UM VAMPIRO NO GOIÁS
PERSONAGENS:
MULHER
VAMPIRO
BEATO
DOUTOR
SECRETÁRIO
PREFEITO
HOMEM 1
HOMEM 2
Peça em um ato
Cena 1
Estão em cena o BEATO, a MULHER e o VAMPIRO, mas os dois últimos não
devem aparecer (pode usar blecaute para isso, ou espaço vazio. Em algum
momento, o VAMPIRO começa a perseguir a MULHER pelo palco)
BEATO – (ao som de uma cítara) Para tudo há um tempo, para cada coisa há
um momento debaixo do céu: um tempo para nascer, e um tempo para morrer;
tempo para plantar, e tempo de se arrancar o que se plantou; tempo para
matar, e tempo para curar; tempo para demolir, e tempo para construir; tempo
de chorar e tempo de dançar; um tempo de amar, e um tempo de odiar; tempo
de guerra e tempo de paz.
Tudo que Deus faz dura para sempre sem que se possa adicionar nada,
nem nada suprimir. Deus procede dessa maneira para ser temido. O homem
tenta tornar humana a natureza, mas a natureza tem seu próprio equilíbrio.
Quem tem caos deve esperar paz, quem tem calmaria deve esperar caos.
Por isso nada é melhor ao homem do que alegrar-se e procurar o
equilíbrio durante sua vida. Todos têm direito de comer, beber e gozar do fruto
de seu trabalho – este é o presente que Deus deu ao homem. Mas Deus
também quer prova-los e mostrar-lhes que quanto a eles, são semelhantes aos
animais. Porque o destino dos filhos dos homens e dos filhos dos animais é o
mesmo, um mesmo fim os espera. Tanto morre um como o outro. A ambos foi
dado o mesmo sopro. A vantagem dos homens sobre o animal é nula, porque
tudo é vaidade. (Para a cítara, começa tambor, por vezes há choro de criança)
A cidade está em desequilíbrio. (A perseguição torna-se mais frenética)
Surge o vampiro, uma força da natureza que busca restaurar a
complementaridade das energias. Sua pele é dura e oca e faz o barulho de um
tambor. Ele espalha a peste entre os ratos e depois entre os recém nascidos.
Logo toda a cidade estará condenada. Homens e ratos, ambos saem de seus
esgotos e agonizam a dor da morte com o último sopro que lhes resta.
(Cessa a música. Blecaute)
Cena 2
Recepção da sala do PREFEITO. Estão em cena o SECRETÁRIO e o
DOUTOR.
DOUTOR: Tenho uma reunião com o prefeito.
SECRETÁRIO: Bom dia, Doutor. Ele está ocupado. Espera 5 minutos.
DOUTOR: Certo... A capital respondeu minha requisição?
SECRETÁRIO: Nada. Eles estão passando por um caos administrativo por
causa do rombo que a última gestão deixou no orçamento.
DOUTOR: Mas que diabo! É muita cara de pau! Caos administrativo? E qual é
a novidade? Sempre tem caos de alguma coisa. Esses burocratas estão mais
preocupado em separar canetas azuis de pretas e colocar a papelada em
ordem alfabética que em agir. E o dever que eles têm com as pessoas?
SECRETÁRIO: Não adianta se irritar, senhor. Fazem nem 2 meses que a
requisição foi enviada. Eles não devem nem ter lido.
DOUTOR: E o nosso prefeito? Já cansei de alertá-lo de que essa condição
sanitária é extremamente perigosa para a população.
SECRETÁRIO: Ele disse que faria ligações solicitando caminhões de lixo das
cidades vizinhas assim que tivesse tempo. Ele está ocupado lidando com o
caos administrativo da prefeitura.
DOUTOR: É impossível trabalhar dessa forma.
SECRETÁRIO: As coisas funcionam diferente do lugar donde você veio. Você
está aqui como estrangeiro, então é melhor se adaptar.
DOUTOR: Ah é? A cidade tem pilhas de ratos que sobem às centenas pelos
bueiros todos os dias para morrer. Você acha isso normal? Pra piorar, ninguém
se coça pra desinfestar as ruas.
SECRETÁRIO: Não! Eu não acho isso normal, mas ao invés de ficar
desesperado, você podia fazer algo que está ao nosso alcance.
