifestações era em bairros operários consolidados, pois houve uma
significativa redução dessas instituições nos bairros classificados como aristocráticos,
principalmente na parte próxima aos bairros Funcionários, Lourdes e Cidade Jardim. Segundo
um informe do partido, as manifestações deveriam ocorrer de “fora para dentro” dos limites
da Avenida do Contorno, numa clara indicação da preferência por atuar em áreas de ocupação
operária nos subúrbios (Idem, p. 56).
Apesar dos investimentos comunistas na conquista de voto junto aos setores populares,
os resultados político-eleitorais foram muito diferentes daqueles obtidos no Rio de Janeiro em
1947. Foram eleitos apenas o bancário Armando Ziller para a Assembleia Legislativa e o
jornalista Orlando Bonfim Júnior na Câmara dos Vereadores, uma discrepância enorme
quando se compara esse resultado com a constituição da bancada comunista carioca no
320
É importante salientar que esses dados são parciais, visto que foram construídos a partir do material
apreendido pela polícia política; além disso, muitas células registradas eram casas de indivíduos filiados ao PCB,
e podiam existir, sem grande destaque no espaço público, como “sedes” de células partidárias.
249
legislativo municipal321
. Essas diferenças de posições dos comunistas foram importantes para
a trajetória do associativismo de favelas e das mobilizações eleitorais em momentos
posteriores.
A dupla cassação do partido e o acirramento da Guerra Fria alteraram a orientação
política dos comunistas. Os manifestos de janeiro de 1948 e agosto de 1950, bem como o
programa aprovado no IV Congresso (1954), sinalizaram para o abandono da via institucional
como meio de transformação social. O embate com o governo, o acirramento da luta de
classes, e o sectarismo em relação aos partidos e às alianças políticas foram assumidos como
estratégia dos comunistas. Numa posição extremada, o partido orientou a militância sindical a
abandonar os sindicatos oficiais, porque eram atrelados ao Ministério do Trabalho, dessa
forma houve abertura para formar associações paralelas. Isso, contudo, não impediu que
militantes discordassem da orientação do partido e continuassem a participar da vida política
O programa do partido só foi revisto com a crise do stalinismo em 1956 e a Declaração de
Março de 1958 (GORENDER, 1987: 20-21; PANDOLFI, 1995: 175; FERREIRA, 2001).
6.2.2 Os trabalhadores favelados, a bancada comunista e a constituição da aliança
nacionalista no Rio de Janeiro
Nos anos 1950, os comunistas, ainda que na ilegalidade, disputavam cargos para o
legislativo, através de outras legendas partidárias. A política do “entrismo” causava uma
distorção da representação política, visto que muitos políticos identificados como parte da
“bancada comunista” atuavam oficialmente por outras legendas. A clandestinidade da
militância era uma necessidade. No período, ser “comunista” era uma tarja negra, uma
categoria de acusação para desqualificar pessoas e práticas no espaço público.
No Rio de Janeiro, na legislatura de 1951 a 1955, os comunistas Aristides Saldanha,
Henrique Miranda e Antenor Marques foram vereadores eleitos pelo Partido Republicano
Trabalhista (PRT). Além de serem fortemente críticos ao governo de Vargas e se colocarem
do lado das causas operárias, esses vereadores foram defensores dos projetos de
desapropriação de morros e da denúncia contra os despejos de favelas. A bancada comunista,
juntamente com o vereador Urbano Lois e o deputado Breno da Silveira, ambos do Partido
Socialista Brasileiro (PSB), iriam defender as causas da Favela Hípica, da Favela Frei José, do
321
O fraco desempenho eleitoral, com poucos parlamentares eleitos, interferia na própria trajetória dos
comunistas no legislativo do municipal. Os comunistas que se elegeram em Belo Horizonte para a Câmara dos
Vereadores foram: o jornalista Orlando Bonfim Júnior (1947); pelo PTB, o médico Geraldo Bizzoto (1959-
1962); e o operário e advogado Dimas Perrin (1963-1964).
250
Morro da Rádio Nacional, Rua do Ati (em Jacarepaguá), do Morro da Capela e do Morro do
Simão – todos os locais estavam ameaçados pela remoção de moradores. Durante o segundo
governo Vargas, ainda que não houvesse remoções em larga escala, continuaram a existir
ameaças ao direito de moradia nas favelas por parte do mercado imobiliário e das ações do
governo (FISCHER, 2008: 281).
Os vereadores comunistas destacaram-se no apoio ao movimento de trabalhadores
favelados, organizado pela UTF, juntamente com o deputado federal Roberto Morena,
também comunista eleito pelo PRT. A chamada “bancada comunista” seguia de perto as
diretrizes de uma política para as favelas que tinha sido vitoriosa nos anos precedentes. Em
1947, quando foram majoritários na Câmara Municipal do Distrito Federal, os comunistas
alteraram a forma de enquadramento da questão das favelas: longe dos gestos de piedade
religiosa, caridade e paternalismo estatal, reivindicaram o reconhecimento da moradia como
um direito. Esse enquadramento foi imposto pela maioria comunista na bancada do legislativo
municipal e, em parte, visto como um tópico da agenda política capaz de render proeminência
a vários candidatos que disputassem a formação de suas bases eleitorais nas favelas. No
início da década de 1950, após a cassação dos comunistas, outros políticos de esquerda
colocavam em primeiro plano o direito de moradia e a construção de melhorias para os
trabalhadores favelados (Idem, p. 264-271). As ameaças de despejo nas favelas ganharam
grande visibilidade pública e serviam como meio de ataque ao governo e à sua política para as
favelas.
Em torno de uma frente política de esquerda, constituiu-se uma rede de apoio política
e partidária às mobilizações contra os despejos. Quando foi fundada a UTF no Morro do
Borel, em 1954, a frente política se aproveitou dessa rede e a expandiu. A forte divulgação e
presença constante da UTF nas páginas da Imprensa Popular, órgão oficial do PCB, salientou
a força e o investimento feito pelos comunistas naquele movimento. Isso se verificou também
no cotidiano dos encontros e comícios promovidos pela UTF; ainda que houvesse outros
partidos nessas manifestações, existia um vasto predomínio dos comunistas. No período de
criação da UTF, por exemplo, o deputado Roberto Morena foi o único político presente, tanto
na reunião de organização da associação, em 2 de abril de 1954322
, quando se discutiu e se
aprovou o estatuto da entidade na casa do advogado Magarinos Torres Filho, quanto no
322
Ata de organização da União dos Trabalhadores Favelados, 02/04/1954. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO
DO RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Pasta 1046.
251
comício de inauguração da entidade, em 21 de abril323
. Na presença dos representantes da
UTF, Roberto Morena teria usado as seguintes palavras:
Mesmo sob os olhos desta política em que o governo de Vargas manda expulsá-los
de seus lares, vocês dão essa vibrante demonstração de coragem e unidade,
reunindo-se em defesa do direito de morar. Não é à toa que atualmente a Prefeitura
já não derruba mais os barracos deste morro. É que a organização dos moradores do
Morro do Borel já foi capaz de fazer recuar os coronelões derrubadores de favelas.
Prosseguindo unidos, vocês derrotarão os inimigos dos favelados. Não há violência
que possa barrar a luta que vocês iniciam324
.
O trecho acima seguia de perto as orientações do PCB. O “Governo antipopular”, o
“governo responsável pela miséria do povo”, as “violências da polícia de Vargas”, as
“desumanidades do regime de Vargas”, foram inúmeros os qualificativos críticos ao governo.
Ao final da reportagem do Imprensa Popular, que publicou parte do discurso de Roberto
Morena, exaltava-se a luta da favela contra os “grileiros” e as desigualdades sociais, na
expectativa de que a UTF pudesse participar da formação de um governo que representasse o
“povo trabalhador”. Esse discurso que exaltava a classe trabalhadora na história pode também
ser visto no estatuto da UTF, que situava a luta das favelas como parte da luta da classe
operária325
. Apropriando-se de uma data do calendário nacional, o estatuto dizia que “o dia 21
de abril”, dia da fundação da associação, seria “comemorado, todos os anos, como o dia da
‘União dos Trabalhadores Favelados’, lembrando, juntamente, a data em que foi sacrificado
José Joaquim da Silva Xavier – ‘O Tiradentes’ – como exemplo de luta e independência
contra todas as formas de opressão que afligem os trabalhadores brasileiros”326
. O dia 21 de
abril continuou a ser lembrado e comemorado como a data de fundação da entidade.
O viés antivarguista presente nos comícios e nas manifestações da UTF, em
consonância com a postura do PCB, vigorou até o suicídio do presidente. Nesse curto período
de tempo, não é possível falar da adesão dos moradores à retórica antivarguista,
principalmente porque o presidente da República era associado à conquista de direitos nas
classes populares. Ademais, na luta contra o despejo e pela defesa da moradia, a ideologia do
getulismo, o gesto de gratidão ao presidente como um protetor das favelas, esteve bastante
presente no imaginário de muitos moradores de favelas (FISCHER, 2008). Deve-se considerar
ainda o contexto em que surgiu a UTF, na ocasião Vargas havia decretado a duplicação do
323
Segundo Lima, Roberto Morena foi um grande articulador da UTF em seus primeiros anos (LIMA, 1989). 324
PARA COMBATER os grileiros. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 22/04/1954, p. 5. 325
Nesse mesmo viés, foi escrito o livro Lutas do Povo do Borel (1980). 326
Projeto de Estatuto da União dos Trabalhadores Favelados, 02/04/1954. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO
DO RIO DE JANEIRO. Fundo Pol Pol. Arq. Setor DPS. Pasta 1046. Sobre o simbolismo de Tiradentes na
memória da UTF, cf. AMOROSO, 2012: 103.
252
salário mínimo no início do ano de 1954 (SKIDMORE, 1975; FERREIRA, 2005). O discurso
antigetulista, entretanto, perpassou a atuação dos comunistas durante todo o período de 1951 a
1955. Esse discurso foi reforçado, por exemplo, com o incêndio e a remoção dos moradores
da Favela Hípica em 1952, e com o incêndio da Favela do Esqueleto em 1953. Sem dúvida,
com esses dois episódios, o discurso antigetulista encontrou algum tipo de público e
repercussão. Afinal, havia, no caso das favelas, uma grande ambiguidade: o governo
propugnava a proteção dos trabalhadores das favelas, mas via aqueles espaços como
provisórios.
Entre fevereiro e agosto de 1954, no contexto de fundação da UTF no Borel e da
expansão do movimento de trabalhadores favelados, esse discurso adquiriu outras funções:
era uma forma de difundir os valores da cultura comunista e angariar apoio para os
“candidatos populares”327
. Em 3 de outubro de 1954, seriam renovadas as cadeiras para o
legislativo municipal e a bancada carioca no Congresso Nacional. Nesse sentido, o discurso
antigetulista servia, por excelência, para disputar o campo político das favelas com o PTB,
principalmente na eleição para a Câmara dos Vereadores. Segundo imprensa comunista,
existiam os “candidatos do asfalto” e os “candidatos do povo”, os “inimigos” e os “amigos do
povo”, os candidatos que subiam os morros de última hora e aqueles que seriam “autênticos”,
que representavam as associações independentes e os moradores locais. Eram taxados de
“demagogos” os candidatos ligados à Vargas e a outros parlamentares que não fossem ligados
ao Partido Comunista.
Em princípio, a UTF se envolveu principalmente na campanha para o legislativo
municipal, apoiando os candidatos Antenor Marques, Aristides Saldanha e Henrique Miranda,
que buscavam se reeleger. Segundo o jornal Imprensa Popular,
antes, o prefeito ordenava e o coronel Melquíades executava o despejo, destruindo
barracos e espancando moradores; agora, à custa do trabalho lento e organizado,
levado a cabo principalmente pelos vereadores Antenor Marques, Henrique Miranda
e Aristides Saldanha, os favelados começam a se organizar em torno da União dos
Trabalhadores Favelados e os desumanos despejos não chegam a ser consumados328
.
O trecho acima estava carregado de críticas à gestão do prefeito indicado por Vargas.
O Coronel Melquíades era o chefe da Polícia de Vigilância, encarregada do controle e
repressão à construção e reforma de barracos. Durante a gestão do prefeito Dulcídio Cardoso
(1953-1954), o Coronel Melquíades foi nomeado chefe da Comissão de Favelas – órgão que
era responsável pela política das favelas na prefeitura. 327
Em 1954, foram realizadas eleições para a Câmara Federal, para o Senado, para o executivo dos municípios e
para governador em alguns estados. 328
SOBEM aos morros os candidatos do asfalto. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 26/06/1954. p. 8.
253
Na disputa pela autenticidade na representação dos trabalhadores favelados, um dos
alvos centrais dos comunistas era Geraldo Moreira, candidato a vereador pelo PTB. Entre
1947 e 1951, esse personagem fez parte da bancada trabalhista, destacando-se por defender a
causa da favela do Jacarezinho contra o despejo coletivo autorizado pela Justiça em finais da
década de 1940; em 1953, foi nomeado parte da Comissão de Favelas da Prefeitura do
Distrito Federal, juntamente com Dulcídio Cardoso. Segundo a Imprensa Popular, Geraldo
Moreira retinha títulos de eleitores, explorava aluguel, e era dono uma casa de jogos no
Jacarezinho. Consta que também usava seu poder e influência junto a Lutero Vargas, para
usar a polícia, quando necessitava de intervir na localidade,329
. Essas denúncias foram
alardeadas não só pelos comunistas, mas também por udenistas e por Edgard Carvalho (PSP)
que disputava a base eleitoral do Jacarezinho330
. Essa postura não impediu a aliança posterior
que os comunistas elaboraram com Geraldo Moreira, em 1955, num outro contexto político.
6.2.2.1 A agenda da UTF e a aliança reformista
A UTF foi criada nesse momento de oposição ao varguismo e de disputa do voto nas
favelas, dando apoio aos já referidos candidatos comunistas (Antenor Marques, Aristides
Saldanha e Henrique Miranda). Isso em parte explica a pouca repercussão das ações da UTF
no noticiário do jornal Última Hora – jornal simpático a Vargas e à ausência de políticos do
PTB na fundação da organização da associação.
Existe um forte contraste entre os primeiros meses da mobilização da UTF com os
anos posteriores, marcados pela forte presença de políticos ligados ao trabalhismo. O
reposicionamento da UTF seguiu de perto as transformações dos comunistas no campo
político. Segundo Gorender, “ao abrir-se à crise política de agosto de 1954, os comunistas se
confundiram com os udenistas na mesma ofensiva pela deposição do Presidente da República.
A direção nacional do PCB custou a sair da perplexidade ao constatar que se encontrava ao
lado dos setores vinculados ao imperialismo norte-americano” (GORENDER, 1988: 22). O
documento do partido que melhor expressou essa mudança entre os comunistas foi o
329
Idem. 330
Edgar Carvalho elegeu-se pelo PTB nas legislaturas de 1947-1950, e se notabilizou pela defesa dos moradores
de Jacarezinho, juntamente com Geraldo Moreira. No segundo mandato na Câmara Municipal, entre 1951 e
1955, ele se afastou da legenda pela qual tinha sido eleito (PTB) e filiou-se ao PSP. Nas legislaturas que
seguiram, ele foi um dos principais nomes do PSP na Câmara Municipal, conseguindo se reeleger duas vezes
como vereador (1955-1958; 1959-1963).
254
Manifesto do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (05/09/1954), conclamando
uma frente única entre comunistas e trabalhistas331
.
Após a morte de Getúlio Vargas até a década de 1960, a aliança do PCB e do PTB no
movimento de trabalhadores favelados teve como principal articulador o advogado Magarinos
Torres Filho. Isso pode ser observado em vários momentos posteriores, como na eleição
presidencial de Juscelino e João Goulart (1955), na tentativa de Magarinos se eleger vereador
pelo PTB (1958), e nas eleições de 1960. Mas um dos momentos mais emblemáticos
aconteceu às vésperas da eleição municipal de três de outubro de 1954, menos de dois meses
depois do suicídio de Vargas, quando o secretário-geral da UTF concedeu uma entrevista ao
Última Hora. Entre fevereiro e agosto, era a primeira vez que o jornal destacava as ações do
movimento dos trabalhadores favelados, sem deslocar o foco de ação para um parlamentar do
PTB ou acusando-o de ser um movimento comunista332
. A UTF foi apresentada como a
“vanguarda da luta contra despejos”, representando “44 mil favelados associados”. Numa
página toda dedicada a reverenciar Getúlio Vargas e a atacar o “corvo”, alcunha depreciativa
de Carlos Lacerda, o secretário geral da UTF declarou apoio aos candidatos do PTB e
representantes do getulismo:
Os grã-finos da UDN são os maiores inimigos dos favelados. Para estes políticos
perfumados, todo homem que reside no morro não passa de vagabundo (…). O
motivo é simples e, como sempre de ordem egoisticamente financeira. Os grã-finos
da UDN, em sua totalidade proprietários de luxuosos imóveis nos bairros
aristocráticos da cidade, voltam-se sempre contra os favelados, porque acham que a
presença de favelas desvaloriza suas ricas propriedades. Daí surgir sistematicamente
campanha que eles movem contra os homens humildes dos barracões. No sentido de
desmoralizar, afirmam que “todo favelado é vagabundo”. Isto é uma deslavada
mentira. A grande maioria de favelados é de cidadãos trabalhadores, que residem em
desconfortáveis barracos premidos pelas dificuldades financeiras. Não é qualquer um
que pode morar num luxuoso apartamento duplex em Copacabana. (…) Ainda dez
dias antes da morte do Presidente, concedeu-me ele uma audiência na qualidade de
Secretário Geral da União. Levei ao sr. Getúlio Vargas, através de um memorial, as
reivindicações dos favelados. Impressionou-me o interesse demonstrado pelo Chefe
do Executivo. Poucos dias depois, o Presidente dava início à solução dos problemas
enumerados no Memorial, enviando o caso para a Prefeitura333
.
331
Vários outros autores apontam para a crise de agosto de 1954, consideravam-na um momento de reavaliação
da ação e do comportamento dos comunistas, ainda que a via constitucional para a disputa política fosse negada
no programa do partido aprovado no mesmo ano. Cf. SANTOS, 1988: 87-88; PANDOLFI, 1995: 175-176;
SEGATTO, 2003: 223-229.
332Mesmo na aprovação dos projetos de lei e com as mobilizações contra o despejo nos meses de junho e julho, o
enfoque jornalístico do Última Hora era para os políticos ligados ao PTB, com um grande um silêncio em
relação à UTF. 333
OS GRÃ-FINOS da UDN são os maiores inimigos dos favelados. Última Hora. Rio de Janeiro, 02/10/1954, p.
2.
255
A mudança do discurso, marcado agora pelo forte antiudenismo, transcorria num
momento de alteração da conjuntura política. Primeiro, ocorreu a morte de Vargas que
produziu uma forte mobilização popular no país, o que levou os comunistas a reavaliarem sua
ação. Em segundo lugar, Café Filho (1954-1956) assume o governo e, para auxiliá-lo na
administração, nomeia vários políticos ligados à UDN. Para prefeito do Rio de Janeiro, por
exemplo, foi nomeado Pedro Alim (1954-1955), com vínculos com o udenismo, que lançou
uma nova campanha que alinhava o poder público à igreja católica, a fim de que se
contrapusesse ao crescimento da UTF. Em terceiro lugar, o apoio aos trabalhistas ocorria num
momento em que os “candidatos do povo”, apoiados pela UTF foram cassados e havia uma
forte rejeição popular aos discursos que criticavam o presidente Vargas.
O tom da entrevista de Magarinos Torres é radicalmente diferente do discurso
antigetulista de Roberto Morena, quando a UTF foi fundada. Ao contrário de opor os
“trabalhadores favelados” à violência do “governo de Vargas”, desenha-se aqui uma
complementaridade, um governo que recebia o memorial dos moradores e prometia
solucionar seus problemas. A declaração retomava a noção de direito como um gesto de
generosidade e reciprocidade entre o presidente e o trabalhador334
. Além disso, desenhava-se
a oposição entre “udenistas grã-finos” e “trabalhadores favelados”, anunciada como um
conflito de classe entre os moradores de bairros da zona sul e os moradores de favelas. O
conflito de classe desdobrava-se na problematização da segregação socioespacial e das
tensões que surgiam da desigualdade. No momento eleitoral, essas tensões eram traduzidas na
oposição entre “undenistas grã-finos” e “trabalhadores favelados”.
A entrevista no Última Hora expressa a forma como os jornais, as associações e os
porta-vozes dos trabalhadores favelados atuavam para formar um corpo de eleitores. A aliança
entre comunistas e trabalhistas ultrapassou a própria conjuntura política e se tornou um
componente estruturante dos pactos eleitorais forjados na política carioca e nacional. Nas
eleições de 1955, 1958 e 1960, o movimento de trabalhadores favelados manteve-se
intimamente ligado aos políticos que se lançaram pela plataforma política do trabalhismo e
nacionalismo. Os documentos, manifestos e declarações que fixaram a posição política dos
trabalhadores favelados foram constantes até o final da década de 1960. Semelhante ao
discurso às vésperas da eleição de outubro de 1954, pronunciado por Magarinos Torres Filho,
eles tinham como propósito fornecer uma leitura da conjuntura política e orientar a votação
dos candidatos ligados à aliança trabalhista e comunista.
334
Para a discussão sobre a noção das trocas materiais e simbólicas no getulismo, cf. GOMES, 2005: 179-182.
