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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA
FÁBIO LUÍS OLIVEIRA MONTEIRO
COREOGRAFIA DA BUROCRACIA: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS NOS PROCESSOS CRIATIVOS EM DANÇA
Salvador 2014
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FÁBIO LUIS OLIVEIRA MONTEIRO
COREOGRAFIA DA BUROCRACIA: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS NOS PROCESSOS CRIATIVOS EM DANÇA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Dança, Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Dança.
Orientadora: Profa. Dra. Gilsamara Moura
Salvador 2014
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Sistema de Bibliotecas da UFBA
Monteiro, Fábio Luís Oliveira. Coreografia da burocracia : implicações políticas nos processos criativos em dança / Fábio Luís Oliveira Monteiro. - 2015. 122 f.: il. Inclui anexos. Orientadora: Profª. Drª. Gilsamara Moura Robert Pires. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança, Salvador, 2014. 1. Dança. 2. Política pública. 3. Política cultural. I. Pires, Gilsamara Moura Robert. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dança. III. Título. CDD - 792.8 CDU - 793.3
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TERMO DE APROVAÇÃO
FÁBIO LUIS OLIVEIRA MONTEIRO
COREOGRAFIA DA BUROCRACIA: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS NOS PROCESSOS CRIATIVOS EM DANÇA
Aprovada em 09 de setembro de 2014
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Dança, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca
examinadora:
Gilsamara Moura – Orientadora _______________________________________ Doutora em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) Universidade Federal da Bahia (UFBA) Lúcia Helena Alfredi de Matos _________________________________________ Doutora em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia (UFBA) Universidade Federal da Bahia (UFBA) Isaura Botelho ___________________________________________ Doutora em Ciências da Comunicação, Universidade de São Paulo (USP) Fundação Biblioteca Nacional
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Dedico este trabalho a meus pais Raimundo e Vera,
que nunca me cercearam do acesso ao conhecimento;
A meus irmãos Carlos e Marcelo, dos quais estarei sempre perto;
A minha orientadora Gilsamara Moura, por saber ouvir e
falar de forma tão generosa;
E a meus filhos, que ainda estão por vir,
mas que já são o meu maior projeto.
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AGRADECIMENTOS
A Lucas Valentim e Lia Lordelo, por chegarem junto
no momento em que eu mais precisei. Obrigado!
A Edu O., por ter feito esse caminho
mais leve. Obrigado!
Aos professores e colegas de turma,
que tanto contribuíram com suas palavras e ensinamentos. Obrigado!
A Alexandre Molina, Clara Trigo, Helena Katz, Nayse Lopez, Sérgio Andrade, Sérgio
Sobreira, Sônia Sobral e Suki Vilas Boas, por aceitarem participar desta pesquisa.
Obrigado!
A Matias Santiago, Carlos Paiva e Lúcia Matos, pela generosidade
no acesso às informações que construíram este trabalho. Obrigado!
Aos companheiros Jorge Alencar, Ellen Mello, Leonardo França e Neto Machado,
pelas mentes brilhantes, e palavras de incentivo. Obrigado!
E em especial Gabriel Pedreira, pelo companheirismo e apoio irrestrito
a essa empreitada. A você, Gabriel, o meu muito, muito, muito obrigado!
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“A editalização tornou-se uma lógica, um
modo de pensar, que permeia tudo. As implicações são profundas e extensas.
Passam pelo fazer artístico, mas o ultrapassam, atingindo as relações entre as
pessoas e os entendimentos de mundo”. Helena Katz
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MONTEIRO, Fábio Luís Oliveira. Coreografia da burocracia: implicações políticas nos processos criativos em dança. 121f. 2014. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
RESUMO
Este estudo reflete sobre o trânsito entre gestão cultural, políticas públicas e criação artística. O objetivo é refletir sobre as implicações dos editais, enquanto instrumento de aplicação de uma política cultural, nos processos criativos em dança. Será observada, para tanto, a gestão da Secretaria de Cultura da Bahia, no período de 2007 a 2010. Este período marcou o fortalecimento dos editais como mecanismos de distribuição dos recursos públicos para a cultura. Para tanto, avançaremos no entendimento de cultura e suas dimensões através de reflexões propostas por Raymond Williams, José Joaquín Brunner e Isaura Botelho. Após apresentado o arcabouço teórico inicial, será apresentado um panorama da evolução das políticas públicas para a cultura no Brasil, para logo em seguida aprofundar no contexto da Bahia. Para o desenvolvimento desta argumentação foram ouvidos artistas que realizaram processos criativos sem a subvenção através de editais e com a subvenção através de editais. Fazem parte desta discussão autores como Michael Foucault, Eneida Leal Cunha, Helena Katz, Gisele Nussbaumer, Rosa Hércoles, Lúcia Matos, Peter Pál Perbart, Jussara Setenta e Albino Rubim. A partir desses autores, analisarei duas obras de dança: “A Projetista”, de Dudude Herrmann, e “Edital”, de minha autoria. Ambos os trabalhos trazem a burocracia como matéria de criação. Defendo que é necessária a atenção e contínua observação na implementação dessas políticas públicas, a fim de evitar impactos danosos à criação artística.
Palavras-chave: Dança. Gestão cultural. Políticas públicas. Edital.
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MONTEIRO, Fábio Luís Oliveira. Choreography of bureaucracy: policy implications in the creative process in dance. 129f. 2014. Masters Thesis – Post-Graduation Program of Dance, Federal University of Bahia, Salvador, 2014.
ABSTRACT
This study reflects on transit between cultural management, public policy and artistic creation. The aim is to reflect on the implications of the aplications as a means of implementing a cultural policy in the creative process in dance. Will be observed, therefore, the management of the Secretariat of Culture of Bahia, in the period 2007 to 2010. Period that marked the strengthening of the notices as mechanisms for distribution of public funds for culture. To do so, we will advance the understanding of culture and its dimensions through reflections proposed by Raymond Williams, José Joaquín Brunner and Isaura Botelho. Presented after the initial theoretical framework will be presented an overview of the evolution of public policies for culture in Brazil, to then delve into the context of Bahia. To develop this argument artists who performed creative processes without the subsidy through aplications and the grant through aplications were heard. Are Included in this discussion authors as Michael Foucault, Eneida Cunha Leal, Helena Katz, Gisele Nussbaumer, Hércoles Rosa, Lucia Matos, Peter Pál Perbart, Jussara Seventy Albino Rubim. From these authors analyze two works of dance: "A Projetista" by Herrmann and Dudude "Edital" of my authorship. Both works, bring the bureaucracy as regards creationI argue that continuous observation and attention in the implementation of these policies is necessary in order to avoid harmful impacts to artistic creation.
Key-words: Dance. Cultural management. Public policies. Aplication.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................... 12
1 GESTÃO CULTURAL – PARA A ARTE, A POLÍTICA...................... 18
1.1 Dimensões da cultura ......................................................................... 20
1.2 De Vargas a Lula – apanhado histórico das políticas culturais no
Brasil ...................................................................................................
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1.3 Políticas culturais – deveres e responsabilidades compartilhadas...... 29
2 CONTEXTO BAHIA ............................................................................ 35
2.1 Bahia: once upon a time... .................................................................. 36
2.2 A gestão SECULT 2007 – 2010 ......................................................... 40
2.3 Os editais e a criação artística ............................................................ 48
3 A DANÇA NA ESTÉTICA DA BUROCRACIA ................................... 57
3.1 A Projetista – Do nada ao vazio ......................................................... 58
3.2 Edital – O artista montado de produtor, ou vice-e-versa .................... 65
3.3 Um novo lugar na autoria: a necessidade de um discurso ................. 67
3.4 O problema como solução: a convocatória pública ............................ 70
3.5 A composição da organização ............................................................ 75
4 CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS .................................................. 81
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................
84
6 ANEXOS ............................................................................................. 88
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INTRODUÇÃO
As reflexões propostas nesta dissertação partem das minhas experiências
profissionais, em princípio. Sou um profissional das artes cênicas há 16 anos e ao longo
dos últimos dez anos, venho dedicando atenção e interesse maior pela dança. Paralelo à
carreira de artista, também atuo como produtor cultural e cumpro essa função também em
projetos nos quais eu não esteja envolvido artisticamente. E, por exercer diariamente
essas duas funções, de artista e de produtor, meu olhar começou a se direcionar para
algumas questões que permeiam a relação entre os fazeres artísticos e suas formas de
subvenção, em especial os editais.
Um edital é um instrumento de distribuição de recursos, adotado por algumas
esferas e instituições públicas para a seleção de projetos que receberão apoio financeiro.
Nos últimos anos, este mecanismo vem sendo adotado cada vez mais pelos agentes
distribuidores de recursos, por serem entendidos como a ferramenta mais democrática de
distribuição financeira, já que se trata de uma chamada pública na qual os interessados
têm o mesmo prazo e condições para pleitear verba para seus projetos.
Uma vez que um artista tem o seu projeto aprovado em um edital e subsidiado por
recursos públicos, alguns procedimentos deverão, necessariamente, ser obedecidos. Por
exemplo: um dado número de apresentações deverá ser cumprido, alguns bens e
insumos não poderão ser adquiridos, mesmo que sejam pertinentes à realização da sua
obra, e o artista terá de obedecer a um cronograma que, por sua vez, tem um prazo limite,
imposto pelas regras dos editais, para que a sua obra esteja pronta, dentre outras
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restrições.
Nos últimos dez anos, criar uma obra de dança, no Brasil, dentro deste contexto
vem sendo muito comum. Desde 2003, quando da posse do presidente Luís Inácio Lula
da Silva em seu primeiro mandato e da consequente entrada do cantor e compositor
Gilberto Gil, como Ministro da Cultura, o Ministério passou a entender o significado da
palavra cultura de forma mais abrangente, que se aproxima ao entendimento proposto
pelo sociólogo chileno José Joaquín Brunner (1993). Trata-se de entender as dimensões
da cultura, especificamente a dimensão sociológica e a antropológica. Conceito que
tratarei no primeiro capítulo, a partir de estudos de Isaura Botelho. Ressalto aqui que
Brunner desenvolve pesquisas ligadas aos estudos culturais ingleses. Quem primeiro
apresenta essa distinção, de forma diferenciada de Brunner, é Raymond Williams no seu
livro Cultura (1992). Essa forma de pensar cultura implicou na mudança, no Ministério da
Cultura, no modo de entender a responsabilidade do Estado enquanto propositor de
políticas públicas para a cultura. Essa mudança de entendimento e de postura, por parte
do Ministério da Cultura, ecoou de forma contundente na produção artística, e nos seus
atores. E, neste contexto, obviamente a dança também se insere.
O interesse desta pesquisa é perceber, registrar e analisar quais as implicações
desta mudança de perspectiva no fazer artístico em dança. Entender se, e de que forma,
os processos criativos em dança sofreram mudanças em consequência da política cultural
aplicada desde 2003. Perceber, apontar e investigar de que forma o artista da dança está
lidando com as condições postas e impostas.
Desta forma, apresento, no primeiro capítulo, duas dimensões de entendimento
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para a palavra cultura. Para que, a partir da apresentação desse referencial teórico, possa
me debruçar sobre o entendimento e analise dos contextos a serem observados.
Uma vez apresentados os entendimentos de cultura e política cultural, compartilho
um breve apanhado histórico sobre as políticas públicas para o setor cultural realizadas
no Brasil, mesmo quando ainda não eram entendidas como políticas culturais. Para tanto,
farei uso de estudos feitos por Lia Calabre (2006). Período este que compreende do
primeiro mandato do Presidente Getúlio Vargas, a partir de 1930, até o primeiro mandato
do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Finalizo o primeiro capítulo falando da importância da participação de todos os
agentes da cadeia produtiva da cultura, na elaboração de uma política cultural. A
responsabilidade da elaboração e implantação de uma política cultural, não deve estar
apenas a cargo do Estado. A sociedade civil, entidades privadas, representações de
classe e grupos comunitários devem compartilhar dos deveres e responsabilidades dessa
elaboração.
No segundo capítulo, farei uma imersão no contexto baiano da elaboração e
aplicação da política cultural pelo Governo do Estado. Como o recorte temático e temporal
desta pesquisa é a elaboração e aplicação da política cultural na Bahia de 2007 a 2010 e
suas possíveis implicações nos processos criativos, começarei apresentando qual era o
panorama pré 2007 e como se deu a construção do pensamento para a gestão da cultura
de 2007 a 2010. Observaremos como funcionou a subvenção do Governo do Estado,
através da sua Secretaria de Cultura (SECULT) e instituições agentes para financiamento
de projetos na dança de 2007 a 2010. Trataremos da estrutura e de alguns mecanismos
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de fomentos adotados pela secretaria.
Para finalizar o segundo capítulo, falarei especificamente sobre os editais. Os
editais foram o principal instrumento de aplicação da política cultural pelo Governo da
Bahia. Com os editais, a gestão estadual conseguiu ampliar os recursos destinados a
projetos artístico-culturais, descentralizar e a democratizar a distribuição destes recursos,
bem como dar uma maior transparência ao processo de seleção de projetos. Contudo, os
editais foram adotados de forma tão hegemônica que começaram a apresentar possíveis
implicações nos processos criativos.
Para entender melhor essas implicações na forma de pensar e de criar em dança,
darei ouvido à fala de artistas da área que, ao responder um questionário elaborado para
a realização desta pesquisa, apresentaram suas impressões sobre a gestão da cultura
realizada na Bahia de 2007 a 2010 e também em comparação à gestão anterior. Os
artistas também falarão sobre a sua forma de trabalhar diante da lógica que atribui aos
editais o protagonismo no acesso aos recursos públicos. Para responder aos
questionários convidei artistas que criaram seus trabalhos dentro destes dois contextos,
até 2006 e a partir de 2007.
No terceiro capítulo apresentarei duas criações em dança que têm a burocracia e
as questões que permeiam a distribuição de recursos públicos, como matéria de sua
criação artística. Neste capítulo analisarei os espetáculos “A Projetista”, da dançarina
diretora e coreógrafa mineira Dudude Herrmann, e “Edital”, espetáculo em forma de
palestra, que criei em parceria com os artistas Leonardo França e Neto Machado.
O espetáculo “A Projetista” estreou em 2011 e com ele Dudude Herrmann celebrou
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seus 40 anos de carreira. Neste espetáculo-manifesto, a coreógrafa discursa sobre a
obrigatoriedade da elaboração de um projeto e submissão a um edital, para que se
consiga recursos públicos que viabilizem a sua realização.
Já “Edital” é uma obra que apresenta a minha narrativa, enquanto artista e
produtor, numa situação de criação artística buscando entender e problematizar de que
forma estes fazeres estão implicados. Com “Edital”, uso a burocracia como tema do
espetáculo e faço uma crítica política. Apresento a obra como exposição de um problema
social, no qual, nós, sujeitos da dança, podemos estar condicionados a tal dita “política de
editais”, que não pode ser entendida como sinônimo de política pública. Embora a
adoção, cada vez mais frequente, de editais como instrumento de distribuição de recursos
públicos para a cultura, seja popularmente nomeada de “política de editais”, preciso
ratificar que os editais são apenas instrumentos utilizados para a aplicação de algumas
metas de uma política pública. Os editais são ferramentas da política e não a própria
política. Entender que os editais públicos são a própria política pública para a cultura,
infere no erro de limitar a política pública apenas à distribuição de recursos para a
realização de projetos culturais.
No espetáculo “Edital”, busco apresentar uma visão crítica a partir dessa
experiência sobre o fazer artístico e político em dança. Pretendo, com isso, indicar aos
artistas que transitam entre produção e fazer artístico, uma reflexão sobre as possíveis
relações entre a criação em dança, e os editais enquanto instrumentos de aplicação de
uma política pública para a área da dança.
Para analisar “Edital”, vou apresentar o contexto no qual ele foi criado, o novo
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lugar da criação que fui constrangido a estar, mediante a aprovação em dois editais.
Tratarei também sobre a publicação do edital em si. Edital este que foi lançado para a
aquisição de uma obra autoral, afim de que eu pudesse desenvolver o meu processo
criativo. E por fim, falarei sobre a composição do espetáculo enquanto uma criação em
dança configurada a partir de outras criações.
Nas considerações finais, que penso não como finais mas como contribuições
temporárias, uma vez que este é um processo que não apresenta a um quadro definitivo,
procuro disparar ou provocar reflexões sobre o constrangimento, no sentido de imposição,
que as criações artísticas vinculadas à subvenção através de editais, passam a ter a
necessidade de obedecer. Finalizo esta etapa do trabalho defendendo que, em
determinadas circunstâncias, as políticas culturais podem limitar e/ou restringir o trabalho
de criação dos artistas comprometendo os processos criativos. Haja visto que todo
mecanismo de fomento, é, por natureza, restritivo. Se a criação do artista está vinculada a
algo fora da criação em si, como por exemplo um edital, isso, por si só, já implica em
limitações na criação.
Contudo, a falta de outro mecanismo que o substitua, o edital, continua sendo
identificado como a ferramenta mais eficiente e transparente na partilha dos recursos
públicos para projetos artístico-culturais.
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CAPÍTULO 1
GESTÃO CULTURAL – PARA A ARTE, A POLÍTICA
Este primeiro capítulo tem por finalidade contextualizar o campo que proponho
como discussão nesta dissertação. Para isso, apontarei alguns caminhos para o
entendimento de Cultura e Política Cultural, atualizando-os.
Segundo Gilberto Gil1 (2003), “quando falamos de saúde, superávit primário,
preservação ambiental ou obras de infraestrutura, todos sabem a que estamos nos
referindo. Mas quando empregamos a palavra cultura, não é bem isso o que acontece”.
Para que possamos minorar este problema apresentado por Gil e avançar nas discussões
propostas neste trabalho, proponho que comecemos apontando uma direção para a
compreensão da palavra cultura.
Tradicionalmente, quando nos deparamos com a palavra cultura, o senso comum a
associa imediatamente a um conjunto de fazeres artísticos como o teatro, balé, música
clássica, literatura, ou seja, ele endossa o coro que entende a cultura como essas práticas
desenvolvidas na cultura ocidental europeia, dita “cultura superior”, deixando
subentendido que as práticas que não cabem neste universo são chamadas de “cultura
de massa”, ou como “folclore”.
1 Cantor, compositor, multi-instrumentista e intelectual brasileiro que foi Ministro da Cultura do Brasil de 2003 a 2008.
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Raymond Williams (1992), acadêmico e crítico inglês, se apropriou da noção
antropológica de cultura como um modo de vida, com o objetivo de mostrar que é algo
comum a toda a sociedade. Nesse sentido, ele estaria rompendo com a ideia de que a
cultura era cultura de elite, ainda presente no contexto em que escrevia. Essa concepção
apropriada da antropologia ajuda a mostrar como diferentes significados e valores
organizam a vida social comum. Nesse sentido, a cultura deixa de ser um resultado ou
reflexo de uma determinada base, mas passa a ser encarada como aspecto importante,
isto é, ativo na organização social. Ou seja, a cultura se torna elemento constitutivo do
processo social.
Nussbaumer2 (2012) remonta que, fundamentado em Williams, Eagleton3 (2005)
reflete sobre três sentidos distintos, atribuídos à palavra cultura, que foram sistematizados
pelo pesquisador inglês. O primeiro seria a cultura como “civilidade ou civilização”, uma
noção francesa que remonta aos costumes e à moral do século XVIII; o segundo sentido
seria o de “modo de vida característico”, oriundo do idealismo alemão, que abraça a
romantização da cultura popular; e o terceiro, como “especialização às artes”, que
direciona para a atividade intelectual ligada à ciência e à filosofia e às artes canônicas
como as artes plásticas, literatura, música clássica etc. Gisele Nussbaumer destaca a fala
de Eagleton, quando ele diz que o problema em relação a essa variante é que “[...] tão
logo cultura venha a significar erudição e as artes atividades restritas a uma pequena
proporção de homens e mulheres, a ideia é ao mesmo tempo intensificada e
2 Gisele Nussbaumer dedica-se a estudos e projetos na área de cultura, com ênfase em políticas culturais, gestão e produção cultural, públicos da cultura e cibercultura. Possui mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo/USP (1997) e doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia/UFBA (2004). Foi Diretora Geral da Fundação Cultural do Estado da Bahia/FUNCEB, instituição responsável pelas políticas públicas para as linguagens artísticas no estado, de janeiro de 2007 a março de 2011. 3 Terry Eagleton é filósofo e crítico literário britânico com vasta publicação sobre cultura.
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empobrecida”. (EAGLETON, 2005, p.29). Para ela, “os três sentidos da palavra cultura,
sistematizados por Williams e retomados por vários outros autores, como Eagleton, não
são facilmente separáveis e persistem até os dias atuais”. (NUSSBAUMER, 2012, p. 91)
A visão de Cultura que será desenvolvida neste capítulo (antropológica e
sociológica), sistematizada por Brunner4 (1993), contribui para que possamos dar acesso
à multiplicidade cultural brasileira dos bens de produção e de serviços simbólicos.
Perceber cultura, a partir deste prisma, colabora também para que possamos entender
política cultural de uma forma não restritiva. Para pensar políticas públicas para a Cultura,
é necessário entender este ambiente como um espaço de realização da cidadania.
1.1 – SOCIOLÓGICA E ANTROPOLÓGICA: PERCEBENDO A CULTURA EM DUAS
DIMENSÕES.
Antes de apresentar uma possível delimitação para a palavra cultura numa única
definição, vale ressaltar de início que, tal tentativa, segundo Eneida Leal Cunha5 (2009.
p.74), em seu texto “A emergência da cultura”, “corresponde sempre a um ato de
restrição”, pois “já não somos capazes de enunciar um conceito de cultura que dê conta
de todas as suas dimensões”.
4 Pesquisador e sociólogo chileno. 5 Eneida Leal Cunha tem doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1993). Professora Titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal da Bahia. Atualmente é Professora Associada no Departamento de Letras PUC-RIO onde, desde 2011, é coordenadora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Literatura, cultura e contemporaneidade.
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Porém, para que possamos avançar para um entendimento que nos possibilite
pensar estrategicamente as políticas culturais, utilizarei, a seguir, a proposta do sociólogo
chileno José Joaquín Brunner (1993, apud BOTELHO, 2001) que categorizou a cultura
em duas dimensões: a antropológica e a sociológica e essa categorização foi
sistematizada e retrabalhada pela pesquisadora Isaura Botelho6.
