UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO
MESTRADO EM DIREITO
MAURÍCIO SOUZA SAMPAIO
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E INSTITUTOS DE PARTICIPAÇÃO DIRETA
Salvador 2005
MAURÍCIO SOUZA SAMPAIO
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E INSTITUTOS DE PARTICIPAÇÃO DIRETA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Público da Universidade Federal da Bahia – UFBA, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre, sob a orientação do Professor Doutor Saulo José Casali Bahia
Salvador 2005
___________________________________________________________________ S192 r Sampaio, Maurício Souza
Representação política e institutos de participação direta / Maurício Souza Sampaio. – Salvador, 2005.
200 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade
de Direito, 2005. Orientador: Professor Doutor Saulo José Casali Bahia 1. Representação Política. 2. Política. 3. Democracia. 4. Estado. 5.
Referendo. 6. Forma de Governo. 7. Regime Político. I. Bahia, Saulo José Casali (Orientador). II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Direito. III.Título.
CDD - 320 ___________________________________________________________________
TERMO DE APROVAÇÃO
MAURÍCIO SOUZA SAMPAIO
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E INSTITUTOS DE PARTICIPAÇÃO DIRETA
Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:
Nome: Saulo José Casali Bahia Titulação: Doutor em Direito pela PUC/SP Nome: Titulação: Nome: Titulação: Conceito: Salvador,
A
Claudia, minha esposa, pela paciência e incentivo.
Dida, minha mãe, por ter me oportunizado estudar e aprender.
Só existem dois dias em que nada pode
ser feito: um se chama ontem, o outro amanhã.
Dalai Lama
RESUMO
Essa dissertação tem como proposta uma análise da Democracia Semidireta no Brasil pautada numa suposta crise, causada pelos problemas atuais da representação política e pelos limites dos instrumentos de participação direta. Para iniciar, faz-se necessário fazer uma abordagem do que é estado e seus elementos estruturais: formas de governo; povo, participação e cidadania; regimes políticos, aludindo-se com especificidade à Democracia Semidireta, que é o caso brasileiro, suas características, conceitos, histórico, institutos etc. Diante disso, caberá uma análise mais específica e profunda da representação política e suas características, voltando-se principalmente à demonstração da grave crise por que passa essa parte da Democracia Semidireta, além de abordagens acerca dos mecanismos propostos pela legislação à participação popular, especificamente, nas atividades legislativas: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular e suas limitações, tanto as formais quanto as materiais, impostas pela legislação à participação direta da população, o que gera, desta forma, a contestação do Brasil como verdadeira Democracia, em virtude da falta de uso efetivo, como deveria ser, dos institutos acima mencionados e do desvirtuamento da representação política. O objetivo do texto é, portanto, tentar demonstrar que, em razão da excessiva gama de limitações aos mecanismos de participação direta da população e de toda problemática da representatividade, a definição do Regime Político da Constituição Federal brasileira, de 1988, como Democracia Semidireta, ou mesmo como uma Democracia, torna-se discutível e contestável.
Palavras-Chave: Estado; Formas de Governo; Regime Político; Democracia; Participação; Cidadania; Representação Política; Plebiscito; Referendo; Iniciativa Popular; Crise Democrática.
ABSTRACT
The purpose of this thesis is to analyze the phenomenon of semi-direct democracy in Brazil based on the pressupposition that a political crisis has been created by the existing problems in the actual system of political representation as well as by the limitations caused by the actual instruments of direct democratic participation. The thesis begins with a definition what is the state and the elements of its government: governmental forms; people, participation and citizenship; political regimes, all contextualized in specific reference to semi-direct democracy, with these characteristics utilized principally to demonstrate the serious crisis through which semi-direct democracy passes in Brazil. Also included are descriptions of the mechanisms proposed by current legislation to increase popular participation, specifically in legislative activities: the plebiscite, the referendum as well as other popular initiatives and their limitations, formal as well as material, with the direct participation of the population a goal imposed by current legislation. This generates the question of whether Brazil is truly a democracy, in virtue of its lack of effective use of these institutions and consequent depreciation of true political representation. The objective of the discussion is, as a result, to demonstrate that, in view of the excessive range of limitations on the mechanisms for direct participation as well the range of problems associated with concept representation in Brazil, the definition of political regime of the Brazilian Federal Constitution of 1988 as semi-direct democracy, or even as pure Democracy, becames questionable. Keywords: State; Governmental Forms; Political Regime; Democracy; Participation; Citizenship; Political Representation; Plebiscite; Referendum; Popular Initiative; Democratic Crisis.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 09
2 O ESTADO E SUAS FORMAS DE GOVERNO 12
2.1 O ESTADO 12
2.2 AS FORMAS DE GOVERNO 17
3 O POVO 34
3.1 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 34
3.2 ASPECTOS RELEVANTES À DEMOCRACIA 40
4 PARTICIPAÇÃO E CIDADANIA 51
4.1 OS ASPECTOS TEÓRICOS DA PARTICIPAÇÃO 51
4.2 A CIDADANIA 57
4.2.1 Contextualização Histórica 57
4.2.2 Contextualização Teórica 60
5 ESPÉCIES DE REGIMES POLÍTICOS 63
5.1 REGIMES NÃO DEMOCRÁTICOS 65
5.2 A DEMOCRACIA 70
5.2.1 O Princípio Democrático 70
5.2.2 O Princípio do Discurso e o Princípio Democrático 80
5.2.3 Origem e desenvolvimento 84
5.2.4 Conceito e aspectos gerais 88
5.2.5 Espécies de democracia 92
6 INSTITUTOS DA DEMOCRACIA SEMIDIRETA 112
6.1 A REPRESENTAÇÃO 112
6.2 A PARTICIPAÇÃO POPULAR DIRETA 114
6.2.1 O Plebiscito 119
6.2.2 O Referendo 121
6.2.3 A Iniciativa Popular 124
7 DEMOCRACIA FORMAL E DEMOCRACIA SUBSTANCIAL 137
8 A CRISE DA DEMOCRACIA 142
8.1 A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E SUA CRISE 143
8.1.1 A Regra da Maioria 152
8.1.2 Os Partidos Políticos e os Grupos de Pressão 155
8.2 LIMITAÇÕES AOS INSTITUTOS DA DEMOCRACIA DIRETA 162
8.2.1 Limitações à Iniciativa Popular 162
8.2.2 Limitações ao Plebiscito e ao Referendo 181
8.2.3 Comissão Permanente de Legislação Participativa 186
9 CONCLUSÃO 190
REFERÊNCIAS 196
10
1 INTRODUÇÃO
Quando se faz uma análise reflexiva sobre a democracia dos tempos
atuais no Estado brasileiro, principalmente aquela alcançada depois do período de
dominação militar que culminou em um novo texto constitucional, a referência mais
forte que se tem dela é a estabelecida na própria Constituição Federal de 1988,
quando em seu art. 1º expõe que o Brasil é um “Estado Democrático de Direito”
(grifo nosso). Junto a isso, o parágrafo único desse mesmo artigo coloca que “todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição” (grifo nosso). Nota-se, portanto, que o
regime político estabelecido por esta Constituição está vinculado à idéia de uma
democracia denominada de semidireta, ou seja, uma combinação de formas de
democracia direta com a democracia representativa.
Ainda de acordo com o texto constitucional, o inciso II do mesmo art. 1º
expõe que um dos fundamentos desse Estado Democrático de Direito é a cidadania
que, baseada em seu sentido estrito, é um vínculo político, próprio do nacional no
exercício de seus direitos políticos, que lhe confere o direito de participar da
formação da vontade política do Estado.
Assim, os atributos da cidadania vinculados ao regime político adotado
pelo Brasil conferem ao indivíduo a possibilidade de participar da vida política do
Estado, seja através da representatividade política, seja pela utilização dos
mecanismos de participação direta na atividade de produção de leis e de políticas
governamentais, que se dão mediante a utilização da iniciativa popular, do plebiscito
e do referendo.
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Acontece que o desvirtuamento do real propósito da representação
política, causado por inúmeras práticas moralmente e juridicamente irregulares, junto
à falta de utilização efetiva e satisfatória dos instrumentos de participação direta
terminam gerando dúvidas acerca da inclusão do Estado brasileiro como uma
verdadeira democracia.
A representação política está desacreditada e a prova disso é o momento
de degradação por que vem passando o Congresso Nacional. Além disso, no
decorrer da história até os dias atuais, na vigência da Constituição de 1988, não
houve no Brasil o uso regular dos institutos do plebiscito, do referendo e da iniciativa
popular de leis, como mecanismos de participação direta.
Surgem, assim, alguns questionamentos: o que vem acontecendo
atualmente com a política brasileira permite afirmar que no Brasil há uma verdadeira
Democracia Representativa? Existe hoje, com base na Constituição Cidadã de 1988
e nas normas infraconstitucionais, o efetivo uso dos mecanismos de participação
direta acima citados? A insuficiência desses mecanismos ou mesmo a falta de
utilização pela população, em razão das excessivas limitações impostas pela
legislação, e ainda a inexistência de uma representatividade política pautada na
vontade da maioria, não estariam decretando a ruína do caráter de Democracia
Semidireta da Constituição de 1988?
Todas essas questões surgidas serão devidamente analisadas e
respondidas no decorrer do texto que se segue, o qual, para que se possa chegar à
conclusão ora suscitada, contará uma exposição de temas importantes, tais como: a
compreensão do que é estado e suas formas de governo; o entendimento do que
seja povo, participação e cidadania; abordagem profunda dos regimes políticos
existentes, principalmente da democracia, com seus principais aspectos,
12
características, conceitos e espécies; análise teórica e de dados para a
comprovação do ponto principal do texto: o Brasil, na prática, não é uma
Democracia, apenas o é na teoria.
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2 O ESTADO E SUAS FORMAS DE GOVERNO
2.1 O ESTADO
Sempre houve muita dificuldade em se achar uma definição satisfatória de
“Estado”. Autores como Hans Kelsen e Hegel fazem parte dos inseridos nessa
controvérsia. Para o último, seria mais fácil conhecer a natureza e seus mistérios do
que a sociedade humana e seus problemas, já Kelsen propunha uma conversão da
expressão “Estado” a um juízo de valor, vez que as acepções dessa palavra não
permitem uma precisão conceitual.
Em relação à época do aparecimento do Estado, existem algumas teorias
que tentam explicá-lo: a primeira consiste em afirmar que o Estado, assim como a
própria sociedade, sempre existiu, pois desde que o homem vive sobre a Terra
acha-se integrado numa organização social, dotada de poder e autoridade para
determinar o comportamento de todo o grupo; a segunda posição admite que a
sociedade humana existiu sem o Estado durante um certo período, e que depois, por
diversos motivos, o Estado foi constituído para atender às necessidades ou às
conveniências dos grupos sociais; a terceira é aquela que só admite como Estado a
sociedade política dotada de certas características muito bem definidas, como por
exemplo, o aparecimento da idéia e da prática da soberania, a pluralidade de
autonomias que aparecem no mundo medieval, etc.
O certo é que essa ordem política da sociedade, chamada de Estado, já é
conhecida desde muito tempo, embora nem sempre possuindo essa mesma
denominação.
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Houve época em que o Estado era formado por um conjunto confuso, sem
diferenciação aparente, entre a família, a religião, o Estado e a organização
econômica. Isso se deu nas localidades do Oriente ou do Mediterrâneo. Há duas
características marcantes nesse período: a natureza unitária, pois esse Estado
sempre aparece como uma unidade geral, não admitindo qualquer divisão interior,
nem territorial, nem de funções, mas, talvez, esse tenha sido um expediente que
efetivamente não tenha ocorrido; e, a religiosidade, afirmando-se a autoridade dos
governantes e as normas de comportamento individual e coletivo, como expressão
da vontade de um poder divino. Aqui há uma estreita relação entre o Estado e a
divindade.
O Estado Grego, embora não se tenha notícia da existência de um Estado
único que englobe toda a civilização, já que era dividido em vários reinos, como o da
Macedônia, por exemplo, tem algumas características fundamentais, principalmente
entre os dois principais Estados, Atenas e Esparta, sendo a principal delas a
“cidade-estado”, ou seja, a polis, como a sociedade política de maior expressão,
tendo a auto-suficiência como o ideal buscado.
Quando um Estado Grego era tido como democrático, parte restrita da
população chamada de cidadãos é que participava das decisões políticas, o que
influía também na manutenção das características de cidade-estado.
O Estado Romano é marcado pelo fato de ter alcançado grande expansão
territorial, o que ocasionou dificuldades para se chegar a uma uniformização. Apesar
disso, Roma manteve, principalmente no seu início, as características de cidade-
estado, mantendo-se organizado através de uma base familiar. Desde o Estado
Romano primitivo, a civitas tem origem de grupos familiares (a gens).
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Como no Estado Grego, no Romano, durante muito tempo, o povo
participava diretamente do governo, mas a noção de povo era muito restrita,
compreendendo apenas uma pequena faixa da população. Mais tarde, depois de
lenta e longa evolução, outras camadas sociais foram adquirindo direitos,
aparecendo, então, uma nobreza tradicional. Com isso, já despontava a idéia de
Império. A idéia de Estado em Roma era representada, agora, mediante o uso das
expressões imperium e regnum, que indicavam uma organização de domínio e
poder.
Eis aí a que se reduzia, pois, o Estado Antigo: numa extremidade, a força bruta das tiranias imperiais típicas do Oriente; noutra, a onipotência consuetudinária do Direito ao fazer suprema, em certa maneira, a vontade do corpo social, qualitativamente cifrado na ética teológica da polis grega ou no zelo sagrado da coisa pública, a res publica da civitas romana (BONAVIDES, 2003a, p. 20).
Com a queda do Império Romano, o modelo de governo da Antigüidade
Clássica teve seu fim decretado. Surge, então, a espécie de governo mais conhecida
por todos, denominada agora de “Estado”. O sentido aqui atribuído é o de uma
instituição possuidora de coerção e geradora da unidade de um sistema normativo
com plena eficácia.
Esse é o Estado na Idade Média ou Estado Medieval, tendo laender como
o termo que traduz essa idéia, significando “países” e se restringindo a uma órbita
estritamente territorial. Os principais elementos que se fizeram presentes na
sociedade política medieval para a caracterização desse Estado foram o
cristianismo, como a base de aspirações à universalidade; as invasões bárbaras,
como agente da queda do império romano e de grandes transformações sociais e
culturais; e o feudalismo, como modelo de mudança econômica.
Nicolau Maquiavel, florentino nascido em 03 de maio de 1469, é que vem
empregar, modernamente, a expressão “Estado” dentro de sua obra “O Príncipe”,
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escrita em 1513. Aqui se fala em um Estado que começa a sair da Idade Média,
chamado por alguns de Estado Moderno. Esse Estado Moderno possui uma
imprecisão temporal muito clara, vez que é impossível se precisar quando ele
realmente teve seu início.
Durante os séculos XVI e XVII a expressão foi sendo admitida em escritos
franceses, ingleses e alemães.
Diante dos diferentes pontos de vista para afirmar o verdadeiro momento
do aparecimento do “Estado” e das divergências para se chegar a uma conceituação
objetiva, como mencionado no primeiro parágrafo, alguns estudiosos o caracterizam
seguindo diferentes acepções.
A primeira, em referência, é a concepção filosófica, o “Estado ético-
cultural1” trazido por Hegel (1952, apud BONAVIDES, 2000, p. 62-63), que sintetiza
o Estado como valor social mais alto, conciliando a contradição Família e Sociedade,
sendo uma instituição que está somente abaixo do absoluto, como a arte, a religião
e a filosofia.
De fato, o Estado é um todo orgânico, no qual todas as articulações são necessárias, como num organismo. Ele é um todo orgânico de natureza ética. O que é livre não tem indivíduos: concede-lhes momentos de construção, e, não obstante, o universal conserva a força que mantém essas determinações unidas a si (HEGEL, 1952, apud BOBBIO, 1997, p. 149).
A jurídica, segunda acepção a que se faz referência, é expressa através
da idéia de Immanuel Kant (1954, apud BONAVIDES, 2003a, p. 85), segundo a qual
o Estado é uma abstração, é isento de elementos históricos e independente do
arbítrio humano. O Estado para Kant é um fato absoluto e não apenas um fenômeno
1 “A realidade da idéia ética, da vontade substancial, em que a consciência mesma do indivíduo se eleva à comunidade e, portanto, ao racional em si e para si”. É assim que se constitui o Estado para a filosofia hegeliana (HEGEL, 1952, apud BONAVIDES, 2003a, p. 92).
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histórico ou uma realidade concreta no tempo, ou seja, ele separa o problema
estatal de toda uma causalidade temporal.
A terceira e última acepção se remonta a uma idéia sociológica. Aqui,
uma parte considerável dos pensadores liga o Estado ao aspecto coercitivo,
assinalando que essa instituição é toda sociedade humana onde há diferença entre
governantes e governados, fortes e fracos, ocorrendo, assim, uma dominação dos
primeiros, como titulares do poder coercitivo, sobre os outros (BONAVIDES, 2000, p.
64).
Percebe-se que encontrar um conceito para “Estado” que satisfaça a
todas as correntes é absolutamente impossível, dada à complexidade desse ente
que pode ser abordado sob diversos pontos de vista.
Uma conceituação bastante clara e talvez até concludente é a trazida por
De Plácido e Silva, baseada na etimologia da palavra. Neste sentido a expressão
“Estado” deriva do latim status (estado, posição, ordem, condição) e possui,
distintamente, sentidos próprios no Direito Público e no Direito Privado.
O sentido que mais interessa é o primeiro, que significa:
o agrupamento de indivíduos, estabelecidos ou fixados em um território2 determinado e submetidos à autoridade de um poder público soberano3 que lhe dá autoridade orgânica. É a expressão
2Território “é o limite espacial dentro do qual o Estado exerce de modo efetivo e exclusivo o poder de império sobre pessoas e bens”. Esse é o conceito de Alexander Groppali trazido por José Afonso da Silva (2002, p.98). Segundo Dalmo de Abreu Dallari (1991, p. 76), “o território estabelece a delimitação da ação soberana do Estado”. 3 A palavra soberania tem dois sentidos, segundo Dalmo Dallari (ibid., p. 68), o primeiro é o político, que conceitua soberania como “o poder incontrastável de querer coercitivamente e de fixar as competências”; o segundo, o jurídico, conceituando soberania como “o poder de decidir em última instância sobre a atributividade das normas, vale dizer, sobre a eficácia do direito”. No entanto, Miguel Reale (1960, p. 127) conceitua soberania como “o poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência”, não separando, portanto, os aspectos sociais, jurídicos e políticos. Jean Bodin (apud BOBBIO, 1997, p. 96), conhecido como o teórico da soberania dentro da história do pensamento político, expõe que “por soberania se entende o poder absoluto e perpétuo que é próprio do Estado”.
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jurídica mais perfeita da sociedade4, mostrando-se também a organização política de uma nação5, ou um povo6 (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 627).
Mas, se o enfoque principal no conceito de Estado for o componente
jurídico, Dalmo Dallari (1991, p. 101) o conceitua como "a ordem jurídica soberana
que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”.
2.2 AS FORMAS DE GOVERNO
A importância de se chegar a um conceito definitivo e conclusivo de
Estado não é o objetivo central desta primeira parte da exposição, apesar de existir a
necessidade de um breve e prévio entendimento sobre o que seja Estado, para se
compreender o restante.
O que verdadeiramente se mostra de grande valia para a compreensão
pretendida é a definição das formas de governo que a partir de agora passará a ser
estudada.
A caracterização das formas de governo é fornecida pela organização das
instituições onde atuam o poder soberano do Estado e suas relações. Há grande
divergência entre os autores no que diz respeito à expressão “Forma de Governo”,
embora a maior parte deles entenda que esta expressão é sinônima de “Regime
Político”. Duverger (1962, p. 9-10), inclusive, dá preferência à segunda, fazendo uma
distinção entre regime político em sentido amplo, que indica a forma que, em um
4 Sociedade “é um meio em que os indivíduos fatalmente vivem. E pode ter sentido equivalente a nação ou a estado, desde que se encontra em qualquer espécie de agrupamento ou associação, seja juridicamente ou politicamente organizada” (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 628). 5 Nação “indica agrupamento, quando se mostra unido por uma afinidade de tradição, idioma, costumes e religião, fundado na consciência de uma nacionalidade; mas, nem sempre se exibe na organização política, geradora do Estado, pois pode este ser constituído por mais de uma nação” (ibid., p.628).
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determinado grupo social, assume a distinção entre governantes e governados, e
regime político em sentido estrito, aplicável somente à estrutura governamental
chamada de Estado. Há autores, no entanto, que fazem uma distinção diferente,
permitindo a identificação de espécies distintas como regime político, forma de
Estado e sistema de governo. A primeira referente à estrutura global da realidade
política; a segunda afetando a estrutura da organização política; e a terceira
tipificando as relações entre as instituições políticas. Porém, a expressão “forma de
governo” é mais precisa quando quer se referir à estrutura e às relações dos órgãos
de governo (DALLARI, 1991, p. 188).
Todavia, há também outra grande confusão em torno das expressões
“Forma de Governo” e “Forma de Estado”. Os alemães se referem, baseando-se nas
classificações mais tradicionais, à monarquia, à aristocracia e à democracia, como
“Formas de Estado” (Staatsformen), diferentemente dos franceses que se utilizam da
expressão “Forma de Governo” para se referir aos mesmos institutos.
Segundo Paulo Bonavides (2000, p. 192), a nomenclatura francesa é a
mais adequada, e nessa linha segue o autor, uma vez que “Formas de Estado” são
a sociedade de Estados, como o Estado Federal e a Confederação, conhecidos
como forma plural de Estado; e o estado simples ou unitário, conhecido como forma
singular de Estado.
No Brasil a distinção se dá como na França. As formas de Estado se
restringem ao modo pelo qual o Estado se estrutura, classificando-se em simples ou
unitário, sendo este o Estado que possui uma unidade de poder político interno, cujo
exercício ocorre de maneira centralizada e onde qualquer grau de descentralização
6 Povo “é um agrupamento humano ou de indivíduos, o qual nem sempre se apresenta com a unidade orgânica e jurídica, que é caráter do Estado” (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 628).
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depende da anuência do poder central; e em plural, composto ou complexo, no qual
há uma pluralidade de poderes políticos internos.
Já as Formas de Governo, que se dão pelo modo de organização política
do Estado e pelo funcionamento do poder estatal, são determinadas segundo
critérios relacionados à sua natureza.
O primeiro critério, o do número de titulares do poder soberano, fazendo-
se referência ao “quem”, foi proposto por Aristóteles e por outros autores que
também adotaram posteriormente a mesma classificação com pequena variações.
Os outros critérios, que são mais recentes, são, respectivamente, o da separação
dos poderes e o dos princípios essenciais das práticas de governo.
O referente à separação de poderes é apoiado na teoria de Montesquieu,
dominando todo o período do Liberalismo.
O último critério é o totalmente contemporâneo, sendo uma reação à
rigidez do critério anterior, que se preocupava mais com a simples forma do que com
o fundo das instituições (BONAVIDES, 2000, p. 193).
Muito embora haja uma grande amplitude destes critérios, as
classificações mais tradicionais são as que possuem maior relevância doutrinária.
Diante desta afirmativa, tradicionalmente, as tipologias das formas de
governo dão-se início na discussão entre três persas, Otanes, Megabises e Dario,
proposta por Heródoto, na sua obra “História”.
A importância dessa passagem se dá pelo fato de esses personagens se
referirem, cada um, a uma das três formas de governo clássicas, que são o governo
de muitos, de poucos e de um só: democracia, aristocracia e monarquia,
respectivamente.
