8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
1/21
Curso de Filosofia da Tcnica
Dissertao Final da Disciplina Segundo Ciclo
Tema: Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
Docente: Professor Dr. Alexandre Franco de S
Discente: Rafael Antonio Blanco
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
2/21
Nos dias de hoje a importncia da tcnica transversal a todos os mbitos da
cultura. O desenvolvimento da eletricidade, por exemplo, h pouco mais de 100 anos,
provocou extraordinrias mudanas na maneira da humanidade lidar com seu em
torno. Acompanharemos as anlises de Bernard Stiegler no livro La Technique et le
temps, 1: La faute dEpimthe sobre a histria do desenvolvimento da tcnica. claro
que omitiremos muitos dos desenvolvimentos do livro para nos focarmos num ncleo
que julgamos de maior relevncia. Alm disso, o que nos proporemos, desvendar
alguns dos pontos de contato e os de distncia, entre a filosofia e a tecnologia.
Num primeiro momento (I) faremos uma introduo geral sobre aquilo que
conhecemos hoje como tcnica. Para isso resgataremos suas origens histricas, na
Grcia, e acompanharemos sua evoluo conceitual at a obra de Martin Heidegger,
passando rapidamente por Simondon, Leroi-Gourhan e Gille. Em seguida (II) veremoscomo a interpretao do mito de Prometeu e Epimeteu, que consta na obra Protgoras,
de Plato, pode contribuir para uma analtica da temporalidade e seus desdobramentos
no mundo hodierno. Em terceiro lugar (III), acompanharemos as anlises de Heidegger
sobre a estrutura tcnica a priorimontada (Gestell) em cada poca histrica e a relao
entre um algo e um quem. A questo da temporalidade, no mbito da tcnica, se torna
fundamental desde a implantao da chamada tcnica moderna atravs do advento da
mquina, que impe uma velocidade alucinante na marcha da evoluo da tcnica. A
questo, tambm, de saber se podemos prever e/ou controlar o sentido da evoluo
da tcnica.
Em seguida, nos dedicaremos muito brevemente, em tecer algumas
consideraes sobre as duas outras obras de Bernard Stiegler, que completam a
trilogia de Tcnica e Tempo. Em La Technique et le temps, 2: Dsorientation (IV)
veremos como a memria, ela mesma, se torna um produto servio da tcnica, a
memria industrializa-se, o que causa uma desorientao considervel nos esforos
humanos de acompanhar o desenvolvimento tcnico. J em La Technique et le temps,
3. Le temps du cinma et la question du mal-tre veremos (V) como o cinema enreda
a conscincia humana, que se entrega ao chamado projetivo do vdeo. Ao se entregar
ao fascnio do vdeo vive-se um tempo alienado, um tempo que sempre de outrm.
Stiegler pensa que isso pode ser um instrumento de dominao de escala global com
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
3/21
propores inigualveis.
Em ltimo lugar, (VI) procuramos dar a conhecer a Associao Internacional,
criada em 2005, por Bernard Stiegler, chamada Ars Industrialis, que pensa que o
mundo hodierno est totalmente submisso s chamadas tecnologias do esprito, que
controlariam todas as formas de comportamento, os desejos e as prprias existncias
de todas as pessoas. Para se libertar dessas imposies necessrio pensar uma
ecologia industrial do esprito. Pensamos nessa ltima parte como uma aplicao
emprica das indagaes filosficas dos primeiros cinco tpicos desse trabalho, num
modelo irmanado ao de um diagnstico da contemporaneidade levado a cabo pelo que
se convencionou chamar Teoria Crtica da sociedade.
I. Consideraes histricas sobre a tcnica
No mundo grego clssico o termo tekn soava como algo que, nascido duma
determinada experincia, poderia ser generalizado e ensinado como um conjunto
de conhecimentos. Ademais, tekn tambm remetia para um know-how, um saber
realizvel atravs de certas etapas. Sabemos da recusa de Plato de enquadrar a
filosofia no esquema determinado de uma tekn. De fato, houve um certo desespero
platnico em fundar a filosofia como uma tekn, uma arte, acima de todas as outras. A
filosofia, aos olhos de Plato, permite o acesso realidade essencial das coisas. Seu
estudo garantiria a verdade, a epistme, ao contrrio da doxa, das meras opinies que
reinavam na prtica poltica ateniense.
Aristteles definiu, na Fsica, o objeto tcnico como aquele que, contrariamente
aos entes vivos, no podem-se auto-causar ou auto-gerar. Ou seja, estes remetem
para entes que no tm a fonte de sua auto-produo em si mesmos1. Segundo o
prisma aristotlico, o objeto da tekn sempre um meio, necessrio para a execuo
de um determinado fim. Vislumbramos brotar das anlises de Aristteles duas regies
s quais correspondem dinmicas diferentes: de um lado os seres vivos, reunidos e
estudados pela biologia, e, por outro lado a mecnica. Os objetos tcnicos, mesmo que
se assemelhem a algumas caractersticas inerentes aos seres vivos, esto, desde
1 Aristotle, Physics, Book 2, I:329.
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
4/21
Aristteles, sobre a alada da mecnica.
A teoria da tcnica aristotlica, como veremos, frutificar at Marx e Engels. Ao
apontar para a dialtica intrnseca mo e ao instrumento, esses autores borraram a
linha que limitava o aparato tcnico e o ente dotado de vida. Podemos constatar,
tambm, que, na modernidade, conforme as relaes de trabalho foram sofrendo
importantes mudanas operadas pelo uso de novos instrumentos, cada vez mais a
tcnica foi se tornando objeto de interesse da filosofia.