Embora sejam distintas, as duas abordagens – antropológica e sociológica –
ambas não são excludentes e são igualmente importantes. A abordagem sociológica da
cultura considera uma rede organizada e complexa que estimula a produção cultural
através de demandas profissionais, institucionais, políticas e econômicas. Segundo
Botelho, “...trata-se de um circuito organizacional que estimula, por diversos meios, a
produção, circulação e o consumo de bens simbólicos.” (BOTELHO, 2001, p.5)
Trata-se de uma produção concebida com o objetivo de elaborar significados
específicos para públicos igualmente específicos. Essa perspectiva se aproxima de uma
noção para compreender a cultura como algo restrito a apenas alguns indivíduos de
determinada sociedade. É sob esta dimensão da cultura que as artes se inserem. Esta é a
dimensão organizacional da cultura. Sendo assim, distancia o conceito de cultura das
experiências cotidianas e das dimensões políticas e disputas sociais, já que seria uma
ação deliberada, ou seja, seria uma ação pensada com um objetivo específico e
direcionado para um público pré-determinado. Pensar cultura desta forma pode incorrer
6 Pesquisadora e atuante na área de gestão e política cultural há quase trinta anos. Possui graduação em Português Literaturas de Língua Vernácula pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestrado profissionalizante em Politiques Culturelles at Action Artistique pela Université de Bourgogne, Mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, Pós-doutorado pelo Département des Éstudes et de la Perspective du Ministère de la Culture. Atualmente, presta serviços de consultoria a instituições como o Ministério da Cultura, Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, SESC SP, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, nas áreas de formação de gestores e de pesquisa.
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no erro de não tratá-la sob uma perspectiva política, pertencente a um jogo de poder e
acabar por isolá-la perante as outras áreas como saúde, educação, infraestrutura etc.
Tendo esse viés mais atrelado à produção artística, a dimensão sociológica
demanda um “conjunto de fatores que propiciem ao indivíduo, condições de
desenvolvimento e aperfeiçoamento de seus talentos, da mesma forma que depende de
canais que lhe permitam expressá-los” (BOTELHO, I. 2001, p.5). Essa característica
permite que a elaboração de ações para a execução de uma política pública para a
Cultura possa ganhar uma “concretude” maior, já que possibilita ao setor um aspecto mais
mensurável. Permite que a cultura possa ser mais facilmente observada, analisada e
passível de interferência. Contexto diferente da dimensão antropológica, conforme
Botelho:
Em outras palavras, a dimensão sociológica da cultura refere-se a um conjunto diversificado de demandas profissionais, institucionais, políticas e econômicas, tendo, portanto, visibilidade em si própria. Ele compõe um universo que gere (ou interfere em) um circuito organizacional, cuja complexidade faz dela, geralmente, o foco de atenção das políticas culturais, deixando o plano antropológico relegado simplesmente ao discurso. (BOTELHO, 2001, p. 5)
Na dimensão antropológica, cultura é todo o bem simbólico produzido por
determinado grupo de indivíduos. A cultura seria fruto da interação social, da construção
de valores. É o conjunto de atitudes, crenças e sentimentos de determinado coletivo.
[...]aqui se fala de hábitos e costumes arraigados, pequenos mundos que envolvem as relações familiares, as relações de vizinhança e a sociabilidade num sentido mais amplo, a organização diversos espaços por onde se circula habitualmente, o trabalho, o uso do tempo livre, etc. Dito de outra forma, a cultura é tudo que o ser humano elabora e produz, simbólica e materialmente falando. (BOTELHO, 2001, p. 4)
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A partir da citação acima, podemos entender que seria a “articulação de padrões
de comportamentos apreendidos socialmente através do processo de transmissão de
tradições e ideias” (BENEDICT7, 1934: 14-16). De acordo com Gilberto Gil8, quando ainda
Ministro da Cultura, em discurso na solenidade de transmissão de cargo e também em
pronunciamento para parlamentares brasileiros na Comissão de Educação, Cultura e
Desporto da Câmara dos Deputados, a cultura no contexto brasileiro deve ser entendida
“da forma mais ampla e realista possível, levando em conta tanto a unidade quanto a
multiplicidade cultural brasileira” (GIL, 2003, p. 45).
[...] Cultura como aquilo que, no uso de qualquer coisa, se manifesta para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico. Cultura como usinas de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda uma nação. Cultura como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. (GIL, 2003, p. 10)
Embora as duas dimensões para a Cultura não devam ser trabalhadas
separadamente, e nem de forma dicotômica, o discernimento entre a dimensão
antropológica e a sociológica é importante para pensar estrategicamente as políticas
culturais. A dimensão sociológica seria o aspecto operacional da cultura e, na dimensão
antropológica, cultura é todo o conjunto de bens simbólicos produzidos por determinado
grupo de indivíduos.
Desta forma, torna-se um grande desafio para os gestores públicos da cultura
construir uma política no imprevisível campo da dimensão antropológica da cultura. A
7 Ruth Benedict foi uma antropóloga amaricana autora de “Padrões de Cultura” (1934). 8 Vale ressaltar a importância de Gilberto Gil para este estudo, enquanto Ministro da Cultura, haja visto que foi com o início da sua gestão que se configurou a atual estrutura e contexto da política cultural adotada em esfera nacional, através no Ministério da Cultura, que repercutiu na Bahia e, posteriormente, no Governo do Estado da Bahia, por meio da Secretaria de Cultura.
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ausência de mecanismos de mensuração dos meios de expressão e difusão e, por
conseguinte, visibilidade inerente à dimensão sociológica da cultura, deixa quase sempre
“o plano antropológico relegado simplesmente ao discurso” (BOTELHO, I. 2001, p.74)
1.2 – DE VARGAS A LULA – APANHADO HISTÓRICO DAS POLÍTICAS CULTURAIS
NO BRASIL.
Antes de falar da política cultural existente hoje, farei uso de estudos feitos por Lia
Calabre9 (2006) e apresentarei um breve histórico de como esse contexto foi
desenvolvido no Brasil, até chegar na entrada de Gilberto Gil no Ministério da Cultura em
2003.
As primeiras políticas públicas de cultura no Brasil foram propostas durante o
governo de Getúlio Vargas (1930-1945). Neste período, foi adotada uma série de medidas
que tinha por objetivo dar uma maior formalidade ao setor cultural. As principais ações
neste sentido foram: a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), em 1937, a criação do Instituto Nacional do Livro (INL) e do Instituto Nacional
de Cinema Educativo (INCE), em 1938. Neste mesmo ano, também foi criado o primeiro
Conselho Nacional de Cultura.
9 Possui doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (2002). Atualmente é pesquisadora e chefe do Setor de Estudos de Política Cultural da Fundação Casa de Rui Barbosa. Tem experiência na área de história cultural e política, com ênfase em Políticas Públicas de Cultura, atuando principalmente nos seguintes temas: política cultural, gestão cultural, rádio, Brasil-história, cultura, meios de comunicação de massa e rádio nacional.
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No período seguinte (1945–1964), foi a iniciativa privada quem deu o maior salto e,
por parte do Estado, em 1953, o Ministério da Educação e Saúde foi desmembrado,
surgindo o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério da Educação e Cultura (MEC).
Instituições privadas como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Museu de
Arte de São Paulo, por serem, naquele momento declaradas instituições de utilidade
pública, passaram a receber recursos do governo, mesmo que de forma descontinuada.
O então Presidente da República, Jânio Quadros, recriou em 1961 o Conselho
Nacional de Cultura que, neste período, era subordinado à Presidência da República; o
conselho era formado por comissões de áreas artísticas, que tinham por objetivo elaborar
planos nacionais de cultura.
Com o início do Governo Militar, em 1964, o estado retomou o projeto de
institucionalização do campo da produção artística no país e, por consequência, da
elaboração de uma política para a cultura. No ano de 1966, foi formada uma comissão
para estudar e reformular o Conselho Nacional de Cultura, de forma a “dotá-lo de
estrutura que possibilitasse assumir o papel de elaborador de uma política cultural de
alcance nacional” (CALABRE, 2006). Esta ação resultou na criação do Conselho Federal
de Cultura (CFC), composto por membros indicados pelo Presidente da República.
Durante o Governo Militar, embora o período tenha sido marcado pela censura,
repressão e perseguição a muitos artistas, principalmente àqueles que, com suas obras,
apresentavam um posicionamento de embate à conjuntura política completamente
castradora da ditadura brasileira, algumas ações contribuíram, de alguma forma, com
uma parcela dos agentes culturais.
26
A intervenção do governo militar na área cultural envolve motivos diversos e
bastante complexos, os quais devem ser rigorosamente tratados, em um estudo
específico sobre o tema, através de uma rede de relações políticas, econômicas e
socioculturais. Portanto, se os militares visavam ocultar a face autoritária do Regime
Militar com o intuito de refazerem a sua base de sustentação via o apoio de setores da
classe média urbana e de outros grupos sociais, bem como do meio artístico e intelectual,
ou se o interesse estava centrado em promover uma reorganização geral da sociedade
baseada na internacionalização de valores e de padrões de comportamento, bem como
na identidade nacional, tomando a cultura como mero instrumento dos seus objetivos, é
algo difícil de mensurar, posto que todos esses fatores concorreram para delimitar os
interesses dos militares, assim como dos opositores ao regime.
Através de apoio financeiro, pelo Estado, eventos e projetos nas áreas da música,
teatro, circo, folclore e cinema circulavam pelo país. A dança ainda não estava
contemplada dentro das metas do governo. Neste período, a atuação do estado não se
restringiu à esfera federal. Algumas secretarias de cultura e conselhos de cultura foram
criados em alguns estados e municípios, contribuindo, desta forma, para a criação de um
Ministério independente.
Com o fim da ditadura e início do Governo Sarney, em 1985, foi criado o Ministério
da Cultura, o qual, com sua recente criação, passou por sérios problemas, como falta de
verba e de pessoal. Na tentativa de criar novas fontes de recursos, foi criada a primeira
Lei de Isenção Fiscal (Lei n 7.505, de 02 de junho de 1986, conhecida como Lei Sarney).
De 1990 a 1991, o Governo Federal, sob a Presidência de Fernando Collor de
27
Mello, pouco fez para fortalecer e fomentar a área cultural, o que acabou enfraquecendo
ainda mais o Ministério e, por consequência, a Lei Sarney foi revogada. Em 23 dezembro
de 1991, este mesmo governo promulgou a Lei 8.313, que instituiu o Programa Nacional
de Apoio à Cultura. Esta lei, que ficou conhecida como Lei Rouanet, também se baseava
na renúncia fiscal para injetar recursos no campo cultural. No Governo de Itamar Franco,
foi “recriada” a FUNARTE (Fundação Nacional das Artes). A criação da FUNARTE data
de 1975, ainda durante o regime militar; porém, em março de 1990, ao assumir o governo,
o então presidente Fernando Collor de Mello extinguiu a FUNARTE e criou o IBAC
(Instituto Brasileiro de Arte e Cultura). Esta instituição, em 1994, durante o governo de
Itamar Franco, passou a ser chamada novamente pela sigla FUNARTE. Também no
governo Itamar Franco, foi criada a Lei de Incentivo específica para o Audiovisual.
Ficou claro, nessas primeiras seis décadas de tentativas de pensar e aplicar as
ações para a organização de uma possível política pública, o quão essa área – como
muitas outras áreas de interesse da atuação estatal – fica à mercê de cada gestão
governamental. Esse contexto mostra o quanto a cultura, com a criação, desmanche,
extinção e renomeação de suas instituições e agentes públicos sempre sofreu com um
pensamento estratégico para o setor que não ultrapassavam suas ações para além de
interesses partidários e de jogos de poder, uma vez que pouco se pensava na
continuidade de programas e instituições desenvolvidos em gestões anteriores.
Contudo, foi nos dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso,
período que compreendeu de 1995 a 1998 e de 1999 a 2002, que essa forma de
distribuição de recurso público (através de lei de incentivo) ganhou mais força e o Estado
delegou à iniciativa privada o poder de decisão sobre o destino da verba pública. A
28
distribuição dos recursos públicos era feita pelos departamentos de marketing das
grandes empresas, que passaram a utilizar a lei como um instrumento para a
implementação do seu marketing cultural.
A Lei Rouanet funciona da seguinte forma: o proponente apresenta uma proposta
cultural ao Ministério da Cultura (MinC) e, caso esta seja aprovada, é autorizado a captar
recursos junto a pessoas físicas pagadoras de Imposto de Renda (IR) ou empresas
tributadas com base no lucro real, visando à execução do projeto. Ou seja, as grandes
empresas, que são as principais utilizadoras deste mecanismo, utilizam a verba pública
dos seus Impostos de Renda para realizar patrocínios culturais. Sendo assim, são os
departamentos de marketing dessas empresas que elegem quais projetos são
merecedores de receber o montante financeiro destinado pelo Governo Federal para a
área cultural, através deste mecanismo de fomento, de acordo com o público alvo e perfil
de atuação de cada empresa, que, obviamente, tem suas marcas atreladas aos projetos
culturais que patrocinam.
Com o fortalecimento da Lei Rouanet, o Estado se isentou do seu papel de
propositor de políticas culturais, o que acabou por enfraquecer ainda mais o Ministério da
Cultura. Este foi o panorama encontrado pelo Ministro Gilberto Gil, quando do início do
Governo do Presidente Lula. Este panorama sofreu uma sensível mudança quando do
enfoque dado à dimensão antropológica da cultura, por parte desta nova gestão.
Esse conceito amplo acrescentou que as ações do Ministério da Cultura seriam
compreendidas como exercícios de antropologia aplicada e que, mesmo com a ressalva
de que não cabe ao Estado fazer cultura, afirmou que o acesso à cultura é um direito
básico de cidadania e que, ao Estado, cabe retomar a sua função específica e inevitável,
29
baseada na compreensão de que formular políticas públicas para a cultura é, também,
produzir cultura.
Neste sentido, seguirei apresentando alguns aspectos importantes da gestão de Gil
no Minc no próximo subcapítulo.
1.3 – POLÍTICAS CULTURAIS: DEVERES E RESPONSABILIDADES
COMPARTILHADAS.
Para apresentar o entendimento de política cultural, proponho, como recorte inicial,
a definição dada pelo pesquisador da área, Teixeira Coelho10 (1997, p.293), como sendo
um "programa de intervenções realizadas pelo Estado, por instituições civis, entidades
privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais
da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas". Tal
perspectiva já nos aponta para as políticas públicas para a Cultura como não sendo
exclusivamente de responsabilidade do poder público.
É, sobretudo neste sentido, que compartilho a definição proposta por Coelho. Não
podemos supor que a responsabilidade quanto à proposição e implementação das
políticas públicas para a Cultura – e no contexto que nos interessa, para a Dança – seja
de exclusiva responsabilidade do Estado, através de suas instituições e seus agentes. A
sociedade civil tem grande poder de contribuição para a criação de estratégias mais
10 Teixeira Coelho é museólogo, acadêmico e professor universitário autor do livro “Dicionário Crítico da Política Cultural” (1999).
30
eficazes para o desenvolvimento de políticas que atendam suas metas e objetivos.
Enfoque também defendido pela pesquisadora e professora Lúcia Matos11, conforme
citação abaixo:
[...] Não dá mais para entender políticas públicas como atos de intervenção apenas do Estado; isso tem que ser cada vez mais descentralizado, proposto por diferentes grupos sociais e instituições, o que poderá contribuir para a construção de políticas públicas mais descentralizadas e polifônicas.(MATOS, 2013, p. 18)
Esta perspectiva de corresponsabilidade entre Estado e sociedade civil também é
partilhada por Isaura Botelho:
O Estado fomentador é aquele que vê com clareza os problemas que afetam a área cultural em todos os elos da cadeia de criação – produção, difusão, consumo – e sabe se posicionar, dividir responsabilidades com potenciais parceiros governamentais em todas as instâncias administrativas e, finalmente, conclamar a sociedade a assumir a sua parte. (BOTELHO, 2001, p.14)
Por conta do perfil institucionalizado, a abordagem sociológica acaba se tornando o
centro das políticas culturais, já que, dentro desse contexto, as ações em políticas
públicas são mais visíveis e exequíveis de aplicação, uma vez que se trata de uma
matéria passível de previsão e diagnósticos mais mensuráveis, como, por exemplo, dados
quantitativos quanto ao número de peças de dança ou teatro, exposições, shows
musicais, público atingido etc. O grande problema em relação à proposição de políticas
públicas norteadas apenas por essa abordagem de cultura decorre da possível restrição e
pouca complexidade das suas atuações, confinando-se à cultura “produzida”.
11 Pesquisadora, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em dança da Universidade Federal da Bahia e Diretori de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (2007 – 2009).
31
A dimensão antropológica que, por sua vez, considera a produção de cultura a
partir da interação social dos indivíduos, a partir do que o ser humano elabora e produz,
simbolicamente e materialmente, acaba por tornar mais complexa a execução de uma
política cultural. Já que sua matéria é tudo que é construído por determinada sociedade,
seja enquanto bem simbólico ou material, uma política cultural, por essa perspectiva de
cultura, passa por ações que não só seriam destinadas ao atendimento das demandas do
fazer artístico, mas, também, a outros aspectos sociais e econômicos, como por exemplo,
a saúde, o trabalho, a mobilidade urbana, demais aspectos que dizem respeito à
qualidade de vida de determinado grupo.
A questão mais importante da dimensão antropológica é o fato dela passar também
por outras áreas de ação do governo. Ao pensarmos cultura pelo prisma antropológico,
precisamos relacioná-la a outras esferas de responsabilidade do Estado, independente
dessas áreas terem sua contraface cultural. É por isso que as políticas culturais sozinhas
não conseguem atingir a complexidade do plano da cultura no cotidiano; são de fato
políticas transversais que amparam este tecido tornando-o lógico e possível. Isso se dá
porque o entendimento de cultura passa por uma questão de qualidade de vida; neste
sentido, as políticas culturais precisam vir amalgamadas pelas ações ligadas ao
transporte, saúde, trabalho, infraestrutura e demais campos de atuação do Estado, para
que tenham alguma eficácia.
Outro fator marcante da abordagem antropológica diz respeito ao seu perfil
democrático, o qual considera todos os indivíduos como produtores de cultura.
Embora uma das principais limitações políticas culturais seja o fato de nunca alcançarem, por si mesmas, a cultura em sua dimensão antropológica, esta dimensão é, no entanto,
32
geralmente eleita como a mais nobre, já que é identificada como a mais democrática, em que todos são produtores de cultura, pois ela é a expressão dos sentidos gerados interativamente pelos indivíduos, funcionando como reguladora dessas relações e como base da ordem social. Por isso mesmo, ela acaba sendo privilegiada pelo discurso político, principalmente nos países do Terceiro Mundo, onde os problemas sociais são gritantes e suas economias dependentes. (BOTELHO, 2001, p. 7)
Por mais que meu objeto de estudo, que é o fazer artístico-político, se aproxime
mais da dimensão sociológica, por se tratar de criação artística, acredito que o
entendimento de cultura, enquanto produto da interação social dos indivíduos, seja mais
potente porque, além de não excluir a produção artística “sistematizada”, também
contempla aspectos identitários dos variados grupos sociais, por exemplo.
Foi com um discurso balizado pela dimensão antropológica da cultura que, Gilberto
Gil, ainda no seu primeiro ano, no comando do Ministério da Cultura, posicionou o
Governo Federal como principal responsável pela proposição de uma efetiva política
pública para a Cultura e o faz retomar sua função perante a sociedade:
[...]Assim compreendida, a cultura se impõe, desde logo, no âmbito dos deveres estatais. É um espaço onde o Estado deve intervir. Não segundo a velha cartilha estatizante, mas mais distante ainda do modelo neoliberal que faliu. Vemos o Governo como um estimulador da produção cultural. Mas também, através do MinC, como formulador e executor de políticas públicas e de projetos para a cultura. Ou seja: pensamos o Ministério da Cultura, no contexto em que o Estado começa a retomar o seu papel na sociedade brasileira. (GIL, 2003, p. 10)
Desde o início da gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, dentro do primeiro
33
mandato do presidente Lula, o Governo Federal, através de suas instituições
encarregadas de pensar e implementar uma política para a cultura, tem adotado o que
vem sendo chamado pelos agentes culturais de “política de editais” como forma de
fomento e dinamização democrática e transparente, a curto prazo, dos recursos públicos.
Vale salientar que os editais não são políticas públicas, mas sim instrumentos de
realização dessas políticas. Neste ponto, encontramos o que vai ser desenvolvido no
segundo capítulo, onde refletiremos sobre essa dita “política de editais” por meio de um
fazer artístico, uma obra.
Para além do fazer artístico, os editais não foram adotados exclusivamente para a
distribuição de recursos ligados à produção e difusão de ações ligadas estritamente a
alguma linguagem artística como a dança, ou o teatro, por exemplo. Talvez a ação mais
contundente do Ministério da Cultura, na citada gestão, esteja ligada aos editais dos
Pontos de Cultura12. Criado em 2004, este edital visava contemplar os Pontos que
desenvolvem ações de impacto sociocultural em suas comunidades, o que não só
dissemina as práticas culturais, como também aproxima o público de um mundo que até
pouco tempo atrás era privilégio de poucos. A valorização dos Pontos de Cultura
descentralizou a política cultural em favor de diversas comunidades e grupos sociais, os
quais passaram a ser representados e incluídos de certa forma por esses espaços.
O modelo de gestão da cultura e política cultural, adotado pelo Governo Federal,
desde 2003, só foi adotado no Governo da Bahia, em 2007, quando houve o alinhamento
12 Os Pontos de Cultura são um Programa do Governo Federal que promove o estímulo às iniciativas culturais da sociedade civil já existentes, por meio da consecução de convênios celebrados após a realização de chamada pública.
34
partidário da gestão local. Naquele ano, com a eleição de Jaques Wagner como
Governador do Estado da Bahia, a esfera estadual passou a ser comandada pelo mesmo
partido político que atuava na esfera federal, o Partido dos Trabalhadores (PT). Este
alinhamento partidário introduziu a Bahia neste contexto das políticas públicas,
executadas prioritariamente através de editais.
No segundo capítulo, será apresentada a gestão cultural no contexto baiano. Como
se deu esse alinhamento com o governo federal, no âmbito cultural e de que forma a
política pública para a cultura passou a ser implementada.
35
CAPÍTULO 2
CONTEXTO BAHIA
Neste segundo capítulo, abordarei o contexto da gestão da cultura na Bahia. Nele,
serão apresentados alguns aspectos da gestão política cultural adotada pelo Governo da
Bahia, através da Secretaria de Cultura, desde o ano da sua criação em 2007, até o ano
de 2010, quando se encerrou a gestão que tinha à frente o então secretário Márcio
Meirelles. Serão observados também os dispositivos de fomento mais aplicados no
período e principalmente os editais, que passaram a ser as ferramentas mais utilizadas na
distribuição de recursos para apoios a projetos culturais.
