UM ESTUDO AFROPERSEPCTIVISTA PARA ALÉM DA NARRATIVA DE
CORDEL: RESSIGNIFICANDO TRADIÇÕES E HERANÇAS
Raquel Alvitos¹ – Orientadora UFRRJ
Luiza Helena Dias Braga² – Discente UFRRJ
Resumo: Este trabalho fundamenta o cordel como estudo do campo do
Patrimônio. Entendemos o cordel como baluarte da memória, sobretudo ao se
tratar de narrativas históricas orais, para além da expressão popular. Essas
narrativas carregam elementos das heranças e das tradições e por isso
podemos afirmar que a prática de contar e narrar histórias cria uma perspectiva
de história, pois possibilita recontar o passado sobre o ponto de vista do que
são os grupos sociais. Desta forma, é possível resgatar heranças e tradições
vinculadas à tradição africana e afro-brasileira no sentido afroperspectivista. O
cordel pode ser utilizado para inscrição de elementos desta tradição em sua
perspectiva narrativa, significando desta forma, elementos desta herança e
desta tradição que também integram a identidade brasileira.
Palavras Chave: cordel; memória; patrimônio cultural ; afroperspectiva;
narrativa
_________________________
Raquel Alvitos¹ Professora Adjunto da área de História Medieval do Departamento de História
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Instituto Multidisciplinar/Campus Nova
Iguaçu) e Coordenadora do Curso de Licenciatura em História da UFRRJ-IM.
Luiza Helena Dias Braga² Graduanda em História na Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ), integrante do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro).
Membro do Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin), Luiza Braga
está sob orientação de monografia com o Prof. Dr. Renato Noguera e integra a equipe de duas
pesquisas:1ª) Filosofando com sotaques africanos e indígenas; 2ª) Educação, Arte, Infância e
Relações Étnico-Raciais: a literatura infantil a partir dos afro-rizomas e do perspectivismo
ameríndio, além, integrante do Laboratório de Pesquisa em Teoria da História e
Interdisciplinaridades (Lapethi), e Membra do Grupo de Pesquisa Cinema-História (Lapethi) sob
a orientação do Prof. Dr. José de Assunção Barros.
Andarilhar pelos folhetos disponíveis do acervo online da Casa de Rui Barbosa,
pelas produções bibliográficas dos estudos e pesquisas acadêmicas acerca
das narrativas de cordel, e, pelas ruas da Feira de São Cristóvão foram os
primeiros passos para refletir sobre as heranças e tradições da literatura de
cordel, são frutos da participação como voluntária do Projeto de Extensão
Biext 2017-2018: Identidades e Expressões Populares no Rio de Janeiro:
Território da Literatura de Cordel, sendo importante lembrar que este projeto
de pesquisa e extensão busca compreender a produção nos territórios
construídos na cidade do Rio de Janeiro, especialmente no que diz respeito a
produção e manutenção dos cordéis na Academia Brasileira da Literatura de
Cordel (ABLC) e, também, na Feira de São Cristóvão (FSC), como expressão
nordestina no Rio de Janeiro.
O projeto se propõe,sobretudo, procurar estabelecer as possíveis relações
entre o que é produzido nestes respectivos lugares, com fontes de
interpretação contidas nos acervos, enquanto outros territórios nordestinos de
produção de sentido para o cordel, entendemos esses dois territórios enquanto
lugar de memória, ambos atuam para que as identidades do povo nordestino
sejam inalteradas e para isso, necessitam reunir materiais que sejam capazes
de fornecer provas e registros de outras temporalidades, no sentido de
conservar a história, esse material é rememorados em mostras museológicas,
culturais e diversas fontes bibliográficas. No que diz respeito aos demais
territórios, a cidade se posiciona no sentido de conservar as relações de
pertencimento e identidades com as cidades que fazem parte do universo
simbólico nordestino, “(...) para além dos objetos em si, com vistas a inseri-los
no mundo que os cercam, reconhecendo sua historicidade, suas relações com
contextos sociais específicos” (JULIÃO, 2006, p.9).
