UFRJ/COPPEAD
POESIA E TRABALHOUMA ANÁLISE DO DISCURSO
ORGANIZACIONAL
Maria Ângela de Oliveira Musiello
II
MARIA ÂNGELA DE OLIVEIRA MUSIELLO
POESIA E TRABALHO
UMA ANÁLISE DO DISCURSO ORGANIZACIONAL
Dissertação de Mestradoapresentada ao Programa de Pós-Graduação e Pesquisa emAdministração da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, comoparte dos requisitos para aobtenção do Grau de Mestre emCiências.
Orientadora: Prof. Dra. ANNA MARIA CAMPOS
Rio de Janeiro 1999
III
MARIA ÂNGELA DE OLIVEIRA MUSIELLO
POESIA E TRABALHOUma análise do discurso organizacional
Dissertação submetida ao corpo docente do Institutode Pós-Graduação e Pesquisa em Administração –COPPEAD, da Universidade Federal do Rio deJaneiro – UFRJ, como parte dos requisitosnecessários à obtenção do grau de Mestre emCiências (M.Sc.).
Aprovada por:
Profa. Dra. Anna Maria CamposIMS/UERJ – Presidente da Banca
Prof. Dr. José Vieira LeitePUC/RJ
Prof. Dr. Donaldo Souza DiasUFRJ/COPPEAD
Rio de Janeiro1999
IV
Musiello, Maria Ângela de Oliveira
Poesia e Trabalho: uma análise do discurso organizacional.
Rio de Janeiro: Coppead, 1999.
Dissertação – Universidade Federal do Rio de Janeiro
1. Discurso Organizacional. 2. Organizações 3. Linguagem
V
Para Fernanda e Flávia,
a quem o Kiko, certamente, dedicaria sua tese.
VI
Agradecimentos
A Francisco Antônio de Oliveira Netto, meu irmão
Kiko, pelo amor tão grande que nos une.
A todos os que, no COPPEAD, amaram o Kiko, pelo
carinho com que me receberam.
Lúcia Viegas, André Acioli, Luciane, Karina, Pedro
Fernandes e Ziza, colegas da turma 95, estarão sempre em
meu coração, porque me compreenderam e estimularam.
A Josias Nunes Barreto, meu orientador no Banco
Central e doce amigo, agradeço a liberdade de escolher e a
confiança.
A Jussara Linhares, que me incentivou a começar.
A Mardônio Walter Sarmento e Pedro Valdenir, que,
reunindo poesia e trabalho, são a exceção que confirma a
regra.
A mudança, pela qual tanto torço, já começou no
Departamento de Gestão de Recursos Humanos do Banco
Central, onde Miriam, José Carlos, Gercy, Delor, Euro, Sérgio
SantaRita, Irene e muitos mais preocupam-se com o Homem,
tanto quanto com a Organização.
VII
Tive o privilégio de ter por orientadora Anna Maria,
que, em seu coração de estudante, reúne sabedoria e
sensibilidade, iluminando os que têm a sorte de estar à sua
volta. As reuniões, em sua casa, com os mestrandos em
processo de tese, foram momentos preciosos de
companheirismo, apoio, crescimento e descobertas.
Às minhas irmãs:
Lucinha, doutora em Letras e leituras carinhosas.
Leilinha, que sabe que navegar é preciso, e navega tão bonito.
Rosane, mestre em Antropologia e solidariedade.
Andréa, mestre em Física e encantamento.
Cátia.
Ao meu pai, sempre uma luz em meu coração.
À minha mãe, por ser bonita, corajosa, feminina, e
por ter sabido amparar-nos, quando precisava de amparo.
Admiro essa mãe doce e forte, que compreendeu que a
felicidade é uma escolha.
Ao Neno, pelas vezes em que teve que ser mãe por
mim.
Minha homenagem a todas as mães que
conseguiram elaborar suas dissertações em meio a deveres de
casas dos filhos, idas às reuniões na escola, levar crianças ao
VIII
teatro, ao circo, receber os amiguinhos, comemorar os
aniversários, orientar a empregada, tocar obras em casa, ter
boas idéias no trabalho, ler os jornais, vacinar o cachorro, pedir
mais um tempinho para o chefe, tomar banho, fazer um
macarrãozinho para o filho, conversar sobre namoros com a
filha, ligar para os amigos...
Finalmente, ao Serginho e Verônica, razão maior de
viver, minhas desculpas pelo tempo que lhes roubei da “mãe”,
e a certeza de que a “estudante” não teria conseguido realizar
seu trabalho se não estivesse tão completamente fortalecida,
abençoada e iluminada por seu amor.
9
SUMÁRIO
Página
FOLHA DE APROVAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III
FICHA CATALOGRÁFICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV
DEDICATÓRIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . V
AGRADECIMENTOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VI
SUMÁRIO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
RESUMO. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
ABSTRACT. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
INTRODUÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
CAPÍTULO 1: AS ORGANIZAÇÕES E SEU CONTEXTO
1. 1. MODERNIDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . 21
1. 2. PROGRESSIVISMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
1. 3. O PARADIGMA DOS SISTEMAS. . . . . . . . . . . . . . . . . 26
1. 4. O SURGIMENTO DA CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO 30
CAPÍTULO 2: OS JOGOS DA LINGUAGEM
2. 1. LINGUAGEM E TRABALHO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
2. 2. PARÁFRASE E PARÓDIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
2. 3. AS DIVERSAS SIGNIFICAÇÕES . . . . . . . . . . . . . . . 40
2. 4. A LINGUAGEM POÉTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
10
2. 5. A LINGUAGEM NA EMPRESA. . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
CAPÍTULO 3: UM EXERCÍCIO DE ANÁLISE DO DISCURSO DASORGANIZAÇÕES COM BASE EM CONCEITOS DA TEORIA DALITERATURA
3. 1. LINGUAGEM E MENSAGEM. . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
3. 2. NARRATIVA E ENREDO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
3. 3. PERSONAGEM. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
3. 4. ESPAÇO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
3. 5. TEMPO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
3. 6. NARRADOR E FOCO NARRATIVO. . . . . . . . . . . . . 69
3. 7. LEITOR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
CONCLUSÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
COMENTÁRIOS FINAIS E RECOMENDAÇÕES. . . . . . . . 82
BIBLIOGRAFIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
11
Resumo
Esta dissertação toma o discurso organizacional como
uma narrativa e, com os instrumentos oferecidos pela Teoria da
Literatura, procura analisar seus personagens, espaço, tempo,
narrador e leitor. Demonstra de que forma esse discurso, situando-
se no eixo da paráfrase, incentiva a repetição de modelos anteriores,
em oposição ao discurso da paródia e da poesia, eixo da crítica e da
criação.
12
Abstract
Taking the organizational discourse as a narrative, and
analysing it from Literary Theory point of view – its personages,
space, time, narrator and reader – this work shows that it is placed in
paraphrasing axis, which stimulates repetition of old patterns,
contrasting with parody and poetry discourse, situated on critical and
creative axis.
13
Então, depois de uma Era Industrial,de uma Era Atômica,
de uma Era Pós-Industrial,poderíamos entrar numa Era Poética?
... Como você imagina que poderiaser
uma Era Poética? (Décio Pignatari)
14
INTRODUÇÃO
Os discursos da organização
“O universo humano é um mundode signos, de imagens, de metáforas, deemblemas, de símbolos, de mitos e dealegorias... Todo ser humano e todasociedade humana produziram umarepresentação do mundo que lheconfere significação. A imaginaçãosimbólica busca representar para si,antes de mais nada, o ausente, oimperceptível, o indescritível... Aorganização, enquanto espaço particularda experiência humana, é um lugarpropício à emergência do simbólico”.(Chanlat, J.F.)
15
O discurso organizacional provoca um corte na vocação
natural da fala: a possibilidade de expressar diferentes visões. Em
nome da eficiência na comunicação, exige uma enunciação clara e
objetiva, quando, na verdade, sua intenção é padronizar ações e
comportamentos. Por outro lado, esse tipo de texto exige um leitor
conivente, já que expulsa da fala qualquer modo ideológico de
pensar diferente daquele que formula.
A poesia, que representa neste trabalho toda narrativa que se
situe no eixo da criação, e a paródia, representando o espaço da
crítica, são eliminadas desse discurso voltado para a padronização,
o mesmo que, paradoxalmente, exige inovações constantes e pede
a seu público que seja criativo, ousado e espontâneo. A
perplexidade provocada no leitor por essa inconsistência entre o
discurso e seu significado inibe o surgimento da crítica e o
crescimento que contribuições individuais poderiam trazer.
O discurso da paráfrase, que repete o anterior sem criticá-lo,
e do centramento, que revela um narrador incapaz de olhar em volta,
têm sido os únicos possíveis nas Organizações, porque qualquer
outro, no momento mesmo de sua enunciação, incentivaria a
reflexão, ameaçando provocar transformações. O discurso
organizacional, por situar-se em um contexto produtivista e ser
produzido por quem detém o poder, revela intenção de continuidade.
16
Este trabalho propõe-se a explicitar essa intenção de
continuidade, utilizando instrumentos oferecidos pela Teoria da
Literatura para a análise de textos e entender os mecanismos pelos
quais o discurso organizacional resguarda a continuidade e presume
a incapacidade crítica de seu leitor.
O discurso vem contribuindo para que o modelo de
organização do início do século seja repetido até os dias de hoje.
Aos grupos dominantes, com mais acesso às informações e mais
oportunidades de ampliar interpretações, não interessa a mudança.
As Organizações preferem trabalhar com modelos e
simplificações, eliminando de seu falar o símbolo, algo que
representa ou sugere outra coisa através de associação ou
convenção. Ao deixar fora da enunciação a possibilidade de criação
e crítica, elimina-se também a chance de contar com um ambiente
de trabalho que permita a inovação e incentive questionamentos.
O discurso revela e denuncia. A poesia é eliminada do
discurso organizacional porque o poema cria sua própria gramática e
seu próprio dicionário. O discurso da empresa procura limitar as
palavras, esvaziando seus significados. Não interessa à empresa
que seu ouvinte perceba outros significados no seu discurso, nem
que saiba identificar seu próprio sujeito, diferenciar entre o essencial
e o acessório, o plural e o singular.
17
Chegamos assim ao título deste trabalho: Poesia e Trabalho.