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Otanes propôs a entrega do poder ao povo persa, portanto, é partidário da
democracia. Megabises seguiu a linha do governo oligárquico. Já Dario se
manifestou em favor do governo de um só, a monarquia, contestando as outras
formas já expostas. Segundo ele, numa oligarquia é fácil nascer conflitos pessoais
entre aqueles que formam o governo. Todos querendo ser chefe, surgindo facções e
delas os delitos e estes levam à monarquia, provando ser esta a melhor forma de
governo. Quando governa o povo, ainda para Dario, é impossível não haver
corrupção, não provocando inimizades, mas sólidas alianças entre os mal
intencionados. Por isso é que, para ele, a monarquia é a melhor forma de governo
(BOBBIO, 1997, p. 39-41).
Platão, em sua obra “A República”, diferentemente da concepção de
Heródoto, inclui só formas más de formas de governo, mas não com a mesma
intensidade. Para Heródoto, as formas são realizáveis na história, já para Platão, a
forma boa ultrapassa a história, não podendo ser realizada.
As formas corrompidas de Platão são a timocracia, a oligarquia, a
democracia e a tirania, faltando duas das formas tradicionais, a monarquia e a
aristocracia. Mesmo assim, Platão aceita que haja seis formas de governo,
reservando duas para a constituição ideal e quatro para as formas reais que se
afastam da forma ideal.
As quatro formas corrompidas se referem à oligarquia, que é a forma ruim
de aristocracia; à democracia, que teria uma forma ideal, positiva, e outra negativa; e
por fim à tirania, sendo a forma ruim de monarquia. A timocracia, palavra que se
origina da expressão timé, que significa “honra”, é uma forma introduzida por Platão
para designar a transição entre a forma ideal e as três formas corrompidas.
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Nesta representação de Platão há apenas um movimento descendente
para as formas de governo, ou seja, as três formas boas são postas em uma
determinada posição (monarquia, aristocracia e democracia), e as más em uma
posição inversa (democracia, oligarquia e tirania). Platão não explica se a partir
desse ponto ocorre um retorno, nem de que maneira.
O certo é que a democracia está ao mesmo tempo no fim da série “boa” e
no começo da série “má”, ou seja, a democracia é a pior das formas boas e a melhor
das formas más, fazendo um contínuo na concepção de Platão (BOBBIO, 1997, p.
54).
Portanto, as seis formas aceitáveis para Platão são a monarquia, a
aristocracia, a democracia positiva, a democracia negativa, a oligarquia e a tirania,
sendo que as três primeiras são as ideais, mas não as reais.
A teoria clássica das formas de governo é aquela trazida por Aristóteles
(2002, p. 185) em sua classificação: monarquia, aristocracia e democracia. A
monarquia, conhecida como o governo de um só, está relacionada à unicidade da
organização do poder político. Essa expressão vem da palavra grega monarkia que
é a junção de mono (um) com arché (governo) e se caracteriza pela vitaliciedade,
hereditariedade e irresponsabilidade do chefe de Estado. O monarca governa
enquanto viver, e sua escolha é feita dentro da linha de sucessão dinástica.
Portanto, o poder político está concentrado nas mãos de uma só pessoa, sendo
exercido por ela, mas podendo ser delegado.
Em oposição à monarquia surgem a aristocracia e a democracia.
A aristocracia significa o governo de alguns, o governo dos melhores e se
origina da palavra grega aristocratia. Segundo Paulo Bonavides (2000, p. 193), esta
expressão está ligada à idéia de força, força entendida de modo qualitativo, ligada,
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portanto, à cultura e à inteligência, força dos melhores, daqueles que dirigem o
governo. Neste caso, o governo ou autoridade está nas mãos de uma classe,
constituída por pessoas que se consideram formadoras de uma casta ou elite, em
razão de sua nobreza, fortuna, bravura, talento ou por qualquer outro meio que as
distingam do restante da sociedade. Pode ser, ainda, a aristocracia, eletiva ou
hereditária, se os membros do governo forem escolhidos dentro de uma classe, ou
se está concentrado dentro de uma ou várias famílias, fazendo com que somente o
nascimento dê direito à sucessão política, excluindo-se todos que não forem
descendentes delas.
A democracia, última espécie classificatória de Aristóteles, opõe-se tanto à
monarquia, por ser uma forma de governo plural, quanto à aristocracia, pois o poder
soberano não repousa numa simples classe, mas no próprio povo.
Toda a descrição e classificação das formas de governo de Aristóteles são
trazidas dentro de sua obra “Política”, nos livros três e quatro. O termo utilizado por
ele para se referir à “forma de governo” é politeia, que, na verdade, significa
“constituição”. “A constituição mesma é governo” (ARISTÓTELES, 2002, p. 87).
Considerando-se que as palavras constituição e governo querem dizer a mesma coisa, considerando-se que o governo é autoridade suprema nos Estados e que, necessariamente, tal autoridade suprema deve ficar nas mãos de um apenas, ou de diversos, ou de uma multidão, se sirvam da autoridade com vistas ao interesse coletivo, a constituição é pura e sadia, obrigatoriamente; em vez disso, se se governa pensando no interesse particular, quer dizer, no interesse de um apenas, ou de muitos, ou da multidão, a constituição é viciada e corrompida; [...] (ARISTÓTELES, 2002, p. 89).
Aristóteles formula brevemente a teoria das seis formas de governo de
Platão. Para isso ele se utiliza de dois critérios simultaneamente: quem governa e
como governa. No primeiro, as constituições podem ser distinguidas se o poder está
numa só pessoa (monarquia), em poucas pessoas (aristocracia), e em muitas
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(politia, que significa a boa democracia). No segundo critério, as constituições (forma
de governo) podem ser boas ou más, gerando das três primeiras boas outras três
más (a tirania, a oligarquia e a democracia).
Como já se sabe, monarquia significa governo de um só, mas na teoria de
Aristóteles quer dizer “governo bom de um só”, correspondendo a este um governo
mau de um só, a tirania, porque busca somente o interesse do monarca. A oligarquia
corresponde ao governo mau de poucos, porque vê apenas o interesse dos ricos,
contrapondo-se ao governo bom de poucos, a aristocracia. E, por fim, ele utiliza a
expressão “politia” para designar o bom governo de muitos, contrariamente a
democracia, que significa o governo mau de muitos, buscando apenas o interesse
dos pobres. Assim, as formas boas são aquelas em que os governantes visam ao
interesse comum, e nas más visam ao interesse próprio.
Aristóteles adota um critério numérico para distinguir a oligarquia da
democracia: a diferença entre ricos e pobres.
[...]: a real diferença entre democracia e oligarquia reside na pobreza e na riqueza; é necessário que todas as vezes que a riqueza chega ao poder, com a maioria ou sem ela, haja oligarquia, a democracia, quando os pobres chegam ao poder. Acontece, entretanto, como dissemos, que em geral os ricos formam minoria e os pobres maioria; a opulência pertence a uns, porém a liberdade é de todos. Essa é a razão das diferenças eternas entre uns e outros, quanto ao
governo (ARISTÓTELES, 2002, p. 91).
Bobbio (1997, p. 57) acha estranha a utilização da terminologia politia
usada por Aristóteles, uma vez que está derivada de outra expressão, politeia, que
significa “constituição”, sendo, portanto, um termo muito genérico e pouco
específico.
A melhor forma desta última classificação de Aristóteles seria a utilização
da expressão “democracia” tanto para a forma boa como a má de governo de
muitos, como fez Platão.
25
Para Aristóteles, portanto, numa escala hierárquica, as formas de governo
se colocam da seguinte maneira: monarquia, aristocracia, politia, democracia,
oligarquia e tirania, sendo que a pior forma, a tirania, é a degeneração da melhor, a
monarquia e assim sucessivamente.
Expõe ainda ele que o regime mais propício para assegurar a paz social
seria a fusão da oligarquia com a democracia e isso seria chamado de “política”, ou
seja, a fusão constituiria um regime em que a união dos ricos e dos pobres
remediaria as causas dos conflitos sociais (ARISTÓTELES, 2002, p. 91 e ss). E
conclui:
Afirmamos que existem três bons governos; o melhor é necessariamente o administrado pelos melhores chefes. Assim é o Estado onde se acha um indivíduo apenas sobre toda a massa dos cidadãos, ou uma família toda, ou até um povo inteiro que possua uma virtude excelsa, uns sabendo obedecer, outros ordenar, visando à maior soma de ventura possível. Deixamos demonstrados também que, no governo perfeito, a virtude do homem de bem é necessariamente aquela do bom cidadão. É, portanto, notório também que com os mesmos meios e as mesmas virtudes que formam o homem de bem, formar-se-á, do mesmo modo, um Estado aristocrático ou monárquico. Desse modo, a educação e os costumes que constituem os cidadãos serão pouco mais ou menos iguais aos que constituem o rei e o cidadão (ARISTÓTELES, 2002, p. 114-115).
A terceira grande obra em importância para a teoria das formas de
governo na Antigüidade clássica, além dos textos de Platão e Aristóteles, foi
“História” de Políbio.
Para ele existem seis formas de governo, três boas e três más,
representando o uso sistemático das formas de governo. Essas seis formas se
sucedem uma às outras em um determinado ritmo, se alternando no tempo,
constituindo, assim, um ciclo, e isso seria o uso historiográfico das formas. Todavia,
existe, também, uma sétima forma, além das outras seis tradicionais, o governo
misto. Forma esta que seria a melhor de todas por ser a síntese das três boas, e
26
aqui estaríamos diante do uso axiológico das formas de governo (BOBBIO, 1997, p.
65-66).
Como já mencionado, em relação à terminologia, Políbio chama de
democracia a terceira forma de governo, ou seja, emprega o termo “democracia”
com conotação positiva, diferentemente de Aristóteles que a chama de politia e de
Platão, que consagra uma denominação má e uma boa para ela.
Assim, Políbio classifica as seis formas boas de governo como monarquia,
aristocracia e democracia, e as três más, derivadas das primeiras, como tirania,
oligarquia e “oclocracia”.
Esta nova expressão, “oclocracia”, introduzida por Políbio como a forma
corrompida de democracia, vem de oclos, que significa multidão, massa, plebe, e
corresponde ao governo de massa ou das massas (BOBBIO, 1997, p. 66-67).
Há uma divergência entre Platão e Políbio no que tange à teoria dos
ciclos. O ciclo polibiano possui uma linha decrescente fragmentada pela ocorrência
de uma alternância de momentos bons e maus no tempo, mas sempre com
tendência negativa, diferentemente do ciclo platônico que possui uma linha
decrescente contínua. Além do fato de que a forma final de Platão é a tirania, e a de
Políbio é a oclocracia, em virtude da alternância.
Mas a principal contribuição de Políbio dentro da teoria das formas de
governo é a idéia de um governo misto. Para ele todas as formas simples são más
porque são simples, sendo assim, o governo misto é aquele que combina as três
formas clássicas de governo, consistindo no fato de que o rei está sujeito ao controle
do povo, que este participa do governo, que é controlado pelo senado.
27
Observa-se, então, que a teoria do governo misto de Políbio está atrelada
ao mecanismo de controle entre os poderes. No entanto, não se pode confundi-la
com a teoria moderna da separação dos poderes de Montesquieu.
O que difere, na verdade, o governo misto do governo simples não é o fato
de o primeiro ser estável, e o segundo não, vez que ambos buscam uma
estabilidade, mas o fato de o primeiro possuir uma estabilidade mais duradoura, ou
seja, o ritmo das mudanças é que difere os dois tipos de governo.
Segundo Bobbio (1997, p. 77), “no curso da filosofia política medieval
nada há de genuinamente fundamental para o desenvolvimento das teorias das
formas de governo”. Assim, ultrapassa-se essa fase histórica, a Idade Média, e
começa-se outra abordagem, a de Maquiavel, importante pensador político do início
do século XVI, que traz nova classificação das formas de governo, separando-as de
maneira dualista em monarquia (principado) e república.
Todos os Estados que existem e já existiram são e foram repúblicas ou principados. Os principados ou são hereditários, quando por muitos anos os governantes pertencem à mesma linhagem, ou foram fundados recentemente (MAQUIAVEL, 2003, p. 29).
Neste trecho, logo se observa que o autor substituiu a classificação de
Aristóteles e de Políbio (tripartite) por uma bibartite. O principado (monarquia)
corresponde ao reino, já a república se refere tanto à aristocracia quanto à
democracia. Portanto, os Estados são governados ou por uma só pessoa ou por
muitas. Uma diferença essencialmente quantitativa, mas não somente.
A monarquia é o poder singular e a república é o poder plural que, como
visto acima, engloba a aristocracia e a democracia.
República, etimologicamente, é uma palavra de origem latina, oriunda da
expressão res publica, que significa coisa pública, comum ou bem comum, isto é, o
que é de todos ou pertencente a todos.
28
A república aristocrática “é aquela em que o governo somente pode ser
exercido pelas pessoas consideradas como as mais notáveis ou que, por alguma
circunstância, tenham se sobressaído às demais” (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p.
1354).
Já a república democrática
é aquela em que se adota a forma de governo, em que o poder soberano ou soberania do Estado reside na vontade do povo ou da totalidade do povo, que o habita, sem exclusões ou privilégios, devendo o mesmo governo ser exercido em seu nome e por sua delegação, por meio de representantes e responsáveis, diretamente ou indiretamente designados pelo povo, conforme sistema eleitoral admitido ou instituído (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 1354)
A modificação substancial entre principado e república é a natureza da
vontade envolvida, se é de um ou de muitos. Da república aristocrática para a
república democrática o que se modifica é o modo de formação da vontade, que
nesse caso já é coletiva, ou seja, se a vontade é de poucos ou de muitos.
Vale ressaltar ainda que na classificação de Maquiavel, além do
desaparecimento da tripartição, falta também a duplicação das formas de governo
em boas e más, como nos outros autores mencionados. Para ele, as três formas de
governo boas podem também se corromper facilmente.
Maquiavel expõe, ainda, uma idéia acerca do ciclo das formas de governo.
Mas, segundo Bobbio (1997, p. 90), sua idéia se contrapõe a de Políbio, uma vez
que Maquiavel, por ser um escritor realista, afirma que os ciclos não podem se
repetir até o infinito, como quis Políbio, já que isso não possui sustentação na
realidade histórica. Conclui Maquiavel, então, que um Estado, chegando ao ponto
mais baixo de sua decadência, não tem força para retornar ao ponto de partida,
sendo presa fácil de outro Estado mais forte. Inicia-se, assim, nova forma de
governo não dentro da estrutura do próprio Estado, mas dentro do domínio de outro.
29
Outro autor que contribuiu para a teoria das formas de governo é o francês
Jean Bodin, em sua obra “De La Republique” (1576), a qual é considerada a obra de
teoria política mais ampla e sistemática desde Aristóteles (apud BOBBIO, 1997, p.
95).
Bodin estrutura sua teoria com base na idéia de soberania, ou seja, o
início de seus estudos sobre as formas de governo se dá dentro de uma análise
prévia da definição de soberania, principalmente dentro de dois de seus principais
pontos: o caráter absoluto e a indivisibilidade.
Classifica as formas de governo em três: monarquia, aristocracia e
democracia, além de contestar as teses da duplicação das formas em boas e más e
a do governo misto.
Primeiro, Bodin afirma que as formas de governo são somente três porque
não há distinção entre formas boas e más, baseando-se no argumento de que, se
tivéssemos que distinguir as formas com base nos defeitos ou nas qualidades que
apresentam, o número de categorias seria infinito.
Segundo, expõe que não existe também uma sétima forma como o
governo misto, pois, se houvesse a junção dos poderes real, aristocrático e popular,
o único resultado seria a democracia, portanto, uma forma simples e não mista.
Bodin também faz uma distinção entre “Estado” e “governo7”. Não há para
ele a possibilidade da coexistência de podres soberanos, um único poder predomina
e os outros são subordinados. O predominante constitui o regime (o Estado), e os
outros, o governo. Portanto, diante do seu pensamento, as formas de governo
7 Rousseau, dois séculos depois, faz também a distinção entre Estado e governo. A diferença é que para ele a soberania reside somente no povo que exprime a vontade geral, chamando a forma de Estado de “república” e esta pode ser governada de três formas diferentes pelo poder executivo, dependendo de quem possua o exercício do poder: uma só pessoa, poucas pessoas ou muitas pessoas. Rousseau não rejeita a tese do governo misto como Bodin, porque a entende não como divisão de Estado, mas de governo, ou seja, o fato de o governo ser dividido não implica numa divisão da soberania que se mantém única (BOBBIO, 1997, p. 100-101).
30
podem chegar a nove: monarquia monárquica, monarquia aristocrática, monarquia
democrática, aristocracia monárquica, aristocracia aristocrática, aristocracia
democrática, democracia monárquica, democracia aristocrática, democracia
democrática, ou seja, há a possibilidade de existência de um só poder soberano
distribuído por várias formas de governar.
Para Bodin (apud BOBBIO, 1997, p. 102), cada uma das três formas
(monarquia, aristocracia e democracia) pode assumir mais três formas diferentes. A
monarquia pode ser real, despótica e tirânica, a aristocracia pode ser legítima,
despótica e facciosa e a democracia pode ser legítima, despótica e tirânica.
A monarquia real ou legítima é aquela em que os súditos obedecem às leis do rei, e o rei às leis da natureza, restando aos súditos a liberdade natural e a propriedade de seus bens. A monarquia despótica é aquela em que o príncipe se assenhoreou de fato dos bens e das próprias pessoas dos súditos, pelo direito das armas e da guerra justa, governando-os como um chefe de família governa seus escravos. A monarquia tirânica é aquela em que o monarca viola as leis da natureza, abusa dos cidadãos livres e dos escravos, dispondo dos bens dos súditos como se lhe pertencessem.
A aristocracia e a democracia se utilizam mais ou menos dessa mesma
forma que a monarquia.
Hobbes, seguindo as idéias de Bodin, não aceita as teses das formas de
governo boas e más e do governo misto.
No que tange ao problema das formas boas e más, Hobbes sustenta que
o poder soberano é absoluto, pois se não fosse absoluto não seria soberano. No
entanto, sua posição diante da de Bodin diverge na intensidade desse caráter
absoluto. Para o francês, o poder soberano, embora absoluto, comporta certos
limites: as leis naturais e divinas e os direitos privados. Para o inglês, esses limites
não existem. Ele não nega a existência das leis naturais e divinas, mas não se
tratando como leis positivas, porque não são aplicadas com a força de um poder
31
comum, não sendo, portanto, obrigatórias externamente, mas no nível interno, da
consciência. Já os direitos privados, para Bodin, não podem ser interferidos pelo
soberano, pois não fazem parte de sua alçada, pelo fato de estarem atrelados aos
indivíduos em suas relações econômicas, independente da sociedade política.
Hobbes não concorda com tal posição porque, se o Estado for instituído, a esfera
privada se junta à esfera pública.
A outra tese de Hobbes, a crítica da teoria do governo misto, parte da
característica da indivisibilidade da soberania. Para esse teórico, é certo que o poder
soberano não pode ser dividido, somente a preço da sua destruição. Diante de seu
raciocínio, se o poder soberano estiver dividido, não é mais soberano.
Partindo da crítica de Hobbes ao governo misto, outro problema surge: a
confusão entre essa teoria e a teoria da separação de poderes.
A coincidência dessas duas teorias se dá apenas no fato de ambas
buscarem a divisão das funções do Estado, e por aqui pára. Na verdade, no governo
misto a função legislativa, que é a principal, é exercida em conjunto pelas três partes
que o compõem (rei, nobres e povo). Na separação de poderes, cada um dos
componentes assume uma função específica (executiva, judiciária e legislativa).
Para haver uma verdadeira sobreposição seria necessário estabelecer que ao rei
caberia a função executiva, ao senado a judiciária e ao povo a legislativa, mas não é
isso que acontece.
Por fim, ainda no tocante à teoria das formas de governo, aparece
Montesquieu, classificando-as em república8, monarquia9 e despotismo10. Segundo
ele,
8 A república tem um sentido muito próximo do significado de democracia, uma vez que indica a possibilidade de participação do povo no governo. Com Maquiavel essa forma de governo tem um sentido de oposição à monarquia. Suas características são a temporariedade (o chefe do governo
32
o governo republicano é aquele que o povo, como um todo, ou somente uma parcela do povo, possui o poder soberano; a monarquia é aquela em que um só governa, mas de acordo com as leis fixas e estabelecidas, enquanto, no governo despótico, uma só pessoa, sem obedecer às leis e regras, realiza tudo por sua vontade e seus caprichos (MONTESQUIEU, 2003, p. 23).
Nesta teoria, a república também compreende a democracia e a
aristocracia, como em Maquiavel. “Quando, na república, é o povo inteiro que dispõe
do poder supremo, tem-se uma democracia. Quando o poder supremo se encontra
nas mãos de uma parte do povo, uma aristocracia” (MONTESQUIEU, 2003, p. 24).
A tipologia de Montesquieu não corresponde à tripartição tradicional
(monarquia, aristocracia e democracia), apesar de ser também tríplice, nem à
dúplice de Maquiavel (principado e república). A particularidade da teoria de
Montesquieu em relação à antiga é que ele acrescenta à monarquia e à república
uma terceira que até então era considerada uma forma específica de monarquia, o
despotismo.
Essa terceira forma de governo de Montesquieu corresponde a uma das
formas más ou corrompidas na teoria clássica.
Segundo Bobbio (1997, p. 135), “não há dúvida de que a preferência de
Montesquieu se inclina para a monarquia”. Para este o poder do monarca é
controlado pelos chamados corpos intermediários (“contrapoderes”), ou seja, por
uma faixa intermediária de poder situada entre os súditos e o soberano que
recebe um mandato com o prazo de duração preestabelecido), a eletividade (o chefe de governo é eleito pelo povo) e a responsabilidade (o chefe de governo é politicamente responsável). 9 A monarquia se trata do regime das separações, das variações e dos desequilíbrios sociais. É o governo de um só, mas o soberano fica adstrito a governar mediante leis estabelecidas. Os poderes da monarquia são o clero, a justiça e a nobreza, que atuam na presença do monarca. Suas características fundamentais são a vitaliciedade (o monarca governa enquanto viver), a hereditariedade (observa-se a linha de sucessão na escolha do monarca) e a irresponsabilidade (o monarca não tem responsabilidade política). A monarquia anterior ao Estado Moderno era absoluta, ou seja, sem limitações ao poder do monarca. Passando depois, aos poucos, a ser qualificada como monarquia constitucional, em virtude da resistência ao absolutismo e da observância de limitações jurídicas.
33
impedem o abuso da autoridade por parte do monarca. Esses “contrapoderes”
exercem funções estatais que não permitem a concentração do poder público nas
mãos de uma só pessoa. Essa é uma forma de divisão de poder chamada de
“horizontal”.
Ao lado dessa divisão horizontal existe uma divisão “vertical”, que constitui
a famosa teoria da divisão de poderes de Montesquieu. Essa teoria, com já
mencionada, pode ser considerada como a interpretação moderna da teoria clássica
do governo misto, mas não se equiparando na sua plenitude.
Montesquieu, quando se refere à teoria da separação dos poderes, utiliza-
se da expressão “governo moderado”, que deriva da dissociação do poder soberano,
separando-o nas três funções fundamentais do Estado, a legislativa, a executiva e a
judiciária.