256
Um dos documentos de maior referência para a UTF foi o manifesto de apoio à eleição
de Juscelino Kubitschek e João Goulart, em 1955. Esse documento foi importante para a
ascensão de JK ao governo federal e por se transformar em um componente da memória
política do final dos anos 1950. O manifesto se tornou uma espécie de pacto político e foi
relembrado em outros momentos pelas lideranças do movimento social, que o usaram para
cobrar um posicionamento do governo quanto às questões de interesse dos trabalhadores
favelados:
Aproxima-se o dia 3 de outubro, data em que, pelo voto, serão escolhidos o
novo presidente e vice-presidente da República.
A campanha eleitoral que se está desenvolvendo, que vem sendo feita sob as
ameaças constantes de golpes, não interessa àqueles que tomaram o poder a 24 de
agosto de 1954, com o suicídio, por eles provocado, do ex-presidente Vargas.
E por que isso?
Porque, tendo-se apoderado do poder, de cujo governo faz parte o Sr. Juarez
Távora, candidato à presidência da República, o fizeram para aumentar a miséria e a
fome em nossos lares.
O custo do arroz, do feijão, do leite e demais gêneros de primeira
necessidade, nunca tiveram seus preços tão rapidamente aumentados como neste
governo. As ameaças de despejo contra os favelados aumentaram assustadoramente
como ocorreram com as favelas do Borel, União, do Vintém, Maré, Mangueira etc.
Sucederam-se as invasões policiais, com o objetivo de atemorizar os favelados e
criar ambiente para os despejos sob a desmoralizada alegação de que nas favelas
moram vagabundos e assassinos, quando são as próprias estatísticas oficiais que
revelam que o povo das favelas é um povo trabalhador e ordeiro.
Temendo a derrota nas urnas, queriam e querem evitar as eleições por meio
do golpe.
Os favelados, no entanto, repelem o golpe, porque, se isso ocorresse, muito
mais difícil seria a nossa luta. As violências com que nos ameaçam hoje seriam
multiplicadas várias vezes. Os favelados precisam de liberdade e respeito aos seus
direitos. Precisam de melhorias nas favelas, como sejam luz, água e esgoto e não
invasões e despejos. (…)
Trabalhadores Favelados!
Votar em Juarez é votar nos despejos e invasões policiais nas favelas.
Votar em Ademar é tirar votos de Juscelino e Jango para dar a Juarez.
Unidos, votaremos, pois, em Juscelino Kubitschek e João Goulart, os candidatos dos
favelados335
.
O documento acima vinha assinado pelas várias associações que se ligavam à UTF.
Nesse pleito, a aliança entre o PSD, o PTB e o Partido Comunista tentaria eleger para o
governo federal Juscelino Kubitschek e João Goulart, que tinham como principal concorrente
Juarez Távora e Milton Campos pela coligação antigetulista UDN-PDC. O manifesto da UTF
inseria-se num quadro maior, na formação dos “Comitês J-J” (Juscelino e Jango) instaladas
nos subúrbios e favelas. Era comum cabos eleitorais realizarem comícios para os candidatos,
firmando compromissos eleitorais. O manifesto de apoio da UTF funcionava dentro da
335
MEIO MILHÃO DE FAVELADOS com Juscelino e Jango. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 25/09/1955. p.
2.
257
mesma lógica. Além dos moradores, assinavam o documento os “médicos dos favelados” e os
“advogados dos favelados”, profissionais que prestavam algum tipo de assistência nas
associações locais da UTF e que também atuavam como cabos eleitorais336
.
O suicídio de Vargas novamente foi tomado como o ponto de divisa política entre
aqueles que representariam os trabalhadores e seus inimigos. Na visão de mundo expressa no
manifesto, as mazelas sociais da economia popular que atingiam especificamente os pobres
seriam de responsabilidade do governo de Café Filho. Assim, a alta dos gêneros de primeira
necessidade, a fome, bem como os despejos coletivos autorizados pela Justiça seriam culpa de
um governo não democrático, caracterizado pela violência policial. Todos esses conflitos
situavam-se no campo da economia popular e reclamavam a intervenção do Estado no
mercado, para garantir melhores condições de vida para os trabalhadores. Segundo matéria
publicada às vésperas das eleições,
Os favelados, de 24 de agosto para cá, vêm sendo vítimas de inúmeras violações aos
seus direitos. Recrudesceram as tentativas de despejo em massa, os seus lares são
sempre invadidos por uma malta de policiais que visam, assim, criar um ambiente de
terror, para despejá-los.337
Em novembro de 1955, logo após as eleições, a UTF lançou um novo manifesto,
denunciando a tentativa de golpe contra JK e Jango, mas também exigindo o fim das
violências policiais, dos despejos e a diminuição do custo de vida. A Justiça eleitoral
reconhecia a vitória de JK (36% dos votos), contra Juarez Távora (30%). Todavia a UDN,
além de alegar que a diferença entre os dois candidatos era nula, atacava JK e Jango,
acusando-os de fraudar as eleições, de ter recebido o apoio ilegal dos comunistas e de ter
ligação com o líder argentino Perón, com objetivo de implantar uma “república sindicalista”
no Brasil. Diante disso, a UDN pedia a intervenção dos militares, para impedir a posse de
Juscelino Kubitschek. Era uma tentativa de golpe. Marechal Lott organizou um contragolpe,
uma intervenção militar com o objetivo de garantir o cumprimento do resultado eleitoral.
Os acordos e manifestos de apoio à eleição presidencial de Juscelino Kubitschek e do
vice-presidente João Goulart seriam lembrados em outros momentos políticos, mesmo após a
336
Assinaram o manifesto os representantes do Jacarezinho, do Morro do Borel, do Santa Marta, da Providência,
do Alemão, da Favela do Tuiuti, da Candelária, do Macedo, da Praia Moreninha, do Arara, do Juramento, da
União, do Esqueleto, de Marcílio, da Rocinha, da Maré, do Timbau, da Rocinha, da Praia do Pinto e do Parque
Proletário da Penha. 337
Cf. OS CANDIDATOS dos favelados são Juscelino e Jango. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 23/09/1955, p.
8. Ver também discurso de Geraldo Moreira na Câmara dos Vereadores contra Sandra Cavalcanti. Cf. CÂMARA
DO DISTRTO FEDERAL. Anais da Câmara do Distrito Federal de 1955. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial,
1955. p. 1585. (Livro nº 55).
258
tentativa de o governo intervir na entidade. Em 1957, a UTF sofreu uma intervenção policial,
acusada de fazer parte da “frente comunista”. Essa intervenção não interrompeu totalmente as
atividades da entidade. Em 1958, há um novo registro civil da UTF, usado como base política
para a campanha eleitoral do advogado das favelas, Magarinos Torres. Num folheto de
divulgação do estatuto da UTF, haveria uma narrativa sobre os feitos dos trabalhadores
favelados, destacando a imagem de Magarinos Torres – candidato que tentava se eleger para
vereador.
A posição do governo federal era ambígua, sujeita a diferentes leituras. Ainda que no
governo de Juscelino Kubitschek a polícia política tenha aberto o Inquérito Policial nº 899 e
intervido no fechamento das associações ligadas à UTF, acusando-as de fazer parte de uma
“frente comunista”, a coalizão de pessedistas e trabalhistas no Legislativo, apoiada por
mobilizações dos “trabalhadores favelados”, conquistaram a suspensão dos despejos por dois
anos nas favelas cariocas 338
. A UTF sofria oposição da Cruzada São Sebastião, uma iniciativa
católica apoiada pelo governo federal que tentava assumir a liderança das associações de
moradores na cidade (GONÇALVES, 2013: 157), mas reivindicava uma proximidade com o
governo federal baseada num “pacto eleitoral” elaborado em 1955 e na expectativa de
proteção frente às arbitrariedades policiais. Nesse sentido, o folheto que divulgava em 1958 as
ações da UTF recuperava o apoio dado a JK e Jango nas eleições de 1955. O folheto lembrava
que o governo atual apoiava o advogado Magarinos Torres, no intuito de dar um “tratamento
melhor e mais humano” aos trabalhadores favelados:
De tal modo se tornou notória a atuação da UTF, que nas eleições
presidenciais de outubro de 1955 todos candidatos à Presidência e à Vice-
Presidência fizeram questão de assumir com o Dr. Magarinos Torres, como
representante da UTF, compromissos eleitorais, garantindo, caso eleitos, a defesa
dos favelados contra os despejos, a melhoria das condições de vida nas favelas e um
tratamento condigno aos trabalhadores favelados, até então tratados como bandidos
ou marginais pela nossa polícia.
O atual Presidente da República, Dr. Juscelino Kubitschek e o Vice-
Presidente, Dr. João Goulart, assinaram compromissos que se encontram em poder
da “UNIÃO DOS TRABALHADORES FAVELADOS”.
Deve-se à UTF o tratamento melhor e mais humano que hoje os homens de
governo dão aos trabalhadores favelados, até então verdadeiros párias.339
O texto acima, intitulado “O que é a União dos Trabalhadores Favelados?”, fazia uma
narrativa exemplar, identificando as principais conquistas do movimento social, destacando
com grande intensidade o “pacto eleitoral” estabelecido entre as favelas e JK no período das
338
A suspensão do despejo através da “Lei das Favelas” será analisada no próximo capítulo da tese. 339
Folheto Estatuto da União dos Trabalhadores Favelados, 1958. Arquivo Pessoal de Ruth Pereira Barros.
259
eleições de 1955. O advogado figurava entre os políticos (“Dr.”) que protegiam as favelas
contra as arbitrariedades e o desrespeito aos direitos. O texto “O que é a União dos
Trabalhadores Favelados?” foi publicado como um folheto de onze páginas, com a foto de
Magarinos Torres no ano em que ele disputou uma cadeira de vereador. Figurava também
como fiador de uma aliança com o governo eleito, sendo assim seria de grande utilidade no
contexto político, ou seja, tornar-se-ia uma estratégia de convencimento dos grupos que agiam
em termos pragmáticos, esperando benefícios. Magarinos Torres se destacava ainda por ter
sido fiador do chamado “pacto eleitoral” com Juscelino Kubitschek: em 1955, ele foi um dos
principais articuladores da aliança da UTF na campanha presidencial de Juscelino e João
Goulart. Integrou a seção carioca do Movimento Nacional Popular Trabalhista (MNPT), que
tinha por objetivo apoiar um candidato à presidência da república que representasse os anseios
da classe operária. Entre vários sindicalistas do Rio de Janeiro, Magarinos Torres
representava os “trabalhadores favelados”. Nesse mesmo sentido, ajudou a fundar comitês do
MNPT nas favelas cariocas, aproveitando-se das relações construídas através da UTF. No
folheto distribuído na campanha eleitoral em 1958, havia várias transformações na forma de
apresentar a UTF, ajustando-a ao programa de reformas de base – plataforma política do PTB.
Nessa série de transformações que recebia o movimento de trabalhadores favelados no
imaginário político da época, o próprio estatuto divulgado no folheto em 1958 tinha uma série
de alterações quando comparado ao projeto aprovado em 1954340
. Em ambos os casos, a
associação dirigia-se à classe trabalhadora num sentido amplo, reafirmava o compromisso
com a conquista da justiça social, e colocava o Morro do Borel como sede e lugar central para
a articulação do movimento. Contudo, no estatuto de 1958, havia uma série de adições,
prevendo a participação dos “lavradores” na luta pela reforma agrária; e outras, como a luta
“pela promulgação de leis de aposentadoria integral, fixação de salário mínimo condizente
com as necessidades vitais, perfeita e rápida assistência social pelos Institutos, direito
incontestável à greve, sem limitações constitucionais, e pela educação primária e secundária
obrigatória e gratuita”341
. Ou seja, o movimento de trabalhadores favelados incorporava
demandas do movimento operário da época e as bandeiras dos reformistas próximas ao
movimento sindical e trabalhista (LIMA, 1989).
Em 1958, Torres não se elegeu vereador; ele ficou entre os oito mais votados do PTB.
Até os últimos momentos, havia uma expectativa de que ele fosse eleito. Segundo um
340
Como já foi mencionado, em princípio de 1957, a UTF foi fechada pela polícia política. Em 1958, ela foi
registrada novamente como uma associação civil; isso explica, em parte, a alteração do estatuto. 341
Folheto Estatuto da União dos Trabalhadores Favelados, 1958. Arquivo Pessoal de Ruth Pereira Barros.
260
comentarista do Última Hora, existia uma grande inércia na renovação dos políticos na
Câmara de Vereadores, mas Magarinos Torres iria romper essa barreira. Afirmou ainda que
ele não se alinharia ao governo ou à oposição, mas participaria da “bancada independente”.342
Apesar de não ser eleito, Magarinos Torres saiu fortalecido do pleito e forjaria uma
aliança com José Talarico (PTB) que, nessa eleição, foi o suplente mais bem votado no PTB
para deputado federal. Simbolicamente, como exemplo desse alinhamento entre o movimento
de trabalhadores favelados e a plataforma reformista, o Congresso da Coligação dos
Trabalhadores Favelados, realizado em 1959, teve início no primeiro de maio. No evento,
planejaram-se comícios em apoio à candidatura de João Goulart a vice-presidente da
República na eleição de 1960. Nesse mesmo ano, Magarinos Torres se lançou candidato a
deputado estadual da Guanabara pelo Partido Republicano Trabalhista (PRT), apoiando Lott,
Jango e Tenório Cavalcanti, este último lançado para governador da Guanabara, também pelo
PRT. A UTF e sua orientação política seguiam o mesmo posicionamento político do PCB nos
anos 1950.
6.2.3 Os trabalhadores favelados, os católicos e a aliança reformista em Belo Horizonte
Se, no Rio de Janeiro, o movimento dos trabalhadores favelados tinha fortes vínculos
com o PCB, em Belo Horizonte o caso foi diferente. Quando se analisa o mapa elaborado por
Raquel Pereira das manifestações e células partidárias do PCB em Belo Horizonte, entre 1945
e 1951, veremos pouca presença dos comunistas nos espaços políticos onde as Uniões de
Defesa Coletiva teriam proeminência em seus anos iniciais. O PCB concentrava sua atuação
nos bairros operários próximos dos bairros Lagoinha, Cachoeirinha, Calafate, Prado e Santa
Tereza. Isso não significou a ausência de militantes comunistas nas vilas e favelas. O que
ocorreu é uma distância entre os espaços de atuação do PCB no período de maior
popularidade e os lugares onde posteriormente surgiu o movimento dos trabalhadores
favelados de Belo Horizonte.
O testemunho de Dimas Perrin traz indicações sobre essa distância. Operário, militante
comunista e atuante como secretário da FTFBH a partir de 1962, ele ingressou no momento
de sua reorganização em 1942, fez parte secretariado municipal, que organizou o partido para
participar das eleições em 1947. Perrin lembra bastante da atuação nos bairros operários, mas
fala com ressalva das vilas e favelas. Da mesma forma, mesmo no período de maior expansão
342
Cf. A MARCHA do pleito. Última Hora. Rio de Janeiro, 06/10/1958, p. 5; OS QUE VÃO, os que voltam, os
que vêm para o plenário da Câmara Municipal. Última Hora. Rio de Janeiro, 13/10/1956, p. 7.
261
dos partidos, ele reconhece que o número de comunistas era pouco; só teria conseguido
“acumular forças” no final dos anos 1950 e início dos anos 1960343
.
Por outro lado, havia grande penetração das paróquias e do trabalho assistencial de
padres nas ditas vilas. Desde a década de 1920, por exemplo, as instituições católicas
penetraram no universo operário belo-horizontino e interferiam no enquadramento das lógicas
de manifestação e atuação de classe (DUTRA, 1988; AMARAL, 2007). A Arquidiocese de
Belo Horizonte, sob a liderança do arcebispo Dom Cabral (1922-1961), foi uma forte
formadora dessa tradição de abertura para a ação social. As manifestações de cunho católico e
anticomunistas também atraíam parte significativa da população. Entre 1945 e 1947, no
contexto das disputas eleitorais, a Arquidiocese de Belo Horizonte orientou as paróquias
localizadas em lugares mais pobres para se prevenir contra o comunismo. Diante da visita de
Luiz Carlos Prestes a Minas Gerais, várias paróquias organizaram procissões ou atacaram os
comícios preparatórios dos comunistas (PEREIRA, 2007: 78-79).
Em Belo Horizonte, assim como em outros lugares do país, o anticomunismo foi uma
resposta ao crescimento do Partido Comunista e ao contexto de Guerra Fria. No mesmo
período em que a mobilização anticomunista era chave para as ações das paróquias Belo-
horizontinas sob a orientação e com o aval do arcebispo Dom Cabral, Padre Lage ajudou a
fundar a primeira Associação de Defesa Coletiva, em 1949. Num primeiro momento, o
associativismo foi visto como um importante dique contra o avanço comunista. Esse traço era
reconhecido publicamente e elogiado por políticos que se situavam fora do espectro político
da esquerda comunista e trabalhista. Em 1951, na data comemorativa do segundo aniversário
da fundação da primeira Associação de Defesa Coletiva, o vereador udenista Ney Octaviani
realizou um elogio àquele movimento:
Sr. Presidente, transcorre hoje o segundo aniversário da Associação de Defesa
Coletiva da Vila São Vicente de Paulo. Desnecessário será esclarecer o magnífico
trabalho que essa associação realizou e vem realizando em prol dos moradores da
chamada Vila dos Marmiteiros. Basta citar que aquela Vila prestava muito a
explorações dos demagogos e extremistas. Graças à atuação firme do padre Lage e
da Diretoria da Associação, formada por sua inspiração, foram varridos dali todos
aqueles elementos políticos que desejavam transformar o sofrimento daquelas
centenas de famílias em um elemento da agitação social de Belo Horizonte. Por isso,
são mais que justos nossos aplausos à ação da Associação de Defesa Coletiva da
Vila São Vicente de Paulo. Que se registre em ata um voto de louvor a essa
Associação e que se dê conhecimento desse fato à entidade344
.
343
Cf. PERRIN, Dimas. Entrevista de vida, 1993. Centro de Estudos Mineiros. Projeto Memória e História:
Visões de Minas. 344
CÂMARA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE. Anais da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1952. p. 344. (Vol. 3).
262
Evitar “demagogos” e “extremistas”, essas foram as qualidades sublinhadas no
discurso laudatório do udenista. A imagem suscitada por Padre Lage e pela criação da
Associação de Defesa Coletiva não se colava ao campo das esquerdas. A defesa do direito de
moradia da Vila dos Marmiteiros (São Vicente de Paulo) contra a Companhia Mineira de
Terrenos levou alguns grupos sociais e, principalmente, o dono da Companhia Mineira de
Terrenos, a taxá-lo de “comunista”, por atentar contra a propriedade privada. Entretanto isso
esteve longe de ser seu objetivo. Na autobiografia intitulada O Padre do Diabo, o sacerdote
conta que, antes de fundar a associação, havia reuniões clandestinas, realizadas no período da
noite, para congregar “comunistas” que lutavam contra o despejo. Ao tomar conhecimento
das reuniões, ele marcou um encontro com o arcebispo de Belo Horizonte e pediu licença “de
participar das reuniões clandestinas dos comunistas”; o religioso não sentiu “nenhuma
dificuldade” de conseguir a anuência de Dom Cabral, ao contrário, recebeu “um incentivo
para estar presente aonde fosse, contanto que para ajudar aos pobres” (LAGE, 1988: 71).
Incentivado por Dom Cabral, Padre Lage descobriu que ali não existiam comunistas,
mas trabalhadores. Na Vila dos Marmiteiros, os trabalhadores se “gloriavam de chamar-se
marmiteiros, nome que se deram, pouco depois de o brigadeiro Eduardo Gomes ter insultado
a classe trabalhadora, proclamando em público que, para ganhar as eleições, não necessitava
de marmiteiros” (Idem, p. 74). “Marmiteiro” era a classificação política construída na
campanha eleitoral pelo PTB, baseada numa declaração do candidato à presidente da
República Eduardo Gomes, que disse não precisar dos trabalhadores para vencer as eleições
de 1945. Explorava o temor de um retrocesso na conquista de direitos sociais durante o
governo de Getúlio Vargas com a vitória do candidato udenista. Padre Lage reconhecia a
necessidade de estender a proteção social à classe trabalhadora na formação de uma sociedade
mais justa e não reconhecia em Getúlio Vargas o protetor desses direitos. Ao contrário dos
moradores da Vila dos Marmiteiros, via o getulismo como fruto de uma ditadura que devia ser
superada345
.
6.2.3.1 O Movimento de Mobilização Popular e atuação em vilas e favelas em 1954
345
Em vários momentos de sua autobiografia, Padre Lage faz referências a Getúlio Vargas como ditador e como
uma personagem que não tinha interesse direto na extensão do direito social para toda a classe trabalhadora. O
maior exemplo disso era a questão dos camponeses e a reforma agrária, que foi o mote de várias lutas
desencadeadas pelo padre. Na narrativa autobiográfica que se estruturou pela “revelação” da maneira como a sua
experiência deu forma a uma “Igreja dos Pobres”, Lage atribui ao trabalho na Vila São Vicente de Paulo, na
fundação da Associação de Defesa Coletiva, um momento de transformação, de ruptura com a sua formação
teológica lazarista, no Seminário de Diamantina.
263
Em 1948, quando chegou a Belo Horizonte, depois de estudar no seminário lazarista
de Diamantina, Padre Lage atuou juntamente com padre Agnaldo Leal na paróquia de Santo
Antônio. Na visão de Lage, Agnaldo Leal representou um modelo de “sacerdócio moderno”.
