Revista Eletrônica Fundação Educacional São José
10ª Edição ISSN:2178-3098 __________________________________________________________________________________
UM DIÁLOGO ENTRE LITERATURA E PSICOLOGIA
“O Anjo Rafael”
Ângela Cristina de Andrade Figueira¹
Resumo
Este trabalho tem por finalidade analisar o conto O anjo Rafael, de Machado de Assis, sob a
perspectiva da crítica literária, utilizando-se dos pressupostos de um dos autores
indispensáveis da teoria psicológica: Carl Gustav Jung. É possível submeter um texto
literário à crítica junguiana, levando-se em conta a interdisciplinaridade possível entre essas
áreas do saber. Sendo a literatura uma forma de expressão do ser, ela pode tornar-se alvo de
estudos no âmbito das questões emocionais e psicológicas. A obra de Machado de Assis,
dentre outros aspectos, revela uma característica recorrente ao se deter nas questões
psicológicas do ser, da loucura propriamente dita, apresentando personagens que se desviam
do padrão de normalidade. O anjo Rafael, foi publicado em 1869, no jornal das famílias e
retrata realidades de então, ainda presentes no homem de hoje.
Palavras-chave: Literatura. Psicologia. Jung
Abstract
This study aims to analyze the short story The Raphael´s angel, by the author Machado de
Assis, from the literary criticism perspective, is using the assumptions of one of the authors of
theory essentials psychological: Carl Gustav Jung. It is possible to submit a literary criticism
Jungian text, taking into account the possible interdisciplinarity between these areas of
knowledge. As the literature a form of self expression, it can become the studies focus in the
field of emotional and psychological issues. The Machado de Assis´ work, among other
things, reveals a recurrent feature to stop at the psychological issues of being of madness
itself, featuring characters that deviate from the normal pattern. The Raphael’s angel, was
published in 1869 in the Journal of families and portrays realities, then, present in humans
actually.
Key Words: Literature. Psychology. Jung
__________________________
1 Mestranda em Letras - Literatura Brasileira
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Artigo original
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1 - Introdução
Este trabalho tem por objetivo a análise do conto “O anjo Rafael”, de Machado de
Assis, sob a perspectiva da crítica literária, utilizando-se dos pressupostos de um dos autores
indispensáveis da teoria psicológica: Carl Gustav Jung.
No âmbito da ciência, Machado de Assis se antecipou, por meio de sua obra literária e
entrou no campo das psicopatologias que ainda não eram conhecidas e muito menos,
estudadas em sua época. Machado de Assis nasceu em 1839, Sigmund Freud, em 1856 e Carl
Gustav Jung, em 1875. Embora contemporâneos, Machado de Assis tratou de temas que
seriam motivos de estudos e descobertas posteriores na área do comportamento humano.
A obra de Machado de Assis, dentre outros aspectos, revela uma característica
recorrente, ao se deter nas questões psicológicas do ser, da loucura propriamente dita,
apresentando personagens que se desviam do padrão de normalidade e expressam
comportamentos incoerentes. É costume atribuir duas fases à obra machadiana: a romântica e
a realista. Machado de Assis, porém, não estava preocupado com estilos literários, ele era um
gênio sensível e criativo. A partir de 1880, o escritor ressalta em suas obras as questões
relacionadas ao cotidiano e essa é considerada a segunda fase literária do autor, que é o
realismo, vista como uma época de maior maturidade. Por meio de algumas obras como,
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borbas, O Alienista, e outros, aborda temas
muito comuns aos dias de hoje. Conforme Freitas (2001)), “Machado tinha o pensamento
psicanalítico, anterior à própria psicanálise" (p.70);
O conto que será analisado neste trabalho, “O anjo Rafael”, foi publicado em 1869, e
situa-se numa fase de transição do autor, entre o romantismo e o realismo. O veículo de
divulgação foi o jornal das famílias e retrata realidades de então, ainda presentes no homem
de hoje.
2 – Resumo do Anjo Rafael
Este conto foi encontrado nos arquivos digitais da Biblioteca Pública do Rio de
Janeiro e está dividido em três partes, arquivado sob a denominação de Tomo 7. Para esta
análise, preferiu-se adotar o que foi localizado no site Contos completos de Machado de Assis.
Trata-se da história, dividida em XIV capítulos, as páginas não são numeradas, portanto as
citações no decorrer do texto surgirão por meio dos capítulos.