Em conclusão,
a importância que Montesquieu atribui à separação dos poderes, que caracteriza o governo moderado, confirma a tese de que, ao lado da tríplice classificação das formas de governo (república, monarquia e despotismo), que corresponde ao uso descritivo e histórico da tipologia, há uma outra tipologia, mais simples, relacionada com o uso prescritivo, a qual distingue os governos em moderados e despóticos (abrangendo estes últimos não só monarquias mas também repúblicas) (BOBBIO, 1997, p. 137-138).
O que interessa, no entanto, embora haja tantas considerações acerca
das formas de Governo, é que a Democracia, estando ela enquadrada como Forma
de Governo, de Estado ou como Regime Político, ainda vai ser a melhor opção
diante das outras aqui enumeradas. E é dentro dessa ótica, da melhor opção para
qualquer Estado, que o autor segue sua análise.
10 O despotismo se resume à ignorância ou transgressão da lei, reinando, o monarca, fora da ordem jurídica. Aqui há o império do medo, da desconfiança, da insegurança e da incerteza.
34
3 O POVO
35
3.1 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS
Este capítulo propõe mais que uma breve análise acerca de um dos
componentes do Estado, é um estudo sobre um dos mais importantes elementos da
democracia: “o povo” e sua relevância para a compreensão deste regime político e
de sua estrutura.
O crescimento do interesse em torno desse elemento constitutivo do
Estado, principalmente dentro dos parâmetros dos modelos de democracia no
mundo, é inquestionável. Esse interesse se dá diante do aparecimento de
questionamentos que geram a necessidade de esclarecimento do conceito de “povo”
e de como ocorre a efetivação de sua participação dentro dos processos
democráticos.
Antes, porém, é preciso fazer uma distinção acerca de alguns vocábulos
que podem ser confundidos: povo, população e nação.
A nação, como visto no capítulo anterior, invoca certos sentimentos,
identidades culturais, sociais e políticas. Para Lênio Streck (2001, p. 154), é um
conceito “psicossocioantropológico”. O constitucionalista português Jorge Miranda
(2002, p. 190) afirma que “o específico da nação encontra-se no domínio do espírito,
da cultura, da subjetividade [...]. Uma nação não é qualquer grupo cultural. É uma
comunidade cultural com vocação ou aspiração à comunidade política”.
Por outro lado, muitos autores designam como população e não como
povo o elemento pessoal que constitui o Estado. A população é uma simples
expressão numérica, abrangendo todas as pessoas que estejam no território de um
Estado definitiva ou temporariamente. Acontece que a inclusão na população de um
36
determinado Estado não significa a posse de vínculos jurídicos e também políticos
com este. Assim, não se pode confundir as expressões população e povo. Este
possui direitos e obrigações políticas, enquanto aquela não.
O conceito de povo pode ser estabelecido de pontos de vista distintos: do
político, do sociológico ou do jurídico.
O conceito político foi conhecido desde a Antigüidade, quando Cícero
(apud BONAVIDES, 2000, p. 74), escritor romano, disse que “povo é a reunião da
multidão associada pelo consenso do direito e pela comunhão da utilidade”.
Durante a Idade Média o conceito de povo, em seu sentido político, não
existia como o é hoje. A teoria do Estado se baseava no território, na organização
feudal. A formação política do conceito, mais próximo do que é atualmente
conhecido, vem aparecer nas idéias da Revolução Francesa com a implantação da
sociedade liberal-burguesa, uma vez que o absolutismo não conhecia este aspecto,
já que só identificava a comunidade estatal como um conjunto de súditos.
Com os ideais democráticos e com a implantação do sufrágio, o povo
passou a ser “o quadro humano sufragante, que se politizou, ou seja, o corpo
eleitoral” (BONAVIDES, 2000, p. 75).
O conceito sociológico, conhecido também como conceito naturalista ou
étnico, decorre de dados culturais. Desta ótica há uma equivalência do conceito de
povo com o de nação11. O povo é compreendido como todos os componentes da
sociedade, de todas as gerações e de todas as épocas, ou seja, os vivos e mortos, e
os que irão viver. É o povo que é colocado numa dimensão histórica que liga todos
os tempos e que transcende a contemporaneidade de sua existência.
11 Por sua origem etimológica, do latim natio, de natus (nascido), já se tem a idéia de que nação significa a reunião de pessoas, nascidas em um território dado, procedentes da mesma raça, falando o mesmo idioma, tendo os mesmos costumes e adotando a mesma religião, formando assim, um
37
Por último, o conceito jurídico. Essa noção de povo aparece num momento
mais recente, dada a necessidade de se disciplinar juridicamente esse instituto, ou
seja, só o Direito pode explicar o conceito de povo de forma completa.
Na Grécia antiga cidadão era apenas aquele que participava das decisões
políticas. Já existia aí uma noção jurídica, pois, quando se falava no povo de uma
cidade-estado, só se incluía aqueles que tinham direitos.
Atualmente, o conceito jurídico de povo está ligado à idéia de um conjunto
de indivíduos vinculados a um determinado ordenamento jurídico. Não basta afirmar
que povo é o elemento humano possuidor de direitos e deveres. Tem-se que
enfatizar o laço de cidadania, o vínculo que une o indivíduo a um certo sistema de
leis.
Para Hans Kelsen (2000, p. 334) povo “é constituído pela unidade da
ordem jurídica válida para os indivíduos cuja conduta é regulamentada pela ordem
jurídica nacional, ou seja, é a esfera pessoal de validade dessa ordem”. Para ele,
portanto, o indivíduo só pertencerá ao povo quando estiver na esfera pessoal de
validade de sua ordem jurídica, ou seja, o povo constitui uma unidade jurídica e não
natural, porque, da mesma maneira que o Estado possui apenas um território cuja
unidade é jurídica, tem somente um povo também.
Jellinek fixa a noção jurídica de povo e disciplina sua participação na vida
do Estado, fazendo a distinção entre um aspecto subjetivo e outro objetivo desse
elemento. Para ele “o Estado é sujeito do poder público, e o povo, como seu
elemento componente, participa dessa condição. [...]. Por outro lado, o mesmo povo
é objeto da atividade do Estado, [...]” (JELLINEK apud DALLARI, 1991, p. 84). O
primeiro, quando o que está em evidência é sua qualidade de cidadão, é o aspecto
povo, cujos elementos componentes trazem consigo as mesmas características raciais e se mantêm unidos pelos hábitos, tradições, religião e língua (DE PLÁCIODO E SILVA, 1967, p. 1047).
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subjetivo do povo; e o segundo, quando o que está em evidência é sua qualidade de
súdito, é seu aspecto objetivo.
Quanto ao aspecto subjetivo, Jellinek sustenta que o simples fato de se
reunir várias pessoas e submetê-las a uma autoridade não chegaria a ser um
Estado. Mas se essas pessoas se reunirem com outros elementos em um dado
momento jurídico, tornam-se uma unidade, surgindo, assim, um Estado. Cada
indivíduo que integra essa unidade participa também da natureza de sujeito, da qual
deriva duas situações: a primeira, quando os indivíduos, enquanto objeto do poder
do Estado, estão numa relação de subordinação, sendo sujeito de deveres; a
segunda, enquanto membros do Estado, os indivíduos, se relacionam com ele e com
os outros integrantes coordenadamente, sendo sujeitos de direitos.
Nas palavras de Jorge Miranda (2002, p. 182), “o povo vem a ser,
simultaneamente, sujeito e objecto do poder, princípio activo e princípio passivo na
dinâmica social”.
A qualidade subjetiva de certa comunidade garante o sentido de povo, que
é causa da unidade do Estado. Esta unidade, proveniente dos laços que unem os
indivíduos, permite que seja sujeito de direitos, já a subordinação lhes confere uma
sujeição ao poder do Estado, sendo, assim, sujeito de deveres.
Portanto, todo indivíduo submetido ao Estado é reconhecido como pessoa,
participando ao mesmo tempo de sua constituição, exercendo funções como sujeito
de deveres e como sujeito de direitos, sendo titular de direitos públicos subjetivos12.
12 Para Eduardo Espínola (1941, p. 573 e ss), o direito subjetivo “é a relação que une um bem da vida a um determinado sujeito, e da qual resulta, para o sujeito, o poder de, por si ou representado, tirar, no interesse próprio, de outrem, ou coletivo, toda a utilidade de que é suscetível o mesmo bem, ficando à disposição exclusiva de tal sujeito movimentar a ação coercitiva do direito”. Esse direito subjetivo é público porque tem natureza de prerrogativa oponível a qualquer tempo, pelo cidadão, seu titular, erga omne, contra o Estado (BRITO, 1993, p. 60-61).
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Para que esta subjetividade de oposição ao Estado realmente aconteça é
necessário que este reconheça o indivíduo como membro da comunidade. Todavia,
esse reconhecimento se deu de forma tardia, porque, o indivíduo teve apenas
reconhecido o seu direito na esfera privada. A aceitação de um direito público
subjetivo foi alcançada ao longo de um processo histórico iniciado na Antigüidade e
se efetivou na Idade Média, com a luta entre o Estado e a Igreja. Essa luta permitiu o
aparecimento da doutrina do direito natural e do direito originário da liberdade de
consciência religiosa na Inglaterra, que em 1628 editou a Petition of Rights13 e em
1689 o Bill of Rights14. Isto contribuiu para a primeira tentativa de positivação de
direitos públicos subjetivos na América do Norte.
O primeiro documento não criou nenhum direito novo, reafirmando apenas
o antigo, que eram as limitações da coroa britânica; o segundo, reconhecia a
liberdade de consciência a todos os homens que habitavam as treze colônias
inglesas na America. Nessas colônias é que, em 1776, ocorreu a Declaração de
Direitos do Bom Povo de Virgínia, que previa uma gama de direitos que o povo
poderia exigir do Estado como, por exemplo, as vedações à expedição de mandados
gerais de busca ou de detenção, sem especificação exata e prova do crime, além de
outras.
Essa Declaração foi inspirada por tudo que também inspirou a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, que gerou a Constituição Francesa
13 Era um documento dirigido ao monarca em que os membros do Parlamento de então pediram o reconhecimento de diversos direitos e liberdades para os súditos de sua majestade. A petição constituiu um meio de transação entre o Parlamento e o rei, que este cedeu, porquanto aquele já detinha o poder financeiro, de sorte que o monarca não poderia gastar dinheiro sem autorização parlamentar (SILVA, 2002, p. 152). 14 Decorreu da Revolução Gloriosa do mesmo ano (1688), pela qual se firmara a soberania do Parlamento, impondo a abdicação do rei Jaime II e designando novos monarcas, Guilherme III e Maria II, cujos poderes reais limitavam com a declaração de direitos a eles submetida e por eles aceita (SILVA, 2002., p. 153).
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de 1791 e outras constituições na Europa, muito embora tivesse nascida 15 anos
antes. A partir daí, nasce a doutrina do direito público subjetivo, que reconhece ao
indivíduo certa posição perante o Estado, passando a ser visto como membro do
povo, considerado em sua qualidade subjetiva.
Para Jellinek (apud DALLARI, 1991, p. 84), portanto, ser cidadão cabe a
todos que participam da constituição do Estado, existindo uma categoria especial
que são aqueles que têm cidadania ativa (como a do eleitor), ou seja, aqueles que
exercem certas atribuições que o Estado reconhece. Essas atribuições se dão da
seguinte maneira: a exigência pelo Estado de atitudes negativas, pois o Direito, que
disciplina os indivíduos, garante que o Estado não ultrapasse seus limites; de
atitudes positivas, quando o Estado é obrigado a agir para proteger e favorecer o
indivíduo; por fim, de atitudes de reconhecimento, pois há indivíduos que agem no
interesse do Estado e este é obrigado é reconhecê-los como órgãos seus.
Esse reconhecimento em relação às atitudes positivas traduz a idéia de
que o Estado deve implementar ações positivas que estarão a serviço de interesses
individuais, com a finalidade de proteger e favorecer a comunidade estatal, sendo
uma compensação que o Estado oferece ao indivíduo pelos sacrifícios impostos.
Assim, no que tange a relação dos indivíduos com o Estado, o povo
permanece sendo componente ativo mesmo depois de o Estado ser constituído. “O
povo é elemento que dá condições ao Estado para formar e externar sua vontade”
(DALLARI, 1991, p. 85).
Deve-se compreender como povo o conjunto dos indivíduos que, através de um momento jurídico, se unem para constituir um Estado, estabelecendo com este um vínculo jurídico de caráter permanente, participando da formação da vontade do Estado e do exercício do poder soberano (DALLARI, 1991, p. 85).
“Bill”, segundo De Plácido e Silva (1967, p.254), é o “nome que se dá, na Inglaterra, à minuta ou projeto de lei que é apresentado ao parlamento ou à Câmara, para ser examinado e que, se aprovado, é reduzido à lei ou ato”.
41
A participação e o exercício dos indivíduos podem, também, ser
subordinados ao atendimento de certas condições objetivas, condições estas que
garantam a total aptidão desses indivíduos quando atuarem dentro do Estado.
Todos aqueles que façam parte juridicamente do Estado, quando da sua
constituição, adquirem a condição de cidadãos. Povo, assim, passa a ser “o conjunto
dos cidadãos do Estado” (DALLARI, 1991, p. 85).
3.2 ASPECTOS RELEVANTES À DEMOCRACIA
Trata-se esta parte referente a povo de uma abordagem desse elemento
componente do Estado, sujeito indispensável da transição estritamente teórica para
a prática, numa perspectiva voltada à compreensão da democracia.
Para José Afonso da Silva (2002, p. 134-135), o conceito trazido por
Abraham Lincoln de que “democracia é o governo do povo, pelo povo e para o
povo”, é essencialmente correto se for dada uma interpretação real aos termos que o
compõem, embora possua limitações. Uma, quando ele define democracia como
governo, vez que ela é mais um regime, forma de vida ou um processo; outra, em
relação à formalidade, mas essa limitação desaparece com o sentido real proposto.
Segundo esse mesmo autor,
governo do povo significa que este é fonte e titular do poder [...]. Governo pelo povo quer dizer governo que se fundamenta na vontade popular, que se apóia no consentimento popular; [...] Governo para o povo há de ser aquele que procure liberar o homem de toda imposição autoritária e garantir o máximo de segurança (SILVA, 2002, p. 135)
Apesar dessas limitações expostas, é fato que toda democracia assenta
suas bases no povo. O povo é o elemento fundante do regime democrático.
42
Tal análise se inicia com o postulado de Rousseau (1987, p. 66) de que as
premissas básicas da democracia são a liberdade e a igualdade e que, de acordo
com ele:
Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os bens, qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislação, verificar-se-á que se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque qualquer dependência particular corresponde a outro tanto de força tomada ao corpo do Estado, e a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela.
Em relação às doutrinas mais atuais, tem-se que acrescentar mais uma
premissa básica e necessária para nortear os Estados como exigência da
democracia: a supremacia da vontade popular já abordada em capítulo anterior, que
Dallari (1991, p. 128) arrola junto a três outros pontos fundamentais (a preservação
da liberdade e a igualdade de direitos15).
É exatamente dentro dessa premissa da supremacia da vontade popular
que sobressai a idéia central do texto.
Quando se expõe que “todo poder emana do povo”, nota-se que essa
máxima é o estandarte da democracia moderna, sendo, portanto, a vontade popular
o ponto mais importante para a construção de um Estado legítimo.
No entanto, o postulado ideal da supremacia da vontade popular se tornou
um objetivo difícil de ser alcançado, por causa do alargamento da própria base
popular que constitui o Estado moderno, desde a concepção desse modelo de
Estado.
Dentro dessa ótica é que Friedrich Müller desenvolveu uma análise crítica
da utilização do termo “povo”, em inúmeras constituições do mundo, e do papel que
15É entendida a preservação da liberdade como o poder de fazer tudo que não incomodasse o outro e como o poder de dispor de seus bens e de si próprio, sem qualquer interferência do Estado, já a igualdade de direitos é entendida como a proibição de diferenças nos gozos dos direitos entre os
43
lhe é atribuído pelos diversos ordenamentos jurídicos, sempre em busca de se
legitimarem a partir do uso dessa importante palavra para as democracias
modernas.
Para Müller o conceito de povo assume um caráter plurívoco, traduzindo
esse termo como: povo ativo; como instância global de atribuição de legitimidade;
como ícone; e como destinatário de prestações civilizatórias do Estado.
A espécie de legitimidade, que se venha a inferir do poder constituinte do povo, pode ser formulada em gradações: a incorporação dessa pretensão ao texto da constituição tem por interlocutor o povo enquanto instância de atribuição; o procedimento democrático de pôr em vigor a constituição dirige-se ao povo ativo; e a preservação de um cerne constitucional (que sempre é também democrático) na duração do tempo investe o povo-destinatário nos seus direitos. Lá, onde esses aspectos da pretensão de legitimação permanecem apenas fictícios, o discurso se torna icônico (MÜLLER, 2000, p. 108).
No entendimento de Müller, o Estado é, basicamente, uma expressão de
poder-violência, ficando evidente quando da constatação de que o Estado é o
detentor do monopólio da aplicação da justiça e da imposição de penas. Neste
sentido o Estado detém a legitimidade para exercê-la em nome de todos e diante de
todos os partícipes da sociedade. Tal legitimidade decorre exatamente da presença
do povo como elemento humano na conformação do Estado.
Definir o significado e o alcance de “povo”, empregado nas constituições
democráticas tornou-se imprescindível, em virtude do aperfeiçoamento do Estado e
de sua evolução até se tornar um Estado Democrático de Direito. Essa
imprescindibilidade aumentou à medida que o Estado passou a buscar os
significados de democracia e soberania popular.
Aqui se trata do conceito jurídico ou, mais precisamente, dos modos de emprego da expressão ‘povo’ nos textos das normas de uma constituição democrática; de uma constituição, para dizê-lo em outros
indivíduos, principalmente quando se refere a motivos econômicos ou de discriminação social (DALLARI,1991, p. 128).
44
termos, que quer justificar o seu aparelho de Estado e o exercício de sua violência e do seu poder enquanto ‘democráticos’. ‘Quem é o povo?’ transmuda-se aqui na pergunta: como se pode empregar ‘povo’ nesse contexto, caso a pretensão de legitimidade ‘do governo do povo’ deva fazer suficientemente sentido? (MÜLLER, 2000, p.52).
Trata-se, portanto, de buscar legitimar as ações do Estado. E para Müller,
essa legitimação tem de ser buscada dentro de uma perspectiva democrática e que
sua busca deve ser constante.
Como mencionado, seu ponto de partida é o “povo como povo ativo”,
atribuindo um caráter político ao tema. Esse termo significa a totalidade de eleitores,
constituindo-se fonte da determinação da convivência social por meio de imposições
jurídicas, sendo considerados os titulares da nacionalidade (MÜLLER, 2000, p. 55).
Numa constituição que se diga democrática, consegue-se uma primeira
identificação de povo, como no caso da brasileira de 1988, quando coloca em seu
art. 1°, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente”.
Müller (2000, p. 79) afirma que “o povo ativo está definido ainda mais
estreitamente pelo direito positivo (textos de normas sobre o direito a eleições e
votações, inclusive a possibilidade de ser eleito para diversos cargos públicos)”, ou
seja, o povo corresponde ao maior grau de legitimação de um regime representativo,
estando presente em eleições ou em votações.
Quando se fala em eleições está-se referindo à escolha pelo povo dos
seus representantes através do voto. Essa escolha visa ao preenchimento dos
cargos políticos - no caso brasileiro - dentro da estrutura dos Poderes Executivo e
Legislativo, servindo como uma procuração para que os escolhidos ajam em nome
da maioria.
45
Vale ressaltar que todos aqueles que recebem essa incumbência de
exercer em nome do povo as funções de decidir o futuro do país e, principalmente,
aqueles que têm o encargo de elaborar a constituição, precisam ter a origem do seu
exercício do poder reconhecida pelo povo.
Dependendo do modelo democrático de referência, os cargos passíveis de
preenchimento através da escolha popular irão crescer. Em alguns casos a
radicalização da democracia é tanta que cargos de direção em empresas públicas,
por exemplo, serão preenchidos dessa maneira.
Mas na verdade, o importante é o preenchimento dos cargos com
competências decisórias e de elaboração de normas, para que a sociedade seja
gerida da maneira mais democrática possível. Ressalta-se aqui a Democracia
Representativa, que vem passando por séria crise dentro da realidade brasileira e
mundial.
Além das eleições dentro da idéia de “povo como povo ativo”, existem
outras formas de participação popular na definição do direito a ser criado, que são
as votações em consultas plebiscitárias, referendárias ou por iniciativa popular de
leis. Estes são os casos de participação popular de forma direta e não mais de
escolha dos seus representantes através do voto.
Dentro desse modelo de participação popular, Carole Pateman (1992, p.
38-42) se refere a uma “teoria da democracia participativa”, cujo maior expoente
seria Rousseau, entendendo que a participação é um fenômeno necessário para o
crescimento e desenvolvimento da democracia, como meio de exercício social de
poder. A grande relevância da participação se dá pelo seu caráter educativo16; como
modo de proteger os interesses privados e de assegurar um bom governo; como
46
meio de libertar o indivíduo, na medida em que funciona como forma de controle
sobre os que executam a lei e sobre seus representantes; quando permite que as
decisões coletivas sejam aceitas mais facilmente pelo indivíduo; e como meio de
integração do indivíduo em sua comunidade.
A participação se configura, dentro do pensamento rousseauniano, como
prática educativa auto-alimentadora.
Além de Pateman, outros autores, dentro da perspectiva de
implementação de novas formas de interferência nas discussões políticas, também
se utilizam da expressão “democracia participativa”, como Bobbio, José Joaquim
Gomes Canotilho, como nomes estrangeiros, e José Afonso da Silva e José Alfredo
de Oliveira Baracho, na sua “Teoria geral da cidadania”, como referências nacionais.
Bobbio utiliza o termo quando menciona os problemas do sistema político
contemporâneo e as possíveis soluções aplicáveis.
Dos quatro remédios de que falamos no item anterior, o que parecia mais decisivo, o quarto (ou o controle a partir de baixo, o poder de todos, a democracia participativa, o Estado baseado no consenso, a realização no limite do ideal rousseauniano da liberdade como autonomia), é também aquele para o qual se orientam, com particular intensidade, as formas mais recentes e mais insistentes de contestação (BOBBIO, 1992, p. 151).
Canotilho (1991, p. 413) faz menção quando expõe que “a teoria da
democracia participativa considera-se como teoria crítica da teoria pluralista e como
alternativa para o impasse do sistema representativo”.
No que tange aos autores nacionais, José Afonso da Silva (2002, p. 141)
faz referência ao termo quando expõe que
qualquer forma de participação que dependa de eleição não realiza a democracia participativa no sentido atual dessa expressão. A eleição consubstancia o princípio representativo, segundo o qual o eleito
16 No entendimento de Pateman (1992, p. 38), essa é a principal função da participação para Rousseau. Para ela “a função central da partcipação na teoria de Rousseau é educativa, considerando-se o termo ‘educação’ em seu sentido mais amplo”.
47
pratica atos em nome do povo. O princípio participativo caracteriza-se pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo.
A utilização dos meios de intervenção popular direta na formação da
vontade nacional agrega-se à idéia de que o aumento da participação é o melhor
caminho para o implemento do funcionamento de uma democracia que se pretenda
mais efetiva e real. Todavia, a utilização desses instrumentos esbarra em muitas
dificuldades práticas, estando, portanto, em crise, da mesma forma que a
democracia representativa.