(silêncio)
DOUTOR: Nós temos que falar pras pessoas redobrarem os cuidados com
higiene e evitar lugares públicos.
SECRETÁRIO: Evitar lugares públicos? Isso vai ser difícil agora.
DOUTOR: Por que?
SECRETÁRIO: Chegou ontem um beato na cidade. Ele é como um artista, vai
até a praça e conta histórias. Aqui nós damos muita importância ao que esses
homens sábios tem a dizer, principalmente em um momento de natureza em
desequilíbrio.
DOUTOR: Então a gente manda o diabo da polícia pra cima. Não há condições
de adiar os cuidados. Soube do bebê que morreu ontem?
SECRETÁRIO: Você acha que é muito sério?
DOUTOR: Não sei.
SECRETÁRIO: Já sabe o que é?
DOUTOR: Sei, mas ainda não falei em voz alta. E você, sabe?
SECRETÁRIO: Sim, é a peste.
(Luz diminui até ter blecaute)
Cena 3
Sala do PREFEITO. Estão em cena o PREFEITO e o DOUTOR.
PREFEITO: A peste!? Essa praga desse povo agora deu pra ter doença de
rico?
DOUTOR: Não existe doença de rico e doença de pobre.
PREFEITO: Mas você não disse que veio da Europa?
DOUTOR: Sim, das embarcações. Independente disso é uma doença grave e
precisamos tomar as providências profiláticas e sanitárias. Já tem um óbito
com suspeita de peste.
PREFEITO: Por que você suspeita?
DOUTOR: Foi um recém-nascido que morreu com os sintomas. Pele inchada e
azulada.
PREFEITO: Azulada? Teve isso na cidade aí do lado também. Falaram que era
vampiro.
DOUTOR: Como que eu não fui avisado disso?
PREFEITO: Você é secretário de saúde, não caçador de vampiro.
DOUTOR: Você só pode estar de sacanagem comigo…
PREFEITO: Tô, rapaz. Só esqueceram de avisar. Época de eleição é sempre
um caos por aqui.
DOUTOR: (respira fundo) Eu não vou me desesperar (pausa). Olha, a primeira
coisa que a gente tem que fazer é evitar aglomeração pública. Com força
policial se necessário.
PREFEITO: Ih! Se eu dar essa ordem vão fazer minha caveira. Tá na época da
safra. Todo mundo quer sair à noite pra se divertir
DOUTOR: Você não tá entendendo. Estamos sob risco de epidemia.
PREFEITO: Mas então não é justo a prefeitura arcar com tudo! A capital tem
que mandar verba.
DOUTOR: Já mandei um monte de requisição.
PREFEITO: Será que essa é a resposta?
DOUTOR: (com raiva, tira a carta das mãos do prefeito e lê) A cidade está em
quarentena. O exército chega amanhã pra fechar as saídas da cidade.
(Blecaute)
Cena 4
A cena se passa em uma taverna. Há homens bebendo, fazendo barulho e
contando causos. Ao fundo, um piano toca uma música de bar como o clichê
dos filmes de faroeste. HOMEM 1, HOMEM 2 e o VAMPIRO estão em cena.
HOMEM 1: Agora é minha vez de contar uma história! Eu estava jogando
sinuca com um rapaz chamado Artur...
HOMEM 2: Johann, ninguém aguenta mais essa história. Todo mundo sabe
que no final você acaba trepando com sua irmã! Que tédio dessa taverna.
HOMEM 1: Tem um homem que eu nunca vi ali. Talvez ele tenha uma história
nova pra contar.
HOMEM 2: Ei! Ei! Você ouviu nossa conversa?
VAMPIRO: Não pude deixar de ouvir.
HOMEM 1: E aí? Tem uma história pra contar?
VAMPIRO: Sobre o que?
HOMEM 2: Nosso ídolo é o Dom Juan, então qualquer história com mulheres,
sexo e dominação faz bastante sucesso.
VAMPIRO: Não sei....
HOMEM 1: Vai! Não seja tímido, é bom você se enturmar.
VAMPIRO: Tudo bem.
HOMEM 1: Massa!
VAMPIRO: Era noite e eu caçava...
HOMEM 1: Wow! Começou bem.
HOMEM 2: Para com essa mania feia de interromper as pessoas.
VAMPIRO: Foi então que achei minha companhia para a noite.