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O conto inicia-se com o dr. Antero desiludido da vida e especialmente cheio de
dívidas, decidido a se suicidar. Planeja friamente sua morte e quando está prestes a cometer o
ato, alguém lhe bate à porta e lhe apresenta uma proposta muito intrigante, ou mesmo,
misteriosa, que o desvia da ideia de morte. Sem ter acesso a detalhes do assunto, segue
criteriosamente as ordens do autor da proposta que exige a presença do dr. Antero em sua casa
para uma conversa. Mesmo ocorrendo situações enigmáticas, dr. Antero assim o faz e se
encontra com o major Tomás, um senhor que acreditava ser o anjo Rafael, e ter uma missão
designada por Deus, tendo como principal adversário o diabo.
A partir dali, o dr. Antero ficou vários dias naquela casa, a princípio sinistra, mas que,
com o decorrer dos dias, transformou-se no paraíso sonhado pelo dr. Antero. Aquele homem,
que se auto- denominava o anjo Rafael, fez-lhe a proposta de entregar sua filha, Celestina, em
casamento, juntamente com toda a sua fortuna. Após algumas falsas recusas, o médico aceita
a proposta, tentado pela fortuna que se lhe oferecia, mas, ao conhecer a jovem Celestina,
apaixona-se e o casamento já não se dá somente pelo interesse material, mas pelo amor.
Decorridos alguns dias, o dr. percebe que o “major / anjo” é portador de uma monomania e
que sua filha, também sofre de algum distúrbio mental. Muito decepcionado, decide ir embora
da casa, quando a criada, Antonia, implora para que fique e salve Celestina de ficar louca, à
semelhança do pai.
O dr. Antero não viu outra saída a não ser ajudar, porque naquele momento sentia
amor por Celestina e a fortuna já ficara em segundo plano. Em conversa com o “major /anjo”
decide marcar logo a data do casamento, pois queria tirar Celestina daquela casa e privá-la da
convivência com o pai, que apresentava cada vez mais marcas de seu desequilíbrio.
A chegada de um amigo da família, o coronel Bernardo, veio esclarecer ao dr. Antero
a verdadeira condição do major e de Celestina. Atribuiu a loucura do “major / anjo” à suposta
infidelidade de sua esposa que foi expulsa de casa. Celestina fora criada pensando que não
tinha mãe. Depois de anos o coronel retornava, porque agora tinha provas da inocência da
esposa do major e precisava falar-lhe sobre, mas este se negou a aceitar os fatos. Quanto a
Celestina, era uma moça maravilhosa, mas por ter sido criada na excentricidade do pai,
apresentava comportamentos estranhos também. Dr. Antero percebeu que estava em tempo de
resguardá-la tirando-a da companhia do pai.
O dr. Antero apressa-se em realizar o casamento mas simultânea e misteriosamente, o
“major / anjo” , afirmando que recebeu um chamado dos céus pois precisavam dele lá, adoece
e morre. O casamento acontece e o casal vai viver em outra casa. Celestina entra em contato
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com o mundo real, pois nunca havia saído da casa do pai. O conto termina com a despedida
do Coronel Bernardo que muito ajudou o casal, com a promessa do encontro de Celestina com
a sua mãe, com a volta do dr. Antero ao seu mundo, pois todos pensavam que ele estava
morto, devido a uma carta de despedida que deixou, quando pensara em se matar, e por ter
sido identificado com um corpo afogado que encontraram nas imediações.
Finalizando, o dr. Antero percorreu um longo caminho que o transformou em um novo
homem. Ele havia descido ao Hades e subido aos céus e agora, ressurreto, renovado, estava
pronto para viver sua vida.
3 – Teoria Literária Psicanalítica
É possível submeter um texto literário à crítica junguiana, levando-se em conta a
interdisciplinaridade possível entre essas áreas do saber. Sendo a literatura uma forma de
expressão do ser, ela pode tornar-se alvo de estudos no âmbito das questões emocionais e
psicológicas.
Jung, em seus escritos sobre a crítica literária, ressalta dois modos de expressão
literária: o visionário e o psicológico. O primeiro, expressa conteúdos vindos do inconsciente
e, por isso, desconhecidos e merecedores de investigação. O segundo modo revela conteúdos
possíveis de serem identificados por sua clareza de expressão, dado que os mesmos revelam a
psicologia dos personagens. Para Jung, é a obra visionária o melhor objeto de estudo, já que
nela se encontram elementos a serem estudados e investigados pelo psicólogo, oferecendo
maior riqueza de interpretações ( Jung, 1985)
Jung destaca que uma obra de arte pode estar atrelada a questões do ser que a criou;
contudo, é importante lembrar que ela tem o poder de ir além do foco pessoal, ela é ilimitada
em sua capacidade de reorganizar os conteúdos existentes, numa nova criação (Jung,1985, p.