A primeira conclusão crítica chegada por Müller (2000, p. 58) é a de que a
delimitação do alcance do conceito de povo e da idéia de cidadania provoca o
esgotamento do direito de participação do indivíduo: “Não há nenhuma razão
democrática para despedir-se simultaneamente de um possível conceito mais abrangente
de povo: do da totalidade dos atingidos pelas normas: one man one vote”.
Müller também dá ao povo a concepção de “instância global de atribuição
de legitimidade”, mas esse sentido só pode ser admitido em situações em que o
“povo ativo” existe. Isto quer dizer que somente em sociedades democráticas é
possível observar-se essa instância atributiva do povo.
Nos Estados onde os funcionários públicos e juízes não são eleitos pelo
povo, necessitam de uma instância legitimadora de suas atividades. O Judiciário vai
aplicar as normas produzidas pelo Legislativo eleito pelo povo, cujos destinatários
são potencialmente o próprio povo, formando, com isso, um ciclo de atos de
legitimação que não pode ser interrompido. É assim que o povo desempenha o seu
papel de instância global da atribuição de legitimidade democrática.
48
Segundo Müller (2000, p. 79), “o povo como instância de atribuição está
restrito aos titulares da nacionalidade, de forma mais ou menos clara nos textos
constitucionais”.
Quando é declarado que “todo poder emana do povo”, uma constituição
está afirmando que, mesmo indiretamente, todos aqueles que exercem uma parcela
do poder do Estado só pode desempenhar suas tarefas em conformidade com a
vontade popular e por sua delegação.
Os poderes ‘executantes’ Executivo e Judiciário não estão apenas instituídos e não são apenas controlados conforme o Estado de Direito; estão também comprometidos com a democracia. O povo ativo elege os seus representantes; do trabalho dos mesmos resultam (entre outras coisas) os textos das normas; estes são, por sua vez, implementados nas diferentes funções do aparelho de Estado; os destinatários, os atingidos por tais atos são potencialmente todos, a saber, o ‘povo’ enquanto população. Tudo isso forma uma espécie de ciclo de atos de legitimação, que em nenhum lugar pode ser interrompido (de modo não-democrático). Esse é o lado democrático do que foi denominado estrutura de legitimação. [...]. Parece plausível ver nesse caso o papel do povo de outra maneira, como instância global da atribuição de legitimidade democrática. É nesse sentido que são proferidas e prolatadas decisões judiciais, ‘em nome do povo’ (MÜLLER, 2000, p. 60).
Ainda dentro de uma reflexão de legitimidade surge a próxima idéia de
povo para Müller, a de “povo como ícone”, embora seguindo outra vertente
diferentemente da anterior, uma vez que se refere à utilização da palavra povo,
quando o Estado funciona sem obedecer aos ditames democráticos.
O Estado possui a exclusividade do emprego da violência, como meio de
fazer cumprir suas normas. Todavia, essa prerrogativa está fortemente relacionada à
condição de legitimidade desse Estado. Segundo Müller (2000, p. 66), “o Estado
Constitucional possui o monopólio do exercício legítimo da violência, não o
monopólio do exercício ilegítimo da mesma”.
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O surgimento da função de povo como ícone se dá quando se tratar de um
Estado autoritário e anti-democrático, sem legitimidade portanto, já que nem sempre
o Estado vai estar investido numa.
Essa vertente de povo induz a práticas extremadas. A iconização consiste
em abandonar o povo a si mesmo. A população é mitificada e instituída como
detentora de uma tutela abstrata, tornando-a inócua como possuidora do poder-
violência (MÜLLER, 2000, p. 67).
O povo icônico refere-se a ninguém no âmbito do discurso de legitimação. Ocorre que por ocasião da politização crescente e de um emprego ainda pseudo-sacral (mitologia revolucionária do ‘povo’) as inclusões e exclusões assumem um tom enérgico (MÜLLER, 2000, p. 79).
Neste sentido, Müller (2000, p. 67) menciona a possibilidade de se “criar o
povo”, quando a população real impedir aos planos de legitimação, como nos casos
de colonização, expulsão, reassentamento, ou até mesmo por meio da “limpeza
étnica”, denotando uma prática tão bárbara quanto antiga.
Com isso, um dos caminhos para se alcançar a desmistificação do
conceito de povo é através da previsão e implantação de instrumentos de maior
participação popular, da conquista de espaços de discussão e debate sobre os
problemas de Estado e da abertura de canais institucionais de interferência do povo
nas decisões, que mesmo assim não permitirá, muitas das vezes, a inclusão por
completo e não impedirá também que algumas práticas bárbaras ainda continuem
acontecendo.
Mas se o povo – mesmo no conjunto normativamente restrito de povo ativo – deve apresentar-se como sujeito político real, fazem-se necessárias instituições e, por igual, procedimentos: a eleição de uma assembléia constituinte, o referendo popular sobre o texto constitucional, instituições jurídicas plebiscitárias, eleições livres e destituição por meio do procedimento plebiscitário e votação. Alternativas e sanções devem ser normatizadas de forma cogente no tocante aos procedimentos. A pequena lâmpada diante do ícone
50
pode extinguir-se; o povo – nem que seja apenas o seu conjunto parcial dos cidadãos titulares de direitos ativos – entra em cena como destinatário e agente de responsabilidade e controle (MÜLLER, 2000, p. 73)
Nessa seara, a última visão para Müller é a de “povo como destinatário de
prestações civilizatórias do Estado”. Aqui, ao povo não são impostos somente ônus
e obrigações, mas também direitos. Com isso ele quer dizer que todo homem, não
importando se nacional ou não, desde que em território de Estado Democrático, será
destinatário de benefícios e prestações.
Para se entender um pouco mais profundamente essa última função de
“povo”, é necessário relembrar as outras até aqui vistas. Seja como povo ativo
(abrangendo os eleitores), como instância global de atribuição (compreendendo os
cidadãos de um respectivo país) ou ícone, sempre se esteve tratando de uma
parcela delimitada da população, nunca ela completamente.
Na verdade, a questão é saber se o povo está na sua totalidade contido
entre os que se apresentam como povo ativo, ou se haveria pessoas que não são
eleitoras, mas que também merecem a condição de titulares do poder.
Müller (2000, p. 76-77) entende que
o corpo de textos de uma democracia de conformidade com o Estado de Direito se legitima por duas coisas: em primeiro lugar procurando dotar a possível minoria dos cidadãos ativos, não importa quão mediata ou imediatamente, de competências de decisão e de sancionamento claramente definidas; em segundo lugar e ao lado desse fator de ordem procedimental, a legitimidade ocorre pelo modo, mediante o qual todos, o ‘povo inteiro’, a população, a totalidade dos atingidos são tratados por tais decisões e seu modo de implementação. [...]. Podemos denominar essa camada funcional do problema ‘o povo como destinatário de prestações civilizatórias do Estado’, como ‘povo-destinatário’.
Mesmo depois de toda essa exposição tendente a separar povo de
população, não é inaceitável limitar o povo aos eleitores ou mesmo aos nacionais de
51
um país. O povo, e o sentido que melhor explica isso é o jurídico, são todos aqueles
que merecem a proteção do direito e que se submetem às normas de um
determinado Estado, englobando aí os loucos, os turistas estrangeiros etc,
diferentemente do sentido político, que, neste caso, tem uma conotação muito
restrita.
Müller (2000, p. 79-80) conclui que ninguém pode ser excluído da noção
de povo como destinatário.
Por fim, ninguém está legitimamente excluído do povo-destinatário; também não e. g. os menores, os doentes mentais ou as pessoas que perdem – temporariamente – os direitos civis. Também eles possuem uma pretensão normal ao respeito dos seus direitos fundamentais e humanos, à proteção do inquilino, à proteção do trabalho, às prestações da previdência social e a circunstâncias de fato similares, que são materialmente pertinentes no seu caso.
52
4 PARTICIPAÇÃO E CIDADANIA
4.1 ASPECTOS TEÓRICOS DA PARTCIPAÇÃO
Quem participa do processo de formação da vontade nacional, como o
título sugere, é o povo, ou seja, o elemento humano constitutivo do Estado visto no
item anterior, que se transformou em cidadão.
A democratização da sociedade passa necessariamente pelos processos
de participação da sociedade civil (do povo) e pela conseqüente luta por acesso à
cidadania.
Nos países ocidentais, incluindo-se aí o Brasil, muitas foram as lutas em
busca da conquista de espaços onde fosse possível exercer a participação de forma
cidadã. Mas o que é “participação” afinal?
Etimologicamente, a palavra participação é derivada da expressão latina
participatio, que vem de participare (ter parte, partilhar, comunicar), além de ser um
vocábulo empregado em diversas situações, tanto técnicas como coloquiais. Mas o
que vai interessar é o seu sentido que designa a ação de participar ou intervir, tomar
parte em algum ato, em qualquer condição. É, portanto, a ação de ser parte, ou ter
cooperado para que alguma coisa se fizesse ou fosse feita (DE PLÁCIDO E SILVA,
1967, p. 1123).
53
Dentro do vocabulário político e popular, e porque não também dentro do
vocabulário científico, incluindo-se aqui o Direito17, “participação” é uma das palavras
mais utilizadas nos tempos atuais.
Dependendo da época ou do processo histórico, essa expressão,
geralmente, vem associada a outros termos como democracia, representação,
conscientização, cidadania etc.
O sentido atribuído à palavra “participação” varia de acordo com os
teóricos que o determinam, podendo ser analisada segundo três níveis: o
conceptual, que apresenta um alto grau de ambigüidade e varia segundo o
paradigma teórico em que se fundamenta; o político, usualmente associado a
processos de democratização, mas pode também ser utilizado como um discurso
mistificador em busca da mera integração social de indivíduos, isolados em
processos que objetivam reiterar os mecanismos de regulação e normatização da
sociedade, resultando em políticas sociais de controle social; e o da prática social,
que se relaciona ao processo social propriamente dito, tratando-se de ações
concretas engendradas nas lutas, movimentos e organizações para realizar algum
intento. “Aqui a participação é um meio viabilizador fundamental” (GOHN, 2003, p.
14).
As análises teóricas sobre participação conduzem ao aparecimento de
diversas formas de compreensão de seu significado. As teorias consideradas
clássicas são a liberal, a autoritária, a revolucionária e a democrática.
Na primeira concepção, a participação tem como escopo o fortalecimento
da sociedade civil, fortalecendo-a para evitar as ingerências do Estado, ou seja, seu
controle, tirania e interferência na vida do indivíduo. Esta concepção baseia-se nos
17 É importante salientar que nesse momento não cabe uma discussão teórica se o Direito é uma ciência ou não.
54
pressupostos do liberalismo, principalmente aquele que assegure a liberdade
individual.
Dentro das relações capitalistas, a concepção liberal serve para reformar a
estrutura da democracia representativa, tentando evitar os obstáculos burocráticos à
participação, desestimulando a intervenção do governo e ampliando os canais de
informação aos cidadãos para que eles possam manifestar suas preferências antes
que as decisões sejam tomadas.
Segundo Maria da Glória Gohn (2003, p. 15-16),
a participação liberal se baseia, portanto, em um princípio da democracia de que todos os membros da sociedade são iguais, e a participação seria o meio, o instrumento para a busca de satisfação dessas necessidades.
Existem dois tipos de participação derivados da liberal: a participação
corporativa e a participação comunitária. A corporativa é entendida como um
movimento espontâneo dos indivíduos, que advém de uma concordância com certa
ordem social que cria o “bem comum”, sendo isto a razão do impulso dos indivíduos
e não o interesse pessoal; a comunitária concebe o fortalecimento da sociedade civil
em termos de integração, dos órgãos representativos da sociedade aos órgãos
deliberativos e administrativos do Estado, sendo, portanto, uma participação
institucionalizada. “Ambas entendem a participação como um movimento
espontâneo do indivíduo, em que não se colocam as questões das diferenças de
classe, raças, etnias etc” (GOHN, 2003, p. 17).
Na segunda concepção, a autoritária, a participação é aquela orientada
para a integração social da sociedade e da política. Ocorrem em regimes políticos
autoritários de massa da direita, como o fascismo e o nazismo, e de esquerda, como
nos regimes socialistas.
55
A terceira concepção, a revolucionária, tem uma participação estruturada
em coletivos organizados para lutar contra as relações de dominação e pela divisão
do poder político, podendo ser realizada de acordo com o ordenamento jurídico em
vigor ou por canais paralelos.
A última concepção, a democrática, tem a soberania popular como seu
princípio regulador. A participação é concebida como um fenômeno que se
desenvolve tanto na sociedade civil quanto no plano institucional, ou seja, nas
instituições formais políticas. Aqui o objetivo é fortalecer a sociedade civil para a
construção de caminhos que apontem para uma nova realidade social, sem
injustiças, exclusões e desigualdades. A marca dessa concepção é o pluralismo. A
participação tem caráter plural. Nos processos que envolvem a participação popular,
os indivíduos são considerados cidadãos. A participação articula-se, nesta
concepção, com o tema cidadania.
Autores como Carole Pateman (1992, p. 9) e o teórico norte-americano
Sherry Arnstein (1969, p. 216-224), preferem trabalhar com tipologias que tratam dos
diferentes graus de participação. O primeiro define três situações: a
pseudoparticipação, quando há somente consulta sobre um assunto por parte das
autoridades; a participação parcial, sendo aquela em que muitos participam do
processo, mas só uma parte define o fato; e a participação total, situação em que
cada grupo de indivíduo tem igual influência na decisão final. Entende Pateman
também que o conceito de participação perdeu importância junto aos teóricos
contemporâneo da política e da sociologia política, em relação ao papel que lhe foi
atribuído pelos clássicos, uma vez que eles entendem que um aumento da
participação poderia abalar a estabilidade do sistema democrático. O segundo
elaborou uma escala decrescente de oito tipos de participação cidadã em âmbito
56
público. Para ele o melhor e ideal tipo de participação seria o do controle pelo
cidadão; o segundo tipo seria o da delegação do poder; o terceiro, a parceria; o
quarto, a pacificação; o quinto, a consulta; o sexto, a informação; o sétimo, a terapia;
o último e pior tipo se daria através da manipulação, que é uma quase não-
participação.
Outros autores também criaram suas teorias sócio-políticas sobre a
participação.
Rousseau, na sua teoria política, considera a participação individual direta
de cada cidadão no processo de tomada de decisões de uma comunidade e a vê
como um modo de proteger os interesses privados e assegurar um bom governo.
Segundo ele, uma pessoa só pode ser verdadeiramente um cidadão quando quer o
bem geral e não o seu bem particular, e a principal função da participação deve ser
o caráter educativo que exerce sobre as pessoas.
O filósofo e economista britânico John Stuart Mill (apud Gohn, 2003, p. 23)
se preocupa com o desenvolvimento mental de uma comunidade e vê a possibilidade deste desenvolvimento se expressar em ações que denotem um espírito público, com caráter ativo dos indivíduos, no contexto de instituições populares participativas.
No entanto, Mill não aceita a tese de Rousseau da necessária igualdade
política. Para ele o sistema tem de ser elitista, as leis devem ser preparadas por uma
comissão especial e o papel dos representantes eleitos é meramente de
debatedores e não de legisladores, destacando a função integrativa da participação.
Alexis de Tocqueville (1998, p. 72), expõe que a comuna é a grande força
dos homens livres, “onde o povo é a força dos poderes sociais”. Nota-se aqui um
sistema de participação representativo que ia da comuna18 (Estados Unidos do
18 “Comuna é a divisão territorial de um departamento ou província, na qual se estabelece um poder administrativo para superintender os negócios relativos a esta circunscrição. Corresponde aos
57
século XIX) até o poder central, passando pelos condados, onde a soberania do
povo é vista como uma forma de governo, e o estado social democrático como
inevitável.
Para Karl Marx o conceito de participação é encontrado dentro das lutas e
movimentos sociais. Esses movimentos são voltados para a transformação das
condições sociais, econômicas e culturais existentes, ou seja, trata-se do processo
de luta histórica das classes sociais menos favorecidas.
Para Dalmo Dallari (1984, p. 51 e 91), dentro da área política, “entre as
mais eficientes formas de participação política estão os trabalhos de conscientização
e de organização”. Para ele, ainda, há uma distinção entre participação política
formal - aquela que se limita aos aspectos secundários do processo político - e
participação política real - aquela que influi nas decisões políticas fundamentais.
Bobbio (1999, p. 888) estabelece três formas de participação política: a
presencial, que é uma forma com menos intensidade, com comportamentos
receptivos ou passivos; a ativação, aquela que possibilita a um indivíduo
desenvolver uma série de atividades a ele delegadas de forma permanente; e a
participação propriamente dita, consistindo naquela em que o indivíduo contribui
direta ou indiretamente para uma decisão política.
Cabe ressaltar que o tipo de participação política mais citado e o mais
valorizado nas democracias é o voto, e, em segundo lugar, fica a participação nas
atividades político-partidárias.
O importante disso tudo, no entanto, é saber que
participar é visto como criar uma cultura de dividir as responsabilidades na construção coletiva de um processo, é dividir responsabilidades com a comunidade. Essa última é vista como parceira, como co-responsável permanente, não apenas um ator
Municípios, ou aos Conselhos, adotados em idênticas circunstâncias e para os mesmos fins” (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 376).
58
coadjuvante em programas esporádicos. A participação envolve também lutas pela divisão das responsabilidades dentro do governo. Essas lutas possuem várias frentes, tais como a constituição de uma linguagem democrática não-excludente nos espaços participativos criados ou existentes, o acesso dos cidadãos a todo tipo de informação que lhe diga respeito e o estímulo à criação e desenvolvimento de meios democráticos de comunicações (GOHN, 2003, p. 19).
Em conclusão, salienta-se que “na Sociologia a palavra participação
ganhou, nas últimas décadas, o estatuto de uma medida de cidadania [...]” (GOHN,
2003, p. 27).
Embora muitos autores estabeleçam diferentes classificações ou tipos de
participação, nota-se que elas divergem apenas nas óticas de observância e nas
nomenclaturas. O que se refuta mais adequado, entretanto, é entendê-las como a
um fenômeno com caráter plural, estreitamente ligado à cidadania e à democracia,
desenvolvendo-se tanto na sociedade civil, quanto no plano das instituições
políticas.
4.2 A CIDADANIA
4.2.1 Contextualização Histórica
Nota-se que a participação é inerente à cidadania. Mas o que é cidadania?
Segundo De Plácido e Silva (1967, p. 335), a cidadania é uma palavra que
deriva de cidade, mas que, apesar disso, não indica somente a qualidade daquele
que a habita e sim o direito político que lhe é conferido para que possa participar da
vida política do país em que vive, portanto,
a cidadania é expressão, assim, que identifica a qualidade da pessoa que, estando na posse de plena capacidade civil, também se
59
encontra investida no uso e gozo de seus direitos políticos, que se indicam, pois, o gozo dessa cidadania.
Ser cidadão é possuir direitos civis garantidos pela lei, como o direito à
vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade, etc; é também ter direitos políticos,
participando do destino da sociedade, votando e sendo votado. Mas esses direitos
civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, ou seja,
aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva, como o direito
à educação, à saúde, ao trabalho etc.
Tomando por base a idéia de que a cidadania diz respeito à qualidade
daquele que possa participar da vida do país na sua integralidade, sendo cidadão,
diferentes modos de se observar essa qualidade podem ser descritos no decorrer da
evolução da história do homem, já que cidadania não é uma definição estanque,
variando no espaço e no tempo. É um conceito histórico.
Ser cidadão é diferente nos diversos cantos do mundo: Europa, América,
Ásia ou África, em virtude das divergências culturais, sociais e jurídicas que
envolvem cada nação, diversificando não só os titulares da cidadania, como também
seus direitos e deveres.
Essa diversificação provoca a impossibilidade de uma seqüência única,
determinista e necessária para a evolução da cidadania no mundo. Todavia, há um
processo de evolução que caminha da ausência de direitos de cidadania para a sua
ampliação, com o passar dos tempos.
Na Antigüidade Clássica, cidadão era aquele que morava na cidade e
participava de seus negócios (BARACHO, 1994, p. 1). Era aquele que podia ter
acesso aos cargos públicos e à vida pública da cidade, uma minoria, portanto, já que
60
havia, na época, uma grande diferença entre estrangeiros e escravos em relação
aos homens livres.
Com o início da Idade Média, toda vontade do indivíduo foi tolhida e
direcionada à vontade de Deus, ou melhor, da Igreja. Assim, cidadão era aquele que
detinha riquezas e estava situado numa camada restrita e distinta do restante da
grande e carente massa popular. Cidadão eram os nobres, os clérigos ou aqueles
permitidos pelos detentores do poder.
No período histórico do Liberalismo, com a queda do Absolutismo que
reinava da Idade Média, percebe-se uma profunda mudança na maneira de se
considerar a relação entre o Estado e os indivíduos que o compunham.
Até então a posição era a de que o Estado possuía o direito de comandar
e ordenar, e o indivíduo, o de obedecer. Essa ótica foi modificada a partir do
momento em que os indivíduos decidiram por sua união, pela instituição de um
governo, de uma nação comum a todos, e pela resistência ao poder instituído.
Assim, a cidadania se convertia na possibilidade do indivíduo se defender das
investidas do Estado contra a sua liberdade e segurança e de não mais estar
adstrito a um comando de uma minoria dominante, mas sob as imposições daquilo
que era estabelecido pelas leis.
Todavia, essa idéia de liberdade alcançada nesse período estava
camuflada por outra ótica de cidadania, aquela que determinava que cidadão era
somente aquele que possuía bens, ou seja, os proprietários, uma vez que somente a
estes passaram a pertencer os direitos de votar e ser votado. Começa aqui, no
século XVIII, a busca dos indivíduos por seus direitos políticos.
Ao longo do século XIX, os direitos políticos começam a ser ampliados
mediante sua extensão a uma maior parte da população, mesmo àqueles que não
61
possuíam bens materiais. Mas a cidadania ainda se encontrava muito restrita a uma
idéia de sufrágio.
No século XX, começa a despontar o Estado Social e com ele a crescente
participação popular no processo de produção, no domínio econômico e,
conseqüentemente, na sociedade pensada de forma coletiva, sem esquecer da
participação política que ainda persiste, mas agora com maior intensidade,
mudando-se de um sufrágio restrito para um universal.
O cidadão passa a ser então o indivíduo portador não apenas de direitos
políticos, que foram se incrementando paulatinamente, mas também detentor de
direitos individuais, sociais e econômicos. Passa a ser imprescindível para a vida em
sociedade a participação de todos, de todas as classes no processo político e
também no econômico.
Em 1948, o conceito de cidadania teve significativa ampliação com a
elaboração da Declaração Universal dos Direitos dos Homens, a qual passou a
determinar que cidadão não era mais somente aquele que pertencia a um
determinado Estado, mas todos aqueles que viviam no Planeta. Portanto, o conceito
de cidadania acabava de ser universalizado.
4.2.2 Contextualização Teórica
Há em relação ao instituto da cidadania duas linhas teóricas: uma no
campo do indivíduo e outra no campo da democracia.
Em relação à primeira linha, é dentro do quadro do conflito entre liberais e
comunitários (republicanos) que ocorrem os fundamentos mais recentes de
cidadania. O filósofo norte-americano Michael Walzer (1997, p. 121-122) ressalta
62
que este conflito ocorre entre uma concepção mais voltada aos direitos (status legal)
contra uma perspectiva mais voltada aos deveres cívicos. Para ele a cidadania
comunitária, nascida com os ideais greco-romanos e consolidada na Revolução
Francesa, é uma responsabilidade, um ônus orgulhosamente assumido. A cidadania
é pesada mediante a análise dos direitos e deveres do indivíduo dentro da
sociedade.