Ele teria sido um dos inspiradores do Manifesto dos Mineiros de 1943, movimento de
oposição ao Estado Novo e que serviu de base para a fundação da UDN em Minas Gerais, e
atuava em várias obras sociais na Vila Afonso Pena e era um dos líderes da Ação Católica em
Belo Horizonte (Ibidem, p. 68-69). Padre Lage identificava-se com a imagem de sacerdócio
construída por Agnaldo Leal na paróquia de Santo Antônio. Via-o como um pároco
“moderno” por sua posição contra a ditadura getulista e pelo estímulo à incorporação da
questão social em pregações e práticas religiosas.
Naquela paróquia, o potencial eleitoral das associações de moradores fundadas por
Padre Lage foi, desde o princípio, percebido principalmente por candidatos de oposição aos
trabalhistas e comunistas. Em 1950, um ano após ter sido fundada a Associação de Defesa
Coletiva, Padre Lage foi acusado de fazer campanha eleitoral para Américo René Gianneti
(UDN), candidato à prefeitura, e de apoiar o brigadeiro Eduardo Gomes (UDN) “em desafio
aberto à tendência ditatorial de Vargas” (Id. Ibidem, p. 74). Sua ação foi repreendida por Dom
Cabral e pelos moradores da Vila São Vicente de Paulo346
. Na época, sua prática não teve
grande adesão junto aos moradores das favelas, sobretudo na Vila dos Marmiteiros. Foi
inclusive censurado por Dom Cabral, que desejava manter neutra a posição da Igreja no
estado.
Em 1954, na eleição para o município, ocorreu uma ação mais sistemática que a
anterior: um grupo de católicos que se reuniam na paróquia de Santo Antônio, sob a
supervisão do padre Agnaldo Leal, buscou montar uma coalizão popular, com a finalidade de
apoiar o médico e engenheiro Celso Mello Azevedo para prefeito e, para vereador, Leopoldo
Garcia Brandão (PDC). Para tanto, foi criado o Movimento Político Popular (MPP), com
objetivo de “trabalhar pelo aperfeiçoamento das instituições democráticas, quer no campo
político, quer no econômico, mediante, sobretudo”:
346
Na campanha eleitoral de 1950, o sacerdote teria enviado uma correspondência a Carlos Lacerda, denunciando
a compra de votos feita por Cristiano Machado na Vila São Vicente; Lacerda publicou uma manchete no Tribuna
da Imprensa, cujo título era “Voto em troca de comida”. Na época, Cristiano Machado (PSD) disputava a eleição
contra Getúlio Vargas (PTB) e o brigadeiro Eduardo Gomes (UDN). O caso repercutiu de forma negativa para
padre Lage. Ele foi repreendido por Dom Cabral, que desejava manter boas relações com o PSD, e pelos
moradores da Vila São Vicente de Paulo, que lhe teriam dito que “todos eram getulistas e não se iriam vender,
nem eles, nem suas famílias, a um Cristiano qualquer, que nem sabiam quem era”, mas “tinham recebido os
mantimentos, e isso era outra coisa. Precisavam” (LAGE, 1988: 74).
264
A – a efetiva participação do povo na escolha de seus representantes e
dirigentes;
B – a ascensão dos membros da classe operária, das cidades e dos campos, a
condições de vida consentâneas com a dignidade e igualdade de natureza da pessoa
humana;
C – a instauração de uma economia baseada nas exigências naturais do
homem, na dignificação do trabalho e sua implantação, na ordem jurídica, como
fonte de direitos superiores aos que decorrem da simples propriedade privada, ou da
supremacia do capital347
.
O grupo que formou o MPP nos lembra da heterogeneidade dos grupos que se
articularam na UDN. Propondo uma pauta que tinha como base a igualdade do cidadão, a
defesa dos direitos humanos e a democracia, o MPP estabeleceu como pauta a crítica ao
capitalismo, propondo critérios cristãos de justiça social. Por esses motivos, o movimento
estava distante do que posteriormente se definiu como udenismo, ou da articulação de um
liberalismo ambíguo no Brasil, baseado na defesa da liberdade econômica e da moralização
“democrática” e na aliança com militares como estratégia de ascensão ao poder através do
golpe. Como outros pesquisadores salientam, havia uma diferença entre o que foi a UDN em
seus primeiros anos, uma aliança política formada por diferentes grupos que tinham como
base o antigetulismo, e o que se tornou ao longo de sua trajetória (BENEVIDES, 1981;
DULCI, 1986).
O grupo ligado ao MPP expressava uma aliança em prol da democracia cristã. Um dos
atores centrais do MPP foi Edgar de Godói da Mata Machado, que tinha trânsito tanto entre os
udenistas quanto entre os católicos348
. Segundo sua versão para a criação do MPP:
a gente considerava que PSD, UDN e PR eram organizações da classe mais alta ou
em ascensão, e não havia nenhum movimento popular. Tanto que o nome escolhido
era Movimento Político Popular. A nossa grande preocupação eram as vilas. Todo
domingo havia reunião em vila. A gente ficava com o pessoal mais humilde mesmo,
pessoal mais simples, mas o pessoal que votava (NEVES & DULCI, 1993: 169).
Mata Machado ainda lembrava de que, na época, o diretor municipal da UDN lhe
censurou, por entender que a vila não elegia vereador, ela deveria concentrar a atenção na
classe média e no empresariado (Idem, p. 170). O “grande líder” do MPP, segundo Mata
347
Estatuto do Movimento Político Popular, 02/02/1954. In: NEVES, Lucília Almeida; DULCI, Otávio Soares;
MENDES, Virgínia dos Santos. Edgar de Godói da Mata Machado – fé, cultura e liberdade. Belo Horizonte/São
Paulo: UFMG/Loyola, 1993. p. 232. 348
Em Belo Horizonte, na década de 1930, envolveu-se com a Ação Católica e com o intelectual Alceu Amoroso
Lima, tornando-se um importante militante do catolicismo; participou do jornal da diocese da cidade, O Diário e
atuou na oposição ao Estado Novo e ao governo Vargas. Na década de 1940, assinou o Manifesto dos Mineiros,
foi um dos fundadores da UDN no estado, participou do governo de Milton Campos (1946-1951), bem como
lecionou na Universidade Católica. Entre 1951 e 1955, foi eleito deputado estadual e manteve-se na oposição ao
governo Vargas.
265
Machado, teria sido Padre Lage, que ajudou a escrever o documento do movimento e apoiou a
mobilização eleitoral.
Se lermos o documento do MPP, veremos que ele congregava grupos de classes
médias e populares. Juntamente com os profissionais liberais, ligados ao catolicismo e à
UDN, havia serrador, carpinteiro, torneiro mecânico, ambulante, auxiliar de escritório e
outros tipos de profissionais. As favelas que estavam representadas na diretoria do MPP
seguiam de perto a geografia política constituída pela ação da paróquia do Santo Antônio,
onde Padre Agnaldo Leal e Padre Lage tinham se destacado com a Ação Católica. Seriam os
líderes do movimento: um ambulante, residente na Vila São Vicente de Paulo, um funcionário
e agricultor da Vila Afonso Pena, e um carpinteiro da Vila Santo André349
. As favelas eram o
foco do MPP.
Nesse documento, havia também a marca da democracia cristã, ideologia que
congregava tanto parte dos membros da UDN quanto do Partido Democrata Cristão. Seriam
membros do MPP aqueles que recusavam “qualquer compromisso com o regime capitalista,
com as soluções políticas, econômicas e sociais de fundo materialista e ateu; e com qualquer
forma de ditadura, franca ou mascarada, seja de base capitalista, fascista, comunista,
sindicalista ou decorativamente cristã”350
. Além de negar o capitalismo e o comunismo, o
movimento deveria “promover o fortalecimento dos grupos intermediários entre o indivíduo e
o Estado”: “a FAMÍLIA, cuja indissolubilidade, liberdade e estabilidade moral e econômica
devem ser defendidas; os SINDICATOS, mantidos autônomos e livres perante o poder
público, o paternalismo patronal, direto ou indireto, e a intromissão partidária; e toda sorte de
associações de fins lícitos, sobretudo as que visem à educação, à defesa coletiva e à ascensão
do homem à plenitude de seus direitos”351
.
O MPP não tinha uma pauta específica, incorporava várias demandas populares
identificadas com a classe operária. Assim, havia como agenda de reivindicação o “direito de
greve”, “a reforma agrária”, a “nacionalização das empresas” que impedissem o Estado de
realizar o “bem comum”. O MPP não estabelecia um plano específico de ação, mas
incorporava toda espécie de demanda que tivesse como foco a promoção do bem-estar social.
Além disso, nos doze pontos traçados que reafirmavam o direito social de todo tipo, três
enfocavam especificamente a questão da habitação popular. Nos termos do manifesto, seria
349
Estatuto do Movimento Político Popular, 02/02/1954 In: NEVES, Lucília Almeida; DULCI, Otávio Soares;
MENDES, Virgínia dos Santos. Edgar de Godói da Mata Machado – fé, cultura e liberdade. Belo Horizonte/São
Paulo: UFMG/Loyola, 1993. p. 238. 350
Idem, p. 232. 351
Ibidem, p. 234.
266
um dos objetivos do movimento pleitear a “aquisição da propriedade, para moradia própria,
garantida aos que, em necessidade comprovada, por incúria dos poderes públicos ou dos
donos dos terrenos, ocupa[va]m, de boa fé e por espaço de tempo razoável, lotes urbanos ou
adjacentes aos grandes centros (vilas)”352
.
Com uma pauta anticapitalista, o MPP reivindicava o direito à posse e o direito social
como limite à propriedade privada. Contudo esse movimento não formou uma entidade que
tivesse como base diversas associações locais; ele funcionou como uma aliança entre uma
classe média católica e grupos populares que se relacionavam com padre Lage no período
eleitoral. Terminada a eleição, o MPP se desfez.
6.2.3.2 A FTFBH e a aliança reformista
As tentativas de unificar o voto nas favelas de Belo Horizonte não tiveram
continuidade nas eleições posteriores; em 1955 e 1958, não encontramos uma mobilização
que tivesse como foco as lideranças de favelas353
. Isso talvez se explique pelo fato de que,
após a morte de Getúlio Vargas, as forças políticas passaram por uma rápida reconfiguração
do jogo político; houve uma lenta transformação do reformismo católico, que passou a atuar
ao lado da plataforma nacionalista. O melhor exemplo disso é o dentista Leopoldo Garcia
Brandão. Em 1954, ele se elegeu para a Câmara Municipal, pois teve como base de apoio o
movimento de vilas e favelas do MPP, dessa forma se tornou o vereador mais bem votado da
Capital; até o ano de 1964, seria lembrado como o candidato das favelas354
. Em 1956, o
mesmo vereador desligou-se do seu partido de origem, o PDC, e passou a atuar pelo PTB, por
expressar os anseios reformistas que o levaram a entrar na política355
.
Numa rearticulação completa de seu posicionamento político, em 1960, Brandão fez
campanha nas favelas de Belo Horizonte, defendendo o “trabalhismo e o nacionalismo”.
Segundo o Diário da Tarde, “em vibrante improviso, o ex-vereador Leopoldo Garcia Brandão
352
Id. Ibidem, p. 236. 353
Em 1958, encontramos referências ao Movimento Eleitoral Popular (MEP), forjado nos mesmos moldes do
MPP; contudo não encontramos indícios de que essa ação tenha alcançado alguma repercussão nas favelas. Cf.
MOVIMENTO Eleitoral Popular. Binômio. Belo Horizonte, 21/04/1958, p. 6. 354
Nos vários depoimentos colhidos entre lideranças da FTFBH, no Inquérito DVS 096, que justificou a
repressão ao movimento dos trabalhadores favelados, Leopoldo Garcia Brandão é várias vezes apresentado como
o candidato das favelas. Cf. Inquérito DVS 096. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo Dops. Arq. Pasta
3230. 355
A mesma trajetória pode ser vista em Fabrício Soares, um dos advogados da FTFBH, que abandonou a UDN
para depois lutar no campo das reformas de base. O mesmo trajeto pode ser visto também por Padre Lage, que
abandonou o antigetulismo e se engajou nas reformas de base, chegando a ser delegado da Superintendência de
Política Agrária (SUPRA) durante o governo de João Goulart.
267
disse aos operários e donas de casa daquele conhecido núcleo trabalhista que ‘Tancredo [era]
o candidato dos humildes e dos que clama[va]m por justiça social’ para acrescentar”,
impediria, mais à frente, que forças reacionárias e antitrabalhistas assumissem o poder356
.
Além disso, acionava-se o recurso da memória ligada ao getulismo: nos comícios em vilas e
favelas, o discurso político tendia a se dividir entre aqueles que apoiaram Getúlio Vargas e os
seus “traidores” (Tancredo Neves, em 1960, era apresentado como “aquele que não traiu
Getúlio”). A rearticulação de campanhas que tiveram como mote a causa das favelas no
quadro das reformas de base ocorreu tanto nas eleições de 1960 quanto nas de 1962, operando
com as classificações de “nacionalista” e “reacionário” para seus componentes - de um lado
estaria o projeto autêntico dos trabalhadores e “humildes” e, de outro, dos “demagogos”.
Depois de sua criação, a Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte,
em 1959, liderou ambas as campanhas eleitorais subsequentes, tentando unificar o voto nas
favelas. Em 1960, na eleição que escolheria o presidente da República, governador de estado
e vice-presidente da República, a Federação dos Trabalhadores Favelados formaria o
“Movimento Favelado Pró-Lott, Tancredo Neves e João Goulart”357
. Na disputa por
lideranças de favelas, o movimento de trabalhadores favelados disputou o voto com o
“Comitê da Casa Própria Pró-Jânio, Milton e Magalhães”. Em 1962, na eleição que escolheu
prefeito, vice-prefeito, deputado federal e vereador, a FTFBH apoiou os “candidatos das
favelas”358
. Foram realizados comícios, assembleias, divulgação através de alto-falantes nas
sedes das associações. Essas disputas transcorriam com acusações mútuas, os cabos eleitorais
e as lideranças de associações acusavam-se de “demagogos”, assim como aproveitavam a
publicidade da imprensa para se manifestarem e dividirem o espectro político.
Através dessas alianças político-partidárias com as esquerdas, a FTFBH marcou uma
posição no jogo político. Para além de interferir na dinâmica política em geral, o movimento
social adquiria relevância na plataforma reformista e nacionalista, demarcando um lugar
específico para abordar o direito de moradia nas favelas – tema nem sempre reconhecido
pelos políticos e análises sobre o tema. Nas eleições de 1962, o jornal O Barraco, em sete
edições publicadas entre agosto e outubro, apresentou os “candidatos das favelas” e abordou
as violações de direitos de posse que os moradores em favelas reivindicavam. Numa carta
endereçada ao trabalhador favelado, o presidente da FTFBH conclamava a participação na
eleição:
356
UM VIBRANTE COMÍCIO na Pedreira Prado Lopes. Diário da Tarde. Belo Horizonte, 08/09/1960, p. 6. 357
Idem. 358
Em 1962, eram os “candidatos das favelas”: José Maria Rabelo (PSB) para prefeito, Geraldo Bizzoto (PTB)
para vice-prefeito, Fabrício Soares (PTB) para deputado federal, Francisco Nascimento (PSB) para vereador.
268
Nessa luta difícil e desigual, de pobre favelado contra os poderosos tubarões,
que desejam sempre expulsar para longe e se apossar de nossas favelas,
conseguimos importantes vitórias (…).
Da mesma forma como os poderosos se unem e gastam fortunas para garantir
a eleição de seus amigos, para defender seus privilégios, os favelados devem unir-se
com o maior entusiasmo para garantir a eleição de seus candidatos.
Que cada companheiro favelado peça também o voto de seus vizinhos,
colegas de serviço, parentes e amigos para possibilitar nossa vitória. Nosso
programa e nosso compromisso é o de continuar essa luta. (…)
Pelo DIREITO DE MORAR, contra a DERRUBADA DE NOSSOS
BARRACOS, contra a TRANSFERÊNCIA PARA LOCAIS DISTANTES.
Até a vitória, companheiro, a 7 de outubro359
.
A declaração política representava a diferença entre os trabalhadores favelados e os
outros atores. Enquanto os “tubarões” e “poderosos” usavam seus recursos para eleger seus
candidatos, os trabalhadores deveriam usar a união, mobilizando toda uma rede de parentes,
vizinhos e colegas de trabalho. “Tubarão” era uma referência não só ao candidato de elite,
mas aos grupos econômicos que interferiam na economia popular, negocistas que
aumentavam a margem de lucro, “explorando” o trabalhador, principalmente os grupos mais
pobres. No caso do movimento de trabalhadores favelados, a expressão era usada para nomear
os grupos que buscavam, através da justiça, promover despejos coletivos em favelas. Portanto
a linguagem política do movimento remetia ao temor quanto à perda do direito de moradia,
“derrubada dos barracos” e “transferência para locais distantes”.
A agenda eleitoral e reformista inferia nessas relações entre mercado e trabalhador,
incluindo os moradores em favelas, que eram ameaçados com a perda de moradia através da
expansão do mercado imobiliário. A plataforma da FTFBH era bastante semelhante à da UTF.
Uma das diferenças era a maneira ambígua como a FTFBH se posicionou em relação à UDN,
enquanto a UTF era francamente antiudenista. Esse ponto pode ser observado até mesmo
durante a campanha eleitoral de 1962, quando o candidato a vereador, Francisco Nascimento,
membro do PSB e possivelmente ligado ao PCB360
, lançou mão de uma carta do governador
Magalhães Pinto (1961-1965) para atestar a importância da FTFBH e de sua direção. A carta
foi publicada no jornal O Barraco e mostrava que, mesmo que a FTFBH tenha feito oposição
ao governador durante a campanha, lutando do lado dos “trabalhistas e nacionalistas”, após o
359
CARTA de Francisco Nascimento ao trabalhador favelado de BH. O Barraco. Belo Horizonte, 03/09/1962. p.
1. 360
É praticamente impossível afirmar com certeza se ele era filiado ao Partido Comunista, ou se era apenas
membro do PSB. Se na memória de militantes comunistas como Edson Fantini e Dimas Perrin, seus
contemporâneos, não há referência sobre esse ponto, nos registros guardados pela polícia há indícios que
apontam para esse pertencimento, quando ele atuou na Bahia e em Belo Horizonte.
269
término do período eleitoral, houve tentativas, tanto por parte do governo quanto da FTFBH,
de se aproximar:
Prezado Presidente. Sr. Francisco Farias Nascimento,
É com prazer que lhe apresento os agradecimentos pelos inestimáveis
serviços que, pessoalmente, e através da Federação dos Trabalhadores Favelados de
Belo Horizonte, prestou à Comissão de Auxílio aos favelados Desabrigados.
Do relatório a mim apresentado pelo Secretário do Trabalho e Bem-Estar
Social, prof. Edgar de Godói da Mata Machado, fácil me foi deduzir a
impossibilidade do levantamento da situação material e social dos moradores das
áreas atingidas pelas enchentes, sem a sua dedicada e eficiente colaboração.
Apresento-lhe, nesta oportunidade, protesto (sic) de consideração e apreço.
(As.) José de Magalhães Pinto
Governador do Estado de Minas Gerais
A aproximação com o governo de Magalhães Pinto ocorreu em decorrência da
necessidade “material e social” depois das chuvas, e por afinidades com a liderança católica
de Edgar de Godói da Mata Machado. Em 1961, diante das enchentes e desastres que
ocorreram entre dezembro e janeiro, várias famílias que moravam em favelas ficaram
desabrigadas. Magalhães Pinto montou uma Comissão de Auxílio aos favelados, na recém-
criada Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social, coordenada por Edgar de Godói da Mata
Machado. Juntamente com a prefeitura, o estado passou a conceder materiais de construção
para a reforma das casas que tinham sido atingidas durante a enchente. A FTFBH foi chamada
a participar da ação do governo, cadastrando moradores e distribuindo os materiais. Essa
aproximação foi feita com grande desconfiança por parcela do governo, pois data desse
mesmo período as investigações da polícia política sobre a FTFBH361
.
No governo de Magalhães Pinto, houve tentativas de se aproximar de grupos
reformistas, apropriando-se de agendas políticas esquerdistas e de movimentos sociais em
ascensão. No caso da reforma agrária, o governante da UDN apoiou a realização do I
Congresso Nacional dos Trabalhadores Agrícolas e deu início a dois projetos de “reforma
agrária” – em Jaíba (norte de Minas Gerais, 1960) e no “Plano Integrado de Utilização
Agrícola” (1963) em Pedro Leopoldo362
. No caso das favelas, o governador, assim como no
exemplo anterior, procurou se aproximar do movimento social e de uma proposta de reforma
361
O início das investigações da polícia política ligada ao governo do estado sobre a FTFBH data de 1961,
quando Edgar de Godói passa a colaborar na Comissão de Auxílio dos favelados. Cf. ARQUIVO PÚBLICO
MINEIRO. Fundo DOPS. Arq. Pasta 0119. 362
O governador de Minas Gerais opôs-se à reforma agrária em nível federal, liderada por João Goulart,
defendendo uma reforma que tivesse origem nos estados, em cada unidade da federação. Cf. CAMISASCA,
2009: 77-89.
270
urbana. Segundo Camisasca, uma das características do governo diante da agenda das
reformas foi a “dubiedade”, “ele buscava pronunciar discursos de acordo com o público com
o qual estava a dialogar” (CAMISASCA, 2009: 88). Ao mesmo tempo em que se contrapunha
ao governo João Goulart, no plano nacional, Magalhães Pinto se apropriava da pauta
reformista, restringindo-lhe o escopo de transformações em termos estaduais. Assim como
veremos no próximo capítulo, o governador tentou criar um órgão que atuaria nas favelas de
Belo Horizonte.
