UMA HISTORIADA ESCRITA DE
, FICÇÃO EMLINCUAINCLESA
UM OLHAR CRITICO SOBRE LIVES OF THE HOVELISTS . UMPANORAMA HISTÓRICO DA LITERATURA EM LINCUA INGLESA
QUE O PROFESSOR E CRITICO JOHN SUTHÇRLANDAPRESENTA NUM VOLUME DE MAIS DE 800 PACINAS
rUKKUtfEKTGUTTLIEB
difícil dizer o que é mais cx-traordinário, se as inflacionadas
ambições deste gigantesco li-vro, as proezas que realmentealcança ou a obstinação com
que o autor as abala. Um res-
peitado académico - LordNorthcliffe, professor emérito de Literatura
Inglesa Moderna no Colégio Universitário de
Londres e antigo membro de longa data do Ins-tituto de Tecnologia da Califórnia - e conheci-do jornalista literário, John Sutherland propôs--se a traçar A Vida dos Romancistas (isto é, dos
romancistas de língua inglesa). Ou, como elediz no seu subtítulo, "Uma história da ficçãoem 294 vidas". O autocongratulatório aceno
de cabeça à obra de Samuel Johnson, Lives ofEnglish Poets [trad. livre: A Vida dos Poetas In-
gleses], é tão embaraçosa quanto presunçosa.A vasta obra de Sutherland previamente pu-
blicada é estranhamente irregular. Há as suas
populares crónicas no The Guardian, que avan-
çam engenhosos puzzles literários e depois os
resolvem à custa de árdua investigação e comuma intuição bem informada: "Será HeathclifF*um Assassino?", "Onde Guarda Fanny Hill (2)
os Seus Contracetivos?", "Como consegue a
Sra. Dalloway <3> Chegar a Casa Tão depressa?"E, claro, há a pergunta que nunca nos atreve-mos a colocar a nós próprios: "Será que DanielDeronda <4) Era Circuncidado?" (George Elliotnão nos contou). Cerca de uma centena destes
textos estão reunidos numa compilação inti-tulada TheLiterary Detective [trad literal: O De-tetive Literário].
As suas biografias de Walter Scott e da sra.
Humphry Ward [Mary Augusta] (às quais elese refere com demasiada frequência em Lives
ofthe Novelists) são dignas de respeito (a biogra-fia de Stephen Spender já o é menos). O seuútil compêndio TheStanford Companion to Vic-torian Fiction (com quase 700 páginas) refleteos 20 anos que diz ter passado a compilá-10, en-
quanto se entregava à "altamente aprazível ta-refa de ler cerca de 3000 romances". Tantoneste livro como na sua mais recente obra é
possível descobrir romances tão inusitados co-
mo Doctor Phillips, A Maida Vale Idyll, de Frank
Danby, um best-seller antissemita de 1887, so-bre o qual nos diz Sutherland:
"Este romance é notório pela crueldade da
sua sátira da burguesia judia inglesa. Ele geroufuror. Com grande perversidade, o Athenaeum <5)
interpretou o romance como 'um insulto de-liberado à profissão médica'."
Com Sutherland, ficamos também a saber
que Danby era o pseudónimo de Julia Frankau,ela própria judia, mãe do escritor GilbertFrankau e avó da romancista do século XX Pa-
mela Frankau, autora de vários best-setters.
No livro de Sutherland figuram tambémprodígios de produtividade tais como L. T.
Meade, que só em 1898, um ano típico paraesta autora, exibiu assim a sua versatilidade:
"Em Mary Gifford, uma médica estabelece
o seu consultório no East End de Londres. EmThe Cleverest Woman in England, uma esposadedica-se tão inteiramente à propagação dacausa da nova mulher que arruina o seu ca-samento e morre com varíola. Girls ofSt. Wo-de's conta a história das raparigas modernas,dotadas de instrução universitária, das famí-lias Girton e Newnham. Em A Handful ofSil-ver, Audrey, a heroína, recusa casar-se com o
homem que ama por estar carregada de dí-vidas, contraídas por seu pai. Em On theßrinkofa Chasm, uma enfermeira, Clara, usa o hip-notismo para salvar um jovem baronete das
garras de um vilão. The Rebellion ofLil Carring-ton esboça a história da carreira de uma maria-
rapaz que aos 15 anos é deixada ao cuidado de
uma tia severa. Em The Siren, a heroína é umamulher socialista-niilista a quem os seus mes-tres russos ordenam que assassine o própriopai."