Poesia representa o eixo da criação, trabalho o eixo da repetição.
Uma encerra o eixo crítico da paródia, outro o eixo repetitivo da
paráfrase.
Considerando que o discurso das organizações não vem
sendo enfocado sob a ótica da Teoria da Literatura, trata-se de um
trabalho basicamente exploratório (Vergara, 1991), uma sondagem
documental, baseada em ampla pesquisa bibliográfica na área de
Teoria da Literatura.
Com base nessa teoria, é feito um exercício de análise do
texto organizacional. O interesse por esse tipo de análise provém de
minha formação em Letras, que me forneceu uma perspectiva crítica
de leitura, e minha preocupação com o viés utilitarista e instrumental
que a comunicação cada vez mais adquire dentro das organizações,
passando de instrumento de intercâmbio de idéias a instrumento de
manipulação dos mais fracos pelos mais fortes, inibindo o
crescimento de todos.
Cada período histórico vivido pela humanidade expressa, de
forma própria, sua visão de mundo. O discurso organizacional,
entretanto, vem sendo regido, através de toda a sua história, pela
mesma forma pragmática de olhar. A visão da Teoria da Literatura
sobre o discurso organizacional, mais do que o enfoque lingüístico
ou psicanalítico que vem sendo aplicado, permite o desvelamento de
uma tendência à repetição de modelos.
18
No primeiro capítulo da dissertação enfoco o surgimento da
administração como ciência autônoma. Nascida em plena era
progressivista, a administração profissional criou-se no paradigma
mecanicista e teve, na engenharia mecânica, sua alavanca rumo à
modernidade.
No Capítulo 2, detenho-me no jogo da linguagem – o que o
discurso revela e o que tenta ocultar. Falo da paráfrase e da paródia,
eixos opostos na forma de reproduzir um discurso, da linguagem
como trabalho e do trabalho como linguagem, na medida em que é
capaz de expressar significados. Descrevo a linguagem na empresa
e mostro de que maneira opõe-se à linguagem poética.
O Capítulo 3 toma o discurso da empresa como um discurso
literário, analisando-o em suas perspectivas de tempo, espaço,
personagens, enredo e narrador para, finalmente, falar do leitor que
vai decifrar essa enunciação.
Na Conclusão, mostro que o sujeito enunciador do discurso
organizacional não se mostra, mas fala em nome de um poder que
deseja preservar, a um leitor que supõe domesticado. Quem fala por
detrás desse discurso é uma Voz funcionalista, que já não sabe
ouvir.
Mas é por acreditar que esse discurso tende a transformar-se,
que me propus a estudá-lo. Analisá-lo criticamente é a contribuição
que pretendo estar oferecendo à mudança pela qual torço
fervorosamente: que o falar dos homens seja, cada vez mais, além
19
de expressão da Verdade, um diálogo de partes que se respeitam e
sabem que têm muito a aprender umas com as outras.
20
CAPÍTULO 1
As Organizações e seu Contexto
“Vai trabalhar, vagabundoVai trabalhar, criatura
Deus permite a todo mundoUma loucura.”
(Chico Buarque)
21
1. 1. Modernidade
Chama-se “modernidade” o período iniciado no final do séc.
XIX e vivido até hoje, cujas principais características são o
“progressivismo” e o culto à racionalidade técnica.
A partir do séc. XVII, com o “Iluminismo”, a ciência e o
raciocínio analítico-científico passaram a exercer uma influência
cada vez maior no pensamento humano. Os problemas trazidos
pela ciência e seu método empírico, entretanto, levaram a Europa do
séc. XVIII a tentar ressuscitar a razão como um processo que
incorporava, também, preocupações éticas e metafísicas. O
pensamento puramente científico era considerado uma redução da
capacidade humana.
A América, porém, insistia em reconstruir as preocupações
filosóficas de acordo com a ciência e seu método. Com o enorme
desenvolvimento tecnológico do séc. XIX, o poder do pensamento
científico foi ampliado. A ciência tornou-se, simplesmente, a
aplicação do método científico: mais do que um corpo de resultados,
o que interessava era o procedimento por meio do qual se chegava
a determinada conclusão.
Era a época do pragmatismo científico, da razão instrumental:
a aplicação reducionista da razão humana somente para fins
instrumentais, a preocupação com os meios e não com os fins, a
22
crença no progresso tecnológico. Em nome da eficiência, a
racionalidade funcional procurava organizar logicamente as tarefas
em unidades cada vez menores.
O idealismo orgânico (ou racionalidade substantiva), a
habilidade para compreender a natureza do sistema inteiro do qual é
parte uma tarefa particular, preocupando-se com os “quês” e
“porquês” da existência, não tinha vez nessa cultura da
sobrevivência e seus “comos”.
Muitas vezes, mesmo quem queria ir contra a racionalidade
técnica acabava preso a outro tema central da modernidade: a
noção de progresso, a suposição de que o que vem depois é,
necessariamente, melhor do que aquilo que o precedeu.
Além da racionalidade instrumental e do progressivismo,
tornaram-se marcas da modernidade a secularização (domínio dos
leigos, o conhecimento disponível a todos), a departamentalização
da vida, a monetarização de valores e a burocratização.
23
1.2. Progressivismo
A Era Progressista foi o período compreendido entre os anos
de 1879 e 1932 (especialmente 1900 a 1917), nos Estados Unidos,
quando, em decorrência da acelerada industrialização do final do
século, conceitos então emergentes, entre eles ordem, igualdade,
progresso, eficiência, racionalização, profissionalismo e padroniza-
ção passaram a ser estendidos à vida social.
Os reformadores perseguiam ideais de igualdade de
oportunidades para todos: redistribuição do poder econômico, direito
do voto às mulheres, proibição do trabalho infantil, legislação anti-
truste. A objetividade e racionalidade tinham como justificativa uma
política de profissionalização: a implantação da meritocracia, cujo
objetivo era acabar com as influências do tipo toma-lá-dá-cá.
A nova ordem social baseava-se na eficiência, com a
sistematização e o aprimoramento de controles, que deveriam ser
estendidos mesmo aos movimentos sociais e sistemas políticos. As
reformas anti-caos expressavam, na verdade, uma visão burocrática:
o desejo de sistematização e a procura por ordem. A nova cultura
alardeava ser capaz de, através da utilização de técnicas
apropriadas, amenizar conflitos e resolver diferenças ideológicas.
Criava-se o Profissional capaz de, com seu enorme conhecimento
24
técnico, reorganizar linhas de produção e arbitrar questões sociais.
Reduzia-se tudo apenas a uma questão de “técnica”.
O governo, apesar de utilizar uma retórica liberal, colocou-se
a serviço dos interesses comerciais, colaborando para que as
reformas acabassem sendo triunfo do conservadorismo. Mais uma
vez, o desejo de igualdade era suplantado pelo interesse de poucos
apoiado na exploração de muitos.
Os grandes modelos do conhecimento e desenvolvimento
teórico no campo da administração foram estabelecidos durante
esse período. Os procedimentos adotados pela maioria das
Organizações atuais não se desviam, significativamente, da
ideologia modernista.
O discurso encontrado na origem dos estudos das
Organizações não mudou em um século em que as transformações
eclodiram cada vez mais rapidamente. A fala das Organizações em
qualquer ponto da linha de tempo deste século situa-se no
paradigma mecanicista. Isto torna-se tanto mais desestimulante
quanto mais temos consciência de que o estudo das Organizações
está associado ao estudo das condições de vida humanas.
O conceito de cultura organizacional, ainda hoje, é
consistente com racionalidade técnica. Ao invés de situar a cultura
em um contexto maior de significado no qual as organizações estão
inseridas, o foco foi reduzido de tal forma que hoje cada organização
25
desenvolve sua própria cultura. Um conceito de grande riqueza
transformou-se, assim, rapidamente, em mais uma das inúmeras
modas gerenciais, em mais uma técnica no conjunto de ferramentas
gerenciais, e muitas empresas passaram a remodelar sua cultura
corporativa como se iniciassem um novo plano estratégico. A
psicologia, o marketing interno e as técnicas de comunicação
passaram a ser usados como instrumentos de manipulação.
Segundo Guy B. Adams (1994), o discurso sobre cultura e o
clamor por profissionalismo e rigor científico lembram pentimentos,
resquícios de pinturas anteriores que aparecem sob novas pinturas.
Os teóricos da administração, por anos, têm pintado novas versões
das teorias administrativas por cima das antigas, alegando sempre
apresentar uma visão inteiramente nova. As imagens antigas,
entretanto, continuam a aparecer através delas. Estas antigas
imagens - técnica e racionalidade - são parte da modernidade, e não
são facilmente encobertas.
26
1. 3. O Paradigma dos Sistemas
Segundo Yehouda Shenhav (1995), o culto ao paradigma do
“sistema”, na Era Progressista, foi produto de três forças: os
esforços dos engenheiros mecânicos para obterem legitimação e
prestígio nas indústrias, a retórica progressivista, que incentivava o
profissionalismo, a igualdade, a racionalização, a ordem e o
progresso, e a agitação trabalhista, percebida como uma ameaça à
ordem social e à estabilidade da economia
Os engenheiros, na maioria empregados das indústrias,
aceitavam, sem restrições, a estrutura, poder e princípios
ideológicos das corporações industriais. Para facilitar a produção
sistemática, clamavam por normas, simbologia e nomenclatura
padronizadas. A criação de sistemas e padrões possibilitaria
previsibilidade e regularidade na produção, garantindo a
continuidade do movimento.
Os sistemas eram criados em substituição ao caos e a
desordem. Conforme uma revista de engenharia da época, “as artes
estão cheias de coisas temerárias, que seria melhor padronizar”.
O controle tornou-se extremamente importante. As medições
e previsões requeriam um aumento das técnicas profissionais como
orçamentos, centralização de compras, auditoria, racionalização de
estruturas, departamentalizações. Uma rede de produção cada vez
27
mais complexa fazia-se necessária para a satisfação das
necessidades mais elementares.
Com o tempo, também a ação humana passou a ser
explicada através de leis gerais e modelos.
A retórica racional do paradigma de sistemas intensificou-se
exatamente à mesma época em que crescia a inquietação
trabalhista.
