UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENO DE SOCIOLOGIA
Mulheres, ampolas e músculos: uma análise da sociologia jurídica sobre o
uso de esteróides anabolizantes em academias de ginástica e a Lei.
BÁRBARA DE SÁ NAVES
BRASÍLIA
2017
Mulheres, ampolas e músculos: uma análise da sociologia jurídica sobre o
uso de esteróides anabolizantes em academias de ginástica e a Lei.
BÁRBARA DE SÁ NAVES
Orientador: Prof. Dr. Eurico Antônio Gonzalez Cursino dos Santos
Meus sinceros agradecimentos
A minha família. Em especial aos meus pais, Osvaldo e Cláudia, por terem priorizados a
minha educação, por acreditarem sempre em mim, antes de qualquer pessoa,
independentemente de resultados.
Ao Gabriel, por todo amor, paciência e companheirismo. Por sempre me incentivar e
acreditar em mim.
Aos meus amigos, pela compreensão enquanto estive ausente e por todo o apoio.
Ao professor Eurico, por ter aceitado me orientar, por ter estado sempre presente, pela
paciência e por todo o conhecimento transmitido.
À professora Christiane Machado Coêlho, por ter aceitado fazer parte da banca, ler o
meu trabalho e me avaliar.
A todos os professores do SOL, por todos esses anos de ensinamentos e trocas.
Àquelas que aceitaram conversar comigo sobre suas rotinas e corpos.
Resumo
Com base nos dados coletados a partir da etnografia em uma academia de ginástica em
Brasília, constatou-se a existência de dois discursos diferentes e opostos. Esta
monografia, alicerçada nesta constatação, busca problematizar as perspectivas e
expectativas diversas que são lançadas pelos sujeitos desse campo estudado sobre o
corpo. Para tanto, expõe e analisa essas duas formas percebidas de discurso - normativo
formal e o discurso normativo informal/espontâneo. Apresenta as principais diferenças
entre eles; ampara-se nos conceitos formulados por Michel Foucault para desenvolver a
ideia sobre o discurso normativo espontâneo; traz um inventário dos valores observados
nesses dois discursos, assim como um inventário dos interesses por de trás desses
valores; exibe as consequências que a discrepância entre a norma e o costume trouxe ao
comportamento das mulheres entrevistadas.
Palavras-chave: Sociologia jurídica. Discurso formal/normativo. Discurso
informal/espontâneo. Valores. Interesses. Direito. Norma. Comportamento.
Sumário
Introdução ..................................................................................................................... 1
Capítulo 1 – Uma breve exposição sobre as estratégias adotadas no campo
estudado .......................................................................................................................... 4
As dificuldades práticas no campo pesquisado ............................................................. 7
Malhação etnográfica .................................................................................................... 8
Capítulo 2 - O discurso normativo formal e o discurso normativo espontâneo
no consumo de esteroides anabolizantes ............................................................... 13
O discurso normativo formal ...................................................................................... 13
O discurso normativo espontâneo ............................................................................... 14
O discurso normativo espontâneo e a Microfísica do poder em Foucault .................. 17
Capítulo 3 – Inventário/diagnóstico de valores nos discursos ........................ 26
Valores no discurso normativo formal ........................................................................ 26
Valores no discurso normativo espontâneo ................................................................ 30
Capítulo 4 – Análise sobre a consequência da prática do discurso normativo
espontâneo no comportamento das entrevistadas .............................................. 33
O estudo do fenômeno por vieses diferentes: A sociologia jurídica de Max Weber e a
Dogmática jurídica de Hans Kelsen ............................................................................ 33
A contribuição de Émile Durkheim para a compreensão do campo investigado ....... 39
Consequência da prática do discurso normativo espontâneo no comportamento das
entrevistadas ................................................................................................................ 42
Capítulo 5 - Inventário de Interesses no campo .................................................. 46
Os interesses do discurso normativo espontâneo ........................................................ 46
O criador do discurso normativo formal ..................................................................... 54
1.1. A disciplina dos corpos .................................................................................... 55
1.2. A questão da saúde pública .............................................................................. 56
Considerações Finais .......................................................................................... 60
Referências Bibliográficas ................................................................................. 64
1
Introdução
A presente reflexão, ensejadora desta monografia, surgiu a partir de dados
coletados em campo entre outubro de 2012 e março de 2013. Naquela ocasião, com
vistas a fomentar o desenvolvimento da monografia de conclusão do curso de
Antropologia, também pela Universidade de Brasília, foi feita uma incursão etnográfica
em uma academia de ginástica, em Brasília, para que se pudesse observar a rotina das
mulheres que, à época, consumiam anabolizantes1 e suplementos alimentares
2.
Fizeram parte da pesquisa 12 mulheres. Desse universo, 8 já haviam feito ou
ainda faziam uso de esteróides anabolizantes à época da pesquisa, e também utilizavam,
de maneira combinada, suplementos alimentares. As outras 4 entrevistadas só haviam
feito o uso de suplementos alimentares. Entretanto, todas as 12 entrevistadas estavam
fazendo uso de suplementos alimentares.
Como consequência dessa investigação, foi possível conhecer o cotidiano das
mulheres, como elas construíam representações sociais sobre o corpo, qual tipo de
padrão corporal servia como parâmetro a ser buscado, a quais práticas de cuidado com o
1 Os anabolizantes são substâncias constituídas basicamente por hormônios. Esses hormônios podem ser
naturais, ou sintéticos (desenvolvidos em laboratório). Esses hormônios têm a capacidade de causar o
crescimento celular. Há inúmeras consequências decorrentes desse crescimento, mas o que interessa para
essa análise, especialmente, é o desenvolvimento os tecidos musculares e ósseos, já que é com essa
finalidade que essas substâncias são utilizadas pelas entrevistadas.
Os esteróides anabólicos podem ser criados a partir de cortisona (hormônio masculino e feminino),
estrógeno (hormônio feminino produzido pelos ovários) e andrógeno (hormônio masculino produzido
pelos testículos). Podem ser administrados via oral, ou podem ser injetados.
Os esteróides anabólicos androgênicos foram os mais utilizados pelas mulheres da pesquisa. Esses
esteróides são compostos basicamente pela testosterona, um hormônio masculino. Por conta disso, um
dos efeitos mais latentes é, no caso das mulheres, a virilização. Consequentemente, outros efeitos surgem,
como o crescimento e aumento de pelos, crescimento do clitóris, oleosidade da pele e do cabelo, queda de
cabelo, acnes pelo corpo, engrossamento da voz, diminuição temporária do ciclos menstruais etc.
Para mais informações sobre o surgimento dessas substâncias e o histórico de seu consumo, recomenda-se
a leitura da monografia “Mulheres, ampolas e músculos: o uso de esteroides anabolizantes em academia
de ginástica”. 2013. 95 f. Monografia (Bacharelado em Ciências Sociais) – Universidade de Brasília,
Brasília, 2013. Disponível em: <http://bdm.unb.ber/handle/10483/6211>. NAVES, Bárbara de Sá. 2 Os suplementos alimentares podem ser constituídos de vitaminas, minerais, fibras, ácidos graxos, ou
aminoácidos. Eles têm como finalidade completar a alimentação, auxiliando assim na dieta e,
consequentemente, otimizando a prática de musculação, aumentando a força e o rendimento. Os
suplementos alimentares são utilizados para fornecer as substâncias que as pessoas julgam não conseguir
ingerir em quantidades suficientes na alimentação, ou que o corpo não produz ou produz em quantidade
insuficiente. Eles fornecem nutrientes que são tidos como essenciais para os praticantes de musculação,
tais como carboidratos, proteínas, aminoácidos, vitaminas etc.
2
corpo elas se submetiam além da academia, quais tipos de substâncias eram mais
utilizadas. Constatou-se, também, que havia uma ressignificação do uso dessas
substâncias ao se observar com quais finalidades elas eram utilizadas, como se dava a
administração dessas substâncias e como era o acesso a elas.
Baseada nesses dados, a monografia desenvolveu-se e, como um dos resultados,
constatou-se que, mesmo conscientes da proibição do consumo de anabolizantes para
fins estéticos, as entrevistadas não só faziam uso de tais substâncias, como também
justificavam tal uso.
Assim, os dados obtidos permitiram a verificação da existência de dois discursos
diferentes. Notou-se que havia o discurso normativo formal, baseado em leis e normas –
e que proibia o consumo. E constatou-se, também, haver o discurso normativo
espontâneo ou informal, construído dentro e a partir daquele microuniverso e que
permitia e justificava o consumo de anabolizantes.
À época, mesmo ciente dessa coexistência, a monografia não investigou a fundo
esse aspecto, por não ter se proposto a tal. Agora, com viés sociológico, busca-se
analisar mais detidamente esse microuniverso constituído dentro de um universo maior.
A Sociologia jurídica é um campo pouco explorado, embora os estudos
interdisciplinares sejam uma demanda atual para a pesquisa na área do direito – por
fornecerem, dentre outras coisas, inovação à abordagem dos temas pesquisados. Por
isso, tem-se, apesar do pouco debate em torno da matéria, um campo bastante rico a ser
explorado.
A problematização proposta pela monografia se concentra em entender como é
possível a coexistência de dois discursos diametralmente opostos – pois um condena o
uso e o outro, legitima – dentro de um mesmo universo. Ou seja, propõe-se a explorar
como é a construção de cada um desses discursos, como surgem, quais são os valores
ligados a eles e em que se apoiam para serem tidos como legítimos pelos sujeitos que
constituem cada um desses discursos.
A monografia é divida em 5 capítulos. No primeiro capítulo, faz-se uma breve
exposição acerca das estratégias metodológicas empreendias no campo estudado – que
gerou a monografia de conclusão do curso de Antropologia.
No segundo capítulo, expõe-se o que é entendido, para a dissertação, como
discurso normativo formal e discurso normativo espontâneo. Propõe-se também a expor
3
como o conceito de Micro Poder de Foucault serve para entender o discurso normativo
espontâneo observado.
No terceiro capítulo, faz-se um diagnóstico/inventário dos valores no campo
normativo formal e no campo normativo espontâneo. O quarto capítulo mostra o caráter
conflitivo entre eles e a consequência que isso traz.
E, por fim, no quinto capítulo, busca-se fazer um inventário dos interesses,
partindo da ideia de que o valor, apresentado no terceiro capítulo, é o instrumento que o
interesse precisa manipular para se satisfazer. Procura-se então, neste capítulo,
identificar quais interesses são esses.
4
Capítulo 1 – Uma breve exposição sobre as estratégias adotadas no
campo estudado
Como mencionado na introdução, os dados que servem como suporte para o
desenvolvimento desta monografia foram obtidos por meio de uma incursão etnográfica
em uma academia de ginástica em Brasília. Antes que as reflexões resultantes desses
dados sejam apresentadas – o que é o objetivo dessa dissertação – é preciso que se faça
uma breve exposição, a título de contextualização, sobre o local da pesquisa, as
entrevistadas, os percalços passados, as estratégias empreendidas para superá-los e, por
fim, a metodologia escolhida.
Para conclusão do curso de Antropologia da Universidade de Brasília, realizou-
se uma pesquisa que teve como objetivo conhecer a relação entre as mulheres
frequentadoras de academias e o uso de substâncias associadas, de alguma maneira, à
prática da musculação, fossem essas substâncias compostas por hormônios sintéticos ou
compostas por vitaminas. A investigação também procurou saber melhor sobre os
processos internos a essa relação.
A primeira dificuldade para o desenvolvimento da pesquisa surgiu como
consequência direta do comércio ilegal do objeto - quando o consumo é voltado à
estética -, como destaca a Lei no 9.965, de 27 de abril de 20003, que tem as seguintes
especificidades
Art. 1º A dispensação ou a venda de medicamentos do grupo
terapêutico dos esteróides ou peptídeos anabolizantes para uso
humano estarão restritas à apresentação e retenção, pela
farmácia ou drogaria, da cópia carbonada de receita emitida por
médico ou dentista devidamente registrados nos respectivos
conselhos profissionais.
Parágrafo único. A receita de que trata este artigo deverá conter
a identificação do profissional, o número de registro no
respectivo conselho profissional (CRM ou CRO), o número do
Cadastro da Pessoa Física (CPF), o endereço e telefone
profissionais, além do nome, do endereço do paciente e do
3 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9965.htm Acesso em: 4/07/2017.
5
número do Código Internacional de Doenças (CID), devendo a
mesma ficar retida no estabelecimento farmacêutico por cinco
anos.
Art. 2º A inobservância do disposto nesta Lei configurará
infração sanitária, estando o infrator sujeito ao processo e
penalidades previstos na Lei no 6.437, de 20 de agosto de 1977,
sem prejuízo das demais sanções civis ou penais.
Por conta disso, no campo metodológico, foi desenvolvida certa apreensão com
relação ao tratamento a ser dado. A dúvida consistia não só na maneira como o assunto
deveria ser abordado, mas também na maneira pela qual os dados da pesquisa deveriam
ser divulgados.
A preocupação primeira sempre foi preservar as entrevistadas. Por isso, ao
começar a entrevistar as mulheres, antes de qualquer coisa, houve uma preocupação em
dizer que a pesquisa seria sigilosa. Elas poderiam falar o que realmente acontecia, sem
ter medo de se comprometerem, de serem estigmatizadas ou de perderem o prestígio
que conquistaram dentro da academia, como será mais bem discutido posteriormente.
Esse foi, também, um dos motivos pelos quais todos os nomes das entrevistadas
foram trocados. Primeiramente, porque se obteve a confiança delas através deste
comprometimento. Segundo, porque a pesquisa foi guiada com base em imposições
éticas necessárias para um bom resultado de uma pesquisa científica.
Conforme a Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 196/964, a pesquisa
feita com seres humanos deve
prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a
privacidade, a proteção da imagem e a não estigmatização, garantindo
a não utilização das informações em prejuízo das pessoas e/ou das
comunidades, inclusive em termos de auto-estima, de prestígio e/ou
econômico – financeiro.
4 Disponível em:
http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/aquivos/resolucoes/23_out_versao_final_196_ENCE
P2012.pdf Acesso em:10/07/2017
6
Como a comercialização dos anabolizantes é ilegal, as mulheres poderiam não
querer falar sobre o assunto com medo de se prejudicarem legalmente, ou até mesmo
prejudicarem as pessoas que forneciam os anabolizantes. Na maioria dos casos, essas
pessoas eram amigas das mulheres ou conhecidas dos professores e dos namorados
delas, como será mais bem exposto adiante. Outro motivo pelo qual o sigilo se fez
necessário.
Foi difícil saber, também, como iniciar uma entrevista sobre esse assunto. O
caráter ilícito do objeto acaba fazendo com que o consumo de tais substâncias cause
polêmica e seja malvisto pela sociedade (Velho, 2008), além de gerar desconfiança nas
pessoas que administram tais substâncias. As pessoas acabam se fechando e não
querendo falar sobre o assunto.
Por fim, a dificuldade mais notável foi com relação a minha aproximação das
mulheres na academia. Como dito, por ser um tema polêmico, malvisto e com caráter
ilegal, no começo da pesquisa, nem mesmo o professor da academia, num primeiro
momento, quis apresentar-me às mulheres que utilizavam anabolizantes. E as mulheres
também não estavam dispostas a falar. Eu me sentia constrangida em falar sobre isso,
num primeiro momento, porque eu não tinha a intimidade que era necessária para falar
sobre esse assunto.
Com todas as dificuldades provenientes da inserção no campo e com todos os
questionamentos e inseguranças que isto traz, busquei nas discussões sobre ética em
pesquisa antropológica o apoio para as minhas decisões.
Assim, como foi exposto acima, guiei-me pela Resolução nº 196/1996 e em
reflexões feitas por alguns autores. Como suporte teórico para tanto, utilizei o livro
“Ética e regulamentação na pesquisa antropológica”, organizado por Soraya Fleischer e
Patrice Schuch.
Além disso, seguindo a reflexão de Luís Roberto Cardoso de Oliveira, tomei
como obrigação para a minha pesquisa os três compromissos ou responsabilidades
éticas (2010, p. 27). Assim, comprometi-me com a verdade e
com a produção de conhecimento baseado em critérios de
validade compartilhados na comunidade de pesquisadores,
abarca a questão de que o pesquisador não pode maquiar ou
falsear os dados advindos de sua pesquisa. A tese, o livro, o
7
artigo ou qualquer outro trabalho de interpretação que o
antropólogo elabora têm que estar fundamentados em pesquisa
empírica. (2010, p. 27).
Em segundo lugar, comprometi-me com os sujeitos da pesquisa. Assim, respeitei
as mulheres entrevistadas, esperei sempre pelo consentimento delas, sempre me
preocupei em explicitar meus objetivos e em como esses dados coletados chegariam a
público.
O último compromisso exposto pelo autor diz respeito ao comprometimento
com a sociedade e a cidadania, que eu segui ao mostrar-me disponível a defender os
dados publicados de possíveis manipulações ou distorções para favorecer um grupo
específico.
As dificuldades práticas no campo pesquisado
Não há receita que ensine como se comportar em campo. Através de minhas
pesquisas na bibliografia escolhida para fazer esta dissertação, pude perceber que cada
campo se dá de uma maneira e, por conseguinte, cada pesquisadora ou pesquisador deve
reagir à maneira que o campo se apresenta.