Tire-se o chapéu a L. T. Meade e a JohnSutherland, por ter exumado esta autora - e
muitos outros - do esquecimento.
Sutherland também escreveu um relatosensível e tocante - The Boy Who Loved Books- acerca do seu crescimento enquanto filho de
uma mulher intrépida e mãe carinhosa masdescuidada, que o deixava durante longos pe-ríodos de tempo ao cuidado de parentes e ins-
tituições negligentes. De algum modo, estemiúdo inteligente mas proveniente de umaclasse baixa encontrou uma vocação e formade se instruir, mas as cicatrizes perduraram: re-fletiram-se não apenas no seu alcoolismo, so-bre o qual escreve noutro livro de memórias -Last Drink to L. A. -; mas também em ocasio-nais expressões de ressentimento contra o tipode instrução de Oxbridge que lhe foi negada(ele frequentou Leicester) e um ressentimen-to mais escondido ainda relativamente aos vá-rios tipos de autoridade, sendo o mais impor-tante destes últimos, no que ao livro Lives ofthe Novelists diz respeito, fruto das suas escara-
muças com a autoridade dos cânones instituí-dos.
A ficção popularUm objetivo constante do seu trabalho é a
promoção daquilo a que ele chama a "ficçãopopular". Ele é um entusiasta da ficção cien-tífica e da ficção, pura e dura, das antigas revis-tas baratuchas de papel de má qualidade - o
que, hoje em dia, dificilmente constitui umaposição revolucionária. E, no entanto, escreveacerca daqueles géneros literários como se
ainda fossem os infelizes enteados da literatu-
ra, que lhe compete a ele salvar. No seu curtoe totalmente insuficiente prefácio, escreve:"O leitor pode ficar chocado pelos encontros
que vai ter com diversos escritores que nor-malmente não têm entrada no bosque sa-
grado" e "confesso que dou, realmente, valora uma gama de ficção que a história literáriatem muitas vezes, do meu ponto de vista, er-radamente subvalorizado". Repare-se tantono tom (de novo) autocongratulatório comono antagonismo em relação aos cânones ins-tituídos. Mais tarde, o autor diz-nos que Elmo-re Leonard é "o maior romancista americano
que jamais foi mencionado em simultâneocom as palavras 'Prémio Nobel"'. Acorde, pro-fessor Sutherland! Elmore Leonard há muito
que vem sendo considerado um herói da lite-
ratura; quando muito, ele tem sido mais so-brestimado do que ignorado. Na realidade, umdos problemas do livro de Sutherland é o fac-
to de ele estar tão desatualizado. Os seus he-róis de ficção científica, por exemplo, são, na
sua maioria, veteranos ultrapassados menosinteressantes do que alguns dos seus brilhan-tes sucessores da atualidade, com os quais o
autor demonstra não estar, de todo, familiari-zado. Neste aspeto, como em muitos outros,Sutherland está preso num intervalo tempo-ral próprio (ele nasceu em 1938).
Do mesmo modo, ao proclamar que algunsautores de livros infantis são dignos de nota,a sua argumentação para defender aquelesque ele inclui no seu livro é: "Não pude sim-
plesmente excluí-los." Mas na realidade con-
seguiu excluir Lewis Carroll (!) embora incluaL. Frank Baum e Kenneth Grahame. RoaldDahl também foi cortado, apesar de ter sido,indubitavelmente, o escritor de livros infan-tis mais bem-sucedido e original da segundametade do século XX. Mas Sutherland não
cresceu acompanhado pelas suas obras.
O que nos traz à questão crucial: por que ra-zão foram escolhidas certas vidas e não ou-tras? No seu prefácio, Sutherland tenta con-tornar um problema básico que é o facto de o
seu título prometer um tipo de abrangênciaque o livro não consegue cumprir. Por negli-gência, contrariedade ou puro esgotamentode tempo e espaço (o livro já tem mais de 800páginas), o autor omitiu dezenas de escritores
importantes, que o seu título insinua de quevamos ouvir falar e incluiu dúzias de outrossem qualquer importância, à exceção do fac-to de o autor os conhecer.