Migrando nosso olhar da Grcia aristotlica para a modernidade, Simondon, por
exemplo, caracterizou a cultura dos dias de hoje como um mecanismo de defesa contra
a realidade tcnica, o que institui a oposio total entre mquina e ser humano. De
fato, a mquina impe uma revoluo total na histria da tcnica. A tcnica moderna
criar um sistema de dominao da natureza nunca antes visto na histria, colocandoo homem numa relao hesitante entre um ministro e intrprete da natureza, por um
lado, e um mero fantoche da mquina por outro. Esse processo to radical que
o ser humano vai se tornando, cada vez mais, um meio do sistema tcnico, no a
sua finalidade. Renegado ao papel de coadjuvante, o fator humano tende, com o
advento da robotizao e da inteligncia artificial, a ceder completamente seu papel no
processo tcnico natureza maqunica.
Simondon pensa que a realidade tcnica da vida humana antecipa todos os
tipos de dinmicas sociais, a mecanologia se espalha por todos os mbitos sociais.
Simondon aponta que as duas categorias s quais o progresso tcnico pode ser melhor
visto so: adaptabilidade e indeterminao. A individualizao perde seu componente
humano, passando a referir-se completamente natureza maqunica. H uma dinmica
auto-geradora entre as instncias do objeto, de um lado, e o sistema na qual esse
objeto est imerso, de outro. Nesse processo, ao homem cabe um papel totalmente
passivo, na qual apenas l as pistas apontadas e segue os passos do progresso
tcnico. A tcnica detm, em Simondon, caractersticas de organismos e sistemas
vivos, em que a evoluo se d por um princpio inerente ao prprio sistema, que
guia o processo e regula as tendncias do progresso tcnico. Qualquer antecipao
humana do futuro tcnico est sempre estruturado pelos aparatos tcnicos disponveis
em determinado tempo histrico, fator que enubla a compreenso e antecipao
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
5/21
humanas.
Leroi-Gourhan cria a categoria de tendncias tcnicas, de um ponto de vista
antropolgico. possvel, em um dado momento histrico, a separao do estado
da tcnica de fato e as tendncias das tcnicas futuras. Enquanto os fatos tcnicos
podem ser contigentes, limitados e precrios, as tendncias tcnicas so uma forma
de universalidade. O advento da tcnica impe-se sobre a evoluo biolgica, o que
determina o destino humano de maneira fundamental. Leroi-Gourhan tambm props
a oposio entre meio interior e meio exterior. A evoluo humana foi em busca de
compreender em que sentido o meio exterior influenciava o meio interior. Porm, a
tcnica invade o meio exterior que fica saturado pelas determinaes tcnicas. No
limite, as diferenciaes entre meio exterior e meio interior sero completamente
borradas.Gille pensou na programao da tcnica, em suas caractersticas sistemticas.
O sistema tcnico tem forte propenso de fechamento em sua prpria esfera de
atuao, de impermeabilizao perante os outros sistemas. Ademais, o que assistimos
hoje o advento da tcnica assumindo caractersticas sistemticas que englobam
os quatro cantos do mundo, o que gera uma interdependncia ao nvel mundial em
relao tcnica. Alm disso, algo que ocorra de forma totalmente matematizvel e
prevista no sistema tcnico pode gerar desordens considerveis no sistema econmico
e social, por exemplo. A questo, nesse caso, de saber se o fator humano pode
contornar as adversidades impostas pelas tendncias do sistema tcnico, e, no limite,
assumir o controle histrico desse sistema. Gille tambm diz que a sociedade de hoje
interage com o sistema tcnico atravs do consumo, e esse transversal em todos os
lugares do mundo.
Gille tambm pensou nos sistemas tcnicos como unitrios e passveis de
evoluo no tempo. A estabilizao da evoluo tcnica, por um certo perodo de
tempo, resultado de uma tecnologia agregadora. A evoluo dos sistemas tcnicos,
alm de agregar maior complexidade, aumenta a solidariedade interna entre os
diversos elementos combinados. A mundializao da tcnica, que Heidegger chamar
de Gestell, implica uma explorao sistemtica e global de recursos com crescente
interdependncia entre os sistemas econmicos, polticos, etc.
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
6/21
Husserl, analisando a aritmetizao da geometria em curso em sua poca,
apontou para um estgio em que os significados e a prpria intencionalidade aos
poucos se desvanecem. O mtodo cientfico que advm da matematizao , no
limite, metafsico e blindado contra quaisquer ideias que no sirvam para a busca de
certos resultados exatos. O cenrio que a absoluta matematizao do real fornece
o de um empobrecimento generalizado da conscincia histrica, da memria e o do
esquecimento da importncia da filosofia. Tal diagnstico podemos encontrar muito
bem delineado naA Crise das Cincias Europias e a Fenomenologia Transcendental,
de Husserl.
Heidegger v na armao (Gestell) uma caracterstica fundamental da histria
do Ser, sempre amparado pela razo. De alguma forma, para Heidegger, a tecnizao
encapsula a histria do Ser, que torna-se, ento, histria da Tcnica. Por isso,sofrermos de uma falta de memria, memria esta que forneceria outras vises de
seres humanos para alm do ser tcnico. O Dasein heideggeriano perpassado pela
tcnica, instrumentalidade equipada com o destemido e vangloriado poder de
calcular. Somente a crtica da armao tcnica da modernidade pode desvelar por trs
do seu vu metafsico a pergunta fundamental: a da origem e sentido do Ser.