Entretanto, apesar da etnografia variar de acordo com cada enfoque que o estudo
tem, é certo que algumas questões podem influenciar na forma como o campo se
apresentará ou como as relações que serão construídas dentro nesse campo serão feitas.
Um exemplo disso é a questão de gênero.
Ser mulher em um campo de pesquisa pode ser um entrave e ocasionar, como
consequência, diversos obstáculos. Alinne Bonetti e Soraya Fleischer reuniram em um
livro –“Entre as saias justas e jogos de cintura” (2007) - experiências em campo
relatadas por algumas antropólogas.
Os relatos etnográficos das antropólogas expuseram suas experiências e diversas
dificuldades que elas passaram durante suas pesquisas. Algumas dessas dificuldades
estavam relacionadas com o fato de serem mulheres.
A facilidade propiciada pelo gênero se fez presente no meu campo. Ser mulher
em um campo dominado por mulheres me ajudou, porque eu acredito que elas tenham
se sentido mais à vontade para conversar sobre seus corpos comigo, por acharem que eu
8
entenderia melhor essa vontade que elas têm de modificar seus corpos, sendo o gênero
um facilitador na relação de confiança.
É como se atrelado ao fato de eu ser mulher, também estivesse implícita a
obrigação de ser vaidosa. Por isso, por ter essa característica em comum – ser mulher -,
elas poderiam supor que eu entenderia melhor essa ânsia de mudar, justificada pela
pressão que as mulheres sofrem para estarem sempre bonitas e jovens.
Além disso, o gênero em comum também ajudou na construção da intimidade
que se estabeleceu dentro do campo. Por sermos todas mulheres, no desenvolver do
campo, deixou de existir o pudor das entrevistadas ao exibirem seus corpos.
Dessa maneira, elas mostravam, sem constrangimento, o resultado da
musculação, ficavam só de top ou sutiã na minha presença, e pediam para que eu
tocasse partes do corpo delas para que eu comprovasse o resultado da rotina de
exercícios seguida.
Por fim, eu acredito que o fato de ser mulher poderia ter prejudicado a
construção da relação em campo, no sentido de eu apresentar alguma ameaça às
mulheres ou uma ameaça a uma possível competição de disputa de espaço dentro da
academia ou de atenção dos homens, por exemplo.
Entretanto, justamente por eu ser uma mulher estranha naquele universo, com
um corpo completamente diferente do padrão estabelecido entre elas, fora de qualquer
tipo de competição, essa potencial preocupação delas quanto a mim não se concretizou
e, talvez, esse tenha sido o motivo delas terem me acolhido e querido me ensinar a
cuidar da minha saúde e do meu corpo.
Malhação etnográfica
Antes de ir a campo, eu tive um contato fora da academia, portanto, fora do meu
campo de pesquisa, com a minha primeira entrevistada. Ela já era uma conhecida minha
e, ao observá-la, percebi que fisicamente ela estava diferente – o corpo estava mais
inchado e a voz estava bem mais rouca. Ao longo do tempo, conversando com esta
mulher, ela me disse que havia feito uso de esteróides anabolizantes recentemente.
Assim, através desse primeiro contato, uma entrevista foi concedida e, através
dessa primeira entrevistada, começou a se formar a minha rede inicial de contatos.
Perguntei onde ela malhava, quem era o professor que a auxiliava, se na academia havia
9
outras mulheres que também utilizavam esteróides etc. Ela aconselhou que eu
procurasse um professor que era muito famoso na academia e que, a propósito, tinha
sido o responsável pela prescrição dos anabolizantes e das doses a serem tomadas por
ela.
Ao ir à academia pela primeira vez, procurei esse professor, apresentei-me como
estudante de antropologia, expliquei que estava fazendo uma pesquisa de conclusão de
curso e perguntei se ele poderia me ajudar apresentando as alunas dele e se ele poderia
expor sua experiência através de entrevistas. Num primeiro momento, ele foi bastante
solícito e disse que eu poderia acompanhar o seu trabalho e observar a rotina da
academia.
Fui em busca do professor para me auxiliar, pensando naquilo que Foote Whyte
(2005) sublinha ao afirmar que uma observação participante não se faz sem um
intermediário. Esse último colabora com a pesquisa e media as relações entre o
pesquisador e os sujeitos da pesquisa. Além disso, pode sanar incertezas e influenciar
em certas interpretações do pesquisador.
Assim, a primeira estratégia utilizada foi a observação participante. Através
dessas observações, eu pude ver realmente como as relações se davam dentro da
academia, como as relações com o corpo se davam entre as mulheres e entre os demais.
Pude ver como as representações do corpo se constroem, são construídas e são
apreendidas pelas mulheres.
Foi positivo porque, através da prática, pude apreender o campo sob uma ótica
mais próxima de sua lógica interna. Ou seja, ao longo do tempo, eu fui aprendendo a me
portar, a fazer perguntas que me trouxessem resultados objetivos, a não ser invasiva e
indiscreta.
Fui aprendendo a hora certa de fazer as perguntas, sem me precipitar, porque
essa pressa poderia fazer com que as relações, que ainda estavam sendo estabelecidas,
se perdessem. Aprender o momento certo para fazer uma pergunta que interessasse à
pesquisa demandou tempo e vivência dentro do campo, porque como destaca Foote
Whyte (2005), a observação participante demanda um processo longo, que compreende
também uma “negociação” dentro do campo.
Depois de um tempo só observando, eu senti falta de um contato mais concreto
com as mulheres. Até então, eu ainda não tinha conversado direito com elas, só tinha
apreendido as expressões corporais - que dizem muito sobre este universo -, mas ainda
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não tinha conseguido ouvir suas experiências. Fui conversar com o professor, e pedi
uma ajuda com relação à aproximação entre mim e as mulheres. Pedi para que ele
intermediasse esse primeiro encontro.
Ele me propôs, num primeiro momento, que eu fizesse questionários e que ele
mesmo, o professor, entregasse para as alunas da academia. Não gostei muito dessa
proposta, porque eu já imaginava que o resultado não seria positivo. Entretanto, como
eu ainda não tinha muita autonomia dentro do campo e desconhecia as teias de relações
que marcam a hierarquia de poder e a estrutura social local (Foote Whyte, 2005), e não
tinha controle da situação, esse método foi utilizado.
Eu também aceitei, porque eu senti uma grande resistência por parte do
professor em me apresentar suas alunas e, mais uma vez, eu não queria forçar uma
situação dentro de um campo ainda desconhecido.
O resultado desses questionários, como previsto, não foi satisfatório. Foi um
método que não deu certo. Eu passei os questionários para o professor e ele os repassou
para as mulheres. As perguntas eram abertas. Contudo, as respostas vieram muito
simples e muitas vezes monossilábicas, o que para uma etnografia é muito limitado,
além de não agregar conhecimento aprofundado sobre aquele universo.
Outra falha desse método que eu observei na minha etnografia é que, muitas
vezes, uma pergunta interessante surge espontaneamente, e outras perguntas pertinentes
à monografia podem derivar de uma pergunta que surgiu através de uma conversa. O
questionário não permite tal espontaneidade.
Como o questionário não deu certo, eu conversei com o professor da academia,
expus a minha insatisfação e, ofereci uma nova alternativa. No caso, as entrevistas
presenciais. Dessa vez, eu levei toda a documentação que o Comitê de Ética em
Pesquisa que a UnB fornece e mostrei a ele. Imaginei que assim ele entenderia a
seriedade da pesquisa e confiaria no meu comprometimento em preservar não só as
mulheres, mas também a academia e ele. Após esse novo encontro, ele decidiu me
apresentar às mulheres.
Mesmo assim, eu notei que eu não estava conseguindo me aproximar das
mulheres e que mesmo com intermédio do professor elas não estavam dispostas a
conversar. Acredito que elas se sentiam intimidadas com a minha presença, não se
sentiam confortáveis em conversar nem entre elas e nem comigo sobre as rotinas e os
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procedimentos pelos quais elas passavam. Eu estava naquele ambiente, segundo a visão
delas e segundo o que eu senti, como uma completa estranha e invasora.
Por esse motivo, pensei em utilizar outa metodologia. Seguindo a ideia de “ser
afetado”, de incluir-me no fluxo das interações em jogo no campo exposta por Jeanne
Favret- Saada (2005), matriculei-me na academia. A intenção que tive ao me matricular
foi poder observar melhor e estar sempre presente.
Como destacou Gilberto Velho (2008), isso faz com que as pessoas comecem a
não estranhar a sua presença, elas ficam habituadas com a sua estada ali. Assim, elas
passam agir naturalmente, contribuindo para a observação.
Quando eu me matriculei, indo diariamente à academia para fazer as mesmas
coisas que as mulheres que lá frequentavam faziam, eu podia me aproximar mais, pedir
conselhos para elas, perguntar como tal exercício deveria ser feito, conversar sobre
amenidades.
E, assim, uma relação foi sendo estabelecida. Elas foram confiando em mim e
entendendo sobre o que de fato era a pesquisa. Elas foram vendo que eu não estava ali
para julgá-las ou julgar a musculação, e sim para compreender aquele universo e sua
lógica.
É o que Favret-Saada (2005) expõe em seu texto quando diz que “ser afetado” é
observar participando ou participar observando. Ao deixar a sensibilidade transparecer,
outros aspectos do campo, que poderiam passar despercebidos, constituem de maneira
fundamental a pesquisa. A fala, como ressalta essa autora, é um ato suscetível de ser
observado.
Através da fala das entrevistadas, dentro da rotina da academia, muitos conceitos
nativos, por assim dizer, foram apresentados, muito pode ser conhecido sobre essas
mulheres. E são coisas que não foram ditas ao longo das entrevistas “formais”, por
assim dizer, aquelas em que houve o uso de gravador e de perguntas prontas.
A ideia, ao ser afetado, é não desqualificar a palavra nativa, e sim promovê-la.
Não há uma preocupação muito grande na divisão “eles” e “nós”. E, acredito que foi
exatamente isso que as mulheres sentiram ao perceberem que eu estava ali na academia
fazendo as mesmas coisas que elas. Não havia uma divisão. Ali, eu estava no meu papel
de pesquisadora, mas ao mesmo tempo, eu era como qualquer outra praticante de
musculação tentando acertar na prática dos exercícios e tentando aprender como fazê-
los. Eu me dispus a aprender.
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No decorrer dessa metodologia – ser afetada pelas ações na academia de
ginástica - eu não senti nenhuma pressão para que fizesse uso de substâncias ilegais,
como os anabolizantes. Justamente porque elas deixaram bem claro que o uso de
anabolizante tem que ser feito depois de um longo tempo malhando. Primeiro, se a
pessoa quiser modificar mesmo o corpo, elas afirmam que é preciso mudar a
alimentação, ter disciplina na hora de malhar e, se preciso for, tomar suplementos
alimentares.
Todas as 8 mulheres que tomaram anabolizantes são contra o uso precoce, como
elas definiram, de anabolizantes. O primeiro achado etnográfico interessante de meu
engajamento na academia foi o fato de que os anabolizantes são recomendados aos
iniciados somente se já tiverem cumprido um rol de práticas e de esforço, que será então
complementado com o uso de anabolizantes. Não havia uma indicação automática ou
irrestrita do uso destas substâncias, ao contrário.
Junto aos métodos já discutidos, também foram utilizadas entrevistas semi-
estruturadas, que eram feitas ao término da sessão de musculação das entrevistadas, para
não atrapalhar o exercício. Para tanto, foi usado um gravador. Nos dias em que não
houve entrevistas, as conversas eram tidas durante os exercícios de musculação, de
maneira bastante informal, deixando com que elas falassem qualquer coisa, sem ter um
direcionamento acerca do assunto.
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Capítulo 2 - O discurso normativo formal e o discurso normativo
espontâneo no consumo de esteroides anabolizantes
O discurso normativo formal
A realidade do Direito, segundo Brito (1993), é a linguagem. O autor considera
que o direito se exprime por ideias prescritivas no ato intelectual. Também porque para
falar dessas ideias, outras são relatadas de maneira descritiva.
O Direito, segundo Araújo (2005, p. 20), é entendido como o que é justo ou
conforme a lei e a justiça. É “a faculdade legal de praticar ou não um ato; ciência das
normas obrigatórias que disciplinam as relações dos homens numa sociedade;
jurisprudência e conjunto de leis reguladoras dos atos judiciários”.
Bittar (2001), por sua vez, pondera que o conceito de discurso pode ser
explicado como uma racionalidade depurativa de ideias – em oposição à intuição. O
discurso jurídico, ou a prática jurídica, são entendidos aqui, assim como para Pessoa
(2008), como sinônimos de texto. Segundo a autora, “[...] há textos que criam realidades
jurídicas, há outros que substituem os anteriores, há aqueles que decidem aplicando
textos mais genéricos, entre uma variabilidade de textos”.
O discurso normativo formal é uma espécie do discurso jurídico, assim como o
discurso burocrático, decisório e científico também o são. (FURQUIM, p. 15) O
discurso formal é caracterizado pela sua função cogente, pelo poder-dever-fazer.
Conforme Pessoa (2008)
O discurso normativo é o discurso do legislador, agente investido de
competência e poder para a realização de uma tarefa social, qual seja,
a regulamentação de condutas. O legislador exerce seu papel
discursivo dirigindo-se à comunidade, que recebe os textos por ele
criados.
O discurso normativo formal é aquele que é criado pelo Estado, na maioria das
vezes, por meio do legislador. É este discurso, dentre outras coisas, que ratifica a
soberania, a supremacia e o monopólio do Estado em relação aos seus cidadãos, porque
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somente ele tem a prerrogativa de determinar condutas, de dizer o que é jurídico ou não
e, assim, como corolário, só ele tem o poder de dizer o que pode/deve ou não ser feito.
Assim, quando existe um conflito entre as expectativas normativas
compartilhadas entre as pessoas, surge a necessidade de se estabelecer regras de
institucionalização. Recorre-se, neste caso, ao editor normativo, um terceiro
personagem a quem cabe fixar as regras em que a comunicação acontecerá.
Entretanto, Ferraz Júnior (2000) considera que é importante ressaltar que para
que este terceiro assuma tal posição, deve acontecer a institucionalização da autoridade.
Assim, esta autoridade e, por consequência, esta possibilidade de interferir ou de
proferir o discurso normativo formal está apoiada no consenso social, ou seja, é
respaldada por terceiros como, por exemplo, a população.
O discurso normativo formal pode ser entendido simplesmente como sendo a
norma. O legislador, por meio da norma, estabelece um determinado tipo de conduta. A
partir de então, pode surgir uma proibição ou uma obrigação. Segundo Ferraz Júnior
(1997, p. 116), “[...] todo direito estabelece uma ordem e a coloca fora de discussão. A
lei, em princípio, impõe e exige obediência: não se pode aceitar parcialmente uma lei,
desejar cumpri-la apenas em parte”.
O discurso normativo espontâneo
Por meio dos dados obtidos em campo, constatou-se que existe uma distância
entre o que era posto pela lei formal e o que era praticado pelas entrevistadas. É por isso
que se pode afirmar, seguindo o raciocínio de Gaglietti (2006), que a lei, neste caso em
específico, recebe um tratamento de ordem formal – dado pela Constituição Federal – e
recebe, também, um tratamento de ordem informal – estabelecido por regras e normas
que são criadas a partir do que é vivenciado cotidianamente pelos atores envolvidos.
O discurso normativo espontâneo é, portanto, aquele que surge de maneira
informal entre os grupos sociais. É aquele que é desenvolvido a partir dos costumes, do
que é vivenciado, observado e aceito entre as pessoas pertencentes a um grupo. A
existência de uma segunda norma – informal – não implica, necessariamente, o
desconhecimento da norma formal. Pode-se dizer que este tipo de discurso, ou essa
15
norma informal, surge da “desimportância” ou desconsideração que as pessoas dão à
norma formal.
Portanto, mesmo conscientes do que está posto em lei, as pessoas do universo
investigado acabam pautando suas condutas a partir de suas experiências grupais. Há
uma identificação maior com o que é vivenciado, com os costumes e regras informais.
Segundo Gaglietti (2006, p. 45), o “Estado encarna a vontade geral”. É por isso
que uma possível explicação para essa discrepância está na própria formação da norma
formal. O Estado, a partir de uma norma, busca alcançar ou determinar certo tipo de
conduta para toda a sociedade.
Destaca Kelsen (1998), corroborando com essa pretensão estatal geral, que a
norma é a expressão de que algo deve ocorrer, de que um indivíduo deve se conduzir de
certo modo e de que tal comportamento está previsto na norma. Desta maneira, a norma
prescreve, de maneira geral, a forma como a pessoa deve conduzir-se.
Quanto ao seu destinatário ou sua abrangência, tem-se que a lei, norma mais
importante do ordenamento, é a regra geral de direito, abstrata e permanente. Disso,
pode-se concluir que talvez o surgimento de uma conduta distinta do que está na norma
provenha da possibilidade de a lei ser válida, estar no ordenamento, mas não ser eficaz.