Para a engenharia mecânica, as greves eram apenas um
desajuste, que a padronização poderia curar. Sistemas racionais e
regras cada vez mais rígidas seriam a solução para a questão
trabalhista. Transformando a agitação trabalhista em uma simples
questão de método, minimizavam seu significado político e
idiotizavam seus atores.
A padronização era um processo caro, portanto acessível
somente aos grandes, que poderiam bancá-lo. À indústria,
interessava eliminar os pequenos concorrentes e aumentar o próprio
poder econômico. As grandes empresas sustentavam que a
padronização, ao aumentar a eficiência, reduzia os custos.
O poder saía da burguesia não para ser distribuído por todos,
igualmente, mas para criar uma nova burguesia, técnica. Os
engenheiros mecânicos tornaram-se os guardiães da nova ordem
social.
28
Os trabalhadores, por sua vez, tornaram-se apenas mais uma
peça da engrenagem. Decretou-se a morte do artesão. Eliminou-se
a possibilidade de criação, o caráter humano da produção. O
objetivo era apenas o lucro. Era preciso garantir que, do mesmo
conjunto de fatos, os homens chegassem a conclusões parecidas. O
homem, que já era um detalhe, deveria tornar-se um detalhe ainda
menor no processo produtivo.
A extensão de princípios técnicos às esferas sociais e
comerciais consagrou o princípio de que entidades humanas e não
humanas são intercambiáveis e podem ser submetidas, igualmente,
à manipulação da engenharia.
Formou-se a ideologia social baseada na engenharia e na
profissionalização. Desse modo, o mesmo método que mostrou ser
proveitoso em questões materiais ou técnicas deveria ser aplicado a
aspectos sociais e organizacionais.
As Organizações passaram a ser máquinas, “sistemas
técnicos” a serem estudados cientificamente e os problemas de
gerenciamento tornaram-se um ramo da engenharia mecânica.
Métodos de engenharia mecânica foram, então, aplicados à
reestruturação administrativa das empresas, marcando a origem da
administração como fenômeno distinto dentro das ciências sociais.
A administração profissionalizou-se e passou a ter
características de disciplina acadêmica, com base científica.
29
Desenhar organizações passou a ser tarefa dos engenheiros e seus
métodos cuidadosamente planejados.
30
1. 4. O surgimento da ciência da administração
Para adquirir legitimidade, a administração precisava tornar-
se científica, em um mundo que valorizava a precisão, a objetividade
e a racionalidade técnica.
A gerência científica de Frederic Taylor veio propor que
conflitos humanos fossem passíveis de solução pela engenharia.
‘Shop Manager’(1903) e ‘Principles of Scientific Management’ (1911)
são os primeiros capítulos na Teoria das Organizações.
A teoria de Taylor sobre a burocracia industrial, uma extensão
de engenharia mecânica, era uma tentativa explícita de sistematizar
a empresa e rearrumar sua divisão de trabalho.
O Departamento de Planejamento das indústrias, ocupado por
engenheiros, era um exemplo de que administrar era para poucos
entendidos. Criando nichos para eles mesmos e aumentando sua
autoridade, valorizavam-se e reconstruíam a burocracia industrial,
que no início do movimento progressista tentou-se eliminar.
A legitimidade dos sistemas organizacionais durante o
Período Progressista era sustentada por dois ideais adicionais:
igualdade e progresso (eficiência e produtividade crescentes). A
moralidade das organizações, gerentes e empregados, seria
garantida pelos sistemas, capazes de eliminar o favoritismo e o
nepotismo.
31
O discurso sobre sistema organizacional contribuiu para
emprestar às empresas um conceito de coerência e autonomia,
prescrevendo que a autoridade não mais derivava de posições
sociais privilegiadas, mas deveria, sim, fundar-se nas técnicas
necessárias para executar e coordenar tarefas interdependentes.
Não haveria homem ou máquina, operação ou sistema que
permanecesse sozinho. Cada um, para ser valorizado, deveria ser
visto como parte do todo. E todos os homens desfrutariam de uma
chance justa de sucesso.
A legitimidade, especialmente a autoridade legítima, foi o
tema central dos estudos de Weber. Sua preocupação era que
procedimentos puramente científicos e profissionais, aumentassem a
legitimidade da autoridade burocrática, o que de fato ocorreu.
A modernidade trouxe a reboque a dicotomia política e
administração: “no Republican way to build a road” (adágio). A
administração profissional, científica, encarnaria o oposto da política
democrática. Era necessário que poucos detivessem o poder e deles
emanasse a lei que submeteria todos os outros ao papel de peças
de uma engrenagem que não podia parar.
32
CAPÍTULO 2
Os Jogos da Linguagem
“Será sempre uma vantagem substituirum retrato indistinto por um muito nítido?
Não será, muitas vezes, exatamentedo indistinto que necessitamos?”
(Wittgenstein)
33
2. 1. Linguagem e Trabalho
André Jolles (1976) compara a linguagem ao trabalho,
estabelecendo que três atividades alicerçam a unidade de um grupo
de trabalho: cultivar ou produzir (camponês, agricultor); fabricar
(artesão, fabricante); interpretar (sacerdote, intérprete).
Essa divisão do trabalho, segundo Jolles, manifesta-se
claramente tanto no mundo da produção quanto no discurso.
O trabalho do camponês seria ordenar a natureza de tal forma
que o homem se convertesse em centro.
O trabalho do artesão seria mudar a ordem das coisas dadas
na natureza, de modo que deixassem de ser naturais.
O trabalho do intérprete é explicado por Jolles da seguinte
maneira:
“Para que todo esse trabalho de cultura efabricação seja possível, entretanto, énecessário, ainda, que um terceiro trabalho, ode interpretação, o dirija constantemente; quetodo o trabalho possua um sentido que permitaao homem impor-se; e que a compreensãodesse sentido conduza o trabalho, como tal, àsua plena realização. (...) Ao camponês e aoartesão veio juntar-se o sacerdote”. (1976: 22)
34
O discurso organizacional, ao, propositadamente, dispensar o
trabalho do ‘sacerdote’ que cuida de interpretá-lo, procura inibir a
criação e a liberdade, caindo no senso comum, no domínio do
cotidiano e expulsando de seu falar qualquer ambição de renovação.
“É preciso esperar o trabalho de interpretaçãodo sacerdote para que o labor se complete, emseu todo. (...) Ao interpretar o universo, osacerdote torna-o são, isto é, completo, inteiro,sannus. Mas, ao dar-lhe saúde, torna-osagrado, torna-o santo. Para que uma coisaseja coerente e persistente, importa conferir-lhe, desde o início, um sentido sagrado. (...) Oprimeiro sulco em solo inculto é sagradoporque implica a totalidade dos seguintes, acolheita futura, a fertilidade da coisa produzida.Se o objetivo é construir uma casa, coloca-se aprimeira pedra; esta ação significa e santificatodas as ações subseqüentes, porquanto aprimeira pedra contém e resume todo osignificado da casa.” (Jolles, 1976: 23)
Ao expulsar de seu falar o sentido do trabalho, a Organização
elimina a possibilidade de intervenção humana criativa, já que a
pedra fundamental de qualquer discurso é uma inteligência a
interpretá-lo, um leitor que apreenda e transforme criativamente seus
significantes de modo a conferir-lhes significado.
Ainda segundo o mesmo autor:
“Todas as forças ativas e todos os atospresentes na cultura, tudo o que nela adquireforma, deve ser consagrado por umainterpretação para que se torne “são” e possa,a todo instante, tornar-se “sagrado” a partirdessa interpretação”. (Jolles, 1976: 24)
35
A interpretação tira do discurso a característica de somatório
de palavras para conferir-lhe caráter sagrado, uma vez tocado pela
presença humana de um leitor-sacerdote a interpretá-lo.
O trabalho de interpretação vai tornar o texto um vínculo entre
homens e permitir que esses homens olhem uns para os outros
como artesãos da mesma sociedade.
Exercendo o trabalho de denominação, o homem atribui nome
e confere significado ao que foi cultivado, fabricado e interpretado,
daí a importância do estudo da relação entre linguagem e trabalho.
“A linguagem cria, é uma semente que podegerminar e, neste sentido, cultiva. (...) Sabemosdisso quando, temendo ter proferido umapalavra que produziria efeito indesejável,murmuramos ‘eu não disse nada’ e tentamosbloquear, por meio de uma ação qualquer, aforça geradora da palavra. Dá-se a isso o nomede superstição, mas é preciso entender queessa pretensa superstição esconde umasabedoria: a de que as palavras podemcumprir-se, de que existe a possibilidade deque algo se concretize, ou produza pelalinguagem. (...) Se a linguagem cultiva, elatambém fabrica; se uma palavra pode realizar-se, também pode gerar o novo, mudando aordem das coisas. A linguagem fabrica formasao realizar o ato poético, no verdadeiro sentidodesta palavra. O que a linguagem fabricou temuma existência tão sólida quanto, no domínioda vida, as fabricações do artesão.” (Jolles,1976: 25/26)
A linguagem situada no eixo da poesia (criação) é trabalho:
modifica uma ordem estabelecida, apodera-se de um dado da
natureza para transformá-lo. Como o trabalho, produz, já que ao
36
dizer uma coisa, ela “nasce”; fabrica porque poesia é artesanato;
interpreta, pois dá sentido ao universo criado.
Em oposição à linguagem como trabalho, surgem as formas
simples, que, segundo definição de Jolles, são o resultado de uma
linguagem sem a consolidação final, despida do trabalho de
artesanato e interpretação. Resultam de um labor da própria língua,
sem intervenção de um criador – poeta.
Uma das Formas Simples, é o caso, “lugar onde o universo
pode realizar-se de maneira determinada” (Jolles, 1976: 145). Nas
escolas de administração, utiliza-se o método do caso, que,
objetivando e dando autonomia a um enredo, cria disposição mental
para a imitação.
No Discurso Organizacional, existe uma convicção apenas e a
virtude objetivada é sempre confirmada de maneira absoluta. Os
personagens que existem nessa linguagem consubstanciam a
norma e são o lugar de sua realização.