Além disso, havia setores do governo Magalhães Pinto que se ligavam a grupos
católicos, esses grupos, por sua vez, mantinham relação com o movimento de trabalhadores
favelados. O maior exemplo disso era atuação de Edgar de Godói da Mata Machado. O
professor de direito da UMG, católico e udenista, já havia mobilizado as vilas e favelas de
Belo Horizonte na eleição de 1954, através do Movimento Político Popular; agora, na
Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social, o professor tentou novamente se aproximar do
movimento social. Em ambas, tinha-se como princípio o reconhecimento do direito social e
do direito de moradia pelo viés da doutrina social católica.
As mobilizações eleitorais dos trabalhadores favelados inseriam-se na dinâmica da
política de massa de cada cidade. A presença dos católicos na FTFBH impactou de maneira
significativa o movimento social em suas mobilizações e conexões com setores católicos
reformistas ligados à UDN. Isso esteve longe do escopo de alianças da UTF, que reforçou o
vínculo entre os trabalhistas/comunistas e os trabalhadores em favelas. Ainda que inseridas
em um sistema político elitista que excluía os pobres e analfabetos, as associações cumpriam
um papel de arregimentação e difusão de valores políticos, tendo em vista programas políticos
e algumas lideranças ligadas ao movimento de trabalhadores favelados. Essas lideranças
reformistas foram fundamentais para o estabelecimento de vínculos com o poder legislativo
de cada cidade e para a proposição de reformas urbanas que visavam favorecer as favelas.
271
7 REFORMAS SOCIAIS E POLÍTICAS PARA AS FAVELAS
Entre o final dos anos 1950 e início dos anos 1960, os movimentos de trabalhadores
favelados apresentaram e apoiaram projetos de lei, propondo reformulações na política para as
favelas. Instalação de postos de saúde, escolas, assim como outros bens e serviços
considerados fundamentais para promoção de melhores condições sociais eram objetos
centrais das propostas, bem como a garantia da posse – fundamental para garantir a segurança
das famílias contra investidas que ocorriam na Justiça. Esses projetos contrapunham-se às
políticas de “desfavelamento”, que qualificavam as favelas como territórios transitórios da
cidade. Eles se inseriam na luta pelas reformas de base, bandeira central do governo Jango e
nacionalismo de esquerda. A bandeira das reformas agrária, urbana, tributária, política,
educacional e a política nacionalista uniam partidos de esquerda, sindicatos e associações
civis variadas. A partir dessa ampla rede de ativismo político e social, ultrapassando a
estrutura dos partidos, é que podemos compreender a forma como os movimentos de
trabalhadores favelados construíram um espaço crítico à política das favelas tanto em Belo
Horizonte como no Rio de Janeiro.
Nesse sentido, diversos projetos de lei foram apresentados pelos “advogados de
favelas” que estavam à frente da UTF e da FTFBH. Eles tinham um escopo limitado, restrito à
política municipal de cada cidade. No Rio de Janeiro, em 1954, Magarinos Torres elaborou a
“Lei de proteção dos Trabalhadores Favelados” que não chegou a ser apresentada à Câmara
Municipal, mas suscitou muitos debates. Em vista dessa repercussão, em 1955, o vereador
petebista e advogado Geraldo Moreira apresentou um projeto de lei bastante semelhante ao de
Magarinos Torres. Nesse mesmo ano, a Câmara Federal inicia a Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) das favelas, avaliando as disputas pela posse dos morros cariocas. As
mobilizações dos moradores de favelas e as repercussões produzidas pela CPI impulsionaram
a aprovação da “Lei das Favelas”, restringindo ações de reintegração de posse nos morros
cariocas por dois anos, entre 1956 e 1958.
Em Belo Horizonte, a ação do movimento de trabalhadores favelados, no intuito de
alterar a política de favelas e de criticar o caráter transitório atribuído às moradias, não foi
diferente do que ocorreu no Rio de Janeiro. Em 1961, a FTFBH discutiu a criação de um
órgão estadual para atuar no campo das favelas, apresentando na Secretaria de Estado de
Trabalho e Cultura Popular do Estado de Minas Gerais um projeto que representava o
interesse do movimento social. Em 1963, Dimas Perrin, vereador e advogado da FTFBH,
apresentou um projeto de lei, reestruturando o Departamento de Habitações e Bairros
272
Populares (DHBP). Pretendia consolidar o espaço das favelas no espaço urbano, garantindo o
direito de moradia dos “trabalhadores favelados”. Nesse mesmo ano, o prefeito Jorge Carone
desapropriou os terrenos do deputado e empresário Antônio Luciano, um gesto que parecia
sinalizar a reforma urbana que estava em curso na cidade.
As propostas vindas dos “advogados de favelas”, das lideranças de movimentos
sociais e dos políticos identificados com a aliança trabalhista e nacionalista abriram um
horizonte para a alteração do pacto que marginalizava as favelas na estrutura urbana das
cidades. O alvo dessas propostas era o artigo 145 da carta magma de 1946, que deveria ser
regulamentado. Segundo a Constituição de 1946, a economia deveria ser organizada a partir
do princípio da justiça social e da valorização do trabalho humano. Esse debate era central
para as forças sociais e políticas que discutiam a extensão do direito social aos trabalhadores e
a construção do Estado de Bem-estar Social no Brasil. Era a partir desse preceito
constitucional que se justificava o direito de posse e a extensão de melhoramentos e serviços
urbanos nas favelas.
As injustiças praticadas pelos “exploradores” de aluguéis, “grileiros” e “latifundiários
urbanos” legitimavam o debate sobre a reforma urbana que ganhava visibilidade com os
movimentos de trabalhadores favelados, enunciando a favela como um lugar de moradia e não
como espaço irregular e transitório. Ademais, tanto no Rio de Janeiro quanto em Belo
Horizonte, o debate e a mobilização pela reforma agrária contribuíram direta e indiretamente
para a construção das propostas e projetos dos trabalhadores favelados. Havia inclusive
vínculos e reciprocidade entre a luta pelo direito de moradia e a luta pela reforma agrária.
Os projetos mais diretamente vinculados à UTF e à FTFBH visavam à incorporação
dessas associações à estrutura política e administrativa do Estado e à sua participação na
gestão das políticas públicas voltadas para as favelas. Esses projetos inseriam as favelas
dentro de uma lógica corporativa, semelhante a dos sindicatos. Ou seja, aquelas associações
deveriam se tornar atores privilegiados nas articulações de políticas públicas relacionadas com
os espaços urbanos. O objetivo era reforçar a estrutura associativa do movimento de
trabalhadores favelados representado pela UTF e FTFBH.
Neste capítulo, analisaremos projetos de lei defendidos e apresentados pelos
movimentos de trabalhadores favelados que visavam à reconfiguração do status das favelas
no espaço urbano. Os efeitos e o desenrolar dessas discussões se estabeleceram no nível local.
Ainda que estivessem conectadas a um debate nacional sobre as reformas de base, as
propostas legislativas tiveram expressão limitada à estrutura federativa do poder municipal.
273
7.1 A “Lei das Favelas” e a luta da UTF no Rio de Janeiro (1954-1956)
Considerando que a Constituição estabelece um regime de igualdade para todos
perante a lei, não é justo, portanto, um distinguir, para preferência das atenções do
poder público, entre os logradouros habitados por munícipes ricos dos que são
ocupados por trabalhadores pobres.363
Em 1954, a “Lei de Proteção dos Trabalhadores Favelados” foi elaborada pelo
advogado e secretário da UTF, Magarinos Torres. Num esforço de fazer valer a soberania
popular na Câmara de Vereadores do Distrito Federal, o anteprojeto circulou como um
panfleto e foi apresentado em festas e confraternizações organizadas pelas associações
coligadas à UTF. O primeiro comício para divulgação do anteprojeto ocorreu no dia 17 de
outubro, no Morro do Borel. Diversas associações foram convidadas para o evento, como se
pode observar no convite:
Senhor Diretor,
A União dos Trabalhadores Favelados é uma associação que congrega mais
de 40.000 favelados e que vem dispensando esforços na defesa dos moradores e
despejados das favelas, como aconteceu nos morros de Santa Marta, Borel, Sto.
Antônio, União e Dendê.
Promoverá a UTF, no morro do Borel, na Tijuca, dia 17 às 16:00 horas, uma
festa de confraternização com show e distribuição de prêmios aos favelados.
Temos a grata satisfação de convidar a diretoria, bem como os moradores da
favela para participarem desta festa, onde mais uma vez se irmanarão os favelados
de todos os morros e favelas da cidade. Ao término da festa, a União dos
Trabalhadores Favelados dará conhecimento aos favelados do anteprojeto de Lei das
Favelas que apresentará à Câmara dos Vereadores em benefício dos favelados.
Atenciosamente,
Dr. Magarinos Torres Filho
Secretário-Geral364
Essa mobilização se deu logo após as eleições ocorridas no dia 3 de outubro e
pretendia estabelecer uma pauta para ser debatida na nova legislatura na Câmara dos
Vereadores. Ela unia, sobretudo, vereadores e políticos alinhados com a esquerda comunista e
trabalhista. O comunista Waldemar Viana (PRT) – vereador eleito para a legislatura de 1955 a
1959 – e o deputado estadual comunista Roberto Morena (PRT) apoiaram o anteprojeto e
participaram de algumas reuniões e festejos que discutiam a Lei dos Trabalhadores Favelados,
fartamente noticiados no jornal Imprensa Popular. No jornal Última Hora, o secretário geral
363
Lei de Proteção dos Trabalhadores Favelados, 1954. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Pasta 1046. 364
Convite da União dos Trabalhadores Favelados, 1954. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO. Fundo Divisão de Polícia Política e Social. Arq. Pasta 1046.
274
da UTF declarou que Getúlio Vargas protegia os “trabalhadores favelados” e reivindicava a
aprovação do anteprojeto como meio de “garantir a estabilidade aos favelados, sempre
ameaçados de despejo” e transformar “as favelas em bairros operários residenciais”365
. O
Última Hora publicou na íntegra o anteprojeto, apresentando-o como uma iniciativa que traria
“paz e sossego” aos trabalhadores366
.
Entre outubro e dezembro de 1954, o anteprojeto foi apresentado em diversos tipos de
encontros. O desfecho final deveria ser a realização de um congresso com delegados e
representantes das diversas favelas367
. Só após o congresso, imaginava-se que a “Lei das
Favelas” deveria ser apresentada à Câmara dos Vereadores, ou seja, a apreciação só ocorreria
“depois de submeter a mesma à aprovação dos trabalhadores favelados” 368
. O fórum
privilegiado para debater a proposta deveria ser composto pelas associações e os moradores
de favelas. Contudo o Congresso não foi realizado e o projeto de lei não foi apresentado ao
legislativo municipal. Apesar disso, a campanha pela aprovação da “Lei de proteção dos
trabalhadores favelados” e os diversos protestos contra despejos interferiram nos debates do
Legislativo, produzindo uma maneira diferente de enquadrar a questão das favelas. Nesse
sentido, convém comparar a “Lei de Proteção dos Trabalhadores Favelados” com outras
iniciativas legislativas do mesmo período. Quase todas essas iniciativas ficaram conhecidas
ou foram discutidas como “Lei das Favelas”, como uma expressão do intento de alterar o
status dos moradores em favelas.
7.1.2 A proteção aos “trabalhadores favelados”
O anteprojeto de Magarinos combatia as visões de mundo que circulavam acerca das
favelas e operavam com a dicotomia marginal/trabalhador. Rejeitando qualquer espécie de
vínculo entre as favelas e as classes perigosas, a retórica do projeto era totalmente marcada
pelo discurso de extensão da proteção social ao trabalhador. Considerava-se que a “favela
365
O SECRETÁRIO-GERAL da União dos Favelados declara. Última Hora. Rio de Janeiro, 02/10/1954, p. 2. 366
PAZ e Sossego para moradores das favelas. Última Hora. Rio de Janeiro, 17/11/1954. p. 6. 367
Segundo João Damasceno Silva, organizador de um centro da UTF no Jacarezinho: “Será um encontro de
todos os favelados do Rio de Janeiro, que, nele, discutirão problemas e reivindicações. Os centros da UTF
realizarão festas ou assembleias gerais em cada favela, durante as quais serão eleitas as delegações. Os
delegados debaterão com os favelados problemas e reivindicações locais, que serão apresentados no Congresso
e debatidos conjuntamente com problemas e reivindicações de todas as outras favelas. De lá sairão resoluções
concretas, capazes de dar ao favelado união e força suficiente para conquista do que ele precisa. (…) Hoje
temos um projeto de lei, elaborado pela nossa gloriosa UTF, que engloba nossas principais reivindicações. Cf.
PERMANECEM as ameaças contra os favelados: é preciso União. Imprensa Popular. Rio de Janeiro,
07/11/1954, p. 8. 368
Lei de Proteção dos Trabalhadores Favelados, 1954. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO. Fundo Divisão de Polícia Política e Social. Arq. Pasta 1046.
275
[era] composta na sua totalidade de trabalhadores”, tornava-se dever do Estado “zelar pelo
bem-estar da classe obreira e de sua família, no interesse de melhorar a produtividade do
trabalhador e [em] consequência os índices de produção do país”. Longe de propor uma
distinção entre o “trabalhador” e o “marginal” na distribuição de melhoramentos, o texto tinha
o claro intento de generalizar bens e serviços sociais às favelas, reconhecendo-as como parte
da sociedade urbano-industrial. Diferenciando-se de um modelo de urbanismo que estabelecia
uma hierarquia de funções para o espaço urbano e considerava a favela como algo anormal, o
anteprojeto baseava-se numa concepção de igualdade no acesso aos bens e serviços urbanos.
Na visão reformista da “Lei das Favelas”, o objetivo principal da política para as favelas seria
promover a igualdade social e reduzir a discrepância entre os “bairros ricos/aristocráticos” e
as favelas369
.
Diferente da cidadania proposta pelo Código de Obras – que estabelecia a ilegalidade
das favelas e o não investimento em áreas que seriam consideradas provisórias no tecido
urbano, o projeto de Magarinos Torres propunha a consolidação desses locais no espaço
urbano, transformando-os em “bairros operários”. Para tanto, a prefeitura deveria apresentar
um “plano de urbanização adequado ao local, abrangendo calçamento das vias de acesso”,
“instalação de redes de água potável, esgoto e luz”, “colocação de um telefone público para
cada 200 famílias”, e “uma escola primária”. Ademais, o poder executivo ficaria “obrigado a
providenciar as medidas assecuratórias da permanência dos favelados no local, inclusive por
desapropriação”. Devia-se evitar, do mesmo modo, o deslocamento das favelas para subúrbios
distantes, “uma vez que o precário sistema de transporte e o elevado preço das passagens
redundariam em menor salário e maior tempo de trabalho”370
.
A própria estrutura administrativa do município seria alterada, excluindo órgãos
identificados como perpetradores da opressão aos trabalhadores favelados. Magarinos Torres
propunha a extinção da Comissão de Favelas371
: instituída em 1953, ela reunia representantes
de diversos órgãos da municipalidade, com objetivo de solucionar o “problema das favelas”;
funcionava como uma coordenação de vários serviços, sob a liderança do chefe da Polícia de
Vigilância, para evitar a construção e a expansão das favelas. No período que antecedeu o
debate do anteprojeto de lei da UTF, a Comissão das Favelas, instituída durante o Segundo
Governo Vargas, foi questionada e acusada de praticar violências contra os pobres e em favor
dos “grileiros” nas batalhas pela posse da terra. No entanto, durante o debate do projeto de lei,
369
Idem. 370
Ibidem. 371
Id. Ibidem.
276
entre outubro de 1954 e março de 1955, o ministro da Justiça Seabra Fagundes encaminhou
um pedido de respeito ao direito à inviolabilidade do lar, suspendendo batidas policiais nas
favelas cariocas (GONÇALVES, 2013).
De acordo com a proposta de Magarinos, no lugar da Comissão de Favelas, para
fiscalizar a urbanização das favelas, a UTF nomearia “um seu (sic) representante junto ao
Prefeito do Distrito Federal”. De forma semelhante à estrutura dos sindicatos oficiais, a UTF
arquitetava a incorporação das associações de moradores à estrutura estatal, adquirindo
recursos e funções públicas. No projeto de lei, a associação civil seria incorporada na
estrutura do Estado, portanto foi “considerada de utilidade pública”, recebendo subvenção do
Estado, que formaria um fundo aplicado na execução das políticas de favelas. Além disso, a
UTF também seria a responsável por conceder alvarás para o reconhecimento de
estabelecimentos comerciais nas favelas372
.
Na arquitetura política desenhada pela “Lei de Proteção aos Trabalhadores Favelados”,
a retirada das restrições de ordem legal e urbanística das favelas, os planos de urbanização, a
proteção contra despejos e o trabalho constituído entre prefeitura e UTF consolidariam as
favelas no espaço urbano. Esperava-se que o trabalhador favelado substituísse o “barracão de
estuque ou madeira pela casa de tipo operário”, desde que se lhe garantisse a “estabilidade no
local que habite” e alguma espécie de financiamento para compra de materiais de
construção373
. O projeto do vereador Geraldo Moreira era bastante semelhante à lei de
proteção dos trabalhadores favelados e também foi apoiado por diversas associações ligadas à
UTF. Ele propunha a verificação da situação legal dos terrenos e lotes na capital da República,
a desapropriação dos particulares, a distribuição dos terrenos às famílias, para que
construíssem suas casas e a urbanização com a abertura de ruas e instalação de escolas.
Assim como Magarinos Torres, Geraldo Moreira não fazia distinção entre “marginal”
e “trabalhador favelado”. Na justificativa do projeto, ele era bastante claro nesse sentido:
Considerando que o problema das favelas está intimamente ligado aos
problemas gerais de estrutura e de mudança de estrutura que ocorreram no bojo da
economia e da sociedade brasileira, mudanças que se caracterizam pelos processos
de industrialização e urbanização;
Considerando que o crescimento do Parque Industrial e a própria urbanização
da Capital da República não poderão jamais prescindir da mão de obra das massas
proletárias que residem nas favelas;
Considerando que a localização das favelas é também um aspecto
contemporâneo brasileiro – Carioca, Metropolitano – o problema universal da
pobreza;
372
LEI DE PROTEÇÃO dos Trabalhadores Favelados, 1954ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO.. Fundo Divisão de Polícia Política e Social. Arq. Pasta 1046. 373
Idem.
277
Considerando que o problema das favelas não se resolverá jamais por meio
da assistência caritativa, que estimula dependência [ilegível] e a exibição da
miserabilidade, nem tão pouco pelas expedições punitivas, ou a expulsão de massa
de favelados e incêndios de seus barracos como se tem verificado na própria Capital
do Brasil;
Considerando, e por isso mesmo, que é indispensável e necessária a
participação dos próprios favelados na solução dos seus problemas materiais e
sociais.374
Em 1956, quando parte das associações de moradores e lideranças ligadas à UTF
participaram da Comissão de Habitação Popular, no II Congresso Pró-Autonomia do Distrito
Federal, o apoio ao vereador trabalhista ficou ainda mais evidente. As lideranças das
associações de favelas declararam apoio ao vereador e aprovaram um documento que tinha
como objetivo suspender o “terror” dos despejos e reivindicar melhoramentos urbanos375
.
Inserindo-se no campo da aliança nacionalista e antiudenista do período, que aglutinava
políticos trabalhistas, comunistas e socialistas, a UTF se aproximou de Geraldo Moreira, líder
da bancada trabalhista. Em reciprocidade, Geraldo Moreira passou a estar presente na
fundação de Centros de Trabalhadores Favelados e em festas de associações federadas à
UTF376
.
Segundo Geraldo Moreira, “é preciso que se acabe de uma vez por todas com esta
situação angustiante, com esta situação dolorosa a que todos os dias assistimos, nesta Casa, os
favelados lotando as galerias para pedir proteção contra as violências de autoridades
municipais, que, muitas vezes, nada tem a ver com o assunto”. Destarte, “não podemos
continuar presenciando esse triste espetáculo de 400 mil favelados, trabalhadores na sua quase
totalidade, viverem numa pobreza lamentável sob a brutalidade, as violências das autoridades
municipais na própria Capital da República”377
.
O vereador, líder da bancada trabalhista, havia deslocado seu discurso na comunidade
política, aproximando-se do movimento social articulado em torno da UTF. Como argumenta
Fischer (2008), diferente da linguagem paternalista que estruturou a justificativa para a
proteção da favela do Jacarezinho – quando a atuação de Geraldo Moreira como advogado foi
central para defesa dos moradores, agora ele afinava seu discurso ao campo das esquerdas.
Incorporava o jargão político radical que reconhecia a moradia nas favelas como um direito.
374
CÂMARA DO DISTRITO FEDERAL. Anais da Câmara do Distrito Federal (Vol. 56). Rio de Janeiro:
Imprensa Oficial, 1955. p. 1261. (Ata da Sessão de 07 de julho de 1955). 375
MORROS e Favelas. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 18/04/1956. p. 5. 376
MORROS e Favelas. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 27/04/1956. p. 4. 377
CÂMARA DO DISTRITO FEDERAL. Anais da Câmara do Distrito Federal (Vol. 56). Rio de Janeiro:
Imprensa Oficial, 1955. p. 1261. (Ata da Sessão de 07 de julho de 1955).
278
Essa era a postura adotada pela UTF e pelos comunistas e socialistas. Nesse enquadramento,
não seria através da caridade que se solucionaria o problema dos trabalhadores pobres, mas
através da extensão dos direitos sociais (FISCHER, 2008: 295).