Quando a norma prescreve a forma como uma pessoa deve conduzir-se, deixa de
levar em consideração que uma possível conduta já existia antes. Se os conceitos
jurídicos forem pensados com rigor, tem-se que, na verdade, a norma, enquanto modelo
de conduta seguido pela sociedade, existe antes mesmo de uma autoridade
institucionalizá-la.
Daí a grande probabilidade de haver um conflito entre uma conduta já
estabelecida e aceita como válida entre os indivíduos e uma norma formal posterior, que
determina condutas de maneira generalizada e que, muitas vezes, não se aproxima com
o que as pessoas entendem como certo ou desejável.
Tem-se a norma informal como uma expectativa compartilhada. Portanto, não
precisa de uma autoridade para que seja seguida. O que existe é uma normatividade
informal em que uma convenção é estabelecida e seguida – por meio de costumes, pela
cultura etc.
Entretanto, quando os conflitos entre essas expectativas compartilhadas surgem,
exige-se a aparição de uma autoridade e, quando a decisão desta começa a pautar a
16
conduta de todos, tem-se uma passagem norma informal para uma regra. Isso ocorre
quando passa-se da normatividade para a institucionalidade.
É necessário atentar-se para o fato de que, geralmente, quem define o que é
autoridade é a própria normatividade informal. Isso quer dizer que, quando as pessoas
exercem seu direito de voto e escolhem alguém para representá-las dentro das
instituições, tornam-se as responsáveis por auferir a legitimidade que a autoridade
necessita para ser entendida como tal. Sendo assim, é dentro dessa normatividade
informal, calcada nos grupos sociais, que a autoridade é escolhida.
Isto tudo exposto para concluir que, como dito anteriormente, é possível que já
haja uma determinada conduta antes mesmo de uma norma formal – ou regra, se se
optar pelo rigor do conceito jurídico – surgir. Assim sendo, é possível que seja por isso
que a conduta destoe da lei. Os costumes fazem muito mais sentido, por surgirem dentro
de um contexto mais próximo dos indivíduos, do que a lei – que possui um caráter
abstrato, não se destinando a uma pessoa ou a um grupo de pessoas em específico.
Outra explicação possível para essa coexistência de normas, também trazida por
Gaglietti (2006), está relacionada à descrença que as pessoas têm, de maneira geral, nos
poderes – Legislativo, Judiciário e Executivo – constituídos. Como corolário dessa
situação, surge a descrença nas leis. As pessoas, assim, buscam em outras fontes a
legitimidade para respaldar suas condutas.
Com relação a esses apontamentos, apesar de a pesquisa em si não ter entrado
em pormenores quanto ao motivo que levou às pessoas envolvidas a não respeitarem a
norma formal, com os dados obtidos, a conclusão que se tem é que essa disparidade
entre o que está na norma formal e o que é praticado se deu porque não houve uma
identificação com a norma.
As pessoas possuem desejos, interpretações, visões de mundo que, muitas vezes,
não condizem com o que está na norma. Isso porque, os valores sociais que são tidos
como certos e passíveis de serem seguidos por todos são prescritos por lei gerais e
abstratas. Assim,
[...] a razão de Estado fica identificada com a racionalidade do saber
jurídico e da lei positiva como uma forma de impor-nos interesses e
desejos legalizados, quer dizer, que estes passam a ser os mesmos
desejos e interesses que outorgam consistência simbólica ao Estado.
(WARAT, 1995, apud GAGLIETTI, 2006, p. 45)
17
Por fim, cabe destacar que há uma peculiaridade neste discurso normativo
espontâneo referente à sua criação. Diferentemente do que ocorre no discurso normativo
formal, em que o Estado, por meio do legislador, cria as condutas a serem seguidas –
ainda que se possa falar em uma participação popular nas leis -, no discurso normativo
espontâneo existe um compartilhamento de saberes e de experiências. E é a partir disso
que o discurso é criado.
Entretanto, embora se possa pensar em uma construção democrática do discurso,
é preciso tomar cuidado. Ainda que haja a participação de diversas pessoas nessa
construção, faz-se mister destacar que, assim como acontece no discurso normativo
formal, aqui também existe uma hierarquização.
Assim, por mais que o conhecimento seja compartilhado e que se abra espaço
para a observação e para experiência como ferramentas de composição do discurso, é
importante frisar que existe um grupo preponderante responsável pela sua construção –
professores e namorados principalmente, mas também as veteranas (mulheres
consideradas experientes dentro do campo por já terem utilizado anabolizantes.)
O discurso normativo espontâneo e a Microfísica do poder em Foucault
A coleta de dados foi realizada entre os meses de outubro de 2012 e março de
20135. Como método, utilizou-se, sobretudo, a etnografia. Assim, adentrou-se no
5 A incursão etnográfica se deu em uma academia de ginástica em Brasília. Para preservar as
entrevistadas, nem o nome nem o local da academia serão divulgados. Também para preservá-las, seus
nomes foram trocados, permanecendo, entretanto, suas idades e profissões verdadeiras.
Fizeram parte da pesquisa 12 mulheres. Desse universo, 8 já haviam feito ou ainda faziam, à época da
pesquisa, uso de esteróides anabolizantes e de suplementos alimentares. As outras 4 entrevistadas só
haviam feito o uso de suplementos alimentares. Por relevância ao discutido nesta monografia, apenas
serão elencadas as mulheres que fizeram ou faziam, à época da pesquisa, uso de anabolizantes:
1. Ana tinha 46 anos e já malhava há 26 anos. Ela era servidora pública, formada em arquitetura,
divorciada, mas tinha namorado, e 2 filhos com mais de 20 anos. Foi a entrevistada mais velha e
que malhava há mais tempo. Ela já havia feito, quando mais nova, uso de esteróides
anabolizantes. Todavia, à época da pesquisa, se dizia contra o uso por causar muitos efeitos
negativos ao corpo.
2. Vera tinha 23 anos e malhava há 5. Ela era estudante de administração e trabalhava em uma loja
de um shopping de Brasília. Não tinha filhos e não era casada. À época da pesquisa, ainda estava
fazendo o uso combinado de dois tipos diferentes de esteróides anabolizantes, e também fazia o
uso de suplementos alimentares.
3. Alessandra tinha 26 anos e malhava há 11. Era vendedora em uma loja de suplementos
alimentares e tinha ensino médio completo, não tinha filhos e não era casada. Também já havia
18
mundo das academias de ginástica, já que o principal objetivo era conhecer e analisar os
processos aos quais as mulheres se submetem na busca pela otimização da aparência
física.
A rotina das mulheres foi o ponto de partida para a análise, ou seja, como
praticam musculação, quais dietas fazem, quais regras seguem, quais anabolizantes e/ou
suplementos consumiam etc. Houve uma preocupação em problematizar o consumo de
esteroides anabolizantes para compreender melhor o universo no qual estes sujeitos
estão inseridos.
Como resultado de seis meses de incursão, pôde-se constatar que o objetivo
principal das oito mulheres entrevistadas que fizeram o uso de anabolizantes era a
mudança corporal. Todas desejavam corpos musculosos ou mais definidos, ou os dois
ao mesmo tempo. Além disso, destaca-se o fato de que há uma preocupação muito
grande entre as adeptas dos anabolizantes em orientar as mulheres que começaram a
malhar recentemente quanto à alimentação correta, à rotina e ao consumo de tais
substâncias.
Por isso, antes de indicarem qual o anabolizante mais indicado, as veteranas –
são aquelas alunas que frequentam a academia há mais tempo – têm a preocupação de
ensinar como fazer uma boa dieta e uma boa rotina de treino. Elas ressaltam que antes
de tomar anabolizantes, é preciso que essas mulheres estejam dispostas a terem suas
vidas modificadas e dispostas a deixarem de comer e de fazer muitas coisas.
feito, anteriormente, uso de esteróides anabolizantes, mas no momento da entrevista só usa
suplementos alimentares.
4. Marília tinha 30 anos e já malhava há 5. Era administradora de empresa, possuía ensino superior
completo, era casada e tinha um filho. Já fez uso combinado de dois tipos de esteróides
anabolizantes, e à época da pesquisa, ainda fazia o uso de suplementação alimentar.
5. Alice tinha 24 anos e malhava há 2. Era formada em publicidade e trabalhava como
recepcionista em uma outra academia de ginástica, não tinha filhos e não era casada. Estava
fazendo uso de um tipo de esteróide anabolizante, e ainda fazia o uso de suplementos
alimentares.
6. Renata tinha 32 anos malhava há 10 anos. Era empresária e era formada em administração, tinha
1 filho e não era casada. Estava fazendo uso de um tipo de esteróide anabolizante, e ainda fazia o
uso de suplementos alimentares.
7. Bruna tinha 27 anos e já malhava há 11 anos. Cursava direito e trabalhava em um Ministério de
Brasília. Não era casada e também não tinha filhos.
8. Lúcia tinha 26 anos e já malhava há 4 anos. Ela era cabeleireira, tinha ensino médio completo,
tinha namorado e não tinha filhos. Ela já havia feito uso esteróides anabolizantes, e ainda fazia o
uso de suplementos alimentares para complementar a dieta e ajudar no rendimento da
musculação.
19
A partir do exposto acima, tem-se que há uma hierarquia dentro deste universo.
Existe uma clara separação entre quem já fez o consumo – e, por isso, tem mais
experiência – e as mulheres que são iniciantes. Percebe-se que é um campo em que há
muito respeito, não só pelas rotinas e procedimentos, como também pelas pessoas que
são experientes no assunto.
Juntamente com as mulheres experientes, estão no topo desta hierarquia os
professores e os namorados. Entendendo que os esteroides anabolizantes são
substâncias cujo comércio sem receita médica é proibido, é normal ter a ideia de
dificuldade associada à obtenção de tais substâncias. A compra de anabolizantes pode
remeter, portanto, à ideia de mercado negro ou contrabando. Contudo, há consenso entre
as entrevistadas no que se refere à facilidade de adquirir essas substâncias.
A informação e/ou o incentivo podem vir justamente dos professores ou dos
namorados. E são geralmente essas mesmas pessoas as responsáveis por fornecer ou
por intermediar a aquisição de tais substâncias.6
Neste contexto, a consulta a profissionais é algo raro. É por isso que estas
pessoas mais experientes – segundo a hierarquia construída pelos integrantes deste
universo – acabam se tornando as referências que as novatas têm para comprar e
consumir anabolizantes e suplementos.
É interessante ressaltar, por fim, que o comércio é feito predominantemente
pelos homens, por terem, segundo as entrevistadas, o conhecimento necessário para
discernir uma substância boa da ruim, ou uma substância verdadeira da falsificada.
Segundo elas, é mais difícil que os homens sejam enganados e acabem comprando
substâncias de baixa qualidade.
Entre as usuárias de anabolizantes, foi possível identificar traços de uma prática
de iniciação, com estágios e relações bem marcadas entre veteranos e neófitos. Também
por isso, este é um grupo que se distingue no ambiente da academia.
Analisando o quadro de maneira sintética, pode-se dizer que o uso de esteroides
significa, para as mulheres entrevistadas, uma transformação na prática da musculação.
Trata-se de uma entrada em outro plano de modulação corporal. Para que este processo
se desenvolva de forma satisfatória, o universo da academia (musculação, dieta,
disciplina, regras e abstenções) não só é incorporado à rotina, mas torna-se um estilo de
6 A importância dessas autoridades dentro do campo será melhor exposta no capítulo 5.
20
vida. A prática da musculação (e todo o ritual envolvido) é vista como algo
indispensável, que passa à frente de outros possíveis deveres.
Outro tópico abordado durante as entrevistas foi a percepção das mulheres com
relação aos efeitos que o uso de anabolizantes pode proporcionar. De uma maneira
geral, todas as mulheres apontaram aspectos negativos e positivos do uso de tais
substâncias, e todas se mostraram muito conscientes das possíveis complicações que o
uso pode trazer. A virilização, por exemplo, é um risco potencial, mas plenamente
manejável, segundo as entrevistadas.
Perguntou-se também por que queriam modificar seus corpos. Todas disseram
que achavam esses corpos musculosos e/ou definidos mais bonitos, mais admirados
pelos homens, invejados pelas mulheres e muitas associaram esses corpos sarados à
feminilidade. Justamente porque atrelada a esse corpo modificado está a confiança, a
melhora da autoestima, a vontade de se arrumar mais, de sair mais e, como
consequência também, aumenta o número de conquistas amorosas no registro
heterossexual.
Por mais que falar acerca do uso de anabolizantes não seja uma dificuldade para
as mulheres entrevistadas, admitir isso publicamente ainda o é. Porém, o receio de
admitir o uso, mesmo em ambientes seguros, no interior da academia, não advém
exatamente das ações ilegais envolvidas na obtenção dos anabolizantes, como se
poderia supor, e sim da sensação de trapaça que esse uso proporciona.
Sautchuk (2007) leciona que existem ideias que pautam todo esse universo da
musculação. Entre elas, está a ideia de sacrifício, disciplina, dedicação, força,
determinação etc. Estes valores remetem a um conceito de conquista pessoal, nos
termos do individualismo moderno. Opera aqui uma interconexão entre a dimensão
íntima, psíquica, e a composição corporal.
Mesmo sabendo que elas podem ser julgadas negativamente por terem usado
anabolizantes e, por isso, não admitirem para todos que fizeram uso deste tipo de
produto, essas mulheres sentem que elas que merecem ser admiradas. Isso porque, além
de terem conseguido o corpo que muitas desejam, elas se classificam como mais
corajosas e mais disciplinadas.
Ou seja, há uma tentativa de legitimar o uso dos anabolizantes no universo da
academia por meio da mesma lógica da coragem e do esforço, associando, portanto, o
desenvolvimento metabólico com a dimensão moral.
21
Há uma ambiguidade no que tange à legitimidade do uso de esteroides
anabolizantes nas academias de ginástica. Popularmente, isso termina por abarcar todo o
universo da academia, pois o uso de anabolizantes não é legitimado pelas pessoas, por
tudo o que foi exposto acima. Entretanto, subjetiva e individualmente, aparecem os
discursos que legitimam seu uso.
Assim, as mulheres que usam anabolizantes, com algumas exceções,
publicamente recriminam o uso de anabolizantes. Entretanto, dentro do seu grupo, onde
se sentem mais à vontade e onde se identificam umas com as outras, essas mulheres
entendem o uso de anabolizante como algo normal, e, muitas vezes, veem até como algo
necessário para atingirem os objetivos desejados.
A partir do relato das consumidoras de anabolizantes, o corpo não só pode, mas
deve ser construído. A satisfação que o corpo desejado pode proporcionar ultrapassa a
proibição prevista nas leis. É por isso que não há essa identificação das entrevistadas
com esse conteúdo normativo. E, como consequência dessa desconsideração, há esse
enfrentamento ao ordenamento, que é materializado pelo com o consumo de algo
vedado por lei.
De acordo com Davison (2011), esse processo de construção dos corpos implica
ressignificações. Assim, para obter o corpo desejado ou o corpo tido como ideal, o uso
de anabolizantes ganha um novo significado. Passa a ser natural, aceitável e positivo.
Se para conseguir construir o corpo almejado for preciso fazer uso de
anabolizantes, utilizar suplementos alimentares ou fazer dietas, as entrevistadas o farão.
Essas atividades são vistas como um recurso necessário para chegar ao objetivo
desejado.
A partir do que foi coletado, desenvolveu-se um relatório que expôs a existência
de dois tipos de discursos diferentes – o discurso normativo formal e, em oposição, o
discurso normativo espontâneo.
Neste tópico, pretende-se expor mais detalhadamente o discurso normativo
espontâneo, ou informal, e a pertinência dos conceitos de Foucault – em “Microfísica do
poder” - em relação a ele. Para tanto, será considerada a existência de ambos os
discursos dentro do universo analisado.
A intenção de Foucault, com o conceito de poder micro, é analisá-lo não em
grandes estruturas, como Marx se propôs – ainda que Foucault não negue esta análise.
O autor procurou investigar o como do poder. Para isso, teve como ponto de partida o
22
poder, o direito e a verdade. Ele tentou “[...] discernir os mecanismos existentes entre
dois pontos de referência, dois limites: por um lado, as regras do direito que delimitam
formalmente o poder e, por outro, os efeitos de verdade que este poder produz”.
(FOUCAULT, 1979, p. 100).
Desse ponto de partida, Foucault (1979, p. 100) lança a seguinte pergunta, “de
que regras de direito as relações de poder lançam mão para produzir discursos de
verdade?”. Em toda sociedade existem relações de poder. Essas relações só funcionam e
se estabelecem com uma produção e circulação do discurso.
Adentrando na relação estreita entre direito e poder, o autor apresenta uma
análise da direção do discurso do direito de maneira inversa. Assim, ao invés de
entender a soberania como o problema central do direito, propôs-se a expor até que
ponto o direito – como instrumento de dominação que é – põe em prática não só essas
relações de soberania, mas também relações de dominação.
Neste contexto, faz-se importante frisar que a dominação que Foucault pretende
investigar não é aquela global, que parte do soberano aos súditos ou do Estado aos
cidadãos. O foco dele está justamente na dominação existente nas múltiplas sujeições
que existem no interior do corpo social.