“(...) mesmo se o caso parecer único em seugênero, o peso da lei e o poder de avaliação danorma serão perfeitamente expressos einterpretados nessa unicidade”. (Jolles, 1976:149)
A administração, ao incorporar um discurso científico e
mecanicista, aplicando conceitos não-humanos a questões
humanas, criou gerentes possuidores de uma visão objetiva apenas,
que dão importância apenas aos fatos. No ‘caso’, não se leva em
37
conta que o mundo real é deturpado pela subjetividade de um
contexto em permanente mudança.
38
2. 2. Paráfrase e Paródia
Ao analisar uma obra o leitor pode situá-la no eixo da paródia
ou da paráfrase, conforme a intenção do procedimento discursivo
utilizado pelo autor: ruptura ou continuidade.
A paródia, lidando com a ironia, é capaz de provocar
transformações, porque ao permitir a confrontação de novas versões
da realidade social capta proposições antes inaceitáveis. Retoma a
linguagem antiga de modo assimétrico e invertido, deslocando o eixo
inicial e denunciando a ideologia aí subjacente. É uma crítica, ao
invés de um endosso da realidade. Sua poética é a do
descentramento, aquela que se afasta da tradição, procurando nova
sintaxe e ordenando a realidade de modo diferente. Fala a
linguagem do Outro, instaurando um discurso contra-ideológico.
Emprestando um sentido irônico ao que é tradicional, desordena,
questiona e provoca reação. A paródia é o espaço da autoria.
A arte e a poesia, por seu caráter artesanal e único, situam-se
no mesmo eixo da paródia, aquele que representa uma leitura
propositadamente diferente, uma ruptura com o estabelecido.
Dialogam com o leitor e admitem mais de uma voz. Deslocam o
centro para a periferia e colocam no centro as formas marginais, em
um movimento tipicamente carnavalesco. Opõem-se,
intencionalmente, à realidade e, questionando e carnavalizando
39
modelos, provocam riso, atenuam o medo, dessacralizam e
desvelam.
A paráfrase, ao contrário, é a linguagem que, voltando-se
para textos anteriores, estabelece continuidade. É a imitação servil
de um modelo. Busca reproduzir uma escrita anterior com pequenas
alterações de superfície, lidando com a simetria. Atualiza o léxico
sem desvincular-se de uma semântica antiquada, dando lugar à
sintaxe da ideologia e do poder. É a linguagem do Mesmo, que
reproduz a realidade de maneira simétrica. Seu discurso é o do
centramento, em que o determinante é o referente externo ligado à
tradição. A linguagem da paráfrase, envolvida com a ideologia
dominante, nela se centra e a ela procura reproduzir em um universo
limitado e conhecido.
A paráfrase é o espaço da representação especular, incapaz
de estabelecer descontinuidades.
O discurso organizacional situa-se no eixo da paráfrase do
mesmo modo que a fala cotidiana, a notícia de jornal, tudo que fala
do Mesmo. Aquilo que representa criação foge desse eixo para
situar-se no eixo da paródia, não em sua acepção vulgar, de ironia
ou de retomada de um texto pelo humor, mas no sentido de uma
releitura crítica do que é dado como perfeito.
40
2. 3. As diversas significações
“Os quipos são barbantes com nós muito complicados.Encontram-se entre os incas e os pré-incas. Tratar-se-iade uma forma de escrita. Teriam servido para exprimiridéias ou grupos de idéias abstratas. Um dos maioresespecialistas dos quipos, Nordenskiöld, vê nelescálculos matemáticos, horóscopos, diversos métodos deprevisão do futuro. O problema é capital: podem existiroutras formas de registrar o pensamento além daescrita.(...) Outro exemplo, (...)a linguagem dos índiosHopi da América Central. Essa linguagem presta-semelhor do que a nossa às ciências exatas. Não contémpalavras-verbos e palavras-substantivos, mas simpalavras-acontecimentos, portanto, mais intimamenteaplicáveis ao contínuo espaço-tempo no qual agorasabemos que vivemos. Mais ainda, a palavra-acontecimento possui três modos: certeza,probabilidade, imaginação. Em vez de dizer: um homematravessava a ribeira numa canoa, o Hopi empregará oconjunto homem-ribeira-canoa em três combinaçõesdiferentes conforme se trate de um fato observado pelonarrador, contado por outrem, ou sonhado. (...) Ohomem verdadeiramente moderno, no sentido em quePaul Morand o entende e que é também o nosso,descobre que a inteligência é uma, através de estruturasdiferentes, como a necessidade de viver sob abrigo éuma, através de mil arquiteturas. E descobre que anatureza do conhecimento é múltipla, como a própriaNatureza.” (Pauwels, L. e Bergier, 1971, pp. 159/160)
De acordo com o contexto social em que se apresentam as
palavras, pode haver maior necessidade de exprimir determinados
conceitos ou diferenças que outros. Uma língua faz recortes da
realidade e, por meio dos significantes, permite a manifestação dos
conceitos relevantes para os seus falantes.
41
A linguagem, como produto do que vive socialmente,
diversifica-se quanto às suas diversas formas de expressão.
Considerando a diversidade com que as diferentes culturas se
expressam, pode-se apontar para o que é produzido e tem
significação própria no universo de determinada cultura.
A automatização da linguagem cotidiana opõe-se à
singularidade da linguagem poética. O objeto é visto pela linguagem
poética como visão e não como reconhecimento. É nesse sentido
que se diz que a linguagem poética “inaugura”, uma vez que
implanta o novo. A linguagem poética tende a anular o automatismo
da percepção.
A linguagem poética constitui um sistema lingüístico em que a
função informativa é relegada para um plano secundário. A formação
de significações marginais, que violam as associações habituais
deforma e recria o real. O texto poético é o texto incompleto, que
obriga o leitor a participar, a pensar, transformando-se em co-autor
do texto.
Para Noam Chomsky, existem dois níveis no fato lingüístico:
no nível de competência, há um domínio técnico da linguagem, e no
nível de desempenho, o falante, que já domina o nível de
competência, cria. A linguagem organizacional usa apenas o nível
de competência, excluindo a possibilidade de criação.
42
2.4. A Linguagem Poética
O homem tem a capacidade de transformar a matéria-prima,
fazendo com que os materiais, pedras ou palavras, abandonem seu
estado natural para adquirir um significado.
A transformação que a pedra sofre na escultura é diferente
daquela que a converte em escada, de modo semelhante ao que
acontece com a linguagem nas mãos do poeta, que transforma a
palavra-pedra, humanizando-a, e ao mesmo tempo tornando-a
divina.
O falante comum, por outro lado, tenta dar às palavras um
significado único, o que vai contra a natureza da palavra, que
encerra uma pluralidade de sentidos.
O poeta respeita a ambigüidade do vocábulo. No poema, a
linguagem reconquista sua natureza primitiva, mutilada pela redução
que lhe impõe a fala cotidiana. A palavra mostra suas entranhas,
seus sentidos e alusões.
Na poesia, as palavras sugerem significados impossíveis de
serem ditos pela linguagem cotidiana. Cada poema é único e a
operação poética, produto humano, é de natureza contrária à
manipulação técnica. A poesia nega o mundo da utilidade, converte
a palavra em imagens, suscita no ouvinte ou no espectador infinitas
possibilidades de sentido.
43
A técnica é uma repetição que se aperfeiçoa e vale na medida
em que é eficiente, isto é, na medida em que é um procedimento
suscetível de aplicação repetida: seu valor dura até que surja um
novo processo. A ‘técnica poética’, porém, não é transmissível
porque não é feita de receitas, mas de invenções.
Poema é o que desperta a alma e as Organizações procuram
não despertar a alma, porque lucro, para a alma, é realização
pessoal, é originalidade, é tentativa, e lucro, na empresa, decorre de
repetição, cumprimento de ordens, produtividade a qualquer custo.
O poema parte da palavra, ser significante. Os significantes,
ao serem interpretados pelo homem, mudam de natureza, adquirem
significação; aquilo que tocamos passa a possuir intencionalidade, a
caminhar em alguma direção. O mundo do homem é o mundo do
sentido e nesse mundo tudo é linguagem, porque tudo significa e
comunica.
44
2. 5. A Linguagem na Empresa
Nosso cérebro está dividido em dois lobos: o lobo esquerdo
comanda o pensamento lógico, ligado à palavra, e o lobo direito, o
pensamento analógico, responsável pelas imagens visuais, sonoras
e olfativas.
O pensamento lógico tende a dividir as coisas em partes,
trabalhando com unidades discretas (letras, números). O
pensamento analógico tende a mostrá-las em conjunto, como um
todo, considerando realidades contínuas.
O lobo esquerdo desenvolveu-se muito nos últimos milênios,
paralelamente ao desenvolvimento da capacidade verbal no homem.
Mas a revolução industrial, apesar de privilegiar a racionalidade,
permitiu o surgimento de novas linguagens analógicas, como a
fotografia, o cinema ou a televisão, trazendo, paradoxalmente, a
possibilidade de um novo impulso no desenvolvimento do lobo
direito.
A poesia, ao mostrar uma coisa mas não dizer o que ela é,
privilegia a linguagem analógica. Na escrita corrente, no entanto,
precisamos primeiro mentalizar as palavras e ligá-las por
contigüidade a coisas e fatos para podermos saber o que elas
significam.
45
As organizações produtivas tendem a orientar-se pela
racionalidade instrumental, uma vez que precisam ser eficientes e
lidar com a escassez. A ótica utilitarista, reduzindo questões da vida
à dimensão do mercado, transforma a socialização feita pela
linguagem em tipificações “adequadas” ao processo produtivo, em
detrimento de uma razão mais substantiva.
Para controlar as coisas, o homem precisa digitalizá-las -
traduzi-las para a forma de números e palavras. A digitalização é
fundamental para as operações lógicas do pensamento. E
fundamental para a ciência e a tecnologia.
Palavras são signos, reunião de significante, o sinal sonoro, e
significado, o conceito à que o sinal sonoro remete. Para Charles
Morris ( apud Pignatari, 1981), existem dois tipos de signos: signos-
para e signos-de.
Os signos-para são aqueles que conduzem para fora do
discurso e evidenciam uma relação de contigüidade entre o que se
pretende dizer e o que se entende. Privilegiam o sentido utilitarista
do discurso.
Os signos-de são aqueles que por si sós são signos de
alguma coisa, emblemas de algo que extrapola o significante.
Trabalham por similaridade entre o que se diz e o amplo leque de
leituras aberto pelo que foi dito.