Eis aqui alguns nomes importantes do pas-sado para os quais o autor não teve tempo:Smollett, Kipling (sim, um romancista, bemcomo o maior de todos os autores britânicos de
contos), Harriet Beecher Stowe, Thomas Love
Peacock, William Dean Howells, Galsworthy,Cather, Sinclair Lewis, Dos Passos, Thomas
Wolfe, Ford Madox Ford. A sua tentativa de
desculpar tais omissões é fraca. Por que razãonão constam do livro "alguns dos grandes no-mes"? "Ofereço duas desculpas: a primeira é
que não se pode meter o Rossio na Rua da Be-
tesga; a segunda é: não está já suficientemen-te grande este livro?" Meter o Rossio na Rua da
Betesga? E não podia o livro ter mantido a suarobusta dimensão atual deixando cair umagrande quantidade de figuras marginais e subs-
tituindo-as por nomes importantes? Com isto,ele está a despachar-nos a nós, aos leitores, nasua corrida para meta final.
No campo da ficção popular, da qual ele se
vê como o único grande defensor, obtemosvelhas "picaretas" britânicas como Peter
Cheyney, Sapper, Leslie Charteris, Nicholas
Monsarrat, Trevaman, Dick Francis, mas não
o imensamente superior John le Carré - ou, jáagora, P. G. Wodehouse. E quando ele viaja até
à América do início do século XX, não mencio-na que os autores mais vendidos eram GeneStratton-Porter (A Girl ofthe Limberlost, Freck-
tes) e Harold Bell Wright (The Shepherd oftheHills, The Winningof Barbara Worth).
No livro de 1947 Golden Multitudes, de
Frank Luthe Mott - uma cuidada história dos
best-sellers americanos que vai até imediata-mente após a Segunda Guerra Mundial -, fi-camos a saber que os escritores com o maiornúmero de livros lidos por, pelo menos, umpor cento da população dos EUA eram Di-ckens (um total de 16), Scott (seis), Erle Stan-
ley Gradner (sete), James Fenimore Cooper(seis) e Stratton-Porter e Wright (com cinco
cada). E o romancista que foi, possivelmente,o mais amplamente lido ao longo das décadas
de 1930 e 1940 era Lloyd C. Douglas - quetambém está entre os que não constam no li-vro de Sutherland, embora o seu terrivelmen-te enfadonho A Túnica (um romance sobre a
crucificação de Cristo) tenha figurado por três
anos consecutivos no top dos dez livros maisvendidos nos EUA. Se Lives ofthe Novelists pre-tende apresentar-nos os melhores escritoresda ficção inglesa e americana, estes últimosnomes são mais do que prescindíveis. Mas se
estamos a falar acerca da ficção mais popular,a sua exclusão é inexplicável.
Quando chegamos aos tempos mais recen-
tes, o mistério adensa-se ainda mais. Suther-land faz um bom trabalho ao discutir os escri-
tores americanos dominantes do seu tempo:Cheever, Bellow, Updike, Roth. Aqui, real-mente aprofunda a discussão e tem coisas in-
teressantes a dizer acerca dos livros destes au-tores. Em contrapartida, faz tábua rasa das es-
critoras de origem africana vencedoras do Pré-mio Nobel: tanto Doris Lessing como NadineGordimer não conseguem passar o teste parachegar ao seu livro. E no que diz respeito aosmais influentes escritores americanos da ge-ração atual, ele simplesmente ignora-os. A jul-gar por Lives ofthe Novelists, não se adivinha-ria que existem autores como Thomas Pyn-chon, Don DeLillo, David Foster Wallace,Tom Wolfe ou Jonathan Franzen. Em vez de-
les, à medida que o livro se arrasta para o seu
final, está Alice Sebold - lembram-se do The
Lovely Bonés? E, já que se fala nisso, onde estáa fenomenal Joyce Carol Oates? Poderão as
suas altamente distintas 28 obras de ficçãoter-se revelado um desafio simplesmente de-
masiado formidável para o homem que inge-riu 3000 romances vitorianos?