No que tange à segunda linha, aquela que ligada o universo da cidadania
sob a ótica de um processo democrático, cabe mencionar a contribuição de Jürgen
Habermas (1990, p. 100-113). O objetivo deste autor é estabelecer uma concepção
de democracia radical mediante a noção de espaço público19, como mecanismo
procedimental, para a construção dessa forma política. Habermas critica a
dependência do mundo das políticas administrativo-sociais do Estado de Bem-Estar
Social, questionando o esvaziamento do processo democrático-representativo,
defendendo a materialização de uma nova dinâmica através de um discurso
comunicativo. Portanto, um dos quadros teóricos mais completos sobre os desafios
da cidadania é esse habermasiano de espaço público.
No entanto, a idéia de cidadania só estaria completa se o Estado desse a
possibilidade ao indivíduo de buscar a plenitude de sua participação na vida do País.
E isso só seria possível se os meios e mecanismos para isso existissem. Assim, por
cidadão toma-se aquele que possui e exerce todos os seus direitos e deveres. Não é
apenas aquele que vota, mas todos que participam da construção do futuro do país,
com a detenção dos instrumentos de que precisa para se autodeterminar.
19 Espaço público, segundo Paulo Bonavides (2003b, p. 278), é conceito contemporâneo de extrema importância, enquanto auxiliar poderoso na construção dos sistemas participativos da democracia direta, onde é possível conviver, ainda, sem incompatibilidade absoluta, com formas remanescentes de representação. Encerrando-se, portanto, nas virtualidades do processo democrático mais aberto, intenso e profundo a que se possa aspirar, enraizado na consciência e na razão dos que, com a expansão da criatividade, introduziram novos instrumentos para erguer a chamada representação política, cuja crise é aparente.
63
Cidadão torna-se, então, aquele que possui e exerce todos os direitos
constitucional e legalmente garantidos. Observe-se que possui-los apenas não é
suficiente, tem-se que exercê-los com efetividade.
Na sua concepção mais ampla, cidadania, portanto, é a expressão
concreta do exercício da democracia.
64
5 ESPÉCIES DE REGIMES POLÍTICOS
Conforme expõe José Afonso da Silva (2002, p. 123), o regime político
não tem encontrado conceituação uniforme na doutrina e que, segundo Maurice
Duverger, constitui um conjunto de instituições políticas que, num determinado
momento, funciona em certo local, tendo como base o fenômeno essencial da
autoridade, do poder, da distinção entre governantes e governados, aparecendo,
assim, como um conjunto de respostas a quatro problemas fundamentais relativos à
autoridade dos governantes e sua obediência; escolha dos governantes; estrutura
dos governantes; e limitação dos governantes. Nessa ótica, por se relacionar
diretamente com o problema constitucional, o regime político será mais ou menos
sinônimo de regime constitucional.
Outros autores, como Jiménez de Parga e Guelli, colocam pontos de vista
diferentes em relação a esse advogado por Duverger. O primeiro concebe o regime
político como a solução que se dá, de fato, aos problemas políticos de um povo,
podendo ou não coincidir com o sistema de soluções estabelecidas pela
Constituição, solução efetiva, ou como solução política, valorando-se com as normas
jurídicas ou com critérios morais; o segundo, tem uma concepção diversa da de
Parga. Para ele, a característica de um determinado regime político encontra-se na
65
solução do problema da justificação do poder, ou seja, das relações entre
governantes e governados.
Para José Afonso da Silva (2002, p. 124), o regime político pressupõe a
existência de um conjunto de instituições e princípios fundamentais que informam
determinada concepção política do Estado e da sociedade, não deixando, porém, de
ser também um conceito ativo, uma vez que tem de haver superposição do elemento
funcional ao fato estrutural, por implicar numa atividade e num fim. Supõe-se o
regime político, portanto, dinamismo, sem redução a uma simples atividade de
governo, sendo, então, “um complexo estrutural de princípios e forças políticas que
configuram determinada concepção do Estado e da sociedade, e que inspiram seu
ordenamento jurídico”.
Santi Romano, segundo ainda José Afonso da Silva (2002, p. 124),
entende que regime é o governo enquanto quer se exaltar o princípio ou diretriz
política fundamental, que informa todas as instituições do Estado e constitui também
a suprema diretiva de sua atividade.
Jorge Xifras (1957, apud SILVA, 2002, p. 124) define regime político como
um conceito amplo que se baseia numa semelhança ideológica e entre instituições,
envolvendo sistemas de governo (presidencialismo e parlamentarismo etc.) e até
forma de Estado (unitário e federal) e de governo (república, monarquia), mostrando
a síntese integradora das instituições, das forças e das idéias que operam numa
sociedade. Ainda, segundo Xifras, atualmente, os regimes políticos resumem-se na
dicotomia autocracia-democracia, ou seja, em regimes democráticos, aqueles que
dão instrumentos e garantias à realização da participação do povo no plano prático,
e em regimes autocráticos ou não-democráticos, aqueles que não oferecem
garantias e tolhem a participação popular.
66
Portanto, os regimes políticos podem ser classificados, de acordo com o
grau de respeito à vontade do povo nas decisões do Estado, em democráticos e
não-democráticos.
5.1 REGIMES NÃO DEMOCRÁTICOS
A maioria dos autores sustenta a existência de diversos graus de regimes
não-democráticos. De acordo com a maior ou menor participação popular na
formação da vontade nacional, eles serão autoritários, totalitários ou ditatoriais. A
característica comum desses regimes é a não-prevalência da vontade popular na
formação do governo.
O regime autoritário, segundo De Plácido e Silva (1967, p. 200 - 201),
é aquele em que o poder discricionário do governo prevalece sobre as próprias leis, opondo-se ao regime liberal ou democrático. O regime autoritário, formador do Estado autoritário, é forma disfarçada de ditadura, onde, em regra, o governo enfeixa em suas mãos as atribuições dos Poderes Executivo e Legislativo. O Estado totalitário foi praticado no Brasil sob a forma de Estado Novo.
Diferentemente das democracias que repousam na competição política e
no pluralismo, os Estados Autoritários se caracterizam pela centralização e
concentração do poder político; pelo grande peso da burocracia estatal, altamente
desenvolvida e de uma estrutura administrativa complexa a serviço do Estado e não
da sociedade; pela censura e manipulação dos meios de comunicação; pela
limitação da competição política e castração da participação popular; pela
prevalência da ordem à justiça; pela indiferença aos direitos fundamentais; pelo culto
à personalidade etc.
67
Quando se fala em Estado Totalitário20, todas essas características do
Autoritarismo são tomadas em seu nível máximo. Figura-se nele também, além das
características já enumeradas, um partido único; uma ideologia política integradora,
que delimita e explica, ou pelo menos pretende delimitar e explicar, totalmente, a
realidade social, com base em premissas e argumentos pretensamente científicos
(baseada na religião, raça etc.); pela presença de inimigos comuns ou construção de
inimigos; pela ampla mobilização da massa; pela intervenção na vida privada; pelo
uso reiterado da mentira etc. Muito embora não se possa negar que tudo isso
também ocorra nas democracias, mas com menor freqüência.
Esses estados têm uma característica peculiar quando se faz referência
aos partidos políticos. A principal função desses partidos é reforçar o controle sobre
a população, uma vez que não passam de meros instrumentos políticos sem um
programa de atuação concreto e real, vinculados apenas ao sistema burocrático do
estado, constituídos por uma parte da população mais elitizada e abastada.
Atualmente, os partidos políticos que dão suporte aos estados totalitários
são grandes estruturas que servem como canais de ascensão social e como
mecanismos de preservação de privilégios dos seus membros, principalmente
aqueles que compõem a cúpula do partido. São, também, um veículo de
transmissão de propaganda ideológica governamental e não de concretização dos
interesses reais da maioria da população.
As ideologias transmitidas através de propagandas que distorcem as
realidades dos fatos, apresentando informações de acordo com os interesses das
20 Totalitário, no sentido político, é o regime em que o Estado absorve e subordina os interesses dos indivíduos aos interesses da coletividade, adotando como forma de governo a ditadura pessoal ou de grupo. No regime totalitário é o Estado que dirige todas as atividades da vida social do país, nele somente admitindo a existência do partido ou do grupo de onde saem seus dirigentes ou administradores. O Totalitarismo, por sua vez, é a doutrina que preconiza o sistema de governo totalitário, cujo dirigente age discricionariamente, absorvendo, em regra, todos os poderes (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 1572-1573).
68
elites detentoras do poder, têm o intuito de atingir as massas populares com
propostas de salvações sociais e econômicas absurdas, como no Nazismo21, no
Fascismo22 ou no Comunismo23. Contemporaneamente, o líder, num estado
totalitário, tem alto carisma, com grande apelo político demagógico junto à
população, visando impor ao indivíduo um grupo político específico e com
qualidades discutíveis.
O peso da burocracia estatal tem extrema relevância dentro do estado
totalitário, servindo, na maioria das vezes, como constituídos de uma sociedade
paralela à oficial, onde impera a desfaçatez individual, a artimanha, o suborno e um
grande mercado negro destinado a facilitações. Assim era a URSS no auge da sua
existência, uma sociedade socialista que só existia no imaginário (ALVES, 2005, p.
3).
Outro elemento importante dentro da estrutura dos estados totalitários é o
desenvolvimento de um rígido controle e manipulação do fluxo de informações
passadas à sociedade civil. Esse controle se dá através da censura às espécies de
produção e circulação de notícias, arte e cultura que venham a ser contrárias aos
interesses dos que dominam, ao passo que, os interesses reais do poder são
transmitidos à população de forma subliminar, com o intuito de direcionar a
21 Partido e doutrina do movimento nacional-socialista alemão chefiado por Adolf Hitler. 22 Denominação dada ao partido político italiano, que se apoderou do poder em 1922. O vocábulo se formou de fasces, emblema dotado por seus partidários. Funda-se num regime ditatorial, em caráter permanente, conhecido pelo nome de totalitário (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 677) 23 Sistema político e social que pretende estabelecer o princípio de que todos os bens ou riquezas produzidas pertencem ao Estado, para serem usufruídos por todos os seus componentes, segundo as regras preestabelecidas. Há, pois, no regime comunista, a idéia da formação de uma só comunidade entre todos os cidadãos, onde não se permite qualquer espécie de acumulação, visto que, como base dominante, nele não se admite o sistema dito capitalista. O comunismo se funda na teoria econômica criada por Karl Marx, a que se chama de “materialismo filosófico”, formulado com a intenção de criar uma nova ordem em benefício do trabalhador. Como se vê, segundo o intuito mirado, o vocábulo se formou justamente de comum, para indicar o sistema ou a teoria que prega a coletividade (comunhão) de todos os interesses e bens, isto é, seja da terra ou do trabalho (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 378-379).
69
população para os verdadeiros objetivos do regime, principalmente para a sua
legitimação.
A imagem do ditador, no estado totalitário, é construída pelas
propagandas como a de figuras sobre-humanas, extremamente dotadas de uma
visão política e social muito ampla e de uma capacidade administrativa
extraordinária, contrariamente ao que verdadeiramente são.
O caráter policial é outra importante característica do estado totalitário. Há
uma intenção, por parte do poder dominante, de eliminar completamente as tensões
e insatisfações existentes na sociedade.
Assim, o controle repressivo e difuso do Estado e de seu aparelho
burocrático sobre o indivíduo e sobre a sociedade marca as principais características
do estado totalitário.
Sob essa ótica totalitária, cabe ressaltar que, segundo Bonavides (2001, p.
129-131), Carl J. Friedrich interpreta o pensamento de Hegel no sentido de
identificar com a moralidade, e não no de constituir o Estado como instrumento
dessa moralidade. Assim, tal semelhança bastaria para excluir a concepção do
Estado como aparelho totalmente coativo, como ocorreu no Estado nacional-
socialista de Hitler, levando-se a crer, destarte, que Hegel, por mais que parecesse
um filósofo do totalitarismo, ou para muitos tratadistas latinos, o papa do absolutismo
nos tempos modernos, verdadeiramente não o era.
No que diz respeito à ditadura, ela é a denominação dada ao governo
discricionário que é exercido por um ditador24.
24 Palavra derivada de dictator, de dictare (ditar, mandar, ordenar), era a designação que se dava, na antiga Roma, ao magistrado que, nos momento de perigo, era escolhido para dirigir os negócios públicos modernamente serve para indicar a pessoa que exerce o governo em caráter discricionário e absoluto, tendo em suas mãos todos os poderes, ou somente os Poderes Executivo e Legislativo, deixando em normal funcionamento somente o Judiciário (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 552).
70
O termo “ditadura”, tanto na linguagem comum como na especializada, é o
que hoje prevalece para determinar um governo absoluto, exclusivo, pessoal, com
práticas morais e jurídicas discutíveis. Os termos “tirania” e “despotismo” caíram em
desuso e o termo “ditadura” é aplicado às diversas situações (BOBBIO, 1997, p.
173).
Em Roma, a ditadura tinha caráter temporário, sendo, portanto, uma
magistratura monocrática, com poderes extraordinários, mas legítimos, e limitada no
tempo. Em relação à tirania, a ditadura se distingue por aquela não ser legítima, nem
necessariamente temporária. Já o despotismo tem todas as características da
ditadura romana, porém não tinha um caráter temporário, pelo contrário, era um
regime de longa duração.
Esse termo passou a ser usado de uma forma mais abrangente quando de
sua referência ao fascismo italiano, ao nacional-socialismo alemão, ao stalinismo,
aos governos do Pinochet no Chile e de Vargas e dos militares no Brasil. Nesses
casos o governo constitucional precedente fora afastado pela força de um grupo
armado que continua exercendo a violência no seu governo, suprimindo as
liberdades civis e políticas dos cidadãos.
Rousseau, no seu Contrato Social, destina um capítulo inteiro à análise da
ditadura. Sua insistência gira em torno do caráter executivo da ditadura, afirmando
que o ditador pode calar as leis, suspendendo sua aplicação temporariamente, mas
não podia fazê-las falar, ou seja, não podia alterá-las ou modificá-las, não podia
promulgar novas leis e do seu caráter temporário.
A idéia da implantação de uma ditadura para os países subdesenvolvidos
ou semidesenvolvidos, como o Brasil ou a Índia, não é a verdadeira solução para
seus problemas. O que é importante para esses países é um governo forte, e
71
ditadura não é sinônimo de governo forte e sim de governo de força. “Governo forte
é governo de lei, governo de autoridade. E autoridade não se faz por obra da força,
senão do assentimento, ou seja, da confiança dos governados” (Bonavides, 2003a,
p. 224). O governo forte mais apropriado para esses países não pode ser diferente
do governo democrático assentado na legitimidade e no Direito, na confiança e
cooperação mútua entre governantes e governados.
Assim, a busca do bem comum da sociedade e da nação recai sobre a
responsabilidade do governo e dos cidadãos que necessitam de instrumentos
apropriados, como meios de condução da política e das atividades administrativas. E
esse ideal só pode ser alcançado através dos instrumentos trazidos pela
democracia, de forma efetiva.
Portanto, depois, de uma breve análise dos regimes ditos não-
democráticos, passar-se-á ao desenvolvimento da democracia, seus conceitos,
espécies e aspectos de forma mais abrangente, uma vez que esta é o cerne mais
importante do tema ora proposto.
5.2 A DEMOCRACIA
5.2.1 O Princípio Democrático
A primeira manifestação concreta do princípio democrático aconteceu há
vários séculos, na polis grega, como a do estilo clássico do Estado Ateniense. Essa
experiência trazida pela Grécia antiga foi a gênese da idéia democrática que
influenciou a república romana e vem influenciando os tempos modernos.
72
A democracia, como realização de valores de convivência humana, é um
conceito mais abrangente do que de Estado de Direito, que surgiu como expressão
jurídica da democracia liberal, ou seja, com a queda do absolutismo e a implantação
de um Estado Liberal.
Segundo Paulo Bonavides (2003a, p. 251), o Estado de Direito
não é uma forma de Estado nem uma forma de governo. Trata-se de um status quo institucional, que reflete nos cidadãos a confiança depositada sobre os governantes como fiadores e executores das garantias constitucionais, aptos a proteger o homem e a sociedade nos seus direitos e nas suas liberdades fundamentais. [...]. O Estado de Direito teve sua base ideológica principal formada à sombra dos combates que a liberdade feriu contra o absolutismo, razão por que seus laços políticos mais íntimos são com as crenças liberais da sociedade burguesa do século passado.
O Estado de Direito, mais do que um conceito jurídico, é um conceito
político que vem à tona no final do séc. XVIII e início do séc. XIX. Nasce com os
movimentos revolucionários burgueses que tentavam subjugar os governantes à
vontade legal, mas não de qualquer lei. No entanto, não bastava que o Estado
estivesse submetido à lei, era necessário dar-lhe outra dimensão. O Estado, então,
passa a ter suas tarefas limitadas basicamente à manutenção da ordem, à proteção
da liberdade e da propriedade individual. É a idéia de um Estado mínimo que não
interviesse na vida dos indivíduos, a não ser para o cumprimento de suas funções
básicas.
Historicamente, o Estado de Direito, de conceito tipicamente liberal,
nasceu com o advento da Revolução Francesa, que aparecia como oposição ao
absolutismo, caracterizado pela força reunida apenas nas mãos do rei e da nobreza.
Foi a burguesia, até então a classe dominada, que passou à classe dominante,
formulando os princípios filosóficos de sua revolta social. Começa, a partir daí, um
73
novo momento na história, o momento da liberdade do homem perante o Estado, a
idade do Liberalismo.
Antes da Revolução Francesa, o binômio absolutismo-feudalismo
explicava tudo. Depois da Revolução muda-se o binômio para democracia-burguesia
ou democracia-liberalismo. Antes o político (o poder do rei) tinha ascendência sobre
o econômico (o feudo). Depois a ordem é invertida: é o econômico (a burguesia, o
industrialismo) que controla e dirige o político (a democracia) (BONAVIDES, 2001, p.
54-55).
Mas, na verdade, a burguesia, ou seja, quem detinha o poder no novo
Estado liberal-democrático, ocultava os reais interesses como classe dominante.
O Estado de Direito, por ter um conceito tipicamente liberal, é chamado de
Estado Liberal de Direito, possuindo as seguintes características: submissão ao
império da lei; divisão de poderes; enunciado e garantias dos direitos individuais
(SILVA, 2002, p. 112-113).
Começa daí, do Estado Liberal, a obra de destruição da primeira fase do
constitucionalismo burguês. O curso das idéias pede um novo caminho. Da
Liberdade do Homem perante o Estado avança-se para a idéia mais democrática da
participação total e indiscriminada desse mesmo Homem, na formação da verdade
estatal. Do princípio liberal chega-se ao princípio democrático. Do governo de uma
classe, ao governo de todas as classes.
A burguesia, a partir daí, passou a defender o princípio da representação,
mas esta era destoada por privilégios concedidos e aparentes discriminações.
O Estado Liberal, portanto, humanizou a idéia estatal, democratizando-a
teoricamente pela primeira vez na Idade Moderna. Estado de uma classe – a
74
burguesia - viu-se ele, porém, condenado à morte, desde que começou o declínio do
capitalismo.
Com o passar dos tempos, durante a ordem liberal estabelecida, uma só
classe foi quem dominou indiscriminadamente, essa classe era a burguesia. As
características individualistas e de exclusão do Estado Liberal provocaram imensas
injustiças assoladoras das massas. Ocorreram, com isso, desde o séc. XIX até início
do séc. XX, movimentos sociais contrários ao pensamento liberal, permitindo que, a
partir daí, aparecesse a primeira consciência de justiça social.
Pode-se chegar a uma breve e primeira conclusão afirmando que o Estado
de Direito, deste momento em diante, não poderia mais ser classificado como liberal,
já que a sociedade aclamava por mais equilíbrio e justiça social. Então, o Estado de
Direito deixou de ser formal, neutro e individualista, para transformar-se em um
Estado que pudesse realizar a justiça social, ou seja, transformou-se em Estado
Social, ou, para outros, Estado Social de Direito. “Onde o qualificativo ‘social’ refere-
se à correção do individualismo clássico liberal pela afirmação dos chamados direito
sociais e realização de objetivos de justiça social”. A característica aparente do
Estado Social é conseguir compatibilizar dois elementos, a saber: o capitalismo,
como forma de produção; e a consecução do bem-estar social, servindo de base ao
Welfare State (DIAZ, 1973 apud SILVA, 2002, p.115).
Teve o Estado Social o seu apogeu nos países do chamado primeiro
mundo, logo após a Segunda Grande Guerra, servindo de uma doutrina
constitucional cuja inspiração maior se cifrava na justiça, na igualdade, no
estabelecimento da paz social, na cessação dos conflitos de classe, na mudança
hegemônica que passa do princípio da legalidade para o princípio da legitimidade.
75
A amplitude do Estado Social contemporâneo é evidente. Este Estado
compreende direitos da primeira, da segunda, da terceira e da quarta geração, que
se inicia com os direitos individuais, chega aos sociais, prossegue com os direitos da
fraternidade e alcança, finalmente, o último direito da condição política do homem: o
direito à democracia. Todavia, dentro de uma ótica da democracia como participação
e esta, consequentemente, como parte do direito à liberdade, caberia a democracia,
não nos direitos de quarta geração, mas de primeira. No entanto, tal discussão
pouco influi para a proposta do tema ora apresentado.
Mas para ficar mais clara a compreensão, tomando por base a sua
titularidade, os direitos humanos de primeira geração pertencem ao indivíduo, os da
segunda ao grupo, os da terceira à comunidade e os da quarta ao gênero humano.
Portanto, é o Estado Social aquele em que o Estado avulta menos e a
sociedade mais; onde a liberdade e a igualdade já não se contradizem com a
veemência do passado; onde o poder e o cidadão se convergem, buscando a
concretização de direitos, princípios e valores que fazem o homem ter possibilidades
de ser, efetivamente, livre, igualitário e fraterno25.
O Estado Social, em seu mais alto grau de legitimidade, será sempre, ao
ver de vários autores, aquele que melhor consagra os valores de um sistema
democrático. Valores que colocam como um dos elementos mais importantes de sua
fundamentação as expressões participativas da sociedade, tais como a iniciativa, o
plebiscito e o referendo.
25 Observem-se, entretanto, os conflitos sociais mais recentes na França, principalmente os ocorridos no segundo semestre de 2005, onde não há convergência entre poder e o cidadão da periferia. Não há igualdade, nem fraternidade; o que existe é a explosão desses ícones, dessas abstrações-valores no papel legal.
76
Embora o Estado de Direito possa ter aparecido tanto no Estado Liberal de
Direito, quanto no Estado Social de Direito, nem sempre ele irá caracterizar-se como
um Estado Democrático. Este se funda no princípio da soberania popular, que
impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure, [...], na simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento (CROSA, 1946, apud SILVA, 2002, p. 117).
A base do conceito de Estado democrático é, sem dúvida, segundo Dallari
(1991, p. 123), a noção de governo do povo, revelada pela própria etimologia do
termo democracia. E sua defesa, conseqüentemente, pretende afastar a tendência
humana ao autoritarismo.
O Estado Democrático nasce então de toda essa transformação histórica
da estrutura da sociedade e do Estado. Desde o aparecimento do Liberalismo, com
os direitos naturais da pessoa humana (Revolução Inglesa, Revolução Americana e
Revolução Francesa) até o implemento do Estado Social em tempos mais atuais.