46
A linguagem organizacional é ‘para’, porque elimina o trabalho
do pensamento e da decodificação individual, incentivando uma
leitura alienada da mensagem que emite, já que o exercício da
crítica não interessa ao processo de exploração que caracteriza o
trabalho.
A organização burocrática, tentando tornar-se o menos
vulnerável possível a perturbações, de modo a ganhar perenidade,
reduz o empregado apenas à dimensão de ocupante de um cargo, e
motivado apenas pelo fato de pertencer à Organização. A
linguagem, nas Organizações, é elaborada “para” esse empregado,
que deve comportar-se conforme regras, tornando-se previsível e
obediente. Não é interesse da Organização produtiva inspirar uma
interpretação humana e crítica, que possa ameaçar sua
sobrevivência.
Os manuais de redação distribuídos pelos setores
encarregados do treinamento, nas Organizações, costumam
padronizar o mesmo esquema mecânico baseado nos conceitos de
transmissor/receptor/ruído, divulgando habilidades de comunicação
calcadas em padrões parafrásticos, modelos de limitam a
informação e engessam a capacidade criativa e crítica.
47
CAPÍTULO 3
Um exercício de análise do discurso
das Organizações com base em conceitos daTeoria da Literatura
“Os livros são perigosos porquecontêm sabedoria diferente da nossa
e idéias que poderiam nos fazer duvidarda infabilidade da palavras de Deus.
E a dúvida é inimiga da fé.”(Umberto Eco)
48
3.1 Linguagem e mensagem
A análise de uma narrativa pode ser feita a partir de três
pontos-de-vista diferentes: do autor, da obra ou do leitor, de acordo
com o aspecto da obra que o leitor valoriza ou o contexto histórico
privilegia.
Na Antigüidade, os filósofos concentraram sua atenção na
análise do autor e da obra, definindo arte sob o aspecto ontológico: o
que é “ser poeta”, ou “ser poema”. Platão, preocupando-se também
com a função social do poeta e da arte, valorizava, ainda, o leitor a
quem o texto se dirigia.
O formalismo russo e o estruturalismo preocuparam-se,
essencialmente, com a obra, onde esperavam encontrar todas as
formas e funções necessárias à compreensão de um texto. A
narrativa era analisada, então, como uma sucessão de processos
mentais de desmontagem e posterior montagem do objeto estudado.
No intervalo entre a desmontagem e a remontagem, surgiam as
escolhas paradigmáticas feitas pelo construtor do texto, levando à
compreensão do processo criativo e ao desvelamento da ideologia
nele presente.
Em oposição ao formalismo e ao estruturalismo, que
valorizavam a produção da narrativa (autor e obra), a estética da
recepção e as correntes mais modernas de Teoria da Literatura
49
valorizam o efeito que o texto produz sobre o público leitor. A
literatura abandona seu caráter elitista e dirige-se ao cidadão
comum, considerado capaz de questionar o que lê e de duvidar das
verdades que lhe são apresentadas.
O ato de escrever passa a ser visto como um empenho
expressivo do autor, e não como um conjunto de regras gramaticais,
retóricas ou poéticas a serem seguidas. Cresce a consciência de
que a matéria com que a literatura lida não é, como nas outras artes,
natural, mas sim cultural. E a criação não se dá, mais, entre escritor
e texto, mas absorve um componente fundamental: o leitor. A
linguagem é vista como um produto trabalhado por homens que
vivem de acordo com uma ideologia – o escritor e seus leitores.
A narrativa moderna não deseja ser apenas uma história.
Quer ser observação, análise e, principalmente, diálogo, um texto
que possui força suficiente para provocar transformações no homem
comum, proibido de sonhar em função de um dia-a-dia massacrante,
limitado à busca de sua sobrevivência e que, por meio da leitura,
pode ter acesso a um mundo melhor, que o estimule a viver e, até, a
ser feliz.
Um texto nasce quando o homem deseja traduzir em palavras
um acontecimento interior derivado de suas observações cotidianas
do mundo e das emoções que o cercam. A linguagem poética situa-
se no eixo artístico porque nela existe um processo de
singularização: temas universais são colocados de maneira
50
particular e única, os termos da narrativa são arrumados de tal modo
que causam estranhamento e demandam a perceptibilidade do
leitor. A linguagem coloquial, ao contrário, cuida do particular e
pressupõe automatismo, uma vez que objetiva uma comunicação
imediata.
A atividade humana tende para a habituação e para a rotina.
Esta tendência reflete-se na atividade lingüística do homem e, por
isso, a linguagem coloquial caracteriza-se por uma acentuada
estereotipação. A linguagem poética, contrariamente, define-se pela
rejeição intencional dos hábitos lingüísticos e pela exploração
inabitual das virtualidades significativas da língua.
Quanto mais banal e previsível for uma mensagem, tanto
menor será a informação dessa mensagem. Em contrapartida,
quanto mais original ou imprevisível for a organização da
mensagem, tanto maior será a informação por ela proporcionada,
porque o estranhamento provoca releitura e, portanto, reflexão.
A linguagem corrente é denotativa – intelectual, cognitiva e
representativa. De forma oposta, a linguagem poética é conotativa
(afetiva ou emotiva), revela ambigüidades e possui significados
múltiplos.
O discurso organizacional, como o discurso literário, gera
ilusão, institui uma verdade própria. A literatura, no entanto, pode
representar a vida cotidiana ou criar atmosfera poética, analisar uma
ideologia ou representar um mundo ideal. Oferece ao autor diversas
51
possibilidades expressivas e pode influenciar um público amplo e
diversificado. O discurso organizacional, ao contrário, oferece,
normalmente, ao autor, apenas a possibilidade de produzir um texto
impessoal e pretensamente científico, dirigido a um público
específico, a um leitor que não questiona a “verdade” apresentada e
aceita, com passividade, a propaganda ideológica que lhe é
transmitida.
A linguagem das organizações deveria, segundo os manuais
de redação recomendados pelas empresas a seus funcionários,
caminhar para o mesmo limite para o qual tende, voluntariamente, a
linguagem científica: o chamado grau zero da linguagem, onde o
texto é só denotação. O que vai afastar a linguagem organizacional
da linguagem científica, no entanto, é a introjeção de uma ideologia
de dominação que dá ao texto o caráter ficcional próprio da
linguagem literária.
No espaço literário, repleto de símbolos, mitos e arquétipos,
as palavras recobram dimensões semânticas especiais. A linguagem
organizacional, então, apesar de aproximar-se, formalmente, da
linguagem científica, confunde-se com a linguagem literária, em
função das características ficcionais de sua mensagem. As palavras,
como no texto literário, possuem dimensões semânticas especiais,
só que as intenções do discurso organizacional não são estéticas ou
ficcionais, mas catequistas. É um discurso que pretende ocultar,
manipular e convencer.
52
A distribuição de poder na organização pode torna-se clara se
soubermos quem produz o discurso organizacional e a quem ele é
dirigido, quem é o narrador e quem é o leitor desse texto. O foco
narrativo privilegiado pelo autor vai tornar mais clara a ideologia que
permeia essa narrativa, facilitando o seu questionamento.
O universo simbólico na empresa, ao mesmo tempo em que
define sua cultura é determinado por ela. O contexto organizacional
afeta a comunicação e é, por outro lado, moldado por ela.
Analisando a denominação de seus componentes administrativos ou
a escolha dos nomes dados a determinados cargos de sua estrutura
hierárquica, podemos perceber o que a empresa espera de cada
um.
53
3.2 Narrativa e Enredo
A narrativa, normalmente, divide-se em apresentação,
complicação, clímax e desfecho. Saindo de uma situação inicial de
equilíbrio, através de transformações, redunda em uma situação final
de segundo equilíbrio.
A narrativa evoca
“um mundo concebido como real, material eespiritual, situado num espaço determinado,num tempo determinado. Nesse tempo e nesseespaço, em estreita conexão com o modo deser dos personagens, são figuradosacontecimentos dispostos numa certa ordemseqüencial e apresentados segundo técnicasnarrativas variáveis.” (Aguiar e Silva, 1979:281)
Há dois planos a serem considerados na enunciação: a
diegese, a fábula em si, e o discurso, a forma como essa história é
narrada.
Diegese é o mundo definido e representado pela narração,
são os acontecimentos considerados em si mesmos, não
trabalhados esteticamente. Diz respeito aos acontecimentos
narrados e poderia ser resumida em breves palavras ou transmitida
por outras formas de linguagem, como a música ou a pintura.
O discurso, ou narração, liga-se aos processos artísticos
utilizados pelo narrador: à forma como é apresentada no texto a
história dos acontecimentos, ao tratamento dado aos personagens,
54
espaço e tempo, ao modo como o narrador dá a conhecer ao leitor
esses acontecimentos. Não pode ser sintetizado parafrasticamente.
Diegese é, portanto, o que efetivamente se passou, e discurso
é o modo como o leitor tomou conhecimento disso.
A descrição de uma realidade trivial, a representação dos
pequenos atos da vida humana, desvalorizam a diegese. Ao
contrário, o autor que mostra, sob a lógica aparente, um absurdo
fundamental, que coloca algo de contradição em seu texto, convida
o leitor à reflexão.
O principal elemento de uma narrativa é, portanto, a trama, ou
enredo. O discurso sem trama é o discurso da alienação, da
repetição de modelos. O enredo possui, em geral, dois eixos: uma
história e a reflexão sobre ela. O segundo eixo está ausente no
discurso organizacional.
Ao desvalorizar a diegese, porém, o autor pode aprofundar a
análise de algum outro elemento da narrativa. Concentrando-se no
estudo do personagem, por exemplo, faz a narrativa assumir
algumas das funções da poesia, falando das relações humanas, do
riso, do contraste, da dúvida, da intimidade ou da complexidade. Faz
com que um personagem antes trivial passe a ter significação
simbólica.
A ausência de um enredo uniforme e sistemático pode levar,
então, o leitor, a conceder atenção à complexidade de um
personagem. O valor dominante passa, neste caso, a ser o caráter
55
alegórico das significações, anulando o propósito primário literatura,
contar uma história.
