CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA – UniCEUB
INSTITUTO CEUB DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
RAFAEL FIGUEIREDO FULGÊNCIO
UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O ESTUDO DA CARACTERIZAÇÃO DA
SUSPENSÃO DE SEGURANÇA COMO MEDIDA DE EXCEÇÃO: DAS
CATEGORIAS CONCEITUAIS DE CARL SCHMITT E GIORGIO
AGAMBEN À CRÍTICA AO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO
INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PARTICULAR
Brasília
2014
RAFAEL FIGUEIREDO FULGÊNCIO
Uma contribuição para o estudo da caracterização da suspensão de
segurança como medida de exceção: das categorias conceituais de Carl
Schmitt e Giorgio Agamben à crítica ao princípio da supremacia do interesse
público sobre o particular
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-gradução em
Direito do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB,
como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre
em Direito.
Área de Concentração: Direito e Políticas Públicas
Orientador: Dr. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Brasília
2014
RAFAEL FIGUEIREDO FULGÊNCIO
Uma contribuição para o estudo da caracterização da suspensão de
segurança como medida de exceção: das categorias conceituais de Carl
Schmitt e Giorgio Agamben à crítica ao princípio da supremacia do interesse
público sobre o particular
Dissertação apresentada ao Programa Mestrado em Direito do Centro Universitário de
Brasília – UniCEUB, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito
pela Comissão julgadora composta pelos membros:
Brasília, 1º de agosto de 2014.
COMISSÃO JULGADORA
__________________________________________________
Dr. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Centro Universitário de Brasília – UniCEUB (Orientador)
__________________________________________________
Dr. José Levi Mello do Amaral Júnior
Centro Universitário de Brasília – UniCEUB
__________________________________________________
Dr. José Eduardo Sabo Paes
Universidade Católica de Brasília – UCB
AGRADECIMENTO
Ao meu orientador, professor Arnaldo Godoy, que, com toda a sua abnegada
dedicação, tornou possível a realização do presente trabalho. Agradeço, especialmente, pelo
apoio nos momentos mais difíceis, pelo qual serei eternamente grato.
Aos professores Gustavo Ribeiro, René Marc, Jefferson Carús Guedes, Frederico
Barbosa, Héctor Valverde Santana e Roberto Freitas Filho, por todo o incentivo e o
conhecimento compartilhado.
À equipe da secretaria do programa de pós-graduação, pelo pronto auxílio de sempre.
Aos meus amigos e colegas do Mestrado, que, com toda a sua generosidade, tornaram
a experiência acadêmica muito mais rica e agradável.
Aos meus pais, Maurício e Tânia, que, no fim das contas, são responsáveis por tudo na
minha vida.
À minha esposa, Clarissa, pela cumplicidade e, principalmente, pela paciência de, dia
após dia, ouvir as minhas considerações “filosóficas”. Agradeço especialmente pelo auxílio
em meu período de licença-capacitação, quando garantiu minha subsistência juntamente com
Zilá, Elvira e Paulo.
Ao meu irmão, Henrique, que é meu grande companheiro de jornada acadêmica,
sempre me ensinando muito mais do que posso retribuir.
À minha tia Daisy, que me disponibilizou toda a sua experiência acadêmica e
contribuiu de maneira preciosa nos momentos finais de elaboração do presente trabalho.
À minha prima Teresa e aos cunhados Francisco, Ana Sylvia e Luísa, que, cada um à
sua maneira, me auxiliaram no presente trabalho.
Aos amigos do DECOR, pelo companheirismo cotidiano e pela assunção da carga
extra de trabalho durante meu período de licença-capacitação. Dedico agradecimento especial
aos amigos Daniel Passos, que me indicou o caminho das pedras para o curso de Mestrado,
Daniel Farias, que sempre se dispôs a discutir o tema do presente trabalho, e Leslei Lester
Magalhães, que me auxiliou na revisão do trabalho.
À Advocacia-Geral da União, que, através da Escola da AGU, custeou parcialmente o
presente curso de Mestrado.
A tradição dos oprimidos ensina que o estado de
exceção em que vivemos é a regra. Devemos
chegar a um conceito de história que
corresponda a esse fato.
Walter Benjamin
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo principal analisar a possibilidade de enquadramento da
suspensão de segurança como medida de exceção. Trata-se, inicialmente, através das obras de
Carl Schmitt e de Giorgio Agamben, da definição da exceção como mecanismo baseado na
cisão entre a vigência formal e a eficácia da lei, que, durante o estado de exceção, vigora na
forma de sua própria suspensão, sem qualquer correlação com a realidade. A generalização da
utilização da exceção, que, na visão de Agamben, vem se transformando no paradigma de
governo das democracias contemporâneas, retira de tal instrumento a função de proteção do
ordenamento jurídico e o transforma em fator de aplicação seletiva de seus preceitos,
comprometendo, em última análise, a realização do Estado Democrático de Direito e a
proteção jurídica do indivíduo. Cuida-se, na sequência, da realização de um breve histórico da
regulamentação legal da suspensão de segurança, através do qual é apontada a inexistência de
relação direta do instituto com o regime militar pós-64, e, ainda, de uma análise da eficácia
temporal da ordem de suspensão de segurança, voltada para a demonstração da tendência, em
número considerável de casos, de se tornar definitiva a decisão proferida no incidente em
detrimento da deliberação judicial adotada no processo principal. Passa-se, então, ao estudo
da qualificação conferida à suspensão de segurança pela dogmática e pela jurisprudência
nacionais, tratando-se, de um lado, do entendimento que lhe reduz a uma medida de natureza
cautelar, destinado à sustação dos efeitos de decisões judiciais proferidas em afronta ao
ordenamento jurídico, e, de outro lado, de duas interpretações que resultam por conferir à
suspensão de segurança a natureza de medida de exceção, capaz de permitir, com fundamento
em razões de utilidade pública, a vigência de decisões administrativas em descompasso com o
ordenamento jurídico. Como resultado da referida análise, conclui-se que a suspensão de
segurança não pode ser considerada como instrumento de realização do interesse público
conforme definido no ordenamento jurídico-constitucional, mas, antes, confirmando os
prognósticos de Agamben sobre a tendência atual de concentração dos poderes
governamentais, como medida de exceção, capaz de sujeitar a eficácia dos preceitos
constantes do ordenamento jurídico a um juízo de natureza política.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Soberania. Estado de exceção. Suspensão de
Segurança. Interesse público.
ABSTRACT
This thesis aims at analyzing the possibility of categorizing “suspensão de segurança” as an
exceptional measure. Based on Carl Schmitt‟s and Giorgio Agamben‟s work, the definition of
exception as the place where the opposition between the norm and its practical realization
reaches its greatest intensity is discussed. The widespread use of exception, which, according
to Agamben, is becoming the paradigm of government in contemporary democracies,
withdraws from exception the role of protecting the legal system, transforming it into an
instrument of selective enforcement of legal prescriptions, thus undermining the realization of
democratic rule of law state. The history of the legal regulation of “suspensão de segurança”
is debated, in order to point out the inexistence of a direct relation between “suspensão de
segurança” and the dictatorship that ruled Brazil from 1964 to 1985. The issue of temporal
effectiveness of the order of “suspensão de segurança” is also analyzed, with special
attention to the trend of the effects of the decision issued in the “suspensão de segurança” to
become permanent, at the expense of the judicial decision adopted in the main proceedings.
The qualification given to “suspensão de segurança” by Brazilian jurists and case law is then
studied. On one hand, the theory that reduces “suspensão de segurança” to a writ of
prevention, aimed at suspending the effects of illegal decisions, is analyzed. On the other
hand, two theories which characterize “suspensão de segurança” as an exceptional measure,
capable of ensure the practical realization of illegal government decisions, are discussed. In
conclusion, it is stated that “suspensão de segurança” cannot be considered as an instrument
of realization of public interest as defined in law, but rather as a measure of exception, able to
subordinate the effectiveness of law to a political decision.
Keywords: Democratic rule of law state. Sovereignty. Estate of exception. Brazilian
Procedural Law. Public interest.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 8
CAPÍTULO I - ESTADO DE EXCEÇÃO COMO PARADIGMA DE GOVERNO
NA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA ..................................................................... 14
1.1 Estado de exceção em Carl Schmitt ............................................................................. 15
1.1.1 Ditadura e estado de exceção ....................................................................................... 18
1.1.2 Ditadura comissária e ditadura soberana ................................................................... 24
1.1.3 Estado de exceção e decisão soberana......................................................................... 27
1.2 A leitura de Giorgio Agamben do estado de exceção schmittiano ............................ 33
1.2.1 O paradoxo jurídico do estado de exceção .................................................................. 36
1.2.2 O estado de exceção e a revelação da vida nua ........................................................... 40
1.2.3 A generalização do estado de exceção ......................................................................... 45
CAPÍTULO II – A SUSPENSÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS CONTRÁRIAS
AO PODER PÚBLICO E A TENTATIVA DE RECONDUZIR A SUSPENSÃO
DE SEGURANÇA AO DIREITO ...................................................................................... 50
2.1 Histórico da normatização legal da suspensão de segurança .................................... 53
2.2 Eficácia da decisão concessiva da suspensão de segurança ....................................... 64
2.3 Afastamento da caracterização da suspensão de segurança como recurso .............. 71
2.4 Caracterização da suspensão de segurança como medida cautelar .......................... 77
CAPÍTULO III – A SUSPENSÃO DE SEGURANÇA COMO MEDIDA DE
EXCEÇÃO ........................................................................................................................... 86
3.1 A posição jurisprudencial sobre a natureza jurídica da suspensão de segurança
e sua caracterização como medida de exceção .................................................................. 88
3.2 A caracterização da suspensão de segurança como instrumento de realização do
interesse público e a crítica do princípio da supremacia do interesse público .............. 93
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 117
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 120
INTRODUÇÃO
O Estado de Direito tem como elemento fundamental a submissão do Poder Público à
Constituição e às leis, conferindo racionalidade e previsibilidade à atividade estatal através da
limitação da discricionariedade da autoridade administrativa. Em sua conformação ideal, não
há espaço territorial, lapso temporal ou grupo de indivíduos em relação aos quais seja possível
subtrair a vigência do ordenamento jurídico.
A técnica do estado de exceção surge juntamente com o Estado de Direito, como
contraponto à inflexibilidade do caráter geral e abstrato da lei. Tem como característica a
concessão, à máquina estatal, em momentos de crise, da possibilidade de atuar livre das
imposições do direito, que permanece suspenso. A decretação do estado de exceção dá ensejo
à implantação de um governo fora da lei, cujo parâmetro de atuação não se encontra nos
imperativos de ordem jurídico-constitucional, mas nas circunstâncias fáticas da realidade
vivenciada.
Na retórica justificativa do instituto, o estado de exceção é um dispositivo de proteção
da Constituição e do ordenamento jurídico, cuja suspensão temporária tem por finalidade a
sua própria defesa, destinando-se à transição a um estado de normalidade fática em que sua
vigência possa ser reativada. Destinar-se-ia, portanto, o estado de exceção, a evitar o
rompimento do sistema jurídico nos casos em que a aplicação de seus dispositivos seja capaz
de colocá-lo em risco, evitando a ruína do Estado e do modo de vida da comunidade
decorrente da observância de comandos jurídicos impróprios às circunstâncias enfrentadas.
Observa-se, porém, nos dia de hoje, em eventos que vão desde a criação de espaços
regidos por uma “legalidade extraordinária”, como a Prisão de Guantánamo e as zonas de
proteção estabelecidas em encontros internacionais, até a absorção das competências
legislativas pelos órgãos do Poder Executivo, uma tendência à utilização generalizada da
exceção, que deixa de funcionar como instrumento de garantia da Constituição para atuar
como fator de aplicação seletiva de seus preceitos. O resultado de tal tendência de
normalização da exceção é a progressiva dissolução do Estado de Direito, a sistemática
negativa de vigência dos direitos fundamentais e, ainda, a redução de democracia e
absolutismo a um só termo.
9
Dentro desse contexto de generalização da exceção, o presente trabalho tem por
objetivo analisar o instituto da suspensão de segurança1, regulado, atualmente, em especial,
pelo art. 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, e pelo art. 15 da Lei nº 12.016, de 7 de
agosto de 2009. O estudo visa averiguar a possibilidade de enquadramento do referido
instrumento entre as medidas de exceção que hoje fazem parte da governamentalidade dos
regimes democráticos ocidentais, verificando-se, portanto, sua capacidade de fazer com que o
Poder Público atue de forma soberana, conduzindo seus interesses à margem da legalidade.
No primeiro capítulo do presente trabalho busca-se definir os conceitos de estado de
exceção e soberania, tarefa que se realiza a partir da obra de Carl Schmitt e das críticas a ela
dirigidas mais recentemente por Giorgio Agamben. Objetiva-se, ainda, explicitar as
implicações que a generalização do uso da exceção vem trazendo para as democracias
contemporâneas, caminho que é trilhado, também, com apoio nas considerações do referido
autor italiano.
No estado de exceção schmittiano, a lei permanece formalmente em vigor, mas
inaplicável na prática. Esta suspensão da eficácia do direito se dá com a finalidade de
proteção do ordenamento jurídico, ao qual o estado de exceção se mantém vinculado como
parte integrante. A decretação do estado de exceção fica a cargo da autoridade soberana, cuja
decisão diz respeito ao reconhecimento, ou não, da existência das condições de normalidade
fática necessárias à aplicação do direito.
Agamben critica a inserção do estado de exceção e da soberania no ordenamento
jurídico, afirmando o caráter paradoxal do ato jurídico de suspensão do próprio direito. A
multiplicação das medidas de exceção, que ameaça romper os limites do espaço em que
deveria permanecer confinada e se confundir com o ordenamento jurídico da normalidade,
constituem-na, segundo Agamben, não como uma forma de proteção da Constituição, mas
como a maior ameaça que hoje paira sobre o discurso da democracia e dos direitos humanos.
No segundo capítulo, trata-se, inicialmente, de realizar um histórico da legislação de
regência da suspensão de segurança. Contrariamente ao que se costuma afirmar, o instituto
não se encontra diretamente relacionado ao regime militar pós-64. Desde sua criação pela Lei
nº 191, de 16 de janeiro de 1936, a suspensão de segurança habitou estavelmente todos os
1 Para simplificação da exposição e da leitura, utiliza-se o termo suspensão de segurança para designar todos os
incidentes voltados à suspensão de decisões contrárias ao Poder Público, sejam decisões liminares (cautelares
ou de antecipação de tutela) ou terminativas do feito (sentença e acórdãos), sejam decisões proferidas em
mandado de segurança ou em ações submetidas a procedimentos diversos. Tal opção metodológica, conforme
se verá no primeiro item do segundo capítulo do presente trabalho, se justifica pela uniformização do
procedimento e pela identidade dos efeitos das decisões proferidas nos processos da espécie.
10
regimes políticos que se sucederam na história do país, tendo adquirido seus contornos mais
amplos já na vigência da Constituição de 1988.
Passa-se, então, a uma análise da eficácia temporal da suspensão de segurança,
centrada no estudo da tendência de vir a se tornar definitiva a decisão de deferimento do
incidente, em franca contrariedade com a predição teórica, no sentido de que a ordem de
suspensão de segurança vigora temporariamente, cessando seus efeitos a partir do trânsito em
julgado da decisão proferida no processo de origem. De fato, o longo tempo de tramitação dos
feitos judiciais, conjugado com a irreversibilidade de determinadas modificações realizadas
no mundo fático a partir da permissão concedida ao Poder Público em sede de suspensão de
segurança, fazem com que, em muitos dos casos, seja impossível a realização prática da
decisão adotada ao final do processo principal, sacrificando-se definitivamente a realização do
direito aplicável à espécie.
Cuida-se, ainda, do estudo da exclusão da suspensão de segurança da classe dos
recursos, de forma a ressaltar a característica do incidente de não ensejar a revisão das
decisões judiciais proferidas nos processos originários, mas apenas a verificação da
necessidade de acautelar o interesse público nas hipóteses em que potencialmente ameaçado o
interesse público nas modalidades ordem, saúde, segurança e economia públicas previstas na
regulamentação legal do instituto.
Ao final do segundo capítulo, trata-se da tentativa realizada por parte da doutrina
pátria de reconduzir a suspensão de segurança ao ordenamento jurídico, identificando-a com
as medidas cautelares presentes em nosso processo civil. Para os defensores de tal
entendimento, a concessão da ordem de suspensão de segurança tem como requisito a
demonstração da probabilidade de vir a ser reformada ou anulada a decisão judicial contra a
qual aviado o incidente. Erige-se, portanto, como requisito para o deferimento da suspensão
de segurança, além do periculum in mora, materializado no grave risco de dano aos referidos
interesses públicos relacionados ao instituto, o fumus boni iuris, que diz respeito à
mencionada probabilidade de êxito da pretensão recursal exercitada no processo de origem.
Segundo a proposta doutrinária em referência, a suspensão de segurança perde
qualquer atributo de excepcionalidade, caracterizando-se como medida de contracautela que
não se baseia em razões políticas, mas em argumentação essencialmente jurídica. Apesar de
compatibilizar de maneira definitiva a suspensão de segurança com os postulados do Estado
de Direito, decorrendo, inclusive, de uma concepção de interesse público corretamente
assentada na Constituição de 1988, tal entendimento parece não encontrar respaldo na
11
legislação de regência do instituto, que estabelece a total desvinculação entre o julgamento
dos recursos interpostos contra a decisão no processo de origem e o julgamento da suspensão
de segurança.
No terceiro capítulo são objeto de exame duas interpretações que resultam por
conferir à suspensão de segurança a qualidade de medida de exceção. O ponto de contato
entre ambos os entendimentos reside na postulação de que o incidente em tela não comporta a
análise da juridicidade da decisão proferida na origem, sendo possível a sustação dos efeitos
de decisão judicial irretocável do ponto de vista do direito a partir da mera demonstração da
possibilidade de vir a mesma a causar grave dano aos bens jurídicos ordem, saúde, segurança
e economia públicas.
Na primeira parte deste capítulo, trata-se de posicionamento que encontra ampla
aceitação na jurisprudência pátria, que, a partir do reconhecimento de não se cuidar, em sede
de suspensão de segurança, da revisão do conteúdo jurídico da decisão de origem, confere ao
instrumento natureza político-administrativa. Tratar-se-ia, portanto, a suspensão de segurança,
de autorização excepcional conferida ao Poder Judiciário para decidir em bases extrajurídicas,
sendo possível, mediante atividade eminentemente política, excepcionar a aplicação do
ordenamento jurídico no caso concreto em análise.
A parte final do terceiro capítulo dedica-se a entendimento adotado por nossa doutrina
majoritária, que, apesar de, igualmente, afastar a possibilidade de análise da juridicidade da
decisão de origem na suspensão de segurança, pretende, ainda, vincular o incidente ao
ordenamento jurídico, caracterizando-o como instrumento vocacionado à realização do
princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. De acordo com tal
entendimento, a suspensão de segurança tem como finalidade fazer prevalecer, ainda que
temporariamente, interesses da coletividade, de reconhecida relevância constitucional, sobre
interesses individuais. Não encontraria fundamento, portanto, a ordem de suspensão de
segurança, em razões de natureza política, mas em argumentação jurídica, pertinente ao
referido princípio, atuando o incidente de suspensão de segurança como instrumento de
garantia de valores públicos cuja relevância se extrai diretamente da Constituição de 1988 e
cuja realização prática coincidiria com o interesse público.
A alternativa apresentada pela doutrina, porém, não consegue alcançar o objetivo de
vincular definitivamente a suspensão de segurança à realização dos comandos contidos no
ordenamento jurídico, servindo a argumentação que lhe sustenta, pelo contrário, para
corroborar a caracterização do instituto como medida de exceção. Isto se dá em razão da
12
proximidade entre a doutrina das razões de Estado, própria das antigas monarquias
absolutistas, e o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, através do
qual sobrevivem em nosso Direito Administrativo as práticas autoritárias dos referidos
regimes.
O exercício do poder, no Estado Democrático de Direito, encontra sua legitimidade na
realização dos direitos fundamentais, destinando-se, estes, a prevalecer nos casos de conflito
com interesses individuais ou coletivos aos quais não tenha a Constituição conferido igual
dignidade. O critério da atuação administrativa, ou, em outras palavras, a definição do
interesse público, devem ser buscados no ordenamento jurídico, afastando-se a possibilidade
de aplicação de uma regra de preferência abstrata pelos interesses coletivos em detrimento dos
interesses individuais.
A sustação dos efeitos de decisão judicial perfeita, do ponto de vista jurídico, não pode
se basear no interesse público pela simples razão de inexistir interesse público contrário à lei,
razão pela qual também não se sustenta o entendimento de que a suspensão de segurança é
medida que, apesar de não se basear em razões jurídicas, destina-se à realização do interesse
público. A salvaguarda de interesses enunciados pelo Poder Público em detrimento de
comandos judiciais adequados ao ordenamento jurídico não pode dizer respeito ao
cumprimento deste último, dando ensejo, pelo contrário, a uma situação fática que nega a
imperatividade de seus comandos.
A confirmação da hipótese de que a suspensão de segurança é utilizada como medida
de exceção pode nos fornecer uma nova e privilegiada perspectiva de análise do sistema
jurídico que vigora em nosso país, ensejando o reconhecimento do exercício, pelas
autoridades governamentais brasileiras, de um poder que não encontra fundamento na ordem
jurídica. Tratar-se-ia, no caso, da fragilização do controle jurídico das decisões do Poder
Público, permanecendo a realização prática do ordenamento jurídico dependente de um
critério político, relativizando-se a efetividade, inclusive, dos direitos fundamentais sobre os
quais está fundada a Constituição de 1988.
O presente trabalho, portanto, para além da simples delimitação dos contornos do
instituto da suspensão de segurança, diz respeito à confirmação dos prognósticos de Agamben
de que a legalidade extraordinária será a regra de nosso tempo, utilizando-se, cada vez mais,
as democracias contemporâneas, do estado de exceção como técnica de governo. A invocação
de um cenário de crise permanente, que tem como resultado tornar regra e exceção
13
indiscerníveis, faz com que o homem permaneça abandonado a uma normatividade vazia,
exposto a um poder soberano ao qual não pode opor qualquer resistência.
14
CAPÍTULO I - ESTADO DE EXCEÇÃO COMO PARADIGMA DE GOVERNO NA
DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA
O estado de exceção é um conceito limítrofe, que se encontra na fronteira entre o
jurídico e o político, tendo sido muitas vezes negligenciado o seu estudo pelas Ciências
Jurídicas em razão da compreensão de não se tratar de um problema de teoria do direito. A
análise do tema será desenvolvida no presente trabalho com base, especialmente, na doutrina
de Carl Schmitt, que contribuiu decisivamente para a conceituação do estado de exceção em
duas de suas principais obras, A Ditadura e Teologia Política, e de Giorgio Agamben, que, a
partir da releitura da teoria schmittiana da soberania e do estado de exceção, nos propõe uma
nova visão sobre as práticas jurídico-políticas que caracterizam as democracias
contemporâneas.
A parte inicial deste primeiro capítulo tem como objetivo estabelecer o conceito de
estado de exceção na teoria de Schmitt, buscando-se esclarecer como se dá o funcionamento
prático da exceção, baseado na separação entre a vigência formal e a eficácia do direito. A
suspensão da lei no estado de exceção, para Schmitt, é uma forma de aplicação do direito,
destinando-se à garantia da ordem jurídica em momentos de crise; sua vigência será sempre
temporária, limitada à tarefa de criação ou restabelecimento das condições fáticas necessárias
à aplicação prática da Constituição legítima.
Na parte final do capítulo trata-se de indicar, com base nas considerações de
Agamben, quais as reais consequências para o sistema jurídico democrático decorrentes da
possibilidade de suspensão da eficácia do direito. O autor defende a desvinculação entre
estado de exceção e ordenamento jurídico, apontando a generalização das medidas de exceção
como a maior ameaça ao discurso dos direitos humanos professado pelos países ocidentais
nos dias de hoje.
Na visão de Agamben, o lugar do estado de exceção nas práticas governamentais
contemporâneas tende a se confundir, cada vez mais, com o lugar da normalidade, estando em
jogo a instituição de um estado de exceção permanente que, ao contrário de proteger a
democracia, ameaça torná-la indistinguível de seu oposto e esvaziar por completo a ideia de
Constituição. A dependência funcional do ordenamento jurídico em relação à anomia, que, no
fim das contas, se encontra em sua origem, põe em questão a possibilidade mesma da
15
existência do direito, cuja realização permanece intrinsecamente dependente de uma vontade
soberana que se apresenta como sua própria negação.
1.1 Estado de exceção em Carl Schmitt
Nascido em 1888, em Plettenberg, na região alemã da Vestfália, Carl Schmitt foi um
pensador católico conservador que se opôs firmemente ao pensamento jurídico liberal,
positivista e jusnaturalista de seu tempo.2 Até sua adesão ao NSDAP
3, em 1933, foi
adversário do movimento nazista. Em sua obra Legalidade e Legitimidade4, publicada no ano
anterior, o teórico ainda denunciava o risco de grupos radicais, nazistas ou comunistas,
através de meios legais, tomarem o poder na Alemanha em crise daquele tempo e destruírem a
Constituição de Weimar.5
Apesar da ambiguidade que marcou sua relação com o regime nazista, a relevância
da atuação de Schmitt na construção teórica do direito do Terceiro Reich foi tal que o melhor
qualificativo que hoje lhe pode ser atribuído é o de oportunista.6 A interpretação mais comum
da biografia do autor o aponta como um dos responsáveis pela barbárie nazista, acusando-o
de, na condição de “jurista de Hitler”, ter contribuído diretamente para a expansão do poder
dos nazistas e a perseguição dos indivíduos considerados nocivos ao regime.7
A real adesão de Schmitt à doutrina nazista foi objeto de constante questionamento
de seus opositores no partido, que o consideravam excessivamente reacionário para o projeto
em curso. Apesar da tentativa de adaptação de sua obra, com a inserção de elementos
antissemitas, e, ainda, da defesa de atos do regime nazista, como os expurgos praticados no
2 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a Fundamentação do Direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p.16. 3 Abreviatura de Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores
Alemães, mais conhecido como Partido Nazista. 4 SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
5 BENDERSKY, Joseph. The Expendable Kronjurist: Carl Schmitt and National Socialism. Journal of
Contemporary History, London and Beverly Hills, v.14, p.309-328, abr.1979. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/260061> Acesso em: 04 jun. 2012. p.309 6 A respeito da relação de Schmitt com o nazismo, veja-se RÜTHERS, Bernd. Carl Schmitt en el Tercer Reich.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2004. Arnaldo Godoy ressalta, ainda, a problemática da relação
dos intelectuais com o poder, apontando para a ligação entre o conservadorismo e o antiliberalismo. Cf.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O debate conceitual em torno dos poderes do Presidente dos Estados
Unidos nos casos de guerra e de combate ao terror: a tese do presidencialismo unitário de John Yoo e seus
críticos. 2014. (mimeo). 7 SCHEUERMAN, William E. Carl Schmitt: The End of Law. Boston: Rowman & Littlefield Publishers, 1999,
p.15.
16
interior do próprio partido em 1934, na denominada Noite das Facas Longas8, e a
promulgação das Leis de Nuremberg, realizada pelo Parlamento alemão em 1935 com o efeito
de oficializar a ideologia biológico-racial do antissemitismo e fomentar o processo de
perseguição aos judeus, o comprometimento de Schmitt com o nazismo sempre foi visto com
desconfiança no NSDAP.9 Em 1936, após a reprodução de dois artigos, originalmente
publicados em 1916, nos quais rechaçava as teorias fundadas no racismo biológico, ao qual
nunca realmente se filiou, Schmitt foi afastado da política nazista e condenado ao silêncio.10
Ao final da guerra, Schmitt permaneceu preso por mais de um ano, no período entre
1945 e 1947, experiência que descreve em seu livro Ex Captivitate Salus.11
A prisão decorreu
da intenção dos norte-americanos de denunciá-lo perante o Tribunal de Nuremberg, fato que
acabou não se concretizando em razão do entendimento de que não seria possível conectar
Schmitt diretamente aos crimes cometidos pelo regime nazista. Nas oportunidades em que foi
interrogado, Schmitt negou cumplicidade com os nazistas, alegando não deter poder real no
regime após o ano de 1936, do qual, na realidade, teria sido mais uma vítima.12
A ligação de Schmitt com o nazismo fez com que seu pensamento permanecesse no
esquecimento desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Esse processo, porém, vem sendo
revertido nos últimos anos, fato que se comprova das recentes traduções de sua obra e da
atenção que tem sido a esta conferida por autores como Habermas, Chantal Mouffe, Derrida e
o próprio Agamben. A profundidade de suas críticas à racionalidade técnico-econômica de
nosso tempo e ao sistema político liberal que caracteriza as democracias contemporâneas
fazem de Schmitt um autor que não pode ser simplesmente ignorado.
Schmitt é responsável pelo mais rigoroso estudo do estado de exceção,
permanecendo atuais, ainda hoje, suas considerações a respeito do tema formuladas,
inicialmente, nos anos 1920. A construção teórica do autor é conhecida pela inserção no
ordenamento jurídico e pela vinculação que propõe entre estado de exceção, soberania e
decisão, vinculação esta que se encontra sintetizada na frase que dá início à sua Teologia
Política: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”.13
8 SCHMITT, Carl. O Führer protege o Direito. In: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a
Fundamentação do Direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.230-237. 9 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a Fundamentação do Direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p.29-32. 10
Ibidem, p.32. 11
SCHMITT, Carl. Ex Capitivitate Salus. Experiencias de la época - 1945-1947. Minima Trotta: Madrid, 2010. 12
SCHEUERMAN, William E. Carl Schmitt: The End of Law. Boston: Rowman & Littlefield Publishers, 1999,
p.176-177. 13
SCHMITT, Carl. Teologia Política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo:
Scritta, 1996, p.87.
17
O estado de exceção, segundo afirma Schmitt, caracteriza-se pela retirada dos
temperamentos jurídicos impostos ao exercício do poder do Estado, prevalecendo, de tal
forma, um poder absoluto, de extensão ilimitada e eficácia imediata. Trata-se, nesse sentido,
da instituição de uma autoridade que atua de forma soberana, destinada a vigorar durante os
períodos de crise, incumbida da remoção dos obstáculos fáticos à vigência da ordenação legal
da normalidade.
No contexto da teoria schmittiana, o estado de exceção permanece vinculado à ordem
jurídica, atuando como mecanismo capaz de efetivar a suspensão do direito com a finalidade
de garantir-lhe a própria vigência. Depende, portanto, o funcionamento do estado de exceção,
da separação, promovida pelo autor, entre a vigência formal e a eficácia do direito: no caso
extremo da exceção, a lei permanece em vigor, mas vigora como pura forma de lei, destituída
de aplicabilidade prática.
Na aproximação que Schmitt promove do estado de exceção com a figura da
ditadura, a referida separação entre forma de lei e força de lei aparece, no caso da ditadura
comissária, na distinção entre norma de direito e norma de realização do direito, e, no caso da
ditadura soberana, na distinção entre poder constituinte e poder constituído. Em ambas as
hipóteses, o ordenamento jurídico permanece suspenso com a finalidade de que sejam
estabelecidas as condições fáticas necessárias à vigência da Constituição considerada
legítima.
Na Teologia Política, Schmitt trata da constituição do direito pelos elementos norma
e decisão. A vigência da norma depende da existência de uma situação de normalidade, cujo
reconhecimento é objeto de uma decisão da autoridade soberana. As condições normais que
permitem o funcionamento da norma não são um fato exterior ou anterior ao direito, mas dele
fazem parte.
Nesse sentido, a decisão coloca em contato duas realidades aparentemente opostas, o
ordenamento jurídico da normalidade, de um lado; e o estado de exceção e a soberania, de
outro. Ao decidir sobre o caso extremo, o soberano decide, na mesma medida, sobre a
vigência da ordem jurídica da normalidade, observando-se, nesse ponto, a íntima relação
existente entre a norma e a exceção.
18
1.1.1 Ditadura e estado de exceção
Em sua obra A Ditadura14
, Schmitt apresenta o estado de exceção através da figura
da ditadura, a qual, por sua vez, é caracterizada a partir da leitura proposta pelo autor da
conhecida Teoria da Separação dos Poderes, formulada por Montesquieu em Do Espírito das
Leis.15
Montesquieu foi um liberal clássico, tendo desenvolvido suas construções teóricas
em antagonismo ao absolutismo monárquico.16
Seu arranjo de separação de poderes tem como
objetivo limitar a atuação do Estado às hipóteses de consenso entre as instâncias de poder
constituídas, concebidas com a finalidade de se regularem reciprocamente através de
mecanismo em que o “poder freie o poder”.17
A superioridade da função legislativa, intimamente ligada à soberania, pressuposto
compartilhado pelos publicistas da época de Montesquieu, conduziu-o a prescrever a
participação de todas as esferas de poder no processo de criação da lei.18
Para o autor, a
concentração do poder legiferante em apenas um dos órgãos do Estado representaria séria
ameaça à preservação da liberdade geral.
Segundo o mecanismo concebido por Montesquieu, os poderes Legislativo e
Executivo são dotados de idênticas faculdades de estatuir e impedir, sendo necessária a
anuência da câmara de representantes do povo, da câmara da nobreza hereditária e, ainda, do
rei para que se movimente a máquina estatal19
. Permite-se, portanto, a qualquer das três
instâncias de poder, vetar as iniciativas das demais, rejeitando, de maneira definitiva, a
proposta de intervenção do Estado.
Essa neutralização mútua entre os poderes obriga-os a caminhar em conjunto,
dependendo a solução de qualquer problema público, por mais grave que seja, de um
14
SCHMITT, Carl. La dictadura. Madri: Alianza Editorial, 1985. 15
MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: EDIPRO, 2004. 16
AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Sobre a organização de poderes em Montesquieu: comentários ao
Capítulo VI do Livro XI de O Espírito das Leis. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 868, p.53‐68, fev. 2008,
p.54. 17
MONTESQUIEU, op. cit., p.189. 18
Ibidem, p.193-196. 19
Na teoria de Montesquieu, o Judiciário é um poder neutralizado em si mesmo, limitando-se a atividade do juiz
a extrair o sentido exato do texto da lei. A atividade de julgar compete a um ser inanimado, que, em nome da
segurança jurídica, não deve moderar nem a força, nem o rigor das leis. Cf. AMARAL JÚNIOR, op. cit, p.61-
63.