Para Foucault (1979, p. 102), não interessa analisar o poder em seu centro, de
cima para baixo, e sim o poder em suas extremidades, em suas ramificações. Não
interessa perguntar por qual motivo alguns querem dominar e o que procuram com isso.
Preocupa, pelo contrário, saber como funcionam as coisas “ao nível do processo de
sujeição ou dos processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os
gestos etc.”
Seguindo a linha foucaultiana e a partir do que foi exposto anteriormente, não
interessa analisar detidamente, na presente reflexão, o que o discurso normativo formal
entende. O foco da reflexão se centrará no que é dito e feito por meio do discurso
normativo espontâneo, que é o compartilhado dentro do universo das mulheres que
consumiram anabolizantes.
Percebe-se que neste universo de academia, existe o que Raposo (2005, p. 199)
chamou de “direito paralelo”. Então, existe o que está na norma e, como resultado,
existe uma expectativa de que a conduta das pessoas seja condizente com o que está
exposto pela normatividade. E existe também o discurso normativo espontâneo,
23
formado mediante as concepções dos próprios envolvidos neste universo e que
determina uma conduta oposta à norma.
Esse direito paralelo exposto pelo autor tem um caráter de enfrentamento e
desobediência. Com a observação dos comportamentos em campo, também é possível
concluir nesse sentido. A conduta desrespeitando a norma tem esse caráter de desprezo
pelo que o Estado entende ser o certo e parte-se do que aquele grupo entende como
valor aceitável. A partir disso, a conduta dos integrantes desse grupo é pautada.
Há, assim, dois direitos diferentes, criados por atores diferentes e determinando
condutas diametralmente opostas. Esses direitos coexistem em um mesmo universo e,
portanto, há um direito paralelo a outro. Há o Estado querendo determinar as condutas
dos indivíduos e há, também, pessoas que, por não se identificarem com o que está
prescrito e, também, por não se sentirem coagidas pela norma estatal, desconsideram o
que não faz sentido, criando um discurso próprio que justifica o que fazem.
No caso dos anabolizantes, o discurso normativo espontâneo traz uma
legitimação moral em relação ao consumo de uma substância ilegal. Então, ainda que o
consumo para fins estéticos – como é o caso abordado pelo estudo – não seja permitido
pela lei e pelo Estado, as pessoas o fazem porque colocam os seus desejos, suas
vontades e seus objetivos acima do que é imposto.
E, para além disso, apesar de a lei dizer que esse consumo é ilegal, as pessoas o
fazem mesmo assim por acreditarem que os motivos que as levam a fazê-lo são
suficientes para justificá-lo. Então, pode-se afirmar que elas têm a consciência de que
aquilo não é permitido, mas ali, dentro daquele universo, essa proibição não surte efeito.
O discurso normativo espontâneo acaba prevalecendo sobre o discurso normativo
formal.
O discurso normativo espontâneo prevalece sim, mas não no sentido de ser uma
expressão da liberdade das mulheres. O que ocorre, na verdade, é uma substituição de
quem exerce a dominação. Esta ainda existe, mas é exercida por outros atores. Se o
discurso normativo formal se sustenta pela dominação do Estado sobre os indivíduos,
no caso estudado, a conduta das mulheres é determinada pelo discurso das autoridades
no campo – professores, outras mulheres, namorados e amigos. Essa prevalência, no
final, expressa uma dominação do discurso normativo espontâneo sobre o normativo
formal.
24
É importante ressaltar, entretanto, que no caso estudado, esta discrepância entre
norma formal e a norma informal não significa que uma queira tomar o lugar da outra.
Portanto, isso não quer dizer que esse “direito paralelo” (RAPOSO, 2005, p. 199) exista
para além do ordenamento jurídico oficial. Segundo Raposo (2005, p. 199), aquele
“compõe, juntamente com este, uma economia dos ilegalismos necessários à própria
sobrevivência daquele. ”
Segundo o autor, o poder não funciona sem certa economia das ilegalidades.
Cada camada, cada classe da sociedade usufrui de certa margem de ilegalidade, que é
tolerada pelo Estado, pois caso não o fosse, o Estado não poderia funcionar, porque o
próprio poder teria o seu funcionamento prejudicado.
Desta forma, não haveria mais essa dicotomia ilícito/lícito, já que o direito em
seu sentido amplo – leis, práticas jurídicas, entre outros elementos – existiria justamente
para gerir essas ilegalidades. O poder em si não sobreviveria se não houvesse essa
economia das ilegalidades, como destaca Raposo (2005) e Foucault (1979).
É por essa razão que Foucault entende não haver um monopólio acerca da
representação do poder. Ele não pertence apenas ao Estado, por exemplo. Pelo
contrário, ele se situaria no interior de estratégias de dominação, que por sua vez, estão
espalhadas por todo o discurso que é utilizado.
No universo investigado, assim como destaca Foucault, o poder não pertence a
uma pessoa, não está nas mãos de alguns. O poder é algo que circula e não é algo
palpável ou estanque. Na verdade, o poder em si não existe, o que há é a relação que ele
estabelece. E isso pode ser observado por meio da construção da percepção das
mulheres.
Isso significa dizer que quando o professor ou uma veterana dizem qual rotina
seguir, qual alimentação deve ser adotada e qual substância precisa ser consumida, ali
há uma relação de poder, em que a aluna iniciante se sujeita ao que as outras pessoas
dizem. Portanto, vê-se que existe uma relação de confiança baseada na experiência que
uns têm em relação aos outros.
Por isso, não se pode afirmar que uma pessoa detém o poder de forma exclusiva.
Isso se dá justamente por ele circular, uma vez que a cada momento ele está presente em
um tipo de relação. Então, se em um momento aquela mulher iniciante se sujeitava aos
conselhos de alguém mais experiente, no futuro, ela será a responsável por repassar essa
25
percepção para outra mulher que esteja começando a consumir anabolizantes. É nesse
sentido, também, que se pode afirmar que o poder funciona em cadeia.
Por fim, destaca-se que o indivíduo não é o outro do poder. Para Foucault, ele é
alvo, sujeito e um efeito do poder. Não é todo poder que individualiza, mas certamente
essa faceta pode ser destacada. Ao mesmo tempo em que o indivíduo é um efeito do
poder, também é responsável por transmiti-lo.
Nesta seara, o autor se concentra principalmente no poder disciplinar, por
entender que as relações desse tipo de poder possuem grande importância estratégica
nas sociedades modernas depois do século XIX.
O poder disciplinar, em específico, é tido muitas vezes como algo negativo.
Foucault, indo na contramão, entende-o como algo que pode ser positivo. É o poder o
agente responsável pela individualização das pessoas. O indivíduo, portanto, como
resultado, é uma produção do poder e do saber.
Segundo Foucault (1979, p. 61), “[...] a disciplina é um tipo de organização do
espaço. É uma técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em
um espaço individualizado, classificatório, combinatório”. Ele explica, com isso, que o
poder disciplinar age como um “diferenciador”.
Dentro de uma massa desordenada e confusa de pessoas, “o indivíduo emerge
como alvo de poder”. (FOUCAULT, 1979, p. 62). Assim como é o hospício que produz
o louco, é também o consumo de anabolizantes, a frequência à academia, a disciplina
física e alimentar que produzem o biotipo desejado pelas entrevistadas.
Assim, o poder disciplinar fabrica essa espécie de indivíduo. Uma mulher no
meio de outras é apenas uma mulher como todas as outras. Já se estiver neste ambiente
de academia e se sujeitando ao que é aconselhado a ela, torna-se um indivíduo
completamente diferente, pois passa a ser fabricado por este universo e começa a
pertencer a um grupo específico.
26
Capítulo 3 – Inventário/diagnóstico de valores nos discursos
Valores no discurso normativo formal
O discurso normativo formal, como bem exposto no capítulo anterior, é aquele
caracterizado pela sua função cogente. É o discurso do Estado, feito pelo legislador –
agente investido de competência e poder -, e materializado pela criação do ordenamento
jurídico. Em síntese, o discurso normativo formal surge a partir da institucionalização
das expectativas normativas compartilhadas entre os indivíduos.
A partir dos dados analisados em campo, tem-se que o discurso normativo
formal, naquele universo, expressa-se por meio de normas que proíbem o uso de
esteroides anabolizantes para fins estéticos.
No Brasil, as substâncias anabolizantes só podem ser utilizadas com fins
medicamentosos. Segundo a Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 19737, medicamento é
todo “produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade
profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico”. Ou seja, os anabolizantes só
podem ser usados no auxílio ao tratamento de doenças. Por isso, essas substâncias
precisam de autorização do Ministério da Saúde para serem comercializadas em
farmácias, por exemplo.
Para tanto, ao comprá-las, é necessária a apresentação de uma receita especial de
controle, como discorre a referida Lei, ao dispor sobre o controle sanitário do comércio
de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlato. Essa receita especial de
controle tem que ser feita em duas vias e tem validade em todo o território nacional
durante 30 dias, a partir da data da emissão.
Quando o uso de tais substâncias tem outro objetivo final, como a estética, por
exemplo, estas são tratadas pelo Ministério da Saúde como drogas ilícitas, ou seja, a
venda e o consumo são proibidos. A proibição é justificada pelo fato de que, quando as
substâncias anabolizantes são usadas sem prescrição e acompanhamento médico, de
maneira excessiva e abusiva ou, quando a pessoa não está com nenhuma deficiência no
organismo, estas substâncias podem causar efeitos colaterais, como elevação do
7 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5991.htm Acesso em: 9/06/2017
27
colesterol, pressão sanguínea elevada, distúrbios na coagulação do sangue, tumores no
fígado e no pâncreas, ataque cardíaco e até morte.8
O discurso normativo formal retrata o consumo de anabolizantes a partir da
perspectiva biomédica, preocupando-se com os efeitos que esse consumo pode gerar nas
pessoas. O enfoque biomédico condena o uso não terapêutico dos esteróides
anabolizantes, alertando para os riscos do uso não supervisionado. (Cecchetto; Moraes;
Farias, 2012). Nos comandos emanados pelas leis, há clara preocupação em preservar a
saúde e a integridade do corpo humano.
Desde há muito se investiga como o corpo é entendido, o que ele representa
socialmente e de que maneira outros fenômenos sociais influenciam na forma como ele
é visto. A percepção sobre o corpo já se voltou exclusivamente para os aspectos
biológicos, entendendo o indivíduo apenas como produto do corpo, dando-se, assim
primazia aos aspectos biológicos para entender as diferenças culturais e sociais.
Entretanto, por meio de uma sociologia em pontilhado9, passou-se a perceber o
corpo como uma construção individual, mas também como uma construção social. Isso
quer dizer que o corpo, na percepção das entrevistadas, é um local de investimento
individual. Cada indivíduo, entendendo ser dono do seu corpo e possuidor de total
autonomia sobre ele, sente-se como o responsável por modificá-lo da maneira que
entender.
Todavia, essa construção individual, por levar em consideração os valores que
são tidos como positivos pela sociedade, pode ser entendida como um reflexo do que é
socialmente determinado. É uma construção executada pelo indivíduo, mas pautada por
critérios determinados pela sociedade.
Entendendo o corpo como um vetor semântico, podendo ser moldado cultural e
socialmente, passou-se a analisar de que maneira a relação dos indivíduos com o mundo
social era construída. Como destaca Le Breton, em “A Sociologia do Corpo” (2012):
“Os usos físicos do homem dependem de um conjunto de
sistemas simbólicos. Do corpo nascem e se propagam as
significações que fundamentam a existência individual e
8 Informação disponível no Portal de Saúde do Governo Federal. Disponível em:
http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=24839 9 Reflexão feita por David Le Breton em “A sociologia do corpo”, Ed. Vozes. 6ª Ed. 2012. Página 18
28
coletiva; ele é o eixo da relação com o mundo, o lugar e o
tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia
singular de um ator. Através do corpo, o homem apropria-se da
substância de sua vida traduzindo-a para os outros, servindo-se
dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros da
comunidade.” (Le Breton, 2012, p. 7)
O corpo, entendido como vetor semântico que contribui para a construção da
pessoa enquanto indivíduo social é um dos principais fatores no processo de
socialização. Tido como um conjunto de sistemas simbólicos, o corpo pode ter sua
existência e importância analisadas a partir de diversas perspectivas.
Uma forma para entender o cuidado do Estado para com o corpo é analisar as
regras inscritas neste a partir da perspectiva religiosa. Segundo destaca Marli
Wandermurem em “O corpo na fronteira do sagrado e profano: a construção ética da
corporeidade através da história”,
“No corpo estão inscritas todas as regras, todas as normas e
todos os valores elaborados pela construção teológico-filosófica
que vêm perpassando as sociedades ao longo das épocas
históricas. No mundo religioso, ele é visto como uma
construção simbólica, por isso não se pode compreendê-lo pelo
biológico, e sim, por sistemas culturais. A preocupação com o
corpo passa a ser proibida, e começa-se a delinear a concepção
de separação de corpo e alma, prevalecendo a força da alma
sobre o corpo”. (Wandermurem, 2007)
O Estado, ao preocupar-se com os efeitos do uso estético de anabolizantes,
elaborando para isso leis que proíbam esse fato, expõe sua percepção do corpo “como
um espaço teologizado, carregado de simbologias que evocam nele a ligação com o
sagrado” (Wandermurem, 2007, p. 178).
Na história do cristianismo – religião predominante no Brasil –, como destaca
Anderson José Machado de Oliveira, em “Corpo e santidade na América portuguesa”,
29
“As referências ao corpo aparecem como uma variável
constante. Todavia, elas não assumem um caráter uniforme,
pois ora o corpo é elemento de salvação – o de Cristo-, ora pode
levar à danação, e sobre ele não se estabelecer uma constante
vigilância (...).” (2011, p. 60)
Ao longo da história, a construção do corpo pela perspectiva teológica foi se
desenvolvendo. Os valores éticos adotados pelas sociedades e pelas religiões refletem-
se na corporeidade e trazem consigo valores morais, sexuais, interpessoais, sociais e
religiosos. O corpo se mostra tão importante dentro deste entendimento por ele ser,
enquanto espaço teologizado, o espaço que permite o contato com Deus. É nele que
acontece o encontro com o divino.
Para a maioria das visões de mundo cristãs, a corporeidade é descrita com o
auxílio da ideia dualista de corpo e alma e de maneira justaposta e fragmentada.
Segundo ressalta Wandermurem (2007), vive-se dentro de um modelo paradoxal em que
se incentiva a relação com o divino e a vivência respeitando os ensinamentos religiosos,
ao passo que, ao mesmo tempo, impede-se que isso aconteça por conta do corpo, que
muitas vezes é enxergado como local permeado por impurezas e pecados.
É por isso que surge a ideia de vigilância sobre os corpos. Incentiva-se que esse
contato seja feito, mas vigia-se sempre o corpo para que não haja a possibilidade dele
ser contaminado com as impurezas e pecados inerentes à realidade terrena. Surge então,
a necessidade de leis e dogmas que ditem como se viver, para que se possibilite que esse
contato aconteça.
Dessa maneira, o corpo, que é envolvido por toda uma simbologia cristã relativa
ao corpo de Cristo, à carne, à encarnação, ao sacrifício que Cristo fez para que as
pessoas pudessem viver, é tido como sagrado. Percebe-se também o corpo enquanto
meio pelo qual se pode comunicar com Deus por ser o espaço para expiações, para
sacrifícios, para mostrar a fé, para revelar milagres etc.
Por isso, sendo o canal para que isso aconteça, o espaço onde a religião pode
encontrar algo para se apoiar e a fé possa ser materializada, surge a necessidade de
preservá-lo de todas as possíveis “impurezas” e de tudo que possa, de alguma maneira,
prejudicá-lo, machucá-lo ou obstar o exercício da fé e da religião.
30
Como consequência, a ética derivada dessa ideia judaico-cristã de corpo tem
sido, em grande medida, repressiva e negativa, no sentido de regular a maneira como o
indivíduo vai dispor de seu corpo. Ainda que se preserve a liberdade da pessoa, por
entender que o corpo possa ser moldado, encontra a lei uma justificativa para determinar
o que pode ou não ser feito com o corpo.
Prevalece a ideia de que o corpo pertence apenas em alguma medida ao
indivíduo. Este é responsável pelo corpo, sim, mas antes como um zelador de
patrimônio alheio, ou ao menos compartilhado entre o indivíduo e a sociedade. Pode
dispor, alterar enfim, comportar-se da maneira que quiser, desde que observando os
limites impostos pelo ordenamento. Cabe ao Estado entender e estabelecer o que é
melhor para o corpo.
Respaldado por estudos que comprovam os malefícios do uso de anabolizantes
sem que estes sejam de fato necessários para o funcionamento do corpo, o Estado
legitima sua interferência nas decisões e na maneira como o indivíduo vai se portar
perante o “seu” próprio corpo.
Valores no discurso normativo espontâneo
Há o consumo de anabolizantes por mulheres que não tinham qualquer
deficiência que o justificasse perante a lei. O discurso normativo espontâneo dá um
tratamento de ordem informal a esse fenômeno. Assim, por um lado, o tratamento de
ordem formal, entende esse fato como ilícito, já que a lei proíbe que isso aconteça.