Foram esses movimentos e essas idéias que preponderaram na história
do homem, que determinaram as diretrizes na organização do Estado a partir de
então, consolidando-se a idéia de Estado Democrático como ideal supremo, ou seja,
segundo José Afonso da Silva (2002, p. 118), a igualdade do Estado de Direito se
funda num elemento puramente formal e abstrato, a generalidade da lei. Não há
base material que se realiza na vida concreta. A tentativa de corrigir tal problema foi
a construção do Estado Social de Direito, que não foi capaz de assegurar a justiça
social nem a autêntica participação democrática do povo no processo político
(LUCAS VERDÚ, 1974, apud SILVA, 2002, p. 118).
A concepção mais recente do Estado Democrático é o Estado
Democrático de Direito, como Estado de legitimidade justa (de justiça material), que
77
se funda numa sociedade democrática, onde se instaure um processo de efetiva
incorporação de todo o povo nos mecanismos de controle das decisões, e de sua
real participação nos rendimentos da produção (DÍAZ, 1973, apud SILVA, 2002, p.
118).
Acontece que o Estado Democrático de Direito não se configura numa
união formal dos conceitos de Estado Democrático com Estado de Direito, mas num
conceito novo, levando em conta os conceitos dos elementos componentes, embora
os superando na medida em que incorpora um componente revolucionário de
transformação do status quo.
Por tudo isso, o princípio democrático é aquele que exprime a idéia da
integral participação de todos e de cada um dos indivíduos na vida política do país,
com o objetivo de garantir o respeito à soberania popular da forma mais ampla
possível.
Para Dalmo Dallari (1991, p. 128), a supremacia popular é
que colocou o problema da participação popular no governo, suscitando acesas controvérsias e dando margem às mais variadas experiências, tanto no tocante à representatividade, quanto à extensão do direito de sufrágio e aos sistemas eleitorais e partidários.
A prevalência da vontade do povo sobre a de qualquer indivíduo do grupo
é um dos elementos substanciais da democracia, segundo Dallari (1991, p. 256).
Quando um governo, mesmo que bem intencionado, coloca sua vontade acima de
qualquer outra, não há democracia.
78
Várias Constituições estrangeiras26 demonstram nos seus textos a
necessidade e importância do exercício da soberania popular, através da
participação do povo na condução da vontade nacional.
A Constituição alemã expõe na parte 2 do artigo 2027 que “todo poder
estatal emana do povo. É exercido pelo povo por meio de eleições e votações e
através de órgãos especiais dos poderes legislativo, executivo e judiciário”.
A dos vizinhos argentinos coloca em seu artigo 3728 que
essa Constituição garante o pleno exercício dos direitos políticos,
com respeito ao princípio da soberania popular e das leis que editem
em conseqüência. O sufrágio é universal, igual, secreto e
obrigatório. A igualdade real de oportunidades entre homens e
mulheres para o acesso a cargos eletivos e partidários se garantirá
por ações positivas na regulamentação dos partidos políticos e em
regime eleitoral.
A de Cuba, em seu artigo 13129, ressalta que
todos os cidadãos, com capacidade legal para isso, têm direito a intervir na direção do Estado, diretamente ou por intermédio de seus representantes eleitos para integrar os órgão do Poder Popular, e a participar, com este propósito, na forma prevista na lei, em eleições periódicas e referendos populares, que serão de voto livre, igual e secreto. Cada eleitor tem direito a um só voto.
26 Textos constitucionais tirados do site da Presidência da República: www.presidencia.gov.br, em jul/05. 27 Art. 20, parte 2, da Constituição alemã – “Alle Staatsgewalt geht vom Volke aus. Sie wird vom volke in wahlen und Abstimmungen und durch besondere Organe der Gesetzgebung, der vollziehenden Gewald und der Rechsprechung ausgeübt”. 28 Art. 37 da Constituição Argentina – “Esta Constituición garantiza el pleno ejercicio de los derechos políticos, com arreglo al principio de la soberania popular y de las leyes que se dicten en consecuencia. El sufrágio es universal, igual, secreto y abligatorio. La igualdad real de oportunidades entre varones y mujeres para el acesso a cargos electivos y partidários se garantizará por acciones positivas em la regulación de los partidos políticos y em el règimen electoral”. 29 Art. 131 da Constituição cubana – “Todos los ciudadanos, com capacidad legal por ello, tienen derecho a intervenir em la dirección del Estado, bien directamente o por intermédio de sus representantes elegidos para integrar los órganos del Poder Popular, y a participar, com este propósito, em la forma prevista em la ley, em elecciones periódicas y referendos populares, que serán de voto libre, igual e secreto. Cada elector tiene derecho a um solo voto”.
79
A parte 1 do artigo 2330 da Constituição espanhola diz que “os cidadãos
têm o direito a participar dos assuntos públicos diretamente ou por meio de seus
representantes, livremente eleitos em eleições periódicas por sufrágio universal” e a
parte 1 do artigo 6831 que “o Congresso se compõe de um mínimo de 300 e um
máximo de 400 Deputados, eleitos por sufrágio universal, livre, igual, direto e
secreto, nos termos estabelecidos na lei”.
A italiana expõe em seu artigo 48 (1)32 que
são eleitores todos os cidadãos, homens e mulheres, que atingirem a maioridade. O voto é pessoal e igual, livre e secreto. O seu exercício é dever cívico. [...]. O direito de voto não pode ser limitado, exceto por incapacidade civil ou por efeito de sentença penal irrevogável ou nos casos de indignidade moral, indicados pela lei.
A Constituição portuguesa aborda o tema em vários artigos. No artigo 48,
item I, coloca que “todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e
na direção dos assuntos públicos do país, directamente ou por intermédio de
representantes livres eleitos”. No artigo 49, itens 1 e 2, é estabelecido que “têm
direito de sufrágio todos os cidadãos maiores de dezoito anos, ressalvadas as
incapacidades previstas na lei geral. O exercício do direito de sufrágio é pessoal e
constitui um dever cívico”. O artigo 108 diz que “o poder político pertence ao povo e
é exercido nos termos da Constituição” e o artigo 109 que
a participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos.
30 Art. 23, parte 1 da Constituição espanhola – “Los ciudadanos tienen el derecho a participar em los asuntos públicos, directamente o por médio de representantes, libremente elegidos em elecciones periódicas por sufrágio universal”. 31 Art. 68, parte 1 da Constituição espanhola – “El Congreso se compone de um mínimo de 300 y um máximo de 400 Diputados, elegidos por sufragio universal, libre, igual, directo y secreto, em los términos que establezca la ley”. 32 Art. 48 (1) da Constituição italiana – “Sono elettori i cittadini, uomini e donne, che hanno raggiunto la maggiori età. Il voto è personale ed eguale, libero e segreto. Il suo esercizio è dovere cívico. [...]. Il diritto di voto non può essere limitado se non per incapacità civili o per effetto di sentenza penale irrevocabile o nei casi di indegnità morale indicati dalla legge”.
80
A Constituição suíça33 possui dois capítulos inteiros que abordam sobre a
matéria. O primeiro, o Capítulo 2 do Título 2º, intitulado de “Cidadania e Direitos
Políticos”, vai do artigo 37 ao 40. O segundo, o Capítulo 2 do Título 4º, intitulado de
“Iniciativa e Referendo”, vai do artigo 138 ao 142.
Além dessas constituições americanas e européias, vale ressaltar como se
comportam outras constituições de continentes diferentes. A Constituição da Coréia
do Sul coloca em seu artigo 41 que “A Assembléia Nacional é composta de
membros eleitos por voto universal, igual, direto e secreto dos cidadãos”. A
Constituição de Moçambique, no seu artigo 3034, expõe que
o povo moçambicano exercitará o poder político mediante a eleição de seus representantes por sufrágio universal, direto, secreto e periódico, através de referendo nacional e através da participação democrática e permanente dos cidadãos nos assuntos da nação.
Assim, com a análise do Direito alienígena, nota-se que também em
outros países e não só no Brasil a soberania popular é exercida por meio da
Democracia representativa e pela Democracia Direta, utilizando-se dos mecanismos
de participação direta do povo na formação da vontade nacional como o plebiscito, o
referendo e a iniciativa popular de leis. O que leva ao aparecimento, agora, uma vez
que as características democráticas estão contidas dentro dos textos das
Constituições, de um Estado Democrático Constitucional.
A idéia central desse Estado gira em torno de um novo papel da
Constituição, através da capacidade dos seus princípios em alongar a sua influência
33 Art. 39 (1) da Constituição suíça - "La Confederazione disciplina l'esercizio dei diritti politici in materia federale e i Cantoni in materia cantonale e comunale". Art. 139 (nuovo) - Iniziativa popolare elaborata per la revisione parziale della Constituzione federale (Título do artigo). 34 Art. 30 da Constituição moçambicana – “The Mozambican people shall exercize political power through electing their representatives by universal, direct, secret and periodic suffrage, through referenda on major national issues, and through permanent democratic participation by citizens in the affairs of nation”.
81
sobre os limites da lei, passando a exercer um caráter não apenas declarativo ou
político, mas normativo, dando à democracia condições para se revigorar.
Com essa nova ótica, a Constituição busca redefinir uma nova visão de
sujeito, resgatando e ampliando o conceito de cidadania, não mais somente como o
direito do povo de participar politicamente do poder através do voto, mas como uma
participação mais ampla na sociedade, dentro de valores mais abrangentes de
inclusão social.
A democracia deve, com isso, transformar a noção de cidadania, vista até
agora como participação política, numa objetiva participação social, através do
universo amplo das características constitucionais. O que não exclui de forma
nenhuma a democracia dentro de uma idéia de um discurso político, apenas
acrescenta a esse já existente e afirmado uma nova perspectiva mais ampla.
5.2.2 O princípio do discurso e o principio democrático
Para Jürgen Habermas, o princípio da democracia é concebido como a
institucionalização do princípio do discurso. É através deste princípio que ele propõe
uma solução para a fundamentação da democracia.
Com essa teoria discursiva, Habermas (1990) irá fundamentar a
normatividade, jurídica em que se efetiva o princípio democrático, abordando a teoria
da democracia sob aspectos da legitimação. Dentro dessa postura, ele busca
radicalmente a implementação da liberdade e da autonomia. Mas não a liberdade e
autonomias modernas e sim a liberdade como fusão da liberdade antiga, coletiva e
da liberdade moderna, individual, privada.
82
Somente com a adoção do paradigma da intersubjetividade, onde é
gerado o princípio do discurso, será possível explicar o surgimento da legitimidade a
partir da legalidade, colocando o Direito como fonte primária de integração social.
Assim, dentro dessa ótica é que o modelo democrático vai implicar em iguais direitos
de participação e comunicação para a formação da vontade política, na qual a única
coerção é a do argumento mais racional.
Como Habermas (1990) propõe tal assertiva?
O princípio do discurso se baseia numa razão comunicativa,
procedimental, apresentando uma normatividade apenas mediata ou indireta para a
ação, ou seja, ele possui um conteúdo normativo, já que explicita o sentido da
imparcialidade de juízos práticos, mas essa normatividade não é a mesma atribuída
à razão prática. Esse princípio não exprime o modelo correto de agir, mas tão-
somente o procedimento válido para atribuição de tal predicado ao agir humano.
A questão central da teoria discursiva e de sua fundamentação para a
democracia repousa na idéia de como manter uma relação do direito com a moral e
ao mesmo tempo fazer com que o direito não seja mera cópia de um princípio moral,
de um direito natural, uma vez que, este, o princípio moral, também explicita um
conteúdo procedimentalista, na medida em que é abstrato e depende de um
processo de concretização como o princípio do discurso.
A saída está no grau de abstração do princípio do discurso, que lhe
permite permanecer neutro em relação ao direito e à moral. Este princípio quando
assume a forma jurídica se transforma no princípio da democracia, destinando-se a
amarrar um procedimento de normatização legítima do Direito, qual seja, a
autolegislação comunicativo-discursiva, onde são garantidas as condições sob as
83
quais os cidadãos podem avaliar, á luz do princípio do discurso, se o Direito que
estão criando é legítimo.
O princípio democrático, portanto, contempla a autonomia pública e
privada porque consegue sair da relação de subordinação entre Direito e Moral e
estabelecer um procedimento discursivo de formação de opinião e da verdade
política do código do Direito.
Esse código do Direito se constitui de forma co-originária com o princípio
democrático, já que é somente por meio desse código que os cidadãos podem
realizar a normatização política autônoma, ou seja, somente na condição de sujeitos
de direitos os cidadãos tomam parte nos processos de formação da vontade
nacional, tornando efetiva sua autonomia.
Ainda segundo Habermas (1990), existem três modelos normativos de
democracia: a concepção liberal de política; a concepção republicana de política; e a
política deliberativa.
Os dois primeiros tipificam a primazia do princípio liberal dos direitos
humanos, de um lado, e a primazia do princípio da soberania popular, do outro.
O cidadão, para a concepção liberal, é portador de direitos subjetivos,
concebidos como direitos negativos que asseguram a posição do indivíduo diante do
Estado. Os direitos políticos têm a mesma estrutura dos direitos subjetivos, portanto,
oferecem aos cidadãos a possibilidade de conferir validação a seus interesses
particulares, agregando-se a outros direitos particulares por meio de votações,
formações parlamentares e composição de governo. Assim, conclui-se que o
processo de formação da vontade política é constituído da justaposição de
interesses particulares.
84
No que tange à concepção republicana de política, o cidadão não é
determinado pelo modelo das liberdades negativas. Seus direitos políticos, de
participação da vontade nacional, são entendidos como direitos positivos e não
como garantias de preservação da liberdade. Nesse sentido, o cidadão é aquele que
resgata sua autonomia através da participação de modo comum a todos de
formação da opinião e da vontade política. Não há uma agregação de interesses
particulares no processo político, ele se torna o espaço próprio onde é exercida a
autonomia e a busca de interesses, através do acordo mútuo em torno de objetivos
e normas comuns.
Essas diferenças entre a concepção liberal e republicana recaem também
sobre o conceito de direito, no que tange a suas dimensões objetiva e subjetiva,
onde, para a concepção liberal, a esfera subjetiva precede a objetiva e a
fundamenta. Já a republicana entende que os direitos subjetivos é que se originam
do objetivo.
Outra diferença diz respeito à natureza do processo político. Na
concepção liberal, a política corresponderá a um espaço de justaposição de
interesses privados, assim, o processo político é definido não de acordo com um
consenso, mas segundo o critério quantitativo do número de votos. Para a
concepção republicana, diferentemente, o processo político é o espaço do agir
orientado pelo entendimento mútuo, ou seja, aqui os cidadãos chegam a um acordo
mútuo sobre os objetivos e interesses comuns da sociedade.
O terceiro modelo normativo de democracia é a política deliberativa, que
para Habermas (1990), é o ideal, uma vez que o republicano é muito idealista e o
liberal reduz a esfera política a um processo de negociação entre interesses
particulares opostos. Assim, para ele, o modelo de democracia se atrela a um
85
conceito de política deliberativa, devendo abranger ambas as formas comunicativas,
tanto a do modelo liberal, quanto a do republicano, ou seja, deve haver um auto-
entendimento mútuo de caráter ético e um equilíbrio entre interesses divergentes por
meio de uma fundamentação moral.
Esse terceiro modelo de democracia ressalta as condições de
comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar
resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo
deliberativo.
Assim, mediante a institucionalização das formas de comunicação, a teoria
do discurso faz o processo político de formação da vontade depender em conjunto
da conduta ética dos cidadãos, como na concepção republicana, e de uma
negociação de interesses ou luta por poder estatal, como na concepção liberal,
sendo essa junção exatamente o que propõe a política deliberativa.
5.2.3 Origem e desenvolvimento
Democracia é uma palavra originada da junção das expressões gregas
demos, que significa povo, e arché, que significa governo, portanto democracia é,
etimologicamente, “governo do povo”.
Essa palavra foi atestada primeiramente por Heródoto (apud PEDRA,
2003, p. 3) no século V a.C. como “governo (do povo) pelo povo” e depois por
Péricles na oração póstuma aos atenienses mortos na Guerra do Peloponeso:
nosso regime político é a democracia e assim se chama porque busca a utilidade do maior número e não a vantagem de alguns. Todos somos iguais perante a lei, e quando a República outorga honrarias o faz para recompensar virtudes e não para consagrar privilégios. Nossa cidade se acha aberta a todos os homens.
86
O contexto histórico de democracia vem das cidades-estado da Grécia
Antiga, especialmente de Atenas, em que ela nasceu. O pensamento político
reservava, portanto, o termo democracia para as formas políticas que correspondiam
àquelas instituições desenvolvidas entre o século V e VI a.C.
Na Grécia, então, democracia significava o exercício direto pelo povo,
reunido em assembléia, dos poderes legislativos e judiciais, sendo as funções
executivas ocupadas por um curto período de tempo por meio de eleições ou sorteio
(MAUÉS, 1999, p. 79). Nessa época as cidades-estado eram pequenas e
autônomas e os cidadãos eram poucos e homogêneos, com interesses harmônicos.
Na Idade Antiga e Medieval, como em Roma, Veneza e Florença, Estados
que adotaram a forma republicana, alguns elementos da democracia grega
continuaram a se manifestar. Aqui, a republica compartilhava com a democracia “a
idéia de que um bom regime político é aquele que promove e reflete a virtude cívica
de seus cidadãos, isto é, a predisposição de procurar o bem comum em todos os
assuntos públicos” (MAUÉS, 1999, p. 80). Mas, apesar de tudo isso, ainda havia,
dentro da sociedade, interesses divergentes entre aqueles que a compunham.
Nos Estados gregos e romanos a democracia foi idealizada e praticada
sob a forma direta, ou seja, o povo se governava por si mesmo, reunindo-se em
assembléias gerais através do voto, por intermédio de sufrágio realizado em praças
públicas. O que veio, contemporaneamente, a se repetir nos Cantões da
Confederação Helvética.
A democracia, durante a história, nas suas idas e vindas, teve o seu
reaparecimento já no mundo moderno no final do século XVIII, como ideal político
que irá se realizar em contextos distintos. A primeira diferença em relação às
cidades-estado da Grécia Antiga era a de que a democracia não necessariamente
87
poderia só acontecer em Estados de pequena extensão. Mas o problema que surgia
com isso era o dos limites impostos à participação direta do povo, em virtude da
maior amplitude da cidadania e das dimensões territoriais dos Estados-Nação. Isso é
o que termina explicando o término da idéia exclusiva da democracia como exercício
direto do poder pelo povo, para uma idéia de democracia exercida por meio de
representantes. A partir disso, os Parlamentos que representavam interesses sociais
muito divergentes passaram, por meio do mecanismo de eleições periódicas, a
representar interesses um pouco mais homogêneos, representando toda a Nação.
Depois, com a universalização do sufrágio o processo democrático se tornou mais
aparente.
Outra diferença entre a democracia antiga e moderna está relacionada ao
instituto da propriedade. Nas sociedades antigas, a democracia foi pensada e
galgada na idéia da não-existência de propriedade produtiva individual, em que
todos seriam ou poderiam ser proprietários de modo equivalente. Já nas modernas,
teve de haver uma adaptação da democracia à idéia de propriedade produtiva
pertencente apenas a alguns membros da sociedade, portanto distribuída
desigualmente.
Assim, diante desse processo evolutivo, três grandes linhas de
pensamento político-democrático nasceram na tentativa de explicar o que seria a
democracia diante de suas tradições históricas: a teoria clássica, a teoria medieval e
a teoria moderna.
A primeira teoria tem como fio condutor as observações de Aristóteles,
baseadas em sua percepção das três formas de governo. A democracia, aqui, ganha
sentido quando confrontada com a monarquia e a aristocracia, como já visto no
capítulo 2. Enquanto que a monarquia é a forma que concentra o poder nas mãos de
88
uma só pessoa e a aristocracia nas mãos de poucos, que se denominam de “os
melhores”, a democracia é o governo de todos, de todos aqueles que gozam de
cidadania.
A segunda teoria, a medieval, que, segundo Bobbio (1999, p. 319), teve
como influência o universo romano, tendo como sustentáculo a soberania popular,
bem como também a influência da tradição da Igreja Católica, que mesmo mantendo
o conceito de democracia ausente dos estudos medievais de forma explícita, acabou
mencionando por volta dos séculos XII a XIV, sobre a influência do pensamento
aristotélico, e das bases do pensamento renascentista, a discussão em torno da
questão da soberania, preparando o caminho para toda uma tradição que se iniciava
com a obra de Maquiavel.
Surge, na Idade Média, portanto, as percepções de uma soberania popular
ascendente e elitista descendente. A primeira forma de soberania é aquela que se
sustenta na tese de que o poder deriva do povo, enquanto na segunda se funda na
tradição que predominou na época medieval, em que a soberania descendente
deriva do príncipe e é transmitida por delegação de um ente superior a um inferior.
Por fim, a teoria moderna que ainda, segundo Bobbio, é conhecida como a
teoria de Maquiavel, na qual a democracia emerge como uma das formas de
governo usada como estratégia na crítica ao poder absoluto dos soberanos. Essa
associação, no entanto, trouxe prejuízos ao conceito democrático, quando reduziu o
seu universo a uma idéia de instrumento para se alcançar um fim determinado, que
era a república, em detrimento da monarquia que se pretendia derrubar.
Todavia, nos dias atuais, pode-se mencionar uma quarta tradição que vem
se fortalecendo, mas que já tem certa influencia sobre o conceito de democracia: a
teoria da pós-modernidade.
89
Essa teoria foi construída dentro da idéia da pós-modernidade como uma
fase de fragmentação e destruição dos velhos paradigmas nas ciências sociais.
Essa fragmentação, observada do campo político, se torna mais aguda com o
aparecimento do fenômeno da globalização, que serve como uma nova visão
ideológica onde há uma expansão das fronteiras do Estado nacional, e com isso
ocorre uma nova construção para os conceitos de nacional, território e cidadania.
5.2.4 Conceito e aspectos gerais
A análise do que deve ser entendido por democracia é disputada por
juristas, filósofos, cientistas políticos e sociólogos, uma vez que o seu conceito é
multidisciplinar. É, no entanto, necessário certo cuidado para não sair muito dos
limites do jurídico. Regina Maria Macedo Nery Ferrari (1986, p. 211) compactua da
mesma idéia:
é necessário reconhecer que a compreensão do princípio democrático deve estribar-se em sua conformação constitucional, e isto, em que pese sua importância interdisciplinar, o que faz ser necessário, constantemente, incursões históricas e políticas sobre o conceito de democracia.
Assim, o princípio democrático, não obstante sua importância para outras
disciplinas, deve ser identificado com a própria ordem constitucional, guardando
fidelidade, portanto, com as normas jurídicas (DUARTE NETO, 2005, p. 22).
A democracia, na verdade, não é um conceito estático, é um processo,
estando, portanto, constantemente, envolto em mutações, crescimentos, evoluções,
servindo, assim, para diversos tipos de Estado e em diversas épocas distintas.
Possui, esse processo histórico, a singularidade de seu tempo e as características
próprias de cada ordenamento.
90
Pedro Nunes (1993, p. 305) define democracia como
regime político originariamente criado em Atenas, no século IV a.C. e defendido por Platão e Aristóteles. Funda-se na autodeterminação e soberania do povo que, por sua maioria e em sufrágio universal, escolhe livremente os seus governantes e seus delegados às câmaras legislativas, os quais, juntamente com os membros do poder judiciário, formam os poderes institucionais, autônomos e harmônicos entre si, em que se divide o governo da nação, onde todos os cidadãos gozam de inteira igualdade perante a lei.