Para colaborar e problematizar as observações propostas por mim, darei ouvido à
fala de artistas da dança e gestores do estado, que viveram os dois momentos – pré e
pós 2007 – a fim de entender como eles percebiam esses contextos tão diferentes. Para
que se possa ter um melhor parâmetro para a observação da gestão (2007/2010) que é o
foco desta pesquisa, farei uma breve introdução sobre qual era o modelo de gestão
adotado pelo Governo da Bahia no mandato imediatamente anterior ao que se iniciou em
2007.
Serão observados também os dispositivos de fomento mais aplicados na ação da
Secretaria de Cultura de 2007 a 2010 e, em especial, com atenção aos editais, que
passaram a ser as ferramentas mais utilizadas na distribuição de recursos para os apoios
a projetos culturais, nas mais diversas linguagens, inclusive para a dança.
36
2.1 – BAHIA: ONCE UPON A TIME...
Como o objetivo deste subcapítulo é apresentar de que forma eram realizadas as
ações de fomento, pelo Governo da Bahia, observaremos apenas o ano de 2006, que é o
ano imediatamente anterior à mudança da gestão.
Até o ano de 2006, a criação do pensamento para a política pública, não contava
com a participação da classe artística, enquanto sujeitos agentes. Nenhuma consulta
prévia, para que fossem apresentadas demandas, sugestões, ou qualquer outra forma da
participação da sociedade civil era adotada. Todas as decisões sobre os caminhos da
política pública para a cultura eram tomadas dentro dos gabinetes do próprio governo do
estado. De acordo com a dançarina e coreógrafa Clara Trigo13, “não havia diálogo,
sondagem ou qualquer tipo de mapeamento de demandas com a classe artística”.
Como em 2006 não existia uma secretaria de governo exclusiva, o pensamento
para a cultura era formado dentro do contexto da Secretaria de Cultura e Turismo.
Durante todo o tempo em que a Cultura partilhava da mesma pasta do Turismo, ela foi
gerida por Paulo Gaudenzi, período que durou os três mandatos (1995 a 2006), do
governo do extinto PFL (Partido da Frente Liberal), atual Partido Democratas.
Sobre a união da cultura e turismo em uma única pasta, observa-se que a fusão
das áreas conferiu especificidade ao modo de gestão da cultura e possibilitou o
atrelamento do cumprimento de suas políticas culturais a uma estratégia que lança mão 13 Clara Trigo é Mestra em Artes Cênicas – PPGAC – UFBA, Graduada em Licenciatura e Bacharelado em Dança pela Escola de Dança – UFBA; dançarina, coreógrafa e professora; Inventora do Flymoon®, equipamento e sistema de movimento; dirige e produz o programa independente sobre dança SUA DANÇA, exibido online e na TVE-Ba.
37
de um discurso que reinventa a identidade baiana, tentando, desse modo, promover a
modernização cultural e turística do Estado com o propósito de transformar a Bahia em
lugar identificado ao consumo cultural, inserido-a, assim, no mercado global de bens
simbólicos.
A Cultura, antes de ser pensada como um fator de melhoria e transformação social,
foi sempre colocada como uma área predominantemente econômica para o fortalecimento
do Turismo. Rubim14 (2007) esclarece que, durante todo o período em que a cultura
esteve subordinada aos interesses do turismo, algumas graves distorções ocorreram, a
exemplo do desconhecimento de temas atuais como “cultural digital, economia criativa,
redes culturais, estudos da cultura, formação de organizadores da cultura e sistema
nacional de cultura”, trazendo, assim, grande prejuízo para a atualização necessária da
cultura na Bahia. O autor também critica a quebra das relações plurais e democráticas
com a diversidade da sociedade na Bahia, além da imposição de uma identidade única
para o Estado.
De acordo com relatórios da SECULT, no ano de 2006, a Secretaria de Cultura e
Turismo, através da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), destinou um total
de R$ 3.864.732,00 para a área da dança. Neste montante está incluída a verba para a
manutenção do Balé do Teatro Castro Alves, que levava aproximadamente 65,6% deste
total; a da Escola de Dança da FUNCEB, que entre proventos e reformas ficava com, com
aproximadamente, 21,8%. Desta forma, apenas 12,6% do orçamento destinado à dança
14 Albino Canelas Rubim é formado em Comunicação pela Universidade Federal da Bahia (1975) e em Medicina pela Escola Baiana de Medicina (1977), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (1979), doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1987) e pós-doutor em Políticas Culturais pela Universidade de Buenos Aires e Universidade San Martin (2006). Professor titular da Universidade Federal da Bahia; docente do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e do Programa de Artes Cênicas, ambos da UFBA. É o atual Secretário de Cultura da Bahia, com gestão iniciada em 2011.
38
pelo governo do estado eram reservados para a classe artística. Esta distribuição para a
classe era feita através de editais de montagem e circulação (R$ 197.000,00), Projeto
Quarta Que Dança (R$ 120.000,00), apoios diretos e intercâmbios (R$ 166.292,00).
(Fonte: Fundação Cultural do Estado da Bahia)
Uma constatação é que, do valor que era destinado à classe da dança, quase 35%
do montante ficavam destinados diretamente para os executores dos projetos, prática que
vulgarmente é conhecida como “apoio de balcão”. Esta forma de distribuição não atendia
critérios claros e transparentes e sempre criava um desconforto e descontentamento de
grande parcela da classe da dança, que não conseguia apoio financeiro para a realização
dos seus projetos. Sobre a gestão que finalizou em 2006, vejamos o que diz o dançarino
Edu O. 15 (2014):
O que acontecia bastante era o “apoio de balcão” que acabava sendo privilégio de conhecidos, amigos ou artistas renomados que poderiam dar maior visibilidade ao apoio do governo... Lembro que criei Judite em 2006, sem nenhum apoio, sem possibilidade de patrocínio por não ser um artista daqueles que se favoreciam com o “apoio de balcão.
Podemos ver, de acordo com os dados acima, que embora a prática de distribuição
de recursos através de editais tenha ganhado força, no âmbito estadual, a partir de 2007,
por conta de este já ser um formato adotado pelo governo federal com início em 2003, a
Fundação Cultural do Estado da Bahia, ainda que de forma bem tímida e sem
continuidade, começara a adotar os editais como forma de recurso antes do início da
gestão petista. Para Clara Trigo, “esses editais eram esperados uma vez por ano, mas
15 Mestre em Dança, pela Universidade Federal da Bahia, Edu O. também é Edu O. é dançarino, artista plástico e arteterapeuta.
39
não podíamos contar com essa regularidade. Podiam ser lançados ou não, sem maiores
explicações”. Este discurso é endossado por outros artistas, como Jorge Alencar16(2014):
Na gestão anterior ao ano de 2007, em geral, as ações voltadas para dança eram escassas, pontuais e descontinuadas, a exemplo de raros editais voltados ao apoio de montagens coreográficas e à circulação de obras artísticas. Como exceção, vale ressaltar a existência do projeto Quarta que Dança gerido pelo Estado da Bahia, enquanto uma das poucas iniciativas continuadas para o campo da dança, que há alguns anos vem criando espaços de apresentação e visibilidade para os artistas locais.
Além dos mecanismos já citados, havia o patrocínio através do Fazcultura, que foi
estabelecido pela Lei 7.015 de 09/12/1996 e que tinha por objetivo promover atividades
culturais através da parceria entre o poder público e a iniciativa privada. O Fazcultura
visava estabelecer relações entre o Estado e a iniciativa privada, usando o mecanismo de
renúncia fiscal, que prevê o abatimento de até 5% do ICMS, no limite de até 80% do valor
total do projeto cultural. Para receber o abatimento, é necessário que a empresa
patrocinadora contribua com recursos próprios equivalentes a, no mínimo, 20% dos
recursos totais transferidos ao produtor. Ao ter seu projeto aprovado pela Comissão
Gerenciadora do programa, o proponente deve buscar uma empresa patrocinadora que
receberá abatimento no imposto. Ainda que sendo uma lógica neoliberal perversa, por
colocar a distribuição da verba pública sob a responsabilidade dos departamentos de
marketings das empresas, a dança pouco conseguia captar recursos através do
16 Graduado em Comunicação Social (UCSAL) e em Dança (UFBA) com Mestrado em Artes Cênicas (UFBA) e um intenso trajeto como criador, curador e educador. Jorge Alencar também é membro fundador do Dimenti. (Dimenti foi um grupo artístico fundado em 1998, que funcionou como grupo até 2012 e desde então adotou um formato que se aproxima mais com um ambiente de artistas associados, do qual faço parte desde a fundação. O Dimenti também é uma produtora cultural.
40
Fazcultura. À exceção do projeto Ateliê de Coreógrafos Brasileiros17, quase nenhum
projeto de dança obteve verba oriunda de lei de incentivo. Os projetos comumente
aprovados eram de outras áreas, como música e teatro.
Foi neste contexto de pouco, ou nenhum, diálogo entre os agentes governamentais
e a classe artística e sociedade civil, quando a distribuição de recurso, em muitos
momentos, não atendia a critérios claros e também não contava com a transparência
devida, que se iniciou a transição de governo e do modo de pensar a política pública para
a cultura.
2.2 – GESTÃO SECULT-BA 2007 A 2010
Com a eleição, para o Governo da Bahia, do então candidato do Partido dos
Trabalhadores, Jacques Wagner, o Governo do Estado teve seu alinhamento partidário
com o Governo Federal, que já estava no segundo mandato do então presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, ou seja, a partir de 2007.
Na fase de transição entre os governos de Paulo Souto e Jacques Wagner, a
Secretaria de Cultura, a pedido do governador eleito, foi separada do Turismo, através da
Lei 10.549 de 28 de dezembro de 2006. Com a mudança no governo do estado em 2007,
Márcio Meirelles assume a pasta da cultura e cinco linhas de ação são definidas para
17 De 2002 a 2006 o Ateliê de Coreógrafos Brasileiros consolidou-se como uma importante iniciativa cultural não só na Bahia, mas em âmbito nacional. O projeto previa anualmente a estreia de cinco espetáculos de dança contemporânea.
41
guiar as atividades: “diversidade, desenvolvimento, descentralização, democratização e
diálogo e transparência”. Segundo informações do site da secretaria18, são estes
conceitos que vão permear todas as ações do órgão, além de seus programas e políticas.
Tomando como princípio a ideia de descentralizar as ações culturais e
democratizar o processo de planejamento, execução e avaliação dos programas e
projetos culturais, o governo criou o Programa Integrado de Desenvolvimento Territorial
da Cultura, que tem como objetivo promover o desenvolvimento sociocultural dos 26
territórios baianos, de maneira integrada, através da participação das comunidades
beneficiadas e da articulação dos poderes públicos com a sociedade civil organizada e a
iniciativa privada. Rubim (2007) lembra, ainda, que esta lógica de realizar um diálogo com
a sociedade para a aplicação das políticas culturais é uma iniciativa que está diretamente
sintonizada com o governo federal, numa tentativa de enfrentar o autoritarismo e elitismo,
presentes na política cultural brasileira durante muitos anos.
O programa mostra diversas peculiaridades; primeiro, porque reconhece a
diversidade cultural do Estado e depois, porque não tenta manter a linha dos governos
anteriores, quando a cultura baiana era concebida de maneira singular:
A cara da Bahia não pode ser apenas a cara do Recôncavo. A cara da Bahia tem que ser a cara da Bahia inteira: do Recôncavo, do Oeste, do São Francisco, do Sertão, do Sul, da Chapada e de todas as outras regiões do estado. Temos que assumir “ao mesmo tempo agora” toda diversidade baiana, as diferenças que, combinadas e recombinadas, misturadas, mestiças, fazem do povo baiano o que ele é. (http://www.cultura.ba.gov.br/linhasdeacao/diversidade)
18 http://www.cultura.ba.gov.br/
42
A configuração deste novo contexto político no Estado promoveu uma mudança
significativa na forma de conceber e gerir a administração pública na Bahia. Pela primeira
vez, na esfera estadual, a Cultura, entendida como toda criação simbólica do ser humano,
passou a ser um valor em si e, por consequência, demandou a criação de uma secretaria
específica para a área.
Até a criação da Secretaria de Cultura, na estrutura administrativa do Governo do
Estado da Bahia, a cultura ainda era vista, predominantemente, como um conjunto de
espetáculos ou eventos artísticos e instrumento de atração turística por meio da venda de
uma imagem específica da Bahia.
Pensar a Cultura, também com a sua dimensão antropológica, acarretou mudanças
significativas no setor cultural do Estado. Ao tratar a Cultura como essencial ao
desenvolvimento e como uma necessidade básica, a SECULT foi criada, considerando a
cultura como um elemento estratégico para o desenvolvimento da Bahia, pela adoção de
um novo paradigma na implementação de políticas públicas para a área.
De acordo com o Relatório de Atividades da SECULT, para o período de 2007 a
2009:
Este novo paradigma, por um lado, baseia-se numa concepção contemporânea da cultura, entendida como construção histórica multidimensional e transformadora, abarcando o simbólico, o territorial, o econômico e o fortalecimento da cidadania e, por outro, numa nova prática de gestão e de atuação pautada na descentralização e na participação. (RELATÓRIO…, 2010)
Em pronunciamento, na II Conferência Estadual de Cultura da Bahia, em Feira de
43
Santana/ BA, em outubro de 2007, o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, fala sobre a
importância da criação da SECULT no Estado:
[…]a criação da Secretaria Estadual de Cultura é uma demonstração inequívoca da decisão de dar à cultura o protagonismo que ela tem que ter na construção de um processo de desenvolvimento com qualidade de vida, com promoção da felicidade pública, com a valorização das identidades, da imensa diversidade cultural que existe aqui nessa nossa terra”. (RELATÓRIO…, 2010)
Desde a sua criação, a SECULT abriu canais de diálogo com a sociedade civil e
teve sua estrutura pensada para fortalecer os organismos estaduais, que eram
considerados prioritários para o Sistema Estadual de Cultura na condução da política
cultural. Talvez este tenha sido uma das mudanças mais importantes. Segundo o
dançarino e coreógrafo Edu O.(2014), “um dos pontos principais...foi a aproximação entre
Estado e a classe de dança, com diálogos e escuta para as nossas demandas.
O diálogo entre a classe artística e o governo do estado para a construção de um
pensamento para a gestão da cultura contribuiu também para uma mudança de postura
do próprio artista, que passou a perceber a sua importância enquanto agente político,
como mostra o depoimento de Clara Trigo (2014):
Para mim, pessoalmente, a partir das mudanças propostas pela gestão cultural em 2007, iniciou-se a construção da minha consciência sobre a importância da cultura no desenvolvimento social, na produção de riquezas, na construção simbólica de um povo e, a partir desse horizonte que foi se abrindo pela possibilidade de participar das decisões e responsabilizar-me pelas mudanças desejadas, fui desenvolvendo uma consciência cidadã antes não exercitada.
44
Essa mudança de postura começou a ser engrenada a partir de uma nova forma de
organização da SECULT. A seguir, apresentarei alguns gráficos, dados e reflexões acerca
da secretaria que foi criada a partir do seguinte organograma:
Figura 01: Organograma SecultBA
Fonte: Secretaria da Cultura da Bahia
O Conselho Estadual de Cultura (CEC), a Superintendência de Cultura
(SUDECULT) e a Superintendência de Promoção Cultural (SUPROCULT) foram
pensados para serem órgãos articuladores da formulação de políticas gerais, juntamente
com o Gabinete do Secretário e a Diretoria Geral. O Escritório de Referência do Centro
Antigo de Salvador (ERCAS) foi criado para a coordenar e articular a estratégia de
desenvolvimento sustentável desta região da capital. A Fundação Pedro Calmon – Centro
de Memória da Bahia (FPC) tem a responsabilidade de gerir o sistema de bibliotecas e o
45
sistema de arquivos públicos e executar a política referente a livros, leitura e literatura. O
Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) tem por função proteger,
avaliar e manter o patrimônio material e imaterial da Bahia, dinamizar as unidades
museológicas do estado e consolidar o Sistema Estadual de Museus. Já a Fundação
Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) e o Instituto de Rádiodifusão Educativa da Bahia
(IRDEB) têm como missão criar e implementar políticas e programas públicos de Cultura
que promovam a formação, a produção, a pesquisa, a difusão e a memória das artes em
suas linguagens, sendo que o IRDEB delibera apenas sobre a linguagem audiovisual.
(RELATÓRIO…, 2010).
Como a intenção da SECULT era retomar o papel do estado enquanto propositor de
uma política cultural, assim como fez o Ministério da Cultura em nível nacional, foi natural
a diminuição da força e representatividade do Fazcultura na distribuição de recursos a
projetos culturais. A lei de incentivo, que também é uma importante modalidade de
financiamento a projetos artístico-culturais, passa a ter um caráter complementar, pois é
orientada por interesses de mercado e de marketing cultural.
Isso fica muito claro, quando observamos os gráficos que apontam os
investimentos em projetos artístico-culturais utilizados através da lei de incentivo fiscal do
governo do estado. O gráfico a seguir apresenta o panorama quantitativo, do número de
projetos inscritos, aprovados e patrocinados, através do Fazcultura, do ano de 2005 a
2010.
46
Gráfico 01
Fonte: Secretaria de Cultura da Bahia
Este segundo gráfico apresenta o volume total investido em projetos culturais,
através do Fazcultura, de 2005 a 2010.
Gráfico 02
Fonte: Secretaria de Cultura da Bahia
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O principal meio de distribuição de recursos para projetos artístico-culturais por
parte da SECULT passou a ser o Fundo de Cultura da Bahia, o qual, embora tivesse sido
criado em 2005, era utilizado apenas para patrocinar projetos, do próprio governo do
estado, que eram ligados à cultura, ou também para repasses diretos, caracterizando a
“política de balcão”. Em 2007, os critérios para a seleção de projetos no Fundo de Cultura
foram reformulados, de modo a garantir uma maior democratização ao acesso, bem como
a interiorização dos recursos, e não ficarem concentrados na capital (Salvador). Essa
reformulação do Fundo de Cultura resultou em um impacto profundo na quantidade de
projetos aprovados e também no volume de recursos distribuídos.
O gráfico abaixo apresenta um panorama do número de projetos inscritos e
apoiados, através do Fundo de Cultura, de 2005 (ano da sua criação), até 2010.
Gráfico 03
Fonte: Secretaria da Cultura da Bahia
48
O próximo gráfico vai apresentar o investimento e o orçamento disponível pelo
Fundo de Cultura, de 2005 a 2010, bem como um panorama dos editais lançados e das
áreas apoiadas neste período.
Gráfico 04
Fonte: Secretaria da Cultura da Bahia
Nestes primeiros quatro anos (2007-2010) de existência e gestão das políticas
públicas para a cultura da Bahia por parte da SECULT, a FUNCEB teve importante papel,
ao alinhar as diretrizes da secretaria com as do Ministério da Cultura, e adotou os editais
públicos como principais instrumentos de fomento para as linguagens artísticas. Em 2008,
os editais passaram a ser geridos, conjuntamente, pela FUNCEB e pelo Fundo de Cultura
da Bahia (FCBA).
2.3 – OS EDITAIS E A CRIAÇÃO ARTÍSTICA
49
Certamente, nestes quatro anos em alinhamento com as políticas do Ministério da
Cultura (Minc), os editais representam o principal instrumento de fomento a artistas e
grupos artístico-culturais da Bahia. Neste período (2007 a 2010), apenas através da
FUNCEB e do Fundo de Cultura da Bahia, foram lançados 72 editais, que distribuíram
mais de vinte milhões de reais. Além de serem um instrumento de democratização e
transparência na destinação destes recursos, por proporcionarem aos interessados as
mesmas condições de acesso e critérios para cada edital, a SECULT consegue, com
eles, garantir uma maior descentralização da distribuição dos projetos aprovados em
todos os territórios de identidade do estado. Desta forma, mais de 40% dos projetos
contemplados foram de proponentes residentes no interior do estado e áreas pouco
contempladas foram incluídas, como as manifestações de cultura popular, cultura
indígena e cultura digital.
Outro mecanismo adotado, via edital, pela SECULT, através da FUNCEB, foi o
Calendário de Apoio a Projetos Culturais. Esta ação priorizava projetos do interior do
estado, em áreas de maior risco social, para atividades de formação. Houve também
editais usados para projetos de ocupação de espaços culturais de FUNCEB, através de
cessão de pautas gratuitas, incentivos a espetáculos infanto-juvenis e residências
artísticas temporárias.
No gráfico abaixo, publicado no Relatório de Atividades da FUNCEB 2009/2010, é
apresentado o montante financeiro distribuído pela instituição, em parceria com o Fundo
de Cultura da Bahia, através de editais.
50
Gráfico 05
Fonte: Secretaria da Cultura da Bahia
De acordo com o gráfico acima, podemos acompanhar a distribuição de recurso
através de editais, no período de 2007 a 2010. O primeiro e no último ano de mandato, ou
seja, 2007 e 2010, respectivamente, foram os anos que apresentaram os menores
investimentos, principalmente o ano de 2007, quando o orçamento do estado ainda foi
cumprido, de acordo com o planejamento do governo anterior.
Do montante de recursos que foram repassados através de editais, a distribuição
entre as linguagens teve a seguinte proporção.
51
Gráfico 06
Fonte: Secretaria da Cultura da Bahia
Para a dança, foram disponibilizados editais de apoio à pesquisa e projetos
artísticos-educativos em dança, edital de apoio a grupos artísticos, edital do Quarta Que
Dança19 e os dois principais: edital de apoio à montagem de espetáculos de dança (Edital
Yanka Rudzka) e edital de apoio à circulação de espetáculos de dança (Edital Ninho
Reis). Muito consequentemente, entre 2007 e 2010, por conta dessa escuta das
demandas da classe artística, a linguagem da dança ficou como a segunda linguagem
artística a receber apoio financeiro por parte do estado, nestes quatro primeiros anos,
ficando apenas atrás da linguagem de teatro. No primeiro biênio (2007/2008), em
especial, a dança liderou, enquanto linguagem, o recebimento de recursos. A adoção dos
19 Constitui objeto deste edital a seleção de propostas para compor a programação do Projeto Quarta que Dança, que reúne espetáculos de dança, sempre às quartas-feiras, em espaços culturais diversos. No ano de 2013, O projeto chegou à sua décima quinta edição.
52
editais como mecanismo de distribuição de recursos públicos para a cultura foi um ponto
positivo desta gestão, como destaca Jorge Alencar (2014):
No citado período foram criados dispositivos mais claros de fomento à produção artística, ampliando a natureza dos projetos apoiados até então e aumentando significativamente o volume de verba investido nas ações culturais.