Por outro lado, observou-se que havia uma legitimação moral, pelas
consumidoras, para o uso de tais substâncias. Disso decorre que o comportamento
desses sujeitos seguiu respaldado por regras e normas criadas a partir do que eles
vivenciavam em campo.
Esse discurso surge de maneira informal, sendo construído a partir do que as
pessoas vivenciam, observam e aceitam. É o discurso segundo o qual as pessoas se
identificam e entendem ser o mais coerente com a realidade em que estão.
No campo em análise, os sujeitos eram conscientes da existência de uma norma
formal e, além disso, sabiam que essa norma proibia o consumo. Então, pode-se dizer
que a norma informal surgiu do enfrentamento, da desconsideração, da
31
“desimportância” que os sujeitos deram à norma formal. É dizer, sabedoras da
existência da proibição do consumo, as mulheres rejeitaram a norma formal, extraindo
dela aquilo que fosse pertinente e compatível com o que se identificavam. Quanto ao
resto, utilizaram para guiar seus comportamentos costumes e regras informais
estabelecidos pelo próprio campo.
Aqui existe, também, um individualismo que externa o caráter performático por
trás das ações dessas mulheres. A performance tem vários sentidos, mas nesse caso, o
sentido do termo tem relação com espetáculo. O corpo é o espaço por meio do qual as
mulheres podem ser vistas, figurando aquele como o personagem principal dessa
exibição.
A modificação corporal buscada pelas mulheres ao praticarem musculação e
consumirem anabolizantes é pautada por vários motivos, como insatisfação com o
corpo, aumentar o sentimento de feminilidade, incentivo de amigos, namorados ou
professores.
Apesar de variados, há um discurso que se repete em todos os depoimentos.
Observa-se a presença da vontade de serem admiradas. As entrevistadas entendem que,
quando há essa transformação do corpo, fazendo com que este seja mais musculoso e
definido, é despertado no outro a vontade de ser como elas são ou simplesmente é
despertado no outro o sentimento de respeito e reverência ao estilo de vida disciplinado
com que elas levam a vida.
O corpo, como um rascunho ou matéria prima com maleabilidade e
plasticidade10
, nesse contexto, apresenta-se como um palco onde as pessoas podem
apresentar um espetáculo. A exibição de corpos modificados tem como objetivo
transmitir para seus espectadores – pessoas comuns que se deparam no seu dia a dia
com essas mulheres- a ideia de disciplina, força de vontade, sacrifício e vitória.
Como bem destaca Le Breton, em “Antropologia do corpo e modernidade”,
O extremo contemporâneo erige o corpo como a realidade em
si, como simulacro do homem por meio do qual é avaliada a
qualidade de sua presença e no qual ele mesmo ostenta a
imagem que pretende dar aos outros. “É por seu copo que você
é julgado e classificado”, diz, em suma, o discurso de nossas
10
Conceito desenvolvido por David Le Breton em “Adeus ao Corpo”. Campinas, SP. Papirus, 2003.
32
sociedades contemporâneas. Nossas sociedades consagram o
corpo como emblema de si. É melhor construí-lo sob medida
para derrogar ao sentimento da melhor aparência. (Le Breton,
2011, p.31).
É também por meio do corpo que o indivíduo estabelece sua relação com o
mundo. O corpo, moldado pelo contexto social e cultural, faz com que o indivíduo
exista no mundo e, para além disso, faz com ele que exista de maneira diferente dos
demais.
Também é por meio dessa constituição física que o indivíduo se apresenta
perante a sociedade. É através dela que o indivíduo se percebe individualmente e, ao
mesmo tempo, como parte de uma coletividade. Como é dito, o corpo é o “cartão de
visitas” do indivíduo. É por ele e por meio dele que as pessoas são enxergadas,
observadas e julgadas.
É por isso, principalmente, que há essa preocupação em moldar o corpo de
acordo com aquilo que é tido como bom, bonito, admirável pela sociedade. Além de o
corpo ser a maneira como os demais enxergam o indivíduo enquanto tal, ele também
passa a ser responsável por transmitir outras ideias tão cultuadas pela sociedade, como o
sucesso, o esforço e o mérito.
33
Capítulo 4 – Análise sobre a consequência da prática do discurso
normativo espontâneo no comportamento das entrevistadas
O estudo do fenômeno por vieses diferentes: A sociologia jurídica de Max
Weber e a Dogmática jurídica de Hans Kelsen
Antes da análise sobre as consequências que a prática do discurso normativo
espontâneo traz ao comportamento das entrevistadas, é importante expor que o estudo
de um fenômeno jurídico pode ser feito pelo viés sociológico de Weber ou pela Ciência
do Direito proposta por Kelsen.
Faz-se importante essa exposição, pois explica o caminho investigativo
escolhido por essa dissertação. Ao longo da exposição, tem sido reiteradamente exposta
a dicotomia entre a norma e a conduta das pessoas observadas em campo. Por isso,
parece necessária uma breve exposição para entender como algumas teorias explicam
essa perquirição.
Para Max Weber, há duas maneiras diferentes de analisar o direito. Segundo ele,
o sentido da ordem jurídica para o indivíduo é visto de maneira diferente dentro do
conceito jurídico e do conceito sociológico.
Ao se pretender analisar o direito, a ordem jurídica e a norma jurídica, destaca o
autor, em “Economia e Sociedade”, que,
“Quanto ao primeiro [ponto de vista jurídico], cabe perguntar o
que idealmente se entende por direito. Isto é, que significado,
ou seja, que sentido normativo, deveria corresponder, de modo
logicamente correto, a um complexo verbal que se apresenta
como norma jurídica. Quanto ao último [ponto de vista
sociológico], ao contrário, cabe perguntar o que de fato ocorre,
dado que existe a probabilidade de as pessoas participantes nas
ações da comunidade – especialmente aquelas em cujas mãos
está uma porção socialmente relevantes de influência efetiva
sobre as ações -, considerarem subjetivamente determinadas
ordens como válidas e assim as tratarem, orientando, portanto,
por elas suas condutas.” (Weber, 2015, p. 209)
34
A sociologia jurídica weberiana, assim, preocupa-se com o comportamento dos
indivíduos quando diante de um ordenamento jurídico vigente. Partindo do pressuposto
de que há uma diferença entre o que é e o que deveria ser, a sociologia propõe-se a
investigar não o que está na norma, ou seja, não o que deveria acontecer, mas sim o que
de fato é. Weber assume a postura de que há apenas uma possibilidade de que as
pessoas se conduzam de acordo com o que está prescrito normativamente.
Essa possibilidade que a conduta aconteça ou não demonstra justificadamente
essa preocupação do autor em diferenciar o que está posto do que realmente pode
acontecer. E em termos de inquietação sociológica, o que interessa de fato é analisar o
como, ou seja, de que modo os indivíduos se comportam frente a uma norma.
Assim, o que interessa para a sociologia do direito é investigar até que ponto os
indivíduos orientarão suas condutas baseados no ordenamento jurídico vigente. Isto é,
partindo da premissa de que nem todos compartilham da mesma convicção normativa,
abre-se um vasto campo de questionamento para a sociologia, na medida em que os
fatores que contribuem para o comportamento frente ao ordenamento são múltiplos, e
cabe à sociologia investigá-los.
Por outro lado, pelo pensamento de Kelsen, a Sociologia Jurídica não seria uma
ciência autônoma. Segundo ele, como a Ciência do Direito emprestaria seus conceitos
para que aquela pudesse investigar o fenômeno jurídico, já não haveria que se falar em
autonomia. Haveria, pois, uma enorme dependência da Sociologia Jurídica para com a
Ciência do Direito.
O objeto de estudo da Ciência do Direito, ao procurar responder o que é e como
é o Direito, preocupa-se com a norma. Então, a investigação concentrar-se-ia na
produção normativa, na sua vigência, na sua regulamentação, no seu valor.
Assim, diferentemente do que propõe a Sociologia Jurídica, a Dogmática
Jurídica entende que o Direito é o objeto da Ciência Jurídica e que “(...) a conduta
humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto
ou consequência, ou na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas”
(Kelsen, 2003, p. 79)
Além de pretender demonstrar de maneira breve como uma teoria pode entender
um fenômeno na prática, esta breve exposição presta-se também a dar um caráter
35
sincero a esse trabalho científico, já que delimita bem o problema de pesquisa que é
investigado.
Faz a pessoa interessada no assunto saber o que de fato será examinado. Percebe,
assim, que o intuito dessa investigação não é entender a norma, fazer uma descrição
dela e entender seu processo de criação. Ou seja, não se propõe essa dissertação a
pensar sobre a ciência normativa kelseniana. Interessa aqui a relação do conceito com a
realidade.
A partir do exposto, resta evidente que a limitação para a investigação de um
fenômeno jurídico trazida pela Dogmática kelseniana não é passível de ser aplicada no
campo em análise, justamente porque o objeto de estudo proposto por Kelsen, para este
campo, não suscita investigações mais complexas.
É claro que não se pretende aqui fazer uma crítica à Dogmática Jurídica ou a
pretensa Teoria Pura do Direito de Kelsen. Mesmo por que, desde sempre, o autor
deixou patente o que seria o interesse dessa ciência. E, resta claro que para uma
monografia sobre a Sociologia do Direito, não caberia de fato o entendimento do autor.
É importante apontar, também, seguindo o pensamento de Weber, que de
maneira alguma os postulados de Kelsen são deixados de lado. O que se pretendeu com
essa monografia foi justamente agregar os dois pensamentos, ainda que o pensamento
kelseniano apareça menos e fique mais restrito à explicação do discurso normativo
formal.
Isto posto, passa-se agora à exposição das consequências trazidas pelo aspecto
dicotômico do campo observado, destacando o caráter peculiar que se observou a partir
disso e preocupando-se, posteriormente, em apresentar esse resultado confrontando o
positivismo kelseniano e a sociologia weberiana.
Como apresentado no Capítulo 2, a partir das entrevistas obtidas em campo,
observou-se que a conduta das mulheres entrevistadas ia de encontro ao que estava
previsto normativamente. Isso quer dizer que, ainda que houvesse normas que
proibissem o uso de anabolizantes para fins estéticos e, mesmo que essas mulheres
soubessem dessa proibição, ainda assim, havia o consumo de tais substâncias.
Antes de prosseguir, é preciso que seja feita uma ressalva. À frente, muito será
dito sobre os costumes observados em campo. Porém, é preciso deixar claro, mais uma
vez, que o discurso normativo espontâneo é entendido em concordância com a ideia de
36
Foucault de que o discurso é uma espécie de dominação em fluxo, sendo, assim, um
fenômeno de poder.
Entretanto, o comportamento das mulheres, como resultado da obediência ao
que é determinado por esse discurso construído pelas autoridades hierarquicamente mais
elevadas do campo, esse sim pode ser enxergado a partir do conceito de costume da
Ciência do Direito. E é justamente o que será exposto a partir de agora.
Dando prosseguimento ao raciocínio, verificou-se haver uma dissonância entre a
norma e o costume. Esta observação ganha um caráter peculiar quando confrontada com
o entendimento clássico que é dado ao costume. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior,
“O costume, nos direitos positivados de nossos dias, tem, como
fonte, uma importância menor do que teve no passado. O
costume é uma forma típica de fonte do direito nos quadros da
chamada dominação tradicional no sentido de Weber. Baseia-
se, nesses termos, na crença e na tradição, sob a qual está o
argumento de que algo deve ser feito, e deve sê-lo porque
sempre o foi. A autoridade do costume repousa, pois, nessa
força conferida ao tempo e ao uso contínuo como reveladores
de normas, as normas consuetudinárias.” (2003, p. 241)
O costume é entendido como um comportamento que se repete reiteradamente
ao longo do tempo, sendo uma conduta habitual e espontânea que vai se perpetuando. É
materializado em regras sociais, praticadas habitualmente, e que trazem como
consequência, para os indivíduos, a convicção de obrigatoriedade.
A importância disso para o Direito está quando o costume começa a influenciar
juridicamente a sociedade. Enquanto é apenas um comportamento repetido, nada traz de
interessante para o mundo jurídico. Mas quando começa a ser entendido como um fato
gerador do Direito, a investigação sobre ele passa a ter relevância.
Nesse sentido, nada há de peculiar no que foi observado em campo. Tanto
sociologicamente quanto para o positivismo de Kelsen, por exemplo, admite-se o
costume como uma fonte do Direito. Entretanto, o que difere uma visão da outra é
justamente a maneira como a discrepância entre a norma e o costume é entendida. Para
o positivismo de Kelsen, é o Direito que regula a sua própria criação. Assim, “uma
norma apenas [determina] o processo por que outra norma é produzida”.
37
Por isso que, dentro do pensamento kelseniano, uma norma só pode ser tida
como válida se tiver de acordo com outra norma, que esteve também de acordo com
outra norma e assim por diante, até que se remeta à norma fundamental, que rege a
validade de todas as demais normas e serve de parâmetro para o processo de produção
normativa.
A esse pensamento, Kelsen deu o nome de “estrutura escalonada da ordem
jurídica”. Isso quer dizer que a validade de uma norma somente será reconhecida se
estiver em consonância com uma norma superior e assim sucessivamente. Esse
escalonamento, também, ratifica a ideia do Direito como algo hermético, no sentindo de
que sua criação se encontra dentro dele mesmo. Não é preciso que a norma busque
apoio, para existir e ser válida, fora do Direito, mas apenas dentro dele.
Com relação ao costume, Kelsen (2003) o entende como fato gerador de Direito,
mas só enquanto a Constituição assim determinar, expondo mais uma vez a ideia do
escalonamento e do Direito como produtor dele mesmo.
Segundo o autor, o costume
“(...) é caracterizado pela circunstância de os indivíduos
pertencentes à comunidade jurídica se conduzirem por forma
sempre idêntica sob certas e determinadas circunstâncias, de
esta conduta se processar por um tempo suficientemente longo,
de por essa forma surgir, nos indivíduos que, através dos seus
atos, constituem o costume, a vontade coletiva de que assim nos
conduzamos. Então, o sentido subjetivo do fato que constitui o
costume é um dever-ser: o sentido de que nos devemos
conduzir de acordo com o costume. O sentido subjetivo do fato
consuetudinário só pode, porém, ser pensado como norma
jurídica objetivamente válida se este fato assim qualificado é
inserido na Constituição como fato produtor de normas
jurídicas.” (Kelsen, 2003, p. 251)
É a partir desse pensamento que o resultado da etnografia passa a ser peculiar.
Porque para Kelsen, um costume só pode ser relevante para o Direito, ou seja, um
costume só poderá influenciar juridicamente o Direito se ele estiver de acordo com uma
38
norma. Só possível entendê-lo como gerador ou criador de um fenômeno jurídico se
assim foi permitido pela Constituição ou pela norma fundamental.
Isso quer dizer que ainda que esse direito consuetudinário decorrente dos
costumes tenha relevância para o mundo jurídico e sirva de fonte para sua construção,
para Kelsen, essa influência é limitada pelo direito estatuído. Por outras palavras, a
validade do direito consuetudinário, como destaca o autor, está restrita ou limitada ao
direito que já está posto no ordenamento.
Sendo assim, para o pensamento kelseniano, o costume é uma extensão da
norma. O ponto que os distingue, então, é a sua produção. Enquanto a norma tem seu
processo de criação relativamente centralizado – dando-se a prerrogativa de sua criação
a órgãos legiferantes -, a produção do costume tem como característica a
descentralização, sendo produzido por meio das condutas dos indivíduos.
Outro ponto de distinção entre eles seria o aspecto cogente. Enquanto a norma,
produzida por uma autoridade competente, tem que ser observada por todos, no que
concerne ao costume isso não se aplica. Não existe essa obrigatoriedade, já que o
costume tem como característica a identificação das pessoas com ele, o que não
necessariamente deve acontecer com as normas.
Disto se depreende que, se houver um desacordo entre o direito consuetudinário
e o direito estatuído, ou entre a norma e o costume, privilegia-se aquela em detrimento
deste, como ressalta Kelsen. Então, para o autor, nunca haveria uma divergência entre
eles, pois sempre que houvesse qualquer diferença entre eles, sobressairia a norma.
Para Kelsen, portanto, norma e costume devem andar juntos, sendo um a
extensão do outro. Caso isso não ocorra, o costume nem deve ser levado em
consideração em termos de produção do Direito. O que há de característico no campo,
em confronto com o pensamento kelseniano, é que o costume tomou uma proporção
tamanha que não é mais possível ignorá-lo.
Isso quer dizer que, indo na contramão do defendido pelo autor, ainda que
costume e norma não convergissem para um ponto comum, estando um em desacordo
com o outro, devido à proporção que o costume tomou, sendo ele o fator principal
regendo as condutas das entrevistadas, não é possível deixar de considerá-lo também
como um fato gerador de direito.
O caráter particular do campo visitado, então, figura-se no fato de,
diferentemente do que afirmava Kelsen em relação à limitação do costume à norma –
39
desconsiderando-se, assim, qualquer fato que pudesse contrariá-la -, ser possível a
construção do Direito, ainda que suas fontes não estejam na mesma direção.