Dentro dessa mesma ótica, Maria Helena Diniz (1998, v. 2, p. 52)
conceitua democracia como
forma de governo em que há a participação dos cidadãos, influência popular no governo através da livre escolha dos governantes pelo voto direto. É o sistema que procura igualar as liberdades públicas e implantar o regime de representação política popular, é o Estado político em que a soberania pertence à totalidade dos cidadãos.
Paulo Bonavides (2000, p. 266) entende tratar-se a democracia da melhor
e mais sábia forma de organização do poder, conhecida na história política e social
de todas as civilizações, embora existam claras dificuldades no estabelecimento de
um conceito perfeito para ela.
Para Winston Churchill, ainda segundo Bonavides (2000, p. 266), “a
democracia é a pior de todas as formas imagináveis de governo, com exceção de
todas as demais que já se experimentaram”.
Bonavides (2000, p. 267) também menciona em sua obra as posições de
Pareto e Bryce no que tange à definição de democracia. O primeiro reconhece,
quando pedido a significação exata de democracia, que “é ainda mais indeterminado
que o termo completamente indeterminado ‘religião’”. O segundo dá uma larga e
indecisa amplitude ao termo, definindo-o de modo um tanto vago como a forma de
governo na qual “o povo impõe sua vontade de todas as questões importantes”.
91
Nota-se, assim, que raros termos de ciência política vêm sendo objeto de
tão freqüentes abusos e distorções, quanto à democracia (BONAVIDES, 2000, p.
267).
Norberto Bobbio (1986, p. 18), em duas de suas obras, tenta dar uma
explicação sobre democracia. Primeiramente, ele afirma que
o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como a contraproposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos.
Segundamente, expõe Bobbio (1987, p. 135) que
da idade clássica a hoje o termo ‘democracia’ foi sempre empregado para designar uma das formas de governo, ou melhor, um dos diversos modos com que pode ser exercido o poder político. Especificamente, designa a forma de governo na qual o poder político é exercido pelo povo.
Para J. J. Calmon de Passos35, Bobbio dá uma definição mínima de
democracia, salientando-a, apenas, como um conjunto de regras de procedimento
para formação de decisões coletivas em que está prevista e facilitada a participação
mais ampla possível dos interessados, tratando-se, assim, de uma definição
procedimental criticada pelos “substancialistas” da esquerda, mas não existindo
outra suficientemente clara e capaz de oferecer um critério infalível. “Nada mais
correto. A democracia, seja ela qual for, não é algo pronto, é sempre o processo”.
Os resultados do processo democrático, segundo Calmon de Passos, são
incertos, indeterminados de antemão e só o povo, isto é, as forças políticas que
35 Palavras proferidas em aula sobre o tema “Democracia e constitucionalismo. A produção do direito num Estado de Direito Constitucional. A crise da democracia e do constitucionalismo. Reflexos nas funções legislativa e jurisdicional”, que faz parte do material fornecido pelo autor na disciplina “Teoria Geral do Processo” do Mestrado em Direito Público da Universidade Federal da Bahia, em abril de 2005.
92
competem pela realização de seus interesses e valores é que determinam esses
resultados.
A conclusão a que Calmon chega estabelece a democracia como um
sistema de desfecho regulado e aberto, ou seja, uma incerteza organizada. O que
não quer dizer que essa incerteza estabeleça que tudo inerente à democracia seja
possível ou que nada seja previsível. O que os atores efetivamente não sabem é o
resultado concreto.
Portanto, o resultado disso é o da convicção de que não há “a
democracia”, nem “uma democracia”, mas um arranjo diverso de significados com
intensidades variáveis, mas sempre atrelado ao grau de participação, igualdade e
inclusão da população nos assuntos dos Estados.
José Afonso da Silva (2002, p. 126-128) compartilha da idéia de que a
democracia não precisa de pressupostos especiais, diferentemente da posição de
uma visão elitista, segundo a qual existem diversos pressupostos necessários à sua
existência e à sua realização, como a desigualdade. Para ele basta a existência de
uma sociedade. “Se seu governo emana do povo é democrática; se não, não o é”. A
democracia pressupõe luta incessante pela justiça social. Não pressupõe que todos
sejam instruídos, cultos, educados, perfeitos, mas há de buscar distribuir a todos
instrução, cultura, educação, aperfeiçoamento, nível de vida digno, fundamentando-
se na garantia da igualdade, não tolerando a extrema desigualdade entre os
indivíduos na sociedade.
Variam-se, assim, de maneira considerável as posições doutrinárias
acerca do que legitimamente se há de entender como democracia. Mas de um ponto
meramente formal, distinguem-se, na história das instituições políticas, três
93
modalidades ou espécies básicas de democracia: a democracia direta; a democracia
representativa, também chamada de indireta; e a semidireta ou participativa.
5.2.5 Espécies de democracia
A principal característica do Estado Democrático é a idéia de o próprio
povo governar, mas isso traz à tona o problema de como ele irá fazê-lo, ou seja,
como serão estabelecidos os meios e instrumentos para que o povo possa
expressar a sua vontade diante dos assuntos do Estado.
Esse problema instrumental se acentua mais ainda quando se toma como
referência os dias atuais, uma vez que há predominância de colégios eleitorais muito
numerosos e intensa atividade legislativa, impossibilitando a ocorrência de
freqüentes manifestações e reuniões públicas que busquem saber a vontade da
população, como ocorria na democracia da Grécia antiga.
Embora bastante reduzida, essa participação popular semelhante à que
acontecia nas cidades-estado gregas ainda acontece nos dias atuais, como no caso
das Landsgemeinde, que ainda se encontra em alguns Cantões suíços como Glaris,
Unterwalden e Appenzell (DALLARI, 1991, p. 129).
A Landsgemeinde foi o órgão supremo em todos os pequenos Cantões da
Suíça central e oriental, mas que começou a sua abolição no século XIX. Esse órgão
é uma assembléia que se reúne ordinariamente uma vez por ano, num domingo da
primavera, mas podendo haver convocações extraordinárias. É aberta a todos os
cidadãos do Cantão que tenham o direito de votar, sendo o seu comparecimento um
dever. Sua convocação se dá pelo Conselho Cantonal, mas havia Cantões que
admitiam sua convocação por certo número de cidadãos. Há uma publicação prévia
94
dos assuntos a serem discutidos e submetidos à deliberação (DALLARI, 1991, p.
129).
Nesse órgão são votadas leis ordinárias e emendas à Constituição do
Cantão, tratados intercantonais, autorização para a cobrança de impostos e para a
realização de despesas públicas e também sobre a naturalização cantonal (BRIDEL,
1959 apud DALLARI, 1991, p. 129).
Entretanto, essa prática utilizada em partes da Suíça possui algumas
peculiaridades que descaracterizam a verdadeira participação direta, tornando a
decisão do povo só aparente, e impossibilitando a sua utilização em outras partes do
mundo: essa prática só é possível em Cantões menos populosos; um Conselho
eletivo é que prepara os trabalhos, limitando-se a aprovar ou não aprovar aquilo que
já foi estabelecido pelo mesmo Conselho; quando se tratar de trabalhos jurídicos ou
técnicos, a assembléia não está apta a discutir; sua implantação em outros locais do
mundo se torna impossível pela necessidade de restrição do colégio eleitoral.
Assim, com toda essa impossibilidade prática da democracia direta
demonstrada através das características da Landsgemeinde, surgiu a necessidade
de criação de uma outra forma de governo: a democracia representativa ou indireta.
Essa democracia representativa é a forma de o povo ser soberano, decidir
e ter poder, mesmo sendo numeroso e espalhado por um grande território. É a forma
na qual a vontade do povo seria expressada nos órgãos competentes pelos seus
representantes. Assim, o remédio para a democracia, fundada e legitimada no
consentimento dos cidadãos, tinha que ser através de um regime representativo.
Todavia, nos tempos atuais, resolveu-se criar uma modalidade onde
existissem e se alternassem características da forma clássica de democracia, a
direta, com a democracia representativa, com o intuito de se estabelecer uma
95
aproximação cada vez maior da democracia direta idealizada pelos gregos com
aquela empregada nos Estados modernos. Essa nova forma de governo é a
democracia semidireta, na qual a soberania está com o povo e o governo, mediante
o qual esta soberania é exercitada, pertence por igual ao elemento humano do
Estado, no que diz respeito às matérias mais importantes da vida pública.
a) A Democracia Direta
Essa democracia supõe o exercício do poder político pelo povo, reunindo-
se em assembléia plenária da coletividade. O povo exerce, por si, os poderes
governamentais, fazendo leis, administrando e julgando (SILVA, 2002, p. 136). Mas,
como visto, essa modalidade de democracia é impraticável face à impossibilidade
material de sua realização, por causa do grande número de cidadãos que compõem
um Estado.
Historicamente, a Grécia Antiga foi o berço da democracia direta. Em
Atenas, o povo se reunia no Ágora36, para o exercício direto e imediato do poder
político, decidindo as questões fundamentais da sociedade.
A democracia antiga era a democracia de uma cidade, de um povo que desconhecia a vida civil, que se devotava por inteiro à coisa pública, que deliberava com ardor sobre as questões do Estado, que fazia de sua assembléia um poder concentrado no exercício da plena soberania legislativa, executiva e judicial (BONAVIDES, 2000, p. 268).
Naquela época, no entanto, a participação popular nas decisões do
Estado se restringia àqueles indivíduos chamados de homens livres, privilegiados
diante de uma maioria escrava da população. Gerando, para alguns autores, uma
36 Um Ágora é uma praça onde os cidadãos se reuniam para exercitar o poder político, deliberando sobre os rumos da sociedade. Fazia o Ágora, nas cidades gregas, o papel do Parlamento nos tempos modernos.
96
idéia de que na Grécia não houve uma verdadeira democracia, mas uma aristocracia
democrática ou, ainda, uma democracia minoritária.
Segundo Francesco Nitti (apud BONAVIDES, 2000, p. 268), “com efeito,
disse Hegel que o Oriente fora a liberdade de um só, a Grécia e Roma a liberdade
de alguns, e o mundo germânico, ou seja, o mundo moderno, a liberdade de todos”.
As cidades-estado da Grécia conseguiram funcionar com esse sistema de
democracia direta: primeiro, por causa da base social escrava que permitia ao
homem se ocupar quase que exclusivamente dos negócios públicos, ou seja, não
existia quase nenhuma preocupação de ordem laboral que atormentasse o cidadão
naquela época; e, segundo, pela condição social da vida da cidade, na qual o
cidadão grego fazia questão de conservar aceso o interesse pela causa da sua
democracia e a valorar a sua participação na vida pública.
As instituições democráticas para os gregos firmavam-se nos princípios da
isonomia, da isotimia e da isagoria.
O princípio da isonomia significava a igualdade de todos na elaboração
legislativa e na submissão à lei criada, que, por sua vez, não agasalhava o privilégio
ou a discriminação que não fosse fundada em mérito ou desmerecimento do
contemplado. A base de sustentação desse princípio era a idéia da igualdade de
todos perante a lei sem distinção de grau, classe ou riqueza, onde toda
discriminação de ordem jurídica em proveito de classes ou grupos sociais equivaleria
à quebra desse princípio (NITTI, 1933 apud BONAVIDES, 2000, p. 270-271).
A isotimia dizia respeito ao acesso dos cidadãos gregos a qualquer cargo
ou funções no exercício das atividades públicas e à posse ou contemplação de
títulos, por merecimento, honradez ou confiança, abolindo, assim, as funções e
posses que se valiam da hereditariedade, raça ou sangue.
97
A isogaria se refere aos direitos que todos os cidadãos tinham de falar, de
se pronunciar nas assembléias populares que aconteciam no Ágora, de debater
publicamente os negócios do governo.
As duas principais cidades-estado da Grécia Antiga, Esparta e Atenas,
diferenciavam-se quanto à estruturação do poder político. Na primeira, a participação
popular era veiculada por meio da Assembléia Popular (Apella), do Conselho de
Anciãos (Gerúsia), dos Comissários e dos reis. O Conselho de Anciãos era formado
por vinte e oito cidadãos com mais de sessenta anos e elaborava as proposições
que deveriam ser apresentadas às assembléias. A Apella era presidida por cinco
Comissários com mais de trinta e cinco anos, e as decisões eram tomadas por
maioria dos votos sem direito a debates ou discussão. O caráter oligárquico
prevalecia em Esparta, uma vez que as decisões da Apella nem sempre era
respeitada pelos reis e pelo Conselho de Anciãos.
Em Atenas, o principal órgão da vida pública era o Conselho Popular
(Boulè), formado por quinhentos membros, sorteados anualmente entre as tribos da
polis, e sua principal função era preparar os projetos que seriam apreciados pela
Assembléia Popular (Eclésia). Na Eclésia, as propostas eram não só votadas, mas
discutidas por todos os cidadãos com idade superior a 21 anos (SGARBI, 1999, p.
92-95).
Pode-se, portanto, conceituar a democracia direta como “o sistema político
em que havia identificação entre governantes e governados, e a coisa pública era
gerenciada (legislação, jurisdição e administração) conjuntamente” (DUARTE NETO,
2005, p. 28).
98
b) A Democracia Representativa ou Indireta
Os Estados cresceram e se tornaram cada vez mais populosos, tanto
assim, que, atualmente, seria muito difícil conceber uma participação direta pura, em
prazo relativamente curto, principalmente se for levado em consideração a
quantidade de participantes nas antigas cidades-estado e a maneira pela qual se
reuniam para deliberar. Apesar da existência, ainda, dessa prática em alguns
Cantões suíços, hodiernamente, são elas consideradas ultrapassadas, não sendo
mais praticados com tanta freqüência.
Assim, tecnicamente inviável, esse modelo de democracia, a direta, foi
sucedido pelo modelo representativo ou indireto.
A democracia representativa significa, dentro de uma análise genérica,
que as deliberações concernentes à coletividade são tomadas, não diretamente por
aqueles que dela fazem parte, mas por indivíduos eleitos para essa finalidade.
Dizia Montesquieu, um dos primeiros teoristas da democracia moderna, que o povo era excelente para escolher, mas péssimo para governar. Precisava o povo, portanto, de representantes, que queriam decidir e querer em nome do povo (BONAVIDES, 2000, p. 272).
Mas não é somente da razão exposta por Montesquieu que se valem as
idéias da implantação de uma democracia diferente da instituída na Grécia antiga. O
Estado moderno, dada a sua imensa massa de eleitorado, fica impedido de
congregar todos os cidadãos em praça pública, seja para fazer leis ou para
administrar. O homem do Estado moderno é um homem apenas acessoriamente
político, pois não tem um grande volume de participação como acontecia na Grécia,
uma vez que precisa prover com mais intensidade às necessidades materiais de sua
existência.
99
Esse modelo de democracia tem como traços característicos a soberania
popular, como fonte de todo o poder legítimo, que se traduz através da vontade
geral; o sufrágio universal, com pluralidade de candidatos e partidos; a observância
constitucional do principio da distinção dos poderes; igualdade de todos perante a
lei; a representação como base das instituições políticas; a limitação de
prerrogativas dos governantes e outros (BONAVIDES, 2000, p. 274).
Na democracia representativa a participação popular é indireta, periódica e formal, por via das instituições eleitorais que visam a disciplinar as técnicas de escolha dos representantes. A ordem democrática, contudo, não é apenas uma questão de eleições periódicas, em que, por meio do voto, são escolhidas as autoridades governamentais. Por um lado, ela consubstancia um procedimento técnico para a designação de pessoas para o exercício de funções governamentais. Por outro, eleger significa expressar preferência entre alternativas, realizar um ato formal de decisão política (SILVA, 2002, p. 137-138).
A representação política tem origem com a evolução das instituições
inglesas. O surgimento do Estado inglês fez eclodir a técnica primeiramente em seu
território. Na Europa Continental, especificamente na França, a técnica surgiu mais
tardiamente.
No século XII, a princípio, a prática política exigia que o monarca ouvisse
os nobres e os eclesiásticos, que compunham o Magnum Concilium, antes de tomar
decisões; depois, os homens livres, que estavam de fora dos eventos políticos,
passaram a ser chamados às reuniões, convocando dois representantes de cada
condado e mais dois de cada burgo. Esse é o início do aparecimento da Câmara dos
Comuns.
Esse costume de reunir junto aos lordes os representantes dos homens
comuns se repetiu por diversas vezes, culminando depois no aparecimento das
câmaras gêmeas: a Câmara dos Lordes e a dos Comuns. A primeira, representando
100
os nobres e o clero; a outra, representando os condados e os burgos (DUARTE
NETO, 2005, p. 33).
Com o correr dos tempos, os parlamentares passaram a representar todo
o povo inglês e não somente o distrito e circunscrição que os elegeram. Assim,
estava construída a marca da representatividade moderna, consubstanciada no
mandato político.
Esse mandato político representativo é gerado pelas eleições, constituindo
o elemento básico da democracia representativa. Nele são
inseridos os princípios da representação e o da autoridade legítima,
segundo José Afonso da Silva (2002, p. 138). O primeiro significa que o poder, que
reside no povo, é exercido, em seu nome, por seus representantes periodicamente
eleitos; o segundo significa que o mandato realiza a técnica constitucional por meio
da qual o Estado, que não possui vontade real e própria, adquire condições de
manifestar-se e decidir através do mandato dos representantes do povo.
Mandato político representativo é “uma situação jurídico-política com base
na qual alguém, designado por via eleitoral, desempenha uma função política na
democracia representativa”. É denominado mandato representativo para distinguir-
se do mandato de direito privado (procuração) e do mandato imperativo, sendo este
último aquele existente antes da Revolução Francesa, onde os representantes
ficavam vinculados à decisão dos representados, caso os temas de discussão e
deliberação nas assembléias não fossem já estabelecidos previamente (SILVA,
2002, p. 138-139).
A representação de direito público é inteiramente distinta da representação
de direito privado, portanto, os princípios fundamentais desta não podem ser
aplicados àquela (SCHMITT, 1961 apud BONAVIDES, 2000, p. 15).
101
A representação política não faz o representante ficar vinculado aos
representados, por não se tratar de uma relação contratual. Tem como
características as qualidades de ser geral, livre e irrevogável, em princípio. Geral,
porque o eleito é representante de todos que habitam o território do Estado e não
somente daqueles integrantes de uma determinada circunscrição; livre porque os
representantes não estão vinculados a seus eleitores ou a qualquer instrução sua; e
irrevogável, porque o eleito tem o direito de manter o mandato durante o tempo
previsto para a sua duração, salvo perdas indicadas na própria legislação.
c) A Democracia Semidireta ou Participativa.
A terceira forma de democracia, a chamada democracia semidireta, trata-
se de uma modalidade que objetiva alterar as formas tradicionais de democracia
representativa para aproximá-la cada vez mais da democracia direta. Há uma
combinação de ambas as formas de democracia; é a democracia representativa,
com alguns instrumentos de participação direta do povo na formação da vontade
nacional.
Há a verificação da impossibilidade de se alcançar a democracia direta
como foi idealizada e praticada na Grécia Antiga, no entanto, percebeu-se que há a
possibilidade de se criar “instituições que fizessem do governo popular um meio-
termo entre a democracia direta dos antigos e a democracia representativa
tradicional dos modernos” (BONAVIDES, 2000, p. 274).
Na democracia semidireta, a alienação política da vontade popular,
contida na democracia representativa, fez-se apenas parcialmente; a soberania está
com o povo, e o governo, sendo o meio executor e comunicador dessa soberania,
102
pertence por igual ao elemento popular nas matérias mais importantes da vida
pública.
O alcance dessa democracia semidireta se dá através de determinados
institutos que tentam tornar efetiva a intervenção do povo, garantindo-lhes um poder
de decisão de última instância, definitivo.
Na democracia semidireta, o povo não serve somente como eleitor, mas
como colaborador jurídico. “O povo não só elege, como legisla” (BONAVIDES, 2000,
p. 275). Funde-se uma certa participação jurídica à participação política da
democracia representativa. É reconhecida ao povo competência para decidir
diretamente sobre determinadas matérias observadas pelo ordenamento jurídico.
Após a Primeira Guerra Mundial, durante as três primeiras décadas do
século passado, época em que as instituições democráticas do ocidente passavam
por uma crise acentuada, a democracia semidireta alcançou o seu período de maior
proliferação.
Houve uma irradiação de suas instituições pela Europa. Na América do
Norte, seus institutos são praticados desde o fim século XVIII. A Constituição
Federal dos Estados Unidos da América não faz referência a essa modalidade de
organização do poder democrático, ficando, apenas, às constituições dos Estados o
seu cabimento. A Constituição de Weimar, na Alemanha, estabelece em seu texto
modalidades originais de emprego dos institutos da democracia semidireta. Na
França, a Constituição de 1793 dispunha sobre a democracia semidireta, embora
nunca entrando em vigor. Com isso, o contato francês com a democracia semidireta
só ocorreu nos tempos modernos no Ato Adicional do Império de 1815, com a
Constituição de 1852 e no constitucionalismo de Charles De Gaulle contemporâneo.
103
Após a Segunda Grande Guerra, o constitucionalismo contemporâneo fez
emprego das técnicas de intervenção da democracia semidireta. Embora, nessa
época, com crescimento dos partidos políticos, começou-se o declínio dessa
modalidade de democracia. “A descrença generalizada nos partidos tem
determinado uma reversão tocante ao futuro dos instrumentos da democracia
semidireta” (BONAVIDES, 2000, p. 277).
No Brasil, para Maria Vitória Benevides (2003, p. 111), a democracia
semidireta é “uma nova ‘velha’ idéia”. Muito embora, o quadro da soberania popular
ser desalentador e parecer uma ficção.
As propostas de criação de formas de democracia semidireta no Brasil não
são inéditas em sua história política, não se restringindo, também, ao ideário
jacobino ou das esquerdas em geral, apesar de limitar-se à área dos estudos
jurídicos e parlamentares.
A primeira forma de democracia semidireta surgida no Brasil, segundo
Benevides (2003, p. 112), embora não se possa falar em democracia no seu sentido
contemporâneo de participação popular livre e soberana, foi o princípio da
revogação dos mandatos representativos que remonta do processo eleitoral para as
províncias do Império. O texto do decreto de 16 de fevereiro de 1822 estabelecia
que, caso os procuradores eleitos para o Conselho de Procuradores do Estado não
desempenhassem devidamente suas obrigações poderiam perder seus mandatos
por iniciativa dos eleitores. Era um tipo de revogação de mandato aliado à idéia do
mandato imperativo. Mas tal experiência durou somente entre 2 de junho de 1822 a
7 de abril de 1823.
104
A ação popular, outro tipo de participação direta do cidadão, foi pensada
no Império, quando a Constituição de 182437 previa a responsabilização penal dos
juízes de direito e dos oficiais de justiça.
Muito embora a Constituição republicana de 1891 não contivesse
nenhuma instituição de democracia semidireta, o seu processo de elaboração
passou por idéias de participação popular. Houve uma proposta positivista de
apreciação popular para a discussão e não para a votação dessa Constituição. O
governo temia uma elaboração com participação do povo, alegando a necessidade
da atuação de pessoas competentes por serem estas as capazes de assumir tal
tarefa.
Acontece que, mesmo com as idéias contrárias à participação popular, o
projeto da Constituição de 1891 foi submetido a um plebiscito. Mas, persiste ainda a
dúvida quanto à necessidade de aprovação popular do texto definitivo, uma vez que
a interpretação dos artigos 1º e 7º do Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889, que
proclamava provisoriamente a República, remontava a esse entendimento. Todavia,
o artigo 90 da própria Constituição esclarece que a aprovação desta é tarefa
exclusiva do Congresso Nacional e que ela só poderá ser reformada por iniciativa
deste ou das assembléias estaduais.