A hipostasia da mathesis universalis, proposta por Leibniz, Descartes e outros,
encoraja o estabelecimento de um sujeito que deve fazer o papel de ministro e
intrprete da natureza. A era tcnica moderna, em Heidegger, se caracteriza pela
metafsica na qual a subjetividade torna-se totalmente objetiva. Com efeito, o
entendimento heideggeriano da natureza da tcnica, que perpassa de forma
fundamental toda sua produo, ambivalente. A tcnica aparece simultaneamente
como o ltimo obstculo para e a ltima possibilidade do pensamento.2 A Gestell a
realizao ltima da metafsica que dota de carter global a tcnica, por um lado, e o
conceito onde ser e tempo se co-apropriam num existir (es gibt), o que libera a
determinao metafsica do tempo.
Nesse sentido, Heidegger analisa em A Questo da Tcnica a possibilidade de
afastamento da tcnica da determinao metafsica. Aqui, diz Heidegger, considerar a
tcnica como instrumento, meio para se alcanar certos fins, como fazia Aristteles,
2 STIEGLER, Bernard. Technics and Time,1. The Fault of Epimetheus, p. 7.
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
7/21
no basta. A tcnica tem, tambm, um carter de poisis e, por isso, gera um
desvelamento de novos horizontes do ser, altheia. Na modernidade dificilmente a
tcnica atinge a poisis e a altheia porque institui um sujeito que violenta
continuamente a natureza, submetendo-a ao clculo, movimento que se pode
acompanhar atravs da Gestell, conceito no qual se encontram natureza e
homem entrelaados atravs da estrutura do clculo.
Como tentativa de escapar do impasse esboado por Heidegger, Jrgen
Habermas, por exemplo, introduz o conceito de ao comunicativa em Tcnica e
Cincia como Ideologia. Conceito que ser fundamental para o ulterior
desenvolvimento da obra de Habermas, a ao comunicativa uma capacidade da
razo para alm da lgica de meios e fins da tcnica. Esta atividade com vistas a
certos fins, altamente racionalizante, est atrelada ao progresso cientfico. Muitosautores a viram como um instrumento de dominao com densidade histrica e
multifacetado, para citar alguns: Adorno, Marcuse, Weber. Temos que ter em mente,
nesse ponto, aAufklrungs avessas diagnosticada na Dialtica do Iluminismo.
A ao comunicativa faz referncia a uma certa comunidade de indivduos que
engendram uma srie de normas de forma intersubjetiva. A histria humana, luz das
anlises de Habermas, seria um desenvolvimento dialtico entre a razo comunicativa
e a razo racional-proposital. As sociedades modernas tendem a atrofiar a discusso
pblica, a ao comunicativa, em favor da racionalidade tcnica com vistas a objetivos
exatos. Alm de assistirmos a um fechamento sistmico da racionalidade tcnica,
como um modelo ciberntico, por exemplo, h, tambm, uma dano linguagem, um
lapso na socializao, uma dificuldade de individualizao e de intersubjetividade.
Essa tecnizao da linguagem algo de no-natural, de perverso, tanto em
Heidegger quanto em Habermas. O complexo problema que se coloca, hoje em dia,
o de compreender como a opacidade cada vez maior dos diferentes meandros da
cultura, como a alta especializao da cincia, permitem ou entravam a descrio do
atual processo de tecnizao. Das novas tecnologias que nascem a cada dia, pode-se
notar o entrelaamento da esfera temporal que rapidamente torna obsoletas profisses
inteiras, mquinas, relaes de trabalho, etc. O que clama, cada vez mais, a uma
contnua adaptao dos seres humanos a esse meio tcnico. A tcnica e a tecnologia
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
8/21
se destacam da cultura para alcanar um grau de autonomizao tal, que a partir
desse ponto, toda a cultura torna-se responsiva aos desenvolvimentos tecnolgicos.
Mais do que isso, o desenvolvimento tcnico sensivelmente mais rpido do que o
desenvolvimento da cultura, o que gera consequncias de grande escopo para uma
anlise filsofica da tcnica. A barreira do tempo est sempre sendo quebrada pela
tecnologia. exatamente esse ponto, qual seja, o da temporalidade, que teremos que
investigar mais a fundo.
Mais uma vez as ideias de Heidegger tero muita relevncia. O Dasein
existncia, factualidade, e, por isso e tambm, temporalidade. O Dasein entra num
mundo que sempre o precedeu em sua factualidade, um mundo que j estava l. A
temporalidade do Dasein estabelece uma relao de anteviso perante esse mundo, o
que, ao prev-lo e antecip-lo, o Dasein est a frente do tempo do mundo e, por isso, afrente de si mesmo.
A questo que fica, transversal a todas as outras, a da inveno da tcnica,
ou do homem. A tcnica foi realmente inventada pelos homens? Ou, por outro lado,
os homens so inventos da tcnica? Se respondida adequadamente podemos
compreender que parte faz papel de quem no processo, o agente ativo, e que parte
o algo, passivo. Heidegger hesita entre uma divergncia total entre o quem (existncia)
e o algo (presena a disposio da mo). Num certo momento Heidegger diz que
qualquer ser contm os dois mbitos, o que torna problemtica a posterior arquitetura
de suas anlises.
As anlises que se seguiro buscaro dar conta, brevemente, da analtica
existencial heideggeriana em relao tcnica tendo em vista os mitos gregos
dos irmos Prometeu e Epimeteu. Nesse sentido o mito dar insights importantes
para entendermos as diversas e complexas figuras de temporalizao que estaro
em jogo. Enquanto Prometeu simbolizar um avano no tempo, uma antecipao,
Epimeteu remeter para uma falta, um esquecimento, um no-comprometimento e uma
distrao.