O discurso sempre reflete uma ideologia, conjunto de idéias e
valores nos quais se baseiam as relações entre os membros de uma
comunidade. Por ser este conjunto de idéias imposto pela classe
dominante, detentora dos meios de produção e comunicação, tende
a camuflar a origem real das relações sociais dominador/dominado,
legitimando, assim, as condições sociais de exploração econômica e
dominação política, que aparecem, desta forma, como verdadeiras e
justas.
A construção que o narrador faz da narrativa dá pistas sobre a
intenção do texto e pode revelar a identidade de quem detém os
meios de produção. Escrever de outro modo tem sempre um
significado político. O narrador reproduz o discurso cultural de
alguém ou de alguma camada da população, apresentando uma
problematização individual ou coletiva.
A veracidade, no texto, está ligada a um referente externo
(uma notícia de jornal, por exemplo). A verossimilhança é uma
característica ficcional e diz respeito à coerência interna do texto, à
possibilidade de que o universo criado seja real.
O texto pode preencher uma função didática ou lançar
problemas. O discurso que não apresenta característica didática,
possuindo alguma dificuldade de interpretação, é aquele que não
exclui o leitor, mas, antes, busca o leitor co-sujeito do discurso,
56
critica a narrativa tradicional. No caso do texto organizacional, a
função didática sobrepõe-se. A abordagem é simples, não contém
críticas ou questionamentos.
Cada pessoa descobre no texto ela mesma, valorizando
determinada passagem, interpretando segundo sua própria
experiência. A ironia, a seriedade, estão em nossa própria retina,
que reflete para uns o que para outros é invisível.
O exagero e o extremismo, a abordagem de situações-limite
de forma dramática e grandiloqüente, porém simplista e, geralmente,
inverossímil, caracterizam uma postura romântica, com vocação
retórica, apenas.
Essa postura, predominantemente idealizadora, pode ser
dessacralizada pela narrativa que volta a sua atenção para o feio e o
avesso. Uma estruturação mais realista chama o leitor a participar
não como mero espectador, mas como investigador. O texto é um
jogo, onde o leitor é que vai descobrir de onde vêm as vozes, e o
que dizem.
O texto poético requer a participação do leitor em sua
construção. Às vezes, por exemplo, o processo narrativo está em um
tempo verbal enquanto a história narrada encontra-se em outro. A
referência ao que se passou ou ao que virá obriga o leitor a ler e
reler. Tudo o que se diz pode ser desmentido, o que é sugerido pode
57
logo adiante ser negado. O narrador, apesar de onisciente, pode, a
qualquer momento, afirmar: que sei eu?
Mas não como em alguns textos organizacionais, onde
determinados comunicados ou regulamentos remetem a textos
anteriores, citando-os por seu número, data, etc., sem,
propositalmente, dar ao leitor qualquer referência concreta para que
possa situar-se, mais facilmente, naquele emaranhado de números e
datas. “A diretoria, em sua reunião de xx.xx.xx, decidiu revogar o §
4º, do item 3, alínea b, da Resolução nº XX, de xx.xx.xx”, pode
querer dizer que os funcionários, a partir daquele dia, não mais terão
direito, por exemplo, ao vale-refeição.
A subordinação, que divide o discurso em partes hierárquicas
– oração principal e subordinadas, é o sistema lógico-discursivo
predominante na linguagem organizacional, como que refletindo o
ambiente hierarquizado que descreve.
A coordenação, como simples justaposição de elementos
com o mesmo grau de importância, permite que as palavras ganhem
vida e que diferentes elementos do discurso sejam valorizados pelo
leitor.
As narrativas curtas costumam apresentar uma história breve,
de enredo simples e linear, com forte concentração da diegese, do
tempo e do espaço. Para que a intriga se desenvolva em um ritmo
acelerado, desaparecem as longas digressões e descrições e
também as análises exaustivas dos personagens.
58
A linguagem, nesse tipo de texto, é apenas um instrumento,
não deve desviar a atenção do leitor. Os períodos devem ser curtos
e diretos. Não interessa provocar reflexão ou questionamento.
Nessa espécie de narrativa, o humor, quando há, tem função
catártica, e não crítica: quando rimos do outro, tratado sob uma ótica
caricatural, não rimos de nós mesmos, não nos transformamos.
O texto organizacional, apesar de ser um texto sério, que não
admite humor, também lida com caricaturas: “... só temos pessoas.
É assim que chamamos a todos que trabalham conosco. Evite ao
máximo usar outros termos que são tão comuns mas que não
expressam igualdade”. (extraído de um jornal para
“empreendedores”). A identificação é a identificação do outro, essa
caricatura que se faz do empregado feliz e respeitado..
O texto organizacional, normalmente, não abre espaço para
digressões. Como no discurso literário, visto anteriormente, o que
interessa é a intriga. A narrativa é, aí, mais denotativa que
conotativa, tem estrutura linear e encadeamento lógico. A narrativa
de ficção cria um referente interno, ao passo que o discurso
organizacional apóia-se em um referente externo.
Os períodos curtos e diretos são, muitas vezes, instrumentos
para que a situação, esta sim, importante, seja colocada de forma
simples e redutora, apontando para uma só verdade.
59
3.3 Personagem
O personagem é um elemento essencial na diegese porque
torna significativas as ações que aí se desenrolam. O narrador, ao
designar ou conceituar um personagem, atribui a ele um conteúdo
psicológico, moral e sociológico.
Quanto às características atribuídas pelo autor, os
personagens podem ser lineares, aqueles definidos a partir de um
traço apenas, e complexos, caracterizados pelo narrador sob
diversos aspectos, possuidores de uma multiplicidade de traços
densos, enigmáticos, contraditórios ou rebeldes.
Os personagens complexos são aqueles capazes de
surpreender o leitor, realçando características humanas e revelando
a vida em suas paixões, ideais, qualidades e defeitos.
Quanto à sua função na diegese, os personagens podem ser,
ainda: heróis (ou protagonistas), que são os personagens principais,
e comparsas, os personagens secundários.
O herói é, normalmente, apresentado logo no início da
narrativa. Às vezes,
“torna-se menos fácil distinguir o herói, porquea sua identificação pode variar segundo asleituras plurais que o texto narrativo permita. Oconceito de herói está estreitamente ligado aoscódigos culturais, éticos e ideológicosdominantes em uma determinada épocahistórica e numa determinada sociedade... Oherói espelha os ideais de uma comunidade oude uma classe social, encarnando os valoresmorais e ideológicos que essa comunidade ou
60
essa classe valorizam”. (Aguiar e Silva, 1979:270)
O herói não põe em causa os valores aceitos pela sociedade
que representa, mas antes, oculta seus conflitos. A transgressão de
códigos é reservada ao anti-herói, o herói ao contrário, um indivíduo
que rompe com os paradigmas aceitos e exaltados pela maioria da
comunidade, valorizando o que a norma social rejeita.
Os comparsas, personagens secundários, em geral
compactuam com o protagonista, reforçando a visão do dominador.
O texto maniqueísta trabalha em dois níveis: o da idealização
sublinha os caracteres positivos, trabalha com heróis, e o da
caricatura enfatiza os dados negativos ou ridículos, apresentando
anti-heróis, de forma a torná-los indignos de consideração por parte
do leitor.
A narrativa em primeira pessoa apresenta a visão do
dominador, revelada por um personagem que detém o poder,
cabendo aos demais personagens, inclusive aos leitores, o papel de
peças de uma engrenagem produtiva.
No discurso organizacional, capitalista, ser é igual a ter, bom
significa lucro e mau, prejuízo. Esse discurso, normalmente, está em
terceira pessoa, o que implica um narrador onisciente e, portanto,
onipotente na condução do destino de seus personagens.
61
O personagem nuclear de uma narrativa de dimensão
coletiva, como a das Organizações, é um grupo social, cuja
realidade subjuga os personagens individuais.
62
3.4 Espaço
Na narrativa tradicional, a situação espaço-temporal
apresenta as condições gerais do ambiente, as características do
meio em que se vão mover os personagens e a descrição dos traços
individuais ou biográficos dos mesmos.
A descrição veicula informações sobre os personagens e
sobre os objetos, contribuindo para tornar verossímil a diegese e
apresentar elementos que ajudem a explicar os personagens e suas
ações. Além disso, a localização dos personagens dá pistas sobre
sua identidade.
Toda narrativa compreende um número maior ou menor de
descrições. A descrição, quando tem por função representar
personagens, objetos e aspectos vários do espaço geográfico e
sociológico, constitui uma pausa na narrativa, porque o texto, ao
valorizar o espaço, desvaloriza intriga e personagens. Porém, há
descrições que têm função diegética importante. Habitualmente
situadas no início da narrativa, podem indicar, por exemplo, que o
narrador pretende mostrar a ação determinante do meio sobre os
personagens.
A motivação de uma descrição está relacionada com o ponto
de vista ou focalização adotados no texto. O narrador onisciente, por
exemplo, é como um cicerone que assume a responsabilidade da
descrição, mostrando ao leitor o que entende que este deve ver e
63
apreciar. O narrador-personagem, por sua vez, tem como referentes
o espaço, os seres e as coisas que abarca com a sua visão.
Na análise do espaço descrito em uma narrativa, o uso de
dêiticos, expressões cujo referente só pode ser determinado em
relação aos interlocutores – à direita, logo abaixo, eu, tu, agora, aqui,
etc. – é uma das indicações de subjetivismo, de que estamos
lidando com um desses dois tipos de narrador: cicerone ou
personagem.
O espaço pode ser, também, além do lugar onde se dá a
ação, a distância que separa os seres e as coisas, colocando cada
um em uma perspectiva singular. A distância entre os personagens
ou objetos pode demonstrar o princípio de separação que atinge os
homens e que pode deixar de existir através, por exemplo, da
lembrança, que abre um leque de sensações, de emoções, de
experiências, ocupando o espaço antes ocupado pela distância.
Para chegar a uma definição de um objeto, por exemplo, a
distância vai permitir que possamos abstrair as características que
essencialmente definem esse objeto. É através dessa intuição que o
homem capta a realidade física ou psicológica e dela forma sua
imagem pessoal.
A análise do espaço do texto pressupõe também sua
comparação com a de outros textos, saber o que torna um texto
diferente de outros textos?
64
O texto organizacional vem sendo, através dos anos,
produzido no mesmo espaço de dominação. Os personagens dessa
narrativa movem-se sempre em um espaço funcionalista e, muitas
vezes, opressor. São separados por distâncias hierárquicas, não
transponíveis subjetivamente.