Além disso, o Projeto de Extensão se propõe na realização de um
documentário em vídeo, o qual pude presenciar parte de sua construção,
quando filmado na Feira de São Cristóvão, este documentário, através do
movimento das imagens, se insere na perspectiva de compreender as
diferenças de estilos provocadas pelos territórios existenciais dos cordelistas e
como essas diferenças influenciam os processos criativos.
Os folhetos disponíveis em acervo online da Casa de Rui Barbosa, as
referências bibliográficas do Projeto de Extensão e a orientação da Prof. Dra.
Raquel Alvitos, constituem a base deste estudo, ao encontro, com os estudos
afroperspectivistas, que possuem em suas bases as motrizes e matrizes
africanas, seguindo um paradigma cultural que desenvolvo como membra do
Laboratório de Pesquisas Afroperspectivas Saberes e Intersecções sediado na
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e coordenado pelo Prof. Dr.
Renato Noguera.
Este encontro de caminhos percorridos e trilhados, indubitavelmente guiados
pela ancestralidade possibilitou a criação redes de conhecimento,
aprendizados, informações, trocas, saberes e formação dos questionamentos
e reflexões motores deste estudo, desta maneira, foram adicionadas
referências bibliográficas, especialmente, os estudos e pesquisas que se
debruçam pelos cordelistas Solano Trindade e Jarrid Arraes, que expandem
as dimensões da pesquisa e são imprescindíveis para a realização deste
artigo. O que configura alguns dos objetivos do Projeto de Extensão de acordo
com a política de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo
em vista a ampliação do conhecimento e o estabelecimento de parcerias para
que ao mesmo tempo sejamos capazes de criar laços com a sociedade e
disseminar ações que colaborem no sentido qualitativo da produção
acadêmica.
Porquanto, nota-se a necessidade de resgatar a arte cordelista, para que
possamos abarcar com profundidade as ressignificações que circunscrevem os
elementos referentes à cultura e herança nordestina e que insuflam nova vida
ao ser das “identidades”, tanto no Nordeste e suas particularidades quanto aos
territórios nacionais remanescentes. (HALL, 2005).
Desta forma, ao pensarmos sobre a produção e manutenção dos cordéis, como
um elemento da própria escrita da história, desconstruindo as considerações
antiquadas a seu respeito, renovando conceitos, pois suas narrativas
constituindo-se pela oralidade ou em circulação nos folhetos impressos,
inscrevem no imaginário das pessoas elementos das heranças e das tradições
e assim, nos permite adentrar a história através da memória como campo de
conhecimento, pois pensamos o cordel para além da expressão popular,
como elemento do patrimônio, exatamente pelas heranças que essas
narrativas carregam, através da prática os contadores, cantadores e escritores
de cordel, passando de geração em geração suas narrativas, criam não só uma
perspectiva de história ou de escrita da história, eles recontam e recantam o
passado sob o ponto de vista do que são os grupos sociais, sendo possível
refletir estas narrativas também, no sentido afroperspectivista, que constitui um
“outro” modo de filosofar( NOGUERA,2015).
Adicionalmente, podemos pensar o cordel para além do elemento da tradição
e entender que existe um recurso pedagógico próprio nestas práticas que
permitem revisitar as tradições, reinventar a história e a possibilidade de atuar
entre a história e memória, consistindo esta última a possibilidade de
considerar a produção e manutenção da literatura de cordel como elemento do
campo de patrimônio.
Em virtude do que foi mencionado, este estudo, é um convite para andarilhar e
percorrer, os caminhos das palavras e expressões, contadas, cantadas e
escritas, para que possamos compartilhar conhecimentos, sobre o cordel e sua
produção e manutenção no posicionamento afroperspectivista.
As vozes ancestrais tecidas na produção cordelistica
MEU CANTO DE
GUERRA
Eu canto na guerra,
como cantei na paz,
pois o meu poema
é universal.