Para que uma política cultural tenha, de fato, uma pertinência política, é
imprescindível a participação da sociedade civil, entidades privadas ou grupos
comunitários de forma que possa garantir a escuta, por parte do governo, das demandas
e do setor artístico-cultural. Ainda não existem dados (qualitativos e quantitativos)
suficientes que apresentem um diagnóstico sobre todos os elos da cadeia produtiva da
dança. Neste sentido, a participação de representações como o Fórum Nacional de
Dança, o Colegiado Setorial de Dança e demais agrupamentos que tenham como
propósito refletir e fazer a representação da classe da dança são de suma importância
para a contribuição de uma política para a área.
Foi inspirado por este contexto, sob as normas e regras que regem os projetos que
contam com o apoio financeiro do Estado através de editais, que foi criada a peça “Edital”.
“Edital” foi criado dentro do projeto “CADA”, contemplado pelo Edital 03/2010 – Yanka
Rudska, na Categoria 4 (prêmios de até R$ 150.000,00) e que teve por proponente a
Dimenti Produções Culturais Ltda, empresa e ambiente de criação no qual desenvolvo os
meus fazeres artísticos e de produção cultural. Sobre “Edital” e o seu contexto de criação,
farei uma análise e descrição no terceiro capítulo.
Para a dança especificamente, além de editais para a montagem e circulação de
53
espetáculos de dança, foi lançado também um edital inédito para a manutenção de
grupos artísticos, além do projeto Quarta Que Dança. É claro que nem todas as ações
que envolvem a política cultural da SECULT para a dança passam por editais, como por
exemplo, a Escola de Dança da FUNCEB e o Balé do Teatro Castro Alves, que são
instituições que, embora tenham tido suas atuações e dimensões reformuladas, são
ações contínuas que têm recursos próprios para o seu funcionamento.
É natural que essa mudança no perfil de ação por parte do governo do estado para
com a área artístico-cultural refletisse em mudança também no perfil do pensamento e na
forma de agir dos artistas. Apesar de acreditar que os editais tenham a seu favor aspectos
positivos quanto à democratização e clareza no acesso aos recursos públicos, a lógica
instaurada por eles constrange (aqui o constranger está aplicado no sentido de levar
alguém a fazer algo) a criação artística.
No Governo da Bahia, os editais estão sob a o aparato legal da Lei 9.433 de 2005,
conhecida como a Lei de licitação, que dispõe sobre as licitações e contratos
administrativos pertinentes a obras, serviços, compras, alienações e locações no âmbito
dos Poderes do Estado da Bahia. Ou seja, para que haja um controle legal por parte do
estado sobre os repasses, e execução dos recursos destinados à cultura, é aplicada a “lei
da licitação”. A lógica que rege o controle dos recursos destinados à cultura é a mesma
que rege a compra de materiais e insumos por parte do estado. Na prática, as imposições
que valem para o controle de R$ 100.000,00 destinados pelo estado para a compra de
papel higiênico são as mesmas que valem para a destinação de R$ 100.000,00 para a
execução de um projeto artístico de dança, por exemplo.
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A burocratização na execução dos recursos públicos é importante, à medida que
tenta prevenir a ingerência e estimular o correto emprego dos recursos; porém, outras
formas de controle precisam ser criadas de forma que atendam às especificidades de
projetos culturais. A necessidade de uma mensuração prévia na elaboração de projetos
culturais pode trazer limitações ao trabalho do artista, conforme destaca Jorge Alencar
(2014):
A criação artística tornou-se sinônimo de elaboração de projeto, com um nível de mensuração e previsibilidade que constrange, em muitos aspectos, o fluxo imprevisível de descobertas de um processo de criação. Isso atravessa o jeito como eu elaboro as minhas ideias artísticas iniciais, o jeito que eu desenvolvo a criação propriamente e o jeito que essa criação precisa condizer com as previsões de orçamento e cronograma que eu apontei em meu projeto.
Tal situação acaba por enquadrar a criação artística em um contexto que muitas
vezes prejudica o processo criativo, seja quanto à forma - como o tempo dispensado para
a sua execução, seja nas escolhas estéticas para a cena. Neste sentido, a adoção dos
editais como o principal instrumento de aplicação dos recursos públicos pode implicar na
restrição da liberdade de criação em um processo artístico, principalmente por conta da
adoção da “lei de licitação”, como aponta Edu O.(2014):
[...]consigo ver diferenças na criação entre Judite e O Corpo Perturbador, por exemplo. Se em Judite eu não tinha apoio nenhum, eu tinha maior liberdade no tempo para a criação e total liberdade para experimentar e errar. Já n’O Corpo Perturbador que foi produzido graças ao edital de montagem, tínhamos limitações na criação por causa da rigidez da prestação de contas que dificulta uma pesquisa mais aberta aos fluxos que vão surgindo no processo de criação. De certa forma, acho que ficamos reféns das notas fiscais que precisamos apresentar, mesmo se o que surge na criação solicita outro material, outra elaboração do que havia sido previsto. Sinto que não temos abertura para o erro que, ao meu ver, é tão necessário num processo criativo.
55
Neste sentido, estamos caminhando na direção em que um mecanismo de
aplicação de uma política pública, no caso os editais, está atuando de forma decisiva na
construção dramatúrgica das criações em dança. Uma vez inserido neste contexto, o
artista da dança, durante o seu processo criativo, precisa levar em consideração que
haverá uma restrição quanto aos materiais que poderão ser utilizados em cena, bem
como a sua forma de aquisição. Assim, os editais estão pautando a construção
dramatúrgica, por serem critérios no processo de tomada de decisão para a escolha dos
materiais que constituem a cena.
Partilho portanto, as reflexões propostas por Rosa Hercoles20, quando a
pesquisadora, em sua tese de doutorado, elenca alguns “Tópicos da Dramaturgia”, para a
partir deles, pensarmos a construção dramatúrgica na dança. Neste sentido, eu destaco
dois desses tópicos:
• A dramaturgia na dança se relaciona à instância da composição coreográfica que cuida das relações que se estabelecem durante o processo de construção e organização da cena, sendo que suas propriedades constitutivas se encontram inseparavelmente conectadas e não simplesmente agrupadas. Para isso, se faz necessária tanto a definição de um campo temático específico quanto a busca de precisão em relação ao objeto a ser investigado. • Identificar a dramaturgia em uma peça coreográfica implica na discriminação do tipo de pensamento que está sendo implementado tanto no movimento quanto no ambiente cênico, observando-se quais relações que foram estabelecidas entre todos os seus materiais constitutivos. (HERCOLES, 2005, p. 126-127)
20Eutonista e dramaturgista. Professora do Curso de Comunicação nas Artes do Corpo – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutora em Comunicação e Semiótica por esta mesma instituição.
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Outra situação que a hegemonia dos editais está causando é uma padronização na
construção e escritas de projetos artísticos que pleiteiem recursos públicos. Como, para
ter o acesso ao recurso, é necessário ter o projeto aprovado, os artistas estão
caminhando para a especialização de uma forma específica de apresentação de projeto.
Segundo Jorge Alencar (2014), com a “reificação do formato edital passou a existir um
jeito de produzir pensamento sobre arte muito atrelado ao tipo de demanda discursiva
operada pelos formulários dos editais”.
Este entendimento do que passou a se constituir uma forma de escrita, logo, de
acesso aos recursos através de editais, também é partilhada pelo diretor e coreógrafo
Sérgio Andrade21(2014):
Aprendi muito cedo também que edital é uma linguagem, tem seus rituais performativos de eficácia. Aqueles que pretendem participar do Edital têm que, antes mesmo de desejar participar, estar sob tais critérios de eficácia. É preciso saber escrever projeto, é preciso poder saber escrever... ter o que inscrever, inclusive.
Mesmo em maior quantidade, os editais na Bahia ainda estão mais ligados a ações
pontuais e menos a ações continuadas, com exceção dos editais de manutenção a
grupos e companhias e, mais recentemente, editais específicos voltados a projetos
calendarizados.
21Sérgio Andrade tem experiências como diretor, criador, bailarino, produtor e pesquisador em Dança e Performance. É Professor Assistente do Departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cursos de Bacharelado em Teoria da Dança, Licenciatura em Dança e Bacharelado em Dança. Doutorando em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da PUC-Rio.
57
CAPÍTULO 3
A DANÇA DA BUROCRACIA
A dança há muito vem flertando com o seu próprio contexto de subvenção. Ela tem
tratado, como matéria de criação, aspectos relacionados à sua gestão e produção
executiva. Além das possíveis leituras antropológicas, históricas, educacionais da dança,
ela pode ser analisada pelo tipo de relação que estabelece com o contexto no qual está
inserida. Alguns trabalhos em dança vêm problematizando a burocracia que envolve o
fazer dança ou arte em geral e transformando o tema ou crítica em objeto de criação.
Mais do que ser um “programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis e
entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades
culturais da população e promover o desenvolvimento de seus bens simbólicos”
(COELHO, 1997, p. 292), a dança tem feito da política cultural a sua reflexão artística.
Como exemplo dessa situação, analisarei, neste terceiro capítulo, duas peças de
dança contemporânea, que têm por finalidade propor questionamentos quanto a alguns
aspectos que permeiam a forma de subvenção da própria dança. São elas: “A Projetista”,
da coreógrafa mineira Dudude Herrmann22, e “Edital”, um solo criado por mim, em
parceria com os artistas Leonardo França e Mário Machado Neto. As obras são
22Bailarina, improvisadora, coreógrafa, diretora de espetáculos e professora de dança. Estuda e trabalha desde a década de 70 a pedagogia de ensino da dança contemporânea.
58
contemporâneas, estrearam com seis meses de diferença entre elas, isso nos mostra o
quanto a burocratização da arte tem estado cada vez mais na pauta do artista.
Ambos os trabalhos têm em comum o interesse de falar sobre o atual panorama
da subvenção da criação em dança: os editais, que, como vimos no capítulo anterior, se
tornaram o principal instrumento de distribuição de recursos para projetos artísticos
culturais. Os editais também contribuíram para a descentralização dos recursos e
transparência na seleção de projetos.
No caso de “A Projetista”, a artista Dudude Herrmann apresenta uma reflexão
sobre a necessidade de se elaborar um projeto para pleitear recursos públicos que
viabilizem a criação de uma obra.
No caso de “Edital”, aspectos como a burocracia, a relação do artista e do produtor
de dança diante dos editais, enquanto instrumentos de aplicação de uma política pública
também serão abordados.
3.1 – “A PROJETISTA” – DO NADA AO VAZIO
“A projetista usa do nada para preencher o vazio do mundo”. Dudude Herrmann
Depois de ter fundado e dirigido a Benvinda Cia de Dança, de 1992 até meados de
2007, a dançarina e coreógrafa mineira Dudude Herrmann se desfez da companhia que
59
dirigia e, sob a direção de Cristiane Paoli Quito,23 criou “A Projetista”, um solo de dança
contemporânea que marcou os 40 anos de “insistência, persistência e resistência”,
segundo a própria artista, no campo das artes.
“A Projetista”, que estreou em setembro de 2011 em Belo Horizonte (MG), é um
espetáculo-manifesto que mistura linguagens para criticar o sistema cultural imperante no
país e, acima de tudo, externar a transformação da própria vida da artista. Em cena, a
intérprete disserta todo o tempo sobre o seu possível e próximo projeto artístico. Para
Dudude (2011), (tratarei a artista pelo primeiro nome, porque assim ela é conhecida na
classe artística) “este novo trabalho talvez seja um desafio, um manifesto, de mais um
artista criador de nosso tempo, frente aos mecanismos para se viabilizar a cultura e a
arte”.
Neste espetáculo, Dudude disserta sobre o verbo projetar, utilizando
primordialmente a oratória. Com a obra, ela apresenta a mudança na sua atuação,
enquanto artista, em decorrência da forma vigente de obtenção de recursos para a
criação artística. De acordo com Dudude (2011):
“Ao longo da minha atuação, pude perceber que o único caminho para manter uma companhia é se adequar aos editais e às leis de incentivo vigentes no país, o que acaba tornando o artista um refém da arte obediente. E o mais importante: nessa estrutura, ele acaba se deslocando para funções tão distintas que coloca em segundo plano a criação. Falo de um artista fazedor de suas urgências, frágil no quesito de suporte técnico e administrativo capaz e competente. Foi aí que resolvi trazer A Projetista, para dançar sobre essa transformação. Eu mesma fui me tornando uma projetista, aprendendo na pressão coisas para as quais me considero incompetente. Esse sintoma não é
23Diretora teatral paulistana que se projeta na cena teatral paulista nos anos 1990, através de seus espetáculos recheados de técnicas e referências da commedia dell'arte.
60
pessoal. Existimos em uma sociedade que vive para projetar além do espaço”.
Figura 02: Dudude Herrmann em “A Projetista” (2011). Foto: Alexandre Muniz
Para Dudude, o “artista-projetista” tornou-se um sintoma contemporâneo que
começou nos anos 1990, quando toda uma geração criadora passou a mudar hábitos e
posturas em relação ao mercado, organizando-se frente às exigências solicitadas,
suprindo demandas, mas ao mesmo tempo tornando-se refém delas.
Hoje, no Brasil, há uma grande quantidade de editais disponíveis para o subsídio à
criação artística, e esta é uma realidade que vem se fortalecendo ano a ano, em todo o
país. Contudo, isso não quer dizer que existam recursos suficientes que atendam à
demanda e às necessidades artísticas. Porém, como esta tem sido a ferramenta de
61
acesso à captação de recursos públicos, artistas e criadores em dança estão cada vez
mais mobilizados em atender aos editais, do que os editais em atender às suas
demandas. Essa inversão de valores traz à tona o jogo de poder existente entre a criação
artística e os editais, uma vez que o edital, enquanto instrumento da aplicação de uma
política pública, passou a ser o deflagrador de projetos culturais. Em muitos casos, é a
partir de um edital que nasce um projeto, uma proposta de criação artística.
Esse jogo de poder me remete à relação entre biopoder e biopotência, derivados
dos estudos de biopolítica propostos por Michael Foucault24 (1984). Em linhas gerais,
biopoder para Foucault refere-se ao poder que o Estado tem sobre a população, o poder
de fazer normas e a submeter a elas, o poder de controlar não só a economia, mas sim a
vida de todos, sendo ele o poder soberano. Diferente da biopolítica imperial que seria o
poder sobre a vida, a biopotência é o poder da vida. Na inversão de sentido do termo
biopolítica, esta deixa de ser o poder sobre a vida, e passa a ser o poder da vida.
Eu trabalhei, por três anos, na produção do projeto Quarta Que Dança (QQD),
realizado pela FUNCEB. Este projeto selecionava propostas para compor uma
programação de dança, que acontecia sempre às quartas-feiras, durante determinado
período. Em um dos anos, para mim, uma situação ficou bem clara. Na categoria
“Trabalhos em Processo de Criação”, que, como o próprio nome já diz, selecionava
trabalhos ainda não estreados e que ainda estavam em criação, e algumas das propostas
selecionadas só existiram enquanto processos mesmo. Ou seja, não visavam à
montagem ou configuração de qualquer resultado em dança. Alguns dos processos
24 Michael Foucault é filósofo, historiador, teórico social e crítico literário francês.
62
criativos apresentados durante a programação do Quarta Que Dança (QQD) não
apresentavam qualquer evolução frente aos projetos apresentados quando da inscrição
das propostas no edital do QQD. Para mim, tal situação configurava a criação de uma
proposta artística apenas para atender à demanda de um edital e obter o recurso
oferecido. Ou seja, o edital pautando a criação artística. Dessa forma, estava posto o jogo
de poder entre o poder do estado frente à população (biopoder) e a potência da criação
artística frente ao estado (biopotência).
Está começando a acontecer a inversão da relação de oferta e demanda, em se
tratando dos editais e os projetos artístico-culturais. Quando o Estado, buscando a
execução de uma política cultural, lança um edital, em primeira instância ele estaria
atendendo a uma demanda de um setor da sociedade que produz arte. Porém, quando
este setor da sociedade que produz arte passa a responder aos editais, de forma apenas
a atender à demanda de projetos culturais estabelecida por eles, a inversão se concretiza
e os proponentes de projetos se colocam no lugar de reféns da situação.
Desta forma, o artista que propõe um projeto em um determinado edital apenas
para responder a este edital e para tentar emplacar mais um projeto assume a sua
postura passiva diante da política que está sendo aplicada. Ele limita-se apenas a existir
dentro de um sistema onde o poder do estado, sobre a potência da vida, gera a produção
de sobrevida. O artista passa a ser um sobrevivente no sistema.
63
Peter Pál Pelbart25 contribui para o entendimento deste jogo de poder entre os
editais e a criação artística, quando explica que “tínhamos a ilusão de preservar nessas
esferas alguma autonomia em relação aos poderes”.
Para resumi-lo numa frase simples: o poder já não exerce desde fora, desde cima, mas sim como que por dentro, ele pilota nossa vitalidade social de cabo a rabo. Já não estamos às voltas com um poder transcendente, ou mesmo com um poder apenas repressivo, trata-se de um poder imanente, um poder produtivo... Daí também a extrema dificuldade em resistir. Já mal sabemos onde está o poder e onde estamos nós. Onde ele nos dita e o que dele queremos. Nunca o biopoder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria vida, como esta modalidade contemporânea de biopoder. (PELBART, 2007, p.58)
No artigo “Por uma economia das generosidades”, a pesquisadora Christine
Greiner26 ajuda a entender porque é preciso reinventar os padrões que emergem dos
processos de implementação (de ideias, movimentos, treinamentos):
Durante a participação em bancas de editais e teses, os sintomas que envolvem o processo de descoberta de tudo isso são claros. Institui-se um jogo (quase sempre não deliberado) que visa a aprovação dos projetos, seguindo padrões e modelos que muitas vezes sacrificam o próprio projeto. Ou seja, para adequá-lo a regras (nem sempre deliberadas), o artista busca em primeiro lugar atender às expectativas de uma comissão que ele ainda não sabe qual será. Para tanto, nem sempre consegue efetivamente se colocar no texto que escreve. A comissão, por sua vez, muitas vezes, é integrada por artistas premiados em outras edições que, ao se
25 Peter Pál Perbart é um filósofo, ensaísta, professor e tradutor húngaro, residente no Brasil. É doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo e Professor na PUC-SP. 26 Possui graduação em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero(1981), mestrado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(1991), doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(1997), pós-doutorado pela Universidade de Tóquio(2003), pós-doutorado pela International Research Center for Japanese Studies (2006) e pós-doutorado pela New York University (2007). Atua principalmente nos seguintes temas: arte, cultura e semiótica.
64
encontrarem no papel de júri (e não mais de avaliados), lidam com as regras de avaliação de forma surpreendentemente radical. Cria-se o que Primo Levi identificava como zona cinzenta, ou seja, uma zona. (GREINER, 2012, p.17)
Como, atualmente, quase todos os recursos públicos para a cultura, em sua
diversidade de setores e linguagens artísticas, são distribuídos através de editais, o artista
que queira viver do seu trabalho enquanto artista pouco provavelmente escapará da
necessidade de submeter um projeto para a apreciação de uma banca de edital, sendo
este projeto criado para o edital, ou um projeto já existente.
Para Dudude (2014), “por enquanto estamos todos reféns destes mecanismos,
dependentes por uma simples questão de sobrevivência. E infelizmente isso não é só
comigo”.
Foi essa inquietação quanto ao modelo de aplicação das políticas públicas através
de editais que trouxe a burocracia para cena em “A Projetista”. Esta burocracia também é
o discurso apresentado em “Edital”, obra sobre a qual falaremos a seguir.
Em linhas gerais, a burocracia permite que as normas proferidas pelas autoridades
sejam executadas de forma precisa e em conformidade com procedimentos previamente
estipulados. Desta forma, é reduzido o erro humano e o processo das ações é
transparente.
A visão negativa da burocracia deve-se à rigidez destes mesmos processos, os
quais podem tornar excessivamente lento qualquer tipo de trâmite. Por outro lado, a
burocracia não tem em conta as alterações que possam surgir posteriormente no
65
cotidiano e que exijam novas soluções para problemas inéditos. E é neste sentido que ela
pode ser danosa para a criação artística.
3.2 – “EDITAL” – O ARTISTA MONTADO DE PRODUTOR, OU VICE-E-VERSA.
Em 2012, depois de 14 anos de trabalhos artísticos desenvolvidos em colaboração
no Dimenti, criei o meu primeiro trabalho autoral. “Edital” foi criado dentro do contexto do
“Manutenção Dimenti”, projeto contemplado com o patrocínio para manutenção de grupos
do Programa Petrobras Cultural, e também do projeto CADA, contemplado pelo Prêmio
Yanka Rudzka – prêmio de apoio à montagem de espetáculos de dança do Estado da
Bahia. A necessidade de criar um trabalho autoral para a realização do projeto, e também
a de sobreviver no atual panorama da cena contemporânea me fizeram lançar o Edital
09/2011 – Para Aquisição de uma Obra Autoral.
Nos 14 anos de existência do Dimenti até então, era a primeira vez que trabalhos
solos seriam produzidos no grupo. De 1999 a 2012, já haviam sido produzidos nove
espetáculos, sendo que, em sete deles, todos os performers do grupo participavam. Em
todos os trabalhos do repertório do grupo, eu havia participado como intérprete e em
cinco deles também como produtor. Porém, seguindo um comportamento da produção em
dança, acabamos por caminhar para a criação de trabalhos solos, mesmo ainda fazendo
parte de um grupo artístico.
Este “comportamento” da produção em dança de criar espetáculos solos tem vários
66
motivadores. Citaria entre eles uma maior facilidade de circulação dos espetáculos, uma
vez que tem equipes reduzidas e favorecem a sobrevivência da obra. Outro fator que
pode estar contribuindo para a criação de trabalhos solos é uma necessidade de
afirmação de uma pesquisa de linguagem artística. A legitimação artística tem passado
pela necessidade de defesa de um discurso e pela autoralidade. Ser apenas intérprete e
não ter um trabalho autoral não vem atendendo aos anseios da dança contemporânea.
Em “Edital”, o artista e também produtor se confunde, concorda e diverge de si
mesmo e acaba propondo reflexões sobre o fazer arte hoje sob a lógica de financiamento
à produção cultural vigente. Um dos interesses é problematizar o lugar do artista na
contemporaneidade e perceber como se organizam algumas relações na cadeia criativa e
produtiva da arte.
Numa estética caótica entre laptop, impressora, fios e projetor, elementos que
mais remetem ao trabalho realizado em escritório, “Edital” traz a produção executiva para
dentro da caixa preta e a transforma em produção artística. Entre projetos arquivados,
suplentes na espera e um proponente contemplado, o palco vira escritório e a produção
vira cena. Assim, depois de 10 anos de trabalho com produção cultural, o produtor/artista
lança o seu próprio edital e tenta discutir sobre o fazer na dança.