19
consenso entre referidas instâncias.20
A contenção do Estado, na construção de Montesquieu,
não resulta da separação dos poderes, mas do sistema de controles recíprocos imposto aos
mesmos. Schmitt atenta para o ponto, afirmando que a Teoria da Separação dos Poderes não é
bem compreendida quando se enfatiza a ideia de divisão dos poderes, tratando-se, antes de
tudo, de uma teoria da moderação do exercício do poder pelas autoridades estatais ou, em
outros termos, da mediatização da plenitudo potestatis.21
A característica central da teoria de Montesquieu, portanto, é o estabelecimento de
um governo moderado, em que nenhuma autoridade exerce o poder de forma unilateral,
arbitrária, imprevista. A imagem da balança é invocada pelo autor para representar a harmonia
que deve prevalecer entre os Poderes, limitando-se a atuação do Estado às hipóteses de
concordância entre o rei e cada uma das casas legislativas.22
Schmitt alude ao embate travado entre Montesquieu e aqueles que, como os
fisiocratas e determinados pensadores da Ilustração, se opunham ferozmente à existência dos
chamados poderes intermediários, destinados a frear a onipotência do poder real. Voltaire,
por exemplo, criticava duramente a resistência dos parlamentos às determinações do rei; em
sua visão, os poderes intermediários representavam um freio e um empecilho para a utilidade
pública, sendo preferível que a máquina administrativa funcionasse pelo impulso dado a partir
do centro, da mesma forma como Deus rege o universo.23
Montesquieu reconhecia o que chamamos de ditadura na retirada dos mecanismos de
freio e engrenagem mútuos entre os poderes, com a consequente criação de uma instância
capaz de atuar sem qualquer mediação.24
Para o autor, nunca deveria ser permitido ao Estado
atuar com toda a plenitude de seu poder num ponto qualquer, devendo intervir na realidade
sempre de forma mediatizada, ou seja, por intermédio de um poder limitado, que, junto a
outros poderes igualmente mediatizados, tenha uma competência determinada.25
A mesma crítica direcionada ao absolutismo real é utilizada por Montesquieu em
desfavor da democracia “imediata”: o povo também não deve exercer um poder imediato na
medida em que, mesmo no regime democrático, a liberdade civil e a inviolabilidade da lei
20
AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Sobre a organização de poderes em Montesquieu: comentários ao
Capítulo VI do Livro XI de O Espírito das Leis. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 868, p.53‐68, fev. 2008,
p.63 21
SCHMITT, Carl. La dictadura. Madri: Alianza Editorial, 1985, p.138-140. 22
Ibidem, p.138. 23
Idem, p.145. 24
Idem, p.139. 25
Idem, p.140.
20
somente estão garantidas se os Poderes Legislativo e Executivo puderem se controlar
reciprocamente e, sobretudo, se as leis, uma vez promulgadas, não permanecerem sujeitas a
modificações arbitrárias.26
Schmitt põe em relevo, ainda, a condenação de Montesquieu do estabelecimento de
uma competência acima das demais. A criação de uma “competência das competências”,
capaz de redefinir os limites ou modificar as atribuições previamente estabelecidas, resultaria
igualmente em despotismo. A soberania, ela mesma, unitária e ilimitada, deve ser exercida
por autoridades dotadas, singularmente, de faculdades limitadas, e, inclusive às instâncias
supremas legislativas e executivas, não deve ser franqueado estender unilateralmente seus
poderes.27
A figura da ditadura é introduzida por Schmitt em contraposição ao arranjo ideal
forjado por Montesquieu, de refreamento e controle mútuo entre os poderes. Caracteriza-se,
portanto, a ditadura schmittiana, pelo exercício do poder sem intermediação, pela instituição
de uma autoridade imediata e irresistível, pela formação de uma unidade política que exerce o
poder de forma unilateral, sem a oposição de qualquer obstáculo a sua vontade.
O conceito se aproxima da visão de Maquiavel sobre a ditadura na república de
Roma, segundo a qual o ditador “delibera por si mesmo”, adota as medidas que entende
adequadas independente do concurso de qualquer outra autoridade e impõe penas com
validade imediata. Trata-se de mecanismo destinado a evitar, em casos de urgência, a
“prolixidade” e a “colegialidade” que resultam do exercício regular dos poderes públicos,
viabilizando, assim, a pronta ação do Estado.28
Rousseau, no mesmo sentido, afirma que o legislador não pode prever com precisão
todos os acontecimentos futuros, razão pela qual, nos momentos em que a inflexibilidade das
leis tornarem sua aplicação perigosa para a segurança do Estado, devem ser suspensas as
instituições em benefício da concentração do poder. Nas palavras do autor, a “ordem e a
lentidão das formas requerem um espaço de tempo que as circunstâncias às vezes negam;
sobrevêm mil acontecimentos a que não deu providências o legislador, e é muito necessária
providência conhecer que não se pode tudo antever”.29
26
SCHMITT, Carl. La dictadura. Madri: Alianza Editorial, 1985, p.140. 27
Ibidem, p.140-141. 28
Idem, p.36-37. 29
ROUSSEAU. Jean-Jacques. Do contrato social. 3.ed. São Paulo: Martin Claret, 2008, p.108.
21
A caracterização definitiva da ditadura em Schmitt depende, ainda, de seu isolamento
da ideia de tirania, uma vez que, em ambas as hipóteses, o exercício do poder ocorre de tal
forma imediata e unilateral. Para operar esta distinção, o autor se utiliza da teoria de Bodin,
que, no primeiro de seus Seis Livros da República, caracteriza a soberania como “poder
absoluto e perpétuo”.30
Para Bodin, a autoridade soberana não reconhece qualquer poder superior ao que
possui, dando conta de seus atos apenas a Deus e obedecendo apenas à lei da natureza; não se
submete ao ordenamento jurídico, posto que a sua vontade é o próprio ordenamento jurídico.
A soberania não é limitada nem em poder, nem em responsabilidade, sendo exercida por
tempo indeterminado.31
Ainda segundo o teórico francês, não pode ser considerado soberano aquele que
recebe o poder com encargos ou condições, assim como não se reconhece a soberania naquele
que detém o poder por prazo determinado. O autor se utiliza da comparação com os direitos
reais para distinguir a soberania das demais formas de detenção do poder estatal, sustentando
que, da mesma maneira como aqueles “que emprestam seus bens a outrem permanecem seus
senhores e possuidores”, os “que dão poder e autoridade de julgar ou de comandar – seja por
tempo certo e limitado, seja por um tempo tão longo quanto lhes aprouver – permanecem
contudo investidos do poder e jurisdição que outros exercem sob forma emprestada ou
precária”.32
A existência, portanto, de uma relação jurídica aponta para o caráter derivado do
poder, a exemplo do que ocorre nas modernas democracias, nas quais o titular do poder é o
povo, mas seu exercício permanece, de fato, a cargo de representantes que não dispõem, eles
mesmos, da soberania.
Contrariamente ao que ocorre com o tirano, que se apropria do poder soberano, o
ditador atua em nome de outrem, por intermédio de uma comissão recebida do titular da
soberania. O que diferencia ambas as figuras, portanto, não é a extensão de seus poderes, mas
o fato de o ditador exercer o poder em razão de um cometido específico, estando sua
autoridade submetida às limitações próprias da missão que justificou a outorga
extraordinária.33
30
BODIN, Jean. Los seis libros de la República. 3.ed. Madrid: Tecnos, 1997, p.195. 31
Ibidem, p.198-199. 32
Idem, p.197. 33
ECHEVERRIA, Andrea de Quadros Dantas. Combatente inimigo, Homo Sacer ou inimigo absoluto? O estado
de exceção e o novo nomos da Terra. 2011. 181 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em
Direito: Direito e Políticas Públicas, Centro Universitário de Brasília, 2011, p.20.
22
Por mais amplas que sejam as competências conferidas ao ditador, este nunca exerce
a soberania, podendo ser removido de seu cargo a qualquer momento pelo detentor real do
poder soberano, fazendo cessar imediatamente a comissão. O ditador, portanto, é um órgão
constituído, cuja atuação se restringe às situações excepcionais em que a liberdade e o Estado
encontram-se ameaçados. O tirano, pelo contrário, normaliza a situação excepcional, se
apropriando do Estado e colocando em perigo a liberdade individual.
A concessão de poderes extraordinários ao ditador se justifica pela necessidade de
remoção de uma situação de ameaça, como o combate a um inimigo externo ou o
enfrentamento de uma convulsão interna. Trata-se do enfrentamento de uma questão de ordem
fática ou, no dizer de Schmitt, da necessidade de “intervir no decurso causal dos
acontecimentos com meios cuja correção está na sua conveniência e que dependem
exclusivamente das conexões fáticas deste decurso causal”.34
A ameaça que justifica a instituição da ditadura é uma situação de perigo atual e
concreto, cuja eliminação deve ser o objetivo imediato da ação ditatorial. Da mesma forma
como o ato praticado em legítima defesa, a ditadura é uma reação a um ataque que se
caracteriza essencialmente por sua atualidade, de tal forma que a ação ditatorial é dotada de
conteúdo claro e preciso, destinando-se à superação de um adversário determinado.35
Schmitt alude ao conceito de Estado policial para ressaltar tal característica da
ditadura. O autor explica que o Estado policial se aproxima do regime ditatorial quanto a seu
aspecto comissarial, ao passo em que se qualifica pelo cometimento aos governantes da tarefa
de promover o bem-estar da população. A promoção do bem-estar geral, porém, é uma meta
excessivamente abstrata para se equiparar às ações típicas da ditadura, diferenciando-se desta,
portanto, o Estado policial, em razão de não se destinar à eliminação de uma situação fática
concreta e imediata.36
O ditador, portanto, é um órgão executivo que age diretamente sobre a realidade. Sua
atuação é caracterizada pelo racionalismo, pela tecnicidade e pela executividade.37
As regras
observadas pelo ditador não são as regras de direito, mas regras técnicas de ação: a avaliação
da atividade ditatorial se pauta exclusivamente pela aptidão dos meios empregados para
alcançar os fins para os quais foram constituídos os poderes respectivos. Ganha ênfase,
34
SCHMITT, Carl. La dictadura. Madri: Alianza Editorial, 1985, p.26. 35
Ibidem, p.180-181. 36
Idem, p.180. 37
Idem, p.43.
23
portanto, uma razão puramente instrumental, que desconhece a própria ideia de valor e, em
nome da finalidade eleita, coaduna-se com os sacrifícios que se fizerem necessários.
Na ditadura, portanto, domina exclusivamente o fim, “livre de todos os
entorpecimentos do direito e somente determinado pela necessidade de dar lugar a uma
situação concreta”.38
O ditador atua no caso limite, sua autoridade é a necessária para o
cumprimento da tarefa outorgada e deve cessar no momento em que alcançado o resultado
prático pré-estabelecido.
O ditador, em princípio, não tem o poder de modificar as leis39
, mas sua atuação não
está adstrita aos direitos subjetivos legitimamente adquiridos pelos indivíduos. Estes são
respeitados na medida em que não representem empecilho para a consecução da comissão
outorgada. Em outras palavras, os titulares de direito não podem opor sua vontade
juridicamente qualificada às ações do ditador.40
Na medida em que a ditadura toma lugar em situações extremas, não é possível a
previsão abstrata dos poderes do ditador. Se, em tempos normais, o meio para se alcançar
determinada finalidade pode ser extraído da lei, no caso limite deve ser permitido ao ditador
fazer tudo o que a situação das coisas reclamar. Trata-se, portanto, da constituição de um
comissário de ação absoluta, cuja atuação, por não poder ser calculada com precisão e
antecedência, independe da observação de normas gerais, beneficiando-se da abolição de
todas as barreiras legais.41
Estando justificada qualquer medida necessária à consecução do resultado
pretendido, “o conteúdo do apoderamento da ditadura se determina, de uma maneira
incondicionada e exclusiva, com respeito à situação das coisas, surgindo uma igualdade
absoluta entre tarefa e competência, discricionariedade e apoderamento, comissão e
autoridade”.42
A comissão do ditador, portanto, não se regulamenta por algo como uma lei
geral que delimita as possibilidades de transgressão da ordem jurídica. Suas competências
dependerão do estado das coisas, sendo impossível, do ponto de vista lógico, inclusive, a
regulação abstrata das medidas de exceção.
38
SCHMITT, Carl. La dictadura. Madri: Alianza Editorial, 1985, p.42. 39
Aqui se diferenciam a ditadura comissária e a ditadura soberana, objeto de estudo do capítulo seguinte. 40
Ibidem, p.42. 41
Idem, p.41-42. 42
Idem, p.28.
24
1.1.2 Ditadura comissária e ditadura soberana
A distinção entre ditadura comissária e ditadura soberana é o objetivo primordial de
Schmitt em sua já referida obra A Ditadura. O autor se preocupa em diferenciar as novas
formas de ditadura surgidas a partir do século XVIII, que extraem sua legitimidade
diretamente do poder constituinte do povo, do arquétipo romano da ditadura. Segundo
Agamben, o autor alemão percebe que a teoria e a prática leninista da ditadura do proletariado
e a exacerbação do uso do estado de exceção na República de Weimar não “eram figuras da
velha ditadura comissária, e, sim, algo de novo e mais radical que ameaçava pôr em questão a
própria consistência da ordem jurídico-política”.43
A ditadura comissária corresponde à figura a qual alude Rousseau no Contrato
Social quando defende a outorga de poderes extraordinários a um “chefe supremo” nos casos
extremos em que a observância dos preceitos jurídicos não seja recomendável do ponto de
vista da sobrevivência do Estado. Conforme afirma o autor, com a finalidade de fazer retornar
as coisas à situação de normalidade e, em consequência, restabelecer-se o império da lei, deve
ser nomeado um ditador que faça emudecer todas as leis e “por um instante suspenda a
autoridade soberana”.44
Incumbe ao ditador, ainda segundo Rousseau, executar todas as medidas que
entender necessárias ao cumprimento de sua missão especial, sendo-lhe vedada, entretanto, a
modificação do ordenamento jurídico cuja defesa lhe foi confiada. A ditadura não pode
prolongar-se no tempo, devendo cessar assim que resgatado ou destruído o Estado, sob pena
de tornar-se tirânica ou inútil.45
Caracteriza-se, pois, a ditadura comissária, como instância do poder constituído,
invocada sob o marco de uma Constituição, com o objetivo de garantir as condições fáticas
necessárias à vigência dessa mesma Constituição. Trata-se de mecanismo através do qual se
mantém suspenso, para a sua própria proteção, o ordenamento jurídico ameaçado, que
permanece abstratamente em vigor, mas inaplicável na prática.
Tal situação, em que a norma vige sem nenhuma referência à realidade fática, é
possível, na ditadura comissária, graças à distinção, operada na doutrina de Schmitt, entre
norma de direito e norma de realização do direito. Segundo o autor, a “Constituição pode ser
43
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p.56. 44
ROUSSEAU. Jean-Jacques. Do contrato social. 3.ed. São Paulo: Martin Claret, 2008, p.108. 45
Ibidem, p. 109.
25
suspensa sem deixar de ter validade, pois a suspensão somente significa uma exceção
concreta”.46
A construção teórica schmittiana tem como pressuposto a ideia de que a aplicação
das normas jurídicas depende de uma situação de normalidade, em vista da qual foi
abstratamente formulado seu conteúdo. A norma jurídica “pressupõe, como meio homogêneo,
uma situação normal na qual tem validade”, vocacionando-se a ditadura comissária a criar as
condições em que o direito pode ser realizado.47
Estas são as palavras de Schmitt sobre a
temática:
Toda norma geral exige uma condição normal das relações da vida, nas quais ela
tem que encontrar a sua aplicação tipificada e submetê-la à sua regulamentação
normativa. A norma precisa de um meio homogêneo. (...) Não existe norma
aplicável ao caos. A ordem deve ser implantada para que a ordem jurídica tenha um
sentido.48
A ditadura comissária, portanto, é instrumento de garantia do ordenamento jurídico,
destinando-se, para possibilitar o seu funcionamento, a afastar uma situação concreta
desfavorável. A lei permanece suspensa até que a questão que deu ensejo à outorga
excepcional de poderes seja removida, restaurando-se o estado de normalidade e, em
consequência, a vigência da lei.
A exemplo do que ocorre na ditadura comissária, a ditadura soberana também é
instaurada com o objetivo de remoção de uma dada situação concreta. A diferença repousa,
porém, no fato de que a situação concreta que se pretende remover no caso da ditadura
soberana é a Constituição vigente. O poder extraordinário é estabelecido no interesse da
criação das condições fáticas necessárias à implantação de uma nova Constituição,
reconhecida esta como a verdadeira Constituição. Não se justifica, portanto, a ditadura
soberana, pela garantia de uma Constituição existente, cuja vigência se procura assegurar, mas
por uma Constituição que se pretende implantar.49
Na ditadura soberana, a velha Constituição, considerada um obstáculo ao legítimo
exercício do poder constituinte do povo, é suspensa com a finalidade de que seja substituída.
46
SCHMITT, Carl. La dictadura. Madri: Alianza Editorial, 1985, p.182. 47
Ibidem, p.182. 48
SCHMITT, Carl. Teologia Política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo:
Scritta, 1996, p.92-93. 49
SCHMITT, Carl, op.cit., p.182-183.
26
A nova Constituição, “presente sob a forma „mínima‟ do poder constituinte”, passa a ser
aplicada antes mesmo de sua promulgação, de tal modo que Agamben pode afirmar que,
enquanto na ditadura comissária a lei permanece em vigor, mas não se aplica, na ditadura
soberana a lei se aplica sem estar formalmente em vigor.50
O operador utilizado, na ditadura soberana, para permitir esta cisão entre a aplicação
e a vigência da lei é a distinção entre poder constituído e poder constituinte. O ditador
soberano deriva seus poderes de forma exclusiva e imediata do poder constituinte,
caracterizando-se como um comissário que apela constantemente ao povo.51
Na doutrina de Schmitt, o poder constituinte permanece sempre latente no povo, que
pode, a qualquer momento, modificar a ordem jurídico-constitucional. A promulgação de uma
Constituição não subtrai do povo a soberania, mantendo-se este, ao passo em que incapaz de
obrigar a si mesmo, na posse permanente do poder constituinte. Nesse sentido, a Constituição
é a lei fundamental não porque seja imutável e independente da vontade do povo, mas porque
não pode ser modificada pelos órgãos constituídos ou pela legislação ordinária.52
Sieyès, de quem Schmitt retira sua teoria do poder constituinte, afirma que a nação
está em permanente estado de natureza em relação a suas próprias formas constitucionais e
aos funcionários que atuam em seu nome. Enquanto o poder constituinte não está sujeito a
nada e a nação possui apenas direitos, os poderes constituídos se mantêm em estado de pura
obrigação.53
A ditadura soberana destina-se à eliminação dos impedimentos ao livre exercício do
poder constituinte pelo povo, legitimando-se, portanto, pela realização da vontade popular
soberana, que pode encontrar-se adulterada por meios artificiais ou pela agitação geral e a
desordem.54
Encontra seus fins na comissão recebida diretamente do poder constituinte,
ocorrendo exclusivamente como forma de transição à nova ordem jurídica, aspecto no qual se
distinguem, em essência, o ditador soberano e, de outro lado, as autoridades tirânicas,
verdadeiramente soberanas.
Apesar da total negação da Constituição vigente que caracteriza a ditadura soberana,
sua vinculação à ordem jurídica decorre de sua derivação do poder constituinte, na medida em
que, para Schmitt, onde está reconhecido o poder constituinte, há sempre um mínimo de
50
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p.58. 51
SCHMITT, Carl. La dictadura. Madri: Alianza Editorial, 1985, p.192-193. 52
Ibidem, p.186. 53
Idem, p.189. 54
Idem, 1985, p.191.
27
Constituição. O apelo constante à vontade popular, portanto, confere significação jurídica à
ditadura soberana.55
A ditadura schmittiana, portanto, em ambas as suas modalidades, permanece em
contato com a ordem jurídica. Tanto a ditadura comissária, quanto a ditadura soberana têm
como finalidade estabelecer as condições necessárias para o funcionamento da ordem jurídica,
mediante a remoção dos obstáculos à vigência da Constituição “justa”.
1.1.3 Estado de exceção e decisão soberana
Em seu Teologia Política56
, Schmitt realiza o segundo movimento em direção à
inscrição do estado de exceção no ordenamento jurídico, utilizando-se, desta feita, da
distinção entre dois elementos que considera fundamentais para o direito: a norma e a
decisão.
Contrapondo-se ao normativismo liberal, do qual foi um dos grandes adversários em
seu tempo, Schmitt recusa explicitamente a possibilidade de ancoragem da validade do
ordenamento jurídico em uma norma. Nesse sentido, condena a regressão ao infinito
promovida pelos sistemas positivistas, criticando de maneira insistente as considerações
teóricas de Kelsen.
O autor afasta, ainda, a possibilidade de fundamentação da ordem legal na
universalidade ou racionalidade de seu conteúdo. Afirma, de tal modo, a inviabilidade de
obtenção de consenso acerca dos valores que devem basear a convivência comum, razão pela
qual o Estado, em sua visão, deve ser fundado por uma decisão que determine os princípios
fundamentais da sociedade.57
Essa decisão que funda o Estado permanece, ela mesma, infundada. Trata-se de um
ato puro de criação jurídica, que não extrai sua validade de uma verdade previamente
estabelecida, de preceitos éticos ou jurídicos, mas da autoridade atribuída àquele que a
55
SCHMITT, Carl. La dictadura. Madri: Alianza Editorial, 1985, p.193. 56
SCHMITT, Carl. Teologia Política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo:
Scritta, 1996. 57
FERREIRA, Bernardo. O risco do político: crítica do liberalismo e teoria política no pensamento de Carl
Schmitt. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p.99.
28
profere. Aplica-se, aqui, a fórmula que se tornou célebre no Leviatã: “Auctoritas, non veritas
facit legem”.58
O surgimento do pensamento decisionista puro é atribuído por Schmitt a Hobbes,
para quem a transição do estado natural, onde reina “a ausência de paz social” e “a mais
profunda e desesperada desordem e insegurança”, decorre “de uma vontade soberana cujo
comando e cujo ordenamento são lei”. No decisionismo hobbesiano, a competência para a
decisão não se encontra determinada em uma norma preexistente, caracterizando-se como a
criação da lei “em meio à e sobre a insegurança anárquica de um estado natural pré-estatal e
subestatal”. 59
A decisão schmittiana consiste numa opção arbitrária por uma entre as inúmeras
interpretações sobre o bem geral, tendo como efeito fazer cessar o conflito em torno do tema
existente no interior da sociedade. As bases da convivência comum, portanto, são
estabelecidas de maneira autoritária, sendo impossível, pelas características ontológicas da
decisão, a comunicação racional de seus fundamentos.
Ao estabelecer as premissas da vida em comunidade, a decisão cria as condições
necessárias para o funcionamento do direito. Conforme visto anteriormente, Schmitt defende
a necessidade de estabelecimento de uma ordem para que se possa ter um ordenamento
jurídico. A norma não pode ser aplicada ao caos, dependendo de uma situação de mínima
previsibilidade para que possa vigorar.60
As condições de normalidade em que o direito pode
funcionar não são dadas a priori¸ como um dado da natureza, mas são forjadas pela decisão
soberana. A vigência do ordenamento jurídico, portanto, não é uma questão normativa, mas
fático-política.
Ao impor as condições necessárias a seu funcionamento, a decisão acaba por criar o
próprio direito. Schmitt é claro no sentido de que a normalidade fática que autoriza a vigência
do direito “não é só uma „pressuposição externa‟ que pode ser ignorada pelo jurista; ela
pertence à sua validade imanente”.61
O estabelecimento da ordem “não se dissocia de uma
decisão sobre o que é o direito, o interesse público, a paz”, não sendo, portanto, a “criação de
58
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. 3.ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1983. 59
SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos de pensamento jurídico. In: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl
Schmitt e a Fundamentação do Direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.156. 60
SCHMITT, Carl. Teologia Política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo:
Scritta, 1996, p.92. 61
Ibidem, p.92.
29
uma normalidade factual (...) dado anterior à aplicação do direito aos fatos, mas constitui um
ato de conformação jurídica da realidade”.62
A decisão que cria o direito e permite seu funcionamento é a característica essencial
da soberania em Schmitt. A autoridade soberana, portanto, se caracteriza pelo poder de
decidir sobre a normalidade, cabendo-lhe reconhecer quando tal estado prevalece e, no caso
contrário, impor o estado de exceção. É este o sentido que deve ser dado à frase que inicia a
Teologia Política: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”.63
Schmitt ressalta que a ideia de soberania como decisão no caso extremo aparece pela
primeira vez em Bodin, menos em função de seu conceito de que “a soberania é o poder
absoluto e perpétuo de uma República”, do que por sua doutrina dos verdadeiros sinais da
soberania, que ocupa o capítulo X do primeiro de seus Seis Livros da República. Segundo o
autor, Bodin afirma que a força dos compromissos assumidos pelo soberano repousa sobre a
lei natural, mas que, nos casos emergenciais, “o compromisso segundo fundamentos naturais
genéricos acaba”.64
A possibilidade de transgredir as promessas e anular as leis nos casos em que as
circunstâncias assim o exigirem é o que, para Bodin, faz com que o príncipe mantenha sua
condição de soberano. Schmitt afirma, ainda, que “o poder de suspender a lei – em geral ou
em casos isolados – é a verdadeira característica da soberania” na doutrina do teórico francês,
da qual são derivados todos os demais poderes, como a declaração de guerra, a nomeação de
funcionários, o poder de decidir em última instância ou a concessão de indulto.65
O grande mérito de Bodin, para Schmitt, reside no fato de ter reduzido “a explicação
das relações entre o príncipe e as corporações a um simples „é isso ou aquilo‟ por meio de sua
remessa ao caso de emergência”. A decisão, portanto, é incluída no conceito de soberania,
decidindo-se definitivamente a questão do poder do Estado.66
O estado de exceção que caracteriza o poder soberano não se confunde com as
figuras previstas nas Constituições atuais. A tendência do direito moderno é a de tentar
domesticar o estado de exceção, incorporando-o ao ordenamento jurídico através de figuras
como o “estado de sítio” e o “estado de defesa” previstos em nossa Constituição e, ainda,
62
FERREIRA, Bernardo. O risco do político: crítica do liberalismo e teoria política no pensamento de Carl
Schmitt. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p.120-121. 63
SCHMITT, Carl. Teologia Política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo:
Scritta, 1996, op. cit., p.87. 64
Ibidem, p.89. 65
Idem, p.89-90. 66
Idem, p.89.
30
delimitando suas hipóteses de cabimento e as normas do ordenamento jurídico passíveis de
suspensão. Na prática, porém, a regulamentação da situação de emergência não consegue
eliminar do mundo a hipótese extrema do estado de exceção, que permanece como uma
possibilidade fática sempre presente. A verdadeira exceção é sempre excepcional e, por
princípio, imprevisível.67
O estado de exceção a que se refere Schmitt quando alude à soberania se caracteriza
pela possibilidade de fazer irromper no seio do Estado um poder ilimitado, decorrente da
suspensão total do direto vigente, ou seja, um poder livre de quaisquer obstáculos normativos.
Trata-se do caso limite, de uma exceção que, na exata medida em que é absoluta, dá lugar a
uma “decisão no sentido eminente”.68
Em seu O Conceito do político, Schmitt esclarece que o estado de exceção encontra-
se vinculado à decisão política, ou seja, à decisão que estabelece a relação amigo-inimigo.69
A eliminação do inimigo e a construção de um consenso por exclusão se apresentam,
portanto, como condição para o funcionamento normal da ordem jurídica, ou seja, a decisão
política, no mesmo passo em que determina quem é o inimigo, estabelece as condições de
normalidade entre os amigos.70
Nesse sentido, afirma-se que a doutrina schmittiana se afasta
completamente do individualismo liberal, ao passo em que “o Estado, ao estabelecer o direito,
não poderia admitir oposição e nenhum indivíduo poderia dentro dele ter autonomia”.71
Na doutrina de Schmitt, a exceção não representa um retorno ao estado de natureza,
mas um caso extremo de conflito, em que as noções de interesse público, ordem e direito se
tornam, elas mesmas, objeto de controvérsia.72
Trata-se, assim, de uma experiência de quebra
da normalidade, de ruptura dos princípios fundamentais da vida em comum, que impossibilita
a vigência normal da ordem jurídica.
O estado de exceção não se equipara à anarquia ou ao caos, em razão de que nele
subsiste o Estado, que, de tal forma, prova sua “indubitável superioridade sobre a validade da
norma jurídica”, e subsiste, ainda, algo de jurídico, mas algo diferente do jurídico da ordem da
67
RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. A exceção jurídica na biopolítica moderna. In: XI SIMPÓSIO
INTERNACIONAL IHU: O (DES)GOVERNO BIOPOLÍTICO DA VIDA HUMANA, 11, 2010, São
Leopoldo-RS. Anais ... São Leopoldo Instituto Humanitas Unisinos, 2010, p.244-274. p.247. 68
SCHMITT, Carl. Teologia Política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo:
Scritta, 1996, p.87. 69
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. 70
FERREIRA, Bernardo. O risco do político: crítica do liberalismo e teoria política no pensamento de Carl
Schmitt. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p.119. 71
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a Fundamentação do Direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p.25. 72
FERREIRA, Bernardo, op.cit., p.106-107.
31
normalidade. Isto se dá em razão de que, como já visto, a ordem jurídica, para Schmitt, é
constituída por dois elementos irredutíveis entre si, a norma e a decisão, e esta última, no caso
de exceção, não desaparece, mas, pelo contrário, “liberta-se de qualquer ligação normativa e
torna-se, num certo sentido, absoluta”.73
Estas são as palavras do autor:
No caso da exceção o Estado suspende o direito em função de um, por assim dizer,
direito à autopreservação. Os dois elementos do conceito “ordem jurídica” chocam-
se entre si e provam sua independência conceitual. Como no caso normal, em que o
momento independente da decisão pode ser reduzido a um mínimo, no caso da
exceção a norma é eliminada. Mesmo assim, o caso de exceção continua acessível
ao reconhecimento jurídico, porque ambos os elementos, tanto a norma quanto a
decisão, permanecem no âmbito jurídico. 74
A decretação do estado de exceção revela a decisão em sua força e pureza absoluta,
como elemento fundante da ordem jurídica. No caso excepcional, portanto, a autoridade
prevalece sobre a norma, manifestando-se, assim, o que, na visão de Schmitt, é a “essência da
soberania estatal”: o poder de criação do direito sem fundamento no direito.75
Este poder de criação ex nihilo do direito outorga ao soberano, no mundo político,
um papel correspondente ao exercido por Deus no mundo físico. O soberano, da mesma
maneira como Deus cria o universo e estabelece as regras naturais, cria o Estado e impõe as
leis da convivência social. Na tendência de secularização dos conceitos teológicos pela
moderna teoria do Estado, o soberano é Deus transposto para o mundo político.76
O estado de exceção, por sua vez, se equipara ao conceito teológico do milagre,
identificando-se a quebra das leis naturais pela ação divina com a ruptura da continuidade da
ordem legal decorrente da intervenção do soberano. A criação do mundo, ao passo em que
inassimilável pelas leis da natureza, é um ato milagroso, assim como o é, em relação ao
ordenamento jurídico da normalidade, a decisão que cria o Estado e o direito.
Da mesma maneira como o surgimento do mundo não pode ser compreendido
através das leis que regem a realidade física, o entendimento do ordenamento jurídico, mesmo
quando considerado em seu funcionamento normal, não prescinde do momento decisório.
Como toda ordem, a ordem jurídica se baseia numa decisão e, não, numa norma, sendo esta a
73
SCHMITT, Carl. Teologia Política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo:
Scritta, 1996, p.92. 74
Ibidem, p.92. 75
Idem, p.92-93. 76
Idem, p.109.
32
razão da incapacidade da perspectiva exclusivamente normativa de conceber o fenômeno
jurídico na sua inteireza.77
O racionalismo iluminista conhece apenas a normalidade da lei da causalidade,
repudiando a exceção em todas as suas formas. Nesse contexto, a norma jurídica, da mesma
forma como as regras das ciências naturais, vigora sem exceção, sendo inadmissível a
possibilidade de ruptura de sua eficácia por intervenção do soberano. Tal concepção, na visão
de Schmitt, decorre de uma filosofia deísta que, apesar de aceitar a existência de Deus, nega o
milagre e a revelação.78
A atuação divina, no caso do deísmo, se esgota no ato de criação do
mundo, o qual, a partir de então, deixa de depender do impulso de Deus, que permanece no
mais absoluto silêncio.
Schmitt critica severamente o positivismo jurídico quando tenta resolver o problema
da soberania por sua simples negação, como na afirmação de Kelsen de que o “conceito de
soberania deve ser radicalmente reprimido”.79
Para o autor alemão, a unidade e a pureza do
sistema positivista são mantidas à custa da expulsão dos conceitos que não consegue explicar,
recusando-se este a reconhecer o fundo de desordem que perturba a racionalidade da ordem
jurídica.
O normativismo liberal seria incapaz de perceber que a “consciência do normal nasce
justamente em comparação com a suspensão”, da mesma forma como o milagre se caracteriza
pela quebra da continuidade que caracteriza o normal. Conforme afirma Schmitt no trecho
seguinte, a compreensão do excepcional é imprescindível para aquele que pretende explicar o
normal:
A filosofia da vida concreta não pode subtrair-se à exceção e ao caso extremo, mas
deve interessar-se ao máximo por ele. Para ela, a exceção pode ser mais importante
do que a regra, não por causa da ironia romântica do paradoxo, mas porque deve ser
encarada com toda a seriedade de uma visão mais profunda do que as generalizações
das repetições medíocres. A exceção é mais interessante do que o caso normal. O
normal não prova nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a regra, mas a
própria regra só vive da exceção. Na exceção, a força da vida real rompe a crosta de
uma mecânica cristalizada na repetição.80
77
SCHMITT, Carl. Teologia Política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. São Paulo:
Scritta, 1996, p.90. 78
Ibidem, p.117. 79
KELSEN, Hans apud SCHMITT, Carl, idem, p.99. 80
Idem, p.94.
33
Schmitt argumenta que o positivismo jurídico é um modo de pensamento que se
amolda apenas às situações de normalidade, em que os juristas, muitas vezes apoiados em
codificações recentes, patrocinadas por Estados legisladores81
, sentem-se seguros para excluir
de suas análises todo o material “metafísico” e “extrajurídico” e proclamar com esperança a
“justiça da positividade”. As grandes qualidades do positivismo jurídico, é dizer, a
objetividade, a segurança, a certeza e a calculabilidade tão proclamadas por seus defensores,
não derivam, em verdade, do referido sistema, mas da situação normal de um Estado
legislador.82
De tudo o que foi dito, pode-se concluir que, na teoria de Schmitt, a marca
característica da soberania se encontra na decisão sobre o estado de exceção, sendo
impossível conceber como vinculado à lei aquele que tem o poder de decidir sobre sua própria
vigência. A inclusão da decisão no direito, por sua vez, garante a vinculação do ordenamento
jurídico com o poder soberano, exercido através do estado de exceção.
O ponto central da teoria schmittiana repousa na cisão entre a vigência formal e a
eficácia da lei, que, no estado de exceção, apesar de permanecer em vigor, vigora através de
sua própria suspensão, sem correlação com a realidade fática. Permite-se, de tal modo, a
instituição de uma autoridade soberana, cuja atuação se baseia na concentração dos poderes
de governo e não encontra qualquer restrição no ordenamento jurídico.