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
9/21
II. Prometeu, Epimeteu e a Temporalidade
Compreender a dinmica que se estabelece entre a tecnologia, que move
as diversas eras tcnicas e as possibilidades de antecipaes do futuro uma
tarefa complexa que exige o elencar de categorias filosficas. A questo assume
tamanha radicalidade que, de fato, a tecnicidade constitui de forma fundamental a
temporalidade. A temporalidade de um algum torna-se sempre atravessada pela
materialidade do algo. Nossa poca histrica assiste a esse fenmeno de forma
privilegiada e, ao mesmo tempo, hesitante.
Se considerarmos que, em qualquer poca histrica, h uma determinada
estrutura tcnica j dada, como Heidegger apontava atravs do conceito de Gestell,
ento, qualquer tentativa de uma fenomenologia da temporalidade deve relevar amemria dos outros momentos da evoluo da tcnica e isso ser um suporte para as
indagaes e estruturas do presente. Esse tipo de anlise exige que se faa um estudo
das possibilidades de antecipaes tcnicas. Caminho este que foi apenas apontado
por Heidegger.
Acompanharemos o percurso de Stiegler, que buscar compreender a unio
primordial e dialtica entre algumas caractersticas encontradas na construo
mitolgica de Prometeu, como deus da tcnica (prsthesis), Prometeu como o deus
da antecipao, Prometeu aquele que representa o receio da morte e a prpria
ignorncia da morte, com a significao de Epimeteu, que representa a no-memria, o
esquecimento. Ademais, busca-se alcanar uma viso da epimetia, ou a experincia
que se alcana atravs dos erros do passado, irmanada com o que hoje nomeamos
reflexividade. Ou seja, o que estar em causa a interconexo entre tcnica,
antecipao, finitude, memria/esquecimento e finalmente subjetividade.
Numa acepo que se tornou clssica, tekn a violncia do homem contra
a natureza, homem que v a si mesmo como um deus. O entendimento grego de
tekn, que se solidificou no vocabulrio comum, afirma Stiegler, bem diferente dessa
primeira interpretao. Tekn, na Grcia anterior ao advento da metafsica, na Grcia
trgica, era entendida circunscrita ao horizonte da mortalidade. A tekn se posicionava
no meio de um homem que se via como imortal, de um lado, e o homem animalizado
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
10/21
que esquece da prpria morte, de outro.
Epimeteu no representa somente aquele que esquece. Ele tambm
esquecido. A construo mitolgica de Epimeteu aponta para o esquecimento da
prpria metafsica, no limite, para o esquecimento do pensamento. Epimeteu o
retorno aps o falhar de alguma experincia. Gethe, em Os Anos de Aprendizado
de Wilhelm Meisterexplora exausto a figura epimetia, fazendo mesmo o mote do
livro: Aparar os cornos ao bater a cabea. Veremos como a figura de Prometeu s faz
sentido atravs de seu complemento, Epimeteu.
No mito platnico Protgoras, h uma narrao do mito de Prometeu e de
Epimeteu, que podemos reproduzir muito brevemente: Num tempo em que s havia
deuses, Epimeteu incumbido da tarefa de dotar vrios seres de aparatos tcnicos
que os tornaro mais velozes, mais fortes, etc. Ao final da tarefa, Epimeteu se esquecedos humanos, dotando somente as bestas com o acervo disponvel de habilidades.
Prometeu chega para inspecionar o trabalho de Epimeteu e percebe que os homens
estavam nus, fracos, sem armas, etc. Prometeu ento rouba de Hephaestus e Athena
a habilidade das artes, juntamente com o fogo e os delega aos homens. O mito termina
dizendo que s a partir da o homem pode articular a fala aos nomes e criar casas,
buscar alimento, fazer roupas, etc.
Do mito podemos vislumbrar que a falta de Epimeteu permitir aos homens
a sabedoria da tekn. Filhos de uma falta (o esquecimento de Epimeteu) e de um
roubo (de Prometeu) os humanos nascem dessa dupla falta. Porm todo o cenrio
estruturado em torno da possibilidade dos homens, com o poder da tkne roubada,
se assemelharem ou no dos deuses. Por isso, dissemos, o entendimento grego de
epimetia girar em torno da mortalidade e da possibilidade ltima de se esquecer
da mortalidade. Nesse sentido, a tcnica ser o meio pelo qual os homens, mesmo
que decados do Panteo dos deuses, participam da divindade atravs da dupla falta
originria. Nessa antropogonia, ao mesmo tempo que se aponta para a imortalidade
dos deuses, v-se a mortalidade dos homens. A interpretao geral de Stiegler do mito
grego: a tecnicidade inaugura a mortalidade.
Da que na linguagem corrente grega prometia remeter diretamente
mortalidade. A partir da queda dos homens, para sempre foi estabelecida uma disputa
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
11/21
entre os dois reinos: mortais e imortais. E essa disputa (eris) se espalhar por todos
os meandros. Prometeu sofrer a ira de Zeus, assim como os homens lutaro entre si
em verdadeiras guerras parricidas. Desde ento os homens devem suportar o fardo
do trabalho, o que necessariamente pede pelo uso de intrumentos, at o dia em que a
morte cobrar sua dvida.
Na inveno da pr-thesis, daquilo que posto em frente, a humanidade v o
seu prprio cerne, a possibilidade de ser fora de si mesma. Esse ser fora de si, que cria
o aparato tcnico produto de uma inventividade dirigida pelo logos? ou a produo
mesma engendra o logos como um subproduto? Stiegler argumenta que toda a ordem
engendrada pelo logos produto da tcnica, ocorrem atravs da tcnica. A poltica e a
religio, que so embasadas no logos, so tambm perspassadas pela falta originria
do ser tcnico. O homem necessita conjurar novos instrumentos tcnicos devido asua dupla falta original. A incompletude move a busca insacivel da humanidade pela
tcnica.