É o homem que sofre,
o homem que geme,
É o lamento
do povo oprimido,
da gente sem pão...
É o gemido
de todas as raças,
de todos os homens
É o poema
da multidão!
(TRINDADE, 2007, p. 36).
Ouvir atentamente, cantar, contar e encantar são tarefas fundamentais no
universo cordelístico, criados, desenvolvidos e difundidos a partir da tradição
oral, inicialmente chamados no Brasil como “livrinhos de feira”, livretos,
romances ou folhetos, contendo modelo tipográfico fixo, feitos em formas de
rimas, contendo narrativas de histórias com linguagem coloquial, que poderiam
representar a realidade ou não, eram cantados, contados, ouvidos e vendidos
pendurados em cordões, especialmente pelos folheteiros em tablados, que ao
movimentar-se entre o oral e o escrito, tinham como estratégia iniciar uma
narrativa, fazendo uso da voz, gestos e viola, mediando a leitura dos folhetos,
de forma coletiva, deixando que público apenas descobrisse o fim ao adquirir
os folhetos, sendo fundamentais a construção dos cordéis, respeitando a forma
e harmonia nos folhetos no que diz respeito a métrica, ritmo e rima, podemos
considerar nessa performance oral “ao mesmo tempo que está
inextricavelmente fundida à tradição, a literatura oral revela-se única,
irrepetível” (GALVÃO,2002), além disso, podemos observar alguns dos
elementos didáticos que consistem a memorização, no que tange a
aproximação do público que não tinha intimidade com a forma escrita e através
da memorização podiam compreender os poemas, apropriando-se das
narrativas, determinando modos de expressão, ideias e apropriação de
conhecimentos, assim, a divulgação e a recepção são fundamentais para
instituir e manter esta prática, “atuando como instrumento de registro e
transmissão de memórias, de uma memória que não se quer e não se pode
apagar, o cordel traz o passado até o presente, fazendo com que histórias reais
ou imaginárias, vividas ou ouvidas, sejam guardadas e repassadas por
gerações sucessivas de ouvintes e narradores” (NEMER, 2012).
Alguns estudiosos acreditam que primeiramente a difusão aconteceu por meio
dos cantadores, através da cantoria de viola, também conhecida como repente,
tendo destaque o grupo de poetas da Serra da Teixeira, no estado da Paraíba
no fim do século XVIII, tendo destaque a criação das sextilhas sete silábicas,
com destaque para o poeta Agostinho Nunes da Costa no século XVIII,
posteriormente, as primeiras impressões dos folhetos no Brasil, também
conhecidos como poesia de bancada, tem como percursor consagrado, o
poeta Leandro Gomes de Barros, apesar de muitos estudiosos atribuírem o
auge da literatura de cordel nas décadas de 1930 com a criação das redes de
produção e distribuição de folhetos tendo destaque o editor João Martins de
Athayde que adquiriu toda a obra de Leandro Gomes de Barros e
posteriormente denominada literatura de cordel pelos intelectuais brasileiros,
por serem vendidos nas feiras pendurados em cordões e por adotarem a
nomenclatura português, por volta das décadas de 1960 e 1970.
No entanto, podemos constatar uma diversidade de influências advindas de
várias partes do mundo, a mais comentada nos estudos acadêmicos são as
edições europeias durante o século XVII, que chegam no território brasileiro
através dos colonos europeus, nesse sentido, são destacadas especialmente
as influências portuguesas, sob a perspectiva da poesia volante, cabe ressaltar
que a métrica portuguesa é considerada bastante variável e atribuída de outros
gêneros literários e não advém da tradição oral, advindo da imprensa e de um
projeto editorial, também são consideradas as influências espanholas
denominadas pliegos e francesas denominadas littérature de colportage, esses
folhetos circulam até o século XIX, quando começam a desaparecer.