1.2 A leitura de Giorgio Agamben do estado de exceção schmittiano
Giorgio Agamben é um teórico italiano, nascido em Roma no ano de 1942. Formou-
se em Direito em 1965 e, em seguida, nos anos de 1966 a 1968, foi discípulo de Heidegger.
Dirigiu o Collège Internacional de Philosophie, em Paris, entre 1986 e 1993. Lecionou nas
universidades de Macerata e Verona, nos anos de 1988 a 2003, e ensinou Estética e Filosofia
no Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza, no período de 2003 a 2009. Atualmente,
Agamben é responsável pela direção da coleção “Quarta prosa”, da editora Neri Pozza, na
81
O Estado legislador é definido por Schmitt, em contraposição ao Estado dirigente ou administrativo e ao
Estado jurisdicional, como aquele que é “regido por normatizações de conteúdo mensurável e determinável,
caracterizadas como impessoais e, por esse motivo, gerais, bem como predeterminas e, conseqüentemente,
concebidas visando a uma duração permanente.” No Estado legislador “lei e aplicação da lei, legislador e
aplicação da lei existem separados entre si”. Cf. SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Belo Horizonte:
Del Rey, 2007, p.2. 82
SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos de pensamento jurídico. In: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl
Schmitt e a Fundamentação do Direito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.158.
34
referida universidade de Veneza, e pela edição italiana da obra de Walter Benjamin, tendo
renunciado ao magistério para se dedicar às atividades de pesquisa.83
Convidado a lecionar na universidade de Nova Iorque, Agamben recusou o convite
em virtude de sua decisão de não mais cruzar as fronteiras dos Estados Unidos em razão da
política adotada pelo governo de George W. Bush após os acontecimentos do 11 de setembro.
Os dispositivos incluídos no ordenamento jurídico norte-americano para realizar a Guerra ao
Terror, a exemplo dos que constam do USA Patriot Act, acabaram por tornar real o cenário
antecipado por Agamben, de expansão da utilização da exceção e consequente incremento do
controle da população.
A obra de Agamben é consideravelmente vasta, entrelaçando-se em seus escritos
conceitos e reflexões próprios da filosofia, teologia, literatura, poesia, economia, política e
ciência jurídica. Um dos eixos centrais de sua pesquisa atual é a análise do funcionamento do
Direito nas democracias contemporâneas, questionando o autor como as maiores barbáries de
nosso tempo puderam, e ainda podem, ocorrer ao abrigo do ordenamento jurídico, a exemplo
da execução do holocausto, que se realizou a partir da (in)aplicação da Constituição de
Weimar.
Apesar de Agamben não se preocupar em propor soluções, suas considerações
teóricas são uma chave importante para a compreensão da realidade política atual, lançando
luzes sobre questões como a da Prisão de Guantánamo, das zonas de retenção nos aeroportos
internacionais, das zonas de proteção utilizadas em encontros internacionais, da ideia de
combatente ilegal e de guerra preventiva e, ainda, do exercício da atividade legislativa pelo
Executivo, mediante instrumentos como o da nossa Medida Provisória. A abordagem do autor
decorre das filosofias críticas do fim do século XX, a exemplo das obras de Michel Foucault e
Hannah Arendt, a partir das quais o autor desenvolve os seus estudos sobre o homo sacer, o
estado de exceção e o campo.
As considerações de Agamben a respeito das práticas jurídico-políticas que
caracterizam a modernidade ocidental são hoje uma das críticas mais poderosas ao discurso da
democracia e dos direitos humanos. A generalização do uso das medidas de exceção, que,
segundo o autor, se caracteriza como o paradigma de governo da época contemporânea, nos
obriga a modificar a forma como entendemos os regimes democráticos atuais, cuja
83
JUNGES, Márcia. Giorgio Agamben. Um filósofo para compreender o nosso tempo. In: Cadernos IHU em
formação, São Leopoldo, ano 9, n.45, 2013, p.5.
35
semelhança com os antigos regimes absolutistas se acentua na medida em que as hipóteses de
suspensão do direito vão ocupando o lugar anteriormente conferido à normalidade.
A partir de uma leitura crítica da doutrina schmittiana do estado de exceção,
Agamben questiona o lugar paradoxal que é conferido à decisão soberana, que, ao mesmo
tempo em que está fora do ordenamento jurídico, pertence a ele. Em sua visão, a suspensão da
ordem jurídica somente pode ser decretada de seu exterior, caracterizando-se como verdadeira
aberração jurídica o ato de suspensão do direito fundado no próprio direito cuja suspensão é
determinada.
Nesse sentido, Agamben vai afastar a ditadura como paradigma do estado de exceção
em favor do iustitium, instituto que aproveita da tradição jurídica romana. O estado de
exceção, na perspectiva adotada pelo autor, não diz respeito à formação de uma unidade
política capaz de exercer o poder de forma unilateral e imediata, mas da criação de um espaço
anômico em que a atuação sem limites da autoridade pública decorre antes da paralisação das
leis que tolhiam suas ações, que permanecem desativadas, também, em relação aos cidadãos
em geral. O estado de exceção, portanto, não se encontra nem fora nem dentro do
ordenamento jurídico, dizendo respeito a uma zona em que fato e direito se interpenetram e se
confundem.
Agamben recorre à figura do homo sacer, também retirada do direito romano, para
explicar a forma de inserção do homem nesse Estado caracterizado pela normalização da
exceção e pela consequente retirada da eficácia dos direitos fundamentais. Trata-se de um
indivíduo destituído de todo direito, ao qual a lei se aplica através de sua própria suspensão,
despida de todo o conteúdo; um homem cuja vida nua é constantemente ameaçada pela
vontade ilimitada de uma autoridade soberana.
Esta relação que prevalece nas democracias atuais, segundo Agamben, é uma relação
de bando, na qual vivemos expostos a um poder soberano que é capaz de, a qualquer
momento, por meio da exceção, transformar em homines sacri a todos e a qualquer um,
deixando transparecer em toda a sua crueza a relação direta que mantém com a vida nua. A
fundação da cidade não determina a saída definitiva do estado de natureza, que sobrevive no
âmago da normatividade através da figura ambígua do soberano, na qual violência e lei
permanecem indistinguíveis.
A realidade dos Estados contemporâneos encontra-se marcada pela instituição de um
estado permanente de legalidade extraordinária, derivado do progressivo desligamento entre
36
estado de exceção e emergência militar, que é substituída pela emergência econômica como
fundamento para a relativização dos imperativos da ordem constitucional formalmente em
vigor. O estado de exceção que, em sua origem, se encontrava ligado à situação de guerra
externa, passa a se caracterizar como mecanismo de controle de desordens e revoltas
populares para, no estágio atual de desenvolvimento da democracia ocidental, se transformar
na forma de governo característica de um Estado que legitima o exercício de poderes
ilimitados através da constante invocação de um cenário de crise.
1.2.1 O paradoxo jurídico do estado de exceção
Agamben dedica grande parte de seu Estado de Exceção à crítica da tentativa
schmittiana de vincular o estado de exceção ao direito. O autor afirma que Schmitt estava
ciente do caráter problemático de tal vinculação, reconhecendo este que, enquanto realiza “a
suspensão de toda a ordem jurídica”, o estado de exceção parece “escapar a qualquer
consideração de direito” e que, mesmo “em sua consistência factual e, portanto, em sua
substância íntima, não pode aceder à forma de direito”.84
A inscrição do estado de exceção na ordem jurídica é realizada, na obra de Schmitt,
pelo estabelecimento, no corpo do direito, de “uma série de cesuras e divisões cujos termos
são irredutíveis um ao outro, mas que, pela sua articulação e oposição, permitem que a
máquina do direito funcione.”85
Conforme visto nos tópicos precedentes, os termos
irredutíveis que permitem a articulação da exceção com o direito são norma de direito e
norma de realização do direito, em se tratando da ditadura comissária, poder constituído e
poder constituinte, na ditadura soberana e, por fim, norma e decisão, na teoria da soberania da
Teologia Política.
Em Schmitt, portanto, o estado de exceção permanece vinculado à ordem jurídica,
funcionando como mecanismo capaz de efetivar a suspensão do direito com a finalidade de
garantir a vigência do próprio direito. Trata-se, assim, o estado de exceção schmittiano, do
“lugar em que a oposição entre a norma e a sua realização atinge a máxima intensidade”, onde
“o mínimo de vigência formal coincide com o máximo de aplicação real e vice-versa”.86
84
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p.54. 85
Ibidem, p.57. 86
Idem, p.58.
37
A separação entre a norma e a aplicação concreta suscita a problemática inerente ao
conceito de “força de lei”, que, no direito romano e medieval, indicava a capacidade de
obrigar decorrente do ato legal. Na doutrina moderna, porém, a eficácia da lei, que consiste na
referida aptidão do ato legislativo válido para produzir efeitos jurídicos, é diferenciada da
força de lei, que passa a se referir à posição hierárquica da lei (e de outros atos a ela
equiparados) em relação às demais espécies normativas que compõem o ordenamento
jurídico.87
A expressão força de lei diz respeito, portanto, à qualificação de atos normativos que
não podem ser considerados lei do ponto de vista formal, mas que, nada obstante, têm a si
atribuída a eficácia própria da lei. Trata-se, assim, de “uma separação entre a vis obligandi ou
a aplicabilidade da norma e sua essência formal, pela qual decretos, disposições e medidas,
que não são formalmente leis, adquirem, entretanto, sua „força‟”.88
A Medida Provisória presente em nossa Constituição é exemplo de desvinculação
entre força de lei e forma de lei.89
A confusão entre os Poderes Legislativo e Executivo que
tal mecanismo promove é uma das características próprias do estado de exceção, característica
essa que atingiu o paroxismo no regime nazista, no qual, “como Eichmann não cansava de
repetir, „as palavras do Führer têm força-de-lei‟”.90
O efeito específico do estado de exceção, porém, segundo Agamben, não reside
nessa confusão entre os Poderes, mas no isolamento mesmo da força de lei, que permite a
vigência da lei sem eficácia e a concessão de eficácia de lei a atos não legais. Na medida em
que, no estado de exceção, a forma de lei deixa de ser requisito da força de lei, esta pode ser
reivindicada por quem quer que seja, através da atribuição, a atos de qualquer natureza, da
eficácia própria da lei. Nas palavras de Agamben:
No caso extremo, pois, a “força-de-lei” flutua como um elemento indeterminado,
que pode ser reivindicado tanto pela autoridade estatal (agindo como ditadura
comissária) quanto por uma organização revolucionária (agindo como ditadura
soberana). O estado de exceção é um espaço anômico onde o que está em jogo é
uma força-de-lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita força-de-lei). Tal “força-
de-lei”, em que potência e ato estão separados de modo radical, é certamente algo
87
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p.60. 88
Ibidem, p.60. 89
Art. 62 da Constituição de 1988: “Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar
medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.” 90
Idem, p.60.
38
como um elemento místico, ou melhor, uma fictio por meio da qual o direito busca
se atribuir sua própria anomia..91
O estado de exceção de Agamben, portanto, não coincide com a atribuição
extraordinária de plenos poderes a um ditador, como ocorre em Schmitt, caracterizando-se,
antes, como a criação de um espaço anômico em que a autoridade pública se dissolve ao
ponto de seus atos se equipararem aos atos do homem comum. Nesse sentido, o estado de
exceção seria comparável não à ditadura romana, mas à figura do iustitium:
O termo iustitium – construído exatamente como solstitium – significa literalmente
“interrupção, suspensão do direito”: quando ius stat – explicam etimologicamente os
gramáticos – sicut solstitium dicitur (iustititum se diz quando o direito para, como [o
sol no] solstício); ou, no dizer de Aulo Gélio, iuris quase interstitio quadam et
cessatio (quase um intervalo e uma espécie de cessação do direito). Implicava, pois,
uma suspensão não apenas da administração da justiça, mas do direito enquanto tal.
É o sentido desse paradoxal instituto jurídico, que se deve examinar aqui, tanto do
ponto de vista da sistemática do direito público quanto do ponto de vista filosófico-
político.92
Durante o iustitium, a suspensão do ordenamento jurídico romano fazia com que o
poder permanecesse em absoluta difusão, de maneira distinta, pois, do que ocorria na
ditadura, quando prevalecia a acumulação de poderes na figura do ditador. Nesse sentido, a
atuação sem limites dos magistrados no período do iustitium não decorria de uma outorga
especial de poderes, mas da paralisação das leis que tolhiam suas ações, as quais
permaneciam desativadas, também, em relação a todos os demais cidadãos.
Nas palavras de Agamben, o estado de exceção se caracteriza por “um vazio e uma
interrupção do direito”, definindo a expressão plenos poderes apenas “uma das possíveis
modalidades de ação do poder executivo durante o estado de exceção”, não coincidindo com
ele.93
Nessa zona de anomia, todos são iguais e igualmente livres para agir segundo suas
próprias convicções e conveniências, não se submetendo os atos praticados em tal
circunstância a qualquer qualificação jurídica; público e privado se misturam e o Estado se
dissolve.
A ação praticada no vazio normativo do iustitium é insuscetível de qualificação
jurídica, é mero fato que “não executa nem transgride, mas inexecuta o direito”. A definição
91
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p.60-61. 92
Ibidem, p.68. 93
Idem, p. 75.
39
da natureza de tais atos, se “executiva, transgressiva e, no limite, humana, bestial ou divina,
está fora do âmbito do direito”.94
Agamben ressalta o caráter aporético da articulação schmittiana da ordem jurídica
com esse espaço anômico que caracteriza o estado de exceção, ao passo em que consiste na
inscrição, no corpo do direito, de algo que lhe é essencialmente exterior.95
Com efeito, a lei
não pode, ela mesma, determinar sua suspensão; esta, logicamente, deve ser decretada a partir
do exterior da ordem jurídica.
O soberano, na condição daquele que detém o poder de decidir sobre a exceção,
encontra-se, necessariamente, fora da ordem jurídica, mas, ainda assim, no paradoxo proposto
por Schmitt, pertence à ela. O ponto de contato do soberano com o direito é exatamente o
poder que detém de suspender o próprio direito, colocando-se fora dele. A soberania consiste,
portanto, no poder legal de decidir sobre a suspensão da própria lei, de praticar um ato
jurídico capaz de retirar a eficácia de todo o direito.
O ato de soberania aparece, portanto, como uma aberração jurídica, na medida em
que, ao mesmo tempo em que está além da ordem jurídica, sendo capaz de suspendê-la, se
apresenta como um poder que pertence a essa mesma ordem jurídica.96
Nesse sentido, o ato
legal que suspende a lei está, simultaneamente, dentro e fora da lei; é praticado segundo a lei,
suspendendo-a de seu exterior. As medidas de exceção, no dizer de Agamben, são “medidas
jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito” e o estado de exceção se
apresenta como “a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”.97
Na visão de Agamben, a oposição entre interior e exterior ao direito é insuficiente
para explicar o estado de exceção: este não está nem dentro nem fora do ordenamento
jurídico, definindo-se como uma zona de indiferença em que interno e externo não se
excluem, mas se indeterminam.98
94
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p.78. 95
Ibidem, p. 54. 96
RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. A exceção jurídica na biopolítica moderna. In: XI SIMPÓSIO
INTERNACIONAL IHU: O (DES)GOVERNO BIOPOLÍTICO DA VIDA HUMANA, 11, 2010, São
Leopoldo-RS. Anais ... São Leopoldo Instituto Humanitas Unisinos, 2010, p. 244-274, p.251. 97
AGAMBEN, Giorgio, op.cit., p.11-12. 98
Ibidem, p.39.
40
1.2.2 O estado de exceção e a revelação da vida nua
Homo sacer era, no direito romano, o indivíduo que, por meio da fórmula da
sacratio, era expulso tanto do direito humano, quanto do direito divino. A característica
fundamental da figura do homo sacer, fruto dessa dupla exclusão, é a impunidade de sua
morte e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de seu sacrifício.
Agamben ressalta que, diferentemente do que ocorria na consecratio, quando a
vítima consagrada passava do âmbito profano para o sagrado, o homo sacer era expulso da
jurisdição humana sem adentrar a divina. A violência contra o homo sacer, portanto, além de
não se caracterizar nem como ilícito, nem como a execução de uma pena, sendo um fato
indiferente do ponto de vista jurídico, não se considerava sacrilégio, como ocorria com as res
sacrae, posto que excluída, também, da esfera do ius divinum.99
A relação do homo sacer com a ordem jurídica, porém, não é de mera exclusão: a lei
se aplica a ele através de sua própria suspensão, em seu momento de máxima ineficácia. A
vida do homo sacer é incluída no ordenamento jurídico como vida nua, despida de todo
direito.100
Agamben utiliza a figura do bando para caracterizar a inscrição do homo sacer na
cidade. O bando é uma forma de relação vazia, “é a pura forma do referir-se a alguma coisa
em geral, isto é, a simples colocação de uma relação com o irrelato”.101
O que é posto em
bando “é remetido à própria separação e, juntamente, entregue à mercê de quem o abandona,
ao mesmo tempo excluso e incluso, dispensado e, simultaneamente, capturado”.102
No bando, a lei aplica-se desaplicando-se. Vigora como pura forma de lei, despida de
conteúdo e significado, como puro nada, portanto. A lei não está ausente, mas se apresenta na
forma de sua própria inexequibilidade: aquele que é capturado no bando não é expulso da lei,
mas é abandonado por ela, ou seja, “exposto e colocado em risco no limiar em que a vida e
direito, externo e interno, se confundem”.103
Na relação de bando fica clara a simetria do homo sacer com o soberano, estando
ambos posicionados nos extremos opostos do ordenamento jurídico: o poder de suspender a
99
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p.89-90. 100
Ibidem, p.16. 101
Idem, p.36. 102
Idem, p.116. 103
Idem, p.36.
41
lei faz com que, frente ao soberano, todos os homens sejam potencialmente homines sacri e o
“homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberano”.104
A
relação do homo sacer com o soberano, portanto, ocorre numa zona onde o direito parece não
alcançar, ou que, melhor dizendo, alcança apenas através da suspensão de sua própria
eficácia.
Para Agamben, a relação de bando é a que prevalece nas democracias de nosso
tempo, nas quais vivemos expostos a um poder soberano que a qualquer momento pode
transformar qualquer um em homo sacer, estando sua força baseada na relação direta que
mantém com a vida nua, revelada em toda a sua crueza no estado de exceção.105
O autor
afirma que a contribuição original da soberania é a “produção da vida nua”, exprimindo a
“sacralidade da vida”, que o discurso dos direitos humanos pretende fazer valer contra o poder
soberano, “justamente a sujeição [original] da vida a um poder de morte, a sua irreparável
exposição na relação de abandono”.106
Na exceção, o vínculo originário da vida nua com o poder soberano se revela,
ficando clara a forma de inclusão da vida na cidade através da sujeição a um poder
incondicionado. A figura do homo sacer representa, nesse sentido, a condição em que
vivemos no Ocidente, demonstrando-nos “a figura originária da vida presa no bando
soberano” e conservando “a memória da exclusão originária através da qual se constitui a
dimensão política”.107
A vida exposta à morte como elemento político originário encontra-se já em Roma
na fórmula vitae necisque potestas, que designava o poder absoluto e incondicional dos pais
de tirar a vida dos filhos homens. Agamben ressalta que tal poder não se concebia nem como
a sanção de uma culpa nem como expressão do poder do patriarca enquanto chefe da domus,
não se confundindo com o poder de morte que competia ao marido ou ao pai sobre a mulher
ou a filha flagrada em adultério e, ainda menos, com o poder do senhor sobre seus servos.108
Todo cidadão romano livre era homo sacer frente a seu pai. Essa relação, que
investia o homem logo ao nascer, definia o modelo do poder político romano, restando claro
seu fundamento primeiro em “uma vida absolutamente matável”.109
A participação na vida
política de Roma, portanto, tinha como contrapartida a sujeição a um incondicional poder de
104
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p.92. 105
Ibidem, p.117 106
Idem, p.91. 107
Idem, p.91. 108
Idem, p.95-96. 109
Idem, p.96.
42
morte, como se “a vida pudesse entrar na cidade somente na dupla exceção da matabilidade e
da insacrificabilidade”.110
O poder referente à vitae necisque potestas era considerado um ofício público,
atuando o pai em nome da soberania do povo romano. Nesse sentido, o imperium do
magistrado “nada mais é que a vitae necisque potestas do pai estendida em relação a todos os
cidadãos.”111
A vitae necisque potestas demonstra a indistinção entre público e privado na
cidade romana, representando a vida nua o limiar em que ambas se comunicam e se
confundem.112
Nesse sentido, o que Agamben propõe é que se realize uma releitura do mito de
criação de nossa sociedade, defendendo a necessidade de modificarmos a maneira como
concebemos a política, de forma a substituir os conceitos de direitos dos cidadãos, livre-
arbítrio e contrato social pelo de vida nua, o único que, do ponto de vista da soberania, tem
autêntica relevância política.113
Retornando a Hobbes, Agamben argumenta que a fundação do Estado depende
menos da cessão livre de direitos pelos súditos do que da conservação, pelo soberano, de seu
direito natural de fazer qualquer coisa em relação a qualquer um, direito esse que então se
apresenta como poder de punir. Tal poder não é cedido ao soberano pelos súditos; estes
apenas abandonam os próprios direitos, permitindo que aquele utilize a violência da forma
como melhor lhe parecer.114
Permanecendo, portanto, na posse de seu ius contra omnes, o soberano se mantém
em estado de natureza, representando “um limiar de indiferença entre natureza e cultura, entre
violência e lei, e esta própria indistinção constitui a específica violência soberana”.115
O
estado de natureza, na doutrina hobbesiana, não deve ser considerado uma época real,
cronologicamente anterior à fundação da cidade, mas um princípio interno ao nómos, que se
revela no momento em que o Estado se encontra dissolvido: trata-se, na verdade, do “núcleo
mais íntimo do sistema político, do qual este vive no mesmo sentido em que, segundo
Schmitt, a regra vive da exceção”.116
110
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p.98. 111
Ibidem, p.96. 112
Idem, p.98. 113
Idem, p.113. 114
Idem, p.113 115
Idem, p.41-42. 116
Idem, p.42.
43
A fundação da cidade, nesse sentido, não ocorre de uma vez por todas, num dado
momento, mas opera continuamente na forma da decisão soberana. Através do estado de
exceção, o estado de natureza sobrevive no âmago da normatividade, consistindo ambas nas
“duas faces de um único processo topológico no qual (...) o que era pressuposto como externo
(o estado de natureza) ressurge agora no interior (como estado de exceção), e o poder
soberano é justamente esta impossibilidade de discernir externo e interno, natureza e exceção,
phýsis e nómos”.117
Essa zona de indiferença que caracteriza o estado de exceção remete-nos às figuras
do homem-lobo (wargus) e do “sem paz” (friedlos) do direito germânico antigo, figuras
análogas ao homo sacer no que diz respeito à impunidade de sua morte. Agamben se utiliza
das mesmas para ilustrar a ambiguidade da relação de bando: o banido não é pura natureza,
sem ligação com o direito e a cidade (lobo), mas também não participa da vida normal da
cidade (homem). É, portanto, lobisomem, ou seja, “homem que se transforma em lobo e lobo
que se transforma em homem”, ser que se encontra num “limiar de indiferença e de passagem
entre o animal e o homem, a phýsis e o nómos, a exclusão e a inclusão (...) nem homem nem
fera, que habita paradoxalmente ambos os mundos sem pertencer a nenhum”.118
No homem lobo do homem a que se refere Hobbes quando trata da fundação da
soberania encontra-se o wargus, ou seja, não apenas “besta fera e vida natural, mas, sobretudo
zona de indistinção entre humano e ferino”.119
No estado de exceção que funda a cidade,
caracterizado pela guerra de todos contra todos, homem e lobo encontram-se indiscerníveis,
dissolvidos um no outro, num espaço em que todos são, ao mesmo tempo, vida nua e
soberano em relação aos demais.
A fundação da cidade não advém de um ato político originário, uma convenção que
marca definitivamente a passagem do caos para a ordem estatal. O “relacionamento jurídico-
político originário” não se caracteriza pela saída do estado de natureza em direção à
civilização, mas por “uma bem mais complexa zona de indiscernibilidade entre nómos e
phýsis, na qual o liame estatal tendo a forma do bando, é também desde sempre não-
estatalidade e pseudonatureza, e a natureza apresenta-se desde sempre como nómos e estado
de exceção.”120
117
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p.43. 118
Ibidem, p.111-112. 119
Idem, p.112. 120
Idem, p.115-116.
44
Agamben aponta para a eleição da vida biológica como o elemento político
fundamental como a causa da perigosa proximidade entre democracia e totalitarismo que se
observa na modernidade. Para o autor, a transição entre referidos regimes somente se
processou com a facilidade e rapidez que se viu na Europa do século XX porque a política
havia se transformado em biopolítica.121
O Terceiro Reich foi um estado de exceção que perdurou por doze anos, mantendo
suspensa, com a autorização da Constituição de Weimar, a democracia parlamentar que a
mesma instituía. O totalitarismo moderno se caracteriza pela “instauração, por meio do estado
de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários
políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam
não integráveis ao sistema político”, o que parece ter sido o caso do elemento judeu no
nazismo.122
A tragédia do holocausto, portanto, deve ser reinserida no contexto do Estado
moderno e compreendida como um evento que, apesar de sua singularidade, estava inscrito (e
assim permanece) nas possibilidades de nossa racionalidade jurídico-política. Bauman ressalta
como o lager123
nazista era composto por elementos “banais”, já integrados em nosso
cotidiano. Para o autor, todos os “ingredientes” do Holocausto foram “normais”, no sentido
de “plenamente acompanhar tudo o que sabemos sobre nossa civilização, seu espírito
condutor, sua visão imanente de mundo”.124
O judeu, no regime nazista, é o caso típico de vida nua, cuja morte pelo poder
soberano não vai além da matabilidade inerente à condição de judeu como tal.125
O genocídio
do judeu pelo nazismo não foi um ato desconectado da modernidade política: tudo como se
passou como o funcionamento normal do poder soberano, e a vida dos judeus foi descartada
como objeto sem valor126
.
121
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p.127-
128. 122
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p.13. 123
Termo que designava os campos de concentração na Alemanha nazista. 124
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.27. 125
Ibidem, p.117. 126
O substantivo Ungeziefer, utilizado pelos nazistas para designar os habitantes do campo de concentração, é o
mesmo utilizado por Kafka para designar o ser em que se transformou o protagonista de A metamorfose.
Modesto Carone, tradutor brasileiro da obra do referido autor, afirma que Ungeziefer “tem o sentido original
pagão de „animal inadequado ou que não se presta ao sacrifício‟, mas o conceito foi se estreitando e passou a
designar animais nocivos, principalmente insetos, em oposição a animais domésticos...”. CARONE, Modesto.
Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.23.
45
1.2.3 A generalização do estado de exceção
A origem do estado de exceção se encontra vinculada à emergência militar, fato que
justifica a utilização das expressões “estado de sítio” e “lei marcial” nas culturas jurídicas
francesa e anglo-saxã. A história posterior do instituto, porém, e nisso reside uma das teses
fundamentais de Agamben, é “a história de sua progressiva emancipação em relação à
situação de guerra” e, em consequência, conforme já havia sido antecipado por Walter
Benjamin, a generalização, na prática jurídica do Ocidente, da utilização da exceção como
técnica de governo.127
Na França, o estado de sítio surge a partir da distinção, posta no decreto de 8 de julho
de 1791 da Assembleia Constituinte francesa, entre état de paix, état de guerre e état de siège.
Enquanto no primeiro estágio, de normalidade, as autoridades civil e militar permanecem
cada uma em sua esfera de atuação, no segundo e terceiro estágios a emergência militar faz
com que a autoridade civil seja compelida a atuar conforme a autoridade militar e, no caso
extremo, seja incorporada por esta última.128
No decreto napoleônico de 24 de dezembro de 1811 surge o termo “estado de sítio
fictício ou político”. O documento previa a possibilidade de declaração do estado de sítio pelo
Imperador quando as circunstâncias fáticas recomendassem a concessão de mais força e ação
à polícia militar, independentemente da situação efetiva de uma cidade sitiada ou diretamente
ameaçada pelas forças inimigas.129
Na Constituição de 22 frimário do ano VIII (13 dezembro de 1799 no calendário
gregoriano) foi incluída, pela primeira vez no direito francês, a ideia de uma suspensão da
Constituição, sendo possível, assim, a declaração de uma cidade ou região como hors la
constitution. Agamben afirma que, apesar de, na origem, caracterizar-se o estado de sítio pela
extensão, no âmbito civil, dos poderes das autoridades militares, e caracterizar-se, por outro
lado, a suspensão da Constituição como a suspensão das liberdades individuais, ambos os
modelos “acabam, com o tempo, convergindo para um único fenômeno jurídico que
chamamos estado de exceção”.130
127
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p.16. 128
Ibidem, p.16. 129
Idem, p.15-16. 130
Idem, p.17.
46
Em sua breve história do estado de exceção131
, Agamben assinala que a ampliação
dos poderes do Executivo no período da Primeira Guerra Mundial, quando o estado de
exceção foi utilizado na quase totalidade dos Estados envolvidos, não foi extinta após o fim
do conflito. A emergência militar, que justificava a manutenção da exceção durante as
hostilidades, foi substituída pela emergência econômica, que se tornou o mote para a
substituição da democracia parlamentar prevista nas Constituições em vigor por um novo tipo
de democracia governamental.132
Agamben relata que, nos Estados Unidos, após a concentração de poderes no chefe
do Poder Executivo realizada em decorrência das emergências militares advindas da Guerra
de Secessão e da Primeira Guerra Mundial, a metáfora bélica tornou-se parte integrante do
discurso político dos presidentes subsequentes sempre que pretenderam ter a si atribuídos
poderes extraordinários.133
Segundo o autor, o Presidente Roosevelt utilizou a referida linha
de argumentação para que lhe fossem conferidos os poderes utilizados no combate à Grande
Depressão, tendo se dirigido à nação nos seguintes termos:
Assumo sem hesitar o comando do grande exército de nosso povo para conduzir,
com disciplina, o ataque aos nossos problemas comuns [...]. Estou preparado para
recomendar, segundo meus deveres constitucionais, todas as medidas exigidas por
uma nação ferida num mundo ferido [...]. Caso o Congresso não consiga adotar as
medidas necessárias e caso a urgência nacional deva prolongar-se, não me furtarei à
clara exigência dos deveres que me incumbem. Pedirei ao Congresso o único
instrumento que me resta para enfrentar a crise: amplos poderes executivos para
travar uma guerra contra a emergência [to wage war against the emergency],
poderes tão amplos quanto os que me seriam atribuídos se fôssemos invadidos por
um inimigo externo.134
Percebe-se, no citado pronunciamento, realizado no ano de 1933, que o Presidente
Roosevelt apresenta sua ação de combate à crise que ameaçava a economia norte-americana
como a de um comandante durante uma campanha militar. A resposta do Congresso dos
Estados Unidos foi a de conceder ao presidente “um poder ilimitado de regulamentação e de
131
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p.24-38. 132
Comentando a obra de Agamben, Edgardo Castro afirma que o “estado de exceção independe
progressivamente da ameaça bélica, que originalmente o justificava, desloca-se até as situações de emergência
econômica e finalmente converte-se numa prática habitual”, sendo frequente nas democracias ocidentais que o
Poder Legislativo se limite a ratificar os decretos (em nosso caso, as medidas provisórias), provenientes do
Executivo. Cf. CASTRO, Edgardo. Introdução a Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência. Belo
Horizonte: Autêntica, 2012, p.77. 133
AGAMBEN, Giorgio, op. cit., p.36. 134
ROOSEVELT, Franklin Delano apud AGAMBEN, Giorgio, ibidem, p.36-37.
47
controle sobre todos os aspectos da vida econômica do país”, autorizando, de tal maneira, a
execução do conjunto de medidas reunidas sob a denominação de New Deal.135
O Presidente George W. Bush, a seu turno, após o atentado de 11 de setembro,
insistia em referir-se a si próprio como Commander in chief of the army, ciente da referência
imediata, na cultura jurídica americana, de tal posto com o estado de exceção.136
Definindo-se
como o responsável maior pela defesa armada da nação, Bush pretendia criar as condições
necessárias para o exercício de poderes extraordinários, como a prolação da military order137
.
O caso brasileiro é ilustrativo da utilização do mecanismo da exceção para o controle
da emergência econômica. De fato, não fazendo parte de nossa agenda governamental a
guerra e o terrorismo, o discurso político desenvolvido no Brasil tem invocado, em inúmeras
oportunidades, como forma de relativizar os imperativos da ordem constitucional vigente,
razões de natureza econômica138
. É interessante, a título de exemplo, a utilização da
terminologia bélica pelo Presidente Lula no discurso proferido na abertura da 59ª Assembleia
Geral da Organização das Nações Unidas, realizada em 21 de setembro de 2004, quando
apresentou a desigualdade entre os países ricos e os países pobres, agravada pelo processo da
globalização, como uma situação de guerra, afirmando ser necessário “agir como em uma
guerra” para “deter a barbárie”, “enfrentar os agentes do ódio” e “lutar contra a pobreza no
mundo”.139
Verifica-se, portanto, que o estado de exceção que foi, em sua origem, estado de
sítio, se transforma em estado de sítio fictício, liberando-se da situação de guerra externa para
se caracterizar como medida de cunho policial, destinada ao controle de desordens e revoltas
populares. Amplia-se, ainda mais, quando, num segundo movimento, se dissocia totalmente
da guerra, seja externa, seja civil, para se transformar num instrumento inerente à
governabilidade.
135
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p.37. 136
Ibidem, p.38. 137
Emitida por G. W. Bush em novembro de 2001, a military order permite a indefinite detention dos cidadãos
suspeitos de atividades terroristas. Edgardo Castro afirma não se tratar “nem de prisioneiros nem de acusados,
mas de sujeitos submetidos a uma detenção indefinida tanto no tempo como em sua natureza”. Cf. CASTRO,
Edgardo. Introdução a Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência. Belo Horizonte: Autêntica, 2012,
p.77. 138
Gilberto Bercovici aponta que os Estados periféricos vivem um estado de exceção econômico permanente,
nos quais a “razão de mercado passa a ser a nova razão de Estado”. Cf. BERCOVICI, Gilberto. O estado de
exceção econômico e a periferia do capitalismo. Revista Pensar, Fortaleza, v.11, p.95-99, fev.2006.
Disponível em: <http://www.unifor.br/images/pdfs/pdfs_notitia/1642.pdf> Acesso em: 04 jun. 2012. p.96. 139
PALUMBO, Renata. A metáfora da guerra nos discursos de Lula: um estudo sobre os processos referenciais e
argumentativos. Revista Intercâmbio, São Paulo, v. XXI, p.78-97, 2010. Disponível em:
<http://revistas.pucsp.br/index.php/intercambio/article/view/4451> Acesso em: 04 jun. 2012. p.11.