67
Figura 03: Fábio Osório Monteiro em “Edital” (2011)/ Foto: João Meirelles
3.3 – UM NOVO LUGAR NA AUTORIA – A NECESSIDADE DE UM DISCURSO
“Edital” surgiu a partir de dois editais. Em 2010, o Dimenti foi contemplado no Edital
de Manutenção de Grupos da Petrobras com o projeto “Manutenção Dimenti” e também
com o Prêmio Yanka Rudzka – Prêmio de apoio à montagem de espetáculos de dança na
Bahia, do Governo da Bahia, através do Fundo de Cultura, com o projeto CADA.
No projeto proposto ao Edital de Manutenção de Grupos do Programa Petrobrás
Cultural (PPC), que previa a manutenção de grupos e companhias de dança ou teatro
durante dois anos, cada um dos artistas integrantes do Dimenti – que naquela ocasião era
composto por seis artistas - deveria desenvolver um processo de criação de um trabalho
autoral.
68
Cada um dos artistas deveria ser autor e propositor de uma obra coreográfica. Ou
seja, cada intérprete deveria agora propor um trabalho de sua autoria. Para isso,
receberia uma “bolsa de pesquisa” que envolvia desde gastos com pagamento pelo seu
trabalho de artista, até pequenos custos com a compra de materiais e contratação de
prestadores de serviços para colaborar na criação. Ao final de um ano, o trabalho seria
exibido em caráter de “trabalho em processo de criação”, por se tratar de uma criação que
ainda não tinha sua configuração definitiva.
Já no projeto aprovado no Prêmio Yanka Rudzka, do Governo do Estado da Bahia,
o trabalho iniciado com a pesquisa do “Manutenção Dimenti” pôde ganhar uma
configuração definitiva e cada intérprete conseguiu montar e estrear o seu trabalho. Para
isso, cada qual teve direito a uma verba para gerir entre execução do trabalho e formação
de equipe.
Eu, que até então havia participado de todos os espetáculos do repertório do
Dimenti como intérprete, sempre sob a direção de Jorge Alencar, desta vez deveria ser
autor de uma obra, condição que eu, enquanto artista, nunca havia exercitado; pelo
menos, não enquanto propositor de um trabalho para a cena. Nos processos criativos no
grupo, nós, intérpretes, sempre fomos convocados a participar da criação das cenas, das
escolhas estéticas de cada trabalho. Neste sentido, sempre fui um cocriador das obras
das quais participei. Pela primeira vez, porém, eu me vi convocado a ser autor de uma
obra.
Este novo lugar na criação, ao mesmo tempo em que era motivador perante novas
expectativas de um processo criativo, também era detonador de uma situação de risco, na
69
qual eu saía da minha zona de conforto, de ser intérprete sob uma direção e passava a
ter a necessidade de construir e defender um discurso. Foi neste instante em que me dei
conta da falta de prática no exercício da proposição que se instaurou o primeiro problema
no processo criativo: o que dizer?
O artista na dança contemporânea vem sendo solicitado, cada vez mais, a
desenvolver a sua pesquisa, o seu discurso, apresentar as suas questões nos seus
trabalhos e em suas obras. Não à toa, nas últimas duas décadas, os trabalhos solos em
dança contemporânea são cada vez mais frequentes. Certamente, a necessidade que o
artista da dança contemporânea tem de apresentar a sua fala tem contribuído diretamente
para a proliferação de trabalhos solos e pesquisas individuais. Como se cada fala fosse
única, individual e intransferível, embora, como apresentado pela pesquisadora Jussara
Setenta27 (2006, p.90), "os fazedores de dança contemporânea performativa trabalham a
partir da compreensão de que as ideias estão no mundo e, portanto, são compartilháveis
por diversos sujeitos e sociedades”.
Outras questões podem ser apontadas como possíveis causadoras da proliferação
da produção de trabalhos solos, dentre elas, está a dificuldade da produção e gestão de
grupos artísticos. A manutenção de uma ficha técnica mais cheia, custo logístico em
viagens e turnês e o incipiente trabalho continuado de grupos artísticos acabam por
contribuir para que alguns artistas prefiram o trabalho solo e autoral ao trabalho em grupo.
27 Jussara Setenta é Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia e professora do Curso de Graduação em dança na mesma Instituição de Ensino Superior. Possui doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontificia Universidade Catolica de Sao Paulo (2006), mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2002), especialização em Coreografia pela Universidade Federal da Bahia (1996), graduação em Licenciatura em Dança pela Universidade Federal da Bahia (1992).
70
Para que sejam viáveis economicamente, os projetos artísticos precisam ser enxutos, de
forma a possibilitar a sustentabilidade dos fazedores da arte.
Para que, dentro de um contexto de trabalho de grupo, pudessem ser criados seis
trabalhos autorais, o Dimenti desmembrou esse processo em dois projetos. Um primeiro,
que previa apenas o financiamento para o processo de criação para os trabalhos autorais
de cada integrante; e um segundo projeto que previa o financiamento da montagem e a
primeira temporada de cada um.
Então, o Dimenti, que propôs e aprovou dois projetos encadeados, em editais
diferentes, um para custear o processo de pesquisa e criação e outro para custear a
montagem de seis trabalhos autorais inéditos (um para cada intérprete), tinha agora um
intérprete que, mesmo depois de ter captado recursos públicos para a sua criação, não
sabia o que propor para a cena. Eu, intérprete, estava constrangido a criar um discurso
que pudesse legitimar o meu trabalho enquanto artista da dança contemporânea, embora
não tivesse nenhuma proposta autoral para seguir com o processo criativo.
Diante desse impasse, a solução encontrada foi obter os direitos autorais de
alguma ideia que eu, enquanto artista, julgasse oportuna e, como mecanismo para uso
desta ideia e também para divulgar aos possíveis autores, lancei o “Edital 09/2011 – Para
aquisição de uma obra autoral”.
3.4 – O PROBLEMA COMO SOLUÇÃO - A CONVOCATÓRIA PÚBLICA
71
Como forma de ter acesso a ideias que pudessem se transformar em um processo
criativo e, futuramente, ganhar uma configuração de uma criação artística, lancei o “Edital
09/2011 – Para aquisição de uma obra autoral”. O edital proposto por mim foi lançado em
abril de 2011, com divulgação do resultado em maio deste mesmo ano. Para Jorge
Alencar (2014), ao sucumbir ao desespero capitalista de comprar uma ideia de outrem
para responder às demandas geradas pelo contexto, produz-se uma performance
absurda que se infiltra nos meandros da estética da burocracia para legitimar um exitoso -
e já arquetípico - “artista de edital”.
Para melhor entendimento, citarei abaixo os itens, que julgo ter maior relevância no
texto do edital, lançado por mim:
“EDITAL 09/2011 - PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL Fábio Osório Monteiro, no uso das atribuições que lhe confere a Dimenti Produções Culturais LTDA, torna público o presente edital do EDITAL 09/2011 - PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL, válido em todo o território nacional. DO OBJETO 1.1 Constitui objeto do presente Edital a seleção, em todo o território nacional, de 01 (uma) única proposta de obra autoral de texto, coreografia, tema, ideia ou projeto de criação cênica performática, que, depois de selecionada, poderá ser desenvolvida de forma autônoma pelo performer Fábio Osório Monteiro, do Grupo Dimenti, de Salvador, Bahia, em trabalho solo de teatro e/ou dança. (VER COMO COLOCAR ABNT) DAS CONDIÇÕES 2.4 O prêmio se destina à seleção de uma ideia cênica, que tanto pode ser apresentada como questão ou assunto inicial, a ser integralmente desenvolvida pelo performer Fábio Osório Monteiro, (Dimenti-BA); como pode vir acompanhada de uma sugestão formal, como texto escrito, coreografia, trilha musical, projeto de encenação. Ainda que estruturada sob uma proposta formal (texto, coreografia, música, ambiência visual etc.), a ideia poderá ser aproveitada em outra concepção estética pelo
72
performer. O texto, coreografia, etc, poderá ser desconstruído, rearranjado, mixado a outros materiais ou editado, segundo a concepção cênica do performer e de seus colaboradores diretos. Parágrafo Segundo – O resultado cênico será de propriedade autoral e intelectual de Fábio Osório Monteiro, cabendo só a ele decidir sobre a liberação e negociação da obra DA PREMIAÇÃO 7.1 O EDITAL 09/2011 - PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL irá contemplar um único proponente, pela ideia selecionada, no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), valor líquido, pagos em uma única parcela, em até 15 (quinze) dias úteis depois da divulgação do resultado. (MONTEIRO, F, 2011, p. 1-2)
Desde o início, fica claro que o objetivo do edital é conseguir uma ideia que possa
servir como ponto de partida para um processo criativo. Independente de obedecer, ou
não, às sugestões e caminhos apresentados nas possíveis propostas, o edital tem por
objetivo oferecer um estímulo que possibilitasse a mim a criação do meu primeiro trabalho
autoral.
Este trecho do edital citado acima já aponta para uma problematização em relação
à definição de autoria de uma criação artística. O fato de o edital apontar para a
possibilidade de que as propostas fossem mescladas, misturadas e editadas de alguma
forma e que o fruto dessa edição é que seria considerado o meu trabalho autoral tensiona
a relação entre autoria e originalidade. Isso se dá a partir do momento em que a autoria
da configuração de determinado processo criativo possa ser atribuído a determinado
artista, sendo que as ideias, que já estão no mundo e que o artista acessa de alguma
forma, não são consideradas originais. A origem delas não está no criador.
É nesses termos que Foucault se questiona sobre o caráter necessário ou não da
função autor, respondendo que tal figura não lhe parece indispensável e chegando a
73
imaginar uma sociedade sem autores:
Podemos imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fossem recebidos sem que a função autor jamais aparecesse. Todos os discursos, qualquer que fosse o seu estatuto, a sua forma, o seu valor, e qualquer que fosse o tratamento que se lhes desse, desenrolar-se-iam no anonimato do murmúrio. (FOUCAULT, 1992, p.70)
O mesmo tipo de consideração fez Foucault, quando do início de sua carreira como
professor no Collège de France. Em sua aula inaugural de 2 de dezembro de 1970,
Foucault inicia sua fala indicando como gostaria que a mesma fosse tomada pelo público,
sem o exercício tirânico e unificador da função autor e negando a si mesmo a condição de
origem do discurso e fonte privilegiada de sua compreensibilidade. Assim inicia Foucault:
Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-me, por um instante, suspensa. Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível. (FOUCAULT,1996, p.5-6).
Outro ponto importante no Edital 09/2011 diz respeito aos critérios de avaliação
que seriam levados em consideração no momento da seleção das propostas. Neste
sentido, direcionei um dos critérios para pautar a escolha artística e o outro critério
pautando questões que fossem relativas à operacionalização da proposta como
74
necessidades técnicas e de produção.
DA AVALIAÇÃO 6.1 São critérios gerais norteadores da avaliação da proposta a ser contemplada pelo presente Edital: a) Excelência artística do projeto: qualidade de conteúdo da proposta apresentada, bem como seu valor intrínseco. Avaliam-se também aspectos como originalidade e criatividade do projeto; b) Viabilidade prática do projeto: exequibilidade em relação ao orçamento global. (MONTEIRO, F. 2011, p. 3-4)
Embora tenham sido apenas dois critérios, e ainda sim sem nenhuma restrição a
priori, as propostas enviadas, tendiam, em sua maioria, a atrelarem a obra a aspectos
pessoais meus. Desde a indicação de imagens minhas em uma exposição urbana, até
uma dança feita a partir de confissões pessoais. De alguma forma, as propostas que
foram enviadas – e ao todo foram 11 propostas – tinham a minha pessoa como ponto de
partida para a configuração do trabalho.
Isso poderia apresentar dois problemas. O primeiro é que poderia estar havendo,
sim, uma pasteurização das criações em dança, à medida que os projetos enviados eram
declaradamente ou tangenciavam a autobiografia. O segundo é que, neste caso, ficava
claro que as propostas, em sua maioria, tinham sido criadas para atender à demanda
deste edital. Tal procedimento vem acontecendo de forma habitual nos editais que
distribuem recursos públicos para a criação artístico-cultural. Os projetos apresentados
nestes editais oficiais também tendem a atender à demanda do edital.
A pesquisadora Lúcia Matos atribui uma possível pasteurização a um tipo de
produção, que ela chama de fast-cult, que imbrica os dois problemas citados acima:
75
Hoje, no campo da produção artística da Dança, tem-se fomentado um tipo de produção que tenho chamado de fast-cult (em alusão ao fast food) – com tempo determinado para a produção (quando também não direciona sua abordagem) e de tempo de “digestão” pelo público (uma temporada?), contribuindo muito para uma possível pasteurização da produção contemporânea da Dança (me refiro a todas as configurações da Dança) e baixo impacto na formação de público, por exemplo. Ao mesmo tempo, tem muito artista tratando as verbas que recebe do edital como salário (quase uma bolsa família para os artistas) e pouco se mobiliza para buscar outras estratégias para sua sustentabilidade e para sair da informalidade no campo econômico. Sei que não são coisas simples de serem resolvidas, mas precisamos continuar a questionar (e se questionar) e encontrar novas estratégias. (MATOS, 2013, p. 18).
Neste sentido, torna-se necessário dedicar uma especial atenção para saber sob
quais parâmetros os projetos apresentados em editais são elaborados.
3.5 – A ORGANIZAÇÃO COMO COMPOSIÇÃO
“Edital” fala bem de dentro de toda essa situação por ser performado por um artista e produtor que se confessa, ao mesmo tempo, mobilizado, estimulado e
assustado com esse panorama. Jorge Alencar (2014)
Após a finalização do edital, seleção e divulgação da proposta, optei pela
improvisação, para, a partir deste procedimento, compor a obra. Porém, nesse processo
de improvisação, as propostas que não foram selecionadas no “Edital 09/2011 – Para
Aquisição de uma Obra Autoral” acabaram por chegar à cena, o que tensionava a questão
76
sobre a autoria da obra.
O espetáculo “Edital” é organizado sobre forma de uma palestra-performática, onde
o performer vai narrando todo o processo de seleção das propostas apresentadas quando
do lançamento do edital. As propostas são apresentadas na obra de formas diferentes:
uma citação formal explicando ou lendo um trecho do projeto enviado; simulação cênica
do que foi proposto no projeto; ou, de forma mais útil, apenas utilizando algum elemento
de determinado projeto, como uma música, por exemplo, sem identificar de qual proposta
era oriunda.
Contudo, mesmo “Edital” sendo uma obra construída a partir de onze propostas
enviadas por onze proponentes/artistas diferentes, fica aparente que a forma como a obra
é configurada é também uma assinatura autoral. Tanto pela forma como me apresento,
um artista/produtor falando na primeira pessoa, como na organização das cenas. A
dramaturgia do espetáculo, enquanto forma de organização dos elementos da cena e
suas relações, é coerente com a formação e com o perfil artístico do performer e o coloca
de forma muito potente no lugar da autoria em “Edital”, mesmo ele não sendo o autor de
nenhuma das propostas que compõem a obra. Para entender melhor o que chamo por
dramaturgia, recorro a Rosa Hércoles:
[...] Identificar a dramaturgia em uma peça coreográfica implica na discriminação do tipo de pensamento que está sendo implementado tanto no movimento quanto no ambiente cênico, observando-se quais relações que foram estabelecidas entre todos os seus materiais constitutivos. (HERCOLES, 2005, p. 126)
77
Figura 04: Fábio Osório Monteiro em “Edital” (2011)/ Foto: João Meirelles
Uma teórica que também contribui para que possamos entender tal situação é a
pesquisadora Jussara Sobreira Setenta. Em seu livro O fazer-dizer do corpo – dança e
performatividade, a autora levanta a seguinte proposição sobre autoria:
[...] O corpo da dança contemporânea performativa é um corpo-agente, agenciador, socialmente inscrito, voltado para negociações com que o investiga. É um corpo que não se entende como sendo um constituidor de um sujeito isolado, mergulhado somente em sua criatividade. Essa concepção de sujeito articula um outro entendimento do conceito de autoria. Ao invés de associada a algo que se fundamenta na existência de um original, uma propriedade particular de um dono único, questiona a necessidade de sustentar a existência desse original para legitimar o que, de fato, é único – mas único na forma como organiza informações que são compartilhadas com muitos outros sujeitos. E se são compartilhadas, tais informações caem fora da moldura do “original”, uma vez que se tornam origens múltiplas. [...] É um sujeito constituído por muitos outros – aqueles provenientes de encontros, colaborações, cooperações. (SETENTA, 2008, p. 89)
78
Para Setenta, o sujeito, neste caso o artista, é um compartilhador de outros
sujeitos; porém, isso não compromete a ação da autoria por este sujeito, o que se propõe
é uma espécie de coautoria. “O sujeito passa a entender suas ações como sendo de um
reorganizador. O resultado da reorganização é autoral, mas não no sentido original. É
autoral a partir de compartilhamentos, de processos de contaminação”. (SETENTA, 2008:
p. 92)
A ideia de que não existe o “original”, já que as informações postas no mundo
seriam compartilhadas por todos, remete-nos a uma ideia de rede, na qual as relações se
dão de formas múltiplas, com pontos diversos de origem e derivações. Desta forma, na
arte contemporânea não temos mais uma obra como sendo criação de um único autor,
como era entendida a obra de arte na modernidade, mas como resultante de processos
de apropriação e reorganização de ideias. “Quando falamos e pensamos, nossas falas e
pensamentos já não exprimem mais uma essência que nele se exterioriza: eles são como
que colagens que apenas indicam os padrões das redes que nossas articulações tecem”
(PARENTE, 2004, p. 103) .
Em “Edital”, a organização dos elementos da cena é o mecanismo pelo qual o
performer deixa a sua assinatura enquanto artista. Tanto no “Edital 09/2011 – Para
Aquisição de uma Obra Autoral”, quanto na obra coreográfica “Edital”, fica problematizada
a questão referente à autoria da obra.
A apropriação por reorganização não é a única estratégia de criação na arte
contemporânea. Embora o entendimento de autoria, enquanto uma reorganização de
elementos partilhados por vários e distintos sujeitos, seja uma corrente defendida por
79
muitos artistas e pesquisadores, esta ainda é uma corrente de pensamento que levanta
muita discussão e polêmica sobre a detenção de direitos autorais, por exemplo.
Nessa perspectiva, o que interessa não é apenas a apropriação, mas a rede de
relações e construção de pensamentos que ela revela. A noção de rede aparece como
uma possível metáfora para a consciência coletiva, que vai desmontando lentamente a
concepção de individualidade na criação. Toda criação parte do pressuposto de uma
coautoria entre o sujeito propositor e os diversos sujeitos que o cruzaram. Nesse sentido,
aproveito para incluir neste processo de autoria o espectador, que atribui os seus
significados quando tem acesso à obra.
A criação artística é sempre uma experiência – para o artista e para o seu público.
Uma experiência impossível de ser descrita com exatidão – tão sutil e íntima. O processo
criador deveria, assim, ser descrito como um procedimento de transferência ou projeção
de imagens da mente do artista para a percepção do espectador. Procedimento, este,
pleno de surpresas e de modo algum automático.
Em 2003, a pesquisadora Helena Katz28, no artigo “O espectador da arte
contemporânea”, reforça a necessidade de implicação do espectador ao acessar uma
criação artística. Ela apresenta como argumento a limitação que o corpo humano tem em
perceber tudo o que existe no mundo. E a nossa percepção trabalha com o que o corpo
está fisiologicamente capacitado para perceber. Desta forma, o mundo, tal qual nós
observamos, nada mais é do que uma construção individual feita por cada um de nós,
dentro dos limites da nossa percepção. Katz conclui que:
28 Jornalista, crítica de arte e professora do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC São Paulo
80
A partir daí, ao menos uma consequência se impõe: aceitar que aquilo o que a nossa percepção capta, não é o mundo tal e qual, mas o mundo que ela está apta a perceber. Nossa percepção, portanto, funciona como um sistema de mediação com o que nos cerca. ...O espectador, portanto, é esse sujeito construtor daquilo que percebe. Uma espécie de coautor em tempo integral da realidade. (KATZ, 2003, p. 1-2)
Nas culturas e artes contemporâneas, precisa-se, então, não somente de artistas
inventivos mas, principalmente de espectadores criativos – capazes de decodificar as
mensagens artísticas expressas.
81
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
Embora a problematização levantada sobre a dança e a sua relação com os editais
enquanto mecanismo de financiamento tenha partido de inquietações bem pessoais, elas
refletem a preocupação de uma classe artística, ou pelo menos de uma parte dela, sobre
as suas implicações nos processos criativos.
Quando aponto possíveis problemas na adoção dos editais como instrumento
quase exclusivo de acesso aos recursos públicos, não estou atribuindo a eles o lugar de
vilões neste conflito. Pelo contrário, acredito que, até o momento, a adoção dos editais
enquanto ferramentas para a implementação de uma política pública e distribuição de
recursos para a cultura é a forma mais democrática e transparente para a realização
deste processo. Contudo, não pode ser a única forma.
Depois da utilização dos editais no processo de execução de uma política pública,
onde o Estado tenta assumir o seu lugar de propositor de uma política, em parceria com a
sociedade civil, muitos avanços puderam ser percebidos. São exemplos disso uma
distribuição mais equânime dos recursos e o aumento do volume financeiro ofertado.
Entretanto, a excessiva adoção de editais está implicando em mudanças no fazer
artístico.
A lógica burocrática e engessada na gestão da verba pública acaba atravessando o
processo criativo. Para a apresentação de um projeto em um determinado edital, é
necessária a mensuração de recursos, insumos, tempo e outras variáveis que, em um
processo artístico, não são tão simples assim de serem mapeadas. A criação artística
82
pressupõe experimentação e amadurecimento de ideias. Isso coloca a criação artística
sempre no lugar do risco. E é justamente o risco que a lógica burocrática e engessada na
gestão da verba pública tenta evitar.
Diante disso, fica indispensável a participação de todos os agentes da cadeia
produtiva da cultura, na elaboração de uma política cultural. A responsabilidade da
elaboração e aplicação de uma política cultural não deve estar apenas a cargo do Estado.
Nós, enquanto sociedade civil e classe artística, temos o dever de pensar, conjuntamente
com o Estado, em uma política que possa atender às especificidades da criação artística.
Os editais, do modo como estão sendo aplicados, não dão conta da complexidade da
criação em dança, e acredito que essa realidade se estenda às outras linguagens
artísticas.
Reposicionar o papel do Estado na proposição de uma política cultural já apresenta
um avanço significativo, frente à lógica neoliberal do financiamento de projetos artístico-
culturais através de lei de incentivo. O poder de decisão sobre a distribuição de recursos
não pode estar exclusivamente a cargo das empresas privadas e de seu marketing
cultural. Contudo, mesmo sendo as principais ferramentas neste importante processo de
mudança de postura do Estado, os editais acabam sendo ações pontuais, que não se
configuram como um programa de desenvolvimento para a cultura.