Como castigo a Prometeu, Zeus ordena a Hephaestus moldar uma mulher em
terra, Pandora. Esta abrir o jarro que contm todo o mal que assolar a humanidade.
O jarro continha elpis que, entre muitas tradues, pode indicar esperana, expectativa,
antecipao e, at mesmo temporalidade. A elpis, como disse Jean-Pierre Vernant
guarda uma incerteza do que realmente a humanidade pode esperar. Em termos
heideggerianos, a elpis aponta para a incerteza do futuro, contnua relao com o
indeterminado. A antecipao da elpis aponta para o entrelaamento entre prometia e
epimetia, relao com um futuro incerto que cada ser humano deve enfrentar.
Depois da falta de Epimeteu o futuro humano enseja mortalidade. Seres
para a morte, que criam seres fora de si mesmos, que esperam pelo futuro incerto.
Seres que tm esperana e por isso, medo. Todas essas determinaes so frutos da
tcnica, que instaura a temporalidade e a possibilidade de auto-destruio, sempre
mo dos que detm o poder blico. A onipresena dos aparatos tcnicos, uma faca,
a televiso, o computador, o dinheiro, os culos, etc, causam um certa cegueira, um
certo esquecimento. Cegueira e esquecimento que so marcas indelveis de Epimeteu.
A epimetia indica a falibilidade da existncia humana, a falibilidade dos aparatos
tcnicos criados pelos humanos, impe a questo da mortalidade raa humana.
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
12/21
Enquanto prometia a antecipao do futuro, prudncia e, ao mesmo tempo,
uma inquietude essencial, epimetia quer dizer do esquecimento, do idiota, do atraso,
do impensado. O passado sempre ser um ato de esquecimento e uma falha, que
marcar todo o pensamento. Prometeu e Epimeteu, inseparveis, formam juntos
a reflexo particular aos mortais que partilham do esplio divino: uma reflexo
como xtase, no tempo, ou seja, na mortalidade, a qual antecipao e diferena;
reflexo como tempo e tempo como reflexo: em antecipao no lado de Prometeu
como tambm como atraso do lado de Epimeteu - nunca em paz, que um privilgio
exclusivo aos seres imortais.3
Na obra de Heidegger possvel acompanhar a relao entre a tradio de
um lado e a tcnica moderna de outro, assim como a oposio, que se mantm nos
moldes platnicos, entre logos e tekn. Sobre a questo da herana, mais uma veza figura introduzida pela epimetia parece ser til, porque diz sobre o esquecimento
da tradio, dos erros interpretativos do passados, ao mesmo tempo em que ocorre
algumas acumulaes de conhecimento - caractersticas inerentes condio humana.
A prpria etimologia de epi-metia a relaciona com o verbo grego manthano, que
quer dizer apreender, estudar, ensinar a si mesmo. Ademais a raz do verbo tambm
resoa em mathesis, que, nas anlises de Heidegger a fundamental pressuposio
do conhecimento das coisas.4 No limite, ento, epimetia refere-se herana e
tradio. o que j est no mundo, aquando Heidegger diz que o Dasein lanado
num mundo. O radical epi, explica Stiegler, diz do carter de casualidade e de
artificialidade do constructo.
O Dasein a prpria articulao entre os mbitos de um quem e de um algo, j
dizia Heidegger nO Conceito de Tempo. O passado em que qualquerDasein imerso
est sempre l, o que dota o carter de facticidade do em torno. Esse Dasein , de
forma intrnseca, seu prprio passado atravs do dispositivo da herana. impossvel
fugir da herana histrica legada por um tempo, essa marca transversalmente todos os
projetos contemporneos com as faltas, erros e conseguimentos do passado. A grande
questo aberta por Heidegger, a de saber qual a composio desse algo que sempre
3 STIEGLER, Bernard. Technics and Time, 1. The Fault of Epimetheus, p. 202.4Idem Ibidem, p. 206.
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
13/21
anterior a qualquerDasein, esse algo que j est l, que essencialmente tcnico.
Disso antev-se um tempo tecnolgico, no qual o desenvolvimento da tcnica ditaria,
de fato, a passagem do tempo existencial. Em outras palavras, o tempo do algo ditaria
o tempo de um algum.
O Dasein contm uma peculiaridade: a de saber de seu fim, fim este que se
mantm indeterminado. Por isso que o Dasein pode esquecer-se do agora para viver
o passado ou antecipar e projetar o futuro - caractersticas fundamentais de Prometeu
e Epimeteu. Essa repetio do passado permite o acesso ao arcabouo do que se
encontra j l, a estrutura do mundo anterior a qualquerDasein?
E qual o papel da temporalidade? Heidegger diz: O tempo Dasein5 Nas
intrincadas relaes entre a herana do passado e a antecipao do futuro o tempo se
coloca perante a humanidade. Entretanto o tempo determinado de acordo com oestado tecno-lgico de cada poca que reconfigura a rede do que herdado e
possibilita novos arranjos de projetos de futuro. A tecnologia de cada poca histrica
torna-se a rede em que a temporalidade encapsulada. A tecnologia determina quais
elementos do passado sobrevivero e qual o caminho a ser trilhado no futuro. O que
est em jogo a dialtica entre esquecimento/lembrana e antecipao. O que j est
l que Heidegger apenas indicou constitui a prpria temporalidade, sempre influenciada
pela estrutura tcnica de cada poca histrica.
III. Heidegger, o que j est l, e a relao entre um quem e um algo.
Ser no mundo em si mesmo um problema porque a maioria dos seres
humanos sabem que esto imersos num horizonte de no-predestinao. Stiegler, com
Heidegger, prope que a um quem da histria corresponde um determinado algo que j
estaria l, a disposio do quem, um determinado horizonte tcnico sempre disponvel
ao fator humano, em qualquer poca histrica.