65
3.5 Tempo
Uma narrativa é inconcebível fora do fluxo do tempo, porque
sua existência é uma sucessão, linear ou não, de palavras e frases,
no plano da temporalidade.
A narrativa moderna costuma recusar a cronologia linear,
introduzindo múltiplos planos temporais que se interpenetram e se
confundem.
O tempo do discurso é de difícil medição, porque depende do
ritmo da leitura, individual. O tempo da diegese é delimitado e
caracterizado por indicações cronológicas (calendário, horas) ou
ritmos cósmicos (estações, dias e noites).
Em uma narrativa, há desencontros entre o tempo da diegese
e o tempo do discurso: anacronias ou anisocronias.
As anacronias são desencontros entre a ordem dos
acontecimentos e a ordem em que aparecem narrados no discurso.
Podem ser analepses (flash-backs) ou prolepses (flash-forwards).
Os flash-backs permitem que o autor esclareça sobre os
antecedentes de determinada situação ou personagem. O uso de
analepses revela uma concepção naturalista e positivista do mundo,
porque o autor sente necessidade de esclarecer situações atuais por
fatos acontecidos anteriormente, ou tenta mostrar as forças
determinantes que moldaram os personagens.
66
Na literatura organizacional, isto é dito de maneira explícita:
“No momento histórico de mudanças de paradigmas, nos vemos
diante da necessidade de resgatar princípios que nortearam
comportamentos e posturas, quando da fundação de nossa
empresa. Afastando-nos desses princípios, chegamos aonde
estamos: longe de alcançar nossos ideais”. (Relatório de um
consultor de empresas).
A narrativa sem qualquer recuo no tempo, por outro lado,
torna impossível a referência ao passado dos personagens ou à
memória.
As prolepses são antecipações, no plano do discurso, de um
fato ou situação que só seria narrado mais tarde.
O uso de prolepses é característica do narrador que é
também personagem da diegese, porque este organiza a narrativa
segundo um modelo explicitamente retrospectivo, e não tem
dificuldade de, a respeito de um acontecimento diegético, evocar um
outro que lhe é cronologicamente posterior.
As anisocronias aparecem quando a duração da diegese não
coincide com a duração do discurso. Podem ser representadas por
resumos ou digressões.
Resumos são fragmentos do discurso que relatam
brevemente longos períodos de tempo. São um processo
fundamental da técnica narrativa, porque não se pode relatar com
estrita fidelidade todos os pormenores da diegese.
67
Quando os resumos condensam muito fortemente a narrativa,
podem chegar a provocar uma elipse. As elipses não têm apenas a
intenção de poupar o leitor de pormenores desinteressantes.
Algumas vezes, o narrador, com a intenção de exigir a participação
do leitor, subtrai, intencionalmente, do discurso, elementos
fundamentais.
Quando, para uma diegese curta, a narrativa é longa, surgem
as digressões, que descrevem e analisam, minuciosamente, os
fatos, determinando uma diminuição do ritmo da narrativa.
Há indicadores temporais e cronológicos para situar uma
narrativa. Quando a valorização da ordem cronológica dos
acontecimentos é maior do que a importância que se dá à referência
temporal – indicação de data ou utilização de um ponto de referência
factual, como “véspera”, “dia seguinte”, etc., há um indício de que a
narrativa é ficcional.
Em anúncio veiculado pela imprensa, por exemplo, um grande
curso de idiomas diz que “é o curso mais tradicional do Rio. São
sessenta anos de modernidade permanente... no ensino de inglês
mais atual do mundo”. A indicação ficcional está clara porque a
cronologia, o correr de sessenta anos de modernidade e tradição, é
mais importante do que qualquer referência temporal explícita – por
exemplo, “desde 1939 o melhor curso do Rio”.
Quanto às formas temporais que denotam diretamente o
passado, sabemos que o uso do pretérito perfeito sugere a
68
lembrança de um momento preciso e o uso do pretérito imperfeito
sugere não-completude, como quando se diz: “A proposta inicial era
a melhor para a companhia, mas a escassez de verbas inviabilizou-
a”.
69
3.6 Narrador e Foco Narrativo
O narrador é a instância produtora do discurso narrativo e não
deve ser confundido com o autor: é uma criatura fictícia, como
qualquer personagem.
Ao analisar um texto, podemos falar de um narrador, de uma
voz narrativa, de um locutor, mas não de um autor. O relevo dado ao
texto afasta o autor e busca um locutor para a narrativa.
O intuito de uma explicação mistificadora acerca da autoria da
narrativa é dar-lhe veracidade mas, ao mesmo tempo, permitir que a
responsabilidade da focalização seja dada a outrem.
O pensamento pessoal não é o pensamento comunicado no
texto. Não se comunica o pensamento do narrador, mas “um”
pensamento.
O narrador pode estar ausente da história narrada ou
presente na narrativa sob a forma de personagem central, comparsa
ou apenas observador, que pode emitir opiniões sem influenciar os
acontecimentos narrados.
A presença de um narrador onisciente, em geral, manifesta
autoritarismo, porque esse tipo de narrador focaliza a situação de
forma panorâmica e total, eliminando as incertezas que poderiam ser
preenchidas pelo leitor.
70
Outras vezes, porém, o narrador pode problematizar
personagens e eventos diegéticos, obrigando o leitor a um esforço
para apreender o significado da narrativa, relativizando as verdades
absolutas e não estabelecendo, autoritariamente, uma interpretação.
Deixa, na narrativa, silêncios que cada leitor vai preencher segundo
sua própria leitura. Esse narrador exige um leitor ativo, que formule
perguntas e elabore respostas, colaborando na reconstituição e
interpretação dos fatos.
No discurso organizacional, o narrador é alguém que fala em
nome da Organização. O fato de estar em 1ª ou 3ª pessoa pode
revelar se esse narrador é ou não onisciente, e ainda se é conhecido
ou desconhecido.
A pessoa verbal é definida por seu lugar na interlocução. O
“eu” e o “tu“ têm caráter de unicidade, são auto-referenciais,
organizam-se a partir do sujeito. Aquele que diz eu, tem como ponto
de referência essencial seu próprio ponto de vista. Quando o
narrador fala na primeira pessoa, ele é também personagem. É um
narrador onisciente, que interfere, julga, comenta sobre personagens
e situações, dando à narrativa um tom coloquial, descontraído e
cúmplice.
“Nós” é usado quando o narrador quer dar também ao leitor a
responsabilidade sobre o que é dito, como um pacto de participação
forçado: “Considerando as recentes medidas econômicas adotadas
71
pelo governo, devemos desacelerar a produção e reduzir em 1/3 os
salários do pessoal de apoio”.
“Ele” é igual a não-pessoa. Falar de si mesmo na 3ª pessoa
é um modo de vida, porque o eu está sempre em oposição ao ele. O
uso do pronome pessoal “ele” revela uma ausência de
comprometimento na esfera dos discurso.
Quando usa a 3ª pessoa para narrar, o autor mostra um
personagem mas não o encarna, da mesma forma que um ator
pensa o seu papel. Organizações são abstrações, não respondem
dúvidas e nem assumem compromissos. As pessoas é que fazem
essas coisas. O narrador em 3a. pessoa, aliado, por exemplo, a um
verbo representativo de ordem, implica em falta de compromisso do
emissor do discurso com a ordem que dele emana. Fala de alguém
que detém o poder, tratando o ouvinte também de forma impessoal,
como um leitor hipotético: “O gerente de assuntos administrativos
comunica que estão suspensas as gratificações de produtividade”
(quem assina o comunicado é o gerente).
O tipo de discurso utilizado pelo narrador pode expressar ou
não julgamento do sujeito da enunciação sobre os fatos que narra.
Quando descreve, o narrador compõe um quadro, paralisando a
ação. Quando narra, o narrador interpreta o que descreve, revelando
a ideologia subjacente ao texto.
72
O foco narrativo é o ponto de vista a partir do qual o narrador
focaliza o texto. Compreende as relações que o narrador mantém
com a diegese e com o leitor.
Observando, por exemplo, qual o personagem cujo ponto de
vista orienta a perspectiva narrativa, o estudo do foco narrativo
permite saber quem, realmente, está vendo aquela determinada
realidade apresentada, quem é o narrador, quem é o dono da Voz.
Quando a focalização é externa, o que o narrador valoriza é a
representação dos eventos e não a sua narração ou descrição.
Na focalização interna, o narrador em primeira pessoa
intervém na história com comentários. Pode ser o protagonista ou
um comparsa.
Para que o leitor tenha a ilusão de participar no
desenvolvimento da história do protagonista, é necessário que este,
necessariamente, tenha um distanciamento cronológico e
existencial, mesmo que mínimo, do narrador.
Quando o narrador é um personagem secundário, acaba o
sentido de cumplicidade entre a história e o leitor. Surge um texto
objetivo, pois o narrador é só uma testemunha dos acontecimentos,
estranho à interioridade do protagonista.
O narrador, no texto organizacional, procede segundo
esquemas, não cria. A construção rígida e a polarização maniqueísta
são sempre dogmáticas e revelam ignorância. O democrata recusa
os esquemas e reconhece os matizes, justifica as contradições.
73
3.7 Leitor
Leitor é o receptor de um texto narrativo, uma criatura
hipotética a quem se dirige o narrador.
O leitor pode permanecer invisível e não ser sequer
mencionado, mas sua presença é denunciada quando o narrador
concede esclarecimentos acerca de um personagem ou de um
acontecimento. Pode, também, ser mencionado pelo narrador e ter,
até, estatuto de personagem concreto, caracterizado, que intervém
na intriga.
Hoje em dia, a análise literária é centrada no leitor e a
recriação da obra que faz motivado pelo ambiente cultural que o
cerca. A estética da recepção, ao contrário do formalismo e do
estruturalismo, centrados na narração, dá ao leitor o papel mais
importante na obra. Analisando um texto, podemos decifrar as vozes
que o compõe e saber com clareza o papel que ele reserva ao leitor.
A visão teológica de literatura, onde o autor era considerado deus,
deu lugar à visão antropológica, onde o texto passa a representar
uma troca humana.