Romancistas topo de gamaPouco surpreendentemente, Sutherland estáfortemente comprometido com o atual tipode romancistas topo de gama britânicos damoda - Martin Amis, Julian Bames, lan
McEwan, David Lodge ("o maior romancistacómico dos nossos dias") -, ao passo que igno-ra Hilary Mantel, que é, na minha opinião, aescritora inglesa mais consistentemente ori-
ginal e estimulante do momento. (Esqueçamo WolfHall e peguem no Beyond Black ou
Every Day is Mother's Day) . E, falando de vozes
originais, onde está a falecida Penelope Fitz-gerald? E aqueles génios únicos que são Ro-nald Firbank e Ivy Compton-Burnett? Em vezdeles, oferece-nos autores americanos e bre-tões como Louis Bromfield, Michael Sadleir,Rex Beach, Margery Allingham (embora não
Dorothy Sayers), Marilyn French e RobertShaw. Deixem estar, não se incomodem em irverificar quem são.
Sutherland está absolutamente certo ao
apreciar escritores pop fundamentais na épo-ca em que viveram - Ouida, Marie Corelli,Arthur Conan Doyle, Zane Grey, Edgar Rice
Burroughs, Agatha Christie, Jacqueline Su-
sann, Stephen King - e estou-lhe grato porressuscitar Florence Barclay, que, apesar denão ter durado muito, deu vida, no seu tre-mendo best-seUer intitulado O Rosário, a umadas minhas heroínas favoritas. A ilustre Jane
Champion, após ter rejeitado o homem queama por ser demasiado feia para quem, comoele, adora a beleza, corre para o seu lado quan-do ele fica cego, finge ser uma enfermeira, é
reconhecida por ele graças à gloriosa forma co-
mo canta a famosa canção de Ethelbert NevinO Rosário e ajuda-o a passar do maior retratis-ta de Inglaterra (algo difícil de continuar a fa-zer quando se fica cego) ao maior compositordo país.
Em contrapartida, o seu critério entra com-
pletamente no exagero quando traz à colação
figuras do tipo de H. Bedford-Jones, o escritora quem chamaram o Rei das Revistas de FicçãoBaratas [King ofthe Pulps na expressão usada
no texto], por muito divertido que seja desco-
brir que entre as centenas de títulos de sua au-toria estão AU Quiet on the Tariker Front, The
Blind Farmer and the Strip Dancer eßombsandOlive OU e que, segundo uma anedota que se
conta, quando a mulher dele disse a alguém
que havia telefonado que o marido estava a es-
crever um romance, o homem respondeu: "Eu
espero que ele acabe." Um livro dedicado a per-sonagens como Bedford-Jones seria um verda-deiro regalo mas será que ele pertence a linhade romancistas que vão de John Bunyan a Mi-chael Crichton? (Será que o próprio MichaelCrichton devia figurar nesta enumeração?)
Critérios biográficosQuanto ao texto de Sutherland, em si mesmo,ele revela os mais variados tipos de critérios e
abordagens. Do lado positivo, encontram-seos perspicazes relatos da história de figurascomo as irmãs Bronté, as sras. Gaskell e
Oliphant, Trollope, Conrad, Dreiser e Booth
Tarkington. Estes textos são verdadeiros mo-delos de biografias compactas, mesmo sendomais sólidas no que respeita às vidas reais dos
seus autores do que quanto à sua obra. Mas de-
pois, quando chegamos a Thomas Hardy, nãohá nada no total das cinco páginas que lhe são
dedicadas que não esteja relacionado com a
obsessão deste autor com o enforcamento:Não se faz menção de ele ser um dos princi-pais poetas do seu tempo, absolutamente na-da se diz acerca da sua vida ou dos seus livros.E quanto a George Elliot, Sutherland mal con-
segue esconder o seu desprezo:"Dois ventos favoráveis foram responsá-
veis pelo levantar da poeira que cobria Geor-
ge Elliot:1. 0 feminismo e sua busca enérgica por um
Shakespeare-femea;2. A ascensão da 'investigação' patrocinada
para a elaboração de teses de doutoramento.O que antes parecia ser 'enfadonho' é agoraalgo de 'elevada seriedade' arnoldiana (6> ."
Sutherland chega mesmo a desferir um for-te golpe contra esta autora no relato que fazsobre o livro The Virginian de Owen Wister,cujo herói faz um "comentário nada desade-
quado" acerca de George Elliot ao dizer que"ela fala demais".