Heidegger, num primeiro momento, postula uma distino, como dissemos,
que fundamental para toda a estrutura de Ser e Tempo, do quem que age no
processo histrico (Dasein) e do algo que sofre a ao (Handlung - o ser que est a
5 HEIDEGGER, Martin apudIdem Ibidem, p. 251.
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
14/21
disposio da mo). Ao longo de Ser e Tempo Heidegger hesitar e chegar mesmo
a considerar que todo ser participa tanto do quem quanto do algo. O Dasein o ser
ntico privilegiado para se acessar questo ontolgica primordial, intui Heidegger.
Aproximar-se do Dasein analisar, primeiramente, sua cotidianidade. Porm esta
cotidianidade no est eivada pela estrutura do que est j l no mundo, pela armao
tcnica? Heidegger anteviu esse problema e a resolve nesses termos: o Dasein ser
um passado, porm que, de fato, no lhe pertence. Stiegler ler isso luz do conceito
derridiano de diffrance.
A tradio ou, em termos heideggerianos, o que j est l, o que,
simultaneamente, colocar resistncias para um Dasein alcanar aquilo que realmente
se , seu prprio projeto e, por outro lado, liberar essa realizao. Porque a
transmisso da tradio envolve o esquecimento do passado, sempre. Por isso, se fazto necessrio para Heidegger, que, para se liberar uma nova ontologia, a estrutura
das antigas sejam destrudas, esquecidas. O que est em causa, evidentemente, o
problema da origem. A origem guarda toda a indeterminao possvel, ao mesmo
tempo que fornece todo o legado histrico de cada poca, tambm sendo passvel de
esquecimento, de neutralizao. Para um certo Dasein, a determinao histrica
montada em seu tempo histrico um a priori. Ou seja, o destino do Dasein est
sempre determinado pelo algo, pelo sistema tcnico de um tempo. A cotidianidade de
um Dasein , ento, essa confuso entre pura facticidade e determinao tcnica.
Heidegger aponta que ser-no-mundo sempre uma forma de preocupao e o Dasein
se mostra no cuidar; anlise esta que ressoa prometia, como antecipao e
preocupao com o futuro.
No texto O Conceito de Tempo, de Heidegger, est contida a hiptese
estruturante do livro de Bernard Stiegler, at onde podemos ver. Ali, Heidegger prope
um tempo tecnolgico, ou seja, um tempo do algo, que interpela continuamente e, no
limite, constitui o tempo de um quem. Mais uma vez a questo recai sobre a epimetia,
a tradio como conhecimento. A hiptese que estruturar a leitura de Stiegler que o
acesso tradio e ao conhecimento se d atravs da tecnologia. A tecnologia
geradora e transmissora do conhecimento.
O relgio o tipo privilegiado de algo que aproxima o tempo do quem que se
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
15/21
interroga pela temporalidade. Que tipo de aparato tcnico o relgio? Qual o tempo
que um relgio mensura? O sistema cclico do relgio s faz sentido para um Dasein,
um quem. Porm Heidegger dirige suas anlises para o agora. Qual a estrutura do
agora, da hora que marcada no exato momento que dirijo meu olhar a um relgio? A
questo nos remete novamente ao Dasein. Porm h uma dificuldade de apreend-lo
como temporalidade porque o Dasein est velado em suas manifestaes: no Ser-no-
Mundo, na cotidianidade, no Eu sou, na tradio, etc. O Dasein nunca pode ser
apreendido em sua totalidade. O Dasein no um algo porm tem acesso privilegiado
ao Ser. Para o ponto em que estamos, a leitura de Stiegler de Heidegger totalmente
devedora de Jacques Derrida. O Dasein indeterminvel, contnua diffrance. O
Dasein o prprio vir-a-ser, que denuncia a sua falta, a sua incompletude. A morte
encerra o carter de ser-para-a-morte do Dasein, final esse que precede possibilidade do Dasein completar-se, impossibilitando-o.
H uma certeza da morte, porm esta permanece totalmente indeterminada. Da
mesma forma, a pergunta pelo Dasein tem como resposta um conhecimento que sabe
que no-conhece. Conhece a prpria indeterminao da estrutura encerrada pelo
Dasein. Diz Heidegger: O Dasein, como sempre perpetuamente meu, sabe da sua
prpria morte at quando espera conhecer nada sobre ela. O que isso de ter a
prpria morte em cada caso? o Dasein antecipando o seu passado, para uma
extrema possibilidade de si-mesmo que est ante ele certamente de maneira
indeterminada.6 A dialtica entre esperana e medo, entre epimetia e prometia est
contida aqui, o que faz ver a diffrance. Por no ser pr-destinado, o futuro do Dasein
permanece eternamente velado. O ser do Dasein um retirar-se, um velar-se, o que
revela a sua estrutura de falta originria.