O modelo brasileiro, desde o início de sua confecção apresenta diferenças
notáveis do modelo europeu, quanto suas impressões, cores, dimensões,
quantidade de páginas, a narrativa em forma poética, as variadas inspirações,
os desafios poéticos e pelejas, através dos jogos de palavras, e temas
singulares, alguns tendo como referência o gênero novela, que consistem sua
tradição, sendo considerada uma literatura de expressão própria nordestina,
sendo cantadas com o auxílio da viola, a produção de poemas orais,
improvisados, que circunscrevem os desafios e as pelejas através da palavra,
consistem nos repentes, trazidos aos folhetos assumem o caráter literário de
cordel, que pode ser expressada através do gênero de sextilhas, a forma mais
comum nos folhetos, que consistem em estrofes com rimas deslocadas,
composta por seis versos de sete sílabas, em que as linhas pares são rimadas
entre si e o restante em versos brancos, também aparecem o gênero adaptado
por Manoel Leopoldino de Mendonça Serrador, denominado Septilha, que
consiste em estrofes com rimas compostas em sete versos, podendo ser
chamado de sete linhas ou sete pés, seguem a princípio o mesmo modelo da
sextilha, também pode ser encontrada a Décima, que consiste em estrofes ou
estância de dez versos de sete sílabas, este gênero é escolhido para os mote,
onde os cantadores fecham cada estrofe com os versos as sentença dada,
sendo assim, denominada glosa, ainda existem o gênero Martelo agalopado,
ligado a Jaime de Martelo e criado por Silvino Pirauá Lima, consiste em
estrofe de dez versos, em decassílabos que obedecem a mesma ordem da
rima dos versos da Décima.
Neste momento, cabe lembrar sobre as numerosas relações e interligações
que formam os elementos da tradição comum, que quando relacionados
podem servir de inspiração aos representantes sendo eles, cordelistas ou
emboladores de coco, por exemplo, e mesmo havendo diferenças entre os
esses dois gêneros literários, a embolada é cantada em dupla e o gracejo é
um de seus elementos mais marcantes, no que diz respeito a estrutura
podemos encontrar em ambos os gêneros uso das quadras, sextilhas e as
décimas, e quanto a métrica, o uso da redondilha maior, quanto ao humor,
encontradas em ambos, no entanto na embolada de coco, o gracejo permite
em alguns casos palavras de caráter pornográfico, elemento que não ocorre
com tanta frequência nos folhetos de cordel, outra ligação bastante comum ao
cordel é utiliza-lo conjuntamente à arte do teatro de bonecos, conhecidos por
todo o mundo, os bonecos, feitos com materiais como a madeira, papelão,
tecidos de diversas cores e texturas, tintas, e enfeites como botões, rendas e
fitas coloridas, possuindo diversas nomenclaturas, no Brasil, a marionete
representada através dos bonecos e bonecas são conhecidas por diversos
nomes como mané-gostoso, joão-minhoca, briguela, joão-redondo,
mamulengo, cassimiro-coco, etc.
A possibilidade de diálogo entre a marionete, representada pelos bonecos e
bonecas, com as narrativas de cordel permitem ampliar não só a captação da
atenção do público, mas também como potencializadores dos aprendizados,
saberes e conhecimentos acerca dos patrimônios, das memórias, heranças e
tradições.