HOMEM 2: Não interrompa o homem, Johann. Deixa ele contar a história dele!
VAMPIRO: Pernas finas, seios pequenos que cabiam na boca, pescoço longo...
HOMEM 2: Nem pense nisso Johann! Nenhum comentário.
VAMPIRO: Ela andava depressa com fones de ouvido para não ouvir meu
rugido de predador.
HOMEM 2: Sei muito bem o que se passa na sua cabeça, Johann. Você não
consegue me surpreender. Nem se atreva a interrompê-lo, senão ele acaba se
irritando e desiste de contar a história.
VAMPIRO: Corri na sua frente para que me percebesse. Desgraçada! Fez que
não me enxergou.
HOMEM 1: Desgraçada!
HOMEM 2: Johann, pelo amor de Jesus e Nossa Senhora!
VAMPIRO: (histérico) Vocês vão calar a boca? (Quebra duas garrafas, a
música para de tocar) Vamos fazer o seguinte, da próxima vez que o Johann
falar você corta ele e vice versa (entrega as garrafas aos dois).
HOMEM 2: Só assim pra você ficar calado mesmo, né Johann?
VAMPIRO: A desgraçada olha através de mim e vê o cartaz de cinema no
muro. Maldita feiticeira, quero queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem
no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria
pendurá-la de cabeça para baixo, esvaída em sangue.
Elas fizeram o que sou – oco de pau podre, onde floresce aranha, cobra,
escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no espelhinho da
bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre homem, por que é então?
Se não quer, por que exibe as graças ao invés de esconder? Hei de
chupar a carótida de uma por uma. Estava quieto no meu canto, ela que
começou. Ninguém diga que sou taradinho. No fundo de cada filho de família
dorme um vampiro.
Meu corpo sobre o seu e ela chorava. Peito sobre o peito trocando calor
e seu crucifixo me queimava enquanto eu gozava, mal sentido o gosto de
sangue. Ela implorava olhando em meus olhos e eu disse: “Perdoe a
indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas.”
HOMEM 1: (batendo palmas) Bravo!
HOMEM 2 pula no HOMEM 1. A luz se apaga enquanto ouve-se o som da
briga dos dois.
Cena 5
Sala do Prefeito. Estão em cena o SECRETÁRIO e o PREFEITO
PREFEITO: No início eu até achei que essa peste ia ser uma coisa boa. Eu sou
otimista, vejo as coisas de uma perspectiva positiva. A gente teve um aumento
das remessas da União para a cidade o que é ótimo. Mas 6 meses isolados? 6
meses com o exército nas saídas da cidade feito uns agentes carcerários?
SECRETÁRIO: A epidemia não poderia ter vindo em pior hora. Os boias-frias
que vieram das outras cidade para a safra estão enfurecidos. Qualquer dia um
soldado perde a paciência, mete um tiro na testa de um e começa uma guerra
civil.
PREFEITO: Fé em Deus que a peste dizima eles antes disso!
SECRETÁRIO: Senhor, tenho mais um aviso. O doutor começou a recrutar
voluntários para formar uma força tarefa de combate a peste. Mas ele tem
chamado atenção para necessidade do alistamento ser obrigatório, pois há
muita resistência por parte dos seguidores do beato.
PREFEITO: Oh diabo! Esse beato agora tem seguidores? Aposto que ele já
está de olho na eleição. Então ele acha que pode me passar a perna? Eu não
fui reeleito sendo bobo. O que mais tá acontecendo?
SECRETÁRIO: Bem... Recebemos relatos de uma ocorrência suspeita em um
dos bares da cidade. Chamou atenção dos que estavam no local um homem
sombrio, magro e leve como se sua pele fosse a membrana de um morcego.
Tinha uma estranheza no olhar como que não estivesse acostumado a usar a
visão. Era branco, muito branco. Parecia nunca ter estado ao sol, como se
tivesse sido criado num daqueles castelos frios e úmidos da Europa, sem
nunca sair...
PREFEITO: Pai do céu! Será que é um fiscal do governo?
SECRETÁRIO: Fiscal do governo?
PREFEITO: Branco, europeu, bonito. Só pode ser isso! É uma inspeção
secreta do governo para se certificar que estou tomando os devidos cuidados
com a peste.