60, 61). É preciso, portanto, ter cuidado ao analisar-se uma obra literária, pois, mesmo sendo
uma atividade psicológica, não se constitui um retrato fiel do artista que a criou, não
necessariamente. Para Jung, o processo criativo, e não o autor da obra, é passível de análise,
pois o mesmo é autônomo, forte e dominador, capaz de absorver o poeta que tende a obedecer
esta força que vem do seu inconsciente ( p.62,63).
O texto em questão, num primeiro momento, pode ser classificado, de acordo com
Jung, como um texto psicológico, pois apresenta aspectos que envolvem a questão da saúde
mental, as manifestações psíquicas, as situações relacionadas aos dilemas humanos; desse
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modo o autor revela a psicologia de seus personagens. Num segundo momento, é possível,
após uma análise, perceber que de suas entrelinhas emergem alguns fundamentos,
desconhecidos a princípio, que dão suporte aos comportamentos vividos pelos personagens e
que remetem o crítico ao campo visionário, tornando possível identificar pressupostos
junguianos no texto.
De acordo com a teoria Junguiana um texto deve ser analisado considerando-se duas
instâncias, a superficial e a profunda. A superficial é a história propriamente dita que surge
como uma projeção da estrutura profunda do texto. E essa está diretamente relacionada ao
dilema principal enfrentado pelo verdadeiro protagonista e, ainda, a maneira como este
protagonista lida com a situação-problema (EISENDRATH,2002 p 241).
O dilema principal do conto O anjo Rafael gira em torno da psicopatologia
apresentada pelo sr. Tomás, denominada pelo médico Antero, como uma monomania. E,
como consequência, sua filha, Celestina, uma jovem saudável, que já apresentava indícios do
comportamento do pai, tinha grandes possibilidades de adquirir a mesma doença pelo
convívio próximo. O sr Tomás acreditava ser um anjo, isso era fruto da monomania, e entrou
em contato com o dr. Antero que, por sua vez, também estava afetado em seu estado de
ânimo, sentindo-se fraco ao ponto de desejar e planejar a própria morte.
A trama principal da história acontece em torno destes três personagens, que
apresentam comportamentos passíveis de serem estudados e contemplados à luz da teoria
junguiana. O dilema principal do conto está relacionado com a estrutura superficial da trama,
que, de acordo com Jung, emerge a partir da estrutura profunda do texto, que está diretamente
relacionada com os conteúdos inconscientes dos seus personagens. A descoberta do
verdadeiro protagonista reside na análise da estrutura superficial do texto, personagem que
requer certo cuidado na sua identificação, pois nem sempre o aparente protagonista, o é em
sua essência. Uma característica do verdadeiro protagonista é que; “Ele toma todas as
decisões importantes, e todos os acontecimentos, sem exceção, relacionam-se (...) a ele”
(EISENDRATH, 2002, p.242).
O conto oferece a impressão que, o anjo Rafael, o sr. Tomás, seria o protagonista pois
a ênfase da narrativa está voltada para a sua pessoa. Um fator de destaque, porém, é que o
verdadeiro protagonista experimenta, no decorrer da história, um desenvolvimento de sua
personalidade ao lidar com a situação problema. Conforme Jung, o homem está sempre em
busca de crescimento, aprimoramento, saindo de um “estágio de desenvolvimento menos
completo para outro mais completo” (LINDZEY,1984 p.100).
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O sr.Tomás em torno do qual se cria o suspense, no início e decorrer da narrativa,
controla o rumo dos acontecimentos tendo a princípio, o domínio da narrativa. Por outro lado,
dr. Antero, considerado o herói da história, inicia o texto, como já foi citado acima, muito
fragilizado, planejando a própria morte e, se não fosse um fato inesperado batendo à sua
porta, teria levado a cabo sua ideia suicida. O que se observa, no entanto, no desenvolvimento
da história, é que essas posições se invertem: o herói fragilizado, se constitui o verdadeiro
herói, porque não dizer , “salvador”, quando liberta Celestina de um destino que poderia ser
cruel, ao passo que o major Tomás revela-se frágil e necessitado de cuidados.