Cada pessoa descobre no texto ela mesma e valoriza o que
sua experiência considera importante distinguir. O leitor lê o que
deseja ler: a leitura é um ato de liberdade. O leitor-modelo é aquele
tipo ideal que o texto não só prevê como procura criar.
74
Cada tipo de texto delimita seu próprio regime de referência.
O leitor modifica sua conduta em função das ‘regras do jogo’
propostas, implicitamente, por cada obra, realizando pactos com o
narrador, em uma comunicação que apenas a obra assegura. Sem
leitores, o texto não cumpre a sua função.
A leitura superficial de um texto mostra ao leitor o que se
encontra dito e denotado. A releitura do texto permite que o leitor
critique suas próprias não-leituras e as razões porque aconteceram.
Toda comunicação é parcial e tendenciosa, toda informação é
contraditória, toda mensagem é incoerente. O leitor médio quer
compreender a obra, e procura uma obra que reflita suas verdades.
Os textos mais simplistas apresentam ao público o que ele deseja, a
ratificação da moral e da ideologia que o cercam.
No discurso organizacional, o leitor é chamado a participar
como espectador e não como investigador. Não é ele quem decide.
O contrato, por exemplo, signo formal do acordo organizacional,
tenta definir, antecipadamente, os contratempos que venham a
ocorrer, dentro de seu prazo de validade, para a empresa. Para cada
um deles, há uma resposta definida para qual deve ser a reação do
empregado.
As mensagens emitidas por narradores autoritários são, via
de regra, redundantes e discordantes. A tendência das pessoas,
75
entretanto, é não acreditar em uma mensagem contraditória, em
uma dissociação texto/contexto.
Em geral, o leitor reconhece a narrativa artificial graças ao
“paratexto”, ou seja, as mensagens externas que rodeiam um texto.
Uma pesquisa realizada em uma organização constatou que seus
funcionários consideravam que apenas 20% de seus documentos de
divulgação possuíam total credibilidade. Isto porque o paratexto
apresentava-se, sempre conflitante com o texto.
A dominação do leitor só se faz mediante sua aceitação. É
essa aquiescência que dá, ao dominador, legitimidade. Um narrador
que possua características pessoais carismáticas, tem sua tarefa,
infelizmente, bastante facilitada.
76
CONCLUSÃO
“Não vim ao mundo para ser pedra”.
(Macunaíma)
77
Este trabalho, ao confrontar linguagem poética e linguagem
prosaica, faz uma distinção apenas teórica, que permita o exame da
natureza do discurso organizacional. Ao estudar essa narrativa não
literária, foram utilizados instrumentos de análise de textos que,
normalmente, vêm sendo usados em discursos literários.
A linguagem das organizações diferencia-se da linguagem
poética principalmente por seu caráter parafrástico, que lida com
modelos e leva o leitor a querer explicar o todo a partir do
entendimento de uma parte, apenas.
É graças à sua capacidade de expressar-se com palavras que
o homem constrói realidades, concebe um universo de significações.
A intenção da literatura de administração não é outra senão fazer
com que uns trabalhem melhor para outros, haja vista a
multiplicação de manuais que falam de “comos” sem preocupação
com os “porquês” e de passos mágicos a serem dados por aqueles
que querem prosperar em direção ao sucesso.
O discurso das organizações reflete, desta forma, o mundo
em que elas existem, baseado na representação de papéis e no
maniqueísmo. Estamos ainda sob o jugo da administração científica
do início do século. Mudaram os instrumentos, mas permanece a
lógica do controle.
O poder das organizações vem justamente de sua capacidade
de convencer o empregado de que sua sobrevivência depende da
78
sobrevivência da empresa. Segundo Muniz Sodré (1983), o poder
repressivo é introjetado pelos oprimidos, sobre quem exerce uma
certa magia.
O modelo de poder existente nas organizações cria a ilusão
de integração e neutralidade, porque padroniza. O que, em sua
origem, era uma tentativa de democratização - padronizar para
permitir acesso a todos - tornou-se, por força de interesses
mesquinhos, mais um instrumento de dominação - padronizar para
controlar.
Esse poder centra-se em seus próprios interesses. Desloca-
se, cada vez mais, das estruturas de produção para as estruturas
significativas, exercendo controle sobre a media, publicidade,
pesquisas de opinião, etc.
O discurso, como uma ação simbólica e significativa, é que
pode tornar a ideologia natural e legitimada, fazendo com que os
grupos subordinados participem de sua própria dominação.
“O problema primário da teoria na áreade organizações é entender de que forma aburocracia tem favorecido os processossociais de dominação que acabam levando àalienação do trabalhador. Para tal torna-sebásico entender a relação entre estruturasocial e formas de linguagem e discursos”.(Campos, 1997)
A tecnologia, por sua vez, criando artifícios para a repetição
de modelos, requer um tipo de gestão centrado na eficiência e no
79
rendimento. O patrão pede ao sujeito para ser criativo, e ao
profissional que se limite a reproduzir.
A própria formação do administrador contribui para transmitir-
lhe um elevado grau de especialização e etnocentrismo, inabilitando-
o para interagir.
Nenhuma narrativa é inocente. Como é impossível obter uma
sucessão objetiva de fatos e de diálogos, temos, sempre, um
discurso valorativo. Se ocorrem juízos de valor e comparações, a
presença do narrador é revelada. Mas os valores e significados
ideológicos, mesmo que não explicitamente comunicados, estão
sempre implicitamente afirmados, através do que os personagens
dizem e fazem, através dos meios sociais representados, através da
montagem dos fatos diegéticos, etc. O discurso organizacional faz
subentender que o que é, tem que ser, não pode ser diferente.
O processo de leitura do texto pode assemelhar-se, por
vezes, à leitura psicanalítica, exigindo reflexão e análise redobrada
do que não foi dito, do que houve de lacuna na enunciação.
É o leitor que pode transformar, no discurso das
Organizações, uma enunciação não poética em poesia. Cabe a ele
aprender a ler. Considerando que o discurso é feito de omissões, o
leitor deve exercitar seu espírito crítico, observando as entrelinhas,
analisando cuidadosamente o discurso que lhe é apresentado.
80
O poema é uma possibilidade aberta a qualquer um, mas não
é senão isto: possibilidade que desafia o racional através da
sensibilidade. O que dá vida e valor a essa possibilidade é o contato
de um leitor ou de um ouvinte, porque a participação é a
característica comum a todos os poemas: a leitura de um poema é
mais um passo na sua criação.
Cada leitor vai recortar a narrativa de forma diferente. O que
se procura fazer, no discurso das organizações, é lançar mão de
artifícios que ajudem a tornar a leitura o mais homogênea possível,
induzindo o leitor a uma interpretação passiva e inofensiva. O
desenvolvimento do indivíduo, normalmente, só é incentivado nas
Organizações em função da estreita relação que esse crescimento
possui com o desenvolvimento da empresa.
Se os personagens, o enredo, o espaço, o tempo e o narrador
levam o discurso organizacional ao eixo da paráfrase, é o leitor que
poderá remetê-lo ao eixo da paródia.
Na década de 20, enquanto na América surgia o discurso da
administração científica, no Brasil vivíamos a Semana de Arte
Moderna, símbolo de dois movimentos que tomaram rumos opostos:
o comunismo e o integralismo. Em oposição ao profissional, herói da
América, nascia Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, que não
representava nada além do fazer o que se deseja fazer, na hora que
convier. Ditadura e democracia misturavam-se na terra sem caráter,
sem um caráter único que a representasse, porque aceitava a
81
multiplicidade de tipos e nuances. A terra do kitsch, do riso e do
carnaval propunha sua libertação de modelos importados.
Crescíamos. Infelizmente, no pretérito imperfeito do indicativo.
O ser humano, como na América, passou a recurso a ser
competentemente administrado, a serviço da eficiência.
Temos indicações de que o discurso ainda é o mesmo do
início do século, o discurso da paráfrase. De que quem continua
falando, em nome de um poder que quer preservar, é um sujeito
oculto, que se dirige a um leitor supostamente domesticado.
Mas vimos que é o intérprete que dá sentido e coerência à
linguagem, realizando o papel de sacerdote, santificando o trabalho.
É o leitor, portanto, que pode reinaugurar o discurso das
Organizações. É o leitor que vai poder transformar uma forma
simples em poesia. O que é tocado pelo homem passa a caminhar
em alguma direção.
A linguagem da paráfrase reflete a sintaxe da ideologia e do
poder, supondo a inexistência de uma inteligência capaz de decifrá-
la.
Mas a paródia, a arte e a poesia, situadas no eixo da ruptura
e do simbólico, aguardam, são uma possibilidade à espera do
Homem, do leitor que um dia virá em busca de uma releitura de si
mesmo. Presente e futuro.
82
COMENTÁRIOS FINAIS E RECOMENDAÇÕES
83
Este trabalho não pretendeu ser uma análise exaustiva do
discurso organizacional com base em conceitos da Teoria da
Literatura. Um estudo mais aprofundado dos diversos aspectos da
narrativa seria um tema muito amplo para ser abordado de forma
suficientemente abrangente em uma tese de mestrado, haja vista
sua interdisciplinaridade.
Espera-se que o presente estudo seja capaz de sensibilizar
outros pesquisadores não só no sentido de aperfeiçoar os resultados
e conclusões aqui contidos, como também empreender outros
trabalhos que tenham por objeto a análise do discurso das
Organizações.
Como ampliação dos resultados aqui obtidos, pesquisas
futuras poderão contrapor, por exemplo, o auge da era progressista
nos Estados Unidos com a ocorrência, no Brasil, do movimento
modernista e antropofágico.
Seria bastante interessante comparar os livros São Bernardo,
de Graciliano Ramos, e Macunaíma, de Mário de Andrade. O
primeiro, uma crítica ao capitalismo, onde o próprio narrador
imaginou construir o livro “pela divisão de trabalho”. O segundo trata
a questão do trabalho de forma oposta, através dos olhos de um
herói sem nenhum caráter e preguiçoso.
Outra sugestão, ainda, seria trabalhar o discurso das
Organizações de maneira análoga ao que se faz com os mitos,
84
fábulas e contos de fadas infantis, estudando as invariantes que
remetem a uma estrutura da narrativa. São narrativas em que as
modificações porventura efetuadas são sempre superficiais,
repetindo esquemas e protótipos.
85
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