Outro elemento de grande importância é a Xilogravura, sempre presente,
tendo o papel de ilustrar as capas dos folhetos, contendo na maioria das vezes
o títulos, e, interagir com o público através da imagem, são até mesmo,
responsáveis para o primeiro passo para a transmissão da informação contida
nas narrativas de cordel, despertando o interesse do público leitor e ouvinte,
tendo nome de origem grega, que significa escrever com madeira, a
Xilogravura consiste em uma técnica feita através de processo artesanal,
passado de geração em geração, onde as matrizes de impressão são
esculpidas em madeira, posteriormente, as esculturas funcionam como
carimbos e ilustram as capas dos folhetos de cordéis, atualmente, são
utilizadas formas mais recentes para a ilustração, como a impressão de
fotografias digitais ou desenhos feito a mão ou com o uso de recursos
tecnológicos, no entanto, as práticas atuais servem para demonstrar a
adaptação às tecnologias sem a perda das heranças e tradições, atualmente, a
sobrevivência da transmissão também acontece através das apresentações
dos poetas em espaços culturais, eventos comemorativos, instituições de
ensino públicas e privadas e também da internet, sendo considerada um dos
principais meios de divulgação, contendo acervos com inúmeras fontes
literárias em folhetos do gênero de cordel embora o público não tenha contato
de forma “ao vivo” das apresentações, o que é considerado uma das funções
básicas do cordel, além de textos em formatos digitais e de livros, mudando o
suporte físico em relação ás folhinhas tradicionais, e especialmente no que diz
respeito em parte a esse estudo não seria diferente quando visitamos o Centro
Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, que popularmente, preserva até hoje
o nome de Feira de São Cristóvão, este território que permite e incentiva a
rememoração das experiências do nordeste, e desde sua fundação até a
transferência para o local atual com inauguração no dia 20 de setembro de
2003, que apesar das mudanças estruturais continua mantendo-se como
espaço para a comercialização e difusão da cultura nordestina através das
vendas dos folhetos e apresentações de contadores, cantadores e escritores
da literatura de cordel, e palco das lutas travadas por essas personalidades,
feirantes e visitantes para a manutenção da identidade, da memória, das
heranças e tradições, e mesmo constatando-se mudanças, como o interesse
das novas gerações de cordelistas em temas que interessam aos novo público-
alvo, nas numerosas formas de disseminação, do contato entre os poetas e
cantadores e o público por temas que envolvem diversos aspectos sociais,
históricos e contemporâneos acerca da política, filosofia, ciência, economia,
sendo inseridos no cordel circunstancial, desta maneira, alguns estudiosos
atribuem aos cordelistas o título de “cronistas populares da
contemporaneidade” (TEIXEIRA, 2008) , deixando em suas narrativas as
marcas de sua vivência, suas heranças, memórias, tradições e subjetividades,
entre outros aspectos, “indicam a relevância do contexto histórico/social na
compreensão dessa tradição que, sendo também uma prática cultural, possui
tanto elementos fixos quanto elementos que variam de acordo com a época e
com o local de produção do folheto”(NEMER, 2012).
Desta forma, ao longo da própria história da literatura de cordel , e do seu
percurso próprio da produção, manutenção e divulgação de narrativas
cantadas, contadas e escritas, revelam-se de um manancial de grande
importância para as discussões relacionadas às questões afroperspectivas,
temas cada vez mais recorrentes nas pesquisas, estudos e debates
acadêmicos, assim, os caminhos andarilhados até aqui e a necessidade de
enegrecer, encruzilham-se, movimentam-se e prosseguem, especialmente nas
figuras de Solano Trindade e Jarid Arraes.
A narrativa cordelística do “poeta do povo”
O “poeta do povo”, negro, afro-brasileiro, pernambucano, José Francisco
Solano Trindade, diferencia-se por produzir uma narrativa de resistência em
suas poesias. “Alicerçando-se numa busca de identidade, que não é apenas
individual ou nacional, mas solidária com todos os negros da América, a
produção poética de Solano Trindade é talvez a que, dentre todos os poetas
brasileiros, apresenta o maior número de elementos comuns com a melhor
poesia negra que já se produziu nas três Américas”. (BERND, 1992, p. 46-7).
Sua produção volta-se para a valorização da negritude, descrevendo os
sentimentos e cotidianos do ser negro na sociedade, sua ancestralidade e lutas
cotidianas, “AFROntando” ,através de suas narrativas e de instituições de
cunho politico/social, da presença de personagens extremamente importantes
em sua narrativa, como Zumbi do Palmares, dos heróis negros, suas poesias
são o reflexo da voz do ser negro, de criticidade, estes, entre outros elementos
que caracterizam suas narrativas, sendo evidentemente percebidas em suas
obras a relação entre as questões econômicas e desigualdades sociais aos
estudos da raça. “Tenho pelos homens de cultura uma grande simpatia, sejam
modernos ou acadêmicos; tenho aprendido muito com todos eles, através de
seus livros e das suas conversas, porém a minha poesia continuará com o
estilo do nosso populário, buscando no negro o ritmo; o povo, em geral, as
reivindicações sociais e políticas; e nas mulheres, em particular, o amor”.