Assim como Magarinos Torres Filho, Geraldo Moreira chegou a convocar um
congresso com a participação dos moradores de favelas. Todavia, seu projeto, diferente do de
Magarinos, não previa a incorporação das associações de moradores na estrutura política do
Estado, nem a extinção da Comissão de Favelas e nomeação de um representante dos
trabalhadores favelados, para discutir e fiscalizar o plano municipal de urbanização378
. Além
disso, em 1960, em artigo na Gazeta de Notícias, Geraldo Moreira apresentou suas
divergências com os comunistas, na disputa pelo voto dos favelados:
Há 15 anos atrás essa gente não tinha direito sequer de colocar uma torneira
d'água nas ruas onde mora. Apanhavam o precioso líquido nos quintais de
particulares, apelando para a bondade dos seus proprietários. Situação
constrangedora para ambas as partes. Não podiam conservar seus casebres. Guardas
municipais agiam discricionariamente contra esses trabalhadores, praticando as
maiores injustiças contra eles.
Foi quando assumi a liderança de toda essa gente. Fui ao encontro das suas
reais necessidades. Comecei colocando água em todas as ruas das Favelas.
Permitindo e fazendo permitir que conservassem seus barracos. E nas favelas, as
removíveis, como Diretor da Comissão de Favelas, permiti que higienizassem seus
casebres, reconstruindo-os de tijolos. Jacarezinho, Barreira do Vasco e outras
deixaram de ser Favelas. Orientando sempre as minhas atividades no alto sentido de
Cristo. Criando centros de escoteiros e escolas primárias. Idealizei e estudei,
detidamente, o plano para extinção das Favelas, consubstanciando no meu Projeto
52/55, aprovado pela Câmara e vetado pelo Prefeito, por imposição de não sei quem.
Graças a Deus afastei das Favelas a perseguição e o terror. Criei nas favelas uma
mentalidade cristã e patriótica. E a consciência de seus direitos e deveres. Os
comunistas, que tinham nos favelados a “marca” para as arruaças, foram eliminados
dali. 379
Eleito para três legislaturas (1947-1951; 1955-1959; 1959-1962) na Câmara Municipal
do Distrito Federal, Geraldo Moreira foi um importante nome do PTB carioca e construiu uma
imagem de protetor dos pobres, independente de instituições e movimentos sociais.380
O
político se autorrepresentava como um protetor da “gente” das favelas, uma “liderança”
378
Devemos nos lembrar de que, entre janeiro de 1953 e julho de 1954, Geraldo Moreira foi membro da referida
comissão coordenada pelo Coronel Melquíades. O vereador saiu da instituição no auge das manifestações da
UTF, quando essa estrutura era questionada em protestos que ocupavam o centro urbano e político da capital da
República. Por isso, quando seu projeto foi discutido na Câmara dos Vereadores, o vereador Manuel Novela
(PSP) acusou-o de “demagogo”, por participar das “violências praticas pelos guardas da Polícia de Vigilância”.
Cf. CÂMARA DO DISTRITO FEDERAL. Anais da Câmara do Distrito Federal (Vol.56). Rio de Janeiro:
Imprensa Oficial, 1955. p. 1261. (Ata da Sessão de 07 de julho de 1955). 379
MOREIRA, Geraldo. Ajuda política e moral para os comunistas. Gazeta de Notícias, 05/06/1960. ARQUIVO
PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo DPS. Arq. Dossiê 0293 - União dos Trabalhadores
Favelados. 380
Geraldo Moreira foi líder da bancada petebista entre 1955 e 1959, e o vereador mais votado pela legenda em
1958.
279
individual destacada. No seu artigo, seu projeto de lei aparecia como um feito individual;
ainda que sua proposta estivesse contextualizada pela forte mobilização das associações
ligadas à UTF em 1954 e 1955, isso não aparecia em seu discurso. Ao contrário da
aproximação com a UTF, o vereador alinhava o projeto ao intento de “extinção” das favelas
como era discutido na campanha da Cruzada São Sebastião. O vereador atacava os
“comunistas” e se apresentava como autêntico representante da população de favelas.
Em diferentes conjunturas, Geraldo Moreira mudava seu discurso, mas sempre
tentando ampliar ao máximo sua base de apoio nas favelas, mantendo uma extensa clientela
política dependente de seu poder. Durante sua trajetória política, o vereador trabalhista foi
acusado de manter “currais eleitorais” nas favelas do Jacarezinho e na Barreira do Vasco.
Alguns acusavam Geraldo Moreira de ser dono de barracos que alugava ou vendia aos
moradores, de biroscas e de bicas de água nas favelas. Existiria uma rede de serviços que ele
administrava em troca da lealdade política. Sem dúvida essas acusações estavam relacionadas
com a disputa de voto que ocorria nas favelas cariocas.
7.1.3 A “Comissão Parlamentar de Inquérito das Favelas” e a “Lei das Favelas”
Entre 1949 e 1955, foram vários os projetos de desapropriação encaminhados pela
Câmara Municipal, numa tentativa de adiar a execução de mandatos de despejo. A articulação
do movimento de trabalhadores favelados acelerou esse processo de reivindicação de
desapropriação: em 1954, Santa Marta, União, Borel (“Independência”) e Dendê; em 1955,
Vila do Vintém, Maré (“João Cândido”), Mangueira, Chapéu Mangueira e Babilônia; em
1956, a favela “Boogie-Woogie”, na Ilha do Governador, Penha e Fazenda do Piaí (FISCHER,
2008: 295). Como já foi dito, a UTF ampliou o escopo dos discursos sobre a injustiça desses
despejos, reclamando a posse dos imóveis e denunciando os “grileiros”, “tubarões” e
“exploradores” dos trabalhadores favelados. O clamor dos movimentos sociais, o anteprojeto
de lei de Magarinos Torres Filho, o projeto de Geraldo Moreira e os constantes protestos no
centro da capital da República geraram várias repercussões na política carioca.
Os projetos de desapropriação aprovados no legislativo municipal tinham efeitos
ambíguos. De um lado, os moradores, políticos e advogados de favelas reconheciam a
estratégia como um meio de barrar despejos coletivos, adiando a determinação da justiça nas
contendas pela propriedade e posse da terra. De outra parte, o município, mesmo sancionando
as leis de desapropriação, não dava execução aos regulamentos. A execução das leis esbarrava
na falta de recursos e na autonomia da prefeitura do Distrito Federal. Segundo o vereador
280
Osmar Resende (PSD), essas leis eram “mistificadoras” e “demagógicas”, visto que os
favelados iam continuar ameaçados de despejo e seriam despejados, porque essas leis eram
meramente autorizativas e o Prefeito do Distrito Federal não poderia cumprir essas leis se não
dessem ao Poder Executivo os necessários recursos para efetivar as leis emanadas daquela
Casa381
.
Em meados da década de 1950, o caso das desapropriações de favelas suscitava o
debate sobre a “indústria de desapropriação” e o modus operandi das “quadrilhas de
grileiros”. Na Câmara Municipal, o termo “indústria de desapropriação” foi de referência,
tanto para políticos da esquerda quanto da direita382
. Reconhecia-se no debate público que,
muitas vezes, os supostos proprietários das favelas não podiam comprovar cartorialmente a
propriedade dos lotes. Destarte, faziam uso de ameaças jurídicas e físicas para implantar o
“terror” nos favelados e provocar a comoção pública em favor das desapropriações. Com a
intervenção do poder público, eles conseguiam, em tese, a garantia da indenização dos
terrenos e o reconhecimento de uma propriedade que estava em litígio. Noutra situação,
proprietários de terrenos estimulavam a ocupação de seus lotes e realizavam contratos
informais de venda e aluguel de barracos, para depois requerer a reintegração de posse e o
despejo (GONÇALVES, 2013: 180-181). O advogado da Prefeitura do Distrito Federal,
Manuel Carvalho Barroso, ponderou, em artigo publicado na Revista de Direito da
Procuradoria Geral, o que estava ocorrendo nas batalhas pela posse da terra nas favelas:
registrava-se de certo tempo para cá, na vida administrativa, a prática (...) de
descarregar exclusivamente nas costas da Prefeitura a solução dos despejos das
favelas. O esquema é conhecido: o proprietário deixa invadir seu terreno pela
favela. Quando a mesma se encontra constituída, resolve reivindicá-lo ou aproveitá-
lo – para o que requer o possessório cabível – que resulta no meio certo de vender o
bem, totalmente, à Prefeitura, a quem se procura obrigar a adquiri-lo com a pressão
dos desalojados e da preparação emocional que se articula em torno do caso. Um
beneficiado pode-se apontar, desde logo, o proprietário, que dispõe de uma só vez
do imóvel, ao qual não daria o aproveitamento a que propôs, aproveitamento este
somente agora formulado pela certeza da desapropriação383
.
Nesse quadro conflituoso que envolvia o interesse dos moradores, dos movimentos de
trabalhadores favelados, da Prefeitura do Distrito Federal e dos proprietários de terras, foi
instaurada, em 7 de março de 1955, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das
Favelas na Câmara Federal. Ela era presidida pelo deputado Eurípedes Cardoso Menezes
381
Cf. CÂMARA DO DISTRITO FEDERAL. Anais da Câmara do Distrito Federal (Vol. 58). Rio de Janeiro:
Imprensa Oficial, 1955. p. 1584. (Ata da Sessão de 06 de Agosto de 1955). 382
Idem, p. 1585. 383
BARROSO, Manuel. Favelas. Desapropriações impeditivas de despejo. Pagamento em apólices. Revista de
Direito da Procuradoria Geral, nº 7, 1957. Rio de Janeiro, p. 510.
281
(PSD) e contou com forte apoio do comunista Bruzzi de Mendonça, deputado pelo PRT384
.
Entre 1955 e 1956, a CPI investigou os títulos de propriedade e recebeu memoriais de apoio,
assim como pedidos para que se apoiasse a luta contra os despejos. Para tanto, a comissão
declarou a suspensão do pagamento de aluguéis nas favelas até que fossem comprovados os
verdadeiros proprietários dos terrenos (FISCHER, 2008: 297-298).
Atendendo às reivindicações do movimento social e aproveitando a legitimidade
oferecida pelas manifestações de moradores de favelas, tornou-se comum a presença dos
políticos Bruzzi Mendonça e Cardozo Menezes nas manifestações da UTF. A partir do jornal
Imprensa Popular, observamos que as associações de Borel, Mangueira, Vintém, Maré (“João
Cândido”), Arara, Pau Rolou, Pau Fincado, Juramento e Jacarezinho marcaram presença
através de delegações, passeatas e abaixo-assinados na CPI. Requereram a agilização do
processo de desapropriação, entregaram documentos comprovando posse, denunciaram as
arbitrariedades praticadas pelos “donos” dos terrenos, e reclamaram “melhoramentos”.
Trataram tanto dos assuntos diretamente ligados à CPI quanto das reivindicações relacionadas
com as dificuldades encontradas na rotina diária dos moradores das favelas385
.
A CPI enfrentou várias dificuldades para executar o trabalho de investigação.
Encontrou livros de registro de títulos de propriedade com páginas rasgadas, sem qualquer
cuidado específico para sua preservação, inviabilizando assim a comprovação das
propriedades dos terrenos em litígio386
. Além disso, a Prefeitura do Distrito Federal não
concedia informações precisas sobre a situação de algumas favelas387
. Ao término da
investigação, mostravam-se várias irregularidades no registro dos terrenos e litígio.
A CPI inseriu o debate sobre a questão fundiária das favelas no legislativo federal. De
acordo com Gonçalves, “a questão dos despejos judiciais havia assumido uma tal importância
política que não poderia mais ser tratada exclusivamente pela Câmara de Vereadores”
(GONÇALVES, 2013: 190). No Senado, em dezembro de 1955, o senador Osvaldo Moura
384
Faziam parte da comissão: Cardozo de Menezes (PSD), Bruzzi de Mendonça (PRT), Marcos Parente (UDN),
Aurélio Viana (PSB), Leônidas Cardoso (PTB), Chagas Freitas (PSP), Nita Costa (PTB), Rafael Correia (UDN),
Áureo de Melo (PTB), Queiroz Filho (PDC), Tenórico Cavalcanti (UDN). Cf. Requerimento. Diário do
Congresso Nacional. Rio de Janeiro, 22/03/1955. p. 1335. 385
Como exemplo, podemos citar o caso da Maré (“João Cândido”). De acordo com a coluna Morros e Favelas,
“em abaixo assinado enviado ao deputado Eurípedes Cardoso de Menezes, presidente da Comissão Parlamentar
de Favelas, os moradores da Favela João Cândido reivindicaram providências em favor das famílias que ali
residem e que diariamente ficam com seus barracos invadidos pelas águas do mar em consequência das obras
que ali estão sendo executadas. Como medida de urgência, os favelados da João Cândido recomendaram que seja
aterrada toda a área em que está localizada a favela. Consideram que essa providência virá tranquilizar as vítimas
da invasão das águas, do que ordinariamente resulta a morte das suas criações e destruição dos barracos e
móveis”. Cf. MORROS e Favelas. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 28/04/1956. p. 5. 386
DOCUMENTOS importantes sobre as favelas. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 15/06/1955. p. 3. 387
EM DEFESA dos faveldos do Arara, Pau Fincado e Pau Rolou. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 04/02/1956.
p. 8.
282
Brasil (PSD) declarou a intenção de desapropriar todos os terrenos de favelas e construir
habitações em substituição aos “barracos”. De forma inovadora, e seguindo as orientações da
CPI, ele também propunha a suspensão dos despejos coletivos. No projeto de lei lançado em 2
janeiro de 1956, considerava legítimas ambas as partes nos conflitos de despejo, mas
propunha uma “trégua” de um ano, objetivando um planejamento da política de habitação388
.
O projeto do senador Moura Brasil era uma resposta aos resultados da CPI, mas também à
iniciativa da Cruzada São Sebastião – a associação privada, ligada à Cúria Metropolitana do
Rio de Janeiro, que se tornaria a principal promotora da política de favelas do período.
Na Câmara Federal, as lutas contra o despejo suscitaram a revisão do projeto de lei nº
749, de 1955, que enfocava a subvenção pública à Cruzada São Sebastião. Em meio às
discussões da CPI das Favelas, o comunista Bruzzi Mendonça propôs emenda semelhante ao
projeto de Moura Brasil, em andamento no Senado. A emenda nº 7 foi composta por três
artigos, redigidos da seguinte maneira: “Durante o prazo de dois anos, a contar desta lei não
será executado nenhum despejo contra moradores de favelas situadas no Distrito Federal”;
“Fica assegurada aos moradores das favelas a permanência nas habitações na hipótese de não
virem a ser contemplados com as casas construídas com o presente crédito”; “As exigências
formuladas pela Cruzada S. Sebastião, para entrega das casas construídas com o presente
crédito aos moradores das favelas, serão obrigatoriamente submetidas à votação do Congresso
Nacional”389
. Na lei publicada em 19 de setembro de 1956, os dois primeiros artigos do
projeto de Bruzzi Mendonça foram incorporados390
. Excluía-se o último, que tinha por
objetivo estabelecer um mecanismo de controle público sob a atuação da Cruzada São
Sebastião.
A Lei nº 2.875, como os outros projetos aqui analisados, ficou também conhecida
como “Lei das Favelas” e contemplava o debate sobre a proibição dos despejos coletivos no
Rio de Janeiro. Como observou Fischer, essas iniciativas acompanhavam de perto a mudança
do cenário político com os movimentos de trabalhadores favelados. Naquele momento, até
mesmo os políticos conservadores recuaram em suas posições contrárias à necessidade de
remoção das favelas e passaram a se apropriar da linguagem política que enfocava o direito de
moradia (FISCHER, 2008: 297). Na política urbana, assistia-se à ascensão do movimento
388
Projeto de Lei nº 1, de 04 de janeiro de 1956. Diário do Congresso Nacional. Rio de Janeiro, Seção II, p. 11. 389
Emenda nº 7, de 07 de fevereiro de 1956. Diário do Congresso Nacional. Rio de Janeiro, p. 943. 390
Segundo a legislação, “Art. 5º Durante o prazo de 2 (dois) anos, a contar da data da publicação desta lei, não
será executado nenhum despejo contra moradores de favelas situadas no Distrito Federal.; Art. 6º É assegurada
aos atuais moradores de favelas a permanência nas suas habitações, no caso de não serem beneficiados com as
casas construídas com os créditos especiais de que trata a presente lei”. Cf. BRASIL. Lei nº 2.875, de 19 de
setembro de 1956. Autoriza o Poder Executivo a abrir, pelo Ministério da Justiça e Interior, os créditos especiais
e dá outras providências.
283
social articulado pela UTF, em forte aliança com políticos “nacionalistas”. Como já
enfatizamos, a UTF, após o suicídio de Getúlio Vargas, inseriu-se na aliança antiudenista; em
1955, essa ação foi replicada na eleição de Juscelino Kubitschek e João Goulart para
presidente e vice-presidente da República. Portanto não era ao acaso que políticos do PTB e
do PSD assumiram a pauta ligada aos trabalhadores favelados.
Mais do que incorporação da gramática pública do movimento social, havia o
reconhecimento de um ator. O médico e senador Moura Brasil (PSD), por exemplo, embora
não assumisse nenhum dos lados nas contendas entre os supostos proprietários das favelas e
os moradores, defendia a suspensão dos despejos coletivos como uma medida social. Segundo
o médico, “é claro que, ao estabelecer essa restrição ao direito de propriedade, o legislador
inspirou-se no bem público com o qual aquela se deve harmonizar, porque social é a sua
função”. Como exemplo de intervenção na ordem econômica, estabelecendo a função social
da propriedade, o senador citava o caso da Lei do Inquilinato, o congelamento dos aluguéis e
a moratória das dívidas de “fazendeiros e pecuaristas”, ou seja, havia precedentes para a
suspensão dos despejos em favelas. A diferença fundamental era que agora reconhecia-se esse
direito para os trabalhadores favelados:
O projeto que ora submetemos no Senado Federal não tem o alcance nem o
peso de nenhum daqueles que citamos [a Lei do Inquilinato e a moratória das
dívidas para fazendeiros e pecuaristas]. Todavia a sua importância humana é
irrecusável.
Sob a ameaça imediata de despejo, encontram-se, somente no Distrito
Federal, cerca de 500 mil almas que não dispõem de recursos e meios para transferir
suas precárias moradias, que é tudo quanto lhes resta.
Cabe ao Estado o indeclinável dever de resolver esse problema. Mas, para
que o faça sem atropelos e para que a população das favelas, já tão cheia de
dificuldades e sofrimentos, possa aguardar as providências oficiais que reclama, sem
os sobressaltos em que vive hoje, é preciso que, durante pelo menos um ano, sejam
suspensos os despejos possessórios contra todas as favelas do Brasil391
.
O ponto fundamental do discurso não eram os precedentes jurídicos que justificavam a
função social da propriedade privada, mas o jogo de forças que contribuiu para o
reconhecimento momentâneo do direito de moradia nas favelas cariocas. Havia um
deslocamento do legislador no espaço social, fazendo-o aceitar parte das reivindicações e
justificativas morais para o direito de moradia. Contudo, como analisou Gonçalves (2013), o
regulamento que efetivou a “trégua” sobre os despejos foi bastante questionado. Em manual
de análise da Lei do Inquilinato e da Lei de Favelas, o jurista Espínola Filho considerou
inconstitucional o segundo regulamento. Para ele, não era possível garantir o uso social da
391
Projeto de Lei nº 1, de 04 de janeiro de 1956. Diário do Congresso Nacional. Rio de Janeiro, Seção II, p. 11.
284
propriedade sem a desapropriação. Havia ainda aqueles que consideravam inconstitucional
qualquer medida para cercear o direito à propriedade privada (GONÇALVES, 2013: 191-
192). Ou seja, não havia um consenso no sentido de aplicar o regulamento em favor dos
trabalhadores favelados.
Além disso, a parte do adendo introduzida pelo comunista Bruzzi Mendonça, que
visava garantir a permanência dos favelados nas casas enquanto não fossem construídas
moradias para os mesmos, tinha também outra face: segundo o artigo 6º da Lei das Favelas,
os moradores “seriam obrigados a deixar as favelas no momento em que as primeiras
habitações sociais tivessem sido colocadas à disposição” (Idem, p. 192). Ademais, a
legislação colaborou para colocar um abismo entre os direitos do locatário de imóveis nas
favelas e o proprietário do solo ou da residência alugada. “A despeito dos abusos dos
pretensos proprietários das favelas, a condição de locatário conferia um status mais legal392
a
essa ocupações de terrenos, e outorgava ao favelado a possibilidade de reivindicar alguns
direitos, minimizando, assim, a natureza jurídica sui generis das favelas” (Ibidem). A
suspensão dos despejos por dois anos tornava tacitamente ilegais os aluguéis e a possibilidade
dos inquilinos e dos proprietários de requererem direitos. Isso viria a ser confirmado em 1959,
quando a Prefeitura do Distrito Federal proibiu aluguéis em favelas.
7.2 Os embates pela “reforma urbana” na FTFBH em Belo Horizonte (1961-1964)
Na “Lei das Favelas”, a suspensão dos despejos por dois anos era restrita ao Distrito
Federal e não se aplicava a outros centros urbanos. Mesmo que houvesse uma discussão no
legislativo federal sobre os problemas das favelas em perspectiva nacional, abordando o tema
da migração e das populações “marginais” nas cidades brasileiras, a aplicação da legislação
seguia de perto a fragmentação da estrutura federativa brasileira e a lógica de governo do
Distrito Federal, onde a Câmara Federal e o Senado tinham papel destacado na aprovação de
regulamentos e no orçamento da cidade.