48
Essa transformação do estado de exceção fez do século XX, na visão de Agamben, o
palco de uma paradoxal “guerra civil legal”, patrocinada pela prevalência de um estado
permanente de legalidade extraordinária.140
O autor ressalta o caso já mencionado do Estado
nazista, que se baseou na vigência, por doze anos, do Decreto para a proteção do povo e do
Estado, através do qual Hitler suspendeu as liberdades individuais previstas na Constituição
de Weimar, caracterizando-se, de fato, o Terceiro Reich, em toda a sua existência, como um
estado de exceção.141
Para o autor italiano, a “criação voluntária de um estado de emergência permanente
(ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas
essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”.142
O
prognóstico de Agamben é no sentido de que o estado de exceção venha a se tornar, cada vez
mais, “o paradigma de governo dominante na política contemporânea”, transformando
definitivamente a distinção entre os diferentes regimes de governo, na exata medida em que o
estado de exceção se caracteriza como “um patamar de indeterminação entre democracia e
absolutismo”.143
Na visão do autor, o princípio da separação dos poderes não mais funciona, em razão
de ter o Poder Executivo absorvido grande parte das funções legiferantes, prevalecendo, nos
dias de hoje, as normas regulamentares dele emanadas em detrimento das decisões adotadas
no âmbito do Poder Legislativo. Este, em consequência, deixou de ostentar sua antiga
condição de órgão soberano, limitando-se sua atuação, em boa medida, à ratificação de
decretos do Executivo.144
O estado de exceção, figura contraditória que, criada a partir da necessidade de
proteger o Estado de Direito, mantém-no refém de uma vontade soberana que está sempre
pronta a determinar a sua suspensão145
, vem, progressivamente, na visão de Agamben,
rompendo seus limites originais e tendendo a coincidir com o ordenamento jurídico normal,
fragilizando-se a proteção jurídica dos indivíduos e dando ensejo a um cenário em que “tudo
se torna assim novamente possível”.146
140
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p.12. 141
Ibidem, p.12-13. 142
Idem, p.13. 143
Idem, p.13. 144
Idem, 2004, p.32. 145
RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. A exceção jurídica na biopolítica moderna. In: XI SIMPÓSIO
INTERNACIONAL IHU: O (DES)GOVERNO BIOPOLÍTICO DA VIDA HUMANA, 11, 2010, São
Leopoldo-RS. Anais ... São Leopoldo Instituto Humanitas Unisinos, 2010, p.247. 146
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p.44.
49
Da análise das considerações de Agamben, percebe-se que o autor corrige a tese
schmittiana da inclusão do estado de exceção e da soberania no ordenamento jurídico. A
autoridade soberana, para Agamben, se encontra numa zona limítrofe em que fato e direito se
interpenetram e se confundem, não se caracterizando o estado de exceção pela formação de
uma unidade política capaz de exercer o poder de forma unilateral e imediata, mas pela
criação de um espaço em que a eficácia da lei permanece desativada em relação a todos os
indivíduos e a distinção entre jurídico e antijurídico desaparece.
O estado de exceção, ao contrário de garantir a vigência do ordenamento jurídico,
ameaça tornar-se o paradigma de governo da época contemporânea, retirando a eficácia da
Constituição e aproximando cada vez mais de seu oposto o conceito de democracia. O
homem, nesse cenário, permanece abandonado a uma normatividade vazia, exposto a um
poder soberano que a qualquer momento pode decretar o fim da normalidade e impor sobre
ele sua vontade incondicionada.
50
CAPITULO II – A SUSPENSÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS CONTRÁRIAS AO
PODER PÚBLICO E A TENTATIVA DE RECONDUZIR A SUSPENSÃO DE
SEGURANÇA AO DIREITO
O cerne da questão analisada no presente trabalho diz respeito à configuração da
suspensão de segurança como uma das medidas de exceção cuja generalização, segundo
Agamben, caracteriza a realidade jurídico-política das democracias contemporâneas.
Referidas medidas, conforme visto no capítulo precedente, tem seu funcionamento baseado na
separação entre a vigência formal e a eficácia da lei, fazendo com que a regulamentação
prevista de forma geral e abstrata no ordenamento jurídico seja objeto de aplicação prática
seletiva.
Trata-se, portanto, de averiguar se, sob a justificativa de realização do interesse
público, a suspensão de segurança se destina, na realidade, à resolução de problemas
enfrentados pela Administração Pública brasileira através de meios não previstos no
ordenamento jurídico. A ordem de suspensão de segurança, nesse sentido, teria como efeito
fazer prevalecer uma determinação do Poder Público baseada na substituição dos critérios
legais e constitucionais pelos critérios eleitos pela autoridade administrativa.
A suspensão de segurança se define como uma prerrogativa processual do Poder
Público através da qual lhe é dado requerer, em caráter extraordinário, a sustação dos efeitos
de decisões judiciais provisórias exaradas em seu desfavor. Existe relativo consenso,
atualmente, no sentido de não se tratar a suspensão de segurança de mais um dos recursos
previstos em nossa legislação processual, não se destinando o instituto à correção de erros in
procedendo ou in judicando das decisões judiciais contrastadas, mas, apenas, à salvaguarda
do interesse público materializado nos bens jurídicos ordem, saúde, segurança e economia
públicas. É diante de tal quadro, em que se admite a possibilidade de suspensão de decisões
judiciais independente de sua reforma ou invalidação, que se questiona a possibilidade de se
conceituar a suspensão de segurança como instrumento de natureza política, capaz de
funcionar através do mecanismo da exceção.
A dogmática pátria se mobiliza, em sua quase totalidade, em torno de três
entendimentos acerca da natureza jurídica da suspensão de segurança, definindo-a como (i)
medida cautelar, (ii) medida destinada a fazer prevalecer o interesse público sobre o privado e
51
(iii) medida político-administrativa. A primeira destas definições será objeto de análise do
presente capítulo, as outras duas serão estudadas no capítulo seguinte.
Antes, porém, de adentrar a referida discussão, trata-se, na parte inicial do capítulo,
da evolução histórica da legislação de regência da suspensão de segurança, desde sua
invenção, pela Lei nº 191, de 1936, quando se destinava à sustação dos efeitos,
exclusivamente, de decisões proferidas em mandado de segurança, tendo em vista as
peculiaridades do sistema recursal da referida ação constitucional, até os dias de hoje, em que
a regulamentação do instituto, prevista, em especial, no art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, e no
art. 15 da Lei nº 12.016, de 2009, admite sua invocação contra quaisquer decisões proferidas
em desfavor do Poder Público.
A análise do desenvolvimento da normatização da suspensão de segurança contradiz
a tese muitas vezes repetida da existência de uma ligação genética do instituto com o regime
militar pós-64, demonstrando, ao contrário, que foi no regime constitucional vigente que o
mesmo veio a alcançar os contornos mais amplos que hoje o caracterizam. Observa-se, nesse
sentido, que a suspensão de segurança atravessou, sem grandes alterações, os regimes
políticos que se sucederam na história do país, tendo servido tanto aos governos autoritários,
quanto aos governos democráticos.
A segunda parte do presente capítulo cuida de uma questão sensível relacionada à
eficácia prática da suspensão de segurança. Apesar de, em teoria, destinar-se a decisão
positiva exarada no incidente a vigorar temporariamente, cessando seus efeitos quando do
trânsito em julgado da decisão judicial contra a qual deferida, a prática demonstra que, em
número considerável de casos, a eficácia da ordem de suspensão de segurança tende a se
tornar definitiva.
De fato, não são raras as hipóteses em que o deferimento do pedido de suspensão de
segurança permite a realização de intervenções (ou omissões) públicas cujos efeitos no mundo
fático não são passíveis de reversão, tornando inviável a posterior implantação do comando
judicial que deveria prevalecer ao final do processo. A título de exemplo, são colacionadas
decisões de suspensão de segurança que autorizaram (i) a continuidade das obras de
construção de usina hidrelétrica, (ii) a privatização de instituição financeira estatal e (iii) a
negativa de concessão de medicamentos a pessoa doente, hipóteses nas quais restou
sacrificada, em caráter definitivo, a aplicação dos comandos normativos destinados, em tese, a
regular as espécies respectivas.
52
A terceira parte do presente capítulo tem como objeto a referida exclusão da
suspensão de segurança da classe dos recursos processuais. Além da mencionada ausência do
efeito devolutivo, que caracteriza a suspensão de segurança como instrumento predisposto à
tutela de interesses do Poder Público e, não, à revisão do conteúdo das decisões judiciais
exaradas em seu desfavor, analisa-se a inaplicabilidade ao incidente do regime jurídico
aplicável aos recursos em geral.
Cuida-se, na parte final do capítulo, da tentativa realizada por parte de nossa doutrina
de reconduzir a suspensão de segurança ao ordenamento jurídico, conferindo-lhe feições de
medida cautelar. Para os defensores de tal entendimento, o deferimento da suspensão de
segurança depende da demonstração da probabilidade de vir a ser reformada ou anulada a
decisão judicial contra a qual aviado o incidente. Erige-se, portanto, como requisito para o
deferimento da suspensão de segurança, além do periculum in mora, materializado no grave
risco de dano aos referidos interesses públicos relacionados ao instituto, o fumus boni iuris,
que diz respeito à mencionada probabilidade de êxito da pretensão recursal exercitada no
processo de origem.
Tratar-se-ia, portanto, a suspensão de segurança, de medida de contracautela que não
se baseia em razões políticas, mas em argumentação essencialmente jurídica. Tal
posicionamento tem como pano de fundo a postulação de que se encontra na lei o critério para
a definição do interesse público, sendo insuficiente para a sua caracterização a simples
alegação de risco de dano à ordem, saúde, segurança e economia públicas sustentada pelas
autoridades administrativas sem fundamento no ordenamento jurídico-constitucional.
A conceituação da suspensão de segurança como mero provimento cautelar tem
como efeito retirar todo o caráter de excepcionalidade do instituto, reduzindo a presidência do
tribunal a mais uma instância junto à qual o Poder Público pode requerer a sustação dos
efeitos das determinações judiciais proferidas em seu desfavor, pleito este que já lhe é dado
formular, assim como a todos os litigantes, perante o juízo natural para a apreciação do
recurso interposto contra a mesma decisão. Cuida-se, ainda, de interpretação que vai de
encontro à regulamentação legal do instituto, que estabelece a total desvinculação entre o
julgamento do recurso e o julgamento da suspensão de segurança interpostos contra
determinada decisão judicial.
53
2.1 Histórico da normatização legal da suspensão de segurança
A possibilidade de suspensão da execução de decisões judiciais contrárias ao Poder
Público tem sua origem vinculada à introdução, em nosso direito, da ação de mandado de
segurança, que constou do art. 113, n. 33, da Constituição de 1934.147
A Lei nº 191, de 1936,
que primeiro regulamentou o mandado de segurança, estabeleceu, em seu art. 13, a suspensão
de segurança como instrumento destinado a suspender as decisões proferidas especificamente
nas ações da espécie. Este o teor do dispositivo legal referido:
Art. 13. Nos casos do art. 8°, § 9°, e art. 10, poderá o Presidente da Côrte Suprema,
quando se tratar de decisão da Justiça Federal, ou da Côrte de Appellação, quando se
tratar de decisão da justiça local, a requerimento do representante da pessoa juridica
de direito publico interno interessada, para evitar lesão grave á ordem, á saude ou á
segurança publica, manter a execução do acto impugnado até ao julgamento do feito,
em primeira ou em segunda instancias.148
A previsão da suspensão de segurança se justificava, no projeto de lei apresentado
pelo Senador Alcântara Machado, pelo fato de não ser dotado de efeito suspensivo o recurso
interposto contra as decisões proferidas nas ações de mandado de segurança. No texto da
proposta original, constava, no mesmo parágrafo 3º do art. 5º, que “não terá efeito suspensivo
o recurso da decisão que conceder o mandado” e que se “o cumprimento imediato acarretar
dano irreparável à ordem ou à saúde pública ou à segurança nacional, o presidente do
Tribunal ad quem poderá suspender, a requerimento da autoridade, a execução do mandado
até a decisão do recurso”.149
A intenção do projeto Alcântara Machado era, portanto, vincular a suspensão de
segurança ao recurso interposto pelo ente público interessado na causa, destinando-a à
finalidade de atribuir-lhe efeito suspensivo. Na redação definitiva do citado art. 13 da Lei nº
191, de 1936, porém, a suspensão de segurança tornou-se independente do recurso fazendário,
conforme permanece até os dias de hoje, em razão da substituição, determinada no curso do
147
A previsão do mandado de segurança na Constituição de 1934 pôs fim às discussões acerca da utilização do
habeas corpus e, até mesmo, de ações possessórias, para a tutela de direitos civis não incluídos entre os
direitos de locomoção. Cf. ANDRADE, ÉRICO. O Mandado de segurança: A Busca da Verdadeira
Especialidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.364. 148
Os referidos art. 8º, parágrafo 9º, e art. 10 tratavam, respectivamente, das hipóteses de deferimento de medida
liminar e de sentença de concessão do mandado de segurança. 149
NUNES, Castro. Do mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos do poder público. 8.ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.304.
54
processo legislativo, da expressão “até a decisão do recurso” pela expressão “até o julgamento
do feito”. Esta a justificativa apresentada à época pelo Deputado Levi Carneiro, responsável
pelo dispositivo legal em tratamento:
O dispositivo do projeto, que acabamos de transcrever, encerra uma inovação
interessante, que se pode tornar muito valiosa. Acha-se, porém, mal colocado no
artigo que regula o processo do recurso – por isso mesmo que nem só neste caso se
deve admitir a suspensão da execução do mandado. Máxime, se se adotasse, como
fez o substitutivo no § 6º do art. 4º, já apreciado, à regra de ter sempre efeito
suspensivo do ato impugnado o simples despacho inicial do pedido de mandado de
segurança.
Admito que o juiz suspenda, desde logo, os efeitos do ato impugnado, quando
circunstâncias especiais justifiquem tão melindrosa determinação. Por isso mesmo,
estabeleço que, não só no caso do recurso, que não tem efeito suspensivo – mas
também nessa outra hipótese, caiba a representação tendente a excluir a suspensão
imediata do ato. O dispositivo, assim completado, constituirá artigo separado.150
O mandado de segurança não constou do texto da Constituição de 1937, período em
que a sobrevivência do instrumento foi garantida, de maneira mitigada, pelo art. 16 do
Decreto-Lei nº 6, de 16 de novembro de 1937, que manteve em vigor a Lei nº 191, de 1936, e,
em consequência, a referida normatização da suspensão de segurança.151
O Código de Processo Civil de 1939, revogando a Lei nº 191, de 1936, passou a
concentrar a regulamentação do mandado de segurança, cuidando, em seu art. 328, do
instituto da suspensão de segurança, nos seguintes termos:
Art. 328. A requerimento do representante da pessoa jurídica de direito público
interessada e para evitar lesão grave à ordem, à saúde ou à segurança pública, poderá
o presidente do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal de Apelação, conforme a
competência, autorizar a execução do ato impugnado.
Apesar de o dispositivo legal ter deixado de prever o prazo de duração da suspensão
de segurança, o entendimento sobre a questão permaneceu inalterado, prevalecendo a tese de
que a sustação dos efeitos da decisão impugnada perduraria até o julgamento definitivo do
processo na instância perante a qual ajuizado, ou seja, até a prolação da sentença ou do
150
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança: Sustação da eficácia de decisão judicial proferida
contra o Poder Público. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.71. 151
Art. 16 do Decreto-Lei nº 6, de 1937: “Continua em vigor o remédio do mandado de segurança, nos têrmos da
lei n. 191 de 16 de janeiro de 1936, exceto a partir de 10 de novembro de 1937, quanto aos atos do Presidente
da República e dos ministros de Estado, Governadores e Interventores.”
55
acórdão, em se tratando, neste último caso, de mandado de segurança de competência
originária de tribunal.152
A regulamentação do mandado de segurança pelo CPC de 1939 permaneceu em
vigor durante toda a vigência da Constituição de 1937, tendo sido revogada pela Lei nº 1.533,
de 31 de dezembro de 1951, editada sob a égide da Constituição de 1946, que devolveu ao
mandado de segurança o seu status constitucional. A previsão da suspensão de segurança foi
deixada a cargo do art. 13 do referido diploma legal, com a peculiaridade de que as hipóteses
de deferimento da medida (grave lesão à ordem, à saúde ou à segurança pública) deixaram de
constar do texto do dispositivo:
Art. 13. - Quando o mandado fôr concedido e o presidente do Supremo Tribunal
Federal, do Tribunal Federal de Recursos ou do Tribunal de Justiça ordenar ao juiz a
suspensão da execução da sentença, dêsse seu ato caberá agravo de petição para o
Tribunal a que presida.
Já se apontou que o suposto “esquecimento” do legislador parece ter sido proposital,
de modo a permitir que os motivos capazes de justificar a suspensão de segurança ficassem a
critério dos presidentes dos tribunais.153
Nesse sentido, é de se registrar a crítica de
Themistocles Brandão Cavalcanti à redação do art. 328 do CPC de 1939 que, em sua visão,
encerrava “o arbítrio do Juiz dentro de limites excessivamente estreitos”, ao passo em que
“não só a saúde, a ordem e a segurança exigem medidas de exceção”, sendo apenas as
condições peculiares a cada caso concreto capazes de justificar o uso da suspensão de
segurança.154
Na opinião do autor, “nenhum critério ou limitação preestabelecida é prudente”,
sendo elogiável a escolha do legislador do art. 13 da Lei nº 1.533, de 1951 na medida em que
“não impõe nenhuma condição para a suspensão da execução da medida já concedida”,
deixando ao “justo arbítrio” do presidente do tribunal o julgamento da conveniência ou não da
medida.155
O art. 13 da Lei nº 1.533, de 1951, trouxe, pela primeira vez, a previsão do recurso
de agravo, para o órgão pleno do tribunal, da decisão adotada por seu presidente, regra que
permanece ainda contemplada em nossa legislação. Outra peculiaridade da redação do art. 13
152
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança: Sustação da eficácia de decisão judicial proferida
contra o Poder Público. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.71. 153
Ibidem, p.72. 154
CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Do Mandado de Segurança. 5.ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas
Bastos, 1966, p.152. 155
Ibidem, p.152-154.
56
da Lei nº 1.553, de 1951, consiste na previsão da suspensão da execução apenas da
“sentença”, modificação da qual não decorreu qualquer efeito prático, ao passo que a
jurisprudência permaneceu admitindo sua utilização também quanto às decisões liminares.156
Ainda na vigência da Lei nº 1.533, de 1951, o uso do mandado de segurança teve seu
escopo restringido por uma série de normas processuais constantes da Lei nº 2.770, de 4 de
maio de 1956157
, da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964158
, e da Lei nº 5.021, de 9 de junho
de 1966159
, patrocinadas, pela ditadura militar e por um Estado que se sentia “fragilizado com
o uso demasiado” do procedimento.160
O art. 13 da Lei nº 1.533, de 1951, foi revogado pelo
art. 4º da mencionada Lei nº 4.348, de 1964, que passou a dispor sobre a suspensão de
segurança nos seguintes termos:
Art. 4º. Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada e
para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o
Presidente do Tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo
recurso (VETADO) suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar,
e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo no prazo de (10)
dez dias, contados da publicação do ato.
Como se vê, os “interesses públicos” capazes de ensejar a suspensão de segurança
voltaram a constar expressamente do corpo da legislação, com o acréscimo, ao rol que
constou da Lei nº 191, de 1936, e do CPC de 1939, da grave lesão à economia pública. O art.
4º da mencionada Lei nº 4.348, de 1964, fez retornar ao ordenamento legal, ainda, a expressa
menção à possibilidade de suspensão da execução das medidas liminares.
156
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança: Sustação da eficácia de decisão judicial proferida
contra o Poder Público. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.72. 157
A Lei nº 2.770, de 1956, suprimia a possibilidade de concessão de liminares nas ações ajuizadas com a
finalidade de liberação de bens, mercadorias ou coisas de procedência estrangeira, bem como sujeitava a
execução provisória das decisões proferidas nas ações do gênero à prestação de garantia por parte do
requerente. 158
A Lei nº 4.348, de 1964, determinava a proibição da concessão de liminares em mandados de segurança
impetrados visando à reclassificação ou equiparação de servidores públicos ou à concessão de aumento ou
extensão de vantagens, bem como restringia as decisões proferidas nas ações do gênero ao respectivo trânsito
em julgado. Conferia efeito suspensivo aos recursos interpostos contra as decisões concessivas de mandado de
segurança que importassem outorga ou adição de vencimento ou ainda reclassificação funcional. Limitava,
ainda, a eficácia da liminar deferida em mandado de segurança ao período de noventa dias, prorrogável por
mais trinta. 159
A Lei nº 5.021, de 1966, limitava o pagamento de valores a servidores públicos às prestações vencidas após o
ajuizamento do mandado de segurança e impedia a concessão de medida liminar para determinar o pagamento
de valores a servidores públicos. 160
Ibidem, p.73.
57
A partir do advento da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, que, por meio de seu art.
12, parágrafo 1º,161
estendeu a aplicação da suspensão de segurança às decisões proferidas em
ação civil pública, as hipóteses de cabimento da suspensão de segurança foram
progressivamente se alargando, afastando-se o instituto de sua origem vinculada ao mandado
de segurança. A suspensão de segurança constou, também, do art. 25 da Lei nº 8.038, de 28 de
maio de 1990162
, que trata das hipóteses de cabimento do incidente perante o Superior
Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, e do art. 16 da Lei do Habeas Data (Lei nº
9.507, de 12 de novembro de 1997).163
A definitiva generalização da suspensão de segurança se deu com a Lei nº 8.437, de
1992, editada pelo Congresso Nacional com o objetivo de restringir as denominadas liminares
satisfativas, determinando, entre outras providências, em seu art. 1º, parágrafo 3º, a proibição
da concessão de “medida liminar que esgote, no todo ou em parte, o objeto da ação”. O art. 4º
do referido diploma legal prevê a aplicação da suspensão de segurança às decisões proferidas
em ação cautelar, ação popular, ação civil pública e, por força do art. 1º da Lei nº 9.494, de 10
de setembro de 1997164
, às decisões de antecipação de tutela. Veja-se a redação original do
referido art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992:
Art. 4° Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do
respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar
nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do
Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de
manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à
ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
§ 1° Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em processo de ação
cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto
não transitada em julgado.
161
Art. 12, parágrafo 1º, da Lei nº 7.347, de 1985: “A requerimento de pessoa jurídica de direito público
interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, poderá o Presidente
do Tribunal a que competir o conhecimento do respectivo recurso suspender a execução da liminar, em
decisão fundamentada, da qual caberá agravo para uma das turmas julgadoras, no prazo de 5 (cinco) dias a
partir da publicação do ato.” 162
Art. 25 da Lei nº 8.038, de 1990: “Salvo quando a causa tiver por fundamento matéria constitucional,
compete ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça, a requerimento do Procurador-Geral da República ou
da pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à
economia pública, suspender, em despacho fundamentado, a execução de liminar ou de decisão concessiva de
mandado de segurança, proferida, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos
Tribunais dos Estados e do Distrito Federal.” 163
Art. 16 da Lei nº 9.507, de 1997: “Quando o habeas data for concedido e o Presidente do Tribunal ao qual
competir o conhecimento do recurso ordenar ao juiz a suspensão da execução da sentença, desse seu ato
caberá agravo para o Tribunal a que presida.” 164
Art. 1º da Lei nº 9.494, de 1997: “Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de
Processo Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no
art. 1º e seu § 4º da Lei nº 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho
de 1992.”
58
§ 2° O presidente do tribunal poderá ouvir o autor e o Ministério Público, em cinco
dias.
§ 3° Do despacho que conceder ou negar a suspensão, caberá agravo, no prazo de
cinco dias.
A partir de então, a suspensão de segurança passou a ser aplicável a qualquer decisão
judicial não transitada em julgado proferida contra o Poder Público, como ocorre até os dias
de hoje. Na prática, a mecânica do instituto permaneceu bastante similar no que diz respeito à
aplicação às decisões proferidas em mandado de segurança e à aplicação às decisões
proferidas em ações submetidas a procedimentos diversos, ao passo em que a maior parte da
jurisprudência simplesmente ignorou o tratamento diferenciado outorgado pela lei às duas
espécies de suspensão de segurança.165
A inclusão da hipótese de suspensão de segurança por “flagrante ilegitimidade” no
caput do art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, não teve impacto significativo no funcionamento do
incidente, tendo se mantido a ênfase do instituto na necessidade de “evitar grave lesão à
ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”. A inovação foi objeto de severas críticas
da doutrina, que condenava o desvirtuamento da suspensão de segurança decorrente da
inclusão de questão de mérito em seu objeto, conferindo-lhe caráter devolutivo, próprio das
espécies recursais.166
A emancipação em relação ao mandado de segurança sepultou definitivamente a
ligação da suspensão de segurança com a sistemática recursal aplicável ao referido
procedimento. A razão para a existência do instituto encontrada por parte da doutrina na
ausência de atribuição de efeito suspensivo aos recursos interpostos contra as decisões
proferidas em sede de mandado de segurança deixou de ter qualquer sentido.167
Ultrapassou-
165
VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p.42. 166
Nesse sentido ver: RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança: Sustação da eficácia de decisão
judicial proferida contra o Poder Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.79.
SCARTEZZINI, Jorge Tadeo Goffi Flaquer. Suspensão de Segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009, p.21-22. VENTURI, Elton, op. cit., p.128-130. Interessante notar que, enquanto referidos autores
entendem a “flagrante ilegitimidade” do art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, como ausência de legitimidade ad
causam, uma das condições da ação, há quem identifique a legitimidade com o interesse público,
caracterizando-a como o sentido de utilidade da norma, como a correspondência entre o comando contido na
norma e o consenso social, em contraposição à “pura legalidade”, que não representaria mais do que o critério
objetivo extraído da lei. Cf. GUTIÉRREZ, Cristina. Suspensão de liminar e de sentença na tutela do interesse
público. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.38-40. 167
Eduardo Talamini vincula a origem da suspensão de segurança à ausência de efeito suspensivo que
caracterizava a sistemática recursal do mandado de segurança. Cf. TALAMINI, Eduardo. Nota sobre a Atual
Natureza Jurídica da Suspensão de Decisões Contrárias ao “Poder Público”, à Luz do seu Regime de Eficácia.
Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n.67, out.2008, p.43-53. Ana Luísa Celino Coutinho, em
obra publicada no ano de 2000, ainda vinculava a suspensão de segurança a “uma característica peculiar do
59
se, da mesma forma, a ideia de que a suspensão de segurança poderia encontrar justificativa
no não cabimento de recurso de agravo de instrumento contra as decisões concessivas de
liminar em mandado de segurança.168
O escopo da suspensão de segurança foi ainda mais uma vez ampliado, desta vez,
pela Presidência da República, que intentava controlar as decisões judiciais contra a política
de privatizações que então realizava com base na Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990. O art.
4º da Lei nº 8.437, de 1992, foi alvo de sucessivas modificações pela Medida Provisória nº
1.984169
, editada inicialmente em 10 de dezembro de 1999, cujo conteúdo foi posteriormente
incluído na Medida Provisória nº 2.180, editada inicialmente em 21 de dezembro de 2000, que
teve seus efeitos congelados, em sua versão de número 35, de 27 de julho de 2001, pelo art. 2º
Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001170
, deixando o referido dispositivo
legal com a seguinte redação:
Art. 4° Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do
respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar
nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do
Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de
manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à
ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
§ 1° Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em processo de ação
cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto
não transitada em julgado.
§ 2o O Presidente do Tribunal poderá ouvir o autor e o Ministério Público, em
setenta e duas horas. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 2001)
Mandado de Segurança, concernente aos recursos”, os quais, com exceção do “novo agravo de instrumento
disciplinado pela Lei 9.139/95”, não possuiriam efeito suspensivo. Cf. COUTINHO, Ana Luísa Celino.
Mandado de Segurança: suspensão no direito brasileiro. Curitiba: Juruá, 2000, p.18. Calmon de Passos, por
sua vez, defendia que a suspensão de segurança “não é uma forma autônoma de controle, um recurso anômalo,
sem contraditório, sem formalidades asseguradoras do devido processo legal”, mas apenas a possibilidade de
atribuição de efeito suspensivo a recurso dele desprovido. Na visão do autor, “sem a interposição do recurso e
a demonstração de sua admissibilidade, descabe o pedido de suspensão”, sendo impossível, conceber de
maneira diversa a constitucionalidade da medida. Cf. PASSOS, J. J. Calmon de. Mandado de segurança
coletivo, mandado de injunção e „habeas data‟ – constituição e processo. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p.57. 168
A tese do não cabimento de agravo de instrumento contra a decisão concessiva de liminar em mandado de
segurança decorria do fato de que tal recurso não estava previsto na Lei nº 1.533, de 1951, que, como visto,
revogou as disposições referentes ao mandado de segurança constantes do CPC de 1939. O mesmo se dava em
relação ao recurso de embargos infringentes, que também não encontrava guarida na Lei nº 1.533, de 1951.
Atualmente, a Lei nº 12.016, de 2009, prevê expressamente em seu art. 7º, parágrafo 1º, a aplicação do agravo
de instrumento no procedimento do mandado de segurança, não aludindo, porém, aos embargos infringentes. 169
A última versão da Medida Provisória nº 1.984 foi a de número 25, de 23 de novembro de 2000, que teve seu
conteúdo incluído na Medida Provisória nº 2.102-26, de 21 de dezembro de 2000. A versão nº 32 da Medida
Provisória nº 2.102, de 24 de junho de 2001, foi incluída na Medida Provisória nº 2.180-33, de 28 de junho de
2001. 170
Art. 2º da Emenda Constitucional nº 32, de 2001: “As medidas provisórias editadas em data anterior à da
publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou
até deliberação definitiva do Congresso Nacional.”
60
§ 3o Do despacho que conceder ou negar a suspensão, caberá agravo, no prazo de
cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte a sua interposição.
(Redação dada pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 2001)
§ 4o Se do julgamento do agravo de que trata o § 3
o resultar a manutenção ou o
restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo pedido de
suspensão ao Presidente do Tribunal competente para conhecer de eventual recurso
especial ou extraordinário. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 2001)
§ 5o É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o § 4
o, quando negado
provimento a agravo de instrumento interposto contra a liminar a que se refere este
artigo. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 2001)
§ 6o A interposição do agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações
movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o
julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo. (Incluído pela
Medida Provisória nº 2.180-35, de 2001)
§ 7o O Presidente do Tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar,
se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na
concessão da medida. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 2001)
§ 8o As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única
decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a
liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original. (Incluído
pela Medida Provisória nº 2.180-35, de 2001)
§ 9o A suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal vigorará até o trânsito em
julgado da decisão de mérito na ação principal. (Incluído pela Medida Provisória nº
2.180-35, de 2001)
Entre as principais alterações legislativas, destacam-se a total desvinculação entre
suspensão de segurança e agravo de instrumento (parágrafos 5º e 6º) e, ainda, a vigência da
decisão concessiva da suspensão de segurança até o trânsito em julgado da ação principal (9º),
sistemática que já era aplicada ao instituto desde sua origem. Importa ressaltar, ademais, a
previsão de utilização per saltum da suspensão de segurança, decorrente da possibilidade de
ajuizamento de um novo pedido de suspensão de segurança perante o Superior Tribunal de
Justiça ou o Supremo Tribunal Federal nos casos de indeferimento do incidente pelas
instâncias inferiores (parágrafo 4º).
O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar a constitucionalidade
das novas regras da suspensão de segurança no julgamento da medida cautelar na ADI nº
2251171
, ajuizada contra a Medida Provisória nº 1.984 em sua 19ª versão, de 29 de junho de
2000. O tribunal deferiu a suspensão liminar exclusivamente de norma que foi suprimida da
referida Medida Provisória em sua 22ª versão, de 27 de setembro de 2000172
, a qual previa a
171
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2251 MC. Rel. Min. Sydney Sanches. Diário de Justiça, Brasília,
24 mar. 2001. 172
A Presidência da República, nesta 22ª edição, preocupou-se em adequar a Medida Provisória nº 1.984 à
decisão cautelar proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Além de extirpar a norma cuja eficácia foi suspensa
pela mencionada decisão, foi incluída determinação de aplicação do novo regime da suspensão de segurança
às ações de mandado de segurança, alterando-se o art. 4º da Lei nº 4.348, de 1964. Tal inclusão decorreu das
considerações tecidas nos debates realizados quando do julgamento da referida cautelar na ADI 2251,
especialmente pelo Min. Sepúlveda Pertence, que, criticando a nova sistemática, asseverou que “o casuísmo
61
hipótese de suspensão, “com eficácia retroativa à data em que foi concedida, tornando sem
efeito qualquer ato executivo dela decorrente”, da decisão liminar que esgotasse, no todo ou
em parte, o objeto da ação ou, ainda, que tivesse sido “deferida em flagrante ofensa à lei ou a
jurisprudência de tribunal superior”.173
A sustação cautelar dos efeitos de todos os demais
dispositivos (parágrafos 2º a 8º) foi indeferida, por maioria de votos.174
O mérito da ação não
chegou a ser julgado em razão de sua extinção por falta de aditamento da petição inicial para a
impugnação das últimas reedições da Medida Provisória.
A Medida Provisória nº 2.180-35, de 2001, determinou, ainda, o acréscimo de dois
parágrafos ao art. 4º da Lei nº 4.348, de 1964, o segundo deles para prescrever a aplicação do
novo regime da suspensão de segurança constante do art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, às
decisões proferidas em mandado de segurança175
. Atualmente, não mais se encontra em vigor
a Lei nº 4.348, de 1964, estando a possibilidade de suspensão das decisões proferidas em
mandado de segurança regulada no art. 15 da Lei nº 12.016, de 2009, de seguinte teor:
Art. 15. Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada ou
do Ministério Público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à
economia públicas, o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do
respectivo recurso suspender, em decisão fundamentada, a execução da liminar e da
sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de 5 (cinco)
dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição.
§ 1º Indeferido o pedido de suspensão ou provido o agravo a que se refere o caput
deste artigo, caberá novo pedido de suspensão ao presidente do tribunal competente
para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário.
§ 2º É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o § 1o deste artigo,
quando negado provimento a agravo de instrumento interposto contra a liminar a
que se refere este artigo.
§ 3º A interposição de agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações
movidas contra o poder público e seus agentes não prejudica nem condiciona o
julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo.
§ 4º O presidente do tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar se
constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na
concessão da medida.
chegou a tal ponto que esses parágrafos atingem qualquer medida cautelar, menos o mandado de segurança,
único a que se dirigiam as leis que têm por si o privilégio da antigüidade. Queiram os deuses que esta
observação não provoque, na próxima edição da medida, a colmatação da lacuna, por certo, involuntária...”. 173
Trata-se do parágrafo 8º do art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, que vigorou, até a edição da 22ª versão da
Medida Provisória nº 1984, com a seguinte redação: “Ao verificar que a liminar esgotou, no todo ou em
qualquer parte, ou objeto da ação ou foi deferida em flagrante ofensa à lei ou a jurisprudência de tribunal
superior, o presidente do tribunal poderá suspendê-la com eficácia retroativa à data em que foi concedida,
tornando sem efeito qualquer ato executivo dela decorrente.” 174
A norma do parágrafo 9º não foi objeto de apreciação, em razão de só ter vindo a constar da última versão, de
número 35, da Medida Provisória nº 2.180. 175
Art. 4º, parágrafo 2º, da Lei nº 4.348, de 1964: “Aplicam-se à suspensão de segurança de que trata esta Lei, as
disposições dos §§ 5º a 8º do art. 4º da Lei no 8.437, de 30 de junho de 1992.”