SECRETÁIO: Você realmente acha que...
PREFEITO: Presta atenção. Manda alguém retocar as tintas dos meios-fios. Eu
também quero bustos de ferro e de bronze. Um do governador, um da
presidenta, faz uns de gente morta famosa também.
SECRETÁRIO: Mas, senhor, todos os servidores foram deslocados para
serviços de combate à peste.
PREFEITO: Você não entende a gravidade da situação? Liga pro delegado. Ele
tem que descobrir a rotina desse fiscal. A gente não pode arriscar que ele
fiscalize um lugar sujo e com gente feia.
(SECRETÁRIO sai. Encaixaria bem aqui um solilóquio do PREFEITO)
Cena 6
Participam da cena PREFEITO, SECRETÁRIO, DOUTOR e depois o BEATO
SECRETÁRIO volta acompanhado do DOUTOR
SECRETÁRIO: Senhor, me desculpe, ele quis entrar de toda forma!
DOUTOR: O assunto é urgente.
PREFEITO: Deixa que eu me resolvo com o doutor. Vá fazer as ligações que
eu ordenei.
SECRETÁRIO sai. O diálogo dos dois progride em um crescente de energia
DOUTOR: Não se pode mais tolerar esse desrespeito a autoridade. Esse beato
praticamente coloca a cidade contra a medicina!
PREFEITO: Contra a medicina? Isso não pode. Medicina é muito importante,
eu apoio a medicina.
DOUTOR: Querem enterrar os mortos por conta própria e recusam qualquer
assistência que quebre o ritual funerário maluco deles. Um cadáver é um vetor
muito perigoso da doença. Quero nem imaginar o que pode acontecer sem a
assistência adequada.
PREFEITO: Nem eu. Eu sou à favor da assistência. Foi uma das minhas
promessas de campanha.
DOUTOR: A influência do beato na cidade é tenebrosa.
PREFEITO: (num ecstasy exagerado) Menino, você tem jeito pra política!
(Pausa, olha desconfiado) Quais são suas intenções com minha prefeitura,
rapaz?
SECRETÁRIO entra
SECRETÁRIO: Tem uma pessoa aqui que diz ter horário marcado com o
senhor.
PREFEITO: Seu comedor de kiwi desmiolado, você não tá vendo que estou
ocupado?
Entra o BEATO empurrando o SECRETÁRIO
BEATO: Desculpa interromper sua reunião, prefeito. Só vim trazer seu xarope
contra peste. Você tem que colocar debaixo da língua duas vezes... Ah! Agora
que eu vi. Me pede xarope, mas toma os comprimidos desse aí, né?
DOUTOR: O que esse homem tá fazendo aqui? Ele representa todo o
retrocesso que insiste em colocar essa cidade de volta na Idade Média!
BEATO: Você é tão ingênuo, tem um pensamento tão linear... Só consegue
pensar em progresso como destruição do passado.
DOUTOR: É o progresso que faz as pessoas melhorarem de vida, que acha
cura pra doenças e constrói hospitais.
BEATO: Constrói concreto onde estavam as plantas que usamos para produzir
nossa própria cura. Tira nossa autonomia sobre nossa saúde e faz com que a
gente pague para subir no alto de uma torre de tijolos para pegar uma
assinatura. Assinatura de quem? A sua!
DOUTOR: Não me venha com esse discurso hipócrita. Aposto que o prefeito te
pagou muito bem pra pisar nesse concretinho e trazer xarope pra ele. Com o
dinheiro do povo!
PREFEITO: Estou ofendido. Parem de discutir por mim antes que a coisa fique
pior. A gente tem que debater lá fora pra que todos os lados se sintam
incluídos no poder. Mas aqui no ar-condicionado somos todos colegas.
DOUTOR: Não em um momento crítico como esse. Não posso compactuar
com o retrocesso do ser humano, com o sofrimento e a morte.
BEATO: Não é retrocesso. É tradição, herança, conhecimento dos nossos
ancestrais que auxilia em nossas vidas!
PREFEITO: Bem vintage, né? Vintage tá na moda, sabia? (pausa) Vocês estão
ouvindo alguma coisa?
Cena 7
Entra o SECRETÁRIO
SECRETÁRIO: (sussurrando) Sou eu que estou chamando, senhor! Acharam o
tal fiscal.