E o que dizer acerca do seu comentário de
que "qualquer pessoa daria todos os hectaresde folhas da biografia de Henry James em tro-ca de uma centena de páginas que nos contas-
sem mais sobre a vida de [Stephen] Crane"?Então e a sua opinião de que Anthony Powellnos deixou "uma série [de obras] ficcionais
capaz de rivalizar com a de Balzac"? Ou queArthur Koestler "devia ter ganho o PrémioNobel - pelo menos duas vezes"? Quanto à
ideia que faz de Aldous Huxley, nada mais há
que não seja o Admirável Mundo Novo, As Por-
tas da Perceção e mexericos. Ninguém diria
que os cáusticos romances satíricos de Huxley- Contraponto, Ronda Grotesca e Crome Yellow- foram a definição por excelência da sofisti-
cação literária na década de 1920 e obras con-sideradas de leitura obrigatória mesmo até 25anos mais tarde.
E o mais pateta de tudo: como pode Suther-land comparar a personagem de Melville,Bartelby, com Pooter, o herói de uma diverti-da sátira à vida da classe média-baixa inglesa,em Diary ofa Nobody? Na realidade, ele nãotem qualquer simpatia ou compreensão paracomMoby Dick, concentrando-se, em vez dis-
so, neste seu ensaio acerca de Melville, nas in-
sinuações de homossexualidade entre Ishmaele Queequeg (e o mesmo se diga quanto a BillyBudd, Claggart e o Capitão Vere). Em Lives ofthe Novelists, há que dar prioridade às coisas
mais importantes.Como pode Sutherland reivindicar que Eli-
za Linton é "uma escritora de primeira cate-
goria"? Ela foi uma figura literária menor nocírculo Landor-Dickens e o seu The True His-
tory ofjoshua Davidson - "uma obra que, sar-
casticamente, remodela o Evangelho colocan-
do-o num cenário moderno" e que eu li depoisde tal livro ter sido por ele calorosamente re-comendado - é um relato, ridiculamente insí-
pido, da vida de um operário "santinho", querala e age aplicando, na prática, o cristianismo.
(Linton já antes tinha aparecido como "umaescritora de primeira categoria" no livro deSutherland The Stanford Companion to Victo-
rian Fiction, onde Joshua Davidson também jáfora descrito como "uma obra que, sarcastica-
mente, remodela o Evangelho colocando-onum cenário moderno". Este tipo de recicla-
gem ajuda a explicar a espantosa produtivida-de de Sutherland. Mas também, porque não?
Afinal foi ele que fez o trabalho: porque nãovoltar a apresentá-lo?)
Os erros de discernimento são complemen-tados por erros factuais: uma referência a
Porgy and Bess <7) como tendo "dois composi-tores judeus" e, mais bizarro ainda, uma refe-rência a Joseph Brodsky como "o escritor ven-cedor do Prémio Nobeí". Os erros acumulam--se ainda mais nas páginas do seu mal alinha-vado livro Bestsellers. Uma amostra: Os Ho-mens Preferem as Louras teve excertos publica-dos na [revista de moda] Harper's Bazaar, nãona The New Yorker; a obra de 1944 de LillianSmith, Strange Fruit, é posterior, e não ante-
rior, à famosa gravação de 1939 de Billie Holi-day; Not as a Stranger, o best-seller número umde 1954, foi escrito por Morton Thompson enão por Henry Morton Robbins. A ideia de
que H. G. Wells nunca teve uma popularida-de generalizada nos Estados Unidos é tola: eleteve imensos leitores e uma tremenda repu-tação neste país, indo mesmo para além da sua
ficção científica. Por exemplo, o seu Mr. Brit-
ling Sees It Through foi o romance mais vendi-do na América em 1917 e o seu Outline ofHis-tory ocupou o topo da tabela de livros de não
ficção mais procurados tanto em 1921 comoem 1922. O que importa não são estes errosconcretos mas o facto de Sutherland, clara-
mente, não ter "bagagem" quanto a estas ma-térias e de ir fazendo bluffk medida que vai es-crevendo ou de se basear na investigação ina-
dequada de outrem.O livro Lives ofthe Novelists foi inicialmen-
te publicado, em Inglaterra, pela Profile Books
Ltd., que não é propriamente o arquétipo de
rigor nos textos publicados. Contudo, para a
publicação na América, ele foi tomado pelaVale University Press, cuja reputação lançaum manto de respeitabilidade sobre tudo o
que publica. (Eu próprio já beneficiei disso).Será que algum editor, ou até revisor, olhou
para os textos antes de serem automatica-mente reeditados a partir da edição inglesa?Uma revisão comum podia, pelo menos, ter--nos poupado às ideias deixadas no ar (bastaum único exemplo: "Uma vez lido, ninguémalguma vez esquecerá o coelho") e os intermi-náveis superlativos, como "enorme" e "ex-traordinário".