(TRINDADE, 1981). Fazendo sempre questão de demarcar e afirmar a
identidade negra na sua produção literária, militante e dedicado, é considerado
um ícone no campo da literatura afro-brasileira.
CANTO DOS PALMARES
Mas não mataram
meu poema.
Mais forte
que todas as forças
é a Liberdade...
O opressor
não pode fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema
é cantado é cantado através dos séculos,
minha musa
esclarece as consciências,
Zumbi foi redimido...
(Trindade, 1981, p. 28)
Suas atividades políticas e intelectuais, são consideradas reflexos de sua
resistência, nesse sentido destaca-se sua atuação no campo da arte, através
da literatura, cinema, teatro e música, na organização do I Congresso Afro-
Brasileiro, em Recife no ano de 1934 e do I Congresso Afro-Brasileiro, sediado
em Salvador em 1937, na fundação da Frente Negra Pernambucana, no ano
de 1936, posteriormente, chamado de Centro de Cultura Afro-Brasileira, no ano
de 1937, mesmo não possuindo graduação em ensino superior, realizou um
trabalho de caráter intelectual, acadêmico e científico, “pois houve o
engajamento de intelectuais negros que propuseram o estudo da nacionalidade
brasileira e a pesquisa da pluralidade identitária. A realização dos congressos
em Recife e Salvador se dá justamente para a divulgação de materiais críticos
e pesquisas relacionadas ao processo de marginalização social e política dos
negros, sobretudo para construir um material intelectual respaldado na cultura
afro-brasileira” (GOMES,2017), de acordo com os estudiosos da trajetória do
“poeta do povo”, é neste momento que surge a poesia de Solano Trindade,
com temática afro-brasileira inclusa no que denominamos afroperspectiva,
pois esta apresenta “possibilidades sonoras que diferem, algumas vezes, do
ritmo e da harmonia com que uma parcela significativa de acadêmicos(as) têm
usado para compor e tocar filosofia” (NOGUERA, 2015),
Além disso, também fazem parte de suas atividades políticas, ideológicas e
culturais, a participação em atividades e grupos ligados à negritude e ao
Movimento Negro, como as exposições de seus trabalhos artísticos, a
participação do Congresso Brasileiro de Escritores, da participação na
fundação do Teatro Folclórico Brasileiro, no ano de 1944, da atuação na
fundação do Teatro Experimental do Negro, no ano de 1945, a fundação do
Teatro Popular Brasileiro (TPB), atualmente denominado Teatro Popular
Solano Trindade, além disso, publicou diversos títulos, produziu documentários
em territórios internacionais, atuou na função de professor no Museu de Arte de
São Paulo e em conferências em diversas universidades do estado de São
Paulo, entre outras ações, que o conferem a importância do “poeta do povo”.
É interessante destacar o contato do poeta do povo, com elementos da cultura
popular brasileira, como “pastoril, fandangos, bumba-meu-boi, presépio cheio
de lapinha, mamulengos e frevo. Como o seu pai dançava, nos dias de folga,
pastoril e bumba-meu-boi, levava-o para ver as danças populares e conhecer a
arte” (GOMES, 2017), sendo o mamulengo, abordado anteriormente neste
estudo, quanto sua mãe, “era analfabeta, mas sentia curiosidade pela leitura e
costumeiramente pedia a Solano para ler um trecho de lendas, das novelas,
histórias de princesas, contos de fada, cordéis. A infância do menino recifense
foi provida de histórias e experiências do imaginário popular que enriquecem o
folclore brasileiro” (GOMES, 2017).