PREFEITO: (gritando) Por que você tá falando baixo? Eu sou surdo desse
ouvido...
SECRETÁRIO: Porque ele já está vindo e dizem que tem um ouvido muito
bom.
PREFEITO: (sussurra um ganido de medo)
SECRETÁRIO: Eu o espero do lado de fora?
PREFEITO: Sim, senão ele vai pensar que a recepção está abandonada. Mais
uma coisa: tira a lâmpada do banheiro e coloca na escada. Todo dia cai um
naquela escada.
SECRETÁRIO: E se ele quiser ir ao banheiro?
PREFEITO: Aí você pula pela janela. Quem sabe assim a gente ganha tempo...
SECRETÁRIO sai
DOUTOR: Que história é essa?
PREFEITO: Pelo amor de Deus! Está chegando um agente do governo para
me fiscalizar. Eu sei que vocês não gostam de mim, mas, por favor, tenham
compaixão pelo ser humano. Eu roubei, mas não foi por maldade e mesmo
quando eu desvio verba, meu senso de justiça não me abandona. Se tiro
dinheiro da cultura brasileira, é pra ir pra Disney investir na cultura americana.
Ai que saudades de Miami! Foi legítima defesa. Eu não aguentava mais ver
(...)1 e não entender nada!
(Ouve-se um barulho alto. Todos na sala se olham. Entra o VAMPIRO)
1 Colocar o nome de um diretor ou montagem famosa na cidade
Cena 8
Estão em cena o PREFEITO, o VAMPIRO, o BEATO e o DOUTOR.
VAMPIRO: Seu funcionário acabou de se atirar pela janela.
PREFEITO: (ajeita postura e fala em tom sério) O que!? Não é possível... Não
são nem três horas da tarde. Isso vai ser descontado do salário dele com
certeza.
VAMPIRO: Dá pra ver que você se empenha muito na administração da
prefeitura.
BEATO: E o que achou do banheiro?
VAMPIRO: Uma imundice.
PREFEITO: (solta seu ganido)
VAMPIRO: Não descobriram minha identidade em nenhuma outra cidade que
estive.
BEATO: Não sei como. Um galego feito o senhor com certeza não poderia ser
daqui.
PREFEITO: (tentando consertar) Tem jeito de gente importante!
VAMPIRO: Fui pego de surpresa pela quarentena. Acabei ficando mais tempo
que devia na cidade.
BEATO: Andou visitando até os bares, né?
VAMPIRO: Sim.
DOUTOR: Pessoas se aglomerando em lugar fechado, bebendo no mesmo
copo....
PREFEITO: (à parte) Os desgraçados querem me ver morto e estrebuchado
nesse chão.
VAMPIRO: Isso facilita bastante meu trabalho!
PREFEITO: (à parte) Ainda é sarcástico. Eu estou acabado, arruinado; meu
coração não aguenta.
VAMPIRO: Não vou mentir. Fiquei surpreso quando o delegado me abordou e
pediu que viesse à prefeitura. Mas uma vez começado meu serviço, eu não
paro. Vocês não podem comigo.
PREFEITO: Deus me livre de querer entrar no seu caminho.
VAMPIRO: Por que me chamaram aqui então?
PREFEITO: Eu sou um homem que gosta muito de agradar.
DOUTOR: Esse daí oferece propina como quem oferece um copo de água.
BEATO: Só Jesus na causa.
PREFEITO: (gestos consternados, olhando para o BEATO e o DOUTOR) O
mal do mundo é que as pessoas só pensam em si, adoram ver o mal dos
outros.
VAMPIRO: Como assim propina?
PREFEITO: O que? Hã? Não... Não liga pra eles. Um é o primo retardado da
minha esposa e o outro coitado é funcionário público. Propina é crime que me
dá nojo. Mas uma molhadela, que tal? Leva uns cordões de ouro, que tal? (Tira
o seu cordão) Ouro é da nossa cultura, é praticamente um souvenir. Toma,
leva minha aliança.
VAMPIRO: (à parte) O idiota deve estar me confundindo com alguma
autoridade.
BEATO: Você falou alguma coisa?
VAMPIRO: Nada. Estava pensando alto. Prefeito, não quero essa tal de
propina.
PREFEITO: Que isso... Não faça desfeita.
VAMPIRO: Só quero um favor.