Aquilo que causa maior perplexidade é o
interesse obsessivo de Sutherland pela vidasexual dos indivíduos sobre quem escreve."Austen é para a ficção o que Isabel I foi parao trono de Inglaterra: uma rainha virgem.Mas será que ela não tinha anseios sexuais?".
Benjamin Disraeli <8), "especula-se, [pode] ter
passado por alguns momentos homossexuais
na sua juventude". O apetite de Somerset
Maugham, recordou uma das suas parceiras,era voraz mas as suas exigências sexuais
eram 'simples'". Quão importante é para nósficarmos a saber que J. B. Priestley "leu The
History ofMr. Polly, de H. G. Wells, em 1910 e
perdeu a virgindade em 1913" e que a sua"vida adulta foi sexualmente atlética"? E. M.Forster é totalmente visto pelo prisma da suavida sexual. É-nos dito que "na escola prepa-ratória, um insensível colega seu gritou paratoda a gente ouvir: 'Já viram a pila do Forster?
Uma coisa castanha horrível'". Mas não há
uma única menção que seja à sua obra Passa-
gem para a índia. Por que razão ficou GeorgeOrwell na função pública indiana durantecinco anos? "Uma das suspeitas é que foi porcausa do sexo." Faz grandes conjeturas acercada vida sexual da jovem Evelyn Waugh. E Pa-
trick Hamilton? "Permanecem dúvidas rela-tivamente à questão de se saber se Hamilton,mesmo quando sóbrio, era sexualmente vi-
goroso." E continua assim sucessivamente.Trata-se de lascívia, por parte de Sutherland?Uma tentativa de fazer titilar o público? (Se-rá que há mesmo um público pronto a ficar ti-tilado pelas práticas sexuais de Patrick Hamil-ton?)
Por vezes é de perguntar por que razãoSutherland não chamou simplesmente a estelivro "A Vida Sexual dos Romancistas". Toda-
via, consigo perdoar-lhe grande parte de tudoisto por gratidão pelo facto de me ter informa-do que o formidável académico classicista deOxford Maurice Bowra era "um homem cujos
genitais, revelou mais tarde um dos muitosfãs que o adoravam como se fosse um herói,pareciam as ruínas de Delfos". Ainda estou a
tentar visualizar esta imagem.Nota: eu próprio sou mencionado na entra-
da acerca de John Kennedy Toole. O pouco quefoi dito está longe de acertar no alvo (e é ino-
fensivo) e se George Elliot e Melville conse-
guem aguentar, eu também consigo. Pelo me-nos, a minha vida sexual ficou por examinar.Este texto é a tradução e adaptação, por Adelaide
Cabral, de A Very Lush Garland of Writers, de Kobert
Gottlieb, publicado no Volume 59 - Número 13, de 16
de agosto de 2012, da New York Review of Books.
Capa de uma edição de 'Miss Nonentity'de L. T. Meade
Charles Dickens é um dos autores maisLidos em língua inglesa
Arthur Conan Doyle foi o criador deSherlock Holmes
SUTHERLANDDISCUTE OS
ESCRITORESAMERICANOS
DOMINANTES DO
SEU TEMPO:CHEEVER,
BELLOWUPDIKE,ROTH.
'Lives of the Novelists: AHistory of Fiction in 294 Lives'
[trad. literal - A Vida dos Romanrístas:Uma História da Ficção em 294 Vidas]
por John Sutherland Vale UniversityPress, 818 págs., 39,95 $
(Pode obter-se uma versão também em
inglês deste livro, da Prqfile Books, com
704 págs., na Bertrand por 36,64. €ena Fnac por 16,10 €)
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