62
§ 5º As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única
decisão, podendo o presidente do tribunal estender os efeitos da suspensão a
liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original.
As regras gerais sobre o tema da suspensão de segurança no direito brasileiro
encontram-se, atualmente, nos citados art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, e art. 15 da Lei nº
12.016, de 2009. Apesar das diferenças de redação observadas nos referidos dispositivos
legais, a tendência jurisprudencial é de aplicar o mesmo procedimento a todos os pedidos de
suspensão de decisões desfavoráveis ao Poder Público, não importando o rito processual a que
submetida a respectiva ação principal.
Nesse sentido, aponta-se a revogação, promovida pelo Supremo Tribunal Federal, de
sua Súmula nº 506176
, a partir da qual se passou a admitir a interposição de recurso de agravo
contra o indeferimento do pedido de suspensão de segurança interposto contra decisão
proferida em mandado de segurança, hipótese que, contemplada no parágrafo 3º do art. 4º da
Lei nº 8.437, de 1992, não se encontrava prevista, à época, no art. 4º da Lei nº 4.348, de 1964,
cuja redação, no ponto, em muito se assemelha à do atual art. 15 da Lei nº 12.016, de 2009.177
A decisão foi adotada pelo Plenário do referido tribunal nos autos da SS nº 1945178
,
reconhecendo-se a necessidade de estender a disciplina prevista naquele primeiro diploma
legal com a finalidade de superação da assimetria no tratamento dos pedidos de suspensão de
segurança.
A disposição de unificação do procedimento do incidente de suspensão de segurança
foi confirmada no acórdão exarado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na SS nº
2198179
, oportunidade na qual se entendeu pela redução do prazo de dez dias para interposição
do recurso de agravo previsto no caput do art. 4º da Lei nº 4.348, de 1964. Decidiu-se, na
ocasião, pela prevalência do disposto no art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, que, em seu
parágrafo 3º, prevê o prazo de cinco dias para o referido recurso, desfazendo-se “assimetria
processual então existente entre as ações de mandado de segurança e os demais
procedimentos de contracautela”.
176
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 506. O agravo a que se refere o art. 4º da Lei 4.348, de
26.06.1964, cabe, somente, do despacho do Presidente do Supremo Tribunal Federal que defere a suspensão
da liminar, em mandado de segurança, não do que a denega. Diário de Justiça, Brasília, 10 dez. 1969. 177
VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p.253-254. 178
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 1945 AgR-AgR-AgR-QO. Rel. Min. Marco Aurélio. Diário de
Justiça, Brasília, 01 ago. 2003. 179
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 2198 AgR-AgR, Rel. Min. Maurício Corrêa, Diário de Justiça,
Brasília, 03 mar. 2004.
63
Prevalece, portanto, na jurisprudência, forte inclinação no sentido da uniformização
dos pedidos de suspensão de decisões contrárias ao Poder Público, seja quanto ao
procedimento aplicável ao incidente, seja quanto aos efeitos das decisões nele proferidas. Por
tal razão, é possível tratar do gênero suspensão de segurança sem a preocupação de
diferenciar ambas as espécies previstas em nossa legislação, tendo em vista a inexistência de
diferenças ontológicas ou formais entre os diferentes pedidos de suspensão capazes de
justificar a diversidade de denominações utilizada na prática de nossos tribunais.180
Deste breve histórico do instituto, pode-se concluir que a suspensão de segurança,
contrariamente ao que apontam alguns de seus detratores, não se encontra intrinsecamente
ligada aos períodos não democráticos que marcaram a história do Brasil, especialmente ao da
ditadura militar que se instalou no país após o denominado Golpe de 64. Exemplo da linha de
raciocínio que ora se questiona encontra-se em Lúcia Valle Figueiredo, que já afirmou que o
“art. 4º da Lei 4.348/64 (...) descende diretamente do regime de exceção no qual o País
mergulhou por mais de 20 anos”.181
No mesmo sentido, já se sustentou que a “esdrúxula
figura da Suspensão de Segurança, nascida das entranhas da Lei nº 4.348, de 26 de junho de
1964, no limiar sangrento da ditadura militar”, foi criada com a intenção de “amordaçar a
Magistratura independente do Brasil na truculência do regime de exceção que ali se
instalava”.182
Nada obstante, a Lei nº 191, de 1936, que fez incluir a suspensão de segurança em
nosso ordenamento jurídico, foi editada ainda na Era Vargas, tendo o instituto atravessado
sem sobressaltos o período da chamada República Populista para, então, aportar no regime
militar pós-64, que não alterou significativamente a normatização do instrumento em vigor no
regime democrático anterior. O grande movimento de alargamento da suspensão de segurança
teve lugar já no regime da Constituição de 1988, autor da Lei nº 8.437, de 1992, e das
sucessivas medidas provisórias que ampliaram definitivamente o escopo do mecanismo
excepcional.
Conforme se encontra na doutrina referente ao instituto, a suspensão de segurança,
em seus primórdios, foi um instrumento de utilização excepcionalíssima, não tendo
representado perigo à eficácia do mandado de segurança. A vulgarização do instituto teria
180
VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p.2 181
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Mandado de Segurança. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.170. 182
PRUDENTE, Antônio Souza. O terror jurídico-ditatorial da suspensão de segurança e a proibição do
retrocesso no estado democrático de direito. Revista Magister de direito civil e processo civil, Porto Alegre, v.
10, n.55, p.108-120, jul./ago., 2013, p.111.
64
sido fruto de iniciativa da ditadura militar, realidade que em nada se modificou com o advento
da Constituição vigente, quando o governo, para realizar as modificações na realidade
previstas no modelo de Estado Social adotado, optou pela generalização da utilização da
suspensão de segurança como mecanismo de apoio à implementação de políticas públicas.183
A análise histórica da suspensão de segurança demonstra, portanto, que o instituto
sobreviveu com indiferença aos regimes políticos que se alternaram na história do Estado
brasileiro, tendo servido tantos aos governos autoritários, quanto aos governos democráticos.
O instrumento foi utilizado de forma contínua desde sua criação, no ano de 1936, até os dias
atuais, nos quais a generalização da prática da suspensão de segurança, que parece ter
alcançado seu grau máximo, expõe a afinidade de nosso regime democrático atual com os
mecanismos de exceção.
2.2 Eficácia da decisão concessiva da suspensão de segurança
O incidente de suspensão de segurança tem como objeto a sustação dos efeitos de
decisão judicial, ainda não transitada em julgado, desfavorável ao Poder Público. Não há
diferença, em termos de eficácia material, entre a concessão da suspensão de segurança e, de
outro lado, a atribuição de efeito suspensivo a recurso interposto pela entidade de direito
público interessada. Em ambas as hipóteses, a decisão atacada não desaparece do mundo
jurídico, não é reformada nem anulada, mas, simplesmente, deixa de surtir seus efeitos
típicos.
A concessão da suspensão de segurança, conforme entendimento consagrado do
Supremo Tribunal Federal, que hoje consta de sua Súmula nº 626184
e está incorporado à
legislação no citado parágrafo 9º do art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, destina-se a vigorar,
salvo determinação em contrário, até o julgamento final do processo originário. Uma vez
proferida, portanto, a ordem de suspensão de segurança, a decisão de origem permanece
suspensa até o seu trânsito em julgado, abrangendo a referida ordem de suspensão de
183
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança: Sustação da eficácia de decisão judicial proferida
contra o Poder Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.73-75. 184
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 626. A suspensão da liminar em mandado de segurança,
salvo determinação em contrário da decisão que a deferir, vigorará até o trânsito em julgado da decisão
definitiva de concessão da segurança ou, havendo recurso, até a sua manutenção pelo supremo tribunal federal,
desde que o objeto da liminar deferida coincida, total ou parcialmente, com o da impetração. Diário de
Justiça, Brasília, 09 out. 2003.
65
segurança as decisões de conteúdo idêntico ou menor proferidas no mesmo processo. É dizer,
em outras palavras, que a sentença (ou o acórdão, no caso de ação de competência originária
do tribunal) que confirma a liminar ou, ainda, o acórdão que rejeita o recurso interposto contra
a decisão objeto da suspensão de segurança sujeitam-se, igualmente, à paralisação dos efeitos
determinada em sede de suspensão de segurança, sendo desnecessária a postulação, pelo
Poder Público, de nova decisão suspensiva.
A legislação referente à suspensão de segurança não impõe, historicamente, qualquer
limitação ao escopo do instrumento, estando incorporada ao costume judiciário pátrio a
possibilidade de sustação, inclusive, de decisões baseadas no direito constitucional. Admite-
se, portanto, com base na legislação infraconstitucional, onde, conforme visto, se encontra a
previsão da suspensão de segurança, o bloqueio da eficácia de direitos fundamentais.185
Um dos argumentos muito utilizados em favor da constitucionalidade da previsão da
suspensão de segurança em nossa lei processual é o de que a decisão proferida no incidente
está destinada a vigorar temporariamente, prevalecendo a sustação dos efeitos da decisão
judicial apenas durante o trâmite do processo principal. Não haveria, nesse sentido, o
sacrifício do direito do particular, que restaria satisfeito após o trânsito em julgado da decisão
que o reconhece.186
Tratar-se-ia, pois, a decisão de suspensão de segurança, de mera postergação da
efetividade do processo e, não, da mitigação da força obrigatória do ordenamento jurídico,
não se cogitando da subtração do direito do particular em virtude de necessidades enunciadas
pelo governo. Segundo tal raciocínio, a utilização da suspensão de segurança não redundaria,
em hipótese alguma, na manutenção, em caráter definitivo, de atos administrativos ilegais ou
inconstitucionais, sendo impossível, ao fim da tramitação processual, a prevalência de um
suposto interesse público despido de fundamento na ordem jurídica.
Nada obstante, não são raras as hipóteses em que a suspensão de uma decisão
judicial permite que sejam realizadas modificações irreversíveis no mundo fático, tornando
permanente o estado de anormalidade jurídica ensejado pelo deferimento da medida
185
Note-se, a respeito, que, enquanto os institutos do Estado de Defesa e do Estado de Sítio encontram-se
rigidamente regulados na Constituição de 1988, que, além de estabelecer mecanismos de revisão das decisões
respectivas, limita os direitos passíveis de ter suspensa sua eficácia, a suspensão de segurança permite a
sustação de qualquer decisão judicial que tenha o condão de causar dano grave ao interesse público nas
modalidades elencadas na legislação do instituto, sendo possível a exceção, como dito, de preceitos nucleares
de nossa Carta Constitucional. 186
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança: Sustação da eficácia de decisão judicial proferida
contra o Poder Público. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.162.
66
excepcional. Isto ocorre de forma notável no caso das grandes obras patrocinadas pelo Poder
Público que, uma vez realizadas com base em ordens de suspensão de segurança, não podem
ser removidas no caso do trânsito em julgado de decisão desfavorável. A impossibilidade de
retorno ao status quo ante, decorrente das alterações fáticas impostas pela consolidação do
empreendimento público, fazem com que, na prática, fique reduzida a zero a eficácia
normativa do comando jurídico posteriormente reconhecido como aplicável à espécie.
É ilustrativo, nesse sentido, o caso da construção da Usina Hidrelétrica Teles Pires,
no estado do Mato Grosso. Apreciando recurso de apelação interposto em ação civil pública,
no qual o Ministério Público alegava a invalidade do Estudo de Impacto Ambiental e do
Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) do empreendimento em virtude da não
realização de adequado Estudo do Componente Indígena, o desembargador responsável pelo
feito, integrante da quinta turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, proferiu decisão
de antecipação de tutela determinando a suspensão do licenciamento ambiental e das obras da
referida usina hidrelétrica.187
Restou consignado na decisão em apreço a ilegalidade da apropriação, no EIA/RIMA
a partir do qual foram emitidas a Licença Prévia e a Licença de Instalação da Usina
Hidrelétrica de Teles Pires, de Estudo do Componente Indígena realizado para fins de
instalação de outros empreendimentos hidrelétricos, notadamente as Usinas Hidrelétricas de
São Manoel e Foz de Apiacás. A imperatividade da realização de um estudo específico para o
empreendimento foi reconhecida com base no fato de resultar a construção da usina na
inundação de locais de valor simbólico e religioso para as comunidades indígenas existentes
na região, cuja importância ainda não teria sido devidamente analisada, bem como em razão
dos prováveis impactos na reprodução de peixes migratórios que têm na bacia do rio Teles
Pires o seu habitat.
O desembargador relator fez constar expressamente em sua decisão a
impossibilidade de reversão dos impactos da construção da Usina Hidrelétrica Teles Pires
sobre as comunidades indígenas locais, sublinhando que “a execução das obras de instalação
do empreendimento hidrelétrico descrito nos autos e os seus efeitos nas áreas por ele atingidas
possuem caráter de irreversibilidade, na dimensão temporal do fato consumado”.
187
BRASIL. Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Ap 0005891-81.2012.4.01.3600. Rel. Des. Souza
Prudente. Diário da Justiça Federal da Primeira Região, Brasília, 17 set. 2013.
67
A presidência do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a SL nº 722188
, determinou a
suspensão da decisão de antecipação de tutela adotada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª
Região, sob o fundamento de grave ofensa à ordem econômica. Na visão do órgão julgador, a
paralisação das obras da Usina Hidrelétrica Teles Pires, além de colocar em risco a segurança
energética do país, teria o condão de causar prejuízos econômicos de difícil reparação para o
Estado e para os agentes privados envolvidos no empreendimento, podendo acarretar,
inclusive, a demissão dos trabalhadores envolvidos na empreitada, representando, ainda,
ameaça ao meio ambiente, decorrente da necessidade de substituição da energia hidrelétrica
por energia gerada de formas diversas.
A continuidade das obras da Usina Hidrelétrica Teles Pires, garantida pela suspensão
de segurança deferida pelo Supremo Tribunal Federal, é decisão de caráter nitidamente
irreversível, capaz de ensejar a consolidação dos prejuízos aos interesses indígenas
anteriormente à apreciação definitiva pelas instâncias competentes do Poder Judiciário da
juridicidade da intervenção pública.
O caráter de irreversibilidade da suspensão de segurança pode ser observado, ainda,
na utilização que foi dada ao instrumento relativamente à implantação do chamado Plano
Nacional de Desestatização, previsto na Lei nº 8.031, de 1990. Com efeito, a complexidade
das situações jurídicas consolidadas após a transferência do controle acionário das empresas
estatais ao particular dificilmente permite o desfazimento dos atos posteriores à privatização,
restando destituída de eficácia prática qualquer decisão posterior que venha a reconhecer a
ilegalidade dos atos administrativos respectivos.
Exemplar a respeito é o caso da privatização do Banco do Estado de São Paulo –
BANESPA. A 15ª Vara Federal Cível em São Paulo, apreciando ações cautelares,
preparatórias de ação civil pública, ajuizadas por sindicato de bancários189
, que, sob a
alegação da existência de uma série de violações a preceitos de direito constitucional e
administrativo, impugnava o processo de licitação para alienação do controle acionário da
referida instituição financeira, determinou a suspensão dos efeitos do edital de abertura do
certame concorrencial respectivo.
188
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SL 722. Rel. Min. Joaquim Barbosa. Diário da Justiça Eletrônico,
Brasília, 30 set. 2013. 189
Registradas sob os números 2000.61.00.010634-4 e 2000.61.00.014684-6.
68
Os efeitos de tal decisão liminar foram suspensos por deliberação do desembargador
presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, na SS nº 2000.03.016834-6190
,
interposta pela União e pelo Banco Central do Brasil, sob o fundamento de “possibilidade de
grave lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem jurídico-processual”, em razão
do descumprimento, pelo juízo a quo, da regra do art. 2º da Lei nº 8.437, de 1992191
, que
impõe, nos casos de concessão de liminar em mandado de segurança coletivo e ação civil
pública, a prévia oitiva do representante da pessoa jurídica de direito público. Fundou-se a
decisão concessiva da suspensão de segurança, ademais, em ameaça de grave lesão à ordem
econômica, ao passo em que a paralisação do processo de privatização em tela seria capaz de
ensejar prejuízo substancial ao erário, tendo em vista os vultosos valores envolvidos no
certame. Ressaltou, ainda, o magistrado responsável pelo julgamento do incidente, a
necessidade de fazer prevalecer, no caso, o interesse público, uma vez que, segundo “farta
jurisprudência”, estaria este materializado na “continuidade de tais certames licitatórios”.
Referida decisão de deferimento da suspensão de segurança foi reformada pelo
Órgão Especial do mencionado tribunal federal quando do julgamento de agravo regimental
interposto pelo sindicato interessado. O voto condutor do acórdão baseou-se no entendimento
de não comportar o incidente de suspensão de segurança, “ainda sob o manto de lesão à
ordem pública no aspecto jurídico processual”, a discussão da ilegalidade ou nulidade da
decisão concessiva de liminar em ação civil pública. Afirmou-se, ainda, a insuficiência das
provas trazidas aos autos pelos requerentes da suspensão de segurança para a finalidade de
comprovar a potencialidade de vir a decisão originária a causar grave lesão à economia
pública, uma vez que a Nota Técnica nº 02/2000, utilizada para tal finalidade, havia sido
formulada unilateralmente pela área técnica do Banco Central do Brasil.
Contra tal decisão, ajuizaram a União e o Banco Central do Brasil, novo pedido de
suspensão de segurança perante o Supremo Tribunal Federal, com arrimo no parágrafo 4º do
art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, que, introduzido em nossa legislação pela já referida Medida
Provisória nº 1.948, em sua 13ª versão, de 11 de janeiro de 2000, determinava, à época, que
“negada a suspensão, mesmo antes da interposição do agravo a que se refere o parágrafo
precedente, caberá novo pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal competente para
julgar eventual recurso especial ou extraordinário”. O incidente, autuado como Pet nº
190
BRASIL. Tribunal Regional Federal da Terceira Região. SS 2000.03.00.016834-6. Rel. Des. José Kallás.
Diário da Justiça da União, Brasília, 23 nov. 2000. 191
Art. 2º da Lei nº 8.437, de 1992: “No mandado de segurança coletivo e na ação civil pública, a liminar será
concedida, quando cabível, após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público,
que deverá se pronunciar no prazo de setenta e duas horas.”
69
2066/SP, foi apreciado, inicialmente, pelo Min. Marco Aurélio, que determinou o
arquivamento do processo por entender se tratar o pedido em questão de verdadeiro recurso
travestido de suspensão de segurança, incorrendo em inconstitucionalidade, por indevida
ampliação da competência recursal do Supremo Tribunal Federal, a previsão de interposição
per saltum da suspensão de segurança constante do referido dispositivo da Medida Provisória
nº 1.948, de 2000.192
Tendo posteriormente assumido a Presidência do Supremo Tribunal Federal, o Min.
Carlos Velloso, ao apreciar recurso de agravo interposto pelas mencionadas entidades
públicas interessadas, reconsiderou a decisão anteriormente proferida pelo Min. Marco
Aurélio, entendendo superada, em razão da decisão adotada no julgamento da medida cautelar
na ADI nº 2.251/DF, a tese da inconstitucionalidade da nova sistemática estabelecida para a
suspensão de segurança pela Medida Provisória nº 1.984-13, de 2000, uma vez que, conforme
visto, naquela oportunidade, apenas a norma introduzida no parágrafo 8º do art. 4º da Lei nº
8.437, de 1992, teve suspensa sua vigência.193
No mérito do pedido de suspensão de segurança, entendeu o Min. Carlos Velloso
pelo deferimento da medida, valendo-se de fundamentação muito próxima à utilizada pela
Presidência do Tribunal Regional Federal da 3ª Região quando determinou, pela primeira vez,
a suspensão da liminar que determinou a sustação do processo de privatização do BANESPA.
De fato, teve como justificativa a nova suspensão dos efeitos da decisão de origem o risco de
grave violação à ordem pública, em termos de ordem jurídico-processual, consubstanciada na
ofensa ao disposto no art. 2º da Lei nº 8.437, de 1992, e, ainda, na possibilidade de grave
lesão à ordem econômica, conforme seria possível extrair da retro mencionada Nota Técnica
nº 2/2000, elaborada pelo Banco Central do Brasil.
A decisão proferida pelo Min. Carlos Velloso veio a se tornar definitiva com o
julgamento do agravo regimental que contra a mesma foi interposto pelo sindicato dos
bancários, recurso este que teve negado provimento, por maioria de votos, pelo Plenário do
Supremo Tribunal Federal. É interessante notar que o Min. Sepúlveda Pertence baseou seu
voto vencido na irreversibilidade dos efeitos da ordem de suspensão de segurança que então
192
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet 2066. Rel. Min. Marco Aurélio. Diário da Justiça, Brasília, 13 jul.
2000. 193
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet 2066. Rel. Min. Carlos Velloso. Diário da Justiça, Brasília, 29 ago.
2000.
70
se debatia, afirmando que “se há riscos, creio que são bilaterais. E o da privatização é
irreversível”.194
As ações civis públicas nº 2000.61.00.014261-0/SP195
e 2000.61.00.018729-0/SP196
,
processos principais em relação às ações cautelares em que foram proferidas as decisões
liminares suspensas, foram extintas sem julgamento de mérito em razão da “ocorrência de
carência de interesse de agir superveniente, com perda do objeto da demanda”, decorrente do
término do programa de privatização do BANESPA. Os processos ainda se encontram em
tramitação, tendo sido interpostos recursos de agravo de instrumento pelo sindicato dos
bancários com a finalidade de viabilizar a análise dos recursos cuja ascensão aos tribunais
superiores foi inadmitida no âmbito do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
O sacrifício definitivo de direitos de particulares pode ser encontrado como efeito da
suspensão de segurança, também, em decisões proferidas pela Min. Ellen Gracie, quando de
sua passagem pela Presidência do Supremo Tribunal Federal, para determinar a suspensão de
provimentos judiciais de urgência exarados para obrigar o Poder Público a fornecer os meios
materiais necessários ao tratamento de saúde dos requerentes. A título de exemplo, tem-se a
decisão adotada na SS nº 3073197
, por intermédio da qual foi suspensa a eficácia de decisão
liminar proferida em mandado de segurança impetrado perante o Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Norte para determinar ao Poder Público estadual a concessão de
medicamentos a pessoa doente de câncer198
.
No caso, a decisão concessiva da suspensão de segurança baseou-se no
reconhecimento de grave ameaça de lesão à ordem pública, em sua dimensão ordem
administrativa, tendo entendido a magistrada responsável pelo julgamento que a concessão
dos medicamentos em questão afetava “o já abalado sistema público de saúde”. Ressaltou-se,
ademais, nas razões de decidir, que a gestão da política nacional de saúde deve buscar a
racionalização dos tratamentos fornecidos gratuitamente, com vistas ao atendimento do maior
194
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet 2066. Rel. Min. Marco Aurélio. Diário da Justiça, Brasília, 28 fev.
2003. 195
BRASIL. Tribunal Regional Federal da Terceira Região. Ap. 2000.61.00.014261-0. Rel. Des. Consuelo
Yoshida. Diário da Justiça, Brasília, 9 set. 2011. 196
BRASIL. Tribunal Regional Federal da Terceira Região. Ap. 2000.61.00.018729-0. Rel. Des. Consuelo
Yoshida. Diário da Justiça, Brasília, 13 mai. 2011. 197
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 3073. Rel. Min. Ellen Gracie. Diário da Justiça, Brasília, 14 fev.
2007. 198
No mesmo sentido, as SS nº 3274 e SS nº 3201, nas quais as decisões de origem determinavam a concessão
pelo Poder Público de medicamentos para o tratamento da enfermidade de Infertilidade Feminina. Cf.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 3274. Rel. Min. Ellen Gracie. Diário da Justiça, Brasília, 22 ago.
2007. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 3201. Rel. Min. Ellen Gracie. Diário da Justiça, Brasília, 27
jun. 2007.
71
número possível de beneficiários, postulado que não teria sido observado pela decisão de
origem, que, ao impor o fornecimento de medicamento de alto custo, teria o condão de
comprometer a capacidade estatal de oferecimento de serviços básicos de saúde ao restante da
população. Argumentou-se, por fim, a presença do chamado efeito multiplicador,
materializado, na hipótese, na possibilidade de que as “milhares de pessoas em situação
potencialmente idêntica à do impetrante” fossem a juízo reclamar a realização de seu direito à
saúde.
O caráter de definitividade que assumem, em sua maior parte, se não em sua
totalidade, as decisões judiciais que negam a concessão de medicamentos ou quaisquer outras
prestações relativas ao direito à saúde é evidente por si mesmo, sendo desnecessário tecer
maiores considerações sobre o tema. O que fica claro, portanto, é a tendência de a decisão
adotada em sede de suspensão de segurança, em inúmeras hipóteses, vir a se tornar definitiva,
inviabilizando a posterior realização prática do comando decisório transitado em julgado no
processo originário.
2.3 Afastamento da caracterização da suspensão de segurança como recurso
Atualmente, poucas vozes se levantam em favor da caracterização da suspensão de
segurança como espécie de recurso. Tal entendimento, porém, pode ser encontrado na
doutrina de Araken de Assis, para quem o instrumento possui a natureza de sucedâneo
recursal.199
Sucedâneos recursais são os remédios que, “por absoluta falta de previsão legal, não
são considerados como recursos, mas tendo em vista a finalidade para a qual foram criados,
fazem as vezes destes”.200
Trata-se de medidas que, apesar de não estarem expressamente
previstas como recursos na legislação processual, são utilizadas com a mesma finalidade
destes, ou seja, para postular a reforma ou invalidação de atos judiciais. A irrecorribilidade
das decisões interlocutórias foi a grande responsável pela generalização dos sucedâneos
199
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.939-945. 200
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.75.
72
recursais em nosso processo civil, utilizados de forma a “suprir, embora oblíqua e
inadequadamente, a falha e erro do legislador”.201
Araken de Assis sustenta que os sucedâneos recursais são caminhos heterodoxos
encontrados pelos litigantes para desafiar pronunciamentos judiciais que lhes são
desfavoráveis. Em comum com os recursos, teriam o objetivo de corrigir ou invalidar atos
judiciais, bem como as características de não ensejarem a formação de processo autônomo,
desenvolvendo-se na relação processual originária, e, ainda, de obstar o trânsito em julgado da
decisão atacada.202
Nesse sentido, não se caracterizariam como sucedâneos recursais, por exemplo, a
ação rescisória, que, nos termos do art. 485 do CPC, pressupõe o trânsito em julgado da
decisão impugnada, assim como os writs constitucionais, como o mandado de segurança e o
habeas corpus que, apesar de produzirem as mesmas consequências dos recursos quando
manejados contra atos judiciais, desenvolvem-se em relações processuais autônomas.203
Em
seu Manual dos Recursos, o autor elenca, como sucedâneos recursais strictu sensu, o reexame
necessário, a correição parcial, o pedido de reconsideração, o agravo regimental e a suspensão
de segurança.204
Para efetuar a inclusão da suspensão de segurança entre os sucedâneos recursais,
Araken de Assis retorna à redação conferida pela Medida Provisória nº 1.984, em sua 19ª
versão, de 1º de junho de 2000, ao parágrafo 8º do art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, que,
conforme visto, previa a possibilidade de deferimento da suspensão de segurança no caso de
“flagrante ofensa à lei ou à jurisprudência de tribunal superior”. Segundo o autor, tratar-se-ia
da análise da presença de error in judicando no ato decisório objeto do pedido de suspensão
de segurança, análise esta capaz de ensejar a reforma do ato judicial impugnado, “prejulgando
o objeto do recurso próprio”.205
É de se ressaltar, contudo, que a norma em questão teve vida
curta, permanecendo em vigor apenas até a 22ª versão da referida Medida Provisória, tendo
experimentado, inclusive, durante sua vigência, a suspensão de seus efeitos por decisão do
Supremo Tribunal Federal na retro referida ADI nº 2251.
Nada obstante a modificação do quadro normativo que baseia seu entendimento,
Araken de Assis reconhece uma espécie de continuação da mencionada norma revogada na
201
MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil, 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1969, v.
IV, p.292. 202
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.907-909. 203
Ibidem, p.909. 204
Idem, p.931-950. 205
Idem, p.941.
73
atual redação do parágrafo 7º do art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, segundo a qual “O
Presidente do Tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar, em
juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na concessão da medida”. Para
o autor, os conceitos indeterminados “plausibilidade do direito invocado” e “urgência na
concessão da medida” equivaleriam, “essencialmente, mas com sinal contrário, aos que
ensejaram a concessão da liminar no âmbito da tutela de urgência, e mesmo aos do mérito do
mandado de segurança e das demandas de urgência”. Teria como efeito, portanto, o referido
parágrafo 7º do art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, a redução do espaço da noção de que o ato do
presidente do tribunal ostenta natureza política, não havendo, assim, qualquer faculdade
judicial de suspensão das decisões desfavoráveis ao Poder Público, mas dever de fazê-lo nas
hipóteses em que verificados os pressupostos referidos.206
O autor conclui seu posicionamento afirmando que fazia sentido, anteriormente às
alterações operadas no sistema da suspensão de segurança pelas Medidas Provisórias editadas
em série a partir do ano de 1999, a postulação de que o instituto se destinava a suprir a
inexistência de recurso oponível contra as liminares expedidas em mandado de segurança,
havendo, ao tempo em que a concessão da suspensão de segurança se encontrava atrelada
exclusivamente aos pressupostos extraordinários prescritos na legislação de regência, bons
argumentos que permitiam distingui-la dos recursos propriamente ditos. Na conformação
atual, porém, a suspensão de segurança teria assumido funções recursais, sobrepondo-se aos
recursos de apelação e agravo.207
A respeito especificamente da posição de Araken de Assis, é de se notar que a leitura
feita pelo autor do parágrafo 7º do art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, é diversa daquela que
realiza a maior parte da doutrina que se debruçou sobre o tema. Em geral, a norma que se
extrai do referido dispositivo legal é de autorização do deferimento liminar do pedido de
suspensão de segurança pelo presidente do tribunal, de forma de inaudita altera pars. Vejam-
se, nesse sentido, a passagem seguinte:
Tratando-se de expediente cautelar, o pedido de suspensão comporta uma apreciação
inicial de admissibilidade e de viabilidade, analisadas sob o prisma da invocação de
urgência. Neste sentido, o que passou a ser autorizado ao juiz Presidente do
Tribunal, mediante a invocação ora analisada, não é propriamente o deferimento da
liminar da ordem cautelar sem a oitiva do autor da ação ou mesmo do Ministério
Público, note-se, mas a imediata sustação dos efeitos da decisão judicial objeto do
206
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.941. 207
Ibidem, p.941-942.
74
incidente até que, procedidas as oitivas referidas, obtidas as informações necessárias
à instrução sumária do feito, finalmente possa o Presidente proferir seu julgamento.
Para a efetivação das garantias derivadas do devido processo legal, sem prejuízo da
ineficácia da tutela cautelar acaso não fosse de imediato determinada a sustação da
execução do provimento judicial contrário aos interesses públicos especificados,
permite-se a concessão do chamado efeito suspensivo liminar que nada mais é senão
a antecipada concessão de medida liminar inaudita altera parte.
A liminar suspensiva é deferida mediante juízo prévio, vale dizer, cognição
superficial embasada pelas alegações unilaterais do requerente do pedido de
suspensão, daí sua excepcionalidade.208
Tem-se, nesse sentido, que a expressão “plausibilidade do direito invocado”,
constante do parágrafo 7º do art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, não diz respeito à análise da
juridicidade das alegações jurídicas sustentadas pelo Poder Público no processo de origem ou,
em outras palavras, da probabilidade de reversão da decisão contra a qual ajuizada a
suspensão de segurança. Trata-se, em verdade, da possibilidade, conferida ao presidente do
tribunal competente para a apreciação do pedido de suspensão de segurança, de proferir
decisão liminar no incidente, dando efeitos imediatos ao provável julgamento a ser proferido
no feito antes mesmo da oitiva das partes interessadas e do Ministério Público. A
plausibilidade de que trata o dispositivo legal mencionado é, portanto, do deferimento da
suspensão de segurança, mediante o reconhecimento da ameaça de grave lesão aos bens
jurídicos ordem, saúde, segurança e economia públicas, e, não, da reforma ou anulação da
decisão originária pelo reconhecimento de sua desconformidade com o ordenamento jurídico.
A doutrina majoritária, que nega a caracterização da suspensão de segurança como
instituto de natureza recursal, se baseia no fato de não se destinar o instrumento a corrigir
erros in procedendo ou in judicando das decisões contrastadas, mas, exclusivamente, a
suspender os efeitos de provimentos judiciais capazes de prejudicar o interesse público nas
hipóteses relacionadas na legislação. O maior obstáculo para a inclusão da suspensão de
segurança na classe dos recursos é, portanto, a ausência do efeito devolutivo que a define,
distinguindo-a definitivamente das espécies recursais.
Sobre o efeito devolutivo, argumenta-se que a característica fundamental dos
recursos é propiciar o reexame da matéria anteriormente decidida, mesmo que a competência
para tal reexame esteja atribuída à mesma autoridade judiciária responsável pela prolação da
decisão recorrida.209
Diz respeito, o efeito devolutivo, à transferência, para o órgão julgador
competente, da matéria que constitui o objeto da impugnação recursal, a qual será objeto de
208
VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p.194. 209
JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.7.
75
reavaliação e reanálise, “é o único que genuinamente poderia ser considerado efeito do
recurso, já que corresponde, em qualidade e quantidade, àquilo que constitui o objeto e razão
de ser dos recursos”.210
Nelson Nery Jr. defende que a devolução da matéria impugnada é o efeito natural de
todo e qualquer recurso, possibilitando ao recorrente obter novo pronunciamento judicial
sobre a matéria. O efeito devolutivo teria o efeito de prolongar o procedimento, adiando a
formação da coisa julgada e fazendo com que o processo fique pendente até que não mais se
possa impugnar a decisão judicial, seja pela inércia da parte, seja pelo esgotamento das
hipóteses recursais previstas na legislação.211
A mesma linha de entendimento é adotada por Araken de Assis, que também
reconhece no efeito devolutivo a essência do gênero recursal.212
A revisão das decisões
judiciais seria uma função indispensável à jurisdição, incutindo a confiança no público de que
o Judiciário tem como finalidade julgar com justiça as demandas que lhe são submetidas,
atuando, ainda, como agente de promoção da supremacia da Constituição e da exata aplicação
das leis.213
A suspensão de segurança, ao passo em que não comporta o rejulgamento da lide
realizado na instância originária, mas, apenas, a verificação da necessidade de acautelar o
interesse público naquele contexto fático específico, não é dotada do referido efeito
devolutivo. Não se trata, com efeito, na via da suspensão de segurança, da devolução da
matéria ao presidente do tribunal incumbido do julgamento do incidente, debatendo-se
exclusivamente a necessidade excepcional de suspensão de uma decisão judicial
potencialmente lesiva aos bens jurídicos elencados na legislação.