Constata-se que o dr. Antero experimenta um crescimento percebido por ele próprio.
No início do texto, ele, dr. Antero, recebe a carta misteriosa, convidando-o para ouvir uma
proposta de negócio e, no final da carta, uma frase que lhe chamou muito a atenção: “ Trata-se
de uma fortuna” (cap II). Ele não conhecia o portador da carta, não conseguia as informações
necessárias para poder avaliar se o ofertante era uma pessoa honesta, confiável; muito pelo
contrário, a situação era nebulosa. Ao reler a carta, esta última frase lhe ecoou no seu interior,
pois um dos motivos que o levavam ao suicídio eram os cobradores a sua porta. “...a promessa
da fortuna era razão decisiva”. (cap II). Dr. Antero decide, então, ir em frente na história pois
vê na oportunidade uma grande chance em satisfazer seus sonhos frustrados. Quase ao final
da história, contudo, no capítulo XII, o dr. Antero declara: “ ...eu era um pouco de lodo, hoje
sinto-me pérola”. Essa confissão acontece em conversa com o coronel, amigo da família, e ele
se referia à transformação que havia experimentado naquela casa, junto àquela família e,
ainda, dizia ao coronel que estava disposto a renunciar a fortuna para que as pessoas não
pensassem que havia sido um casamento por interesse.
No que se refere à estrutura superficial do conto que gira em torno do dilema principal,
a monomania do major, esta proporcionou ao médico Antero a experiência de crescimento no
enredo.
4 - O inconsciente coletivo e seus arquétipos
Segundo Jung (2011), a psique é composta pelo inconsciente pessoal e o coletivo;
este não deriva da experiência de vida, como o inconsciente pessoal, ele é herdado e é
formado pelos arquétipos. E a “psique objetiva” que compõe a história pessoal de cada
indivíduo, é fruto do “inconsciente coletivo”, o que é comum a todos , referindo-se, assim, aos
arquétipos. Estes se definem como padrões de comportamentos que vêm sendo transmitidos à
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sequência de gerações, pela transcendência, apoiados em bases biológicas como também
psicológicas (EISENDRATH,2002,p.73).
A dimensão pessoal, segundo Jung, é a parte mais superficial do inconsciente, que se
compõe pela história de vida e aquisições pessoais. A coletiva se configura na dimensão
profunda, que serve de base à pessoal. Semelhante ao texto literário que apresenta duas
instâncias, a superficial e a profunda; esta oferece conteúdos para a estrutura superficial. O
inconsciente coletivo, ao contrário do pessoal, é inato, possuindo conteúdos comuns a todos
os indivíduos, de todo lugar ( Jung, 2011, p.12), ou seja, são tipos de pensamento e
comportamentos que vão além da genealogia pessoal e tem a ver com conteúdos universais,
os “arquétipos”.
Jung presume uma variedade de arquétipos no inconsciente coletivo, mas para este
estudo importa delimitar os arquétipos que se fazem presentes no processo de
desenvolvimento ou individuação, do médico, Antero: A persona, anima ou animus e a
sombra. Para Jung (2008), individuação é o processo de crescimento psíquico, é a conquista
do equilíbrio entre consciente e inconsciente, promovendo um ser humano ciente de suas
potencialidades.
O primeiro passo do processo de individuação é a desidentificação com a máscara que
Jung define como persona. Ela refere-se aos papéis que a sociedade imprime no ser e pode
dissimular a verdadeira face do indivíduo. A máscara é um elemento de identificação no meio
social e pessoal, portanto, necessária; precisa, no entanto, ser usada de maneira consciente das
potencialidades e limitações que ela impõe ao sujeito.
O dr. Antero, médico, desfrutava de sua juventude, era saudável, tinha uma carreira a
zelar e a desenvolver, possuía os requisitos necessários para o sucesso, pelo menos
aparentemente. Era o que a sociedade esperava dele, apesar de não ser a sua realidade íntima,
pois o texto no capítulo I, diz que, para que tal acontecesse, era preciso uma total
reformulação em seu modo de vida. O dr. Antero sentia-se impulsionado a mudar e a morte
lhe pareceu uma boa saída, já que o mundo ao seu redor nada tinha de bom. Ele estava
disposto a romper com uma imagem que a sociedade havia lhe imposto, pois, talvez, esta não
lhe satisfizesse em seus anseios e necessidades.