Embora estas sejam as considerações finais desta pesquisa, elas estão longe de
apontar uma solução para o problema. A problematização deste contexto que se
apresenta é um convite para que a sociedade civil, classe artística e Estado possam
pensar e dedicar uma maior atenção às consequências da implementação das políticas
83
públicas para a cultura. Entender como elas atuam sobre a criação artística e de que
forma podemos conduzir esse processo é essencial para que nós, artistas, não fiquemos
imunes ao que, hoje, nos permite continuar criando a nossa arte e trazendo novas
questões para o mundo: os editais.
84
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ANEXOS
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ANEXO 1: ENTREVISTA COM OS ARTISTAS
Questionário
Este questionário é uma tentativa de estabelecer paralelos entre a criação artística e sua
forma de subvenção, tendo como recorte a gestão da Secretaria de Cultura do Governo
da Bahia, no período de 2007 a 2010. Trata-se da pesquisa de Mestrado, desenvolvida
por mim, no Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA, sob a orientação da Profa.
Dra. Gilsamara Moura e que apresenta como título (ainda em estado provisório): Políticas culturais e mecanismos de fomento: implicações nos processos criativos em dança. A hipótese que vem sendo trabalhada é a de que a adoção dos editais como
instrumento predominante na implementação de políticas públicas, vem acarretando
mudanças no fazer artístico dos criadores em dança, tanto no processo criativo, quanto
no resultado artístico em si. Diante desta pequena apresentação, solicito sua colaboração
ao responder as questões abaixo enunciadas. Desde já, agradeço e me comprometo a
referenciar qualquer citação que, por ventura, seja feita na dissertação com as
informações contidas neste documento, assim como o envio da dissertação para leitura
de vocês antes de finalizá-la.
Fábio Luís Oliveira Monteiro
90
DADOS PESSOAIS Nome: Clara Faria Trigo
Contato: [email protected]; 71-87854790
Formação (Pequeno parágrafo apresentando informações relevantes de sua formação
artística e/ou acadêmica):
Mestra em Artes Cênicas – PPGAC – UFBA, Graduada em Licenciatura e Bacharelado
em Dança pela Escola de Dança – UFBA; Dançarina, coreógrafa e professora; Inventora
do Flymoon®, equipamento e sistema de movimento; Dirige e produz o programa
independente sobre dança SUA DANÇA, exibido online e na TVE-Ba.
QUESTÕES: 1 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotada pelo Governo do Estado da Bahia, na gestão imediatamente anterior a 2007? Antes de 2007, a gestão cultural do governo do Estado oferecia oportunidades pontuais a
artistas das artes cênicas, não distinguindo dança e teatro. As oportunidades eram
oferecidas através de editais que aconteciam uma vez por ano, para os quais apenas
empresas poderiam concorrer. Não havia diálogo, sondagem ou qualquer tipo de
mapeamento de demandas com a classe artística para a elaboração dos referidos editais,
que tinham como única linha de financiamento Montagem e Circulação. Esses editais
eram esperados 1 vez por ano, mas não podíamos contar com essa regularidade. Podiam
ser lançados ou não, sem maiores explicações, sem divulgação.
2 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotado pela Secretaria de Cultura da Bahia, na gestão de 2007 a 2010? A partir de 2007, a política cultural passou a distinguir dança e teatro e implementou
instâncias de participação e diálogo entre classe artística e governo. Para mim,
pessoalmente, a partir das mudanças propostas pela gestão cultural em 2007, iniciou-se a
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construção da minha consciência sobre a importância da cultura no desenvolvimento
social, na produção de riquezas, na construção simbólica de um povo e, a partir desse
horizonte que foi se abrindo pela possibilidade de participar das decisões e
responsabilizar-me pelas mudanças desejadas, fui desenvolvendo uma consciência
cidadã antes não exercitada.
3 – Você percebe mudança em seu trabalho de criação, seja na forma ou no resultado, em decorrência dessa mudança na forma de implementar políticas públicas? O meu trabalho de criação continuou pautado em inquietações íntimas e pessoais, ainda
que estas possam ser “coletivizadas” comunicando-se com outras intimidades, mas a
minha produção cultural – em campos não artísticos – foi alterada e potencializada pelas
mudanças nas políticas culturais, que geraram, em grande parte, as mudanças na minha
consciência política sobre o fazer artístico-cultural. Passei a me perguntar e a buscar
entender o que precisamos enquanto coletividade, enquanto classe artística e direcionei
grande parte da minha capacidade produtiva na produção de experiências que dessem
conta das necessidades que ia encontrando. Isso me levou a um papel de articulação e
produção que não era o que eu tinha sonhado, mas me motivavam os resultados. Por
conta disso, me interessei muito pela difusão da produção artística e pela possibilidade de
gerar encontros e diálogos entre artistas, que pudessem fortalecer a consciência política e
todo o campo no qual eu tinha escolhido atuar. Levada por essa consciência, articulei o
Rumos Dança em Salvador, em 2008; Iniciei a produção de um programa de TV sobre
dança, em parceria com a TVE-Bahia; articulei e coordenei o 8º Encontro da Rede
Sulamericana de Dança em Salvador, em 2009, ambos produzidos pela Dimenti
Produções Culturais; idealizei e produzi a Plataforma Internacional de Dança da Bahia,
junto a Catarina Gramacho, em 2009 e junto a Nirlyn Seijas, Catarina Gramacho e
Jaqueline Vasconcellos em 2010, na qual articulamos diversas instâncias de diálogo,
encontro, produção de conhecimento, visibilidade e intercâmbios entre países latino-
americanos, Brasil e interior da Bahia, tais como: os primeiros Seminários sobre
Economia da Dança da Bahia (a exemplo do que vinha sendo produzido no Panorama de
Dança do Rio de Janeiro), as jornadas de estudo e capacitação em curadoria e o catálogo
virtual da dança baiana. Passei a participar ativamente das reuniões da classe da dança,
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estimuladas principalmente pelo Fórum de Dança da Bahia, através das suas principais
articuladoras então: Dulce Aquino, Suki Villas-boas e Lúcia Matos. Esta última cumprindo
a função de Diretora de Dança na FUNCEB, o que tornou o diálogo entre classe artística
e governo fluido e direto. Passei a entender a necessidade de continuidade de trabalho e
vislumbrei a possibilidade de viver do meu trabalho artístico, que até então não me
parecia real e eu nem sequer me perguntava porquê não, acostumada a ser a principal
financiadora dos meus próprios projetos, com o meu trabalho como professora de Pilates
e com o suporte estrutural da família.
Foi possível, a partir da consciência política emergente, fruto da política cultural pautada
na participação social, entender que era possível ter diferentes linhas de financiamento –
para além da montagem e circulação – e entender que o campo artístico-cultural deveria
pautar as ofertas de recursos e não o contrário. Ficou nítida a necessidade de linhas de
financiamento de manutenção de grupo e fui beneficiada duas vezes por essa linha com
meu grupo, o que nos permitiu seguir com atividades para as quais não tínhamos
qualquer outra chance de financiamento, como organização de acervo do grupo,
produção de vídeos e imagens, reflexão sobre o trabalho produzido e capacitação dos
integrantes. Uma das minhas batalhas políticas era não permitir a “descartabilidade” da
produção da dança. Me dediquei a circular e desdobrar meus trabalhos artísticos o
máximo que pude. Resumindo a resposta, entendo que as mudanças na política cultural
do Estado da Bahia transformaram minha compreensão de mundo, minha atuação
política, minha vida, mas não necessariamente minhas questões artísticas.
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DADOS PESSOAIS Nome: Eduardo Oliveira (Edu O.)
Contato: [email protected]
Formação (Pequeno parágrafo apresentando informações relevantes de sua formação
artística e/ou acadêmica):
QUESTÕES: 1 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotada pelo Governo do Estado da Bahia, na gestão imediatamente anterior a 2007? Em âmbito nacional, a partir do Governo Sarney, tivemos o surgimento das leis de
incentivos fiscais que se tornaram o principal foco das políticas culturais, no Brasil. Isso
compreende também o pensamento de financiamento da cultura na Bahia até o
surgimento dos editais criados no governo Jacques Wagner.
No que se refere à dança, identifico problemas quanto aos apoios via lei de incentivo
porque os empresários privilegiam a música e sobretudo a música de carnaval, na Bahia.
Conheço poucos colegas que conseguiram captação por este meio de financiamento.
O que acontecia bastante era o “apoio de balcão” que acabava sendo privilégio de
conhecidos, amigos ou artistas renomados que poderiam dar maior visibilidade ao apoio
do governo.
Eu sempre soube do Fundo de Cultura do estado, mas não me recordo, nessa época, de
nenhum projeto financiado por esta via.
2 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotado pela Secretaria de Cultura da Bahia, na gestão de 2007 a 2010? Eu acredito que nesse período houve maior incentivo à produção em Dança na Bahia,
quando surgiram diversos grupos e coletivos, e houve maior acesso aos trabalhos em
Dança, à pesquisa, descentralização da produção que ficava restrita a um pequeno grupo
de artistas.
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De certa forma, acredito também que a mudança no currículo da Escola de Dança da
UFBA favoreceu o artista criador/pesquisador, coincidindo com as demandas dos editais
que apareciam naquele momento.
Um dos pontos principais, ao meu ver, foi a aproximação entre Estado e a classe de
dança, com diálogos e escuta para as nossas demandas, nem sempre correspondidas,
mas sem dúvida, tivemos uma abertura maior para o diálogo.
3 – Você percebe mudança em seu trabalho de criação, seja na forma ou no resultado, em decorrência dessa mudança na forma de implementar políticas públicas? Sim. O meu trabalho como artista independente só foi possível graças aos editais. Lembro
que criei Judite em 2006, sem nenhum apoio, sem possibilidade de patrocínio por não ser
um artista daqueles que se favoreciam com o “apoio de balcão”. No ano seguinte, fui
selecionado, com este trabalho, para o Quarta que Dança. O próprio trabalho do Grupo X
de Improvisação em Dança, o qual eu faço parte do elenco, também foi alavancado pelos
projetos aprovados para circulação, montagem e oficinas.
Porém, consigo ver diferenças na criação entre Judite e O Corpo Perturbador, por
exemplo. Se em Judite eu não tinha apoio nenhum, eu tinha maior liberdade no tempo
para a criação e total liberdade para experimentar e errar. Já n’O Corpo perturbador que
produzido graças ao edital de montagem, tínhamos limitações na criação por causa da
rigidez da prestação de contas que dificulta uma pesquisa mais aberta aos fluxos que vão
surgindo no processo de criação. De certa forma, acho que ficamos reféns das notas
fiscais que precisamos apresentar, mesmo se o que surge na criação solicita outro
material, outra elaboração do que havia sido previsto. Sinto que não temos abertura para
o erro que, ao meu ver, é tão necessário num processo criativo.
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DADOS PESSOAIS Nome: Jorge Alencar (Jorge Luiz Alencar Sampaio)
Contato: [email protected] / +55 71 87115314
Formação (Pequeno parágrafo apresentando informações relevantes de sua formação
artística e/ou acadêmica):
Sou graduado em Comunicação Social (UCSAL) e em Dança (UFBA) com Mestrado em
Artes Cênicas (UFBA) e um intenso trajeto como criador, curador e educador. Com
minhas obras cênicas e fílmicas, tenho circulado por todas as regiões brasileiras e por
festivais como: Festival In-Presentable (Espanha), Festival du Film D’Animation de
Annecy (França), Move Berlim (Alemanha), Semana dos Realizadores (RJ), FIVU
(Uruguai) e Indie Lisboa (Portugal). Como curador, atuo em projetos como: com.posições
políticas (RJ), FIAC (BA) e, principalmente, o encontro anual de artes IC – Interação e
Conectividade (BA) realizado pela Dimenti Produções Culturais. Fui professor da Escola
de Dança da UFBA e do Balé do Teatro Castro Alves (BA), entre outros ambientes de
ensino. Junto a outros artistas, fundei o grupo pluriastístico Dimenti em 1998.
QUESTÕES: 1 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotada pelo Governo do Estado da Bahia, na gestão imediatamente anterior a 2007? Na gestão anterior ao ano de 2007, em geral, as ações voltadas para dança eram
escassas, pontuais e descontinuadas, a exemplo de raros editais voltados ao apoio de
montagens coreográficas e à circulação de obras artísticas. Como exceção, vale ressaltar
a existência do projeto Quarta que Dança gerido pelo Estado da Bahia, enquanto uma das
poucas inciativas continuadas para o campo da dança, que há alguns anos vem criando
espaços de apresentação e visibilidade para os artistas locais.
2 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotado pela Secretaria de Cultura da Bahia, na gestão de 2007 a 2010? No citado período foram criados dispositivos mais claros de fomento à produção artística,
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ampliando a natureza dos projetos apoiados até então e aumentando significativamente o
volume de verba investido nas ações culturais. A criação desses mecanismos de fomento,
ao passo que gerou uma maior transparências nos modos de distribuição dos apoios
operacionalizados pelo Estado da Bahia, gerou um caráter eminentemente protocolar na
relação artista-Estado, implicando na reificação do formato do edital (em vigência em
grande parte do país até o momento presente) como modelo de elaboração de
proposições artísticas muito baseado nos aparatos burocráticos do Estado.
3 – Você percebe mudança em seu trabalho de criação, seja na forma ou no resultado, em decorrência dessa mudança na forma de implementar políticas públicas? Percebo duas mudanças principais. Uma diz respeito a uma melhora nas condições
financeiras e estruturais de minha atuação artística, favorecendo uma maior continuidade
de meu trabalho. A outra está ligada a um jeito de produzir pensamento sobre arte muito
atrelado ao tipo de demanda discursiva operada pelos formulários dos editais.
A criação artística tornou-se sinônimo de elaboração de projeto, com um nível de
mensuração e previsibilidade que constrange, em muitos aspectos, o fluxo imprevisível de
descobertas de um processo de criação. Isso atravessa o jeito como eu elaboro as
minhas ideias artísticas iniciais, o jeito que eu desenvolvo a criação propriamente e o jeito
que essa criação precisa condizer com as previsões de orçamento e cronograma que eu
apontei em meu projeto.
Mesmo em maior quantidade, os editais na Bahia ainda estão mais ligados a ações
pontuais e menos a ações continuadas, com exceção dos editais de manutenção a
grupos e companhias e daquele voltado aos projetos calendarizados. (É também estranho
ver meus parceiros artistas comemorando o fato de serem contemplados num edital como
se estivessem participado de uma loteria e como se esse fosse o único meio de
viabilização de suas propostas). Mas em se tratando do fôlego na subvenção às artes por
parte do Estado, a realidade é bem positiva se comparada a anos anteriores,
principalmente porque, desde o governo Lula, começou-se a debater políticas públicas
para a cultura com mais seriedade e coletivamente.
4- Como você percebe as questões que permeiam esta discussão sobre edital x
97
criação no solo criado por mim, "Edital", e o que você considera pertinente apontar nesta obra? “Edital” fala bem de dentro de toda essa situação por ser performado por um artista e
produtor que se confessa, ao mesmo tempo, mobilizado, estimulado e assustado com
esse panorama. Há tanto uma clara adesão aos dispositivos vigentes – por parte de quem
os domina e lida com eles em seu trabalho diário -, como um espanto de quem precisa
configurar uma ideia artística, sendo “autônomo”, “autoral” e “portátil” – três dos
controversos parâmetros de sobrevivência resultantes desse processo. Ao sucumbir ao
desespero capitalista de comprar uma ideia de outrem para responder às demandas
geradas pelo contexto, produz-se uma performance absurda que se infiltra nos meandros
da estética da burocracia para legitimar um exitoso - e já arquetípico - “artista de edital”.
DADOS PESSOAIS
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Nome: Sérgio Pereira Andrade
Contato: [email protected]
Formação (Pequeno parágrafo apresentando informações relevantes de sua formação
artística e/ou acadêmica):
Sérgio Andrade tem experiências como diretor, criador, bailarino, produtor e pesquisador
em Dança e Performance. É Professor Assistente do Departamento de Arte Corporal da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, cursos de Bacharelado em Teoria da Dança,
Licenciatura em Dança e Bacharelado em Dança. Doutorando em Filosofia pelo
Departamento de Filosofia da PUC-Rio, com Bolsa Sanduíche CAPES (2014-2015) para
Visiting Scholar na New York University (EUA); Mestre em Filosofia pelo Departamento de
Filosofia da PUC-Rio (2013); Mestre em Artes-cênicas pelo Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas da UFBA (2010) e graduado em Licenciatura em Dança pela Escola de
Dança da UFBA (2008). Em 2005, junto a outros artistas, fundou o Grupo CoMteMpu's
Linguagens do Corpo (Salvador-Ba), tendo sido seu diretor até o ano de 2014, realizando
trabalhos de pesquisa e criação em Dança, Performance, Intervenção e Vídeo. Atua
também no campo de consultoria, elaboração e gestão de projetos culturais, sobretudo,
projetos para Dança. Nos anos de 2009 e 2010 foi um dos articuladores do Fórum de
Dança da Bahia, juntamente com Suki Vilas Boas e Lúcia Matos. Integrou o Núcleo de
Estudos em Ética e Desconstrução da PUC-Rio (NEED) de 2011 até o encerramento de
suas atividades no ano de 2013.
QUESTÕES: 1 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotada pelo Governo do Estado da Bahia, no gestão imediatamente anterior a 2007? Antes de iniciar, gostaria de declarar que tudo que puder escrever aqui será a partir de
uma memória esburacada, cheia de gaps, de algumas experiências de um artista
independente que desde sempre trabalhou em redes de cocriação entre pessoas, desejos
e lugares (em muitos atritos). Daí as citações de nomes, eventos, fatos por vezes
desviantes de uma unidade, serão incondicionais.
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Já se passaram alguns anos e talvez eu não me lembre muito bem como funcionava o
programa de políticas públicas na gestão anterior a 2007. Comecei a participar mais
ativamente dos encontros do Fórum de Dança da Bahia ainda em 2005, quando se
formavam as câmaras setoriais da cultura – diretriz vinda do Ministério da Cultura, na
época liderado por Gilberto Gil, do Governo Federal. Na Bahia, ainda não possuímos uma
plano de gestão discutido com artistas e agentes da cultura. Não me recordo de espaços
para diálogo, nem mesmo de um plano de acesso às elaborações de ações.
Do que eu me lembro, os acessos mais diretos aos recursos do Estado se centralizavam
em dois editais: Apoio a Montagem de Espetáculos do Estado da Bahia (não tenho
certeza se o nome era exatamente assim); e o Quarta que Dança. Eventualmente, tinha o
Circulador Cultural também. O montante dos recursos era bem reduzido... lembro que
selecionavam-se cerca de três projetos no Edital de Montagem, em duas categorias super
discrepantes, algo como uma no valor de R$ 30mil e outra no valor de R$ 8mil. Em geral
os prêmios ficavam com as montagens de Teatro, ou artistas que vinham dessa
formação, e quando havia algum espetáculo de Dança eu tinha impressão que estávamos
sempre girando nos nomes das mesmas pessoas.
Acredito que havia dois critérios nos editais que destruíam toda possibilidade de fomento
aos novos artistas naquele cenário: na inscrição, a obrigatoriedade do proponente ser
“Pessoa Jurídica”, e na avaliação, o “reconhecimento e notoriedade artística dos artistas
envolvidos no projeto”.
Para mim, naquele tempo, e ainda hoje, pensar em estratégias efetivas de fomento para
novas produções é essencial à manutenção de qualquer política pública cultural que
pense na arte e na cultura como um processo dinâmico.
Eleger “notoriedade” como critério, no entanto, dizia que interessava àquele mecanismo
apenas premiar, dar um “gift”, ou melhor, apenas marcar um selo sobre determinados
nomes que ecoavam dentro de circuito muito restrito na produção baiana. Nenhum projeto
do interior do Estado, por exemplo, poderia chegar tão facilmente a um patamar de
notoriedade que se fizesse notório (e aqui, perdão a redundância necessária) frente
àquelas bancas de avaliação da FUNCEB. Da mesma maneira, tendo em vista que se
hoje, com tantos editais e fomentos (níveis estadual e federal), manter uma empresa
apenas para inscrições de editais de um grupo de dança é difícil imagina dez anos atrás?
Empresas de produção cultural interessadas em trabalhar com artistas e grupos de dança
100
quase não existiam.
Lembro que quando iniciei junto a outros artistas as atividades do Grupo CoMteMpu’s, em
2005, procurei produtores. Através de uma indicação de Beth Rangel, cheguei a iniciar
uma conversa com uma empresa de produção que também recém iniciava suas
atividades no Rio Vermelho. A conversa com o produtor foi até o encontro quando ele viu
o orçamento: “acho que não temos como trabalhar juntos, pois estou [a produtora, que
basicamente era ele] pensando em projetos maiores” – mais ou menos foi essa resposta
que ele me deu. Era um projeto para a Funarte, valor orçamentário de R$ 30mil (o
máximo que se pagava naquela época). Quando coloquei todos os gastos no papel,
sendo o mais coerente possível com os esforços laborais que viriam a ser investidos
naquele projeto, o produtor abandonou todo diálogo sem pestanejar. [Continuei
acompanhando esse cabra por ai, mirando à distância, confesso; vejo que ele conseguiu
o que buscava: tornou-se diretor de museu, faz exposições e curadorias para artes visuais
e música... Do que acompanho, a dança continua passando longe de sua trajetória]. Ou
seja, exigir Pessoa Jurídica naquele cenário era também cortar a maioria das produções
independentes. Apesar desse relato se referir a um episódio pontual de preparação de um
projeto para a FUNARTE, a coisa não se diferenciaria muito se fosse para o prêmio da
FUNCEB.
Das poucas reuniões que me lembro de ter participado com o gestor da DIMAC -
FUNCEB, que se não me engano, era Sérgio Sobrera, na época, cheguei a contestar
muito veementemente tais critérios. Para minha surpresa, tal contestação era
acompanhada por alguns artistas, mas lembro-me de ter ouvido claramente de um colega,
acompanhado por muitos outros, que era importante a manutenção de tais critérios para
que os editais não se enchessem de inscrições de estudantes da Escola de Dança da
UFBA, sendo que ele mesmo foi aluno da própria escola. Esse critério de exclusão
perdurou até o início da outra gestão, foi uma polêmica que se manteve nas reuniões do
Fórum e, talvez, porque o fórum se reunia quase sempre na Escola de Dança, e porque
também talvez, a Escola estivesse passando também por um período de efervescência de
novos grupos e artistas, tal critério foi cada vez mais pressionado até que caísse de vez
na gestão seguinte. Importa lembrar que antes de assumir a futura gestão de 2007, Lúcia
Matos era uma das grandes articuladoras do Fórum de Dança da Bahia. Ela conhecia as
demandas locais, além de acompanhar outros cenários de discussão das políticas
101
públicas no país.