Sua narrativa revela uma luta contra o racismo, tão presente e enraizado na
sociedade brasileira, no sentido de apresentar a valorização do negro e suas
circunstancias econômicas, políticas, sociais, culturais, históricas e ancestrais,
através do tema da diáspora, entre outros aspectos, constituindo e trilhando, a
partir das memórias e heranças um caminho de resistência, através da
produção de cordel, seu discurso representa a voz negra que canta e conta sua
história, são reflexos da sonoridade da voz do ser negro, que desta forma
assume o papel de sujeito de sua própria narrativa, tantas vezes calada,
subalternizada, estereotipadas pelas estruturas sociais dominantes, que
constroem durante séculos as narrativas da opressão, patriarcais e racistas,
comercializavam corpos negros sob o sistema da escravidão e violentavam
seus corpos através da escravização, assim, tendo em vista “a formação
historicamente construída, seus poema trazem relatos da trajetória de seus
ascendentes, são memórias, heranças e tradições, através da narrativa acerca
da resistência protagonizada pelos escravizados, o vigor da negritude se
sobressai, aludindo a personagens que reescreveram a historicidade dos afro-
brasileiros. (GOMES, 2017).
As vozes do corpo negro feminino tecidas na narrativa de cordel
DANDARA DOS PALMARES
Quem escreve a história
Lá nos livros registrada
É a branquitude cega
Do racismo idolatrada
E pra completar o quadro
A mulher é rejeitada.
(ARRAES, 2015)
A cordelista, negra, afro-brasileira, rio-grandense do norte, Jarid Arraes, tendo
vasta produção na literatura de cordel, destaca-se com a produção sobre o
tema das mulheres negras, heroínas invisibilizadas no contexto histórico e
social brasileiro, que desde o período colonial experimentam o tratamento dado
às mulheres e todo reflexos da escravização e branqueamento, tendo em vista
a violência sofrida pelos corpos femininos negros no contexto de
patriarcalismo, machismo, subalternidade, hiperssexualização e estereótipos
negativos, de seus corpos, aspectos que ainda persistem
contemporaneamente, através do racismo vivenciado pelos corpos femininos
negros e também na presença do racismo epistêmico. Em um contexto tão
adverso, as “heroínas negras” assumem uma importância ainda maior, na
medida em que persistem como símbolos de uma resistência não apenas
possível, mas sobretudo necessária – precisamente a fim de que possam surgir
novas heroínas que perpetuem a luta pela construção de um mundo mais
igualitário. (SAMYN, 2016)
Jarid Arraes canta a resistência, trazendo heranças, tradições e memórias em
perspectiva antirracista. Os cordéis sobre as mulheres negras, consideradas
heroínas por suas lutas de resistência, estão contidos também na seleção de
aproximadamente vinte cordéis publicados no livro Heroínas Negras na História
e As lendas de Dandara, onde narrados dez contos sobre a companheira de
Zumbi dos Palmares, a heroína Dandara dos Palmares. Além disso, a
cordelista também narra especialmente para o público infantil, trazendo
histórias associadas ao gênero feminino.
A voz de Jarid Arraes, assim como a de Solano Trindade, constituem uma
narrativa de resistência, AFROntando, trazendo elementos como
ancestralidade, representatividade, negritude, militância política, coletividade e
sobretudo, afirmação e valorização positiva da identidade negra, especialmente
sobre a mulher negra, a produção cordelística de Jarid Arraes, constituem
narrativas que transbordam as heranças e tradições, trazendo memórias e o
diálogo com sua postura antirracista e alinhamento às lutas do feminismo
protagonizado por mulheres negras, a favor dos direitos humanos, seus
folhetos apresentam prioritariamente a capacidade, a luta política dessas
personagens, questionam e inspiram reflexões sobre a invisibilidade das
mulheres negras na produção historiográfica que se posiciona no sentido de
negligenciar e recusar o reconhecimento não só das suas histórias em si,
mas também do papel relevante nos contextos vivenciados pelos corpos
femininos negros, dialogando e fortificando diretamente com os debates
relacionados ao empoderamento das mulheres negras, principalmente no
contexto. A representação dos corpos negros, tanto masculinos como
femininos na literatura de cordel, em quase sua totalidade, apresentam
personagens ridicularizados, estereotipados, de modo negativo, Jarid Arraes
ao posicionar-se no sentido da produção literária em cordel que reforçam os
valores da identidade negra, sobretudo da mulher negra, podendo este ser
considerado o seu diferencial, integra as raras abordagens que se contrapõem
aos discursos racistas.