Ainda no início do capítulo I, está registrado “ Entendia o nosso herói que o defeito
não estava em si, mas nos outros”. Neste ponto percebe-se a expressão de outro arquétipo, a
sombra. No processo de desindentificação com a máscara, a persona, aparece uma outra
figura, em geral, rejeitada pela pessoa, porque expõe o lado obscuro da personalidade que
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emerge por meio das projeções ou repressões. Por meio da persona pode-se esconder algo não
agradável do jeito de ser, ela pode ser um lugar de refúgio para o material rejeitado da
personalidade. As imperfeições podem ser “corrigidas” ou esquecidas por intermédio da
persona. Dr. Antero projetava em seu contexto elementos de sua sombra, estes precisavam ser
reconhecidos para que o seu processo de crescimento progredisse paulatinamente. Como
resultado do seu crescimento, no capítulo VIII, do conto,o dr. Antero cai em si e reconhece
que a carta de despedida (cap I) que escrevera com “tanta alma” endereçada ao mundo,
“parecia-lhe agora uma famosa tolice”.
O doutor amarrotou o jornal quando acabou de ler o folhetim; mas
depois sorriu filosoficamente; e acabou achando razão no autor do
artigo.
Com efeito, aquela carta, que ele escrevera com tanta alma, e que
contava fizesse impressão no público, parecia-lhe agora uma famosa
tolice (cap VIII).
Mais que lidar com a persona e a sombra, outro passo, para o crescimento da
personalidade é o confronto com a anima ou animus. Segundo Jung (2008), estes se
configuram como imagens psíquicas, advindas do inconsciente coletivo, denominados de
arquétipos, que representam os elementos da psique feminina (anima), no homem e os
elementos da psique masculina (animus), na mulher. A anima se faz notar através de
comportamentos relacionados à sentimentos instáveis, instabilidades de humores, intuições,
sensibilidade para o amor, para com a natureza e a predisposição no contato consigo mesmo;
comportamentos estes, caracterizados como feminino e que podem se manifestar, também, no
homem. A anima tanto pode ter um caráter positivo, quanto negativo na vida da pessoa.
No homem, a anima, segundo Jung (2008), se estabelece a partir do relacionamento
com sua mãe, caso este tenha deixado uma impressão negativa (pode ser positiva, também),
este homem tenderá a ter sentimentos e pensamentos negativos, tanto a respeito de si mesmo,
quanto das circunstâncias ao seu redor. Sentimentos de menos valia se avolumam e “a vida
adquire um aspecto tristonho e opressivo”(p.237) que podem chegar ao extremo do suicídio.
A anima no homem ressalta quando as emoções e afetos deste estão em questão. Ela tem a
capacidade de distorcer a situação, de maneira que extrapole a realidade. A sua influência se
faz notar no caráter e humor do homem que se tornam desajustados (Jung, 2011. p.80).
Existe, contudo, a possibilidade de o homem conseguir controlar os sentimentos negativos,
advindos da anima, e pelo contrário, eles serão benéficos a sua masculinidade.
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O conto inicia, expressando sentimentos mais íntimos do dr. Antero, que eram
negativos e repletos de subjetividade, conforme registra as primeiras linhas do capítulo I:
Cansado da vida, descrente dos homens, desconfiado das mulheres e
aborrecido dos credores, o dr. Antero da Silva determinou um dia despedir-
se deste mundo.
Percebe-se o dr. Antero influenciado por um estado negativo de sua anima. Para que
se processasse uma mudança no ritmo de sua vida ele teria que começar pelos seus
pensamentos. Só via culpados à sua volta, não tinha parentes, nem amigos e possuía
sentimentos de menos-valia, segundo o capítulo I, do conto, quando ele dá um “até já” para as
estrelas, referindo-se à sua morte:
-Pobre estrelas! Eu bem quisera lá ir, mas com certeza hão de impedir-me os
vermes da terra. Estou aqui, e estou feito um punhado de pó. É bem possível
que no futuro século sirva este meu invólucro para macadamizar a rua do
Ouvidor.....
Os traços negativos da psique feminina se manifestavam na personalidade do dr.