Da experiência com o “Quarta que Dança” antes da gestão de 2007, poderia destacar a
vez em que nos inscrevemos com o espetáculo “Obras de uma carta anônima”, no ano de
2006, e ficamos como um dos primeiros suplentes. O Edital havia anunciado um número
de vagas para selecionados e no entanto a programação durou mais do que o número de
selecionados. Em vez de convocar então os suplentes do edital, a FUNCEB optou em
convidar artistas eleitos sabe-se lá como. Recordo-me que um desses artistas foi o
Wagner Schwatz, se não me engano com o espetáculo “Transobjeto”, que havia se
inscrito no mesmo edital, mas também não fora selecionado e não era um dos suplentes.
Por alguma razão, Wagner Schwatz que tinha produção toda fora do Estado da Bahia, foi
convocado e os outros artistas suplentes não. Sem entrar no mérito sobre a obra de
Schwatz, tal episódio deixou vazar a fragilidade dos moldes de seleção de tais
mecanismos, tão escassos no Estado. Se já eram poucas as possibilidades para
participar dos selos de contemplados do estado, os gifts, por que o Quarta que Dança era
aberto a inscrições de artistas de outros estados?
Recordo-me, outra vez, que esse ponto também foi debatido no Fórum, sobre qual seria a
prioridade daquele mecanismo; para além de repassar a verba e disponibilizar o espaço
para apresentação, o que pretendia o “Quarta que Dança” como mecanismo de acesso ao
pensamento de política pública do Estado? O que ele pretendia partilhar? Impossível
relatar todas as ruínas de memória que me ocorrem agora durante essa escrita, mas tal
discussão chegou de alguma maneira contribuiu para que as edições futuras da gestão de
2007 se fechassem entre as produções locais. Daí, claro, surgiu também como questão o
que fazer para garantir o intercâmbio entre artistas locais e nacionais como parte da
política pública do Estado. Essa foi sempre uma discussão sem solução. Lembro que no
início da gestão de 2007 foram rascunhadas algumas propostas de intercâmbio,
sugeridas pelo próprio Estado, que trouxeram alguns grupos internacionais para
apresentações no TCA, mas nada muito seriamente foi investido na expansão de tal
proposta.
Havia também o FazCultura. Algo “tão-tão” distante da minha realidade naquela época
que nem me arrisco em escrever muito sobre. Era um modelo de incentivo por isenção
fiscal que somente funcionaria para grandes projetos. Se até as pequenas produtoras
culturais já fugiam quando ouviam falar “Dança”, o que dizer sobre os grandes
102
empresários? Cheguei ir até a Ellen Melo, na época produtora do Dimenti, para que ela
me ajudasse a desvendar como participar daquele “negócio”. Ela foi ótima nas dicas!
Entendi direitinho como fazer, mas ainda assim o FazCultura sempre me soou como algo
extremamente inacessível para as produções de um artista independente. Somente
projetos de grande visibilidade poderiam atrair esse tipo investidor, como era o caso do
memorável “Ateliê de Coreógrafos Brasileiros”, que investia pesado em divulgação entre
outdoors, TV, publicidade, etc.
Somado a isso tudo, ainda existia a Escola de Dança da Funceb e o Balé do Teatro
Castro Alves. Todas essas ações juntas conformavam um tipo de política pública do
Estado da Bahia para a Dança, mas pouco se discutia como o agenciamento dessas
ações delineavam um certo perfil da política que se esperava, ou melhor, de uma agenda
política, com planos, diretrizes e metas; e nesse sentido, poderia dizer que era uma
agenda política que pouco pensava sua ética, pois se não havia espaço de discussão e
avaliação entre os setores engendrados por essa política, não havia também espaço para
o outro, a chegada do outro, o que seria um primeiro traço da ética em qualquer política.
Arriscaria ainda mais: se não havia ética, não poderíamos falar de política. No máximo o
que se havia, tomando essa minha curta experiência que dei conta de relatar aqui como
referência, não passava de administração de bens. E uma mera agenda de gastos e
esforços do equipamento público [algumas vezes, bem sucedida e outras tantas, não],
porém muito distante do que poderíamos chamar de uma política pública cultural.
2 – Como você vê a gestão da cultura, em especial para a dança, adotado pela Secretaria de Cultura da Bahia, na gestão de 2007 a 2010? Houve uma tentativa de abertura ao diálogo, esse foi o grande ponto de diferença no
período de 2007 a 2010. Passou-se a perguntar: como podemos fazer e quais demandas
nós temos? Esse “nós” era então mais friccionado entre Estado e organizações da
sociedade civil. A entrada de Lúcia Matos para DIMAC marcou esse assertiva. Como já
disse, ela era um membro do Fórum de Dança da Bahia (FDB), do Fórum Nacional de
Dança e uma das representantes das Câmaras Setoriais. Seu plano de gestão, que se
não me engano se chamava “Pró-Dança” e que fazia referências ao plano de dança do
Estado de Pernambuco, tentou rascunhar de alguma maneira uma continuidade entre as
discussões geradas nesses espaços de diálogo que já ocorriam desde a gestão anterior,
103
mas que pouco tinham inserção no pensamento das políticas de governo para cultura até
2007. Tenho retornado muito a participação do Fórum na construção dessas políticas,
porque foi ali que mais vi questões serem efetivamente debatidas e partilhadas. Não há
como não reconhecer os traços do Fórum de Dança da Bahia na elaboração das políticas
públicas do Estado para o setor; tanto que nos outros setores, onde os fóruns não eram
tão organizados, ou quase não existiam, os caminhos de elaboração para as políticas que
se iniciavam nesse período, seguiram lógicas muito distintas da área da dança.
Não sei avaliar se para melhor ou não, mas tal distinção deu à elaboração das políticas
para Dança outro agenciamento de tempo. Não sei se posso dizer isso com tanta certeza,
mas tinha a sensação que o setor da dança estava mais maduro nas discussões quando
nos víamos em reuniões que abarcavam todos os setores. Não maduros no sentido de
mais experientes, porém sim no sentido de sabermos mais claramente quais eram nossas
demandas e urgências, até porque, diferentes dos outros setores, a atenção que era dada
a Dança pelo Estado anteriormente era quase zero. Nesse sentido, me parece que
quando íamos às reuniões tínhamos que ser mais pontuais, com proposições diretivas e
assim o FDB tornou-se uma referência, temporal inclusive, pois as demandas que
apresentávamos tinha histórico de discussão e muitos pontos de conexão, como o as
discussões da Câmara Setorial de Dança, do Fórum Nacional de Dança, além do apoio
da Universidade, através da Escola de Dança da UFBA.
A maior lembrança do período inicial é essa: o diálogo. Lembro-me que no início da
gestão de 2007 eram tantas reuniões com os gestores da SeCult que alguns colegas
começaram a desistir dos encontros, pois ao mesmo tempo em que se via a importância
em tais encontros também se sentia que estávamos nos repetindo muito... havia uma
urgência! O buraco na atenção à Dança na gestão anterior era tão-tão imenso, que era
quase unânime tal necessidade de urgência. Os artistas e os agentes da cultura estavam
“sedentos”, queriam ver algumas daquelas discussões já contempladas. Assim o “Pró-
Dança” foi uma resposta que aliviou um pouco, ou quase que imediatamente, os corações
e as salivas.
Porém, apesar de reconhecer que havia um esforço para se produzir um pensamento da
política mais do que a execução imediata da ponta final, que era como se ter acesso, ou
melhor, como partilhar tal pensamento – o edital – foi essa última ponta que também mais
marcou ou despertou o interesse de muitos agentes da cultura nesse período.
104
Não pude acompanhar muito os outros setores, mas lembro de que a sensação para
alguns da Dança é que, com a chegada dos editais, ou melhor, a massiva ampliação e
investimento no edital como principal método de acesso (inclusive com a queda da
exigência de pessoa jurídica), que era acompanhado com o discurso de “democracia”,
finalmente teríamos chegado a um ponto inicial de uma política pública para cultura
efetiva e participativa. Lembro que as minutas dos editais eram disponibilizadas para
consultas, e antes da publicação era reservado um tempo para envio de críticas e
sugestões, que poderiam ser atendidas pelos gestores, na medida do possível. Até
mesmo a eleição dos nomes de quem avaliaria os projetos entrava nessa discussão em
atrito governo e organizações da sociedade civil. Havia diferentes meios de participar: ou
através do FDB, ou através de Grupos e instituições que os artistas ou agentes da cultura
estivessem envolvidos (universidades, grupos de dança, escolas, associações, sindicato,
etc.); ou ainda diretamente, nas reuniões com os gestores abertas a toda comunidade.
Meio a toda conversação, somava-se ainda a ampliação de recursos, com a chegada do
Fundo de Cultura, além de um rascunho de diversidade de linhas. Digo rascunho porque
algumas dessas linhas depois foram desaparecendo, como foi o caso da linha de
“Pesquisa e Memória da dança” e “Residência Artística no Exterior” (para citar algumas
que lembro agora). Alguns dirão que essa última mudou de nome, e tornou-se parte do
programa de Difusão e Intercâmbio do Estado da Bahia, mas posso dizer que os dois
mecanismos são diferentes, abrem margem para proposições diferentes. Tive projetos
aprovados nos dois mecanismos e reconheço que o investimento direto em “Residência
Artística no Exterior” reserva especificidades que podem não ser contempladas do
Programa de Difusão de Intercâmbio, mas infelizmente não poderei discutir sobre isso
agora.
Durante muito tempo acreditei nos editais, na sua práxis. Porém sempre fiquei com um pé
atrás quando se dizia [diz] que esses mecanismos eram [são] em si democráticos. Venho
aprendendo cada vez mais que democracia nunca é nada em si; é sempre uma promessa
espectral (e aqui, fazendo ecos a Derrida, falo não somente no setor da cultura, mas é da
democracia o seu estado espectral: algo que achamos que já vivemos, que já passou, e
que está sempre porvir... a democracia nos assombra). Aprendi muito cedo também que
edital é uma linguagem, tem seus rituais performativos de eficácia. Aqueles que
pretendem participar do Edital têm que, antes mesmo de desejar participar, estar sob tais
105
critérios de eficácia. É preciso saber escrever projeto, é preciso poder saber escrever... ter
o que inscrever, inclusive.
Lembro que a primeira leva de editais do Estado, o CoMteMpu’s foi contemplado com três
projetos, em mecanismos diferentes. Eram projetos bons, claro, tinham seu grau de
“interessância”. Mas tenho também plena consciência que eles foram aprovados porque
não haviam muitos outros que podiam participar daquele mecanismo, dentro daqueles
critérios e a tempo dos prazos. O CoMteMpu’s era um grupo que já existia há pouco mais
de dois anos, tinha já uma curta trajetória de trabalho, antes da ampliação dos editais.
Quem poderia se inscrever para circulação se não os grupos que tinham o que propor
para circular, por exemplo, no primeiro “Edital Ninho Reis – Circulação de Espetáculos de
Dança no Estado da Bahia”, lançado em 2007? Agora, quais grupos existiam, quantos,
antes dos editais se expandirem, mantendo um certo grau de continuidade, que poderiam
se inscrever nesses mecanismos? E depois de aprovado, quem conseguiu sobreviver ao
Edital (com todos seus problemas de atraso de repasse, burocracia extrema – que certa
vez, a tempo, chamei de “burrocracia” entre alguns posts no blog do CoMteMpu’s – falhas
diversas, etc)?
Avalio que com o passar do tempo toda aquela euforia inicial se estagnou ai, no edital. A
impressão que tenho sobre esse período é que em um dado momento a coisa de
estabilizou, com alguns pequenos aprimoramentos, mudança de nomes, algumas regras
e valores, mas pouco se mexeu estruturalmente. Chegou-se a uma fórmula de aplicação
da política e depois pouco se discutiu a política ou modos de execução da política. Os
rascunhos de uma ética-política que fizemos logo no início foram se enfraquecendo, pois
passamos a ter que atender a uma velocidade de produção que não nos dava tempo para
dedicarmos a pensar o porquê atendermos a esses editais dessa maneira. Para mim, que
participei engajadamente, apoiando inclusive a ampliação de tais mecanismos, ficou um
sentimento de que mesmo eu, que estive ali participando muito perto da elaboração
daquelas diretrizes, não posso dar conta dessa política que se encerra [centramente] no
Edital. Sei escrever, sei pré-produzir, produzir, planejar, prestar conta, sou totalmente
elegível (até fundei uma empresa com CNPJ, cheio de números e passaportes), mas não
tenho como sustentar os meus desejos como artista dentro dessa economia do edital.
De política, passamos a uma economia. Em um dado momento nesse período de 2007 a
2010, ser artista da Dança na Bahia tinha referência quais/ quantos editais você ganhou
106
esse ano. Por essa referência se mediam quantos possivelmente você ainda poderia
ganhar. Vi grupos sendo acusados de monopolizar os editais; mas para mim, sempre
acreditei que o que acontecia era a afirmação daquilo que chamei agora pouco de
condições de eficácia da performatividade da coisa edital: em que medida você conhece
os rituais dessa linguagem e se és, portanto, elegível para executá-la. A [in]felicidade via
um edital se dá aí. Os ganhos e perdas, o engendramento de tal economia do edital,
pulverizou, outra vez, os rascunhos de nossa promessa espectral de política cultural.
Por outro lado, se viu nesse período também um boom de produções independentes.
Novos grupos, novos artistas, outras formas de articular se produziram. O medo dos
meninos da UFBA teve que ser reduzido, pois era incondicional que as produções
tivessem alguma relação com a universidade. Afinal, escrever projeto é parte do cotidiano
de qualquer aluno universitário.
Em 2010, o CoMteMpu’s foi contemplado no Edital de Apoio a Grupos Artísticos do
Estado da Bahia, na categoria 1, R$ 150 mil. Era a maior categoria do edital, destinada a
grupos com no mínimo 3 anos de continuidade de trabalho (além de exigências
burocráticas como CNPJ, registros dos profissionais na delegacia regional do trabalho, o
famoso e polêmico DRT, etc), que contemplaria apenas um grupo de dança e um grupo
de teatro. Desde que entrei nessa discussão sem fim sobre política pública para Dança,
sempre ouvi que a “manutenção” dos artistas e grupos era o auge de todas experiências
de política pública no Brasil, e fora, como no modelo gestado pela França nos anos 80.
Ou seja, inscrever uma proposta para esse edital, na minha experiência, era colocar a
prova tudo aqui que ajudei a gestar ativamente na política pública do estado, estando fora
do governo [Sempre fui artista independente. Nunca tive um espaço garantido por
nenhuma instituição para trabalhar com meu grupo. Tivemos apoios, mas todos
conquistados a duras penas, insistindo em vínculos que por vezes só existiam em nossos
imaginários]. Realizar o projeto de Manutenção apoiado pela política pública do Estado
tinha um valor histórico, simbólico, até porque era o primeiro ano de um edital com tal
perspectiva. No entanto, a experiência foi pavorosa, pois fomos vitimas da economia, ou
melhor, do comércio gerado pelos editais.
O “Pró-dança” com o passar do tempo foi esquecido... virou contabilização de edital. O
Estado virou uma máquina de produzi edital, mas pouco se dedicou a pensar como dar
conta da continuidade plena, ou em condições mínimas de plenitude, da máquina.
107
Resumindo a longa história, foram quatro anos tentando encerrar um projeto de
manutenção. Infinitos atrasos de repasse e as burrocracias sem fim nos levaram a trocar
de projeto infinitas vezes. O projeto de manutenção, sem dúvida, contribuiu para o
desfazimento de muitos elos afetivos do Grupo CoMteMpu’s. Brigas internas foram
geradas pelo dinamismo da “manutenção”, que além de todos os problemas de ordem
institucional, ainda exigia de nós um tipo de organização que não era compatível com
nosso modo de trabalho. Nenhum grupo que trabalhe com redes de cocriação consegue
manter uma mesma proposta atividades que se iniciam e são interrompidas, seguindo
essa gagueira por quatro anos. Ao mesmo tempo, não podíamos desistir do projeto, pois
a existência do contrato e todo fator jurídico implicado daí nos colocava uma outra
responsabilidade que pouco poderíamos dar conta. Se o recurso não chegava, não havia
muito o quê fazer e com certeza cancelar o projeto nunca pareceu a melhor opção.
Arrastamos quatro anos esse projeto, terminamos agora há pouco, fazendo um esforço
para manter a qualidade de nossas proposições. O projeto aconteceu. Realizamos todas
as ações que nos comprometemos, salvo as devidas e incondicionais adaptações trazidas
pelo tempo (pra se ter uma ideia: quando nos inscrevemos o grupo tinha 5 anos de
trabalho continuado, hoje são nove anos e já nos perguntamos se afirmar “continuado”,
sem titubear, ainda faz sentido), mas a proposta de manutenção enquanto política pública
falhou.
A máquina pública é burra e lenta. Já é sabido por todos que ela não dá conta de
acompanhar o dinamismo da cultura. O edital, em algum momento nos cria uma ilusão de
que vamos conseguir dobrar “a coisa” toda, mas “a coisa resiste”.
3 – Você percebe mudança em seu trabalho de criação, seja na forma ou no resultado, em decorrência dessa mudança na forma de implementar políticas públicas.
São inevitáveis tais mudanças. Meu relato até aqui já disse muito sobre isso, mas preciso
ainda registrar que não me interesso em realizar processos que partam da iniciativa de
atender a um edital. Ou seja, não proponho trabalhos em determinados moldes apenas
para atender à economia do edital (a forma de implementar políticas nos últimos anos).
Acredito que perde-se muito aí; para todos os lados, inclusive para mim, que nessa
108
“antipatia” ou “apatia” deixei de produzir muita nos últimos anos [mas o que é mesmo que
se quer dizer que “produzir” em dança? Tenho pensado sobre isso... tenho pensado
inclusive se essa palavra me interessa ou se preciso gastá-la um pouco mais]. Nunca fiz
um projeto para atender a um edital. Ao mesmo tempo entendo quando vejo alguns
artistas tratando sua criação desse jeito, sobretudo quando usam o argumento “tenho que
pagar minhas contas”; sim, há pessoas que vivem com orçamentos majoritariamente
alimentados por esses recursos, e se para pagar contas precisam inventar 10 projetos por
ano, então elas farão 11 projetos. Eu até acredito que algumas delas desenvolvem assim,
dessa necessidade, uma capacidade criativa singular em consonância ao atendimento a
tal economia, mas acredito também, e quero acreditar, que essa não pode ser a única
solução. Tenho ainda esperança que não nos relacionemos com a dança somente por
meios de tais objetos, tais mecanismos.
DADOS PESSOAIS Nome: Dudude Hermmann
Contato: [email protected]
109
Formação (Pequeno parágrafo apresentando informações relevantes de sua formação
artística e/ou acadêmica):
QUESTÃO
Você percebe mudança em seu trabalho de criação, seja na forma ou no resultado, em decorrência da adoção dos editais enquanto instrumentos predominantes na implementação das políticas públicas?
Com certeza, os editais, acredito eu, modificaram e muito os modos operantes de se
trabalhar arte.
A Projetista é um trabalho construído em experiências adquiridas de fato.
Venho dos anos 70 e por assim dizer aprendi a fazer escutando as urgências que se
apresentavam juntadas no desejo de ter com o outro, de colocar coisas no campo da
expressão, de experimentar, de tentar e tentar de novo
Com o aparecimento deste modelo justo, objetivo, justificativa comecei a tropeçar, pois
qual poderá ser realmente um objetivo em arte e com realmente justifica o fazer arte.
Questões para minha pessoa muito difíceis de resposta.
A arte passou a pertencer a ciência exata, haja visto que tudo se resume na planilha
orçamentaria, e para não incomodar ela deve ser obediente, obedecendo todos os
critérios de um determinado Edital que se coloca determinante para seu desejo de
criação.
Tive um estudio de 94 a 2009 fechei com prazer, tive uma companhia de 92 a 2007
encerrei com prazer, se perguntam porque? Eu respondo : não tinha mais saúde para
tantos editais, tantos projetos lançados ao vento, e nenhuma certeza de apoio e
visibilização.
A receita do estudio : desapareceu, ninguém mais queria pagar as mensalidades, contra
partida social modificou também o aprendizado em dança.
Ainda não vi um Edital que preze pela confiança no artista, e pela liberdade do fazer
alterando os rumos pretendidos por entrar em um processo e encontrar questões mais
110
potentes.
Tenho esperança, mas hoje em dia economizo minha imaginação, faço cada vez mais
simples.
Se perguntam o que vc quer ser quando crescer??? rsrsrs gostaria imensamente de
trabalhar com gente, de criar com gente, de gastar para nada, para o exercicio da
imaginação, criar mundos de potencia sensível.
Por enquanto estamos todos reféns destes mecanismos, dependentes por uma simples
questão de sobrevivência.
E infelizmente isso não é só comigo.
ANEXO 2: TEXTO DO EDITAL 09/2011 – PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL
EDITAL 09/2011 -‐ PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL
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Fábio Osório Monteiro, no uso das atribuições que lhe confere a Dimenti Produções Culturais LTDA, torna público o presente edital do EDITAL 09/2011 -‐ PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL, válido em todo o território nacional. 1. DO OBJETO 1.1 Constitui objeto do presente Edital a seleção, em todo o território nacional, de 01 (uma) única proposta de obra autoral de texto, coreografia, tema, ideia ou projeto de criação cênica performática, que, depois de selecionada, poderá ser desenvolvida de forma autônoma pelo performer Fábio Osório Monteiro (vide currículo no Anexo I), do Grupo Dimenti, de Salvador, Bahia, em trabalho solo de teatro e/ou dança.
Agenda do Edital
Inscrição 18 de abril até o dia 06 de maio de 2011 (o prazo da inscrição se encerra às 18 horas)
Seleção De 07 a 11 de maio de 2011 Divulgação dos resultados da seleção
Até 12 de maio de 2011. O resultado será divulgado através do site www.dimenti.com.br/blog.
2. DAS CONDIÇÕES 2.1 Estão habilitados a participar do EDITAL 09/2011 -‐ PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL dramaturgos, diretores teatrais, atores, dançarinos, coreógrafos, artistas plásticos, músicos, performers, teóricos e criadores em geral, na qualidade de pessoas físicas, sem distinção de credo, cor, religião, raça, estilo, qualidade estética; Parágrafo Único – Não é permitida a participação de integrantes do Dimenti, parentes em qualquer grau de membros da Comissão de Seleção, nem os membros da referida Comissão. 2.2 Os participantes, a partir de agora identificados como “proponentes”, poderão se inscrever apenas como pessoa física. 2.3 Cada proponente poderá inscrever quantas propostas desejar. Parágrafo Primeiro – A proposta apresentada neste edital poderá ser inscrita em qualquer outro edital de qualquer outra instância, pública ou privada.