Vale lembrar, que neste estudo o termo raça é aplicado no sentido sociopolítico
considerando as categorias sociais de dominação e exclusão,
academicamente, este termo pode ser substituído pelo termo etnia.
Pensando no povo mais atacado pelas relações de poderes, Solano Trindade
desprezava as preocupações com as perfeições estéticas, sua voz
representadas na produção de seus folhetos de cordéis se objetiva na
preocupação em ser entendida pela maioria do povo, o mesmo se pode dizer
de Jarid Arraes, no sentido de sua voz, representada em seus folhetos de
cordéis, contribuem para uma nova abordagem da mulher negra na literatura
de cordel, unindo a essas vozes, está o fato da implementaçãp das leis
10.639/03 e 11.645/08, que fortificaram o sentido da divulgação das narrativas
dos autores aqui citados, possibilitando que as discussões e questionamentos
presentes no produção destes e de outros cordelistas sejam problematizados e
divulgados, tomando cada vez mais visibilidade.
Os caminhos andarilhados até aqui, nos possibilitaram colaborar com a
ampliação dos laços com a sociedade entrelaçando perspectivas para que
possamos partilhar e produzir informações e saberes e conhecimentos de
forma qualitativa, entendendo que a sociedade brasileira é formada pela
diversidade de raças, que são evidentemente refletidas em nossa diversidade
cultural, as narrativas de cordel possuem papel extremamente importante para
a produção, manutenção e divulgação das memórias, heranças e tradições, no
sentido de unirem as representações culturais que valorizam as imagens do
passado através da memória coletiva dos grupos e sua preservação e
identificação com as origens, resultando em patrimônio cultural, como objetiva
o Projeto de Extensão: Identidades e Expressões Populares no Rio de Janeiro:
Territórios da Literatura de Cordel.
Em relação às reflexões afroperspectivistas, em as análises possibilitam
destaques para alguns de seus elementos principais como a construção de
conceitos “a partir de movimentos da coreografia de personagens conceituais
melanodérmicos. Neste sentido, os conceitos são escritos com os pés, com as
mãos e com a cabeça ao mesmo tempo. (NOGUERA,2015), a definição da
“comunidade/sociedade nos termos da cosmopolítica bantu: comunidade é
formada pelas pessoas que estão presentes (vivas), pelas que estão para
nascer (gerações futuras, futuridade) e pelas que já morreram
(ancestrais;ancestralidade)” (NOGUERA,2015), além de não tomar “o prefixo
“afro” somente como qualidade continental; estamos diante de um requisito
existencial, político, estético e que nada tem de essencialista ou metafísico”
(NOGUERA, 2015), utilizando da metodologia de roda, de coletividade. “A roda
é uma metodologia afroperspectista” (NOGUERA,2015).
Os trechos de cordéis citados, se referem às personalidades históricas do
herói negro Zumbi dos Palmares, especialmente, em Canto dos Palmares e da
heroína negra Dandara dos Palmares em Dandara dos Palmares, afinal de
contas, as narrativas cordelísticas, cantadas, contadas e ouvidas em rodas, as
vivências culturais a história dessas personalidades e seu merecido
protagonismo tem muito mais a nos contribuir do que os discursos racistas
cristalizados em nossa sociedade, sendo fundamentais para compreendermos
a diversidade social e cultural de nosso país, as vozes negras na literatura de
cordel agem no sentido de quebrarem paradigmas de uma narrativa histórica
única, estão vivas e movimentam-se, e neste movimento sempre
continuaremos a andarilhar, axé.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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