Antero e contribuíram para que ele desejasse e planejasse sua própria morte, colocando-o
numa situação de fragilidade e vulnerabilidade. Outro episódio no texto que revela a
manifestação da anima, na vida do dr. Antero, acontece no encontro que tem com Celestina,
filha do major Tomás, o anjo Rafael. Suas imagens internas são projetadas em Celestina, que
se torna a mulher amada. Segundo uma nota sobre a projeção, de acordo com Jung (2011), a
projeção é involuntária e inconsciente, portanto o sujeito não tem controle deste processo que
acontece automaticamente, desde que o contexto desencadeie sentimentos relacionados à
experiência. Tem-se a impressão que as características projetadas pertencem ao objeto, mas
no momento em que se tornam conscientes para o sujeito elas tendem a cessar.
Ao encontrar-se com Celestina pela primeira vez, foi grandemente surpreendido por
sua beleza e candura: “Tinha diante de si uma verdadeira beleza” (cap. V). Dr. Antero a
descreve como uma figura bela, suave, de aparência totalmente angelical, incluindo suas
vestes, seus traços físicos e sua forma de proceder. Dr. Antero ficou totalmente fascinado com
a aparição e começou a experimentar um contato mais íntimo consigo próprio, conforme a
passagem do capítulo V: “No espírito superficial daquele homem entrava a descobrir-se uma
profundidade”. Segundo Eisendrath, Jung considera que a anima de um homem pode lhe
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proporcionar uma vivência de qualidade profética e numinosa, ou seja, é uma experiência que
acontece independente da vontade do sujeito, e, ainda, o numinoso tem um poder arrebatador,
dominante, conferindo à situação um tom enigmático, profético ou fatídico, segundo definição
de Samuels (2003).
De acordo com Portela (2011), a projeção da anima permite um encontro consigo
mesmo, é a personificação dos próprios sentimentos, situação que deve proporcionar a
possibilidade de diálogo consigo próprio. No encontro com Celestina, a anima, representa o
feminino, o afeto, a flexibilidade, o acolhimento, o amor, a ingenuidade e pureza com a vida,
características que o dr. Antero não experimentava há tempos.
Eisendrath (2002) destaca a maneira como a pessoa projeta conteúdos seus nos outros,
tanto quanto na sociedade e vive um processo de indiferenciação entre o que é propriamente
seu, e o que é do outro. “Minha premissa é que todas as nossas ideias sobre a sociedade
representam uma ‘projeção’ de nossas próprias preocupações com o mundo ao nosso redor”
(ibid, p.243). À medida que a pessoa vai alcançando maior consciência de si e do outro como
seres diferenciados, as projeções tendem a diminuir e o mundo passa a ser olhado como
“realmente” é. Será que é possível enxergar o mundo sem o crivo das subjetividades? Para
Jung, pode haver um grau maior ou menor desse envolvimento.
Ao início do conto, o dr. Antero queria uma solução para suas desventuras, inclusive a
financeira, seu interesse era puramente material. No desenrolar da história, vislumbrou
pessoas necessitadas de ajuda, foi colocado à prova e conseguiu agir de forma altruísta. Em
seu processo de descoberta de si mesmo, o dr. Antero, ficou ciente do problema real da
história e sentiu-se compelido à agir em favor de Celestina e até mesmo, do próprio “major
Tomás / anjo Rafael”.
Dr. Antero reconheceu que, após ter-se envolvido naquela história tornou-se uma
pessoa diferente, experimentara um crescimento interno, significativo em sua vida. De
possível suicida, ele passa a salvador, quando se vê diante da possibilidade de livrar Celestina
da loucura, pois a continuar naquele estilo de vida, com toda certeza, seria mais uma
portadora de uma monomania. O dr. Antero pode ajudar, sendo o herói de que o major
Tomás e Celestina precisavam.
Sob à luz de Jung, o dilema principal do conto não está em suas linhas iniciais e sim
em se descobrir o aparente mistério que envolvia o Major Tomás e Celestina, sua filha. “Que
homem seria esse major, e que lhe queria ele?” (cap III). E ainda, conhecer o caminho
percorrido pelo protagonista, dr Antero, ao lidar com a situação dilema do conto.