As leis e estruturas políticas que articularam a política urbana variavam sua dimensão
de acordo com a estrutura de poder de cada cidade. Nesse sentido, a “Lei das Favelas” foi
uma resposta à forte mobilização social em torno do direito de moradia no Rio de Janeiro. Em
Belo Horizonte, entre 1954 e 1957, não existia um movimento social de favelas com a mesma
força do que havia se estruturado no Rio de Janeiro. Em finais da década de 1950, por
392
Grifo meu.
285
exemplo, a Vila São Vicente de Paula e o Morro do Querosene sofriam ameaças de despejo.
Ambas construíram suas associações de defesa coletiva para se defender contra a ação dos
supostos proprietários, brigavam na justiça pela permanência nas referidas localidades, mas
não conseguiam formar mobilizações que lhes dessem visibilidade e expressão política. Nesse
sentido, em 1956, os moradores do Morro do Querosene enviaram uma carta ao General Lott,
pedindo a suspensão dos despejos393
. Eles sofriam ameaças do Exército, que reivindicava a
propriedade no lugar e havia trançado arame farpado para demarcar a área e impedir a
circulação dos moradores (WATANABE & BRAGA, 1960: 15). Ainda que conseguissem
audiência com autoridades para reivindicar proteção, a rede de atores políticos na cidade de
Belo Horizonte tinha menos força para colocar em questão o direito de posse.
A partir de 1959, com a fundação da Federação dos Trabalhadores Favelados, o
contexto social e político se alterou. Assim como a UTF, a Federação serviu de esteio para a
aliança com políticos de esquerda, com a finalidade de apoiar uma alteração no campo do
direito de moradia. Entre 1961 e 1964, dois militantes da esquerda, ligados à FTFBH e à
mobilização pelas reformas de base, escreveram propostas com o foco nas favelas de Belo
Horizonte. Em 1961, o professor José Thiago Cintra esboçou o desenho da “Fundação
Mineira de Bem-Estar Social”. Em 1963, o vereador e advogado da FTFBH, Dimas Perrin,
apresentou o projeto de lei nº 132/63, que reformulava a política do Departamento de
Habitação e Bairros Populares (DHBP). No mesmo ano, o prefeito Jorge Carone desapropriou
os terrenos do “latifundiário urbano”, o deputado Antônio Luciano Filho.
Com projetos semelhantes aos defendidos pela UTF, a FTFBH tinha em vista a
promoção da igualdade na prestação de serviços entre bairros e favelas e o posicionamento
contrário à remoção do local de moradia. O contexto político, contudo, era bastante diferente,
marcado pela ascensão da plataforma das reformas de base no governo federal.
7.2.1 O Conselho Estadual de Planejamento e Habitação Popular (CEPHAP) e a
“Fundação Mineira de Bem-Estar Social (FUMBES)” (1961)
No governo de Jânio Quadros (1961) e principalmente no de João Goulart (1961-
1964), houve sucessivas tentativas de reformas, buscando equacionar a crise habitacional e os
problemas urbanos das cidades brasileiras. Três instituições se sucederam, com intuito de
discutir a questão urbana: o Conselho Nacional de Planejamento da Habitação Popular (1961)
e a Comissão Nacional da Habitação (1961), esta última posteriormente transformada em
393
[Texto de Francisco Nascimento, contando a história das mobilizações do movimento social, 1964].
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS. Arq. Pasta 0121.
286
Conselho Federal de Habitação (1962). Essas instituições tinham finalidades muito
semelhantes: estudar e divulgar os problemas relacionados à habitação, racionalizar a política
pública do setor e coordenar os vários órgãos que existiam em âmbito federal, estadual e
municipal. A criação desses órgãos suscitaram debates sobre a reforma urbana, mas tiveram
poucos efeitos práticos, uma vez que não conseguiram realizar seu principal propósito –
unificar o sistema de financiamento e produção de moradias populares disperso nos IAPs
(Institutos de Aposentadorias e Pensões) e nas esferas estadual e municipal.
Há poucas informações sobre a atuação dessas instituições. As mensagens
presidenciais ao Congresso Nacional enfatizavam que os conselhos eram uma resposta às
ações descoordenadas dos vários órgãos de habitação popular. Enfocavam a necessidade de
articular o problema da produção de moradias populares com o planejamento urbano regional.
O Seminário de Habitação e Reforma Urbana (1963), organizado pelo Instituto dos
Arquitetos do Brasil (IAB) e pelo Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Servidores do
Estado (IPASE), foi central na discussão sobre a questão urbana no Brasil. O seminário
forneceu subsídio ao projeto de lei sobre a reforma urbana que seria apresentado ao
Congresso Nacional em princípio de 1964 e para a criação do Conselho de Política Urbana
(COPURB)394
.
A temática da propriedade do solo urbano era central para a discussão da questão
urbana. Segundo a mensagem presidencial de 1964, quando João Goulart deu especial ênfase
às reformas de base, um dos fatores que acentuava a crise nas cidades era “a permanência de
um conceito tradicional quanto ao uso da terra e o direito de propriedade, principalmente no
meio urbano, onde as iniciativas de natureza imobiliária ainda não” estavam “devidamente
reguladas de forma a impedir excessos que” influíam “consideravelmente no agravamento da
crise de moradias”395
. Nesse mesmo sentido, observando a pertinência da questão social no
tratamento dos problemas habitacionais, a mensagem de governo fazia menção às violências
praticadas na execução das políticas habitacionais:
Nenhuma política habitacional válida pode, além do mais, basear-se em
medidas de caráter repressivo ou policial; antes, deverá pautar-se em providências
de natureza assistencial, porque destinadas a resolver ou pelo menos a atenuar
problema de fundo eminentemente social.
O deslocamento, por exemplo, de favelados, não pode, por isso, ser imposto
pela força, mas precedido de investigações sobre as condições de vida desses
agrupamentos e amparado, de perto, pelas modernas técnicas do serviço social, para
que não se criem outros tantos problemas de desajustamento, de transporte mais
394
GOULART, João. Mensagem ao Congresso Nacional – remetida ao presidente da República na Abertura da
Sessão Legislativa de 1964. Brasília: Imprensa Oficial, 1964. p. 200. 395
Idem, p. 197.
287
caro e difícil para os locais de trabalho e até mesmo de desemprego que invalidam,
em grande parte, os benefícios decorrentes da transferência396
.
Em concomitância ao debate sobre a reforma urbana, municípios e estados brasileiros
também buscaram alternativas e soluções para a questão. No Estado da Guanabara, o
governador Carlos Lacerda (UDN) criou a Coordenação de Serviços Sociais (1961) – que
depois se tornaria a Secretaria de Serviços Sociais (1962). No Estado de Minas Gerais,
Magalhães Pinto (UDN) criou a Secretaria de Trabalho e Bem-Estar Social, sob a liderança do
professor Edgar de Godói da Mata Machado. Em dezembro de 1961, vinculado à referida
secretaria, foi criado o Conselho Estadual de Planejamento e Habitação Popular (CEPHAP).
Ambas as propostas tinham em vista uma contraposição ao governo federal e à proposta de
reforma urbana. Diferentemente da Guanabara, porém, em que a Coordenação de Serviço
Social teve desde o início um orçamento e lastro social, em Minas Gerais, o CEPHAP não
teve recursos entre 1961 e 1963 e atuou apenas em 1964, numa política de construção de
casas no bairro Dom Cabral (FERRETI, 1991). Além disso, na Guanabara, o governo estadual
iniciou um processo de incorporação das associações de moradores no quadro político e
administrativo das ações em favelas, estabelecendo um forte controle sobre esse espaço de
mobilização (MACHADO DA SILVA, 1969; VALLADARES, 1978; LIMA, 1989;
GONÇALVES, 2013).
Disputando o campo político na capital mineira e o crescente avanço da aliança do
PTB com os setores populares, a administração estadual de Magalhães Pinto tentou trazer a
Federação de Trabalhadores Favelados para a órbita do governo. Para compreender esse
processo, devemos recapitular alguns eventos que ocorreram na disputa eleitoral de 1960. A
direção da campanha da UDN mobilizou as favelas através da criação de Comitês da Casa
Própria. No manifesto desses comitês, criticava-se a previdência social, por atender a uma
parcela privilegiada dos trabalhadores, excluindo a maior parte dos pobres. Sendo assim, a
crise habitacional era atribuída à corrupção dos IAPs e o candidato ao governo do estado
(Magalhães Pinto) prometia a criação de um órgão estadual, a fim de tratar do problema. No
período da campanha eleitoral, a FTFBH se contrapôs ao intento dos udenistas e lançou um
manifesto de apoio ao candidato da aliança entre o PSD e o PTB (Tancredo Neves), mas
também demandava um órgão estadual que realizasse uma política habitacional e assistencial
nas favelas. Em 1961, no primeiro ano de governo, Edgar de Godói foi nomeado secretário do
Trabalho e Bem-Estar Social, mas também iniciou o debate sobre a criação de uma política de
396
Ibidem, p. 203.
288
desfavelamento. Novamente houve uma tentativa de aproximação da FTFBH, convidando um
representante dos trabalhadores favelados para participar da comissão que discutiria a política
pública.
Em julho de 1961, no diálogo com o secretário do Trabalho e Bem-Estar Social, a
FTFBH apresentou como proposta a Fundação Mineira de Bem-Estar Social (FUMBES). O
esboço do projeto foi discutido em algumas associações de defesa coletiva, mas não houve
mobilização e campanha para que o mesmo fosse aprovado. O movimento de trabalhadores
favelados buscou ocupar o espaço aberto na Secretaria de Trabalho e Bem-Estar Social,
tentando uma negociação direta com o secretário e com a comissão que se reunia no palácio
de governo. O autor intelectual do projeto da FUMBES e principal interlocutor da FTFBH na
comissão de favelas foi o professor José Thiago Cintra. Em carta enviada ao secretário do
Trabalho, o professor buscava legitimar a FTFBH e apagar as diferenças políticas entre a
FTFBH e o governo udenista:
Sem dúvida nenhuma, encontrei, na Federação dos Favelados de Belo
Horizonte, uma entidade, que muito tem contribuído para manter as favelas da
cidade em um nível mais alto do que as de outros estados. Atribuo isso
principalmente à sua ação politizadora através dos muitos contatos que mantém com
as favelas, suas filiadas (através de reuniões semanais com os presidentes de vilas e
reuniões mensais com os associados favelados em geral). Essa ação tem dado aos
favelados um desejo próprio de procurarem eles mesmos solucionar os seus mais
graves problemas, arregimentando-se jurídica e politicamente para a conquista
progressiva de uma paz e um bem-estar social. Isto tenho observado pessoalmente,
quer presenciando suas assembleias e reuniões, quer indo pessoalmente às reuniões
das UDC (Uniões de Defesa Coletiva), onde são ventilados os problemas locais. (…)
Conhecedor do seu alto espírito social, de seu desejo de procurar solucionar
esses mesmos problemas de nossa terra, tomo a liberdade e confiança de expor-lhe,
ainda que sem estilo ou técnica, mas com espontaneidade, aquilo que penso que
poderia executar em benefício dos favelados e com o auxílio dos favelados. A monta
do trabalho não nos permite, de modo algum, egoísmos de solução, unilateralismo de
força. Aqui é o momento em que não se poderão menosprezar as forças de todos
aqueles que já colaboram ou que se interessam em colaborar397
.
Como se pode observar na carta, havia um grande entusiasmo com a capacidade das
organizações populares em transformarem a realidade política e social. Entre abril e dezembro
de 1961, José Thiago Cintra398
esteve presente em assembleias e manifestações de vilas e
favelas da capital, discutindo e repassando aquilo que era debatido na comissão de favelas.
Além das favelas, o ator participou das principais ações da esquerda naquele ano, envolvendo-
397
Essa carta foi encontrada e apreendida pela polícia na sede da FTFBH. Encontra-se dentro de uma pasta em
que há vários outros documentos apreendidos, que mostram outras mobilizações dos trabalhadores favelados. Cf.
Carta de José Thiago Cintra ao prof. Edgard de Godói da Mata Machado, 18/07/1961. ARQUIVO PÚBLICO
MINEIRO. Fundo Dops. Arq. Pasta 0121. 398
José Thiago Cintra também se envolveu na organização de Ligas Camponesas no estado de Minas Gerais, foi
um dos personagens que mediou a chegada de Francisco Julião em Minas Gerais (CAMISASCA, 2006).
289
se com a luta pelas reformas de base, principalmente a agrária.
A carta de José Thiago Cintra era uma peça simbólica que declarava a legitimidade
dos movimentos populares no jogo político. O projeto da FUMBES foi apresentado num
período de forte mobilização popular, envolvendo sindicatos, estudantes e associações de
favelas no embate pelas reformas de base. Um dos momentos mais emblemáticos na rotina da
cidade foi a organização do I Congresso Nacional dos Trabalhadores Agrícolas, que colocava
em questão a organização da representação sindical dos camponeses e, ao mesmo tempo, a
expansão dos direitos sociais para os trabalhadores rurais. No mesmo período de discussão
do projeto da FUMBES, o professor José Thiago Cintra participou ao lado do deputado
estadual Hernani Maia (PTB), da comissão organizadora do I Congresso Nacional dos
Trabalhadores Agrícolas. Durante o período de agosto a novembro, a FTFBH realizou várias
assembleias e conferências no “Centro dos Choferes”, para participar do I Congresso
Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas. Essas reuniões eram preparatórias para a
comissão de “trabalhadores rurais radicados em favelas”399
. O principal debate desses eventos
era sobre a função social da propriedade e a possibilidade de desapropriação das favelas.
No plano discursivo, o projeto apresentado pela FTFBH à comissão de favelas do
governo estadual trazia implícita uma comparação entre as favelas de Belo Horizonte e os
grupos marginalizados em geral. Exaltando a capacidade de organização do movimento
social, contrariando o senso comum e a opinião dos burocratas do governo, ele afirmava que
“talvez, em nenhuma cidade brasileira, tenha-se observado o grau de imunidade social [de]
que gozam as nossas favelas”. Para explicar o que seria tal “imunidade”, ele diria que “a
existência de uma Federação que os congrega, a relativa minoridade das favelas, e o ambiente
mineiro, mais afeito à tradição moral” teria produzido um universo contrário ao dos grupos
marginalizados em geral400
. José Thiago Cintra depositava grande confiança na FTFBH, uma
vez que teria observado “junto a seus dirigentes, com exceções de somenos, junto aos
presidentes e diretorias de vilas, um verdadeiro empenho, livre por enquanto da contaminação
demagógica ou ambiciosa, que procura sempre atrasar estas organizações quando se
formam”401
.
A imagem de moradores de favelas, associando-os à capacidade de autogestão e de
organização numa representação livre de influência política, era um componente importante
399
[Transcrição de documento encontrado na casa de Élson Costa sobre a organização do I Congresso Nacional
dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, s.d]. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS. Arq. Pasta
5096. 400
Idem. 401
Ibidem.
290
para a legitimidade do projeto da FUMBES. Distanciar as associações de facções e partidos
políticos era uma maneira reforçar a importância do diálogo com o governo de Magalhães
Pinto. Além disso, diferente de uma política pública idealizada pela secretaria de Trabalho e
Bem-Estar Social e concretizada pela CEPHAP, em que as associações de moradores não
tinham papel algum, o projeto da FUMBES colocava, nas Uniões de Defesa Coletiva, o
elemento estruturante de toda ação. Para a “consolidação desse importante órgão dos
trabalhadores favelados”, as associações filiadas à Federação seriam as principais mediadoras
entre Estado e favelas. Elas escolheriam um membro para o Conselho Executivo da FUMBES
e receberiam subvenção pública, sendo reconhecidas como prestadoras de serviços de
interesse público402
.
Ao contrário do que foi estabelecido pelo governo do estado no CEPHAP, o projeto
apresentado pela FTFBH trazia uma dimensão reduzida para a política de construção de
conjuntos habitacionais403
. Num dos artigos que abordava a política habitacional no projeto da
FUMBES, dizia-se que a nova instituição teria de “solucionar problemas urgentes” (água, luz,
“urbanização progressiva”) e “solucionar problemas remotos” (“planejamento de bairros
operários próximos ao local de trabalho” e “urbanização definitiva das favelas”). Ao contrário
do intento da FUMBES, a política de desfavelamento do governo estadual tinha como
principal objetivo a construção de conjuntos habitacionais nos subúrbios para a remoção de
favelas. Isso criava vários receios entre os moradores. No anedotário recolhido e produzido
pelas investigações do DOPS-MG (Departamento de Ordem Política e Social de Minas
Gerais), há o registro de uma assembleia na Vila dos Urubus, voltada especificamente para
discussão do que ocorria nos debates da comissão de favelas criada na Secretaria do Trabalho
e Bem-Estar Social. O investigador do DOPS observou que um dos representantes da FTFBH
“esteve no Palácio do Governo, fazendo parte da comissão de estudos dos problemas dos
favelados, e ficou estarrecido com a opinião de um dos presentes em se vender esses terrenos,
ocupados por eles, em troca de outro lugar em que” pudessem “ter melhor condição de vida,
mas nas condições ditas anteriormente: longe demais e fora da cidade”404
. A polícia buscava
captar as críticas em relação ao governo do estado e registrou o medo que os moradores
tinham em relação à perda da centralidade urbana - a proximidade do centro de serviços e de
trabalho. Isso era ainda mais evidente para os moradores da Vila dos Urubus, que se
402
Projeto para organização da Fundação Mineira do Bem-Estar Social, 1961. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO.
Fundo DOPS. Arq. Pasta 0121. 403
Cf. Idem. 404
[Relatório policial sobre a reunião da Federação dos Trabalhadores Favelados na Vila dos Urubus,
02/07/1961]. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS. Arq. Pasta 0274.
291
localizava nas proximidades do bairro Santa Efigênia, próxima da Avenida do Contorno e do
leito do Rio Arrudas.
O foco principal da FUMBES era garantir melhores condições urbanas e unificar
diversos serviços de assistência social prestados nas favelas. Segundo o documento, a
Fundação Mineira de Bem-Estar Social seria “criada com a finalidade de coordenar todas as
forças de orientação governamental ou particular que atualmente trabalham dedicadas à
solução dos problemas do bem-estar social das favelas do Município de Belo Horizonte”405
.
Reconhecia-se a existência de prestação de serviços nas favelas, mas questionava-se a
distribuição dessa assistência que ocorreria de forma desigual. Para tentar solucionar tal
dimensão dessa questão, uma das funções da FUMBES seria entrar em entendimento com as
obras que, à época, se dedicariam à assistência, tendo como finalidade “coordenar os
trabalhos das mesmas, a fim de bem dividir a assistência nas vilas, evitando que umas sejam
mais ajudadas e assistidas que outras”. Além disso, dava-se bastante ênfase à criação de
“ambulatórios” e “escolas”.
Outro aspecto que esteve presente na discussão da política para as favelas era a
questão da função social da propriedade do solo urbano. Durante a discussão do projeto da
FUMBES, esse conflito foi expresso de forma direta na ocupação de lotes vagos após o I
Congresso Nacional dos Trabalhadores Agrícolas. A “comissão de trabalhadores rurais
radicados em favelas” decidiu ocupar um lote, fundando a Vila “Camponesa”. O lote era de
propriedade de Antônio Luciano. Apesar da performance, esse aspecto esteve ausente no
projeto do governo estadual. Ele focou sua atuação na política habitacional de construção de
conjuntos habitacionais e casas, visando à difusão do sentimento de propriedade privada.
Ademais, esperava-se que, com o sentimento de proprietário, viria também a valorização do
trabalho, elemento que seria fundamental para o mercado e, na visão de muitos, estaria
ausente nas classes marginais.
Apesar de a FTFBH ter participado da discussão da criação de um órgão que atuaria
nas favelas, nenhuma das propostas defendidas pelos trabalhadores favelados foi incorporada
à criação do CEPHAP. Em 1964 após o golpe civil e militar, o CEPHAP foi responsável pela
criação de um plano habitacional na formação do bairro Dom Cabral (FERRETI, 1991).
7.2.2 As iniciativas de reforma urbana em Belo Horizonte
405
Projeto para organização da Fundação Mineira do Bem-Estar Social, 1961. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO.
Fundo DOPS. Pasta 0121.
292
O que marcou a minha presença na Câmara foi o projeto que eu apresentei,
procurando estabelecer que os terrenos pertencentes à municipalidade ou terrenos
pertencentes a terceiros, porém já ocupados por favelados, fossem desapropriados e
vendidos aos trabalhadores favelados ao preço de custo, custo histórico. E a uma
prestação que não ultrapassasse a 10 por cento do salário do chefe de família. (…) O
Carone, que era o prefeito, se opôs ao projeto. De cara, quando ele devia ficar a
favor, porque ele tinha feito a demagogia toda de mandar dizer que ia dar terreno
para os outros406
Em 1962, para regulamentar a desapropriação, para fins sociais, prevista na
Constituição de 1946, o governo federal aprovou a lei 4.132. Regulamentando o art. 147 da
Constituição, a lei estabelecia a “desapropriação por interesse social”, para “promover a justa
distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem-estar social”. O regulamento
definiu o aproveitamento do bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as
necessidades de habitação, trabalho e consumo da população brasileira. Em primeiro plano, a
norma tinha em vista a reforma agrária, tema de maior relevo nos debates nacionais, todavia
ela também foi usada para justificar a reforma urbana. Previa a desapropriação para a
construção de casas populares e a “manutenção de posseiros em terrenos urbanos onde, com a
tolerância expressa ou tácita do proprietário” tivessem “construído sua habitação, formando
núcleos residenciais de 10 famílias” 407
.