Esse entendimento de que norma e costume se completam, complementam-se e
de que um seja a extensão do outro não se observa na prática, pelo menos não no campo
analisado. Pelo contrário, os dados etnográficos mostraram não haver essa
subsidiariedade. O costume passou a existir e a ser determinante no campo, mesmo com
a existência da lei.
Isso não quer dizer, entretanto, que o pensamento kelseniano esteja errado. Mas
esse positivismo acaba limitando o alcance do Direito e deixando de levar em
consideração aspectos que inegavelmente o influenciam. Não se pode, portanto,
conceber a produção normativa de maneira fechada. O Direito não pode ser apenas
produto dele mesmo.
É impossível que o legislador preveja todas as situações fáticas que irão ocorrer.
Daí decorre o fato de que nem sempre a previsão irá se encaixar na realidade. Nesse
sentido, o positivismo acaba engessando a ação jurídica, não tendo aplicabilidade na
prática. Em termos de limitação investigativa, é uma ótima teoria. Mas na prática, acaba
não se tornando aplicável.
A contribuição de Émile Durkheim para a compreensão do campo
investigado
Em passagens ao longo dessa monografia, citou-se a constatação feita, a partir
dos dados do campo, de que seria possível haver a construção do Direito a partir do
discurso normativo espontâneo observado. Conquanto as normas e os costumes das
mulheres não convirjam para uma mesma direção, é possível afirmar, mesmo assim, o
discurso normativo espontâneo como fato gerador do direito. Essa realidade observada
foi um momento importante flagrado pelas entrevistas e que, por isso, merece um
desenvolvimento melhor.
O corpo, o comércio, as liberdades e a saúde foram aspectos que serviam como
referência para as entrevistadas ao agirem. Todos esses fenômenos são matérias
reguladas por lei. E, ainda assim, não são essas leis que estabelecem para as
entrevistadas um parâmetro de conduta.
40
Embora haja leis que estabeleçam regras e ditem como as pessoas devem se
comportar frente a esses fenômenos ou, ainda que existam leis que queiram definir esses
fenômenos, não são elas que pautam os atos das entrevistadas.
Há nas mulheres, como destacado, uma “desimportância” para o que está na lei.
A norma não faz sentido para elas e, justamente por isso, não merece ser seguida.
Quando há esse enfrentamento, não existe um receio delas pelo desrespeito da lei. A
grande preocupação que permeia o consumo de anabolizantes não está na punição
prevista pela norma, e sim na possibilidade de outros sujeitos do campo descobrirem
esse consumo.
Essa situação, ao ser analisada em seus pormenores, mostra estreita identificação
com alguns pensamentos de Durkheim em a “Divisão social do Trabalho” (2010). Na
obra, o autor preocupou-se com temas como fato social, solidariedade, direito e moral.
Segundo o autor, em sociedades complexas – um de seus pontos de investigação
-, a consciência individual se manifesta com mais força. Isso acontece porque à medida
que as pessoas vão se especializando em suas tarefas, elas também vão se enxergando
cada vez mais como seres individuais e autônomos. Vão construindo, assim, sua própria
individualidade e exibindo interesses sociais distintos.
Porém, como destaca Durkheim, simultaneamente à percepção dessa consciência
individual, há também o desenvolvimento cada vez mais acentuado de uma
interdependência entre os indivíduos. Quanto mais especializadas as pessoas são, mais
elas dependem de outras pessoas, especializadas em outras tarefas, para satisfazerem
seus desejos.
E é justamente essa interdependência, conceituada pelo autor como sendo a
solidariedade, que se transforma em um fator de coesão social, mantendo a sociedade
coesa e não tão suscetível a ser desarticulada. A partir disso, as sociedades complexas,
segundo o autor, podem ser entendidas como organismos vivos.
Toda essa exposição se justifica para afirmar que é essa solidariedade orgânica
que permite que um novo comportamento surja de encontro ao que está previsto em lei,
justamente por haver essa consciência individual nos sujeitos sociais.
Assim, ainda que as normas, como materializadoras do Direito, sejam entendidas
como um fato social e, por isso, elas sejam criadoras do direito positivo, como assim
entende Durkheim, um comportamento ilícito, como defende ele, também o é.
41
A afronta à norma, efetivada quando do consumo de anabolizantes, e o discurso
surgido a partir disso justificando esse consumo, na visão durkheiminiana, também pode
ser tida como um fato social apto a criar o Direito.
O autor definiu quais os requisitos seriam necessários para que se entendesse
algo como um fato social. Segundo ele, um fato social seria aquele marcado pela
coerção, pela externalidade e pela generalidade.
Como destacado anteriormente, um comportamento ilícito, para Durkheim,
também seria capaz de ser uma fato gerador do direito, na medida em que também traz
consigo essas três características indispensáveis ao fato social sendo, portanto, também
considerado como um fato social.
Trazendo essa reflexão do autor ao campo analisado, o comportamento ilícito –
frente ao determinado em lei – das mulheres aos consumirem anabolizantes ratifica o
entendimento de Durkheim, na medida em que pode ser observado, nessa conduta, os
três requisitos básicos para se entender um fenômeno enquanto fato social.
Então, quanto à coercitividade, pode-se dizer que isso é observado no consumo
de anabolizantes no sentido de que as pessoas, para fazerem parte daquele grupo
específico de malhadoras da academia, sentem-se impelidas ou até mesmo coagidas a
fazer o consumo. Caso contrário, não há como fazer parte desse grupo. Para ter um
lugar de destaque ali, é preciso que se passe por esse “processo de iniciação”
materializado pelo consumo de anabolizantes mas, também, por uma transformação de
vida – aderindo a uma rotina específica.
Esse consumo ainda contempla as duas outras características imprescindíveis
para o fato social. Assim, além de coercitivo, ele é geral e reiterado dentro daquele
grupo, entre aquelas mulheres, e é exterior no sentido de que o ato de consumir ou a
desconsideração da norma já existem fora do indivíduo, já é uma prática pertencente à
realidade que o circunda.
O que Durkheim e a investigação sobre o uso de esteróides demonstram é que há
uma tendência, dentro de sociedades complexas de que haja uma transformação do
entendimento acerca do Direito, da licitude dos comportamentos, da criação de normas
e da consideração para com essa norma.
Então, segundo o autor, um comportamento que é tido como ilícito ou
reprovável num determinado momento, pode ser entendido de maneira diversa a
posteriori. Se é o fato social que é capaz de criar o direito positivo, assim como entende
42
o pensamento durkheiminiano e, em sendo o comportamento ilícito também um fato
social, nada impede que o próprio comportamento influa nas consciência coletiva e
individual e gere, a partir disso, um novo entendimento sobre o Direito.
Entre as entrevistadas, já é possível notar essa mudança paulatina. A
desconsideração da norma já não é vista como algo ilícito, mas sim uma conduta natural
frente a uma determinação que não condiz com o que de fato desejam. O consumo não é
mais considerado errado. Essa desconsideração da norma transforma suas percepções –
tornando algo que é tido como proibido para algo legítimo ou justificável.
E essa dissonância entre a norma e a realidade, causada principalmente pela
generalidade e abstração dos fatos sociais, é resolvida por meio desse enfrentamento
gerado pela opção das mulheres em se conduzirem da maneira que mais faz sentido para
elas.
Consequência da prática do discurso normativo espontâneo no
comportamento das entrevistadas
Diante do demonstrado até aqui, volta-se à crítica ao pensamento de Kelsen. Ela
está relacionada ao fato de o autor não conseguir conceber o caráter divergente entre
norma e costume como um fato gerador do Direito. No entanto, reconhece-se que é
possível, e até comum, observar-se esses dois elementos convergindo para um mesmo
lugar.
Isso quer dizer que é possível utilizar o costume como fonte do direito, no
sentido daquele preencher as lacunas que a norma deixar. Muitas vezes, a própria lei
reconhece-o como fonte para se extrair uma norma considerada válida para o
ordenamento jurídico.
Outras vezes, a norma nada fala, mas mesmo assim o costume é utilizado como
fonte. Ninguém cria uma norma costumeira, mas os comportamentos que dela derivam
vão aparecendo espontaneamente e criando uma consciência nos indivíduos, que
passam a se comportar daquela maneira. Assim, o costume acaba estabelecendo regras
de conduta, assim como a lei – mesmo de que maneira não cogente -, tornando-se
assim, fonte do Direito.
Então, o costume, em sendo o resultado da espontaneidade das ações dos
indivíduos, combinado com a repetição constante e a convicção nessa prática, acaba
43
sendo uma maneira de a sociedade se manifestar. É por isso que, de regra, a
manifestação desses costumes é feita de maneira aberta.
Ou seja, as pessoas não se constrangem ou verdadeiramente não se importam em
se comportar daquela maneira pois, além de ser uma prática habitual na sociedade,
sendo observada por diversas pessoas, essa prática ainda é tida como moralmente
admitida.
Assim, quando o costume é tido como uma fonte do direito – ainda que seja uma
fonte secundária -, passa a ser entendido como um elemento passível de completar a lei.
O costume é aquele instrumento utilizado para exarar regras e condutas quando a lei não
o faz. Acaba sendo um instrumento que alcança lugares que a lei não alcança.
Por isso, apresenta-se nas atitudes dos indivíduos de maneira expressa, livre e
transparente. Esse comportamento faz parte do cotidiano das pessoas e, por esse motivo,
é comum observá-lo em suas condutas. À vista disso, não há justificativa para escondê-
lo.
Com relação ao campo observado, primeiro é preciso ressaltar que os costumes
das mulheres, ou seja, que a prática reiterada de algumas ações, ia de encontro ao que
estava previsto na norma formal e, ao mesmo tempo, era compatível com o que era
determinado pelo discurso normativo espontâneo.
Essa ressalva é importante ser feita, pois o conflito que se está enfatizando aqui
diz respeito a não convergência entre a norma estatal e o costume observado na
academia de ginástica. Dito isso, conclui-se que esse costume, ao enfrentar o que está na
norma formal, serve de fonte legitimadora do discurso normativo espontâneo.
O fato de o consumo de anabolizantes ser proibido por lei não impede que as
pessoas o façam. Por consequência, o fato de o costume não ir ao encontro da lei, não
faz com que o costume não exista. E, pelo contrário, não se pode negar que esse
costume – proveniente de uma norma informal entre as pessoas do campo – esteja
contribuindo para a manutenção do direito que ali existe.
Então, por mais que normal formal e consumo de anabolizantes não sejam
compatíveis, existe sim a criação e a manutenção de uma norma. Mesmo que ela não
seja compatível com o que o Estado pensa, ainda assim é uma norma com a qual os
indivíduos se identificam e pautam suas condutas.
Daí a crítica a Kelsen. Ainda que haja um conflito, e que de fato o direito estatal
não esteja sendo atendido e que, por isso, esse costume não sirva de fonte para ele, não
44
se pode olvidar que uma norma esteja sendo criada e mantida, ainda que essa norma
diga respeito a um grupo específico.
A conclusão lógica dita acima de que norma e costume se complementam e, por
isso, o costume é vivido de maneira aberta pelas pessoas, não foi observada em campo.
Por mais que falar sobre uso de anabolizantes não fosse uma dificuldade para as
mulheres entrevistadas, admitir isso publicamente ainda o era.
Isso quer dizer e, por isso essa conclusão também foi um achado em campo, que
ainda que o costume – que não serve como fonte para norma formal – seja uma fonte
para o discurso normativo espontâneo, ele não é vivido de maneira aberta. As pessoas
entrevistadas não o exercem de maneira transparente.
E o que é interessante notar é que esse consumo velado nada tem a ver com o
caráter ilícito que é dado pela lei. Assim, falar sobre anabolizantes não é uma
dificuldade para as mulheres. Há de se destacar, portanto, que o receio de admitir o uso,
mesmo em ambientes “seguros”, como no interior da academia, não advém exatamente
das ações “ilegais” envolvidas na obtenção dos anabolizantes ou no enfrentamento que
o consumo traz ao que está disposto em lei - como se poderia supor.
O consumo torna-se mais velado por envolver, dentro desse universo, uma
sensação de algo não moralmente aceito. Entende-se, todavia, que essa moral que baliza
o comportamento nada tem a ver com o que a lei dispõe, e sim com a moral que foi
construída pelas pessoas dentro daquele micro universo.
E destaca-se, ainda, que essa moral também não é observada em toda a
sociedade, ficando restrita e, como consequência, apenas fazendo sentido para as
pessoas que fazem parte daquele mundo. Então, diferentemente do que ocorre com
outros tipos de comportamento, por mais que o consumo de anabolizantes faça parte do
cotidiano das entrevistadas, ainda assim, há uma tendência a mascarar esse
comportamento.
E isso se dá, principalmente, por existirem determinadas ideias que pautam todo
esse universo da musculação. Como exemplo, destaca-se a relação contida entre os
corpos almejados e a concepção de sacrifício, disciplina, dedicação, força, determinação
etc., que remetem a uma ideia de conquista pessoal, nos termos do individualismo
moderno.
Opera aqui uma interconexão entre a dimensão íntima, psíquica e a composição
corporal (Sautchuk, 2007). Quando uma pessoa faz uso de anabolizantes, é como se ela
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estivesse tendo vantagem sobre as demais pessoas, ou é como se ela “pulasse” essas
etapas, que são consideradas por todos como difíceis.
Assim, denota-se que, por receio de como esse comportamento será visto pelos
seus pares dentro do universo da academia de ginástica que frequentam, existe uma
tendência entre as mulheres, tendência relevada pelas entrevistadas, de esconder esse
comportamento, diferente do que é observado em outras situações que também
envolvem usos, costumes e comportamentos, em que as pessoas, por entenderem seus
comportamentos como “normais”, exercem-nos da maneira mais espontânea possível.
Por fim, cabe dar ênfase a essa situação ambígua que essas mulheres vivem. Se
de um lado, mesmo conscientes da proibição, utilizam anabolizantes, por outro, ainda
escondem esse consumo, não por uma preocupação da sociedade como um todo, como
seria de se esperar, mas principalmente por uma preocupação de suas imagens frente ao
grupo ou universo a que pertencem.
Ocorre assim, por um lado, uma legitimação moral do uso de uma substância
ilegal, sendo o consumo justificado, principalmente, pelos rápidos resultados que os
anabolizantes podem trazer. E esses resultados são tão buscados e importantes para as
mulheres daquela academia, justamente pelo prestígio que eles podem trazer,
principalmente pela admiração que pode vir junto a isso, seja ela voltada ao físico ou às
representações que esse corpo pode gerar.
Por outro lado, ainda que haja essa legitimação, esse processo do consumo ainda
se dá de maneira escondida. Essa forma velada que esse costume assume não se refere a
um lugar oculto ou disfarçado. Esse consumo discreto nada tem a ver com o local, e sim
com a assunção de que ele foi feito.
Percebe-se assim, que se de regra o comportamento que é aberto e que todos da
sociedade conseguem enxergá-lo se dá por ser tido como algo normal entre todos, no
campo visitado, por mais que o consumo não seja um interdito e, mais que isso, haja
uma crença legítima nele, há uma grande preocupação em não torná-lo evidente.
46
Capítulo 5 - Inventário de Interesses no campo
No capítulo anterior, fez-se um inventário dos valores observados em campo,
expondo-se tanto os valores contidos no discurso normativo formal, quanto no
normativo espontâneo. Buscou-se, também, demonstrar de que maneira o consumo e as
práticas relacionadas a ele eram entendidos pelas mulheres e como isso afetava a
maneira como elas expunham – ou não – os costumes resultantes dessas práticas.
Neste capítulo, pretende-se dar continuidade ao que foi apresentado,
desenvolvendo agora o inventário dos interesses que estão por de trás desses valores
observados. Partindo da ideia de que o valor é um instrumento que o interesse utiliza e
precisa manipular para se satisfazer, faz-se interessante e importante, no momento,
apresentar quais interesses são esses.
Primeiramente, antes de apresentá-los, é preciso deixar claro quais são os
criadores desses discursos. Ao longo da exposição, vem sendo dada ênfase às mulheres
entrevistadas. Porém, é preciso esclarecer que não são elas as criadoras desse discurso
que vai de encontro ao que está na lei.
É claro que elas contribuem para a formação desse discurso normativo
espontâneo e não são completamente passivas nessa situação. Mas elas figuram muito
mais como reprodutoras desse discurso. Como o que está na lei não faz sentido para
elas, o consumo de anabolizantes acaba fazendo mais sentido, tornando o discurso
espontâneo mais próximo da realidade em que vivem.
Os interesses do discurso normativo espontâneo
Os verdadeiros criadores por de trás do discurso normativo espontâneo são
aquelas pessoas, que para os indivíduos do campo estudado – a academia de ginástica -,
são tidas como autoridades ou figuram no topo dessa hierarquia construída nas relações
entre eles.
Na pesquisa, observou-se que pessoas como os professores da academia, as
mulheres que já tinham feito uso dessas substâncias e, por isso, eram enxergadas como
47
mais experientes – chamadas de veteranas -, os namorados das entrevistadas e, por fim,
seus amigos – homens - eram tidos como referências para essas mulheres.