A suspensão de segurança se diferencia das demais espécies recursais, ademais, pela
ausência de outro dos efeitos típicos destas, o efeito obstativo. Acerca do tema, ressalta-se a
existência de dois mecanismos diversos de impugnação de provimentos judiciais: os remédios
que obstam a formação da coisa julgada e os meios destinados à impugnação de decisões já
transitadas em julgado.214
No direito processual brasileiro, a leitura do art. 467 do CPC215
nos
210
JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.248. 211
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.432. 212
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.246. 213
Ibidem, p.42. 214
Idem, p.908. 215
Art. 467 do CPC: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a
sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”
76
conduziria à conclusão de que apenas aqueles primeiros encontram guarida na classe dos
recursos:
Do dispositivo retira-se, inicialmente, a conclusão segura de que, no direito pátrio,
todos os recursos inibem a constituição da eficácia da coisa julgada. Logo, escapam
à categoria recursal os remédios porventura utilizáveis contra os provimentos
revestidos da autoridade da coisa julgada, embora seja precipitado conferir natureza
recursal a todos os remédios empregados para impugná-los antes do trânsito em
julgado.216
Fica claro, portanto, que os recursos possuem como característica essencial o fato de
impedirem o trânsito em julgado das decisões contra as quais interpostos. A suspensão de
segurança, pelo contrário, destina-se a vigorar até o trânsito em julgado da decisão a que se
refere, não exercendo qualquer influência sobre a formação da coisa julgada, a qual importa
na imediata cessação da eficácia da decisão concessiva da suspensão de segurança que
impedia a execução da decisão agora tornada definitiva.
Deve-se levar em conta, ainda, que a suspensão de segurança não se submete ao
regime jurídico próprio do gênero recursal, sendo-lhe inaplicáveis os pressupostos de
dedução, processamento e apreciação dos recursos em geral.217
Corroborando tal assertiva,
critica-se, sob o prisma do princípio da tipicidade, a classificação da suspensão de segurança
como espécie de recurso, apontando-se para o fato de não constar o incidente “do regime de
recursos previstos no Código de Processo Civil”.218
As regras de legitimidade para interposição da suspensão de segurança são
ilustrativas do distanciamento do instrumento da sistemática dos recursos. Com efeito, o
direito de recorrer, como desdobramento natural do direito de ação, compete exclusivamente à
parte processual, diferentemente do que ocorre quanto à suspensão de segurança, cuja
interposição pode ser realizada, desde que configurado o interesse, por pessoa jurídica de
direito público ou pelo Ministério Público219
, independente do fato de terem participado da
relação jurídica processual originária220
.
216
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.908. 217
VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p.50. 218
ROCHA, Caio Cesar. Art. 15. MAIA FILHO, Napoleão Nunes; ROCHA, Caio Cesar; LIMA, Tiago Asfor
Rocha (Org.). Comentários à Nova Lei do Mandado de Segurança. São Paulo: RT, 2010, p.209. 219
Tem-se reconhecido, no âmbito jurisprudencial, legitimidade para a interposição de suspensão de segurança
às pessoas jurídicas de direito privado que exercem atividades de interesse público, a exemplo das
concessionárias de serviço público e das instituições de ensino superior. Tal legitimidade depende da
77
Outro exemplo da inaplicabilidade do regime dos recursos à suspensão de segurança
é a não incidência do instituto da preclusão ao direito de ajuizamento da medida extrema pelo
Poder Público, para o qual não há a estipulação de prazo algum em nossa legislação
processual, podendo ser exercido a qualquer tempo. Alude-se, ainda, à ausência de (i)
prequestionamento, de (ii) vedação do reexame de matéria fática e de (iii) submissão ao juízo
de admissibilidade perante o presidente do tribunal de origem, circunstâncias que
caracterizam o acesso aos Tribunais Superiores via interposição per saltum do pedido de
suspensão de segurança, o que constitui o instrumento como “uma espécie de „controle
interno‟ e bastante célere da atividade das Cortes estaduais ou regionais” pelas referidas
instâncias de cúpula do Poder Judiciário.221
Afirma-se, ainda, na doutrina, que a definição da suspensão de segurança como
recurso comprometeria em absoluto a lógica de nosso sistema recursal, sendo de
incontornável inconstitucionalidade por violação ao princípio do devido processo legal e
subversão dos princípios do juiz natural e da unirrecorribilidade das decisões judiciais. A
natureza de recurso do instituto é impugnada, ainda, com base na quebra da isonomia que
decorreria da criação de uma medida impugnativa da decisão judicial utilizável
exclusivamente pelo Poder Público.222
2.4 Caracterização da suspensão de segurança como medida cautelar
Ultrapassada a caracterização da suspensão de segurança como espécie de recurso,
trata-se, então, de analisar a corrente doutrinária que conceitua o instituto como prerrogativa
processual do Poder Público de natureza cautelar, cuja finalidade residiria na suspensão,
mediante a presença dos requisitos fumus boni iuris e periculum in mora, de decisões judiciais
comprovação de que a decisão de origem causa prejuízo ao exercício das atividades de interesse público e,
não, a meros interesses da pessoa jurídica envolvida. Nesse sentido: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SL
34. Rel. Min. Maurício Corrêa. Diário da Justiça, Brasília, 24 mar. 2004. O Supremo Tribunal Federal já
admitiu, também, o ajuizamento de suspensão de segurança por órgão público desprovido de personalidade
jurídica. Nesse sentido: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 1308. Rel. Min. Celso de Mello. Diário da
Justiça, Brasília, 09 out. 1998. 220
Note-se, a respeito, que a lei usa a expressão “pessoa jurídica de direito público interessada” e, não, “ré”,
“requerida” ou “impetrada”. 221
BUENO, Cassio Scarpinella. As novas regras da suspensão de liminar em mandado de segurança. BUENO,
Cassio Scarpinella; ALVIM, Eduardo Arruda; WAMBIER, Teresa Arruda Avim. (Org.) Aspectos polêmicos e
atuais do mandado de segurança: 51 anos depois. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.196. 222
VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p.51.
78
potencialmente lesivas aos valores ordem, saúde, segurança e economia públicas. Tratar-se-ia,
portanto, de instrumento de tutela do interesse público, vocacionado à sustação dos efeitos de
decisões judiciais possivelmente ilegais, cuja modificação pelas instâncias recursais
competentes esteja revestida de considerável grau de probabilidade.
Caio Cesar Rocha afirma que, ao regular a suspensão de segurança, optou o
legislador, baseado nos princípios da proporcionalidade e da prevalência do interesse público,
por temperar a garantia do acesso à jurisdição, possibilitando o diferimento da efetividade das
decisões judiciais nas circunstâncias em que ameaçados valores relevantes para a
coletividade.223
Apesar da mencionada fundação do instituto no princípio da supremacia do
interesse público sobre o particular, o autor defende a necessidade de afastar do inconsciente
jurídico a conotação política com a qual se encontra tão vinculado, apontando o fumus boni
iuris como elemento jurídico necessário ao deferimento do pedido de suspensão de
segurança.224
A aplicação da suspensão de segurança a decisões cuja probabilidade de modificação
pelas instâncias jurisdicionais superiores seja nula ou reduzida, sem a presença, portanto, do
requisito do fumus boni iuris, transformaria o instituto, segundo Caio Cesar Rocha, em
instrumento de concessão de moratória das obrigações legais do Poder Público, não havendo
“motivos plausíveis nem justificáveis para se manter certas limitações à obtenção de tutelas
provisórias contra a fazenda pública, quando referidas tutelas se enquadrem perfeitamente
com questões idênticas já decididas definitivamente pelas instâncias superiores.”225
A suspensão de segurança, na visão do autor, é providência de contracautela
destinada a resguardar os bens públicos elencados na legislação de regência do instituto
quando presente, mesmo que de forma superficial, a “plausibilidade de reversão, através do
recurso próprio, da decisão cuja eficácia se pretende suspender, plausibilidade esta a ser
vislumbrada através do juízo de delibação a ser exercido pelo Presidente do Tribunal
competente para apreciar e processar a medida suspensiva”.226
Cuidar-se-ia, portanto, de
forma de acautelar uma situação jurídica possível de ser atingida pelo Poder Público através
da impugnação recursal própria.227
223
ROCHA, Caio Cesar. Pedido de Suspensão de decisões contra o Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2012,
p.73. 224
Ibidem, p.125. 225
Idem, p.196. 226
Idem, p.168. 227
Idem, p.168.
79
O jurista cearense sublinha a impossibilidade de revisão do mérito da demanda
principal na suspensão de segurança, evitando-se, assim, a transformação do incidente em
nova espécie recursal. A análise da juridicidade da decisão, segundo afirma, deve ocorrer de
maneira superficial, cabendo ao órgão julgador, simplesmente, verificar a probabilidade de vir
a mesma a ser modificada no decorrer do trâmite processual.
Essa análise de probabilidade, na visão do autor em destaque, deve se limitar à
averiguação da possibilidade de modificação da decisão originária, impondo-se ao magistrado
incumbido da apreciação da suspensão de segurança desvincular-se de seu próprio
entendimento a respeito da matéria. Não cabe, portanto, ao desembargador presidente do
tribunal, exercer qualquer juízo de valor sobre a questão jurídica controvertida, competindo-
lhe, simplesmente, “cotejar os aspectos jurídicos envolvidos na decisão objeto do incidente,
com tudo aquilo que já foi julgado, em casos semelhantes, pelas instâncias superiores”.228
Tem-se, nesse sentido, que a análise do pedido de suspensão de segurança se baseia
num prognóstico acerca da probabilidade da modificação da decisão de origem, realizada do
ponto de vista dos precedentes das cortes superiores sobre a temática e, não, a partir das
convicções do magistrado incumbido de decidir o incidente. Caio Cesar Rocha afirma que o
“juízo mínimo de delibação” cabível em sede de suspensão de segurança deve ser pragmático,
livre de subjetivismos e não adstrito ao convencimento individual do julgador, ao qual
compete exercer sua função baseado no “cotejo dos dados que lhe foram apresentados com a
realidade do que vem sendo a prática nos tribunais”.229
É importante ressaltar que o autor estabelece certa prevalência aos interesses do
Poder Público no incidente de suspensão de segurança, afirmando que, na hipótese de
inexistirem dados suficientes para avaliar a probabilidade de revisão da decisão de origem,
deve ser determinada a sustação de seus efeitos.230
Nesse sentido, defende que, na presença do
periculum in mora, materializado na potencialidade de lesão aos valores públicos elencados
na legislação, a suspensão de segurança somente deve ser negada em caso de jurisprudência
amplamente pacificada sobre a matéria, sendo insuficientes “meros precedentes” que ainda
não tenham sido “objeto de amplo debate e reflexão por parte daqueles órgãos jurisdicionais
maiores”.231
O indeferimento da suspensão de segurança, portanto, somente se daria no caso
228
ROCHA, Caio Cesar. Pedido de Suspensão de decisões contra o Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2012,
p.190. 229
Ibidem, p.194. 230
Idem, p.194. 231
Idem, p.190.
80
de se encontrar a pretensão do Poder Público em confronto com “entendimento
jurisprudencial já pacífico e manifesto do STJ ou do STF”.232
Cassio Scarpinella Bueno, após afirmar lhe parecer indiscutível a natureza cautelar
da suspensão de segurança, bem como de não se tratar de espécie recursal, sustenta que a
“grave lesão” a justificar a utilização da providência excepcional em favor do Poder Público
“só tem sentido se a decisão concessiva da liminar ou da sentença for injurídica”.233
O autor
reconhece que a posição que defende é “amplamente minoritária”, apontando, porém, a
necessidade de que o tema seja revisitado a partir das recentes reformas do Processo Civil
nacional, que criaram mecanismos hábeis e eficientes para paralisar, quando necessário, a
eficácia das decisões não transitadas em julgado proferidas em mandado de segurança, não
mais se justificando a benevolência conferida pela doutrina e pela jurisprudência à prática da
suspensão de segurança.234
Para o autor, não basta que o requerente da suspensão de segurança demonstre as
“razões políticas” ou “metajurídicas” indicadas na legislação, sendo necessária a
demonstração de que a decisão é contrária ao ordenamento jurídico “e, por esta razão, é que
afeta, negativamente, os valores” que autorizam o deferimento da medida extrema. A
caracterização da lesão ao interesse público depende, necessariamente, da afronta ao
ordenamento jurídico, pelo simples fato da inexistência de interesse público à margem da
lei.235
Cassio Scarpinella Bueno é enfático ao afirmar que nenhum conceito tem interesse
para o Direito senão quando e enquanto pautado em dados jurídicos, pertinentes ao
ordenamento jurídico. Ressalta, nesse sentido, que não se pode admitir, sob pena de subversão
do sistema constitucional vigente, que o mecanismo da suspensão de segurança seja utilizado
para a finalidade de substituir, pelo seu equivalente pecuniário, a fruição in natura dos
direitos assegurados na legislação. Em seu modo de entender, “ou existe direito do particular
a ser resguardado e fruído in natura ou não existe direito e, consequentemente é legítima a
suspensão da liminar pela agressão aos valores estampados no art. 4º da Lei 4.348/64.”236
232
ROCHA, Caio Cesar. Pedido de Suspensão de decisões contra o Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2012,
p.190. 233
BUENO, Cassio Scarpinella. Liminar em Mandado de Segurança. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999, p.212. 234
Ibidem, p.211-212. 235
Idem, p.224. 236
Idem, p.222.
81
A única forma de compatibilizar a suspensão de segurança com a ordem
constitucional vigente estaria, portanto, na concessão de natureza cautelar ao instituto,
reconhecendo-lhe a finalidade de conferir efeito suspensivo ao recurso interposto pelo Poder
Público baseado em argumentação jurídica convincente. Em outras palavras, havendo dúvidas
quanto à ilegalidade do ato administrativo contra o qual deferido a decisão judicial liminar,
assumiria a sustação dos efeitos desta última função de contracautela, baseada em razões
jurídicas e, não, simplesmente políticas, destinando-se a vigorar até a manifestação do órgão
recursal competente.237
Discorrendo sobre a constitucionalidade da suspensão de segurança, Gleydson
Kléber de Oliveira afirma que a mesma deve ser admitida em razão de visar o incidente à
proteção de interesses públicos contemplados na ordem jurídica, tendo em vista, inclusive, a
adoção, pela Constituição de 1988, do princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular.238
O autor ressalta, porém, a necessidade de se afastar o entendimento de que a
suspensão de segurança é regida por critérios exclusivamente políticos, conforme se extrai da
passagem que se segue:
A partir de uma interpretação conforme à Constituição (...) parece-nos que
necessariamente o pedido de suspensão de liminar ou de sentença tem que estar
lastreado, também, em critérios, jurídicos.
Vale dizer, nesse incidente, para que o presidente do tribunal suspenda a execução
da liminar ou da sentença, é indispensável simultaneamente que a decisão viole a
ordem jurídica e que sua execução possa ocasionar grave lesão à ordem, à
segurança, à saúde ou à economia públicas, porquanto, em um intitulado Estado
democrático de direito, somente pode existir e cogitar de interesse público, desde
que ele seja compatível com a ordem jurídica.
Interesse que não tem lastro na ordem jurídica não pode ser considerado público, de
forma que a avaliação e a análise acurada dos critérios jurídicos da decisão a que se
visa suspender, por meio do citado incidente, devem necessariamente ser efetuadas
pelo presidente do tribunal.239
Eduardo Arruda Alvim, após afirmar a inexistência de interesse público à margem da
lei, sustenta a impossibilidade de deferimento da suspensão de segurança de forma
independente da discussão sobre o desacerto da decisão de origem, mediante a simples
237
BUENO, Cassio Scarpinella. Liminar em Mandado de Segurança. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999, p.211. 238
OLIVEIRA, Gleydson Kleber Lopes de. Incidente de suspensão de execução de liminar e de sentença em
mandado de segurança. In: BUENO, Cassio Scarpinella; ALVIM, Eduardo Arruda; WAMBIER, Teresa
Arruda Avim (Org.) Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança: 51 anos depois. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p.385. 239
Ibidem, p.385-386.
82
invocação dos bens jurídicos elencados na legislação de regência do instituto.240
Em sua
visão, a mera alegação de perigo de grave dano à ordem, à saúde, à segurança e à economia
públicas não basta para caracterizar o interesse público, que, antes de tudo, pauta-se em um
“critério maior, genérico, que é a submissão à lei”.241
O autor defende que a suspensão de segurança deve ser entendida como um
instrumento adicional à disposição do Poder Público para buscar a suspensão de decisões
judiciais proferidas em seu desfavor, objetivo este que não poderia “ser alcançado sem que se
demonstrasse que a decisão não está correta”.242
Teria cabimento, portanto, a suspensão de
segurança, somente nos casos em que presente, além do periculum in mora, o fumus boni
iuris, na medida em que não se encontra o Poder Judiciário autorizado a adentrar em motivos
de ordem estritamente política, no que se reduziriam as citadas hipóteses de utilização do
instrumento excepcional enumeradas na legislação quando não analisadas conjuntamente com
a legalidade do ato impugnado ou da possibilidade de êxito ao final da demanda.243
Ainda segundo Eduardo Arruda Alvim, a admissão de meios processuais destinados
à proteção de interesses das pessoas jurídicas de direito público “não pode chegar ao ponto de
o Poder Público possuir um instrumento para ser apreciado pelo Poder Judiciário que tenha
para sua concessão, exclusivamente, critérios de ordem política que não envolvam em seu
bojo qualquer matéria discutindo a legalidade do ato”244
. Do ponto de vista constitucional,
portanto, não seria possível defender a existência de um incidente capaz de garantir a vigência
de atos públicos baseados em argumentos já reconhecidamente tidos por ilegais ou
inconstitucionais, vedando-se a sustação de “decisão judicial pautada em direito líquido” por
razões alheias ao ordenamento jurídico.245
O Supremo Tribunal Federal, na presidência do Min. Sepúlveda Pertence, adotou, em
diversas ocasiões, o entendimento de que ora se trata. O referido magistrado, tanto em
decisões monocráticas, quanto na relatoria de recursos, insistiu na tese de que o deferimento
da suspensão de segurança, além do risco de grave lesão aos valores ordem, saúde, segurança
240
ALVIM, Eduardo Arruda. Suspensão da eficácia da decisão liminar ou da sentença em mandado de segurança
– aspectos controvertidos do art. 4º da Lei 4.348/64. In: BUENO, Cassio Scarpinella; ALVIM, Eduardo
Arruda; WAMBIER, Teresa Arruda Avim (Org.) Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança: 51
anos depois. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.252. 241
Ibidem, p.261. 242
Idem, p.252-253. 243
Idem, p.263-264. 244
Idem, p.264. 245
Idem, p.264.
83
e economia públicas (periculum in mora), depende da ocorrência concomitante do fumus boni
iuris. É ilustrativa a respeito a decisão proferida no AgRg na SS nº 846/DF, veja-se:
3. Dedica-se a densa e veemente fundamentação do agravo regimental à colação de
precedentes nos quais se asseverou, em tom apodítico, que, para a decisão do pedido
de suspensão de segurança, não deve pesar qualquer juízo de mérito sobre a
controvérsia de fundo.
4. Não desconheço os precedentes. Nem tantos outros que lhes repetem o aparente
axioma.
5. Mas a questão é mais complexa.
6. Basta notar como é freqüente que as decisões que deferem ou denegam a
suspensão de liminares ou acórdãos concessivos de segurança não se furtem à
delibação do mérito do mandado de segurança, malgrado a façam anteceder quase
sempre da concessão de que, em princípio, a ela não caberia proceder.
7. Não é peculiar no Brasil certa dificuldade de reconhecerem os juízes, em
processos similares ao da suspensão de segurança, que a delibação da controvérsia
subjacente compõe as premissas reais da decisão, ainda que muitas vezes não
explicitada.
(...)
9. Da minha parte, convenço-me, cada dia mais, de que, também na suspensão de
segurança, esse juízo de delibação – ao menos na estrita medida necessária à
verificação da plausibilidade jurídica da resistência oposta pelo Estado à impetração
–, é quase sempre inevitável.
(...).
15. Ora, não há regra nem princípio segundo os quais – sendo ela mesma uma
medida cautelar, mas ao contrário do que em todo provimento cautelar sucede – a
contracautela na suspensão de segurança devesse dispensar o pressuposto do fumus
boni iuris que, no particular, se substantiva na probabilidade de que, mediante o
provimento do recurso futuro, venha a prevalecer a resistência à pretensão do
impetrante.
16. Não importa que as leis (L. 4.348/694, art. 4º; L. 8.038/90, art. 25) e, neste
Tribunal, o art. 297 do Regimento Interno, se limitem a explicitar, como finalidade
da medida suspensiva, a de “evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à
economia públicas”: a finalidade de todo provimento cautelar é sempre o de obviar o
periculum in mora, cuja verificação, no caso concreto, pende, contudo, da
concorrência do fumus boni iuris, sem a presença do qual perde sentido, na visão
eminentemente instrumental do processo, salvaguardar o improvável.
(...)
19. Certo, são valores públicos eminentes – a ordem, a saúde, a segurança e a
economia públicas –, aquele que, de modo específico, entre nós, a suspensão de
segurança visa proteger.
20. Nem por isso, por si sós, justificariam a medida, se os riscos corridos não se
qualificassem pela probabilidade de verificar-se ao final que não os sobreleva o
direito líquido e certo do impetrante.
21. A suspensão de segurança, em outros termos, não é moratória a conceder-se à
Administração Pública para protrair a satisfação do direito subjetivo do particular,
que se entremostre induvidoso: é sim, repita-se, contracautela que sobrepõe, à regra
geral da eficácia imediata da sentença concessiva da liminar ou da segurança, a
necessidade de prevenir riscos a interesses públicos privilegiados para a hipótese
viável de vir a ordem a ser finalmente denegada. 246
246
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 846. Rel. Sepúlveda Pertence. Diário da Justiça, Brasília, 08 nov.
1996.
84
No julgamento do AgRg na SS 1149/PE, referindo-se às razões de decidir do acórdão
retro citado como “a nova orientação” do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, o Min.
Sepúlveda Pertence corroborou suas conclusões anteriores sobre a temática, acrescentando as
seguintes considerações:
Verdadeiramente inconciliável com o Estado de Direito e a garantia constitucional
da jurisdição seria o impedir a concessão ou permitir a cassação da segurança
concedida, com base em motivos de conveniência política ou administrativa, ou seja,
a superposição ao direito do cidadão das “razões de Estado”.
Não é o que sucede com a suspensão de segurança, que não tem por objeto a
sustação do cumprimento de decisão transitada em julgado, mas apenas a da
execução provisória de decisão recorrível.
Assim como a liminar ou a execução provisória de decisão concessiva de mandado
de segurança, quando recorrível, são modalidades criadas por lei de tutela cautelar
do direito provável – mas ainda não definitivamente acertado do impetrante –, a
suspensão dos efeitos, nas hipóteses excepcionais, igualmente previstas em lei, é
medida de contracautela com vistas a salvaguardar, contra o risco de grave lesão a
interesses públicos privilegiados, o efeito útil do êxito provável do recurso de
entidade estatal: reporto-me às observações feitas a propósito na AGSS 846, de
29.5.96.
Por isso mesmo, revendo entendimento a que ainda se apega o agravante, o Tribunal
abandonou o preconceito segundo o qual, ao deferimento da suspensão de
segurança, seria de todo estranha a indagação, ainda que em juízo de delibação, da
plausibilidade das razões jurídicas opostas pelo Estado à sentença cuja eficácia se
pretenda suspender.247
A submissão da suspensão de segurança aos requisitos fumus boni iuris e periculum
in mora tem como efeito reduzir o instrumento a mero provimento cautelar, semelhante em
seus requisitos e efeitos às demais medidas da espécie que já encontram previsão em nosso
Processo Civil. Tratar-se-ia, portanto, no incidente de suspensão de segurança, da
possibilidade de o Poder Público repetir, diante do presidente do tribunal, pleito de sustação
dos efeitos de decisão judicial idêntico ao que já lhe é dado formular, assim como a todos os
litigantes, perante o juízo natural para a apreciação do recurso cabível contra a mesma
decisão.
De fato, a legislação processual brasileira prevê a hipótese de concessão de efeito
suspensivo ao recurso interposto pela parte legitimada quando reconhecida a urgência da
medida e a probabilidade de revisão da decisão impugnada. A instituição da suspensão de
segurança como mais uma instância de controle da eficácia provisória dos provimentos
judicias exarados em desfavor do Poder Público retira boa parte de sua justificativa prática,
247
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 1149. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Diário da Justiça, Brasília, 09
mai. 1997.
85
tendo em vista, inclusive, o fato de já se encontrarem os magistrados incumbidos da tarefa de
analisar a presença do denominado periculum in mora inverso quando da apreciação dos
pedidos de liminar formulados nos feitos de sua competência.
A vinculação da suspensão de segurança ao resultado futuro do recurso interposto
contra a decisão objeto do incidente não se adequa, ainda, à regulamentação conferida ao
instituto pelos parágrafos 5º e 6º do art. 4º da Lei nº 8.437, de 1992, e pelos parágrafos 2º e 3º
do art. 15 da Lei nº 12.016, de 2009, que, além de admitirem a possibilidade de concessão da
suspensão de segurança “quando negado provimento a agravo de instrumento interposto
contra a liminar”, afirmam que a interposição do agravo de instrumento “não prejudica nem
condiciona” o julgamento da suspensão de segurança.
A aplicação do regime das medidas cautelares à suspensão de segurança é a forma
mais simples de compatibilizar o instrumento com a ordem constitucional vigente, retirando o
caráter de excepcionalidade do instituto e impedindo seja utilizado para a manutenção dos
efeitos de atos administrativos contrários ao direito. O preço a pagar pela adoção de tal
entendimento, porém, é o do relativo esvaziamento do instituto, conferindo-lhe feições
diversas das que parecem lhe conferir a legislação.
86
CAPÍTULO III – A SUSPENSÃO DE SEGURANÇA COMO MEDIDA DE EXCEÇÃO
A caracterização da suspensão de segurança como instrumento de natureza político-
administrativa é objeto de considerável aceitação na jurisprudência pátria, encontrando-se no
fundamento da maior parte das decisões adotadas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e
do Supremo Tribunal Federal nos processos da espécie. Segundo tal entendimento, é vedada,
em sede de suspensão de segurança, a análise da juridicidade da decisão proferida na origem,
baseando-se o julgamento do incidente exclusivamente no potencial lesivo para o interesse
público da realização prática do comando judicial impugnado.
Tratar-se-ia, portanto, a suspensão de segurança, de autorização excepcional
conferida ao Poder Judiciário para decidir em bases extrajurídicas, permitindo-se a sustação,
mediante atividade eminentemente política, de determinações judiciais perfeitas do ponto de
vista do direito. A decisão de suspensão de segurança seria dotada da eficácia de excepcionar
a aplicação do ordenamento jurídico no caso concreto determinado, com o objetivo de
resguardar os valores ordem, saúde, segurança e economia públicas.
Referido posicionamento é impugnado de forma amplamente majoritária pela
doutrina nacional sob a acusação de redundar na total subversão de nosso sistema
constitucional, na medida em que admite a sobreposição da competência jurisdicional pela
competência administrativa. Argumenta-se, nesse sentido, a inviabilidade da postulação
teórica que, apesar de caracterizar como ato administrativo a determinação adotada pelo
presidente do tribunal no incidente de suspensão de segurança, pretende submeter-lhe a
eficácia de decisão judicial.
Como alternativa à caracterização da suspensão de segurança como medida político-
administrativa, encontra-se na literatura dedicada ao tema a proposta de conceituação do
instituto como instrumento vocacionado à realização do princípio da supremacia do interesse
público sobre o particular. Apesar de se sustentar a impertinência, para o julgamento da
suspensão de segurança, da análise da juridicidade dos argumentos apresentados pelo Poder
Público em juízo, a ancoragem do incidente no ordenamento jurídico estaria garantida pela
referência ao mencionado princípio, destinando-se o sacrifício temporário dos direitos
individuais decorrente da sustação dos efeitos das decisões judiciais respectivas à garantia de
interesses da coletividade extraídos diretamente da Constituição de 1988.
87
A concessão da ordem de suspensão de segurança, segundo tal interpretação, não
encontra fundamento em razões de natureza política, mas em argumentação essencialmente
jurídica, referente à superioridade conferida aos interesses coletivos em nosso regime
constitucional. Tratar-se-ia, portanto, a suspensão de segurança, de instrumento à disposição
da realização do interesse público, corolário de uma diretriz constitucional que determina seja
privilegiada a tutela dos interesses coletivos quando em conflito com interesses individuais.
O resultado prático de ambas as referidas construções teóricas é o mesmo: a
suspensão de segurança funciona como medida de exceção, conferindo-se aos presidentes dos
tribunais o poder de sustar os efeitos de decisões judiciais por razões alheias àquelas
constantes da lei. A salvaguarda de interesses enunciados pelo Poder Público é colocada
acima da vigência do ordenamento jurídico-constitucional, prevalecendo, na prática, uma
situação fática que nega a imperatividade de seus comandos.
A proximidade entre as mencionadas concepções da suspensão de segurança decorre
da íntima relação que mantêm o princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular e a doutrina das razões do estado, característica, esta, dos antigos regimes
monárquicos absolutistas. A adoção do referido princípio como fundamento de nosso Direito
Administrativo tem como resultado a sobrevivência das práticas autoritárias dos referidos
regimes em nossa Administração Pública, representando verdadeiro obstáculo à sua efetiva
constitucionalização e submissão à lei, necessárias à eliminação dos privilégios típicos do
Estado soberano que contraditoriamente caracterizam a atuação do Poder Público em nosso
país ainda nos dias de hoje.
Os direitos fundamentais encontram-se no núcleo do Estado Democrático de Direito,
devendo receber tratamento prioritário quando em confronto com outros interesses coletivos
ou individuais aos quais não tenha o ordenamento jurídico-constitucional conferido igual
dignidade. O exercício do poder do Estado se legitima pela realização dos direitos
fundamentais, que, além de garantirem ao indivíduo determinadas posições contra as
intervenções públicas, fornecem, através de sua dimensão objetiva, os elementos estruturantes
da organização estatal e da vida em comunidade.
O caráter geral e irrestrito da limitação aos direitos fundamentais que se observa na
cláusula da supremacia do interesse público sobre o privado demonstra sua inadequação com
nosso atual sistema constitucional. A realização dos direitos fundamentais não pode
permanecer dependente de decisões discricionárias da Administração Pública sobre o
88
conteúdo do interesse público, que, segundo a referida cláusula, prevaleceriam sobre as
prescrições contidas no ordenamento jurídico.
A atuação administrativa deve ter a legalidade como parâmetro definitivo, afastando-
se a possibilidade de aplicação de uma regra de preferência abstrata pelos interesses coletivos
em detrimento dos interesses privados. A definição do interesse público se realiza através da
ponderação dos interesses em conflito, realizada à luz dos comandos abstratos extraídos do
ordenamento jurídico e das circunstâncias fáticas do caso concreto em análise.
3.1 A posição jurisprudencial sobre a natureza jurídica da suspensão de segurança e sua
caracterização como medida de exceção
A jurisprudência de nossos tribunais é amplamente majoritária no sentido de que a
suspensão de segurança é instrumento de natureza político-administrativa, capaz de ensejar,
com base em argumentos extrajurídicos, a sustação dos efeitos de determinação judicial
perfeita do ponto de vista do direito. Segundo tal entendimento, o julgamento da suspensão de
segurança se baseia, tão somente, no potencial lesivo, para os interesses apontados pelo Poder
Público, da decisão judicial de origem, estando vedada a análise de sua juridicidade.
Essa linha de entendimento vem sendo adotada reiteradamente pelo Superior
Tribunal de Justiça, sendo ilustrativa decisão proferida no AgRg na SLS nº 1.659248
, quando a
Corte Especial do referido tribunal asseverou a impossibilidade de discussão, em sede de
suspensão de segurança, da “matéria de mérito da ação originária”, que “transcende os
estreitos limites do pedido de suspensão, cujo juízo político tem cabimento apenas para se
evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas”. Sob o argumento
de se tratar de procedimento que não possui natureza jurisdicional, mas, sim, política, o
referido tribunal alberga o entendimento de que, em regra, não cabe Recurso Especial contra
as decisões concessivas de suspensão de segurança.249
248
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. SLS 1659. Rel. Min. Felix Fischer. Diário da Justiça Eletrônico,
Brasília, 22 mai. 2013. 249
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1284520. Rel. Min. Humberto Martins. Diário da
Justiça Eletrônico, Brasília, 08 mar. 2013.
89
O Supremo Tribunal Federal também vem reconhecendo o caráter político-
administrativo da suspensão de segurança250
, adotando a posição de que cabe ao presidente do
tribunal, ao apreciar o incidente, “proferir juízo mínimo de delibação a respeito das questões
jurídicas presentes na ação principal (...) não se admitindo, entretanto, exame profundo de
mérito da causa, sob pena de atribuir ao incidente de suspensão indevido caráter substitutivo
de recurso”.251
Em artigo publicado sobre a matéria, a Min. Ellen Gracie defende a tese da natureza
político-administrativa da suspensão de segurança, afirmando que o “ato presidencial não se
reveste de caráter revisional, nem se substitui ao reexame jurisdicional na via recursal
própria”, sendo possível “que a liminar ou sentença sejam juridicamente irretocáveis mas,
ainda assim, ensejem risco de dano aos valores que a norma buscou proteger e, portanto, antes
do trânsito em julgado, devam seus efeitos permanecer sobrestados”.252
Sublinha, ademais, se
tratar o instituto de “autorização excepcional” conferida aos presidentes dos tribunais, que
exerceriam “atividade eminentemente política avaliando a potencialidade lesiva da medida
concedida e deferindo-a em bases extra-jurídicas”, concluindo que, ao passo em que não se
“examina o mérito da ação, nem questiona a juridicidade da medida atacada, é com
discricionariedade própria de juízo de conveniência e oportunidade que a Presidência avalia o
pedido de suspensão”.253
Posicionamento análogo é sustentado por José Manoel de Arruda Alvim Netto, para
quem os “fundamentos em decorrência dos quais é possível solicitar juto ao Tribunal que irá
conhecer do recurso a suspensão de liminar ou da sentença (...) não são, propriamente,
motivos lastreados em Direito”.254
Argumentava o autor, quando ainda não se admitia a
utilização do recurso de agravo contra as decisões de deferimento de liminar em mandado de
segurança, a possibilidade de ajuizamento de novo mandado de segurança pela Fazenda
Pública, posto não se caracterizar como instância recursal a suspensão de segurança, que
“nada tem a ver com a legalidade/ilegalidade intrínseca do ato administrativo e, por isso
250
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 2255. Rel. Min. Maurício Corrêa. Diário da Justiça, Brasília, 30 abr.
2004. 251
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 4140. Rel. Min. Cezar Peluso. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília,
14 abr. 2011. 252
NORTHFLEET, Ellen Gracie. Suspensão de sentença e de liminar. Revista de Processo, São Paulo, v.97, jan.