Em resumo, o tempo e por conseguinte o Dasein apresentam-se como,
essencialmente, uma carncia de tempo, um velamento da estrutura do Dasein. Onde
podemos situar a individuao, ento, em Heidegger? Em primeiro lugar a
temporalidade de um Dasein quer dizer de uma atualidade no-idntica. No sentido em
que, como dissemos anteriormente, o Dasein o tempo, que no nada alm do que
j est l, possvel dizer que o tempo um princpio de individuao. O Dasein o
6 HEIDEGGER, Martin apudIdem Ibidem, p. 217.
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
16/21
seu passado, suas possibilidades em correr frente do seu passado. Nesse correr a
frente eu sou autenticamente tempo, eu tenho tempo. Na medida em que o tempo ,
em cada caso, meu, h muitos tempos. O tempo em si mesmo sem sentido. O tempo
temporal. Se o tempo entendido nesse sentido como Dasein, ento de fato se torna
claro o que a assero tradicional sobre o tempo quis dizer quando disse que o tempo
o prprioprincipium individuationis.7
O Dasein fora de si mesmo, temporal. Seu passado no lhe pertence porm
o passado tudo o que ele pode ser. O Dasein necessita projetar-se a si mesmo para
fora, a frente de si mesmo na forma de pr-tesis. A forma em que o Dasein acessa o
passado e antecipa o futuro , tambm, atravs das prteses. Assim como a escrita
uma suspenso do juzo (pokh). Nessa suspenso a escrita realoca o passado,
antecipa o futuro na durao do agora do presente. A escrita mostra a dialtica entreprometia e epimetia, expondo ao mesmo tempo que velando a diffrance.
IV. Um breve olhar sobre La Technique et le temps, 2: Dsorientation
A rapidez dos processos ubquos de evoluo da tcnica marca a desorientao
do ser humano que busca apreender conceitualmente tal marcha tresloucada. No seu
primeiro livro, Bernard Stiegler argumentou que essa desorientao que acompanha
pari passuo desenvolvimento da arte de natureza original. O sistema tcnico abarca
as outras manifestaes de uma poca, enclausurando-as em seu prprio vir-a-ser. Ao
mesmo tempo que a estrutura tcnica de cada poca est montada, apontando para o
passado, a tcnica o centro da inovao histrica, o locus inventivo que anuncia o
futuro. Nesse sentido, falar de humanidade sob qualquer ngulo resvalar na
constncia da tcnica, como determinao necessria do mundo-da-vida dos humanos.
A desorientao causada pela ubiquidade da tcnica revela a falta de
posicionalidades fixas no mundo, entre o aqui e o ali, o passado e o futuro, o pblico e
o privado, o profano e o sagrado, etc. Ademais, acompanhamos alarmados a
independncia do desenvolvimento tcnico perante a cultura humana, processo em
que no podemos, nem atravs do clculo, prever para onde aponta. A nossa poca
7Idem Ibidem, p. 229.
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
17/21
assistiu ao nascimento dos mass media e das tecnologias de informao que hoje
perpassam qualquer horizonte do olhar humano. Como um prximo passo, as
tecnologias de informao manipulam todos os meandros culturais disponveis numa
poca histrica, interferindo de maneira total nos processos de individuao de cada
ser humano. A vida humana se torna programtica, a memria submetida aos
desejos da indstria controladora das tecnologias de informao.
Heidegger deu um passo alm da fenomenologia de Husserl, esta atrelada e
vigilante com as determinaes impostas pelo presente, ao postular que o que
herdado uma caracterstica fundamental do presente e da prpria temporalidade. Na
sociedade hodierna, assistimos a uma tecnizao e industrializao da memria, uma
das principais causas da desorientao, argumentar Stiegler.
Stiegler identificar fases diferentes nas quais a memria vai se tornando cadamais enredada pela tcnica. A instituio pblica do texto, atravs do livro, fez nascer
uma nova poca, a poca Ortogrfica. Por sculos o texto escrito foi o grande
paradigma no qual todas as crenas eram fundamentadas. O poder de moldar os
intelectos, de guiar as massas, que o livro encabeou, foi sendo somente gradualmente
entendido com toda sua fora pelo devir histrico. Em seguida, Stiegler buscar
analisar a gnese da desorientao, na qual o processo de dominao e o carter
programtico da industrializao atinge, de maneira basilar, todo o aparato da memria
humana. Com as mdias virtuais, com a interatividade, a estrutura clssica dos eventos
se desmantela, e com ela, a prpria cultura embasada na ortografia. Essa memria
forjada pela grande industria da informao torna-se um objeto poltico, guiando de
maneira precisa e controlada as aes dos seres humanos no mundo.
V. Um breve olhar sobre La Technique et le temps, 3. Le temps du cinma et la
question du mal-tre
A decadncia da escrita e da cultura Ortogrfica e a consequente emergncia
dos novos meios de informao transformam imensamente a maneira em que os mitos,
os arqutipos e o prprio passado so recontados. Todas as narrativas sofrem de um
contnuo processo de remediao ou seja, se propagam pelos mais diversos meios
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
18/21
como, por exemplo, blog, filme, udio, etc. at alcanarem o usurio final. Mas, entre
todos os meios, talvez o que gera maior poder projetivo, na qual o espectador se sente
como que totalmente imerso na narrativa, aquele que atinge a juno de imagem e
som, alcanado primeiramente pelo cinema, e que se popularizou atravs da televiso.
Tal controle do processo tcnico e da articulao simblica operada pelo vdeo pode
dar um poder de manipulao poltica da humanidade para um pequeno grupo, e de
fato d, em detrimento grande massa que cai passiva diante do surpreendente efeito
projetivo.
A grande fora da iluso cinematogrfica se apoia sobre a fotografia. A
fotografia permite um fluxo direto do passado ao presente, de uma estranheza
considervel, aterrorizadora. Aliado a isso, o cinema ainda enxerta o som, mais um
registro do mbito da memria, que corrobora de forma concreta os vnculos sutis entrepassado e presente. H total coincidncia entre o tempo (sempre j passado e
presente) do filme e o da conscincia do espectador que o assiste. O fascnio pelo
cinema, pelo fluxo imagtico e sonoro, advm do considervel estranhamento causado
por esse novo dispositivo tcnico. Como nas anlise de Husserl sobre a melodia, que
s aparece esvaindo-se, aparece no prprio devir, o filme, ele tambm, apresenta-se
em fluxo, antecipando-se e desvanecendo-se. Algo que nos relembra a dialtica
implcita de prometia e epimetia. O cinema faz ver a relao interrompida entre uma
recm-retenso e o presente, por isso, ao mostrar o lapso que nos separa
irremediavelmente do passado, atenta para o prprio modo de ser consciente e vivo.