Essas pessoas tinham total confiança das entrevistadas e eram elas que tinham a
autoridade para dizer o que poderia ou não ser consumido, quando, em qual quantidade,
de que maneira, além de serem essas pessoas também as responsáveis pela compra dos
anabolizantes.
Por meio de uma hierarquia estabelecida entre os sujeitos da academia, as
pessoas tidas como autoridade no assunto exerciam significativa influência na vida
dessas mulheres, pois eram elas as responsáveis por ditarem toda a rotina das
entrevistadas.
Então, essas autoridades do campo diziam o que seria consumido – e essa
“prescrição” era feita de acordo com o objetivo da mulher, a quantia que ela estaria
disposta a gastar, já que o preço dos anabolizantes varia muito, o tempo que ela teria
para se dedicar etc. – mas, além disso, também diziam qual tipo de exercício teria que
ser feito em combinação com os anabolizantes, o que essas mulheres deveriam comer, a
quantidade de horas de sono que elas deveriam ter etc.
Cada uma dessas autoridades do campo tinha um interesse específico
relacionado com o consumo de anabolizantes pelas mulheres. A começar pelos
professores da academia. Estes tinha total confiança de algumas entrevistadas, como
exposto por elas:
“Eu confio nos professores da academia porque eles estudaram
pra isso, né? Eles conhecem bem os efeitos da musculação,
conhecem o corpo e tudo mais. Eles sabem quais exercícios dão
certo, qual anabolizante ou qual suplemento alimentar tomar.
Além disso, eles estão ali todo dia, sabem o que dá certo e o que
não dá, por isso todo mundo pergunta pra eles.” [Alice, 24
anos]
Quando eu resolvi tomar anabolizante, eu procurei um professor
da minha academia, perguntando o que eu poderia tomar e tudo
mais, aí ele me mandou procurar um médico...como chama?
Ah, um endocrinologista. Mas aí, conversando com ele [o
professor], ele perguntou sobre minha alimentação, viu que ela
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estava toda certinha, ele mesmo me indicou as medidas, quanto
eu teria que usar de anabolizante por semana e tudo mais. Ele
me passou umas dicas de dieta, falou pra beber muita água... Eu
fiquei com medo de tomar, por isso que eu fui saber mais sobre
isso, eu fui perguntar tudo e tirar minhas dúvidas com o
professor da academia. Aí depois que o professor falou que era
de boa, eu tomei.” [Lúcia, 26 anos]
Pode-se destacar que, ao prescreverem os anabolizantes, baseados na confiança
que as alunas têm neles, o principal interesse dos profissionais, segundo as
entrevistadas, estava relacionado com os benefícios que isso traria a suas carreiras.
É como se os corpos modificados das mulheres servissem como um portfólio,
que figuraria como um instrumento para mostrar a capacidade profissional dos
professores. Esses corpos, tão desejados pelos frequentadores de academia e praticantes
de musculação, serviriam, para esses profissionais, como uma vitrine ou uma
propaganda do seu trabalho. Como se depreende do trecho de uma das entrevistadas:
“Eu acho que os professores têm influência sim aqui dentro da
academia. Como os professores e as professoras das academias
são muito sarados, as pessoas acabam admirando e pensando
“poxa, eu queria ter um corpo igual o dele, ou igual o dela.” Aí
muitas vezes esses professores viram personal trainer, e acaba
rolando o “boca a boca”, né? Uma pessoa fala com a outra, às
vezes o próprio professor também conhece gente que vende. Já
malhei numa academia que o próprio professor vendia
anabolizantes. Porque, querendo ou não, o corpo do aluno
também é o cartão de visita do personal trainer, né? O aluno é a
propaganda ambulante do professor. Então, é óbvio que ele vai
querer que o aluno dele tenha um corpo maneiro, para depois as
pessoas perguntarem “nossa, mas quem te treinou? Seu corpo
está lindo!” [Ana, 46 anos]
Na academia, o crédito pelo corpo desejado por todos é compartilhado entre o
dono do corpo e o professor. Então, acaba-se fazendo uma associação positiva entre a
evolução do corpo da pessoa e o professor que é observado como o responsável, o
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idealizador ou o escultor daquele corpo. Entende-se que, por mais que a pessoa seja
admirável pelo resultado que ela conquistou, não o teria alcançado se não fosse o
professor.
O professor responsável por essa modificação corporal acaba ganhando fama
dentro da academia e passa a ser requisitado por outras pessoas que querem ver nos seus
corpos o mesmo resultado observado nas alunas desses professores. O que acontece,
entretanto, é que, assim como as consumidoras de anabolizantes, os professores também
não falam abertamente sobre os anabolizantes.
Assim, não existe de maneira aberta a assunção, por parte desses profissionais,
da prescrição de anabolizantes. E esse fato se dá por isso ser ilegal, mas também pelo
fato de a prescrição dessas substâncias retirar o mérito que os outros frequentadores da
academia dão a esses professores. Como destaca Ana, de 46 anos:
“(...) O que as pessoas não sabem é que aquele corpo ali foi
adquirido com uma ajudinha extra, mas isso o professor nunca
vai dizer. E muitas vezes nem o aluno também fala, fica como
se o mérito fosse dos dois.”
Então, é claro que, ao velarem essa situação, os professores o fazem com medo
da repercussão, juridicamente falando, que isso pode trazer. É vedado, por lei, que um
profissional de educação física prescreva anabolizantes, principalmente levando em
consideração que essa prescrição está voltada para o consumo com fins estéticos.
Mas, por outro lado, também existe a preocupação com o prestígio deles dentro
da academia. Quando o resultado final aparece nos corpos, surge, juntamente com a
admiração, o interesse dos demais frequentadores da academia para com o professor
“corresponsável” pela “construção” daquele corpo.
É dessa maneira, também, que o professor vai construindo seu nome dentro da
academia. O prestígio e a fama dele vão crescendo a partir do resultado que se supõe
que ele tenha conseguido. Os alunos associam os corpos modificados com um bom
profissional, um profissional capaz, um profissional que tem conhecimento, estudo, que
sabe a técnica certa a ser empregada.
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E, por consequência, a partir disso, os demais frequentadores da academia
acabam confiando nesses professores. Existe, assim, uma associação direta entre o
resultado da atuação desses professores e a construção da confiança dos alunos neles.
Com relação aos namorados das entrevistadas, que também exerciam esse papel
de autoridade, dizendo às mulheres o que deveria ser feito – além de intermediarem a
compra de tais substâncias -, observou-se não muito uma questão de prestígio, como no
caso dos professores, mas mais uma questão de proteção.
Segundo as mulheres que tiveram namorados como parâmetro no campo, isso se
deu principalmente por preocupação deles. Quando uma mulher decidia fazer o uso de
anabolizantes e comunicava aos seus namorados, esses tomavam a frente da situação
como uma forma de protegê-las. Isso porque, eles já tinham experiência com
anabolizantes, por também fazerem uso e, por isso, teriam propriedade para dizer o que
fazer.
Dentro do mercado de anabolizantes, segundo relatado, se a pessoa não conhecer
sobre a substância, pode ser facilmente enganada pelo vendedor e pode acabar
comprando uma substância diferente da que queria, com uma qualidade inferior,
falsificada ou pode pagar a mais.
Nesse sentido, o namorado desempenha o papel de proteger a sua companheira
dessas adversidades. Por ele ter experiência, por ser homem, entende-se que ele seria
menos facilmente enganado. Assim, quando a mulher decide fazer o uso de tais
substâncias, seu namorado toma a frente da situação para não deixá-la vulnerável a
esses riscos. Destaca-se o seguinte trecho da entrevista:
“Quem conseguiu para mim foi o meu namorado. Não sei onde
ele compra, só sei que ele sempre usou anabolizante, então ele
confia em quem vende para ele. No dia que eu resolvi tomar, a
gente pesquisou qual anabolizante seria melhor e tudo mais, e
ele só precisou ligar pro conhecido dele e pronto.” [Bruna, 27
anos]
Há, também, o ciúme envolvido nessa participação do namorado como
autoridade no campo. Na academia que serviu como local de incursão, apesar de
51
também haver professoras, apenas os professores foram apontados como referências
para as mulheres quando perguntadas sobre o consumo de anabolizantes.
Por fim, ainda sobre os namorados, pode-se destacar que o interesse que eles têm
no consumo de anabolizantes pelas suas companheiras também está relacionado ao fato
de quererem ter namoradas “gostosas”, como as entrevistadas se referiram. Existe essa
vontade de ter, tanto para si como para mostrar para os outros, uma namorada com um
corpo que é desejável para as pessoas com as quais ele se relaciona e cujas opiniões são
importantes para eles. É o que afirma Renata de 32 anos:
“Por que eu fiz uso de anabolizante? Eu acho bonito ter um
corpo definido. É importante porque esse corpo me traz
satisfação, felicidade, eu me sinto bonita e desejada, acho que
me sinto mais mulher. Isso (malhar) já faz parte da minha vida,
eu tornei isso um estilo de vida. Faço por mim, mas também
faço para o meu namorado, ele adora. Faço para ser admirada
pelas outras pessoas, adoro quando alguém vem me perguntar
sobre a minha dieta e o meu treino. Eu consegui meu namorado
com ele (corpo) (risos). Óbvio que agora ele me ama, mas com
certeza quando ele se aproximou não foi por causa dos meus
belos olhos, eu sei disso, e ele mesmo fala para mim até hoje.
Acho que ele é meu grande incentivador, ele quer ver minha
evolução e tal ... já usava antes dele, mas agora também uso por
ele (...).”
Segundo elas, havia também certo incômodo dos namorados caso elas fossem
procurar os professores para orientação sobre o consumo. Os namorados preferiam que
eles mesmos traçassem as diretrizes para suas namoradas e se sentiam aptos para isso,
principalmente por também já terem feito uso – ou por estarem fazendo uso à época das
entrevistas.
Já as mulheres mais experientes com relação ao conhecimento sobre
anabolizantes, por já terem feito uso deles, e também com relação aos amigos que
prescreviam o consumo – que também já haviam feito o uso -, o interesse observado foi
muito no sentido de uma preocupação em transmitir o que conhecimento que já haviam
adquirido.
52
No campo, havia mulheres que tiveram como referência outras mais experientes,
mas também, dentre as entrevistadas, já havia essa preocupação e essa transmissão de
conhecimento para outras mulheres que estavam iniciando o consumo. O relato de todas
era no sentido de transmitir o conhecimento a fim de demonstrar para quem estivesse
começando como é esse mundo de malhação e anabolizantes. Segundo Ana,
“Tem gente que chega aqui na academia querendo um corpo
hipertrofiado e já quer começar tomando anabolizantes. As
pessoas viajam, acham que para terem o corpo que querem é só
tomar anabolizante e pronto. Eu explico que não é bem assim.
Antes de tudo, a pessoa precisa mudar a cabeça dela, ela tem
que saber onde ela está entrando, sabe? Não é para qualquer
um! Tem que ter muita força de vontade mesmo, deixar de
comer várias coisas, passar fome muitas vezes, enjoar da
comida que tem que comer sempre. Não adiante você tomar
anabolizante, se encher de suplemento alimentar e não malhar
direito, não comer direito, não dormir direito. Anabolizante e
suplemento são só ferramentas há mais, assim como a
alimentação e a musculação também são. Eu já usei
anabolizante, mas faz muito tempo, foi em 84. É uma coisa que
você cresce rápido demais. Se você me perguntar se valeu, eu
vou te dizer que valeu demais porque o resultado é rápido. Mas
aí você tem que continuar com a sua dieta e a malhação para
manter o que você conquistou.” [Ana, 46 anos].
“Eu comecei a malhar para evitar o sedentarismo, hoje eu faço
para ter um corpo sarado, definido e para manter a saúde
também. Eu acho que malhar é um estilo de vida, tem que ter
força de vontade. Muitas mulheres me veem, viram para mim e
perguntam: “Eu consigo em um mês”? Aí eu falo: “claro que
não!!” Você tem que fazer disso um hábito, sabe? Malhar tem
que ser como qualquer outra coisa, tomar banho, almoçar. Tem
que botar na sua vida que você tem que tirar uma hora para
malhar, mesmo que sejam só 40 minutinhos. Eu gosto tanto de
malhar que a academia é uma continuação da minha casa. Tem
53
gente que fica incomodada e pergunta “nossa, pra quê tudo
isso?” Mas eu não vejo problema nenhum nisso, a academia é a
minha segunda casa.” [Ana, 46 anos]
Havia, também, uma preocupação de evitar que as novatas passassem pelos
mesmos problemas que as veteranas tinham passado quando iniciaram o consumo.
Foram relatados alguns percalços durante o período em que o consumo se deu, como
alguns efeitos físicos indesejáveis a exemplo de alteração na voz, queda de cabelo,
aumento de pelos, irritabilidade etc. E as veteranas sentiam-se responsáveis por fazer
esse alerta, acalmar a novatas, dar dicas e alertar sobre possíveis complicações ou coisas
do tipo. Segundo Bruna, de 27 anos:
“Eu acho normal (o uso de anabolizante), mas a pessoa também
tem que ter bom senso. Eu acho que eu tive, eu usei durante o
tempo necessário e depois parei, as pessoas têm que saber a
hora certa de parar, até mesmo por causa da saúde e tudo mais.
Mas eu não vejo nenhum problema no uso dessas substâncias,
acho que hoje em dia, com toda essa tecnologia, a pessoa pode
usar tranquilamente, sem ter grandes danos. Quando alguém
me pergunta, eu sempre falo que é de boa usar, mas que a
pessoa tem que estar consciente dos efeitos.. mas para mim não
é nada demais ter uma voz mais grossa ou mais pelo. Vale a
pena pelo resultado.”
O mesmo cuidado foi observado também nos amigos que serviram como
referência para as entrevistadas. Eles também se sentiam aptos a fornecer dicas e
informações por também já terem feito uso de anabolizantes. Geralmente os amigos
apareciam quando as entrevistadas não tinham namorados, fazendo às vezes destes.
Finalmente, ainda que só uma entrevistada tenha relatado que a referência dela
em termos de consumo de anabolizante tenha vindo de um endocrinologista que tinha
prescrito essas substâncias, faz-se interessante comentar o fato. Segundo as
entrevistadas, a ida ao endocrinologista é rara principalmente por as consultas serem
caras. A seguir, destaca-se o depoimento da única mulher a se consultar com um
médico:
54
Alguns resultados eu conseguia notar, mas para o que eu queria
mesmo ainda faltava muito. Então, eu resolvi ir ao
endocrinologista para saber o que eu poderia tomar. Eu morria
de medo de anabolizante, e também não confiava muito nesses
papos que sempre rolam na academia. No final, pesquisando e
conversando com o médico, eu resolvi tomar GH. Acho que de
todos os anabolizantes, ele é o melhor para as mulheres, sabe?
Pouquíssimos efeitos colaterais. [Renata, 32 anos]
Ainda que não se tenha perguntado diretamente ao médico o motivo dele ter
prescrito tais substâncias, conversando com a mulher que se consultou com ele, esta
relatou ser muito comum, dentre os médicos que fazem essa prescrição, isso ocorrer por
haver por trás algum tipo de patrocínio de uma terceira pessoa que tenha interesse que
essas substâncias sejam vendidas. É possível que se cite a indústria farmacêutica como
exemplo, mas só a título de conjectura, pois não se teve a oportunidade de conversar
com o médico diretamente.
O criador do discurso normativo formal
Do lado oposto ao discurso normativo espontâneo, tem-se, como exposto ao
longo dessa dissertação, o Estado. Ele é o responsável direto pela criação e aplicação –
ainda que de maneira não eficaz, como bem demonstrado aqui -, das leis, que nada mais
são do que a materialização desse discurso, ou a materialização da vontade estatal
imposta aos cidadãos de uma sociedade.
Como narrado no capítulo sobre o inventário de valores no discurso formal,
existe, por trás da proibição do consumo de anabolizantes por quem, fisiologicamente,
não precisa, uma preocupação com o corpo pautada na sacralização e, por consequência,
pauta no entendimento do copo como um local sagrado ou um canal entre o indivíduo e
o divino.
Porém, afora esse fato, pode-se destacar dois interesses por trás desses valores
que levam o Estado a criar normas que proíbam as condutas observadas. Primeiro, o
interesse dessa proibição está relacionado com a disciplinarização dos corpos que é, em
55
última análise, umas das prerrogativas que o Estado acredita e defende que tem ou um
instrumento por meio da qual o Estado operacionaliza o seu funcionamento. E, em
segundo lugar, pode-se destacar a preocupação estatal com a saúde pública, visto que
esse consumo pode desencadear muitas consequências que acabam, posteriormente,
demandando o Estado.
1.1. A disciplina dos corpos
O primeiro interesse a se destacar tem a ver com a disciplina dos corpos. Para
entender esse interesse, a reflexão de Foucault sobre o tema é muito pertinente. Em
“Vigiar e Punir” (1987), o autor entende o corpo como “objeto e alvo do poder”,
justamente por poder ser moldado e ajustado à maneira que se achar pertinente.