2000. Disponível em: <www.revistadostribunais.com.br>. Acesso em: 02.09.13. s.p. 253
Ibidem, s.p.. 254
ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Mandado de segurança contra decisão que nega ou concede liminar
em outro mandado de segurança. Revista de Processo, São Paulo, v.80, out.1995. Disponível em:
<www.revistadostribunais.com.br>. Acesso em: 02.09.13. s.p.
90
mesmo, também, nada tem a ver, com uma juridicidade da decisão que haja concedido medida
liminar”.255
A suspensão de segurança, segundo tal interpretação, funciona como medida de
exceção, capaz de subtrair determinado caso concreto da incidência do ordenamento jurídico.
Trata-se da instituição, com a finalidade de garantir a utilidade pública, de um hiato na
vigência do direito, que deixa de se aplicar à hipótese em julgamento em razão das
circunstâncias fáticas presentes.
Nesse sentido, a decisão exarada pelo Poder Judiciário no incidente de suspensão de
segurança não encontra fundamento na ordem jurídica objetiva, na medida em que a espécie
normativa destinada, em tese, a regular o caso em análise, apesar de se manter vigente, tem
sua eficácia prática suspensa. A lei, em outras palavras, não sofre qualquer modificação, mas
o Poder Público é autorizado, em caráter excepcional, a inobservar os direitos que dela
decorrem.
Observa-se, de tal forma, um desvio da legalidade destinado à resolução de uma
questão pontual ou, ainda, a adoção de uma alternativa a uma resposta inadequada conferida
pelo ordenamento jurídico quando confrontado com uma realidade fática imprevista. Cuida-
se, assim, da concessão ao Poder Judiciário, mediante a devida provocação, do poder de, a fim
de evitar prejuízo relevante para a utilidade pública, decidir sobre a presença, na hipótese
apresentada, das condições fáticas que autorizam a vigência do direito.
O deferimento da ordem de suspensão de segurança faz com que a avaliação da
conduta administrativa deixe de encontrar no direito o seu parâmetro definitivo, ganhando
relevo a análise dos meios que emprega para contemplar a utilidade pública. Os valores sobre
os quais erigidos a sociedade são abandonados por um instante, coadunando-se com a eficácia
de uma decisão administrativa contrária ao ordenamento jurídico-constitucional e o
consequente sacrifício dos direitos individuais por ela afetados com vistas a garantia dos
interesses imediatos da coletividade.
A suspensão de segurança, portanto, exclui a conduta da Administração Pública do
controle judicial, dando ensejo a um cenário em que prevalece, sobre a concepção adotada na
lei e na Constituição, o entendimento governamental acerca do interesse público. A decisão
administrativa, antes considerada ilegal, passa a vigorar com força de lei, enquanto os
255
ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Mandado de segurança contra decisão que nega ou concede liminar
em outro mandado de segurança. Revista de Processo, São Paulo, v.80, out.1995. Disponível em:
<www.revistadostribunais.com.br>. Acesso em: 02.09.13. s.p.
91
dispositivos normativos referentes à hipótese permanecem inaplicáveis, vigorando como pura
forma de lei.
É interessante notar que a discussão a respeito da limitação das hipóteses de
suspensão de segurança coincide com o debate sobre a impossibilidade de controle da exceção
através do prévio estabelecimento de suas hipóteses de aplicação e, ainda, das medidas
extraordinárias passíveis de adoção. Referindo-se, com efeito, a exceção, a situações
extremas, que, por definição, estão fora do âmbito da normalidade, não é possível que a lei
calcule com precisão e antecedência as circunstâncias capazes de autorizar sua decretação,
ficando, ainda, a justificação das providências adotadas em seu curso a depender do estado de
coisas existente.
Conforme visto no capítulo anterior, a legislação de regência da suspensão de
segurança, salvo no período em que vigorou o art. 13 da Lei nº 1.533, de 1951, tem como
padrão elencar, expressamente, as hipóteses em que autorizada a utilização do instrumento. A
respeito do tema, é importante ressaltar a já mencionada objeção apresentada por
Themistocles Brandão Cavalcanti às restrições impostas à utilização da suspensão de
segurança pela legislação de seu tempo, que mencionava ordem, saúde e segurança públicas.
Na visão do autor, apenas as peculiaridades de cada caso concreto são capazes de justificar o
uso da suspensão de segurança, não sendo prudente a prévia limitação das hipóteses de
aplicação do instituto, que deveriam ser controladas diretamente pela autoridade judiciária
competente para a sua apreciação.256
Relativamente à normatização vigente nos dias de hoje, há quem defenda, em razão
da “natureza indisponível e metaindividual do objeto de tutela” dos pedidos de suspensão de
segurança, a utilização do instituto nas hipóteses de ameaça de grave lesão a quaisquer valores
que “correspondam ontologicamente ao conceito de interesse público”. Nesse sentido, “a
alusão aos valores sociais expressamente mencionados pela legislação” seria meramente
exemplificativa, não podendo ser a mesma utilizada com a finalidade de restringir o escopo da
medida excepcional.257
Nada obstante o referido posicionamento, é de se reconhecer que a amplitude em que
estabelecidas as hipóteses de autorização da suspensão de segurança dificulta a exclusão das
decisões administrativas do escopo do instrumento, sendo praticamente impossível a
256
CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Do Mandado de Segurança. 5.ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas
Bastos, 1966, p.152-154. 257
VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p.137
92
ocorrência de uma decisão judicial desfavorável ao Poder Público que não tenha, no mínimo,
relação com os bens jurídicos ordem, saúde, segurança e economia públicas. O próprio
conceito de ordem pública, considerado isoladamente, confere tamanha abertura ao cabimento
da suspensão de segurança que permite seja a mesma potencialmente utilizada em qualquer
hipótese.258
A abrangência do conceito de ordem pública pode ser observada na decisão adotada
pelo Min. Néri da Silveira na SS nº 4.405259
, quando oficiava ainda perante o extinto Tribunal
Federal de Recursos. Na oportunidade, o referido magistrado incluiu na ordem pública “a
ordem administrativa em geral, ou seja, a normal execução do serviço público, o regular
andamento das obras públicas, o devido exercício das funções da administração, pelas
autoridades constituídas”. Tal entendimento sobre a definição de ordem pública veio a se
tornar o padrão na prática da suspensão de segurança, recorrendo com frequência à citação do
referido julgado, inclusive, o Supremo Tribunal Federal.260
A profunda indeterminação do conceito de ordem pública, cujo conteúdo
dificilmente poderia ser definido com base em critérios rigidamente objetivos, faz com que
seja o mesmo genérica e constantemente empregado pelo Poder Público ao formular seus
pedidos de suspensão de segurança. A doutrina sugere que a abrangência excessiva da
hipótese legal referente à ordem pública é responsável pela disseminação da ideia de que a
suspensão de segurança possui natureza política, tendo em vista o largo espaço de atuação que
concede ao presidente do tribunal, contribuindo para a ideia de que a concessão da medida
dependeria exclusivamente do juízo de discricionariedade da referida autoridade judiciária.261
Além da virtual ilimitação de suas hipóteses de cabimento, a suspensão de segurança
tem, ainda, como característica a corroborar sua definição como medida de exceção, o fato de
inexistir, na normatização legal do instituto, qualquer restrição a seu escopo. Assim, da
mesma forma como as medidas extraordinárias adotadas durante o período de exceção não
258
Destaca-se que o conceito de ordem pública é tão amplo que chega, inclusive, a abranger, em vários
precedentes jurisprudenciais, os demais conceitos de saúde, segurança e economia públicas. Cf.
SCARTEZZINI, Jorge Tadeo Goffi Flaquer. Suspensão de Segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009, p.92. 259
BRASIL. Tribunal Federal de Recursos. SS 4405. Rel. Néri da Silveira. Diário da Justiça, Brasília, 01 dez.
1979. 260
Nesse sentido: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 4178. Rel. Min. Gilmar Mendes. Diário da Justiça,
Brasília, 29 abr. 2010. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 627. Rel. Min. Octavio Gallotti. Diário da
Justiça, Brasília, 22 abr. 1994. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 300. Rel. Min. Néri da Silveira.
Diário da Justiça, Brasília, 30 abr. 1992. 261
VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p.138.
93
são autorizadas em um prévio ato regulamentar, sendo permitida a adoção de quaisquer
providências que se fizerem necessárias segundo as circunstâncias fáticas presenciadas,
admite-se, no incidente de suspensão de segurança, a suspensão de decisões judiciais baseadas
em quaisquer dispositivos presentes em nosso ordenamento jurídico, concebendo-se a
sustação dos efeitos, inclusive, de direitos fundamentais e outros preceitos nucleares de nossa
Carta Constitucional.
A grande maioria dos autores que se dedicam ao estudo da suspensão de segurança
rejeita o posicionamento que concede natureza político-administrativa ao instrumento,
afirmando redundar tal entendimento na total subversão do sistema constitucional vigente262
.
Argumenta-se, nesse sentido, a impossibilidade de compatibilizar o princípio da separação de
poderes inscrito na Constituição de 1988 com a sobreposição da competência administrativa à
competência jurisdicional que advém da conceituação da ordem de suspensão de segurança
como ato administrativo capaz de regular os efeitos de decisão judicial.
3.2 A caracterização da suspensão de segurança como instrumento de realização do
interesse público e a crítica do princípio da supremacia do interesse público
Como solução aos problemas apresentados pela conceituação da suspensão de
segurança como providência de cunho político-administrativo, a doutrina nacional, em sua
parcela majoritária, caracteriza o incidente como mecanismo voltado à efetivação do princípio
da supremacia do interesse público sobre o particular. A prerrogativa processual deferida ao
Poder Público de solicitar a paralisação da eficácia da decisão judicial a ele desfavorável,
sacrificando, temporariamente, a realização dos interesses privados envolvidos na lide,
encontraria fundamento numa diretriz constitucional segundo a qual a tutela dos interesses
coletivos deve ser privilegiada quando em conflito com interesses individuais.
Segundo os adeptos da referida concepção teórica, não se trata, em sede de suspensão
de segurança, da análise da juridicidade da decisão proferida na instância inferior, mas, sim,
da verificação do potencial de vir a mesma a causar grave lesão às modalidades de interesse
262
Nesse sentido: ROCHA, Caio Cesar. Pedido de Suspensão de decisões contra o Poder Público. São Paulo:
Saraiva, p.136-137. VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.54. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança:
Sustação da eficácia de decisão judicial proferida contra o Poder Público. 3.ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, p.92. SCARTEZZINI, Jorge Tadeo Goffi Flaquer. Suspensão de Segurança. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009, p.49.
94
público elencadas nos arts. 4º da Lei nº 8.437, de 1993, e 15 da Lei nº 12.016, de 2009. Em
outras palavras, a sustação dos efeitos do ato jurisdicional originário independeria de sua
conformidade com o direito, sendo possível a suspensão de uma decisão judicial
juridicamente perfeita.
Marcelo Abelha Rodrigues reconhece na suspensão de segurança um “nítido colorido
de opção legislativa pela proteção imediata do interesse público em „sacrifício‟ de outro
interesse de uma dimensão mais restrita”, apontando o referido princípio constitucional da
supremacia do interesse público como a razão de ser do instituto. O instituto teria por escopo
privilegiar os interesses da coletividade “no exato sentido de que o Estado Democrático deve
tanto quanto possível servir a todos”, ainda que para isso seja necessário fazer limitações a
outros interesses.263
Na visão do autor, o poder de supremacia do estado se justifica em função da tutela
dos interesses difusos, tarefa precípua do Estado Social. A salvaguarda de direitos como o
direito ao meio ambiente, à saúde, à educação, aos quais a Constituição confere especial
relevo, poderia, com base num juízo de proporcionalidade, ser invocada para legitimar a
restrição de outros direitos fundamentais que com eles viessem a colidir.264
Nesse sentido, a suspensão de segurança teria como finalidade a promoção dos
direitos difusos incluídos nos conceitos de ordem, saúde, segurança e economia públicas, de
cuja promoção e garantia o próprio texto constitucional teria incumbido o Estado.265
Tratar-
se-ia, portanto, de prerrogativa processual decorrente dos reflexos da normatização dos
interesses da sociedade que são geridos pelo Poder Público.266
A função do órgão jurisdicional competente para julgar a suspensão de segurança
não seria a de corrigir a decisão originária, mas, única e tão somente, a de avaliar a
possibilidade de o provimento judicial vir a colocar em risco os interesses públicos elencados
na legislação. O mérito da suspensão de segurança não se confundiria com o mérito da causa
principal, sendo as razões capazes de justificar o deferimento do incidente alheias à
juridicidade da decisão originária.267
263
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança: Sustação da eficácia de decisão judicial proferida
contra o Poder Público. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.118. 264
Ibidem, p.119. 265
Idem, p.120-121. 266
Idem, p.121. 267
Idem, p.123.
95
Fica claro, portanto, que, ainda na doutrina de Marcelo Abelha Rodrigues, a
suspensão de segurança não teria o efeito de ensejar a devolução da matéria discutida no
processo principal, não se cogitando da reforma ou da anulação do provimento jurisdicional
atacado. O incidente teria como objeto exclusivamente os efeitos e, não, o conteúdo da
decisão originária, que, mesmo suspensa, permaneceria “intacta, inalterada e imune”, somente
podendo ser modificada através da utilização do recurso adequado.268
O autor rechaça a tese do fumus boni iuris como requisito para a concessão da
suspensão de segurança, reafirmando que a injuridicidade da decisão não faz parte da causa de
pedir do incidente, sendo vedado ao presidente do tribunal corrigir a decisão que deu ensejo
ao pedido de suspensão.269
Esclarece, ainda, que, diferentemente do que ocorre no México e
na Argentina, a verificação da potencialidade da lesão ao interesse público não é requisito
negativo para a concessão das liminares contra o Poder Público no Brasil, não sendo a decisão
capaz de causar gravame ao interesse público, necessariamente, equivocada do ponto de vista
jurídico. A suspensão de segurança encontraria fundamento em uma afirmação de mero
interesse, o qual, repita-se, não é objeto de consideração quando da prolação da decisão em
desfavor do Poder Público.270
Apesar de discordar de Marcelo Abelha Rodrigues a respeito da natureza processual
da suspensão de segurança, entendendo não se tratar de incidente processual, mas, sim, de
ação cautelar, Elton Venturi chega a conclusões semelhantes às do professor capixaba quanto
à finalidade do instituto. A despeito de caracterizar o incidente como “verdadeira ação
cautelar especial de tutela material de interesses ou direitos difusos, correlatos ao interesse
público primário”271
, o autor afirma que o fumus boni iuris da suspensão de segurança é
diferente do aplicável às ações cautelares, ao passo em que não diz respeito “à plausibilidade
de a demanda instaurada contra o Poder Público vir a ser julgada procedente ao final”, sendo
“referível direta e imediatamente” à necessidade de acautelar a ordem, saúde, segurança e
economia públicas.272
Para Elton Venturi, o deferimento da suspensão de segurança não pode ser
respaldado na “injuridicidade da tese expendida na demanda intentada contra o Poder
268
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de Segurança: Sustação da eficácia de decisão judicial proferida
contra o Poder Público. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.159. 269
Ibidem, p.134-135. 270
Idem, p. 201. 271
VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p.71. 272
Ibidem, p.162.
96
Público”273
, relacionando-se a cautelaridade que marca o incidente “não exatamente com a
salvaguarda do resultado útil do processo que eventualmente hospeda o pedido de suspensão,
mas sim com o próprio direito substancial de cautela do interesse público primário”.274
O autor reafirma o entendimento de que a suspensão de segurança não se destina a
alterar ou cassar a decisão originária, dizendo respeito apenas à possibilidade de suspensão de
uma decisão judicial potencialmente prejudicial ao “interesse público”. O deferimento da
suspensão de segurança estaria absolutamente desvinculado do mérito da pretensão veiculada
no processo originário, não se justificando, sob pena de subversão do regime preconizado na
legislação e de usurpação da competência jurisdicional atribuída aos tribunais para o
julgamento dos recursos cabíveis, a análise da viabilidade do direito alegado pelo Poder
Público.275
Apesar da desvinculação da suspensão de segurança do mérito da ação originária,
Elton Venturi afirma que a mesma não é decidida com base em motivos extrajurídicos ou
puramente discricionários, mas com base em critério jurídico, o princípio da
proporcionalidade. Para ele, o juízo de ponderação calcado no referido princípio é o
instrumento a ser utilizado para a legitimação da decisão proferida em sede de suspensão de
segurança, resolvendo os casos de contraposição de interesses que, apesar de legítimos, não
possam ser tutelados simultaneamente.276
Por intermédio do princípio da proporcionalidade seria possível “objetivar critérios
para a definição da melhor medida jurisdicional que deve acarretar, tanto quanto possível, um
máximo proveito aos interesses mais relevantes, com um mínimo de sacrifício aos interesses
contrapostos”.277
Esses interesses mais relevantes, que devem ser tutelados de forma
privilegiada pela suspensão de segurança, são extraídos, em uma primeira definição oferecida
pelo autor, de um juízo de ponderação em que se afasta “de plano qualquer pré-valoração
abstrata acerca de categorias de interesses prevalecentes em detrimento de outros”.278
Em uma segunda passagem da mesma obra, porém, Elton Venturi afirma que “o
emprego dos pedidos de suspensão pelo Poder Público já traz consigo forte apelo às „razões
273
VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p.162. 274
Ibidem, p.72. 275
Idem, p.160. 276
Idem, p.215. 277
Idem, p.209. 278
Idem, p.215.
97
de Estado‟”279
, cabendo ao magistrado, quando impossível conciliar duas situações em que as
partes alegarem a irreparabilidade, priorizar a tutela coletiva em detrimento da individual,
aplicando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Posteriormente,
se, com o trânsito em julgado da decisão proferida no processo principal, ficar demonstrado o
equívoco da opção pela tutela do interesse da coletividade, caberia ao ente público envolvido
ressarcir todos os prejuízos sofridos pelo particular.280
Jorge Tadeo Goffi Flaquer Scartezzini também se filia ao posicionamento de que ora
se trata, defendendo residir o fundamento da suspensão de segurança no fato de não serem
absolutos os direitos fundamentais, encontrando limites nos demais direitos igualmente
consagrados na Constituição. O especial mecanismo de proteção dos interesses da
coletividade teria como finalidade evitar o sacrifício total de determinados direitos em relação
aos demais, “realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual, a fim
de alcançar a harmonia do Texto Constitucional”.281
Nesse sentido, o autor ressalta que os
conceitos elencados na legislação para justificar a suspensão de segurança são referidos na lei
de maneira ampla, “sem uma definição específica”, justamente porque representam valores
atinentes ao próprio Estado Democrático de Direito.282
A suspensão de segurança, na visão de Jorge Tadeo Goffi Flaquer Scartezzini, é
medida “de caráter provisório, com natureza cautelar, que suspende o cumprimento da
determinação passível de causar dano a um dos valores referidos (saúde, segurança...), não a
reforma ou modifica, assim como não aborda o mérito respectivo”.283
O autor ressalta que, na
suspensão de segurança, não ocorre a devolução da matéria jurídica em debate, sempre se
fundando a decisão do incidente em motivos “extra-autos”, que “não devem guardar relação
com o mérito da demanda de „origem‟, ou „principal‟”, sendo “típicas razões de interesse
público, que transcendem os pontos discutidos no processo”.284
Os aspectos analisados na suspensão de segurança não guardariam relação com o
direito, independendo o deferimento da medida do desrespeito à legislação ou à Constituição
pela decisão de origem. O autor é peremptório em afirmar que “ainda que haja flagrante
desrespeito, por exemplo, à legislação processual, ou à própria Constituição, não estarão
279
VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2.ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010, p.256. 280
Ibidem, p.265. 281
SCARTEZZINI, Jorge Tadeo Goffi Flaquer. Suspensão de Segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009, p.49. 282
Ibidem, p.83. 283
Idem, p.13. 284
Idem, p.77.
98
preenchidos os requisitos para concessão da medida”.285
A cautelaridade da suspensão de
segurança estaria atrelada, portanto, não ao resultado útil do processo, mas à proteção “de um
bem maior, o interesse público, garantido constitucionalmente”286
.
No final de sua exposição, porém, Jorge Tadeo Goffi Flaquer Scartezzini abre uma
brecha para a legalidade na conformação que dá à suspensão de segurança, afirmando que, em
se tratando de atuação administrativa manifestamente ilegal ou inconstitucional, não deve ser
deferido o pedido respectivo. Logo na sequência, contudo, o autor reduz ao mínimo o
conteúdo de sua assertiva anterior, esclarecendo que “não significa dizer que o acerto ou
desacerto da decisão deva ser considerado”, cabendo a verificação apenas de aspectos
metajurídicos na via estreita da suspensão de segurança.287
A matéria jurídica, portanto,
permaneceria como um requisito negativo para a concessão da suspensão de segurança,
impedindo a sustação do efeito de decisões nas hipóteses em que patente a desrazão dos
argumentos sustentados pelo Poder Público.
É importante notar a existência de certa inconsistência na argumentação de Jorge
Tadeo Goffi Flaquer Scartezzini, quando, recorrendo a citação de Cassio Scarpinella Bueno,
afirma que a decisão da suspensão de segurança não é proferida à margem do direito positivo,
uma vez que a mesma diz respeito ao interesse público, e o interesse público em “um Estado
Democrático de Direito só poderá existir se estiver inserido nos limites impostos pela ordem
jurídica aos particulares e ao Estado”.288
O autor afirma, ainda, que o interesse público é
“aquele que a Constituição e a lei deram tratamento especial, portanto, fim público é aquele
perseguido (poder-dever) pelo Estado, nos limites do regime jurídico de direito público”, bem
como que o “interesse público a ser protegido deverá necessariamente estar abrangido pela
ordem jurídica e a decisão da suspensão deverá estar devidamente fundamentada, sob pena de
nulidade”.289
O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular tem sua mais
conhecida definição na dogmática do Direito Administrativo brasileiro na obra de Celso
Antônio Bandeira de Mello, que discorre sobre o referido princípio nos termos seguintes:
285
SCARTEZZINI, Jorge Tadeo Goffi Flaquer. Suspensão de Segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009, p.93. 286
Ibidem, p.78. 287
Idem, p.105. 288
Idem, p.104. 289
Idem, p.104-105.
99
Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a
superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do
particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste
último.
É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-
se garantidos e resguardados.290
Diogenes Gasparini, no mesmo sentido, defende que a necessidade de fazer
prevalecer o interesse público sobre o particular é o grande princípio informativo do Direito
Público, sustentando a impossibilidade de se imaginar um cenário em que o interesse unitário
triunfe sobre o interesse da coletividade.291
Hely Lopes Meirelles, por sua vez, afirma que “a
primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal e domina-a, na
medida em que a existência do Estado justifica-se pela busca do interesse geral”.292
O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular é utilizado para
justificar os privilégios e a posição de primazia da Administração Pública diante dos
particulares. Celso Antônio Bandeira de Mello informa que são três as consequências
decorrentes do referido princípio: (i) a “posição privilegiada do órgão encarregado de zelar
pelo interesse público e de exprimi-lo, nas relações com os particulares”, (ii) a “posição de
supremacia do órgão nas mesmas relações” e (iii) as “restrições ou sujeições especiais no
desempenho da atividade de natureza pública.”293
Humberto Ávila, que, como se verá, é um
dos adversários da ideia da supremacia do interesse público, afirma, em tom pejorativo, que o
princípio em tela tem como conteúdo a pressuposição da possibilidade de conflito entre o
interesse público e o interesse particular, cuja solução deve se dar, in abstracto e a priori, em
favor do interesse público.294
A Constituição de 1988 não traz previsão expressa do princípio da supremacia do
interesse público sobre o particular. A doutrina que defende sua aplicação à Administração
Pública brasileira o extrai do “espírito” do sistema constitucional vigente, como o faz Maria
Sylvia Zanella Di Pietro, que, com a finalidade de justificar a presença do referido princípio
em nosso ordenamento jurídico, faz menção aos dispositivos constitucionais que, diante de
hipóteses determinadas de conflito entre interesses públicos e privados, optam por conferir
290
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30.ed. São Paulo: Malheiros, 2013,
p.69. 291
GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p.19. 292
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 34.ed. Atualização de Eurico de Andrade
Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2008, p.19. 293
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, op. cit., p.70. 294
ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o “Princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular”. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o
Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.174-176.
100
prevalência aos primeiros. Nesse sentido, a autora cita, entre outros exemplos, o mandado de
segurança coletivo (art. 5º, inciso LXX), a ação popular (art. 5º, inciso LXXIII) e as ações
coletivas para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos (art. 129, inciso III), a eleição do bem-estar e da justiça sociais
como objetivos da ordem social (art. 193) e a defesa do meio ambiente ecologicamente
equilibrado como direito de todos e bem de uso comum do povo (art. 225).295
Celso Antônio Bandeira de Mello argumenta que o princípio da supremacia do
interesse público sobre o particular é princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade,
condição mesma de sua existência. Tratando-se, portanto, de pressuposto lógico do convívio
social, desnecessária seria sua previsão em dispositivo específico da Constituição, que, por
outro lado, albergaria inúmeras manifestações concretas dele, a exemplo dos princípios da
função social da propriedade, da defesa do consumidor e do meio ambiente (art. 170, III, V e
VI) e, especificamente quanto ao Direito Administrativo, dos institutos da desapropriação e da
requisição (art. 5º, incisos XXIV e XXV).296 Desenvolvendo a mesma linha de raciocínio,
Diogenes Gasparini ainda acrescenta às hipóteses precedentes, a rescisão do contrato
administrativo por interesse da Administração e a imposição de obrigações aos particulares
por ato unilateral da Administração, do que seria exemplo a servidão administrativa.297
Arnaldo Godoy alerta para a tendência atual de modernização do Direito
Administrativo, calcada na necessidade de constitucionalização da matéria, com a
consequente superação do dogma da supremacia do interesse público sobre o particular. O
autor ressalta a disputa que hoje se observa na doutrina brasileira entre aqueles que, como os
citados Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Diogenes
Gasparini e, ainda, José dos Santos Carvalho Filho, defendem a fundação do Direito
Administrativo sobre o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular e, de
outro lado, autores como Humberto Ávila, Marçal Justen Filho, Daniel Sarmento, Gustavo
Binenbojm e Alexandre Santos Aragão, que propõem uma “desconstrução” do princípio em
tela.298
295
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O Princípio da Supremacia do Interesse Público: Sobrevivência diante dos
Ideais do Neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Coord.).
Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010,
p.97. 296
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30.ed. São Paulo: Malheiros, 2013,
p.99. 297
GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2004, p.19. 298
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Tipologias conceituais de interesse público: história, literatura,
doutrina e jurisprudência. Revista Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 9, n.105, nov. 2009, p.1-15.
101
A tendência de desconstrução do princípio da supremacia do interesse público sobre
o particular passa pelo entendimento de que a adoção do mencionado princípio tem como
efeito a reprodução, em nosso Direito Administrativo, das práticas características dos antigos
regimes absolutistas. A proximidade do princípio em tela com a doutrina das razões de
Estado, típica de referidos regimes, vê-se muito claramente nas citadas passagens em que
Celso Antônio Bandeira de Mello299
afirma que a sobrevivência da comunidade e dos próprios
indivíduos depende da supremacia do interesse público sobre o privado.
A doutrina das razões de Estado postula que a segurança do Estado é uma exigência
de tal importância que sua garantia justifica a violação de regras jurídicas, morais, políticas e
econômicas consideradas imperativas em tempos de normalidade.300
A formulação inicial da
teoria é atribuída a Maquiavel, que, em sua obra mais conhecida, ressalta que a necessidade
pode impor ao príncipe a tarefa de fazer atuar o mal em nome da sobrevivência do Estado:
Deve-se compreender que um príncipe, e em particular um príncipe novo, não pode
praticar todas aquelas coisas pelas quais os homens são considerados bons, uma vez
que, freqüentemente, é obrigado, para manter o Estado, a agir contra a fé, contra a
caridade, contra a humanidade, contra a religião. Porém, é preciso que ele tenha um
espírito disposto a voltar-se segundo os ventos da sorte e as variações dos fatos o
determinem e, como acima se disse, não apartar-se do bem, podendo, mas saber
entrar no mal, se necessário.301
Em condições, portanto, em que esteja em risco a integridade do Estado, as
transgressões do príncipe devem ser avaliadas exclusivamente pela capacidade de garantir a
segurança do Estado, sendo “julgados honrosos e por todos louvados” os meios que
contribuírem para a superação do risco enfrentado302
. O príncipe encontra-se, na visão de
Maquiavel, numa zona limítrofe entre a lei e a pura força, na qual as razões de Estado
justificam a passagem de uma à outra.
Em Hobbes, a doutrina das razões de Estado encontra alicerce na imprescindibilidade
da figura do Estado para a manutenção da organização social e, em consequência, para a
própria sobrevivência do homem, que depende do Leviatã para se livrar das ameaças inerentes
299
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30.ed. São Paulo: Malheiros, 2013,
p.69;99. 300
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 13.ed. Brasília:
UNB, 2010, p.1066. 301
MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Tradução de Roberto Grassi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976,
p.103. 302
Ibidem, p.103.
102
ao estado de natureza.303
O Estado, portanto, deve ser preservado a qualquer custo,
justificando-se o desrespeito ao direito na medida em que assim reclamarem as razões de
Estado. Em outras palavras, nada é superior à segurança do aparato estatal, razão pela qual
nenhum obstáculo pode ser colocado às ações que visam a sua segurança.
A doutrina das razões de Estado decorre, de tal modo, de uma visão organicista do
Estado, que, tal e qual um organismo vivo, luta por segurança e autopreservação, colocando
seus objetivos e valores acima dos interesses dos indivíduos que o integram, conferindo
primazia ao público sobre o privado. Arnaldo Godoy afirma que “o dogma da supremacia do
interesse público foi construído pelo direito brasileiro com base em percepção vigorosa de
Estado, detentor de vontade, que é concebida como vontade geral”, concepção esta tributária
do Direito Administrativo estabelecido na França revolucionária, que herdou a centralização
administrativa do Antigo Regime e “manteve os contornos do regime absolutista dos
Bourbon”.304
Gustavo Binenbojm também retorna às origens do Direito Administrativo na França
do final do século XVIII e início do século XIX para defender que as categorias jurídicas
características de tal ramo do Direito, a exemplo da supremacia do interesse público,
representam “antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do
Antigo Regime que a sua superação”. Para o autor, a origem dos privilégios ainda hoje
conferidos à Administração Pública vincula-se à atuação do Conseil d‟État, que não baseou o
regime jurídico administrativo na submissão da Administração Pública à lei, como se acredita
hoje, tendo, na verdade, criado um direito especial capaz de garantir a manutenção da
verticalidade nas relações entre o particular e o Poder Público305
.
Com apoio em Paulo Otero, Gustavo Binenbojm sublinha, ainda, que não passa de
mito a ideia de que a Revolução Francesa impôs a vinculação da atividade administrativa à
lei, subordinando o Poder Executivo ao Poder Legislativo, ao passo em que o modelo de
Administração Pública forjado à época pelo Conseil d‟État representou, na verdade, uma
continuidade das práticas que vigoraram no regime absolutista anterior.306
O princípio da
supremacia do interesse público sobre o particular, nesse contexto, estaria maculado desde seu
nascedouro, em razão de sua vinculação a uma tentativa de fazer prevalecer, em pleno Estado
303
BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p.43. 304
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Tipologias conceituais de interesse público: história, literatura,
doutrina e jurisprudência. Revista Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 9, n.105, nov. 2009, p.1. 305
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
constitucionalização. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.11. 306
Ibidem, p.12-13.
103
de Direito, os privilégios típicos do poder soberano. Estas são as palavras do autor referido
sobre o tema:
O velho dogma absolutista da verticalidade das relações entre o soberano e seus
súditos serviria para justificar, sob o manto da supremacia do interesse público sobre
os interesses dos particulares, a quebra da isonomia.
(...)
Nesse contexto, as categorias básicas do direito administrativo, como a
discricionariedade e sua insindicabilidade perante os órgãos contenciosos, a
supremacia do interesse público e as prerrogativas jurídicas da Administração, são
tributárias deste pecado original consistente no estigma da suspeita de parcialidade
de um sistema normativo criado pela Administração Pública em proveito próprio, e
que ainda se arroga o poder de dirimir em caráter definitivo, e em causa própria,
seus litígios com os administrados. Na melhor tradição absolutista, além de
propriamente administrar, os donos do poder criam o direito que lhes é aplicável e o
aplicam às situações litigiosas com caráter de definitividade.307
Diante de tal contexto, a doutrina que defende a desconstrução do princípio da
supremacia do interesse público sobre o particular propõe uma releitura do Direito
Administrativo a partir da Constituição. Tal releitura assenta suas bases na posição de
centralidade que os direitos fundamentais ocupam no Estado Democrático de Direito e a
consequente necessidade de conferir-lhes prevalência nos casos de conflito com outros
interesses coletivos ou individuais aos quais não tenha o ordenamento jurídico-constitucional
conferido igual dignidade.
Sem adentrar na discussão sobre a origem dos direitos fundamentais na tradição
jurídica anglo-saxã ou na tradição jurídica continental, encontra-se já no art. 3º da Declaração
da Virgínia, de 1776, o preceito de que o governo deve ser instituído para o benefício comum
do povo, sendo a melhor forma de governo aquele que produza o maior grau de felicidade e
segurança. O art. 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, por sua
vez, declara que o fim de toda associação política deve ser a conservação dos direitos naturais
e imprescritíveis do homem. No art. 16 do mesmo diploma, a Assembleia Nacional
Constituinte da França revolucionária enuncia, ainda, que não é dotada de Constituição a
sociedade em que não estejam assegurados os direitos do homem ou não esteja estabelecida a
separação dos poderes.
Paulo Ricardo Schier reconhece no surgimento do constitucionalismo moderno a
tentativa de estabelecimento de limites racionais ao exercício do poder com a finalidade de
307
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
constitucionalização. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.14-15.