PREFEITO: E o que é o prefeito senão um fazedor de favores?
VAMPIRO: Preciso ir à capital (pausa). Entregar... meu relatório.
PREFEITO: (em dúvida)
VAMPIRO: De como essa cidade é maravilhosa!
DOUTOR: O que!?
PREFEITO: (à parte) Isso só pode ser uma arapuca. (Se dirige a todos falando
de modo muito artificial) Eu adoraria ajuda-lo o senhor, mas as regras não
permitem.
VAMPIRO: Podemos abrir uma exceção aqui.
DOUTOR: Você não pode estar falando sério.
VAMPIRO: Estou.
PREFEITO: (fica à vontade e abraça o VAMPIRO) Então vem aqui. A priori
seria dificílimo tirá-lo daqui, mas a gente joga um óleo, aperta um parafuso e a
máquina funciona. Se fosse outro não daria certo, ainda bem qe veio parar na
minha cidade (saindo). Eu tenho talento pra essas coisas. Tem alguém na sua
família precisando de emprego?
VAMPIRO: Na verdade, eu tenho um sobrinho que adoraria trabalhar no
hemocentro... (saem os dois)
Cena 9
Estão em cena o DOUTOR e o BEATO.
BEATO: Se a gente conta ninguém acredita.
DOUTOR: Acredita sim. Isso é super comum.
BEATO: (se dirige a plateia) É mesmo? Vocês conhecem alguém assim?
DOUTOR: Então você é primo do prefeito?
BEATO: Não, nem sei porque ele falou aquilo. Deve ter sido na hora do
desespero. E você, tá fazendo o que aqui?
DOUTOR: Passei num concurso, vim parar aqui. O secretário anterior tava com
rabo preso e resolveu tirar férias em Miami. Acabei sendo nomeado
temporariamente, mas fiquei mais tempo por causa da peste.
BEATO: Tá gostando?
DOUTOR: Você viu como são as condições, né? Se não fosse a peste, eu já
tinha voltado. Tenho uma namorada me esperando em Brasília. Já até pensei
em me valer desse esquema de sair ilegalmente da cidade que o prefeito falou.
BEATO: Sério?
DOUTOR: Sim, é muito ruim estar obrigado a ficar em um lugar em que se é
um forasteiro e não conhece ninguém. Ainda mais com você fazendo o meu
trabalho cada vez mais difícil.
BEATO: A peste tem sido muito dura com esse povo. Não é justo que você tire
o direito dele a sua própria história.
DOUTOR: O que vocês fazem é muito perigoso e pode acabar alastrando a
doença. A peste é nossa inimiga em comum, precisamos nos unir contra ela.
BEATO: Pra sua medicina, pode até ser que a gente seja um monte de
selvagem que não sabe o que faz e que têm práticas que só alastram a
doença. Mas é só isso que a gente tem de sólido! Os ricos estão contentes nos
hospitais lutando sozinhos contra sua própria peste, a morte pra eles é só um
medo, uma questão existencial. Pra maioria das pessoas, a morte é hábito, faz
parte do cotidiano. A única coisa que eles têm pra lutar contra ela é a
solidariedade de seus iguais.
DOUTOR: Eu estou fazendo o melhor que posso para atender essas pessoas,
mas eu reconheço que não é o bastante.
BEATO: Você é uma pessoa boa, Doutor.
DOUTOR: Você também. Acho que é melhor pra todo mundo se a gente entrar
em um acordo. Uma coisa que eu não entendo é esse negócio de vocês
esperarem 7 dias pra enterrar a pessoa. Que diabo é isso?
BEATO: Não fale do Diabo, Doutor. O bicho é atraído quando ouve o nome
dele.
DOUTOR: Desculpa, peguei com minha avó mania de falar isso quando estou
muito nervoso.
BEATO: Por aqui, nós temos o costume de esperar esse tempo para sepultar,
porque o desenlace da alma e do corpo acontece aos poucos e não de uma
vez. Queremos que a passagem do morto seja tranquila.
DOUTOR: Mas o cadáver tem mesmo que ficar no meio da casa?
BEATO: É o lugar mais familiar ao morto.
DOUTOR: Mas que diabo! Não tem como deixar em outro lugar com umas
fotos da família?
BEATO: O senhor praguejou de novo. Cuidado senão vai pagar pela língua.