No campo visitado, esse conceito e esse entendimento relativos ao corpo foram
observados nos dois discursos, porém com uma concepção diferente acerca de a quem o
corpo pertenceria. Para o Estado, seguindo o individualismo cristão exposto
anteriormente, o corpo não pertence à pessoa, agindo esta apenas como “zeladora” dele.
Nesse sentido, caberia ao Estado, já que à pessoa não é dada essa condição, dizer
o que fazer com o corpo. Pode-se depreender que a intenção última do Estado, ao impor
condutas aos indivíduos, é fazer dos corpos um dos instrumentos para satisfação de seus
interesses. Por trás desse valor individualista cristão que protege o corpo, entende-se
haver um interesse estatal voltado a tornar os corpos hábeis, controláveis, corrigíveis,
manipuláveis.
Essa materialização da disciplina, que Foucault cita ter observado em escolas,
quartéis e conventos, também pôde ser observada nas leis que proíbem o consumo,
porque a disciplina nada mais é do que o resultado de uma obediência a um comando
para que uma pessoa faça ou se abstenha de fazer alguma coisa. E, no caso em análise, a
lei determina que as pessoas se abstenham de consumir anabolizantes se não
enquadradas nas exceções previstas que permitem o consumo.
Pode-se observar, na imposição dessa disciplina, muitos interesses envolvidos,
como por exemplo, manter o corpo ativo, fazer com que ele produza mais, possibilitar
por meio dele que as pessoas trabalhem mais. Nos termos de Foucault,
56
“O momento histórico das disciplinas é o momento em que
nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o
aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua
sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo
mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e
inversamente. Forma-se então uma política das coerções que
são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de
seus elementos (...) ela define como se pode ter domínio sobre o
corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se
quer, mas para que operem como se quer (...) (Foucault, 1986,
p. 119)”
Então, dentro de um Estado capitalista no qual se vive, um dos grandes
interesses dele é a produção, que por sua vez, está voltada a gerar excedentes e, como
consequência, lucro. Assim, o grande interesse em disciplinar os corpos, nessa toada, é
fazer com que eles sejam os mais eficientes possíveis. E essa eficiência pode ser
buscada por meio da manipulação, da transformação, do controle, da imposição. Em
resumo, busca-se eficiência por meio da disciplina imposta pelas leis.
Essa observação sobre o interesse capitalista estatal abre espaço para uma
discussão acerca do consumo. Entender-se-ia, partindo-se do entendimento sobre o que
é o capitalismo, que o consumo também fosse incentivado. Entretanto, há uma vedação
a ele, sendo assim a realidade oposta à expectativa. Dessa constatação, tem-se que mais
forte do que a necessidade de consumo, própria desse sistema – e que é defendida,
assegurada e buscada pelo Estado -, há interesses de terceiros que proíbem que isso
aconteça.
Frise-se que a monografia não se propôs a fazer uma investigação nesse sentido.
Entretanto, cabe aqui levantar questionamentos para investigações futuras. Quem estaria
por de trás desses interesses? Seria a classe médica a maior influência nesse sentido?
Teria ela poder o bastante para fazer com que os parlamentares, por meio de normas,
freassem o consumo, dando lugar à abstenção?
1.2. A questão da saúde pública
57
O consumo de anabolizantes por quem não tem nenhuma defasagem hormonal
ou nenhuma doença pode gerar muitos efeitos adversos. Os esteroides mais utilizados
entre as entrevistadas são compostos basicamente pela testosterona, um hormônio
masculino. Por conta disso, um dos efeitos mais latentes é, no caso das mulheres, a
virilização. Consequentemente, outros efeitos surgem, como o crescimento e aumento
de pelos, crescimento do clitóris, oleosidade da pele e do cabelo, queda de cabelo, acnes
pelo corpo, engrossamento da voz, diminuição temporária do ciclos menstruais etc.
Mas, para além desses efeitos, há diversos estudos sobre o tema que trazem
efeitos mais profundos decorrentes do consumo dessas substâncias, a esse respeito,
destacam-se esses trechos:
“Os esteróides anabolizantes ou esteróides anabólico-
androgênicos (EAA) referem-se aos hormônios esteróides da
classe dos hormônios sexuais masculinos, promotores e
mantenedores das características sexuais associadas à
masculinidade (incluindo o trato genital, as características
sexuais secundárias e a fertilidade) e do status anabólico dos
tecidos somáticos. Os esteróides anabólicos incluem a
testosterona e seus derivados. Entretanto, alguns autores
referem os esteróides anabolizantes como os derivados
sintéticos da testosterona que possuem atividade anabólica
(promoção do crescimento) superior à atividade androgênica
(masculinização). (Silva; Danielski; Czepielewski, 2002, p.
235).”
“(...) desde modificações de caracteres sexuais secundários,
salientando-se ora a virilização com aumento da libido, o
aumento do pênis, o tom de voz mais grave, o aumento dos
pelos faciais, ora a feminização, com o aumento das mamas no
homem, diminuição do tamanho dos testículos e a incapacidade
de produção de espermatozoides, até quadros graves como
disfunções hepáticas e câncer de fígado. O estudo de Socas et
al. (2005) mostrou a associação de tumores benignos de fígado
em dois fisiculturistas que utilizaram EAA [Esteróides
androgênicos anabolizantes]. (Cecchetto; Moraes; Farias, 2012,
p. 372).”
58
“De modo geral, os efeitos adversos do abuso de EA (esteroides
anabolizantes) podem ser amplamente divididos em quatro
categorias: 1) efeitos nas características sexuais secundárias e
funções hormonais relatadas; 2) efeitos em tecidos somáticos,
incluindo trombogênese e produção tumoral; 3) efeitos
relacionados à adulteração e administração da droga, incluindo
doenças infecciosas, especificamente hepatite B e HIV; e 4)
efeitos no comportamento e saúde mental, incluindo o
desenvolvimento de dependência. (Macedo; Santos;
Pasqualotto; Copette; Pereira; Casagrande; Moletta; Fuzer;
Lopes, 1998, p. 14).”
E são justamente esses efeitos destacados nos trechos acima que suscitam a
questão da saúde pública. Vê-se que o consumo dessas substâncias, quando causa essas
doenças e limitações, demanda diretamente o Estado que, por meio do seu sistema de
saúde, tem que prestar assistência às pessoas afetadas por essas situações.
Além de ter que arcar com a responsabilidade de tratar doenças causadas pelo
consumo, o Estado ainda tem que atuar profilaticamente com relação às doenças
infecciosas que podem ser contraídas pelos consumidores de anabolizantes – por meio
de agulhas -, no sentido de evitar que haja uma epidemia.
Mas o interesse do Estado, em termos de saúde pública, não está restrito apenas
ao tratamento das doenças, a evitar epidemias, dar qualidade de vida, possibilitar a
saúde, a eficiência física e mental, como o conceito em si de saúde pública determina.
Para além disso, há também a questão envolvendo os gastos dos Estado.
É o Estado o agente central de promoção da saúde pública. Cabe a ele o dever de
organização dessas ações que têm como fim último possibilitar o acesso à saúde por
toda a população. Entretanto, toda essa mobilização gera gastos para o Estado. Essas
despesas são concernentes à compra de remédios, ao pagamento de funcionários, à
manutenção do hospital etc.
Todo gasto desnecessário não é visto com bons olhos para o Estado. Partindo do
pressuposto de que as pessoas acometidas por essas doenças provavelmente não as
teriam se não tivessem feito o uso de tais substâncias, cabe ao Estado, por meio das
59
normas, agir preventivamente, proibindo esse consumo, para que no futuro não seja
demandado.
Por fim, há que se destacar uma última preocupação do Estado com relação ao
corpo e que destoa um pouco da saúde pública. Talvez, até mesmo de maneira
inconsciente, o discurso estatal reproduza ideias que estão presentes no imaginário da
sociedade como um todo. Preza-se pelo corpo saudável, entretanto, essa preservação
nada tem a ver com questões de saúde pública.
David Le Breton dedicou um capítulo de sua obra para falar sobre o
envelhecimento do corpo. Segundo ele, a velhice
“é um lembrete da precariedade e da fragilidade da condição
humana (...). Imagem intolerável de um envelhecimento que
atinge todas as coisas em uma sociedade que cultua a juventude
e não sabe mais simbolizar o fato de envelhecer ou morrer.” (Le
Breton, 2011, p. 224)
Essa precariedade do corpo também pode ser observada quando o corpo não está
saudável. Um corpo doente, assim como a velhice e a morte, são anomalias que
“escapa[m] do campo simbólico que dá sentido e valor às ações sociais: elas encarnam o
irredutível do corpo” (Le Breton, 2011, p. 225).
É nesse sentido também que está a preocupação do Estado com o corpo. Proíbe-
se o consumo também por ele ser nocivo ao corpo, tornando-o doente. A doença não é
desejada na sociedade. O corpo é visto como uma máquina que sempre tem que estar
apta a produzir e contribuir para o desenvolvimento e a manutenção da sociedade.
Quando o corpo não produz, por estar velho ou doente, a pessoa acaba não tendo
um lugar na sociedade e acaba, assim, não desempenhando um papel que socialmente se
espera dela. A doença é um exemplo provisório da “dualidade inerente à condição do
homem”.
60
Considerações Finais
A partir dos dados de uma incursão etnográfica em uma academia de ginástica,
em que o convívio se deu com mulheres que faziam uso de anabolizantes e suplementos
alimentares e, juntamente a isso, a partir de um vasto levantamento bibliográfico sobre o
tema, concluiu-se que o corpo, assim como entendido por Le Breton (2011), é peça
fundamental, não só para a construção, mas também para a existência da sociedade. É
através do corpo que as relações se dão e são construídas. E é também através dele que a
pessoa se percebe como indivíduo e, simultaneamente, como parte de uma coletividade.
O entendimento sobre o corpo é resultado de uma construção social e, como tal,
não se apresenta de maneira uniforme para todas as pessoas. Por isso, como constatação,
tem-se que indivíduos diferentes atribuem valores, funções e importância diferentes a
ele. Também como consequência, há o fato de existirem expectativas diferentes sobre o
corpo.
Disso e por isso, no campo estudado, constatou-se a existência de duas visões
relativas ao corpo. Uma em que a postura a ser adotada pelas pessoas, quando
dispusessem de seus corpos, deveria ser pautada pelo que estivesse em lei. E uma
segunda postura, adotada por algumas pessoas, pautada pelo entendimento delas sobre
como o corpo deveria ser manejado, e não necessariamente seguindo a lei.
Esta monografia, partindo desta realidade, propôs-se a investigar mais
detidamente esse entendimento discrepante sobre o corpo entre esses dois sujeitos do
campo. Assim, observando a coexistência de dois discursos diferentes, buscou-se
entender como e a partir do que cada visão era construída e como de fato seria o corpo
dentro de cada um desses discursos.
Para tanto, como metodologia, esta monografia utilizou o levantamento
bibliográfico e os dados obtidos em campo. A partir da leitura, utilizou-se como
arcabouço teórico autores clássicos e mais modernos, dentre os quais destacaram-se
Foucault, Weber, Kelsen e Durkheim.
O entendimento do corpo não é fixo. Cada sociedade o entende de uma
determinada maneira. Mas mais do que isso, a observação leva à conclusão de que esse
entendimento não uniforme pode variar até mesmo dentro de uma mesma sociedade.
61
E isso se justifica pelo conceito de micro poder destacado por Foucault (1979).
Quer dizer que, como não cabe ao Estado o monopólio a respeito das representações de
poder, é possível – e de fato acontece – que os próprios indivíduos da sociedade criem
suas percepções sobre os fenômenos sociais.
Estabelece-se, assim, uma percepção paralela sobre um determinado fenômeno.
É dizer, não é que os indivíduos desacreditem totalmente nas instituições e queiram
gerir totalmente suas vidas, mas apenas entendem que têm o poder de escolher qual
conduta seguir, caso assim o queiram.
E essa construção de um entendimento paralelo ao que é determinado pelo
Estado se dá, no campo analisado, justamente porque as mulheres entrevistadas
entendem seus corpos como pertencentes a elas e dominados por elas. Por isso, também
como destaca Le Breton, o corpo “torna-se um objeto à disposição sobre o qual agir a
fim de melhorá-lo, uma matéria-prima...” (2003, p. 15).
O corpo dessas mulheres, para elas, torna-se um fator individualizante e de
investimento coletivo concomitantemente. Com os corpos modificados, elas se sentem
diferentes de todos os demais indivíduos da sociedade – o que para elas é um aspecto
positivo, pois alcançam com seus corpos a admiração de pessoas que não conseguem tê-
los – e, ao mesmo tempo, conseguem fazer parte de um grupo de pessoas que têm essa
mesma percepção do corpo como uma matéria-prima pronta para ser moldada de acordo
com os desejos do seu dono.
Mas, se de um lado há essa percepção do corpo como apenas um rascunho e que
as pessoas podem moldá-lo para adequá-lo aos seus desejos, de outro, há o discurso que
preza pela saúde do corpo. Esse discurso, produzido pelo Estado por meio de normas,
procura preservar os corpos determinando as condutas que as pessoas devem ter. Assim,
pautado por estudos científicos que apontaram os malefícios que o consumo de
anabolizantes para fins estéticos pode causar, o Estado edita normas que proíbem esse
consumo justamente para evitar que os indivíduos tenham sua saúde prejudica.
Disso conclui-se que o surgimento de discursos diferentes dentro de um mesmo
universo, ou seja, a discrepância existente entre o discurso das mulheres entrevistadas e
o discurso exposto pela norma, dá-se principalmente pelo fato de o significado do que o
corpo representa para cada um desses sujeitos ser completamente diferente.
Enquanto para as mulheres o corpo é tido como algo que elas podem dispor da
maneira que quiserem, sendo visto como um instrumento a partir do qual elas podem se
62
destacar socialmente, podem adquirir status, podem se sentir mais bonitas, podem
conquistar mais pessoas e coisas etc., o corpo a partir da visão estatal tem outra
importância.
Para o Estado e, consequentemente, para o ordenamento jurídico, o corpo é tido
como algo a ser preservado. Há uma evidente preocupação com a saúde dos indivíduos
e dos seus corpos. Essa preocupação pode ser explicada, no caso do Brasil, também pelo
fato de a construção da percepção do corpo levar em consideração aspectos religiosos,
principalmente católicos.
Nesse sentido, o corpo é visto como algo sagrado, principalmente por estar
envolvido em toda uma simbologia que a Igreja Católica acredita e defende. Quando se
pensa em corpo, lembra-se do corpo de Cristo, sendo assim o corpo um espaço sagrado
a ser preservado. Também é entendido como o canal mais próximo que o indivíduo tem
para se comunicar com o Divino, seja por meio de sacrifícios, expiações, provações,
milagres etc.
Por outro lado, a preocupação com a saúde dos corpos está muito ligada à
preservação dos valores centrais da Modernidade. Segundo Le Breton (2011), um corpo
novo e saudável representa ideais de juventude, vitalidade e trabalho. Um corpo
saudável é capaz de produzir, de desenvolver e de somar à sociedade. O que acaba
sendo interessante para um Estado capitalista por atingir ou corroborar para um de seus
objetivos, qual seja, a produção.
Quando o corpo não está saudável ou a pessoa é idosa, também segundo o autor,
fica exposto o “irredutível do corpo”, ou seja, mostra-se no corpo toda a sua fragilidade
e precariedade. Portanto, esses ideais não só fazem parte do consciente dos indivíduos,
como também integra o entendimento estatal e se materializa nas normas criadas pelo
Estado, principalmente no sentido de preservar a saúde dos corpos.
Esse trabalho não se propôs a indicar qual discurso está certo ou errado ou qual
discurso deva ser seguido. Adotando o entendimento de Weber (2015), e em sendo essa
monografia o resultado de uma investigação sociológica, o que se propôs aqui foi tão
somente analisar o comportamento dessas pessoas investigadas perante uma norma.
Assim, partindo da constatação de que existe um comportamento diferente do
determinado no ordenamento e, entendendo ser esse comportamento destoante
importante e fundamental para se entender o funcionamento desse ordenamento jurídico
63
como um todo – e para se entender a sociedade -, entendeu-se necessária esta
investigação.
Entretanto, o juízo de valor fica restrito apenas ao fato de se considerar esse
comportamento frente a um fenômeno social importante, não podendo, portanto, ser
ignorado, descartado ou considerado como algo não existente simplesmente por não
derivar expressamente do que está posto. Dizer, a partir disso, o que funciona ou não ou
como as pessoas deveriam se conduzir, não fez parte dos objetivos desse trabalho.
Procurou-se problematizar uma questão que não é restrita ao campo analisado.
Diferenças entre o que uma lei generalizante determina e o que de fato as pessoas
entendem como sendo determinante para suas condutas acontecem em outras situações
vividas socialmente. Aqui, nesta monografia, procurou-se expor as peculiaridades do
campo analisado e, com isso, manter o debate acerca desse fenômeno.
Objetivou-se, com a problematização, uma melhor compreensão do universo
analisado, partindo agora de um viés sociológico para complementar a visão
antropológica que havia sido dada, anteriormente, e da qual resultou uma primeira
monografia de conclusão do curso de Antropologia.
64
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