Stiegler est particularmente preocupado com a tamanha perfeio do processo
mimtico operado pelo cinema, que borraria para sempre a tnua linha divisria entre
fico e realidade, virtual e real, que poderia tomar uma escala global de dominao de
uns, os detentores do aparato e conhecimentos tcnicos, sobre os que no os
possuem. O filme sempre convida para um tipo de temporalidade que nunca a minha,
o filme a concretizao mxima de um tempo dum outro institudo, que interpela para
sempre a mim. Stiegler nos alerta para a possibilidade de alcanarmos um estgio de
uma plena Industrial Cultural, na acepo que Adorno e Horkheimer deram a esses
termos, que domina todos os meandros de nossa cultura, que instala uma determinada
temporalidade e, o que vemos evidentemente, que toma as rdeas do processo de
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
19/21
individuao. Nos dias de hoje, a televiso faz o papel de cinema, tornando ubqua a
divulgao do vdeo, com seus poderes emancipatrios surpreendentes e seu potente
vetor reificante. Como vemos a questo, essa nova indstria cultural aponta para um
cenrio ambivalente, que permite a emancipao e, tambm, a reificao, tornando-se
dependente do contedo do vdeo em questo.
VI. A AssociaoArs Industrialis
O estado da contemporaneidade histrica aos olhos da Associao Ars
Industrialis (arsindustrialis.org) o da inteira submisso da vida do esprito aos
imperativos da economia, que monopoliza a informao e a cultura, gerando o que
denominado por tecnologias do esprito. Estas tecnologias do esprito, nos dias dehoje, visam controlar e moldar hegemonicamente as vidas dos indivduos e de
sociedades inteiras. A sociedade industrial que inicia-se no sculo XIX, perpassa o
sculo XX e alcana o sculo XXI gera uma quantidade absurda de resduos txicos,
que se tornaram obsoletos e que necessitam dar lugar a uma nova organizao
industrial.
A Ars Industrialis chama esse novo sistema econmico de economia de
contribuio. Com influncias ntidas da obra de Amartya Sen, visa-se que os resduos
gerados sejam diversificados e que tenham novamente entrada no sistema econmico,
sem causar danos ambientais ou humanos. A economia de contribuio o prximo
modelo da indstria de informao, que domina todas as outras formas industriais. A
Internet o exemplo mximo onde no h mais produtores de um lado e consumidores
de outro. As redes digitais abrem espao para todos os tipos de contribuintes, que
desenvolvem e compartilham tecnologias, conforme um modelo de associao. Esse
caminho aberto pela Internet fornece novos horizontes na luta contra a dependncia
cultural, contra a manipulao de informao, etc. Por outro lado, as redes de
informao e as redes sociais tm forte poder de vcio e de hiper-consumo, o que torna
as novas tecnologias verdadeiros pharmakos gregos, com poder de cura e de morte.
Nesse sentido, toda a tcnica um pharmako, que detm em potencialidade a
natureza benfica e a malfica.
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
20/21
A sociedade de consumo hegemnica, que assistimos em pleno funcionamento
no mundo de hoje, pode estar dando sinais de que est atingindo o seu prprio limite.
O problema que ao mesmo tempo que identifica-mo-nos como consumidores, por um
lado, temos a conscincia que o modelo de sociedade de consumo se tornou txica e
no-promissora, por outro. H um paradoxo em buscar de dentro da sociedade de
consumo um modelo que ultrapasse essa realidade. Temos um senso de
responsabilidade em mos que aponta para um reinventar o modo de viver tradicional,
rumo a um novo modelo que revolucione a vida na Terra. Devemos escapar da
proletarizao e consequente diminuio do saber-viver que a mquina introduz nas
relaes humanas, como apontou Marx.
O novo modelo econmico, com influncia das redes digitais cooperativas, pode
engendrar uma nova forma de acumulao de conhecimento humano, um hiper-aprendizado. necessria a implementao de polticas estatais nos mais variados
nveis para incentivar o desenvolvimento desse novo modelo. A cincia deve pensar
novos modelos para substituir as antigas relaes econmicas. A educao, a escola e
a universidade devem ensinar como escapar da proletarizao, dando oportunidade do
surgimento de uma nova rede de ensino. Uma poltica fiscal que rearrange e possibilite
novos postos de trabalhos e novos vnculos trabalhistas. Uma poltica cultural que
capacite os indivduos e proporcione novas formas de saber-viver, etc.
Alcanar um novo paradigma tcnico que fuja das reificaes hodiernas,
contribuindo para a emancipao, essa a misso da Ars Industrialis. Ademais,
contribuir para o nascimento de uma nova conscincia coletiva. Para isso, a cultura
deve se armar contra a ignorncia e, o que mais importante, a ignorncia que eiva a
prpria cultura.
8/6/2019 Trabalho Final de Filosofia da Tcnica - Tcnica e Tempo, uma Leitura de Bernard Stiegler
21/21
BIBLIOGRAFIA
STIEGLER, Bernard. Technics and Time, 1. The Fault of Epimetheus, 1998, Stanford
University Press, Stanford.
STIEGLER, Bernard. Technics and Time, 2. Disorientation, (1996 Original | 2009
Traduo Ingls), Stanford University Press, Stanford.
STIEGLER, Bernard. La Tcnica y el Tiempo, 3. El tiempo del cine y la cuestin del
malestar, , 2001, Cultura Livre.
Top Related