DOUTOR: Tá bom! E então? Podemos deixar os corpos ao cuidado de
especialistas ao invés de no meio da casa?
BEATO: Vão esperar os 7 dias?
DOUTOR: É muita gente morrendo. Não tem espaço pra deixar 7 dias!
BEATO: Então não tem como.
DOUTOR: Calma. Posso pedir uma obra pra aumentar o necrotério, mas então
você para de dar xarope pras pessoas.
BEATO: Como é que você tem a pachorra de me pedir pra parar de medicar a
população?
DOUTOR: Você não é médico, não tem diploma! Se essa fosse uma cidade
séria, você já estaria preso, não ia medicar nem o diabo!
BEATO: (gritando) O que é que você tem com o Diabo? Droga! Agora até eu
falei, tá vendo?
DOUTOR: O Estado é laico e eu falo diabo quantas vezes eu quiser.
BEATO: Então fique o senhor sozinho com seus comprimidos que eu não vou
ficar aqui escutando desaforo. Vou embora!
DOUTOR: Vá com o diabo! (pega os xaropes que o BEATO havia entregue ao
prefeito) E leva essas porcarias!
BEATO: (já do lado de fora) Dá licença!
Cena 10
Participam da cena o DOUTOR, o SECRETÁRIO e o VAMPIRO
Entra o SECRETÁRIO com muletas
DOUTOR: Você é louco de pular dessa janela só porque o prefeito mandou?
Você não percebeu que esse homem não bate bem da cabeça?
SECRETÁRIO: Não foi por isso que eu pulei!
DOUTOR: O que houve então?
SECRETÁRIO: Uma coisa horrível! O homem que se passa por fiscal do
governo é na verdade...
Entra o VAMPIRO
VAMPIRO: Uma coisa horrível! Uma coisa horrível!
DOUTOR: Minha gente! Alguém vai me falar o que aconteceu?
SECRETÁRIO: (catatônico) Ele...
VAMPIRO: Estávamos andando eu e o prefeito alegremente pela cidade
fazendo molhadelas quando um grupo de populares revoltosos nos abordou.
Uns queriam sair da cidade para voltar pra suas famílias, outros só estavam
com raiva do prefeito mesmo. Então eu fiquei entre eles e o prefeito para
defende-lo. Nesse momento falaram “É disso que precisamos! Um homem de
pulso forte para governar a cidade, um verdadeiro estadista!”
DOUTOR: E então?
VAMPIRO: Eu fui aclamado pela população?
DOUTOR: E o prefeito?
VAMPIRO: Amarraram num poste e estão enchendo de paulada.
SECRETÁRIO: O que a gente faz agora?
DOUTOR: Que barbárie! Ele precisa de cuidados médicos. Vou correr lá e ver
se ainda consigo salvá-lo. (sai)
Cena 11
Estão em cena o SECRETÁRIO e o VAMPIRO
VAMPIRO: Então você queria me delatar, seu sacaninha?
SECRETÁRIO: Longe de mim, senhor. Meu trabalho é servir a prefeitura. Se o
povo lhe aclamou prefeito, sou seu empregado. Você vai assumir mesmo o
cargo?
VAMPIRO: Como que eu vou negar uma mamata dessas?
SECRETÁRIO: E o que quer que eu faça agora?
VAMPIRO: Me acha uma estilista. Eu quero um look fúnebre chocante pra
arrasar no velório do prefeito. (Entra música e blecaute)
Cena 12
No velório do PREFEITO
VAMPIRO: (fala como político, talvez querendo imitar o antigo prefeito)
Cidadãos dessa cidade que me escolheu como seu ditador e que acolhi como
minha. Estamos aqui hoje sepultando um dos maiores heróis que nossa pátria
já teve, o homem que me confiou a continuidade dos serviços prestados em
seus quase dois mandatos. Um mártir da peste e da subversão dos vândalos.
A morte dele foi dura para todos nós, mas nos mostrou o que a cidade
realmente precisava para sair do buraco: PULSO FIRME. Somos todos filhos
desse solo fértil e vamos andar de mãos dadas nessa nova jornada! Gostaria
de contar com todos, pois teremos que fazer sacrifícios para o bem geral de
nossa cidade! Ame-a ou se afogue no rio tentando deixa-la!
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