A legislação era um primeiro passo para o programa da reforma da estrutura
econômica brasileira, regulamentando o uso social da propriedade previsto na Constituição de
1946. Publicada em setembro, em meio às disputas eleitorais para prefeituras e Câmara
Federal, a norma atendia aos anseios das esquerdas e de parcela significativa da população
pobre que enfrentava litígios pela posse da terra. A regulamentação atendia tanto às disputas
dos posseiros em zonas rurais como nas cidades e sua aplicação seguiu de perto o arranjo de
forças sociais de cada região. Assim como no Rio de Janeiro, nas disputas pela desapropriação
das favelas através de projetos de lei municipais, em Belo Horizonte, a regulamentação deu
ensejo a várias ações que tinham em vista a aplicação da lei e a garantia da reforma urbana.
Um dos personagens centrais na aplicação da desapropriação por interesse social em
Belo Horizonte foi o prefeito Jorge Carone (1962-1965). Na década de 1950, ele havia sido
prefeito de Visconde do Rio Branco – sua cidade natal – e eleito para deputado estadual pelo
Partido Republicano. Em julho de 1963, após ter sido eleito para prefeito de Belo Horizonte,
406
PERRIN, Dimas: entrevista [19/11/1993]. Entrevistadoras: Lucília de Almeida Neves, Valéria Pires e Míriam
Hermeto. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1993. 1 fita cassete, fita 11, lado A. (Projeto Memória e
História: Visões de Minas). 407
BRASIL. Lei 4.132, de 10 de setembro de 1962. Define casos de desapropriação por interesse social e dispõe
sobre sua aplicação.
293
ele fez uso da legislação federal de desapropriação:
Art. 1º Ficam declarados de interesse social para efeito de desapropriação, os
imóveis abaixo, atualmente plantados de eucaliptos, com áreas, limites e
confrontações constantes da planta cadastral de Belo Horizonte de propriedade de
Fayal S.A e Antônio Luciano Pereira Filho (…).
Art. 2º Os imóveis referidos no artigo anterior na forma dos incisos V e VI, do artigo
2º da mencionada Lei 4132, se destinam à construção de casas populares e de obras
e serviços públicos.408
O projeto de lei desapropriava 19 áreas em diversas partes de Belo Horizonte, de
propriedade do deputado do PSD Antônio Luciano Pereira Filho. A maior parte dos terrenos
concentrava-se principalmente na região oeste da cidade, nas proximidades da Avenida
Amazonas, que se valorizavam com a expansão da malha urbana e ocupação do solo da região
nos anos 1950 e 1960. O deputado plantava as áreas com eucaliptos, com a finalidade de
evitar as “invasões” e também o pagamento de impostos municipais. Ele explorava uma
brecha na legislação tributária da cidade e justificava que os “eucaliptos” eram importante
“zona verde”, contribuindo para a arborização da cidade e para o seu ambiente. Ao
desapropriar os terrenos, o prefeito buscava forçar Antônio Luciano a pagar impostos e
também se aproximava dos grupos de esquerda que estavam em franca ascensão política no
período.
Jorge Carone tornar-se-ia uma importante referência para os “trabalhadores
favelados”. Na eleição de 1962, como candidato a prefeito pelo Partido Republicano, Carone
participou de reuniões na FTFBH e já havia feito promessas de doação de terrenos aos
necessitados. Chegou a receber um “machado” como símbolo do intuito de cortar os
eucaliptais e desapropriar as grandes propriedades imobiliárias da capital. Segundo uma
reportagem que era francamente pró-Carone, publicada no Diário da Tarde durante a eleição,
ele convidou quinze líderes de UDCs para visitar Visconde do Rio Branco – sua cidade natal.
Ali ele teria mostrado que, “com o apoio das classes menos favorecidas da sua cidade, o hoje
candidato a prefeito de Belo Horizonte foi eleito por esmagadora maioria de votos, muito
embora tenha disputado o pleito contra candidato que tinha ao seu lado poderosas forças
políticas e econômicas”. Lutando contra as “poderosas” forças políticas, Carone teria
levantado os terrenos urbanizáveis, realizado a urbanização e “doado os lotes ao
operariado”409
.
408
BELO HORIZONTE. Decreto nº 1.105, de 08 de julho de 1963. Declara de interesse social, para efeito de
desapropriação, áreas de terrenos destinados à construção de casas populares, obras e serviços públicos. 409
GRAÇAS a Carone, os trabalhadores de sua terra natal não tem problema de habitação. Diário da Tarde. Belo
294
Dentro dessas performances para angariar apoio popular, após eleito e no cargo até o
Golpe de 1964, o prefeito fez farta publicidade da desapropriação de lotes como forma de
solução da crise habitacional de Belo Horizonte. Chegou a produzir um vídeo para os
cinejornais, explicando como resolveria o problema de moradia das classes mais pobres,
distribuindo lotes desapropriados (SIQUEIRA, 2007). De forte cunho personalista, o discurso
de Carone sugeria uma independência de organizações partidárias, sindicatos e associações.
Por outro lado, o político buscava garantir o apoio dos partidos de esquerda e dos movimentos
sociais. O decreto de desapropriação dos terrenos de Antônio Luciano figurava como a
concretização das promessas ao movimento de trabalhadores favelados: o prefeito voltava-se
contra aquele que era reconhecido, na linguagem dos trabalhadores favelados e da esquerda,
como o maior “latifundiário urbano” de Belo Horizonte.
Um dos ganhos para os grupos ligados à esquerda e aos movimentos de trabalhadores
favelados foi a farta divulgação de uma linguagem que denunciava as desigualdades no acesso
à propriedade. A ação do prefeito foi divulgada na imprensa, como podemos observar na
charge publicada no jornal Binômio. A imagem evocava o fato de Antônio Luciano ser dono
de vários terrenos, plantados com eucaliptos para evitar tributação, e ser conhecido no
imaginário popular da cidade por ter várias amantes.
Havia uma clara disputa sobre o significado daquelas ações e o sentido das
desapropriações. Entre julho de 1963 e abril de 1964, a FTFBH e os setores estudantis
Horizonte, 25/09/1962, p. 5.
OS EUCALIPTOS do Luciano. Binômio. Belo Horizonte,
22/07/1963, p. 1.
295
ligados ao PCB, à Ação Popular e à JUC (Juventude Universitária Católica) não esperaram o
prefeito pagar a desapropriação e passaram juntamente com os pobres a ocupar os terrenos de
Antônio Luciano. Na zona oeste de Belo Horizonte, em terrenos próximos ao Anel
Rodoviário, esses grupos formaram a Vila Operário Estudantil (Cabana do Pai Tomás), Vila
Frei Josaphat (Vila 31 de Março), Vila Padre Alípio e Vila Padre Lage. A atuação da frente de
militantes de esquerda, dos ocupantes, juntamente com o consentimento do prefeito, fez com
que esses lugares fossem rapidamente ocupados, tornando-se símbolos do processo de
mudança social da realidade brasileira.
Em todas essas localidades, foram criadas UDCs, federadas à FTFBH. “Reforma”,
“revolução”, “justiça social”, “direito de moradia” eram os vários paralelos e termos
utilizados para falar da experiência no jornal O Barraco. Segundo outras reportagens
contrárias ao que denominavam como “invasão” (desconsiderando a “desapropriação”),
estava ocorrendo, naquele processo, o “roubo” das toras de eucaliptos e “venda” de terrenos
antes mesmo da desapropriação dos mesmos410
.
Concomitante à disputa simbólica sobre o direito de desapropriação de “latifundiários
urbanos”, tentando expandir o escopo das transformações, Dimas Perrin apresentou o Projeto
de Lei nº 132 na Câmara Municipal. O projeto tinha o claro intento de garantir o direito de
moradia nas favelas a partir da justificativa da função social da propriedade. Eleito vereador
pelo PTB (1963-1964), o político mantinha dupla militância (no PCB e PTB) e era advogado
da FTFBH. Ele apresentou a seguinte proposta para a reforma da política de desfavelamento
de Belo Horizonte:
Art. 1º Ficam transferidos ao Departamento Municipal de Bairros e Habitações
Populares os terrenos pertencentes à Municipalidade e que, nesta data, se encontram
ocupados por favelados.
Art. 2º Os terrenos se destinam à cessão aos atuais ocupantes e satisfazem as
condições do artigo 11 desta Lei.
Art. 3º As áreas faveladas serão devidamente urbanizadas pelo Departamento de
Bairros e Habitações Populares, após a aprovação das respectivas plantas pelo
Departamento de Obras da Municipalidade.411
410
“Animados com o resultado, maus elementos iniciaram o roubo de eucaliptos em outras áreas. Foi solicitada
inutilmente a presença da Polícia. Devido a essa inexplicável omissão, a pilhagem foi-se agigantando. Dezenas
de caminhões transitam, dia e noite, carregados de toras de eucaliptos. Produto de crime impune. Agrava-se a
situação. A cada momento, pela intromissão de agitadores comunistas, que incitam ao saque, ao incêndio, à
violência e à posse criminosa de novas áreas invadidas”. Cf. AO POVO de Belo Horizonte e do Interior. Estado
de Minas. Belo Horizonte, 10/09/1963. p. 12. 411
Projeto de Lei nº 142. Autoriza cessão de terrenos pertencentes à Prefeitura ao DBHP para os fins
mencionados. ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara Municipal. Arq.
Rolo 05.
296
O projeto de Dimas Perrin não passou pelo legislativo municipal: sofreu oposição da
bancada majoritária do prefeito e, após o Golpe de 1964, foi considerado ilegal. Para explicar
a oposição ao projeto, temos de compreender o seu significado. Ele tinha como principal
propósito alterar a finalidade do Departamento Municipal de Bairros e Habitações Populares
(DBHP). No projeto original do DBHP, o desfavelamento viria com a necessária limpeza do
espaço urbano e transferência dos favelados para construções populares. A comissão de
estudos que elaborou o projeto do DBHP, em 1955, tinha franca participação de empresários
do mercado imobiliário, que viam nas favelas um problema estético. Diferente do propósito
de “desfavelar” a cidade com a construção de conjuntos habitacionais e casas populares em
vilas, Dimas Perrin buscava estender bens e serviços às favelas.
Reconhecendo a forte relação entre local de moradia e mercado de trabalho no
processo de formação das favelas, o projeto era uma resposta ao maior temor levantado com
as políticas habitacionais – a transferência para lugares distantes. Na justificativa do projeto
de lei, considerava-se ainda que o custo para a construção de conjuntos habitacionais para a
“extinção das favelas” era “elevadíssimo”, inviabilizando qualquer iniciativa que abarcasse
todos os moradores de áreas pobres; o mais correto seria a urbanização e a regularização da
propriedade. Propunha-se que os lotes ocupados por favelas fossem vendidos aos moradores
de acordo com as “condições financeiras de cada família, de modo que não ultrapassasse 5%
(cinco por cento) do salário mensal da mesma”. O valor das prestações pagas formaria um
fundo que seria reutilizado pelo DBHP na urbanização das favelas 412
.
O texto do legislador recriava critérios de exclusão, com fins de definir quem teria
acesso aos lotes, priorizando o atendimento ao “trabalhador favelado”. Esse morador deveria
residir “no município pelo menos nos dois últimos anos ininterruptamente”, exercendo
durante o período uma “atividade profissional remunerada” e não tendo sido “proprietário de
imóvel nos últimos dez anos”. Segundo a justificativa do projeto, não se estavam doando lotes
aos pobres, mas garantido àqueles que trabalham e moram em favelas o direito de moradia.
Quem não estava dentro do mercado de trabalho, não poderia ter acesso aos terrenos. A lei
tinha por fim excluir os indivíduos que não pudessem comprovar “atividade profissional
remunerada” (os “marginais”) e os agentes do mercado imobiliário das favelas que alugavam
barracos e o solo para moradores. Tentando evitar os exploradores de aluguéis, o projeto de lei
também estabelecia restrições no direito de venda e comercialização dos lotes, indicando o
412
Idem.
297
DBHP como órgão principal na regulamentação desse mercado413
.
Como advogado da FTFBH, o vereador apresentava uma proposta de reforma afinada
com as discussões das Uniões de Defesa Coletiva. Nesse sentido, a proposta também
incorporava as associações como parte da estrutura organizacional da política pública. O
DBHP era isentado da resolução de “problemas pessoais” que existisse entre os moradores e
reconhecia qualquer tipo de “associação” criada entre os moradores como responsável pelo
estabelecimento da “ordem”414
. Ainda que de forma não explícita, o projeto de lei reconhecia
as associações de moradores como a principal intermediária da política pública. Segundo uma
reportagem do jornal do movimento que explicava o projeto, dizia-se claramente que “as
entidades das favelas (UDCs)” seriam “consideradas órgãos de colaboração do DBHP”415
. O
texto não problematizava conflitos que poderiam surgir com essa transferência de poder para
as diretorias das associações e os outros tipos de associativismo que poderiam existir e
representar os moradores de favelas. Todavia colocava como essencial o reconhecimento e a
participação dos moradores na política pública.
Constituído como um projeto de poder do movimento de trabalhadores favelados, o
projeto de Dimas Perrin teve franco apoio da FTFBH. A Federação convocou assembleias que
discutiam o projeto através de seu jornal e dos alto-falantes das UDCs. Ademais, o
movimento social usava as relações pessoais de parentesco e amizade para garantir a
divulgação das reuniões, como podemos observar no convite padrão distribuído para os
moradores:
FEDERAÇÃO DOS TRABALHADORES FAVELADOS DE BELO
HORIZONTE
Temos o prazer de convidar o prezado amigo e sua digníssima família a
comparecer em nossa assembleia:
Dia 3 de novembro (domingo)
às 8,30 horas da manhã, na Secretaria de Saúde, para continuarmos a
discussão do projeto Dimas Perrin, para vender a nós mesmos os lotes onde
moramos nas favelas, para termos segurança e tranquilidade.
Saudações
Francisco Nascimento
Pela Diretoria416
Entre os meses de agosto de 1963 e março de 1964, ocorreram várias reuniões nas
413
Ibidem. 414
Id. Ibidem. 415
LOTE de favela para favelado (I): Projeto do vereador Dimas Perrin. O Barraco. Belo Horizonte, 05/08/1963.
p. 4. 416
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS. Arq. Pasta 0120.
298
sedes das associações, a fim de promover a “conscientização” sobre o projeto de lei. Segundo
um discurso do advogado da FTFBH, Fabrício Soares, numa das assembleias, “a luta das
favelas” tinha “três etapas: conhecimento por todos favelados; sua aprovação na Câmara de
Vereadores; e, em terceiro lugar, se” houvesse “necessidade, a luta pela aplicação do projeto”.
Entendia-se que era apenas com o esclarecimento e a pressão dos moradores que o projeto
seria aprovado e isso justificou uma grande campanha em torno do projeto de Dimas Perrin.
Ainda segundo o discurso de Fabrício Soares, ele “conclamou os favelados (que são
trabalhadores) a se integrarem nas lutas mais importantes, visando modificar pela raiz essa
estrutura social” que aí tinham, “sustentada na vida fácil e no luxo de uns poucos, enquanto a
maioria do povo” gemia “na doença, atraso, analfabetismo, miséria e favela”417
. As
mobilizações pelo projeto de Dimas Perrin integraram as lutas mais amplas pelas reformas de
base, da luta pela transformação da estrutura social brasileira. O projeto legitimava-se, assim
como o decreto de desapropriação de Jorge Carone, na regulamentação da função social da
propriedade, prevista na Constituição de 1946. Diferentemente da ação de Carone, que tinha
forte conotação personalista, o projeto de Dimas Perrin apoiava-se na mobilização social e na
ideia de soberania popular. Segundo Dimas Perrin, era elaborado a partir da “luta” e das
experiências dos favelados418
.
Na visão de Perrin, o prefeito Jorge Carone era um “demagogo”419
e tinha como
objetivo cooptar lideranças do movimento dos trabalhadores favelados. Além de se opor ao
projeto de Dimas Perrin, Carone lançou o Projeto de Lei nº 155/63, em janeiro de 1964,
confrontando o intento do “advogado das favelas”. Pretendia criar a Superintendência de
Terras Urbanas e Rurais (SUTUR), com o intento de “cadastrar e avaliar as áreas urbanas,
suburbanas e rurais de propriedade da Prefeitura de Belo Horizonte”, observando a
possibilidade de construção de projetos de habitação popular, loteamentos e desapropriação.
Era semelhante ao projeto de Dimas Perrin, mas criava um órgão “técnico”, de maneira que
pudesse gerir a política urbana. Assim, evitava o maior envolvimento com as associações de
favelas e mantinha sobre o controle do executivo municipal o centro de atuação no campo das
417
DR. FABRÍCIO Soares: O projeto Dimas Perrin é luta que será em três etapas. O Barraco. Belo Horizonte,
12/08/1963. p. 6. 418
EM GRANDE assembleia: Favelas do Matadouro apoiam projeto Dimas Perrin. O Barraco. Belo Horizonte,
18/08/1963. Em 1994, em seu testemunho ao Centro de Estudos Mineiros, Dimas Perrin voltou a falar do projeto
que elaborou como um dos aspectos centrais de sua militância política, por ser resultado da aproximação com as
classes populares. Cf. PERRIN, Dimas: entrevista [19/11/1993]. Entrevistadoras: Lucília de Almeida Neves,
Valéria Pires e Míriam Hermeto. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1993. 1 fita cassete, fita 11, lado
A. (Projeto Memória e História: Visões de Minas). 419
Idem.
299
reformas420
.
Em Belo Horizonte, os projetos de reforma urbana discutidos no âmbito do
movimento social dos trabalhadores favelados e do campo político das esquerdas foram todos
colocados na ilegalidade após o Golpe de 1964. Tanto os projetos de iniciativa de Jorge
Carone quanto o de Dimas Perrin foram abolidos, ganhando prioridade a remodelação do
tecido urbano, que priorizava o crescimento do capital imobiliário em detrimento da tentativa
de estabelecer a função social da propriedade do solo urbano.
7.3 Nacionalismo e reforma urbana nos anos 1950 e 1960
Os projetos de reforma urbana delineados pela UTF e FTFBH dialogavam com o
nacionalismo reformista. Segundo Delgado (2007),
a partir de 1955, até o ano de 1964, o programa nacionalista foi apropriado por
expressivas organizações da sociedade civil e por inúmeros parlamentares, que
transformaram tanto o Poder Legislativo como os sindicatos, as organizações
estudantis, os movimentos camponeses, as universidades e as associações
profissionais em espaços privilegiados de discussão e divulgação de suas principais
teses (p.361).
Introduzir as associações civis coligadas à UTF e a FTFBH entre esses segmentos
sociais foi mais um passo para complexificar o que se compreende como parte do
nacionalismo do período. Sem a compreensão dessa linguagem e do substrato político que
preencheu o tempo político e social desse período dificilmente conseguiríamos compreender a
propostas e a repercussão das reformas urbanas e das redes de mobilização constituídas pelos
movimentos de trabalhadores favelados.
Tratar do nacionalismo é abordar um fenômeno amplo. De acordo Losada Moreira
(1998), a “história brasileira dos anos 1930-64 dificilmente pode ser compreendida em sua
especificidade sem a consideração do então crescente e cada vez mais influente movimento
nacionalista” (p. 330). O nacionalismo delineado pelo(s) governo(s) de Getúlio Vargas a partir
da Revolução de 1930 tinha, no Estado e nas transformações operadas pelos intelectuais nos
ministérios, o principal veículo de sua difusão. Na década de 1950, a bandeira nacionalista
teve como protagonistas, além dos governos eleitos, as organizações que se aproveitavam da
liberdade civil de manifestação para se mobilizar politicamente. O nacionalismo tinha como
base um projeto de industrialização e modernização do Brasil, caracterizado principalmente
420
Projeto de Lei nº 155, de 29 de setembro de 1963. Cria a Superintendência de Terras Urbanas e Rurais.
ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. Fundo Câmara Municipal. Arq. DR.01.02.09 –
8483.
300
pela luta contra o “subdesenvolvimento” econômico e social do país, sendo fortemente
influenciado pelo pensamento da Comissão Econômica para América Latina (CEPAL).
A instituição do nacionalismo como modalidade de cidadania popular foi a
característica dos projetos de esquerda nessa época. Pecáult, analisando a cultura política do
período, chamou a atenção para a “geração de 1954 a 1964”. Nesse intervalo de tempo, “dois
episódios marcaram simbolicamente a conjunção do nacionalismo com a participação
popular: a campanha que culminou na criação da Petrobras, em outubro de 1953, e a emoção
desencadeada pelo suicídio de Vargas” (PECÁULT, 1990: 99). Um dos documentos centrais
para esse fenômeno foi a carta-testamento, que contribuiu para associar a luta contra os
adversários da nação ao reconhecimento do “povo” como ator político. “De um lado, atribuiu
a responsabilidade da crise a intervenção ‘subterrânea de grupos internacionais’ e às
maquinações dos privilegiados para impedir as reformas sociais; de outro, apresentou o
sacrifício pessoal de Vargas como uma dádiva que permitia a sobrevivência do povo”; a morte
selava, assim, “a fusão do povo com a nação. O getulismo torna-se um mito fundador” de uma
nova temporalidade social caracterizada pela luta pelas reformas de base (Idem, p. 100).
Os grupos que se reuniram em torno do nacionalismo eram bastante heterogêneos.