104
tutela e proteção dos direitos fundamentais.308
Para o autor, é a partir dos direitos
fundamentais que deve ser compreendida uma Constituição, encontrando-se neles a
justificativa da criação e desenvolvimento de mecanismos de legitimação, limitação, controle
e racionalização do poder.309
Técnicas como, por exemplo, as do Estado de Direito, da separação de poderes, da
distribuição do poder no território e do controle da Administração Pública, seriam, ainda na
visão do jurista paranaense, instrumentos destinados à proteção dos direitos fundamentais,
que, “embora historicamente tenham se desenvolvido e se modificado, permaneceram como
núcleo legitimador do Estado e do Direito”. Nesse sentido, o autor é peremptório em afirmar
que é o Estado que se legitima e se justifica a partir dos direitos fundamentais, e não o
contrário.310
A respeito da Lei Fundamental Alemã promulgada em 1949, em vigor até os dias de
hoje, aponta-se que a proposta inicial para o artigo 1.1 do referido documento enunciava que
“o Estado está para servir aos indivíduos e não o indivíduo para servir ao Estado”. A opção
posteriormente adotada de iniciar a referida Carta Constitucional por uma cláusula geral de
reconhecimento da inviolabilidade da dignidade humana em nada alterou a proposta original,
outorgando, também a versão atual do artigo 1º da Constituição da Alemanha, preferência ao
indivíduo e a seus direitos inalienáveis sobre quaisquer interesses públicos. A proteção
prioritária dos direitos humanos e civis e sua aplicabilidade direta frente ao Poder Público,
ainda na visão de Schneider, conferiria à Lei Fundamental Alemã o “seu poder de atração e
sua dignidade”.311
Gilmar Ferreira Mendes ressalta o significado especial que os direitos individuais
recebem da Constituição de 1988, apontando que “a colocação do catálogo dos direitos
fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-
lhes significado especial”. A posição de destaque dos direitos fundamentais seria reforçada,
ainda, pela amplitude conferida pelo legislador constituinte ao texto do art. 5º da Constituição,
308
SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime
Jurídico dos Direitos Fundamentais. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses
Privados: Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010,
p.221. 309
Ibidem, p.224-225. 310
Idem, p.224-225. 311
SCHNEIDER, Hans Peter. Democracia y Constitucion. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1991,
p.17.
105
que, à época de sua promulgação, elencava os referidos direitos em setenta e sete incisos e
dois parágrafos.312313
Em nossa ordem jurídico-constitucional, os direitos fundamentais são “elementos
integrantes da identidade e da continuidade da Constituição”, razão pela qual se encontra
subtraída do âmbito de atuação, inclusive, do poder constituinte derivado, conforme se extrai
do art. 60, parágrafo 4º, da Constituição de 1988, qualquer possibilidade de supressão dos
mesmos. Aos órgãos estatais competiria, portanto, guardar estrita observância aos direitos
fundamentais, sendo-lhes vedado tergiversar a respeito de sua colocação em prática.314
A dupla perspectiva em que devem ser considerados os direitos fundamentais é
também ressaltada por Gilmar Ferreira Mendes, que, além de direitos subjetivos individuais,
se caracterizam como elementos fundantes da ordem constitucional objetiva. Nesse sentido,
se, enquanto direitos subjetivos, outorgam a seus titulares a possibilidade de impor seus
interesses em face do Estado e, também, da própria comunidade, os direitos fundamentais, em
sua dimensão objetiva, como elemento fundamental da ordem constitucional, “formam a base
do ordenamento jurídico de um Estado de Direito democrático”.315
A constatação da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais ou, em outras
palavras, o reconhecimento dos mesmos como elementos objetivos fundamentais da ordem
comunitária, constitui, na visão de Ingo Wolfgang Sarlet, uma das mais relevantes
formulações do direito constitucional contemporâneo.316
O autor argumenta que os direitos
fundamentais não têm como função exclusivamente a defesa do indivíduo contra atos do
Poder Público, constituindo, para além disso, “decisões valorativas de natureza jurídico-
objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem
diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos”.317
Afirmar a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais significa dizer que os
mesmos possuem função que transcende a previsão de direitos subjetivos individuais,
consubstanciada no estabelecimento de um conjunto de valores objetivos básicos e dos fins
312
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3.ed. São Paulo:
Saraiva, 2006, p.1. 313
Hoje, em decorrência da Emenda Constitucional nº 45/04, contam-se setenta e oito incisos e quatro parágrafos. 314
Ibidem, p.1. 315
Idem, p.2. 316
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 9.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p.157. 317
Ibidem, p.159.
106
diretivos da ação do Poder Público.318
Tal dimensão objetiva representaria “uma espécie de
mais-valia jurídica”, no sentido de um reforço da juridicidade das normas instituidoras dos
direitos fundamentais em relação às funções tradicionalmente conferidas às mesmas, de meras
estatuidoras de direitos subjetivos individuais.319
Como desdobramento desta perspectiva objetiva, Ingo Wolfgang Sarlet se refere,
ainda, a uma eficácia dirigente dos direitos fundamentais em relação aos órgãos do Estado.
Caracterizar-se-iam, nesse sentido, os direitos fundamentais, como comandos dirigidos ao
Estado para incumbir-lhe da permanente concretização e realização dos valores decorrentes
dos próprios direitos fundamentais.320
Encontram-se, portanto, no núcleo do ordenamento jurídico democrático, os diretos
fundamentais, que criam o Estado a partir do princípio da dignidade humana e impõem como
justificativa para o exercício do poder e finalidade última da atividade estatal a tutela da
pessoa humana. Não se limitam, os direitos fundamentais, à simples função de conferir
direitos subjetivos exigíveis do Poder Público, prestando-se, também, através de sua dimensão
objetiva, a fornecer os elementos estruturantes da organização estatal e da vida em
comunidade.
Fica claro, assim, que, no Estado Democrático de Direito, a atuação da
Administração Pública retira sua legitimidade da realização dos direitos fundamentais, da qual
o conceito de interesse público não pode ser dissociado. As restrições aos direitos
fundamentais serão admitidas apenas quando decorrentes do próprio sistema constitucional,
afastando-se a possibilidade de limitações decorrentes de imperativos de interesse geral
decorrentes de normas legais ou infralegais.
Daniel Sarmento ressalta que as restrições aos direitos fundamentais podem (i) estar
estabelecidas diretamente na Constituição, (ii) estar autorizadas pela Constituição, quando
esta prevê a edição de lei restritiva, ou, ainda, (iii) não decorrer expressamente do texto
constitucional, hipótese na qual “a justificativa para a limitação ao direito fundamental deve
ser a proteção de algum bem jurídico dotado de envergadura constitucional”, seja outro direito
fundamental, seja algum interesse do Estado ou da coletividade.321
O autor afirma, ainda, que,
318
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 9.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p.159-160. 319
Ibidem, p.160. 320
Idem, p.163. 321
SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia
Constitucional. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o
Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.91-95.
107
mesmo quando autorizadas pela Constituição, as limitações aos direitos fundamentais devem
estar previstas em lei de maneira densa e determinada, sob pena de restar a efetividade de
referidos direitos dependente da discricionariedade da Administração.322
De maneira coerente com as premissas adotadas, o constitucionalista argumenta que
a “admissão de cláusulas muito gerais de restrição de direitos fundamentais”, como a da
supremacia do interesse público, não se compatibiliza com os postulados de nossa ordem
constitucional, representando excessiva debilitação do sistema de proteção dos direitos
fundamentais, cuja implementação ficaria refém “de valorações altamente subjetivas e
refratárias à parametrização por parte dos aplicadores do Direito”.323
Com efeito, a promessa de proteção do indivíduo contra o Estado, baseada numa
Constituição composta por extenso rol de direitos fundamentais, restaria esvaziada em
absoluto na medida em que fosse permitido à Administração Pública, com base em critérios
discricionários, determinar os limites ao exercício de referidos direitos, fazendo-os, inclusive,
ceder quando em confronto com as conveniências do governo. Tratar-se-ia, como atesta
Gustavo Binenbojm na passagem que se segue, de verdadeira subversão do regime
constitucional estabelecido:
Como o interesse público é um conceito vago, o Poder Público sempre desfrutou de
ampla margem de liberdade na sua concretização; a partir do momento em que
concretizado, tal conteúdo passava a gozar de supremacia sobre os interesses
particulares; assim, o voluntarismo dos governantes adquiria supremacia sobre os
direitos individuais. Neste sentido, o exemplo histórico da malsinada doutrina da
segurança nacional a partir do princípio da supremacia do interesse público é
eloqüente e irrespondível. Um princípio que tudo legitima não se presta a legitimar
absolutamente nada.324
Paulo Ricardo Schier, no mesmo sentido, afirma que o princípio da supremacia do
interesse público sobre o particular dá ensejo a um discurso que nega os direitos fundamentais
e seu regime jurídico-constitucional.325
Em sua visão, nossa prática administrativa demonstra
322
SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia
Constitucional. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o
Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.91-95. 323
Ibidem, p.99. 324
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
constitucionalização. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.102. 325
SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime
Jurídico dos Direitos Fundamentais. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses
Privados: Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010,
p.220.
108
a utilização do referido princípio como uma cláusula geral de restrição dos direitos
fundamentais, possibilitando “a emergência de uma política autoritária de realização
constitucional, ondes os direitos e liberdades e garantias fundamentais devem, sempre e
sempre, ceder aos reclames do Estado que, qual Midas, transforma em interesse público tudo
aquilo que é tocado”.326
O autor ressalta, ademais, que a ideia de que os poderes constituídos
podem, ao seu alvedrio, sem qualquer critério, parâmetro ou autorização, restringir, a ponto de
anular, os direitos fundamentais, tornaria absolutamente sem sentido as lutas sociais e
políticas pela positivação de tais direitos, reduzindo a eficácia do Poder Constituinte.327
Diante de tal quadro, Paulo Ricardo Schier impugna a vigência do princípio da
supremacia do interesse público sobre o particular em nosso ordenamento jurídico. Segundo
observa o autor, encontra-se equivocado o entendimento de que o referido princípio pode ser
extraído das situações em que a Constituição, ponderando os interesses em jogo, determina, in
abstrato, a prevalência do interesse público sobre o privado, como nas citadas hipóteses de
desapropriação e requisição administrativa, uma vez que tal raciocínio não consegue explicar
as hipóteses em que a Constituição determina o contrário, fazendo prevalecer interesses
privados em detrimento de interesses da coletividade. O autor aponta, inclusive, que a
prevalência de direitos, liberdades e garantias individuais parece ser a regra no sistema da
Constituição de 1988, ocorrendo em maior número de casos a determinação constitucional em
favor dos interesses privados sobre os interesses públicos.328
Humberto Ávila também inadmite a adoção, por nosso sistema constitucional, de
uma regra abstrata de prevalência do interesse público sobre o privado, argumentando que a
concessão, por regras constitucionais específicas, de posição privilegiada à Administração
Pública em hipóteses pré-determinadas, indica, tão somente, que, naquelas hipóteses, o órgão
administrativo exerce função pública para cujo desempenho ótimo é necessária a outorga de
determinados instrumentos técnicos, devidamente transformados em regras jurídicas.329
Ressaltando a dificuldade de se encontrar “um postulado normativo explicativo de um
ordenamento jurídico administrativo que protege interesses tão diferenciados”, o autor afirma
326
SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime
Jurídico dos Direitos Fundamentais. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses
Privados: Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010,
p.221. 327
Ibidem, p.228. 328
Idem, 235-236. 329
ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o “Princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular”. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o
Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.202.
109
que, se fosse possível deduzir de nosso direito positivo uma regra de prevalência do interesse
público, também o seria a dedução de uma norma em sentido diametralmente oposto, de
prevalência dos interesse privados.330
Apesar de rechaçar expressamente a admissão, pela Constituição de 1988, de uma
regra de prevalência a priori entre interesses públicos e privados, Humberto Ávila argumenta
que, da forma como nossa Carta Constitucional protege a esfera individual e define as regras
de competência da atividade estatal, se vigorasse uma regra da espécie em nossa ordem
jurídica esta seria em favor dos interesses privados e, não, dos interesses públicos.331
O autor
defende, com base em Alexy, que, da preocupação com a vida e com os direitos privados que
decorre de nosso sistema constitucional, resulta
um ônus de argumentação (“Argumentationslast”) em favor dos interesses privados
e em prejuízo dos bens coletivos, no sentido de que, sob iguais condições ou no caso
de dúvida, deve ser dada prioridade aos interesses privados, tendo em vista o caráter
fundamental que eles assumem no Direito Constitucional. Seu conteúdo, porém, é
diverso de uma regra absoluta ou relativa de prevalência. Esse ônus diz respeito,
apenas, a uma valoração abstrata e relativa do individuum (incluindo, aí, seus
interesses) na Constituição brasileira, no sentido de um ônus de argumentação em
favor do indivíduo, a exigir que “devam corresponder razões maiores para a solução
exigida pelos bens coletivos do que para aquelas exigidas pelos direitos
individuais”.332
A posição de destaque conferida aos direitos fundamentais não significa, porém, que
os interesses da coletividade nunca serão privilegiados quando em confronto com interesses
individuais. Tal hipótese se fará presente quando a normatização constitucional e
infraconstitucional assim determinar, devendo a resposta ser buscada, sempre, no
ordenamento jurídico, analisado à luz das circunstâncias fáticas referentes ao caso concreto e
com o auxílio do princípio da proporcionalidade.
Nesse sentido, é de se afirmar que a atuação da Administração Pública está
estritamente vinculada ao interesse público, noção esta que, no Estado de Direito, funciona e é
definida a partir do ordenamento jurídico. Esta vinculação da atuação do Estado à lei e à
Constituição é, no dizer de Cassio Scarpinella Bueno, a verdadeira razão de ser do Estado de
Direito, o qual não se compatibiliza com “qualquer noção de interesse público, social,
330
ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o “Princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular”. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o
Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.203-204. 331
Ibidem, p.188-189. 332
Idem, p.189.
110
coletivo ou qualquer relevância jurídica à margem do direito positivo: ou se está em uma
determinada situação agasalhada pela ordem jurídica ou, por definição, está excluída a
possibilidade (=dever) de atuação do ente estatal”.333
O interesse público, conforme defende Gustavo Binenbojm, é o resultado da
ponderação entre direitos individuais e metas ou interesses coletivos, realizada à luz das
circunstâncias normativas e fáticas da situação concreta.334
O autor afirma que “as relações de
prevalência entre interesses privados e interesses públicos não comportam determinação a
priori e em caráter abstrato”, devendo ser buscadas no sistema constitucional, “dentro do jogo
de ponderações proporcionais envolvendo direitos fundamentais e metas coletivas da
sociedade”.335
Gustavo Binenbojm utiliza o exemplo de um imóvel que se caracteriza como bem de
família, o qual a Administração Pública pretende desapropriar para atender a determinada
finalidade coletiva. Em tal hipótese, compete à autoridade pública, diante das normas
constitucionais que impõem o dever de proteção da família, formular juízo de ponderação que
leve em conta as circunstâncias fáticas (a existência de outros imóveis que atendam ao fim
público perseguido, por exemplo) e jurídicas (o confronto aparente entre o poder
expropriatório do Estado e o seu dever de proteção às entidades familiares) envolvidas no
caso. O interesse público será o resultado desta operação ponderativa: poderá apontar tanto a
necessidade de desapropriação do imóvel quanto a necessidade de manutenção da habitação
familiar.336
É importante notar que, segundo tal conceito, não é possível a contraposição entre
interesse público e interesse privado, na medida em que o interesse público é o resultado da
ponderação entre os interesses coletivos e os interesses privados envolvidos na situação
concreta. Não se pode cogitar, ainda, de interesse público contra a lei, ao passo em que a
referida ponderação é realizada à luz do ordenamento jurídico, sendo sua conclusão extraída
como interpretação deste.
O problema é apresentado de maneira ligeiramente diferente por Daniel Sarmento,
que admite a possibilidade de conflito entre o interesse público e o interesse privado. No caso
de tal conflito, devem ser sopesados os referidos interesses, utilizando-se o princípio da
333
BUENO, Cassio Scarpinella. Liminar em Mandado de Segurança. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999, p.221. 334
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
constitucionalização. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.102. 335
Ibidem, p.109. 336
Idem, p.111.
111
proporcionalidade. Conforme o próprio autor reconhece, no fim das contas, o resultado obtido
é o mesmo que o apresentado por Gustavo Binenbojm, já que “os interesses particulares
devem ser devidamente sopesados e considerados pela Administração, com emprego do
princípio da proporcionalidade, e não atropelados com base na invocação de uma hipotética
supremacia do interesse público sobre o privado”.337
Daniel Sarmento preleciona, ainda, que a lei não é apenas o limite, mas é também o
próprio fundamento da ação administrativa, razão pela qual “os interesses públicos só poderão
ser invocados para restrição de interesses privados nos termos e nos limites das normas
vigentes no ordenamento jurídico”.338
O autor conclui que “a ação estatal conforme ao Direito
não será aquela que promover de forma mais ampla o interesse público colimado, mas sim a
que corresponder a uma ponderação adequada entre os interesses públicos e privados
presentes em cada hipótese, realizada sob a égide do princípio da proporcionalidade”.339
Humberto Ávila, por sua vez, afirma peremptoriamente a inexistência, no Direito
brasileiro, de uma “norma-princípio” da supremacia do interesse público sobre o particular. O
autor defende que a determinação do bem comum é antes de tudo uma questão de direito
positivo, no qual devem ser buscadas as prescrições procedimentais e materiais para a
determinação do interesse público.340
Nesse sentido, não caberia à Administração Pública utilizar-se do princípio da
supremacia do interesse público sobre o particular para impor restrições ou obrigações ao
cidadão, tampouco para direcionar a interpretação do direito positivo. Segundo o autor, “a
única idéia apta a explicar a relação entre interesses públicos e particulares, ou entre o Estado
e o cidadão, é o sugerido postulado da unidade da reciprocidade de interesses reciprocamente
relacionados (interligados) fundamentada na sistematização das normas constitucionais”.341
O
autor explicita seu posicionamento a respeito da temática nos seguintes termos:
337
SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia
Constitucional. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o
Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.115. 338
Ibidem, p.113. 339
Idem, p.115. 340
ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o “Princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular”. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o
Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.208. 341
Ibidem, p.216.
112
A ponderação deve, primeiro, determinar quais os bens jurídicos envolvidos e as
normas a eles aplicáveis e, segundo, procurar preservar e proteger, ao máximo, esses
mesmos bens. Caminho bem diverso, portanto, do que direcionar, de antemão, a
interpretação das regras administrativas em favor do interesse público, o que quer
que isso possa vir a significar.
Não se está a negar a importância jurídica do interesse público. Há referências
positivas em relação a ele. O que deve ficar claro, porém, é que, mesmo nos casos
em que ele legitima uma atuação estatal restritiva específica, deve haver uma
ponderação relativamente aos interesses privados e à medida de sua restrição. É essa
ponderação para atribuir máxima realização aos direitos envolvidos o critério
decisivo para a atuação administrativa. E antes que esse critério seja delimitado, não
há cogitar sobre a referida supremacia do interesse público sobre o particular.342
Percebe-se, assim, que, para a corrente doutrinária que se opõe ao princípio da
supremacia do interesse público sobre o particular, não admite, nosso ordenamento jurídico, a
aplicação de uma regra de supremacia dos interesses da coletividade sobre os interesses
privados, cabendo ao aplicador do direito, a fim de desvelar o critério da atuação
administrativa, trilhar um caminho ponderativo que, considerando a totalidade dos interesses
em jogo, proporcione solução capaz de realizá-los ao máximo.343
Apesar de tal interpretação do conceito de interesse público ser incompatível com a
ideia de fazer prevalecer o interesse público sobre o particular, dela não se afasta a corrente
que defende a fundação do Direito Administrativo sobre o referido respectivo. De fato,
autores como os já citados Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Celso Antônio Bandeira de Mello
também defendem que o interesse público e, em consequência, o sentido da atuação
administrativa, deve ser extraído do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que “o importante é extrair do
ordenamento jurídico o fundamento para as decisões administrativas”, devendo prevalecer o
interesse público sobre o particular “nas hipóteses agasalhadas pelo ordenamento jurídico”.
Mais à frente, sustenta que as hipóteses em que o direito individual cede diante do interesse
público não ocorrem por decisão da Administração, mas “porque a Constituição o permite, a
legislação o disciplina e o direito administrativo o aplica”, sendo possível a proteção do
interesse público em detrimento do particular “porque o ordenamento jurídico o permite e
outorga os instrumentos” necessários.344
342
ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o “Princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular”. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o
Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.217. 343
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
constitucionalização. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.100. 344
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O Princípio da Supremacia do Interesse Público: Sobrevivência diante dos
Ideais do Neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Coord.).
113
A autora insiste, ainda, que o princípio da supremacia do interesse público não fica
inteiramente à disposição da Administração Pública, sendo aplicado em consonância com os
demais princípios administrativos, inclusive o princípio da legalidade. Nas palavras da própria
administrativista, é “do ordenamento jurídico que se extrai a idéia do interesse público e quais
os interesses públicos a proteger”.345
Celso Antônio Bandeira de Mello também afirma que o conteúdo do interesse
público somente pode ser encontrado no direito positivo. O autor defende que a qualificação
como interesse público é feita pela Constituição e, a partir dela, pelo Estado, através dos
órgãos legislativos e, posteriormente, dos órgãos administrativos, nos limites da
discricionariedade conferida aos mesmos na legislação. Nas palavras do autor, “não é de
interesse público a norma, medida ou providência que tal ou qual pessoa ou grupo de pessoas
estimem que deva sê-lo (...) mas aquele interesse que como tal haja sido qualificado em dado
sistema normativo”.346
Referido administrativista aponta, ainda, que a proteção do interesse privado, quando
determinada pela Constituição, se caracteriza, também, como “um interesse público, tal como
qualquer outro, a ser fielmente resguardado”, sendo sua defesa de interesse não apenas do
particular diretamente afetado, mas da coletividade como um todo.347
Este é o entendimento
do autor:
Assim, é de interesse público que o sujeito que sofrer dano por obra realizada pelo
Estado seja cabalmente indenizado, como previsto no art. 37, § 6° do texto
constitucional. É de interesse público que o desapropriado receba prévia e justa
indenização, a teor do art. 5º, XXIV, do mesmo diploma. E é também evidente que
nisto há proteção ao interesse privado de quem sofreu lesão por obra do Estado ou
de quem foi por ele desapropriado, de par com a proteção do interesse público
abrigado nestas normas. De resto, tais previsões, como é meridianamente óbvio,
foram feitas na Constituição exata e precisamente porque foi considerado de
interesse público estabelecê-las.
Só mesmo em uma visão muito pedestre ou desassistida do mínimo bom senso é que
se poderia imaginar que o princípio da supremacia do interesse público sobre o
interesse privado não está a reger nos casos em que sua realização traz consigo a
proteção de bens e interesses individuais e que, em tais hipóteses, o que ocorre ... é a
supremacia inversa, isto é, do interesse privado!
Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010,
p.94-97. 345
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O Princípio da Supremacia do Interesse Público: Sobrevivência diante dos
Ideais do Neoliberalismo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Coord.).
Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010,
p.99. 346
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30.ed. São Paulo: Malheiros, 2013,
p.68. 347
Ibidem, p. 69.
114
(...)
Por isso os interesses secundários não são atendíveis senão quando coincidirem com
interesses primários, únicos que podem ser perseguidos por quem axiomaticamente
os encarna e representa. Percebe-se, pois, que a Administração não pode proceder
com a mesma desenvoltura e liberdade com que agem os particulares, ocupados na
defesa das próprias conveniências, sob pena de trair sua missão própria e sua própria
razão de existir.
Em face do exposto, fácil é ver-se que as prerrogativas inerentes à supremacia do
interesse público sobre o interesse privado só podem ser manejadas legitimamente
para o alcance de interesses públicos; não para satisfazer apenas interesses ou
conveniências tão só do aparelho estatal, e muito menos dos agentes
governamentais.348
Ao vincular a definição do conteúdo do interesse público à legalidade, propugnando
que o mesmo deve prevalecer sobre o interesse privado apenas nas hipóteses determinadas no
ordenamento jurídico, acaba-se por esvaziar completamente o princípio da supremacia do
interesse público sobre o particular. Com efeito, quando afirmam que a definição da atuação
administrativa deve ser extraída da lei e da Constituição, os autores mencionados acabam por
se aproximar da corrente desconstrutivista, abandonando a ideia de uma preferência abstrata
pelos interesses da coletividade. Humberto Ávila, diante da afirmação de que a legalidade é o
parâmetro definitivo para a definição do interesse público e da conduta administrativa devida,
ressalta, na passagem seguinte, a inutilidade do princípio da supremacia do interesse público
sobre o particular:
O mais importante é a descrição e determinação intersubjetivamente controlável dos
critérios para a definição do interesse público. A determinação, porém, só sucede
mediante a criação jurisprudencial de regras de conflito, em função das quais o
interesse público recebe prevalência em determinados casos de conflito com os
interesses privados, quando isso ocorrer. Esses critérios devem ser obtidos por meio
da análise da Constituição e das normas contidas nas leis – o que BANDEIRA DE
MELLO com razão afirma –, perde a expressão “interesse público” a sua relevância
normativa como norma-princípio. Dito mais claramente: “A expressão „bem
público‟ sempre representa a abreviatura daquilo que a Constituição entende por
limites permitidos ou não. Disso, porém, resulta uma importante consequência: em
vez de um princípio de preferência deve ser atribuída a importância, então, às
prescrições constitucionais e legais, já que elas – e não, portanto, o citado „princípio‟
– é que são juridicamente decisivas.349
A adoção da referida concepção de interesse público nos afasta completamente da
ideia de que a suspensão de segurança funciona como instrumento capaz de tutelar o interesse
348
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30.ed. São Paulo: Malheiros, 2013,
p.69-73. 349
ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o “Princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular”. In: Sarmento, Daniel. (Org.) Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o
Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.200.
115
público sem adentrar o mérito da causa principal, com fundamento em razões alheias à
decisão originária. Inviabiliza, no mesmo sentido, a defesa do entendimento de que a
ponderação entre interesses privados e interesses da coletividade é matéria jurídica estranha às
decisões judiciais ordinárias, cabendo sua invocação exclusivamente nos incidentes de
suspensão de segurança.
Com efeito, o interesse público existe, apenas, enquanto dado direito positivo e, não,
à sua margem. Estando, portanto, determinada decisão judicial, em conformidade com a lei,
não há que se cogitar de sua suspensão por razões de interesse público pelo simples fato de
inexistir interesse público a ser privilegiado na espécie.350
É dizer que a decisão judicial que,
baseada no ordenamento jurídico-constitucional e com o auxílio do princípio da
proporcionalidade, determina a prevalência de interesses privados sobre interesses da
coletividade, não contraria o interesse público, o qual, pelo contrário, se materializa no
cumprimento daquela mesma decisão judicial.
Nesse sentido, e, insista-se, inexistindo interesse público fora da lei, ou há direito do
particular contra o Poder Público e este deve ser reconhecido pela autoridade judiciária, ou
inexiste tal direito e a decisão que o privilegia contraria a ordem jurídica, justificando-se,
então, a sustação de seus efeitos. Fica clara, de tal modo, a impossibilidade de desvinculação
do mérito da suspensão de segurança do mérito da decisão proferida na origem, cuja
fundamentação não pode ser outra senão a ponderação dos interesses em jogo no caso
concreto respectivo.
Suponhamos, no exemplo do bem de família oferecido por Binenbojm, que o Poder
Público, através de juízo de ponderação, conclui que o interesse público impõe que seja
desapropriado o imóvel, iniciando o procedimento administrativo correspondente. O
proprietário do bem, irresignado, ingressa em juízo e obtém liminar determinando a sustação
do procedimento expropriatório. Tal decisão se baseia em um novo juízo de ponderação,
realizado pelo magistrado de primeira instância, que, ao fazê-lo, afasta o posicionamento do
Poder Público sob a afirmação de que a correta interpretação do ordenamento jurídico,
realizada à luz das circunstâncias fáticas pertinentes, impõe a manutenção da habitação
familiar. O interesse público, na visão da autoridade judiciária, estaria materializado na
liminar proferida.
350
BUENO, Cassio Scarpinella. Liminar em Mandado de Segurança. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999, p.222.
116
Diante de tal quadro, o Poder Público, requer a suspensão da liminar, alegando a
violação de um dos interesses previstos no art. 15 da Lei nº 12.016, de 2009. O
desembargador presidente do tribunal, ao conhecer do incidente, não dispõe de outra
alternativa senão a de refazer a ponderação dos interesses em jogo. O resultado desta nova
ponderação apontará o que, na visão do referido magistrado, melhor representa o interesse
público, permitindo-lhe decidir o pedido de suspensão de segurança.
Percebe-se, assim, que as operações ponderativas realizadas em sede de suspensão
de segurança não diferem em essência daquelas realizadas no processo originário. A decisão
de primeira instância já é proferida com base no princípio da proporcionalidade, tendo por
objetivo implementar, com as menores restrições possíveis, cada um dos direitos em conflito
na espécie. O mérito da suspensão de segurança coincide, de certa maneira, com o mérito da
decisão de origem, sendo passíveis de suspensão apenas as decisões judiciais que, na visão do
presidente do tribunal, contrariem o interesse público e, consequentemente, o ordenamento
jurídico.
Destinar a suspensão de segurança à paralisação dos efeitos de decisões judiciais que,
fundadas em juízos de ponderação equivocados, privilegiam interesses privados em hipóteses
nas quais a correta interpretação do ordenamento jurídico, considerados os fatos envolvidos
na causa, determina o contrário, significa conferir caráter revisional e, ainda, jurídico, à
discussão travada no incidente. De fato, ao afirmar a afronta ao interesse público de referidas
decisões judiciais, o presidente do tribunal estará reconhecendo, na mesma medida, a
ilegalidade das mesmas, exercendo competência de natureza recursal.
Se, por outro lado, a decisão judicial que privilegia o interesse privado encontra-se
revestida de legalidade, quaisquer interesses alegados em contrário pelo Poder Público não
passarão de meros interesses da máquina administrativa, que, por não encontrar guarida no
ordenamento jurídico, não se confundem com o interesse público. O deferimento da
suspensão de segurança em tal situação resulta na manutenção dos efeitos de conduta
administrativa contrária ao ordenamento jurídico-constitucional, cujo objeto não se confunde
com a realização do interesse público, sendo possível sua justificação, exclusivamente, como
medida de exceção.
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A utilização da suspensão de segurança como medida de exceção nos impõe uma
nova forma de pensar o funcionamento de nosso sistema jurídico. O comando geral e abstrato
contido na lei somente vigora nas hipóteses em que não represente risco para o equilíbrio das
funções estatais, permanecendo suspenso nos casos em que sua realização prática seja
considerada prejudicial ao interesse público nas condescendentes modalidades ordem, saúde,
segurança e economia públicas.
A eficácia do ordenamento jurídico-constitucional se mantém dependente da
existência de um contexto fático apropriado, cujo reconhecimento pode ser negado pelo Poder
Judiciário no julgamento do incidente de suspensão de segurança, dando ensejo à sustação dos
efeitos da decisão judicial fundada no direito considerado excepcionalmente inaplicável.
Permite-se, de tal modo, sob a alegação de proteção dos interesses da coletividade, a
implantação de decisões administrativas editadas em descompasso com os imperativos
jurídicos incidentes, em tese, na espécie.
Trata-se, assim, de subtrair o ato administrativo do controle judicial,
comprometendo-se, em última análise, a plena realização do Estado de Direito. A legalidade
deixa de ser o parâmetro definitivo de atuação do Poder Público, que é autorizado, pelo
deferimento da ordem de suspensão de segurança, a conduzir-se segundo uma concepção de
bem comum estranha à contida na lei, a fim de promover as medidas consideradas necessárias
à garantia dos bens jurídicos elencados na legislação de regência do instituto.
A Constituição tem relativizada sua força normativa, deixando de representar uma
proibição definitiva das intervenções públicas contrárias à decisão fundadora nela contida
para funcionar exclusivamente nos casos em que não apresente maiores inconvenientes para o
desenvolvimento das atividades do Poder Público. A realização prática da Constituição passa
a depender de um critério político, do que resulta a mitigação de seu caráter de lei
fundamental do Estado e, ainda, a falta de correlação entre seu conteúdo normativo e a
realidade social.
A possibilidade de limitação dos direitos fundamentais com base em critérios
discricionários inverte a lógica constitucional, deixando de se caracterizar a realização dos
referidos direitos como a fonte de legitimidade do Estado para se transformar em mera
concessão do Poder Público. O indivíduo não mais encontra nos direitos fundamentais uma
118
última garantia contra os excessos ou as indevidas omissões da Administração Pública,
despindo-se os dispositivos constitucionais respectivos da capacidade de regular com
imperatividade as situações da vida concreta.
A efetividade dos direitos fundamentais apenas em tempos de normalidade,
contrastada pela sustação de seus efeitos nas situações “excepcionais” em que assim reclame a
consecução de um suposto interesse público, demonstra a fragilidade de nossos compromissos
constitucionais. O extenso rol de direitos fundamentais constante da Constituição de 1988 não
encerra verdadeiros direitos subjetivos do cidadão, tratando-se, na realidade, de cláusulas cuja
inaplicação nas hipóteses em que decidida pelo Poder Público retira do indivíduo qualquer
possibilidade de resistência ou reivindicação, tornando possível o retorno da forma soberana
de exercício do poder.
A tentativa de recondução da suspensão de segurança ao direito através da menção
ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, argumentando-se que o
estado de anormalidade jurídica ensejado pelo referido instrumento excepcional diz respeito à
garantia do interesse público, tem como efeito encobrir os verdadeiros impactos da utilização
do instituto, que dizem respeito à substituição dos parâmetros previstos no ordenamento
jurídico pelas decisões adotadas pelas autoridades administrativas.
A forma benevolente como a suspensão de segurança vem sendo encarada pela
literatura nacional revela o viés autoritário que subjaz às nossas representações do Estado e do
Direito Público. A naturalidade que marca nossa convivência com o referido instrumento se
justifica pelo fato de nunca ter a legalidade chegado a se tornar o critério definitivo da atuação
de nossa Administração Pública, cuja relação com o particular tem como marca característica
a verticalidade.
Nesse sentido, parece existir certo consenso no sentido da impossibilidade de um
“bom governo” segundo a lei, da necessidade de fazer ceder o ordenamento jurídico, de
tempos em tempos, em prol de “interesses maiores”. A prevalência de necessidades
governamentais determinada por insindicáveis atos administrativos discricionários faz parte
de nossa prática administrativa, cujo processo de constitucionalização ainda se encontra por
realizar.
A prática da suspensão de segurança em nosso sistema judiciário confirma os
prognósticos de Agamben no sentido de que a legalidade extraordinária será a regra de nosso
tempo, caracterizando-se a democracia contemporânea pela tendência de generalização das
119
medidas de exceção. A utilização da exceção como técnica de governo e a gradual redução do
campo de incidência da norma tem como efeito o alargamento da atuação do Executivo, com
a progressiva degeneração da democracia parlamentar em um novo tipo de regime baseado na
concentração dos poderes de governo.
O controle da exceção se torna cada vez mais difícil na medida em que a guerra
deixa de ser necessária para a suspensão das garantias fundamentais e a constante invocação
da emergência econômica é suficiente para a manutenção de um cenário de crise permanente.
O resultado é um ambiente em que normalidade e exceção se aproximam a ponto de se
tornarem indistinguíveis e a normatização constitucional permanece condenada a uma
inefetiva vigência formal.
A relativização da proteção jurídica do indivíduo o coloca em contato com um poder
incondicionado que a qualquer tempo pode decretar o fim da normalidade e transformá-lo
novamente em objeto. Habitando o mesmo espaço que o soberano, o homem não pode
encontrar amparo numa normatividade vazia, numa lei cuja ineficácia permite a colocação dos
valores humanos em segundo plano e a consequente inclusão da morte na realidade das
democracias ocidentais como um evento banal.
120
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