112
Parágrafo Segundo – Em caso de apresentação, por um mesmo proponente, de mais de uma proposta, o artista performer se reserva o direito de fundir as ideias desejadas. 2.4 O prêmio se destina à seleção de uma ideia cênica, que tanto pode ser apresentada como questão ou assunto inicial, a ser integralmente desenvolvida pelo performer Fábio Osório Monteiro, (Dimenti-‐BA); como pode vir acompanhada de uma sugestão formal, como texto escrito, coreografia, trilha musical, projeto de encenação. Ainda que estruturada sob uma proposta formal (texto, coreografia, música, ambiência visual etc.), a ideia poderá ser aproveitada em outra concepção estética pelo performer. O texto, coreografia, etc, poderá ser desconstruído, rearranjado, mixado a outros materiais ou editado, segundo a concepção cênica do performer e de seus colaboradores diretos. Parágrafo Primeiro – A seleção da proposta não supõe a participação direta do proponente no processo de montagem. Parágrafo Segundo – O proponente deverá apresentar carta de propriedade e liberação total dos direitos autorais, ao performer, no caso a escolha da sua proposta ao edital. (vide modelo no anexo II) 2.5 A proposta selecionada será desenvolvida de forma cênica, visando apresentação de agosto a setembro de 2011, no Teatro do ICBA Goethe Institut – Salvador/BA. Parágrafo Primeiro – O resultado cênico deverá ter a duração de até 35 (trinta e cinco) minutos. Parágrafo Segundo – O resultado cênico será de propriedade autoral e intelectual de Fábio Osório Monteiro, cabendo só a ele decidir sobre a liberação e negociação da obra. 3. DA EQUIPE 3.1 Além de Fábio Osório Monteiro, performer e idealizador do projeto farão parte da equipe os seguintes profissionais:
a) Jacyan Castilho – Cocriadora (vide currículo no anexo I) b) Gabriel Pedreira – Registro e produção (vide currículo no anexo I)
Parágrafo Único – A concepção de cenário, figurino, iluminação e demais recursos será de responsabilidade do performer e da equipe diretamente envolvida. 4. DAS INSCRIÇÕES 4.1 As inscrições serão realizadas no período de 18 de abril até o dia 06 de maio de 2011, às 18h.
113
4.2 Serão desconsideradas as inscrições feitas após a data e horário de encerramento. 4.3 As inscrições acontecerão única e exclusivamente por meio eletrônico. Os projetos deverão ser encaminhados para o e-‐mail: [email protected] 4.4 Para que a inscrição seja efetivada, é necessário o envio de: a) Ficha de Inscrição devidamente preenchida (anexo III); b) Descrição da proposta a ser desenvolvida na cena. A descrição pode ser feita em texto, em fotos, em vídeo, em quadrinhos, em música etc. Parágrafo Primeiro -‐ Recomendamos o envio de informações adicionais que possam colaborar com a apresentação da sua proposta como: indicação de links, imagens, músicas, proposta metodológica, etc. Os arquivos devem estar nos formatos pdf, word, excel, jpeg, mp3, mp4, ou wave, e não devem ultrapassar o limite de 25 MB. Parágrafo Segundo -‐ Não é preciso apresentar orçamento. O orçamento para montagem do espetáculo/performance, a gestão financeira e a prestação de contas são de responsabilidade da Dimenti Produções Culturais Ltda. c) Currículo do proponente em formato de texto com as seguintes informações:
• Formações e experiências artísticas; • Interesses estético-políticos: em que tem investido enquanto pesquisa artística.
5. DA SELEÇÃO 5.1 A seleção da proposta que será contemplada pelo EDITAL 09/2011 -‐ PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL será realizada por uma comissão composta por cinco membros, entre integrantes do grupo Dimenti e artistas convidados. 5.2 A Comissão de Seleção é soberana, não cabendo veto ou recurso às suas decisões. 5.3 O resultado final será divulgado no blog do Dimenti (www.dimenti.com.br/blog) até o dia 11 de maio de 2011 (quarta-‐feira). 5.4 Caso a comissão de seleção julgar que nenhuma proposta apresentada atenda aos requisitos da avaliação, poderá se reservar no direito de não contemplar nenhum dos projetos inscritos. Parágrafo Único – Mesmo havendo a seleção e de uma proposta, o performer se reserva no direito de não utilizá-‐la, ou utilizá-‐la quando julgar oportuno.
114
6. DA AVALIAÇÃO 6.1 São critérios gerais norteadores da avaliação da proposta a ser contemplada pelo presente Edital: a) Excelência artística do projeto: qualidade de conteúdo da proposta apresentada, bem como seu valor intrínseco. Avaliam-‐se também aspectos como originalidade e criatividade do projeto; b) Viabilidade prática do projeto: exeqüibilidade em relação ao orçamento global. 6.2 A Comissão de Seleção poderá estabelecer outros critérios de avaliação das propostas a partir destas diretrizes gerais. 7. DA PREMIAÇÃO 7.1 O EDITAL 09/2011 -‐ PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL irá contemplar um único proponente, pela ideia selecionada, no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), valor líquido, pagos em uma única parcela, em até 15 (quinze) dias úteis depois da divulgação do resultado; 7.2. Ocorrendo desistência ou impossibilidade de recebimento do prêmio por parte do proponente selecionado, os recursos poderão ser destinados a outros proponentes, observada a ordem de classificação dos suplentes estabelecida pela Comissão de Seleção; 7.3 O pagamento do prêmio será efetuado em parcela única depositada diretamente na conta bancária (conta corrente) do contemplado. Parágrafo Único -‐ O prêmio sofrerá os descontos previstos na legislação vigente à época do pagamento. Atualmente o desconto de Pessoa Física, para este valor, é de 11% (onze por cento) referente a recolhimento de INSS e de 5% (cinco por cento) referente a recolhimento de ISS. 7.4 Para a realização do pagamento é necessário que o proponente apresente cópia do RG, CPF e número do PIS/NIT, e se for o caso, apresentar a cópia da ficha cadastral e do cartão de isenção do ISS. 8. DAS OBRIGAÇÕES 8.1 O proponente selecionado concorda, automaticamente, com o desenvolvimento autônomo e independente de sua ideia, tema ou projeto proposto, por Fábio Osório Monteiro e pela equipe diretamente envolvida, sem objeções quanto à forma final, linguagem e público alvo do espetáculo resultante de sua ideia. Parágrafo Único -‐ Ao proponente não será dado nenhum crédito, em nenhum material de
115
divulgação e registro do espetáculo, não tendo o proponente nenhuma responsabilidade sobre o conteúdo moral, vocabular, estético, filosófico e corpóreo da encenação resultante. 9. DISPOSIÇÕES FINAIS 9.1 O performer se responsabilizará civil ou penalmente por todo conteúdo constante na obra decorrente da proposta selecionada. 9.2 O performer se responsabilizará pelas licenças e autorizações (Ex.: ECAD, SBAT, pagamento de direitos autorais, quando for o caso, de texto e/ou música, etc.) necessárias para a realização das atividades previstas nos projetos contemplados. 9.3 O ato da inscrição implica a plena aceitação das normas constantes do presente Edital. 9.4 O proponente contemplado autoriza, desde já, Fábio Osório Monteiro e seus patrocinadores o direito de mencionar seu nome, quando entenderem oportuno, sem qualquer ônus, nas peças publicitárias, fichas técnicas, material audiovisual, fotografias e os relatórios de atividades. 9.5 Os casos omissos serão apreciados e resolvidos diretamente entre o performer e respectivo interessado. 9.6 O presente Edital ficará à disposição os interessados através do blog do Dimenti (www.dimenti.com.br/blog). 9.7 Outros esclarecimentos podem ser obtidos pelo e-‐mail [email protected] ou pelos telefones 71 3336-‐6331 e 71 9962-‐5658. Salvador (BA), 18 de abril de 2011 Fábio Osório Monteiro
FICHA DE INSCRIÇÃO EDITAL 09/2011 -‐ PARA AQUISIÇÃO DE OBRA AUTORAL
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1. DADOS DO PROJETO 1.1. Título do Projeto: 2. DADOS DO PROPONENTE 2.1. Nome do Proponente 2.2. CPF 2.3 RG
2.4. Endereço: 2.5. Cidade: 2.6. UF:
2.7. CEP:
2.8. E-mail:
2.9. Telefone:
2.10. Celular:
3. DECLARAÇÃO 3.1. A inscrição efetuada implica na minha plena aceitação de todas as condições estabelecidas no Edital. 3.2. As informações prestadas são verdadeiras e de minha inteira responsabilidade. 3.3. Local e Data:
3.4. Assinatura do proponente*:
* Assinatura obrigatória.
ANEXO 3: TEXTO ESPETÁCULO “EDITAL”
117
EDITAL De Fábio Osório Monteiro
Boa noite, meu nome é Osório e eu deveria estar aqui para apresentar o meu trabalho
autoral, uma peça minha, mas aconteceram uns probleminhas que eu preciso deixar
vocês á par. Eu sou intérprete do Dimenti desde a formação do grupo em 1998. O Dimenti
é um grupo lá de Salvador que trabalha com dança, teatro e obras audiovisuais e em
2002 o Dimenti se constituiu enquanto empresa e passou a ser também a Dimenti
Produções Culturais Ltda, que realiza a produção das ações do Grupo Dimenti e também
a produção de outros artistas. Então, no Dimenti, eu trabalho tanto como intérprete, nos
trabalhos do repertório do grupo, quanto como produtor na Dimenti Produções Culturais.
Em 2010 o Dimenti foi contemplado com o Edital de Manutenção de Grupos da Petrobrás
com o Projeto Manutenção Dimenti. Neste projeto cada intérprete do Dimenti deveria
desenvolver um trabalho autoral. É assim, deferente de ser só interprete, ator, dançarino
eu deveria ser o autor, diretor do meu próprio trabalho. Bom, todo mundo muito
empolgado com a tão esperada manutenção, pensando e decidindo com maior ou menor
agilidade, maior ou menor certeza, sobre o que queria fazer. O que foi que eu fiz? Eu criei
os meus deadlines para decidir sobre o que seria o meu projeto, qual seria a minha
equipe. Mas, o que aconteceu? O prazo que eu me dei venceu e eu não tinha resolvido
nada. Então eu me dei um segundo prazo, um terceiro prazo, mas meus prazos sempre
venciam e meu projeto não vinha. Eu Pensava que era porque eu não estava me
dedicando muito a pensar sobre, mas sempre que eu pensava não conseguia decidir
nada.
[TOCA O CELULAR PARA PEGAR O PROJETOR. COMEÇA A MONTAR]
Esses prazos foram vencendo, vencendo, vencendo até que chegou o dia da reunião do
Dimenti onde cada um deveria apresentar o seu projeto e sua equipe, com maior ou
118
menor certeza, e eu não tinha nada para apresentar. Eu não tinha o meu projeto autoral.
A minha proposta não veio. Aquilo detonou uma crise muito grande em mim. Porque eu vi
que era o único a não saber o que queria fazer, nesse momento onde eu tenho a
estrutura e que ganho para fazer isso. Logo, nesse momento em que eu sou pago por
você, porque sim, meu salário vem do dinheiro público eu não consigo decidir o que eu
quero fazer enquanto artista? Quando percebi que eu não tinha nada que achasse
interessante para levar à cena, eu me senti menos artista. Naquele momento eu achei
que o meu lado produtor estava ocupando o lado artista. Eu chorei. Me lembro de ter
falado chorando no final da reunião que, já que eu não tinha uma idéia eu iria lançar um
edital para comprar uma. Quer dizer: era o desespero do produtor tentando resolver uma
demanda do artista. Naquele momento eu não servia para a cena da dança
contemporânea. Eu não prestava para isso. Eu não era um artista legitimado porque eu
não tinha meu trabalho autoral.
Me deram a opção de não fazer, mas eu achei que se eu não fizesse nada estaria
endossando a minha condição de ser menos artista. De um artista menor. De um artista
medíocre. Na hora os meninos acharam graça, mas ninguém levou a sério e eu levei a
minha crise pra casa.
Bom, o tempo continuou passando e eu acabei comentando essa história da reunião com
um amigo meu, que me deu o maior incentivo: “Faça isso mesmo, Zófi. Pode ser super
legal. Pode detonar um monte de coisa e tal...”. Como ele já havia feito vários trabalhos
autorais e eu não tinha a menor noção do que fazer... É aquela história, né? Pra quem
não sabe pra que lado vai, qualquer direção serve.
[TOCA O TELEFONE PELA SEGUNDA VEZ. CONVERSA BREVE SOBRE TRABALHO]
Aí eu resolvi meter a mão na massa e lançar de fato o edital. Como um edital é uma
ferramenta que eu trabalho muito, e que também é comum à classe artística, achei que
seria uma boa forma de deixar bem claro como funcionaria o processo eu optei por ele.
Pra quem não conhece como funciona um edital em artes cênicas é assim: Sabe
concurso público? Quando o TRE, ou a Petrobrás abre um concurso público a gente se
mata de estudar, quando chega no dia da prova percebe que tem um montão de gente
concorrendo com a gente, depois da prova feita fica aguardando o resultado, depois que
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sai e vê que é o primeira vez que é aprovado depois de muitos concursos feitos, aguarda
a convocação pra só aí começar a trabalhar e ganhar o dinheirinho. Num edital de artes
cênicas é bem parecido, com uma pequena diferença do final. A Petrobrás abre o edital
pra projetos artísticos. A gente pensa, matuta, queima pestana durante um tempo, lê uns
livros que possam colaborar com a nossa ideia e cria um projeto. Depois dele criado a
gente inscreve ele nos editais. Quando sai a lista dos habilitados, você descobre que tem
um monte de gente concorrendo com você. Aí a gente aguarda de três a seis meses pra
sair o resultado, se você passar em um se dê por satisfeito. Em passando, você aguarda
mais um tempo pra ser convocado a assinar o contrato. Aguarda mais um tempo para a
liberação da primeira parcela (sim, porque a grana não sai toda de vez), pra só então
começar a executar seu trabalho. Sendo que esse projeto só vai te trazer grana por
alguns meses e antes dele terminar você tem que começar a elaborar o outro. O grande
diferencial entre eles é que o edital comum, pode garantir a sua sobrevivência por toda a
vida, já o de artes cênicas... Então enquanto você está executando um projeto, você está
prestando contas do projeto anterior e elaborando o próximo. Edital em artes cênicas é
isso. Como eu trabalho com esse mecanismo diariamente conheço muitos editais, que na
verdade mudam pouco entre eles, e então resolvi ler os principais e deles tirar a
linguagem e formato aplicado. Cheguei nisso aqui: Edital 09/2011 – Para Aquisição de
uma obra autoral.
[PROJETA EDITAL: LÊ OS ITENS, OBJETO, AGENDA, AVALIAÇÃO, CONDIÇÕES
(PROPONENTE E VIA E-MAIL)]
E tem outra coisa: se a gente parar para reparar em quem é convidado para os festivais,
quem é convidado para fazer uma residência, quem ganha edital, quem consegue
sobreviver da dança contemporânea hoje, é quem tem, é quem desenvolve o seu projeto
autoral. Intérprete só já era! E tem que ser trabalho simples, se não, não circula. Não
venha com trabalho em trio que tenha cenário que dependa de transporte que você não
viaja.
Depois de lançado o edital fiquei na expectativa das propostas. Na primeira semana
chegou uma. No final de segunda semana chegou outra. Aí pintou a preocupação porque
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estava se aproximando o prazo de encerramento e eu só tinha duas propostas.
Preocupação desnecessária. Porque, eu enquanto produtor, poderia imaginar que os
projetos só chegariam no talo. Resultado: nove das onze propostas chegaram no último
dia de inscrição.
[IMPRIME PROPOSTA KATIÚCIA]
Depois de receber as propostas, imprimi uma por uma e coloquei sobre a mesa. Fui
lendo, lendo, até chegar nessa aqui. É uma proposta que apresenta um texto base e me
oferece quatro opções de montagem.
[LEITURA DO TEXTO ATÉ A CENA DO MENDIGO]
Mas eu não sabia se era isso que eu queria. Eu não sabia se eu saberia fazer aquilo
direito. Eu não sabia que eu tinha gostado. Bom, deixei a proposta guardada para voltar a
ela depois.
[COLA PROPOSTA NA PAREDE. IMPRIMI TORMENTA E LIGA A CAMERA]
Me propuseram também um curta. É um projeto bacana. Bem grande, completo.
Apresentação, objetivos, cronograma. Gente tinha até um cronograma!!! É a proposta de
um cura metragem em 35 mm sobre uma jovem negra... (Se filma depois volta para o
texto. Apresenta até o orçamento e tira várias fotos). O problema é que eu não tinha esse
recurso. Aí esse projeto acabou sendo diligenciado.
[COLA TORMENTA NA PAREDE]
Aí começa a minha briga comigo mesmo, porque o meu lado artista até se interessou pelo
projeto, mas o meu lado produtor me diz que eu não tenho como executar isso. Eu tenho
em mim essa confusão que pode ser uma relação entre artista e produtor. Realmente já vi
muito muito muito ruido entre artista e produtor principalmente por conta de falta de noção
de nós artistas. Falo de cadeira porque ás vezes tenho esse mal estar de mim para
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comigo. Para nós, artistas, é bem claro que não somos responsáveis por tudo que é
artístico num projeto - luz, fotografia, música, video etc, mas é muito comum nós, artistas,
acharmos que nós, produtores, somos responsáveis por tudo - captação, logística, contra-
regragem, divulgação, sucesso de público etc. Quer dizer, nós queremos uma babá. E é
legítimo querer uma babá, eu só não posso achar quie o meu produtor sera a minha. Acho
que devemos cuidar disso com muito carinho. Já tive uns barraquinhos com artistas que
falavam que nunca haviam conseguido um produtor competente pra trabalhar. Aí eu, que
não sou a melhor pessoa do mundo, alfinetava dizendo que nunca havia trabalhado sem
um produtor competente, até porque, né? Eu sei que há produtor escroto no mundo, mas
também tem muitos muitos, de nós artistas, que acham que nós, produtores, somos
capacho. Äs vezes eu paro pra pensar sobre essa experiência estranha: lançar um edital
para comprar, na mão de alguém, uma ideia autoral. Mas, na verdade, o absurdo vem de
muito antes. Bem, eu me chamo Osório. Não! Eu não me chamo Osório. Eu me chamo
Fábio Luís Oliveira Monteiro e Osório foi um apelido, que me foi dado, e contra o qual eu
lutei durante muito tempo. Sou um artista graduado em Administração. Sou artista porque,
contra a minha vontade, colocaram o meu nome no elenco de um trabalho de escola e eu
acabei parando num grupo de teatro. E sou administrador porque quando eu prestei
vestibular eu não sabia o que queria fazer e meu irmão mais velho já estava perto de se
formar em administração, aí eu pensei em colar nele. Semanalmente eu replico várias
assinaturas que não são minhas. Por que sair correndo atrás de um monte de gente pra
ter a carta de anuência é difícil, né? Tudo com consentimento, é claro! Á exceção das
assinaturas de minha mãe, que na adolescência me autorizava a sair da escola para que
eu pudesse me apresentar com o Dimenti no meu horário de aula. Eu gosto de futebol e
sou frequentador assíduo de estádios porque meu tio, irmão da minha mãe, me levava
semanalmente quando criança e me entupia de comida, quer dizer, não tem criança que
não se apaixone por isso. [MOMENTO ASPAS] “Osório”, “artista”, “administrador”,
“apaixonado por futebol”, assina pelos outros... Eu gosto de camisas com listras e uso
barba porque sou fã de Los Hermanos. A minha risada é de Zacarias!!! Um cover. Eu sou
um cover. Quer dizer, eu sou um tipo de drag-frankstain e sub-loco meu próprio desejo.
[MUSICA EU TAMBÉM QUERO BEIJAR (PEPEU) - MONTAGEM DE DRAG]
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Á medida que eu fui lendo as propostas eu fui vendo que eu não sabia o que eu queria.
Não tinha certeza sobre que tipo de projeto eu tava procurando, mas eu sabia o que eu
não queria. Eu não queria vir pra cena falar de mim. Não queria vir pra cena dizer se eu
sou negro, gordo, careca, gay. Não queria dizer minha vida não fará sentido se eu tiver
pelo menos três filhos. Não queria vir aqui falar da minha relação com meus pais. Eu não
queria um trabalho autobiográfico. E tem uma proposta que era exatamente assim.
[IMPRIME PROPOSTA DE RICARDO. FALA O TEXTO ABAIXO. LÊ AS
RECOMENDAÇÕES ENQUANTO MONTA O SCANER]
[PROJETA A IMAGEM CRIADA E COMENTA]
Depois de muito pensar, eu resolvi olhar para as propostas como um todo, como sendo
uma coisa só e ver o que se apresentava. Cheguei no seguinte:
[COMEÇAM AS PIZZAS NA PAREDE]
64% São de homens / 36% São de mulheres
Dos 64%, 56% são gays assumidos / 44% se dizem heterossexuais
64% São da Bahia / 36% de outros estados
Desenha uma pizza errada
Dos 36%, 75% são do Paraná e 25% são de Santa Catarina
1 das 11 proposta eu escolhi
25% chegaram com documentação incompleta
90% dos proponentes eu conheço
A maior proposta tinha 2.400 palavras e 92 parágrafos distribuídas em 17 páginas
A menor proposta tinha 82 palavras e 3 parágrafos distribuídos em 01 página
As palavras que mais apareceram foram SER (72 vezes em 09 projetos), a Segunda
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palavra foi OTELO (ESCREVE VÁRIAS VEZES ANTES DE FALAR), que apareceu 52
vezes em 01 projeto. A terceira palavra foi CORPO, que apareceu 47 vezes em 10
projetos e a quarta palavra foi IAGO, que apareceu 39 vezes em 01 projeto.
O menor projeto, aquele de 82 palavras, ele me dava palavras-chaves para o
desenvolvimento do trabalho entre foram elas: [COMEÇA A TOCAR O CELULAR] Edital,
burocracia, corpo, religião e ser. Um poder de síntese absurdo porque duas das cinco
palavras indicadas estavam entre as mais recorrentes. Mas ele não me dizia o que
deveria ser feito.
[ATENDE O CELULAR, SAI CONVERSANDO. DÁ UM TEMPO E VOLTA]
Pessoal eu terei sair, mas podem ficar á vontade. Vou deixar a porta aberta pra vocês.
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