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5 – Conclusão
As visões de Machado de Assis acerca dos distúrbios mentais, descritas em O anjo
Rafael, atravessaram o tempo e se definiram em instâncias específicas da psicologia
contemporâneas. O herói, dr. Antero, era um “pobre coitado” disposto a dar cabo de sua
vida, por causa de mulheres, dívidas, sentimentos de inutilidade, falta de prazer pela vida e
decepções em geral. Percebe-se que era uma pessoa necessitada de ajuda. O jovem médico,
porém, adquire uma proporção significativa no enredo, quando apresenta um crescimento em
sua personalidade, e, ainda, passa a direcionar o percurso da narrativa. Dr. Antero revela-se o
anjo daquela família “delirante”, conseguindo resgatar a sanidade de Celestina, tirando-a do
convívio com o pai. Por meio de uma nova oportunidade de vida, ela adquiriu conhecimentos
e experiências dantes desconhecidos que lhe ajudaram a resgatar o contato com o mundo real,
bem diferente do contexto em que havia sido criada.
A missão assumida pelo dr. Antero foi tirar Celestina daquele contexto de vida
alienante e, para tal, foi necessário abrir mão do foco pessoal e voltar-se para a realidade
daquela família. O casamento foi a primeira oportunidade que Celestina teve em sair de sua
casa e aos poucos foi se adaptando à vida real que para ela soava como novidades, coisas do
“outro mundo”. O dr. Antero proporcionou-lhe também a expectativa de reencontrar sua mãe
e resgatar sua humanidade.
Interessante notar que o processo de resgate do outro possibilitou o próprio resgate. O
herói – dr. Antero, resgata-se a si mesmo, alcançando um grau de diferenciação que o leva a
escrever, em resposta ao folhetinista que tratara da sua suposta morte.
Voltei do outro mundo, e apesar disso sou o autor da carta. Do mundo de que venho
trago uma boa filosofia: ter em nenhuma conta a opinião dos meus contemporâneos,
e em menos ainda a dos meus amigos. Trouxe mais alguma coisa, mas isso importa
pouco ao público (Cap. XIII)
O comportamento do dr. Antero expresso no texto revela as atuações do inconsciente
que se encontra na base de toda a ação. Segundo Brenner (1987), nada na natureza acontece
por acaso, este é o determinismo psíquico. Os acontecimentos da vida mental atual estão em
interação com toda a vida mental de uma pessoa. Os arquétipos que foram citados emergiram
a partir da análise da estrutura profunda do texto e os mesmos impulsionaram o protagonista
em sua jornada rumo ao crescimento de sua personalidade. Como resultado final, pode-se
contemplar um dr. Antero diferente, amadurecido, valorizando a vida, vivendo o amor e
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disposto a lutar por ele. Ao término do conto, o dr. Antero experimenta um encontro consigo
mesmo e se depara com gratas surpresas em relação à impressão que causara no público. Em
casa do anjo, dr. Antero teve seu “ primeiro amor, o primeiro remorso, a primeira lágrima e
uma lágrima de gratidão pelo fiel criado” (cap. VIII).
O conto O anjo Rafael apresenta um enredo atual, embora enfoque um tema
considerado realista, na época oitocentista, a loucura. Machado de Assis inovava em suas
obras, visionava um novo tempo e declarava o porvir. Ao agir assim, o autor se posicionava
no limite que dividida pensamentos, crenças de toda ordem e consequentes comportamentos.
Trabalhava sempre no nível da ruptura, transitando nas duas instâncias, romantismo e
realismo, porque ainda não havia se decidido em assumir o último, como estilo final. Esse
modo de ser não o impedia de escrever para o Jornal das Famílias, onde este conto foi
publicado, e, de certa forma, coadunasse com os propósitos do Jornal, que era, dentre outros,
contribuir na formação tradicional da mulher.
De acordo com Santos (1983), a literatura é o lugar do desejo, é o vácuo de algo que se
perdeu ou que se busca. Por isso, ela é movida pelo princípio do prazer, ou seja, o artista é
impulsionado a praticá-la em sua total liberdade de expressão, longe das repressões e dos fins
a que se destina. Na psicologia, Freud, formulou o princípio do prazer como uma tendência
dominante presente, com muita força, na mente infantil mas que perdura durante toda a vida,
embora mude as formas de atuação. A criança busca o prazer de forma imediata, o adulto
aprende a esperar a satisfação do desejo. A partir desse ponto de intercessão, é possível
apresentar a interdisciplinaridade entre as duas áreas do conhecimento, a busca do prazer é um
movimento que procura saciar um desejo, o lugar da literatura.
Finalizando, O anjo Rafael, é um conto que se abre a numerosas possibilidades de
interpretações; a que ora foi apresentada, revela uma pequena faceta de um universo muito
maior.
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