Hélio Jaguaribe, um observador arguto da época, diria que “são nacionalistas, no Brasil,
correntes de extrema direita, ligadas, no passado, aos movimentos de propensão fascista, e as
correntes de extrema esquerda, como o Partido Comunista. São nacionalistas os defensores da
socialização dos meios de produção e os partidários da iniciativa privada”421
. A citação acima
sugere um amplo escopo onde posições sociopolíticas conjugavam-se ao nacionalismo, sendo
improvável uma conceituação precisa sobre o fenômeno.
Recentemente alguns pesquisadores tentaram falar de uma experiência “nacional-
estatista” na esquerda brasileira, que seria hegemonizada pelo trabalhismo, mas comporia
diferentes posições (de “esquerda”, “direita” e “fisiológica”). Em oposição ao termo
“populismo”, a categoria positivaria as correntes de esquerda que participaram desse grupo
(REIS FILHO, 2005). A advertência de Jaguaribe nos alerta para qualquer tentativa de
unificar uma análise sobre o processo político (seja o “nacional-estatismo” ou o “populismo”).
Sugere que o(s) nacionalismo(s) mobilizavam as categorias de “povo” e “nação” de acordo
com elementos contextuais e situacionais em disputa no conflito político e das visões de
mundo surgidas nessa geração de 1954 a 1964. Um dos elementos centrais da experiência
político-nacionalista foi a rejeição ao liberalismo e ao individualismo, criando vínculos
421
JAGUARIBE, Hélio. O nacionalismo na atualidade brasileira. Rio de Janeiro: MEC/ISEB, 1958. p. 12.
301
sociais entre classes sociais distintas. Essas relações podem ter sido estruturadas pela
permanência de componentes autoritários, com o dirigismo estatal e as lideranças carismáticas
que desrespeitavam as regras do jogo democrático, e assumir também feições democráticas
nas variadas performances de mobilização social. As reformas urbanas, apoiadas e propostas
pelos movimentos de trabalhadores favelados, tinham forte componente democrático.
Apoiavam-se na força de uma maioria para conseguir a aprovação de leis nos órgãos
legislativos das cidades, que requalificavam o processo de identificação das favelas produzido
no âmbito da burocracia estatal.
A legislação urbana e ações propostas por Magarinos Torres (PCB-PTB-PRT), Geraldo
Moreira (PTB), Bruzzi Mendonça (PCB-PRT), Osmar Rezende (PSD), Dimas Perrin (PCB-
PTB), José Thiago Cintra e Jorge Carone (PR) mostram o quão eclético era o escopo de
alianças em torno da plataforma nacionalista. Esses personagens, juntamente com as diretorias
das associações e as mobilizações de trabalhadores favelados, através de passeatas,
congressos, comícios, festas e ocupando o espaço da imprensa, tiveram papel destacado na
mobilização pelas reformas urbanas. Ainda que pudessem congregar lideranças variadas, de
trajetórias conservadoras às mais esquerdistas, os movimentos sociais legitimaram reformas
urbanas que tinham um forte componente democrático. Dessa maneira, as propostas de
reforma urbana estruturaram-se no apoio e representação de uma coletividade que tinha
pretensão de alterar o jogo de forças em favor da redução das desigualdades sociais.
As propostas de legislação, mesmo que se apoiassem em mobilizações de associações
de base, estavam fortemente atreladas às posições político-partidárias de advogados,
intelectuais e lideranças que tinham origem social nas classes médias urbanas. A reforma
urbana estava inserida em redes sociopolíticas forjadas pela UTF no Rio de Janeiro e pela
FTFBH em Belo Horizonte. Ela se construiu nesse espaço de troca social e simbólica. Os
projetos de lei produzidos nesse contexto acompanhavam de perto os interesses e
pertencimentos dos políticos e advogados de favelas e as demandas identitárias e materiais
dos trabalhadores favelados.
7.3.1 Reformas sociais e discurso moral sobre a injustiça
As mobilizações por reformas urbanas que alterassem as políticas municipais de
“desfavelamento” e o status dos moradores de favelas foram fortemente marcadas pelo
contexto regional de cada cidade. As instituições, lideranças partidárias e o tempo dos
movimentos sociais eram contextualizados pela dinâmica política particular a cada centro
302
urbano e pelas articulações locais da UTF e da FTFBH. Os movimentos de trabalhadores
favelados não constituíram um projeto de escopo federal, mas foram relacionados à
plataforma das reformas de base.
Os projetos de lei dos trabalhadores favelados inseriam-se na dinâmica de aliança
entre políticos, intelectuais, sindicatos, estudantes e partidos que lutavam por reformas na
estrutura econômica e social brasileira para redução das desigualdades sociais. Essas
propostas encontraram ampla repercussão no programa do trabalhismo e seriam a base das
alianças tanto nos governos de Juscelino Kubitschek (1956-1961) quanto no de João Goulart
(1961-1964). Segundo Delgado (2007), destacavam-se, nesse conjunto de reformas, a
redistribuição da propriedade da terra no Brasil, com objetivo de modificar a
estrutura latifundiária predominante – reforma agrária; reestruturação do programa
habitacional às populações trabalhadoras, em especial das grandes cidades –
reforma urbana; reformulação do sistema tributário, objetivando desonerar
assalariados e pequenas empresas nacionais – reforma fiscal e tributária;
ampliação do sistema educacional nacional de dos programas de alfabetização da
população brasileira, com intuito de estabelecer o direito à educação a todos os
brasileiros – reforma educacional; controle da remessa de lucros e encampação, e
nacionalização de empresas estrangeiras, que atuavam em setores estratégicos da
economia brasileira, com objetivo de incentivar os investimentos nacionais,
privados e públicos – política nacionalista (p. 360).
Como já foi dito, diferentes propostas e grupos voltaram-se para a regulamentação do
artigo 145 da Constituição Federal de 1946, cujo objetivo principal era a intervenção na
ordem econômica, visando à instituição de uma sociedade mais justa para o trabalhador. A
reforma urbana, na perspectiva dos trabalhadores favelados, tinha como ponto de partida o
reconhecimento da favela como um espaço urbano de moradia, reivindicando a segurança da
posse do lote e benfeitorias urbanas. Questionava o principal fundamento do processo de
identificação das favelas no âmbito do planejamento urbano e das políticas públicas que
tratavam as favelas como um espaço transitório da cidade.
Nesse sentido, as propostas de reforma urbana tinham como característica o diálogo
com uma ética e discurso sobre as injustiças sociais que caracterizaram os movimentos de
trabalhadores favelados. A legitimidade desses projetos era construída em clara relação com a
gramática da vida pública, que ganhava expressão com as associações e manifestações ligadas
à UTF no Rio de Janeiro e à FTFBH em Belo Horizonte.
303
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao construir escalas de comparação entre Rio de Janeiro e Belo Horizonte,
observamos que a representação da favela constituiu-se como um dispositivo de poder. Na
primeira metade do século XX, a substantivação do nome “Favela” ocorreu no Rio de Janeiro.
Designava a oposição entre “sertão” e “civilização”, denominava a pobreza urbana e taxava as
classes populares de “perigosas”. Em Belo Horizonte, os espaços pobres identificados como
“vilas” e “cafuas” foram equiparados às favelas, em analogia com a capital da república. O
enquadramento perpetuava estigmas e valores sociais que pressupunham a construção de um
paradigma de habitação e hábitos urbanos, tomando os pobres como a face negativa da
cidade, como a representação do incivilizado e do atraso.
A imaginação do espaço do Rio de Janeiro – a capital da república até a inauguração
de Brasília (1889-1960) – foi um dos polos para a difusão de símbolos e valores associados à
modernização das cidades no Brasil. Esses signos foram apropriados e ajustados à dinâmica
urbana de Belo Horizonte. A categoria “vila” nunca se apagou da memória da cidade para
nomear os lugares pobres, foi usada como sinônimo de favela ou em oposição a ela, como
meio de eufemizar o estigma. Além disso, após a publicação do primeiro censo de favelas na
década de 1950, houve um processo de releitura da história da cidade, traçando uma narrativa
de origem para a favela no momento de fundação da capital de Minas, na década de 1890.
Assim, existem variações regionais do mito e um paradigma de representação da favela que
merecem ser investigados para além de Belo Horizonte.
A produção da identificação das favelas em legislações urbanas, políticas públicas,
censos e comissões de estudos formadas pelo poder público em diferentes instâncias reiterava
a dinâmica de exclusão sociopolítica na construção de uma forma de dominação e governo
dos pobres nas cidades. Apesar da heterogeneidade de formas de ocupação e das articulações
no tecido urbano que originaram as favelas, elas foram definidas como ilegais no Código de
Obras de 1937 no Rio de Janeiro, e na lei 572 de 1956, em Belo Horizonte. Para controlar a
rápida urbanização de cada cidade a partir da década de 1930 e a expansão de formas de
habitação informais, essas legislações definiram-nas como marginais à propriedade cartorial e
aos pressupostos urbanísticos adotados nos códigos de posturas de cada município. A
diferença temporal para o surgimento de cada legislação aponta para os ritmos diferentes do
crescimento de cada cidade e da reflexão urbanística que incorporou a noção de favela como
uma categoria de controle da expansão urbana. Enquanto, no Rio de Janeiro das décadas de
304
1920 e 1930, a discussão de reformas urbanas e do Plano Agache foram centrais para a
formulação do Código de Obras e categorização de um status para a favela, em Belo
Horizonte, a formação desse status operou a partir da diferenciação entre as vilas regulares –
que tinham expectativa de serem reconhecidas pela prefeitura – e irregulares – que foram
classificadas como favelas.
Classificadas como espaços que seriam suprimidos com a evolução e desenvolvimento
urbano, as favelas foram vistas como territórios transitórios da cidade. Essas áreas ficavam
privadas de receber de forma significativa recursos públicos para construção de infraestrutura
urbana. Ainda que agentes atuassem no aluguel e na venda de frações de lotes e barracos,
assim como na construção e exploração das ligações de serviços de água e luz, as leis urbanas
relegavam tais relações à informalidade, colocando-as sob a vigilância de fiscais de posturas.
Além disso, o status jurídico da favela garantia a reprodução de políticas de
“desfavelamento”, que tinham como objetivo a educação e o deslocamento das famílias para
outros loteamentos ou habitações construídas pelo Estado. A história da formação dos espaços
de habitação das classes populares e dos protestos, negociações e articulações para garantir a
permanência no lugar de moradia vão questionar e deslocar a fronteira do permitido e
proibido ao longo do século XX, usando repertório variado de práticas.
As políticas urbanas de habitação e assistência atendiam de forma seletiva a grupos e
territórios. Criadas na expectativa de extensão da proteção social aos operários, as práticas
estatais nas décadas de 1940 e 1950 tinham como eixo a retórica da marginalidade social.
Legitimavam-se com o discurso humanitário e o propósito de extensão do Estado de Bem-
estar social, mas também reproduziam a dicotomia entre “trabalhador/classes perigosas”.
Elaboraram-se formas de controle e disciplinamento dos moradores de favelas, que tinham
como objetivo conter o medo de esfacelamento da ordem capitalista, difundido
principalmente através do medo do comunismo. As intervenções da assistência social e
política de habitação surgiram a partir desse mote, numa sociedade que estendia o direito
social à parcela dos trabalhadores regulares, excluindo trabalhadores rurais e os que
realizavam atividades informais.
A temporalidade para essas políticas públicas seguiu ritmos distintos, mas todas elas
foram marcadas pela ascensão dos profissionais de assistência social. No Rio de Janeiro, a
criação do Serviço de Parques Proletários (1942) marcou o início dessa prática, que iria
perdurar através de outros arranjos institucionais, como a Fundação Leão XIII (1947), a
Comissão de Favelas ou Serviço de Recuperação de Favelas (1952), a Cruzada São Sebastião
(1955), e o Serviço de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (1956). Em Belo
305
Horizonte, até a década de 1940, existiu uma política fundiária por meio da criação de vilas e
doação de lotes no subúrbio e na zona rural, para que se removessem as “cafuas” e “favelas”
do centro urbano. A criação do Departamento de Assistência Social (1951) e do
Departamento de Habitações e Bairros Populares (1955) marcou uma especialização do poder
municipal no trabalho de “desfavelamento”, principalmente no segundo órgão. Ainda que em
ritmos políticos diferentes, nas duas cidades, a igreja católica teve um papel importante, tanto
na institucionalização do Serviço Social quanto na aliança com o Estado para atuar nas
favelas através da criação de órgãos e autarquias municipais.
Além do Serviço Social, dois vetores nacionalizaram a identificação favelas na década
de 1950: os censos de favelas e a Comissão Nacional de Bem-Estar Social (CNBS). As
estatísticas foram produzidas no âmbito da comunidade que integrava o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística. Elas ofereciam um quadro complexo, articulando parâmetros
econômicos, urbanísticos e sociais para a qualificação das favelas numa cidade.
Diferenciavam socialmente os territórios urbanos, como também produziam um discurso
homogêneo quanto ao habitat das favelas e à diferenciação das famílias e indivíduos
“deslocados” da sociedade urbano-industrial. Novamente constitui-se um dispositivo de poder
que tinha como referência o Rio de Janeiro e que foi adaptado em Belo Horizonte.
A retórica da marginalidade social construiu uma base técnica científica e circulou
entre autoridades públicas, intelectuais, cidadãos comuns nos anos 1950. A CNBS foi fruto
dessa conjuntura. Os vocábulos “faveleiro”, “marginal”, “desajustado”, “migrante” deslocado
do ambiente rural eram intercambiáveis na produção de uma distinção social, de um estado de
anormalidade e da conformação de expectativas de integração do favelado na sociedade
urbano-industrial. O disciplinamento para o trabalho, a educação dos moradores de favelas
para a vida social e a transformação do tecido urbano, suprindo o déficit habitacional, foram
problemas levantados no Ministério do Trabalho e na Subcomissão de Habitação e Favela.
Com o propósito de avançar na formulação e “racionalização” das políticas de bem-estar
social e do Serviço Social, criou-se uma subcomissão da CNBS, reunindo diversos atores sob
a liderança da Fundação da Casa Popular. A tentativa de reunir recursos da política
habitacional que estavam dispersos nos Institutos de Aposentadoria e Pensão não logrou
resultado. Todavia formulou-se uma orientação para municipalização das ações com o fito de
criar fundos públicos nas prefeituras e atuar no campo da habitação popular. Dessa forma,
tentou-se incentivar o controle da migração campo-cidade, como também mobilizar mutirões
e formação de órgãos que atuassem nas favelas, congregando assistência social e política
habitacional. Tanto o SERFHA no Rio de Janeiro quanto o DHBP em Belo Horizonte tinham
306
clara conexão com esse debate, apesar de estarem inseridos em conjunturas institucionais e
políticas distintas.
A identificação das favelas e as tecnologias de poder constituídas nesse âmbito são
complexas e definiram uma retórica da marginalidade social como parâmetro para
nacionalização de uma categoria nativa e constituída no Rio de Janeiro. O sucesso dos
dispositivos de poder decorre não apenas da mobilização de um largo escopo de instituições e
recursos públicos, mas também da apropriação que se fez deles. É nesse espaço amplo para
pesquisa que situamos a análise dos movimentos sociais de trabalhadores favelados
organizados pela União dos Trabalhadores Favelados no Rio de Janeiro e pela Federação dos
Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte. Ainda que inseridas em configurações sociais
distintas, pode-se perceber a circulação de práticas de protesto e a apropriação da
identificação para ampliar o direito dos moradores de favelas.
Os movimentos sociais de trabalhadores favelados construíram e adaptaram
performances para o reconhecimento do direito de moradia. A formação de associações civis
e outros tipos de ações para a luta por melhorias, as resistências aos despejos coletivos e a
reivindicação de proteção de autoridades públicas ganharam novo impulso com a expansão
dos direitos civis e políticos na experiência de democracia liberal fundada em 1945. A UTF e
FTFBH surgiram com a alteração das performances dos conflitos urbanos entre 1954 e 1964,
quando se tentaram criar federações de associações de moradores em diversos centros urbanos
brasileiros. Não só lideranças de favelas formaram associações supralocais para lutar pelo
acesso ao direito à cidade, como também associações de moradores de bairros buscaram tal
caminho para a mobilização. Os movimentos de trabalhadores favelados disseminavam um
discurso político com objetivo de unir a maioria das favelas pelo direito de moradia.
Reconheciam narrativas de luta diversas, mas tomavam algumas experiências como
exemplares. No Rio de Janeiro, a UTF apresentou a luta do Morro do Borel contra a tentativa
de despejo da Borel Meuron Ltda. como exemplar, através da fundação de outras Uniões e
Centros de Trabalhadores Favelados em outras favelas; em Belo Horizonte, reconhecia-se a
luta da Vila São Vicente contra a Companhia Mineira de Terrenos Ltda. como um modelo a
seguir, difundindo a criação de Associações e Uniões de Defesa Coletiva.
Os movimentos sociais politizaram as relações e desigualdades econômicas
constituídas no tecido urbano. Posicionavam-se nas disputas jurídicas e políticas contra
proprietários privados, empresas imobiliárias e “exploradores” de aluguel que buscavam o
despejo das famílias nas favelas. Os “advogados de favelas” eram figuras centrais na
organização desses movimentos sociais e na formação dos discursos que ganhavam corpo nos
307
repertórios de ação dos moradores. A intervenção do Estado na economia para proteção do
trabalhador e do direito de moradia previstos na Constituição de 1946 e o usucapião previsto
no Código Civil balizaram performances assumidas pelos moradores. Ademais, criavam-se
símbolos para legitimar a luta por moradia e pela ampliação da infraestrutura urbana. A crítica
aos “exploradores” e “latifundiários urbanos”, a oposição “trabalhador/malandro”, a imagem
da favela como lugar de moradia e contrária à ideia de espaço provisório eram temas comuns
na imaginação social da UTF e FTFBH. Essa representação foi divulgada pelas lideranças em
jornais, congressos, assembleias e passeatas.
Os movimentos estavam conectados às lutas sindicais e aos grupos de esquerda para a
conquista das “reformas de base” e ampliação dos direitos sociais. Uma diferença
fundamental entre a UTF e a FTFBH constituiu-se em relação aos grupos católicos. Enquanto
a história das UDCs em Belo Horizonte destacou padres progressistas, como Francisco Lage,
que foi um dos fundadores da Ação Popular na cidade, no Rio de Janeiro, a UTF foi
fortemente ligada à atuação dos comunistas, com destaque para o advogado Magarinos
Torres. As consequências dessa dinâmica influenciavam o posicionamento político do
movimento em relação às iniciativas católicas de assistência – associadas ao poder público
para atuar nas favelas – e em relação às forças político-partidárias. Se, em Belo Horizonte, a
FTFBH criou vínculos com o DHBP e manteve uma abertura para o diálogo com os católicos
progressistas da União Democrática Nacional, no Rio de Janeiro, a UTF marcou uma forte
oposição à Fundação Leão XIII e Cruzada São Sebastião, numa forte coalizão antiudenista
que unia trabalhistas e comunistas.
Essas diferenças explicam-se não só pela trajetória dos movimentos sociais, mas
também pela configuração do campo político de cada cidade. Os movimentos de
trabalhadores favelados, no entanto, tentaram unificar os votos nas favelas com programas
reformistas, que serviam de base para o lançamento de candidatos ligados ao Partido
Comunista, Partido Trabalhista Brasileiro e Partido Socialista Brasileiro. Essas alianças
partidárias possibilitaram a apresentação de projetos de lei no legislativo da cidade, que
buscavam a redefinição do status jurídico das favelas. Construindo uma imagem de “favela”
contrária a de um espaço transitório da cidade, esses projetos interferiam na dinâmica
administrativa, reconhecendo as favelas como parte do tecido urbano, como lugar da classe
trabalhadora.
Um dos pilares da representação da favela difundida em escala nacional é que elas
seriam o lugar da “ausência do Estado”. Em nossa tese, mostramos que, antes de sinalizar
uma incompletude do poder público, ela foi um dispositivo de poder, definia uma forma de os
308
agentes do Estado interpretarem e modificarem o espaço urbano. A disputa em torno do
discurso e das práticas acionadas na identificação das favelas transcorre a história do Brasil
republicano do século XX e do tempo presente.
309
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Coleção de Anais da Câmara Municipal do Distrito Federal (1947-1960).
Coleção de Anais da Assembleia Legislativa do Estado da Guanabara (1961-1964).
Mensagens dos Prefeitos (1956-1959).422
422
As mensagens dos prefeitos Francisco de Negrão de Lima (1956-1958) e José Joaquim Sá Freire Alvim,
indicando obras e orçamentos de cada departamento da Prefeitura do Distrito Federal encontram-se publicadas
na biblioteca da ALERJ. Para outros prefeitos, as mensagens podem ser lidas nas Atas dos Anais da Câmara do
Distrito Federal.
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Centro de Pesquisa e Documentação Contemporânea de História do Brasil (CPDOC)
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Setor de Periódicos da Biblioteca Nacional
Última Hora (1950-1964)
Imprensa Popular (1953-1958)
Novos Rumos (1959-1964)
Observador Econômico e Financeiro
A Noite
Correio da Manhã
Coleção da Hemeroteca do Estado de Minas Gerais
Tribuna da Imprensa (1953-1964)
Diário da Tarde (1951-1964)
Estado de Minas
Anais da Câmara Municipal de Belo Horizonte (1951-1953)
Coleção Privada de José Maria Rabello
Binômio (1952-1964)
LEGISLAÇÃO
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ENTREVISTAS E MEMÓRIAS
423
A indicação do período na frente do periódico indica a leitura e pesquisa diária dos jornais no período
indicado. Quando não há a indicação do período, a pesquisa foi feita em números avulsos, tendo em vista um
tema ou fato.
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