As constituições republicanas de alguns Estados da federação trouxeram
outras formas de democracia semidireta. A de São Paulo, de 14 de julho de 1891,
admitia não apenas a revogação dos mandatos legislativos, como também o veto
popular, podendo ocorrer a anulação das deliberações das autoridades municipais,
mediante proposta de 1/3 e aprovação de 2/3 dos eleitores reunidos em assembléia,
37 Art. 157 – “Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles a ação popular, que poderá ser intentada dentro de um ano e dia pelo próprio queixoso ou por qualquer do povo, guardada a ordem do processo estabelecida na lei” (BENEVIDES, 2003, p. 112).
105
segundo o texto do artigo 53. No entanto esses institutos foram abolidos no texto
constitucional de 09 de julho de 1905 (BENEVIDES, 2003, p. 115).
Os Estados do Rio Grande do Sul, Goiás e Santa Catarina, em suas
primeiras constituições republicanas, introduziram um dos institutos da democracia
semidireta, o recall38, como poder de o eleitorado cassar o mandato de seus
representantes. Mas não há registro, nem evidência histórica da utilização concreta
desse instituto, sendo abolido com as reformas constitucionais de Goiás de 1898, de
Santa Catarina de 1910 e do Rio Grande do Sul de 1913.
Embora a subcomissão encarregada de preparar o anteprojeto da
Constituição de 1934 tenha discutido na emenda que estabelecia nada menos do
que a possibilidade de cassação do mandato do Presidente da República, por meio
de plebiscito, seu texto definitivo não acolheu os mecanismos de democracia
semidireta.
A Carta de 1937 estabelecia quatro possibilidades de plebiscito: para
incorporação, subdivisão ou desmembramento de Estado (art. 5º); para que fossem
conferidos poderes de legislação ao Conselho de Economia Nacional, sobre
matérias de sua competência (art. 63); plebiscito nacional para aprovação de
eventual projeto de emenda, modificação ou reforma da Constituição, quando
38 O recall é uma instituição norte-americana que tem aplicação em duas hipóteses diferentes: uma para revogar a eleição de um legislador ou funcionário eletivo; a outra para reformar decisão judicial sobre constitucionalidade de lei. No primeiro caso, há a exigência do requerimento por parte de certo número de eleitores de uma consulta à opinião do eleitorado, sobre a manutenção ou revogação do mandato conferido a alguém, exigindo-se dos requerentes um depósito em dinheiro. Dá-se, em muitos casos, a possibilidade daquele que tem seu mandato em jogo de imprimir sua defesa na própria cédula usada pelos eleitores. Se a maioria decidir pela revogação esta se efetivará, se não, o mandato não é revogado e os requerentes perdem o dinheiro depositado para o Estado. No outro caso, as decisões de juízes e tribunais, excluída apenas a Suprema Corte Norte Americana, negando a aplicação de uma lei por julgá-la inconstitucional, deveriam poder ser anuladas pelo voto da maioria dos eleitores. Ocorrida essa anulação, a lei deveria ser considerada constitucional, devendo ser aplicada. Essa idéia foi preconizada por Roosevelt em 1912, numa de suas campanhas eleitorais.
106
houvesse desacordo entre o projeto de iniciativa do Presidente da República e o
projeto de iniciativa da Câmara de Deputados (art. 174, §4º); o próprio texto
constitucional deveria ser submetido a plebiscito, por decreto do Presidente da
República - art. 187 (BENEVIDES, 2003, p. 118).
A Constituição de 1946 previa o plebiscito apenas para os casos de
alteração dos territórios, ou seja, incorporação, subdivisão ou desmembramento de
Estados39. Predominou nesse período o princípio da democracia representativa
pura, repudiando-se qualquer menção ao mandato imperativo ou ao recall,
ampliando a participação eleitoral da população.
Nos anos 50 e 60, o plebiscito permaneceu vinculado à discussão sobre
as possibilidades de reforma constitucional. Em outubro de 1952 ocorreu uma
discussão plenária na Câmara Federal de um projeto do Deputado Artur Audrá, do
PTB paulista, prevendo a realização de plebiscito para decisão popular sobre
revisão parcial ou total da Constituição Federal, no caso de discordância entre o
Senado e a Câmara dos Deputados (Audrá, 1952 apud BENEVIDES, 2003, p. 120).
Nesse período, diversos outros projetos de lei sobre a realização de
plebiscito ou referendo foram apresentados no Congresso Nacional. Vários sobre
questões territoriais (criação, fusão ou desmembramento de Estados e municípios),
mas outros temas também foram suscitados, como o divórcio, pena de morte, defesa
do meio ambiente e plano de reforma agrária. Todos esses projetos tramitaram pelas
comissões específicas, mas foram arquivados definitivamente por decurso de prazo
ou rejeição do relator.
Dentre tais projetos de plebiscito, destacam-se os de autoria de Sérgio Magalhães (PTB-GB), sobre a divisão administrativa do Estado da Guanabara, apresentados ainda em 1963 (e arquivados
Existem apontados vários inconvenientes em todas as modalidades de recall, o que provoca raridade em seu uso. Ressalta-se que os parlamentares, a quem deveria caber o aperfeiçoamento do instituto, preferem eliminá-lo para não ficarem sujeitos a seus efeitos (DALLARI, 1991, p. 131-132). 39 Art. 2º - “Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros ou formarem novos Estados, mediante votos das respectivas assembléias legislativas, plebiscitos das populações diretamente interessadas e aprovação do Congresso Nacional”.
107
em 1967); o de Peixoto da Silveira (PSD-GO), sobre a reforma agrária, apresentado em 1963 e arquivado em 1969; o de Doutel de Andrade (PTB-SC), sobre o sistema de governo, apresentado em 1961 e arquivado em 1966; e o de Simão da Cunha (MDB-MG), sobre a recriação da União dos Estudantes no plano nacional, estadual e municipal, apresentado em 1968 e arquivado em 1971. (BENEVIDES, 2003, p. 120-121).
Em 6 de janeiro de 1963 houve um plebiscito nacional. O eleitor nessa
data foi convocado para se manifestar a favor ou contra a manutenção do
parlamentarismo, sistema implantado no Brasil por emenda constitucional de
setembro de 1961.
A realização desse plebiscito não encontraria respaldo jurídico no texto
constitucional vigente, uma vez que se tratava de matéria sobre sistema de governo.
A realização desse instituto da democracia semidireta só foi possível depois de
intensa batalha parlamentar, iniciada logo em seguida à renúncia de Jânio Quadros
e à edição da Emenda Constitucional nº 4, de 2 de setembro de 1961, que instituiu o
parlamentarismo. A organização desse novo sistema só seria completada mediante
lei votada nas duas casas do Congresso Nacional, dispondo sobre a realização de
plebiscito que decidia sobre a manutenção do sistema parlamentarista ou volta ao
sistema presidencialista, devendo a consulta plebiscitária acontecer nove meses
antes do termo do atual período presidencial.
Foram às urnas cerca de 12 milhões e 200 mil eleitores, tendo o Brasil um
eleitorado com cerca de 18 milhões, vencendo a volta do presidencialismo em
virtude da aceitação de quase cinco vezes mais votos que aqueles defensores da
manutenção do parlamentarismo.
Os estudiosos conclamam que essa consulta plebiscitária se baseava
apenas na aprovação a um nome e não a uma proposta. A imensa maioria não
percebia a distinção entre os dois sistemas de governo, votando a favor ou contra
108
maiores poderes para João Goulart, seguindo a propaganda da aliança PSD-PTB (a
favor do presidencialismo) ou a do bloco UDN-PL (a favor do parlamentarismo).
Os anos de 1972, 1975 e 1977 foram marcados pela apresentação de três
projetos prevendo plebiscito sobre o divórcio.
Em 1968 foi apresentado um projeto de Francisco Amaral do MDB-SP,
para a realização de plebiscito sobre a eleição direta para Presidente da República,
o que também aconteceu em mais quatro propostas entre os anos de 1981 e 1985.
O meio ambiente e a defesa das populações indígenas também foram
temas de vários projetos para a realização de plebiscitos. Como a proposta por
Nadyr Rosseti para a desativação das usinas Angra I e Angra II. Além de outros
temas como o proposto por Jorge Carone, em 1983, para a cessão ou concessão,
em território nacional, de área destinada à instalação de base militar de forças
estrangeiras; ou o projeto de Francisco Dias sobre a moratória da dívida externa,
pelo prazo de dois anos (BENEVIDES, 2003, P. 121).
No entanto, tais propostas, com exceção da de 1963 (parlamentarismo ou
presidencialismo?), não foram aprovadas e talvez sequer tenham sido notificadas
pela imprensa, permanecendo fechadas no recinto parlamentar e relegadas aos
anais do Congresso Nacional (BENEVIDES, 2003, p. 121).
A Carta Magna de 196740, bem como a Emenda nº 1 de 1969, não utilizou
o termo plebiscito, mas manteve a exigência de consulta prévia às populações para
a criação de municípios. Exigência que não existia para o caso de subdivisão,
anexação ou desmembramento de Estados.
A história política brasileira mostra que no período de transição do regime
militar para o democrático, a sociedade começou a se organizar com um nível
40 Art. 14 – “Lei complementar estabelecerá os requisitos mínimos de população e renda pública, bem como a forma de consulta prévia às populações, para a criação de municípios”.
109
satisfatório de participação em torno das questões que até então eram discutidas
apenas pelos juristas, políticos e governos.
Surgem, nesse período, propostas de criação de plenários, comitês e
movimentos pró-participação popular, como: o Plenário Pró-Participação Popular na
Constituinte de São Paulo, através de Goffredo Telles Jr., que divulga a “Carta dos
Brasileiros ao Presidente da República e ao Congresso Nacional”, onde é proposta a
criação de mecanismos de participação em todos os municípios do país e denuncia
a convocação de uma Constituinte composta de órgãos já constituídos (Câmara e
Senado); o Movimento Nacional pela Constituinte, do Rio de Janeiro (Duque de
Caxias) e outros (BENEVIDES, 2003, p. 123).
No início dos trabalhos constituintes, houve uma proposta, do então relator
da Comissão Mista do Congresso Nacional, Flávio Bierrenbach, quando examinou a
proposta do Executivo para a convocação da Constituinte, que previa a consulta
plebiscitária à população sobre se delegaria o poder constituinte a representantes
seus, eleitos exclusivamente para essa finalidade, ou ao Congresso Nacional eleito
em 1986. A proposta estabelecia, também, a necessidade de referendo popular
acerca dos temas constitucionais que, mesmo rejeitados, tivessem recebido votos
favoráveis de, no mínimo, 2/5 dos constituintes e que fossem objeto de destaque
solicitado também por 2/5.
Ambas as propostas foram rejeitadas no Congresso, mas serviu como
mola propulsora de debates acerca do assunto em pauta, a participação popular.
Já dentro da Assembléia Nacional Constituinte, em março de 1987, uma
grande campanha pelo direito de apresentação de emendas populares foi iniciada.
Essa campanha logrou êxito, uma vez que o regimento interno da Constituinte
garantiu o direito à emenda popular, além da possibilidade de apresentação de
110
sugestões e de audiências públicas nas subcomissões temáticas. As três emendas
populares sobre a inclusão de institutos de participação no texto constitucional
(referendo e iniciativa popular) reuniram mais de 400 mil assinaturas sob a
promoção dos Plenários de São Paulo e de Minas Gerais e do Movimento Gaúcho
da Constituinte.
Importantes subsídios para a discussão – incluindo o meio jurídico e partidário – foram os anteprojetos de Constituição, apresentados por juristas e partidos políticos, desde 1985. Destacam-se, entre esses, aqueles que mais aprofundaram a participação popular: o de José Afonso da Silva, [...], estabelece que não apenas o referendo e a iniciativa popular, inclusive no nível constitucional, mas também o veto popular e a revogação dos mandatos; o de Fábio Konder Comparato, quase integralmente encampado pelo Partido dos Trabalhadores (que o solicitara), aprofunda a abrangência dos institutos da democracia semidireta na atividade legislativa, na função pública e na função judicante (1986); o de Pinto Ferreira defende, igualmente, a iniciativa e o referendo para a matéria constitucional (1985) (BENEVIDES, 2003, p. 125).
A Constituinte, com isto, aprovou, no primeiro turno da votação o
referendo, o plebiscito, a iniciativa popular e o veto popular41, com 360 votos
favoráveis, 89 contra e 12 abstenções. No segundo turno, caiu o direito ao veto
popular.
Ressalta Benevides (2003, p. 125-126) que a discussão das propostas na
subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias, culminou no
documento que tinha por titulo “Todo poder emana do povo e com ele será exercido”
e que essa comissão encampou praticamente todos os pontos defendidos por José
Afonso da Silva. Mas, apesar disso, o princípio consagrador da intervenção direta do
41 O veto popular é um instituto que guarda certa semelhança com o referendo, sendo denominado por alguns doutrinadores americanos de mandatory referendum. Através dele, dá-se aos eleitores, após a aprovação de um projeto de lei pelo Legislativo, um prazo, geralmente de sessenta e nove dias, para que requeiram a aprovação popular. A lei não entra em vigor antes de decorrido o prazo e, desde que haja a solicitação de certo número de eleitores, ela continuará suspensa até as próximas eleições, quando então o eleitorado decidirá se ela deve ser posta em vigor ou não (DALLARI, 1991, p. 131).
111
cidadão no processo legislativo foi duramente contestado nos trabalhos
constituintes.
Os argumentos levantados contra a iniciativa popular podem ser vistos como exemplos de uma certa “cultura política” das elites – a “presciência” de que falava a antiga UDN – reveladora da persistente tradição oligárquica, personalista e paternalista em nossos parlamentares (BENEVIDES, 2003, p. 126).
A título exemplificativo, Benevides (2003, p. 126-127) coloca dois
testemunhos colhidos durante os debates da subcomissão. O primeiro, de Samir
Achôa (PMDB-SP) diz que:
Quanto à iniciativa dada à população, acho que constitui um desrespeito ao próprio Parlamento, porque ninguém há de negar que, se qualquer cidadãos aqui chegar e me apresentar um projeto, posso não concordar com ele, mas o encaminho. Portanto não há necessidade de criarmos instrumentos que dificultem essa apresentação. Todos nós recebemos, diariamente, sugestões até na rua. E as apresentamos ou não [...] Se somos advogados constituídos do povo, ou somos bons advogados ou não somos. Passarmos a nós mesmos um atestado de incompetência e incapacidade é um absurdo. Creio ainda que exigirmos um número mínimo de assinaturas – 20 mil, 30 mil, 50 mil – que correspondem aos votos que recebemos aqui para representarmos esse mesmo povo, seria a mesma questão de o cliente passar à frente do advogado e discutir com o juiz (Diário da Constituinte, 22 abr.1987).
O segundo, de Ziza Valadares (PMDB-MG) que diz:
Essa não é a forma. Isso é para enganar. Desafio os srs. Constituintes a trazer aqui, honestamente feita, qualquer proposta com 30 mil assinaturas, acompanhadas do título de eleitor, endereço, número de filhos, e CPF dos proponentes. Além disso, registrada em cartório eleitoral. Acho que temos realmente de abrir canais, na nova Constituição, que permitam uma participação mais efetiva da população. Mas não dessa forma. Somos responsáveis pelo que estamos discutindo e pelo que colocamos em nosso Regimento. Isso aqui não é brincadeira [...] Sou novato na Casa. O pessoal de Minas, inclusive, procurou-me hoje, porque estava, na rua, tentando coletar as 30 mil assinaturas. Disse-lhes: substituam as 30 mil pela minha assinatura. Assim evitarão o trabalho, as emendas serão apresentadas. Desta forma, acho que, na nova Constituição, temos de inserir mecanismos que facilitem, e não como esse que dificultem (Diário da Constituinte, 22 abr.1987).
112
Mesmo assim, com toda manifestação desfavorável à participação popular
direta, a Constituição Federal de 1988, promulgada em 5 de outubro, consagrou os
institutos do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular de leis.
Desta forma, o regime político adotado pela Constituição brasileira de
1988, segundo seu artigo 1º, baseia-se no princípio democrático42, constituindo-se,
assim, o Brasil, num Estado Democrático de Direito, fundado na soberania, na
cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa e no pluralismo político.
E ainda, segundo o artigo 1º da Constituição Federal de 1988, em seu
parágrafo único, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Assim,
conclui-se, diante de todo o exposto neste capítulo, que o regime político adotado
pelo Brasil é a Democracia Semidireta.
42 Trata-se de princípio complexo, ostentando um aspecto substancial normativo, como conjunto de valores condicionantes do exercício do poder político e procedimental normativo, vinculado a uma série de regras e procedimentos de manifestação da vontade política. O aspecto substancial normativo materializa-se não só nos valores que o condicionam, mas no fim buscado pelo governo do povo, pelo povo e para o povo. Por sua vez, seu campo procedimental normativo encontra-se nas normas disciplinadoras da exteriorização da decisão política, com a participação menor ou maior da vontade popular (SILVA, 2002 apud DUARTE NETO, 2005, p. 26).
113
6 INSTITUTOS DA DEMOCRACIA SEMIDIRETA
A democracia semidireta, como já visto, resume-se à junção da
democracia representativa com a democracia direta pura. Os Estados que se
declaram inseridos no contexto desse regime conjugado são regidos pela
participação indireta da população nas decisões políticas da nação, através da
representatividade, e possuem institutos próximos aos utilizados nas democracias
gregas, aqueles que permitem a participação direta da população nos negócios do
Estado: o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular, o recall e o veto popular.
Muito embora alguns Estados se utilizem do recall e do veto popular, no
Brasil, a participação direta da população se restringe aos outros três institutos.
6.1 A REPRESENTAÇÃO
A representação gera para o povo a necessidade de eleger seus
representantes. Vários foram os critérios utilizados na história para a escolha dos
governantes, desde o da força física, usada nas sociedades primitivas, até outros
critérios, como o de sorteio, o de sucessão hereditária e o de eleição, que é
característico do Estado Democrático. Mesmo longe da perfeição, o sistema eleitoral
114
ainda é o que mais se aproxima da expressão direta da vontade popular, além de
permitir que os próprios governados escolham seus governantes.
O mecanismo de controle da escolha dos representantes é denominado
de sufrágio, que para alguns se trata de um direito, para outros, uma função ou
ainda uma expressão de um dever eleitoral. Mas a opinião prevalecente é a de que
o sufrágio é concomitantemente um direito e uma função. Primeiro, porque cabe ao
indivíduo e se exerce na esfera pública para a consecução de fins públicos, portanto
é um direito público subjetivo. Depois, porque se constitui uma função social, já que
há a necessidade de escolha dos governantes para que se complete a formação da
vontade do Estado e tenha meios de expressão (DALLARI, 1991, p. 155-156).
A expressão “sufrágio” vem do latim sufragium, que significa aprovação,
apoio e significa, no entendimento de Carlos S. Fayt, “um direito público subjetivo de
natureza política, que tem o cidadão de eleger, ser eleito e de participar da
organização e da atividade do poder estatal”. É a instituição fundamental da
democracia representativa e é através de seu exercício que o eleitorado, instrumento
técnico do povo, outorga legitimidade aos governantes (SILVA, 2002, p. 348).
O sufrágio pode ser universal ou restrito. A primeira forma é aquele que
ocorre quando se outorga o direito de votar a todos os nacionais de um país, sem
restrições derivadas de condições de nascimento, de fortuna e capacidade especial.
Enquanto que a segunda é a que ocorre quando o direito de votar só é conferido a
indivíduos qualificados por condições econômicas ou de capacidades especiais.
Apesar de todos os cidadãos terem o direito de participar da escolha de
seus governantes, todas as Constituições estabelecem algumas restrições,
consideradas muitas vezes justas, mas, outras, conservadoras ou defensoras de
115
privilégios. Essas restrições podem ser por idade43, por motivo de ordem
econômica44 (sufrágio censitário), por motivo de sexo45, por deficiência de
instrução46 (sufrágio capacitário), por deficiência física ou mental47, por condenação
criminal48 ou por engajamento no serviço militar49.
As palavras sufrágio e voto são, muitas vezes, empregadas como
sinônimas, mas a Constituição brasileira de 1988 lhes dá sentidos diferentes, uma
vez que seu artigo 14 expõe que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio
universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos, [...]”. O sufrágio é
universal e o voto é direto, secreto e igual. Escrutínio é outra expressão que gera
confusão com sufrágio e voto. Portanto, sufrágio é o direito, o voto é o seu exercício
e escrutínio é o modo de seu exercício.
6.2 A PARTICIPAÇÃO POPULAR DIRETA
Segundo Paulo Bonavides (2000, p. 281), a participação direta do povo na
esfera legislativa foi doutrinariamente preconizada, desde o século XVIII, com o
Contrato Social de Rousseau. Mas, apesar dos tratadistas enumerarem os
43 Determinação de um limite para começar a participar da vida política do Estado, baseada na maturidade necessária para agir conscientemente na vida pública. Não há um consenso para o estabelecimento do limite mínimo de idade, mas a tendência é de fixar nos dezoito anos. 44 Essas restrições ainda contam com alguns adeptos, mas que, aos poucos, vêm sendo eliminadas e, em muitos casos, proibidas. São aquelas que limitam a participação nas eleições àqueles que possuem um certo grau de capacidade econômica. 45 Quando da implantação do sufrágio, as mulheres foram proibidas de votar, mas com o passar dos tempos a concessão desse direito passou a existir em certos locais, como no Estado norte-americano do Wyoming, em 1869, e quando a própria Constituição americana passou a proibir qualquer restrição política por motivo de sexo, em 1920. No Brasil, as mulheres passaram a votar em 1932. 46 Aqui há a consideração da necessidade de um grau mínimo de instrução para o exercício do sufrágio. No Brasil os analfabetos podem votar de forma facultativa. 47 Nesse caso há a exclusão daqueles que não tenham condição de votar obedecendo às exigências da pessoalidade e do segredo do voto, como no caso dos deficientes mentais e físicos. 48 Ocorre o impedimento daqueles que cometem crimes e que tenha reconhecida sua responsabilidade criminal de participar da vida política do país, até quando durarem os efeitos da sentença. 49 Restrições do direito de voto aos militares, com vistas a impedir que a política penetre nos quartéis.
116
mecanismos de participação popular em cinco (referendo, plebiscito, iniciativa, recall
e o veto popular), a segunda parte do artigo 14 da Constituição de 1988, nos seus
incisos I, II e III, faz referência apenas a três desses institutos de participação
popular direta: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.
Outras constituições50 também fazem referência a esses institutos de
participação direta do povo. A portuguesa, em seu artigo 115 coloca que
os cidadãos eleitores recenseados no território nacional podem ser chamados a pronunciar-se directamente, a título vinculativo, através de referendo, por decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembléia da República ou do Governo, em matérias das respectivas competências, nos casos e nos termos previstos na Constituição e na lei. O referendo pode ainda resultar da iniciativa de cidadãos dirigida à Assembléia, que será apresentada e apreciada nos termos e nos prazos fixados por lei. O referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional que devam ser decididas pela Assembléia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo (grifo nosso).
A Constituição italiana51 expõe em seu artigo 75 que
É convocado referendo popular para deliberar sobre a ab-rogação, total ou parcial, de uma lei ou de um ato que tenha valor de lei, quando o solicitarem quinhentos mil eleitores ou cinco Conselhos Regionais. Não é admitido o referendo para as leis tributárias e de balanço, de anistia e de indulto, de autorização para ratificar tratados internacionais. Têm o direito de participar do referendo, todos os cidadãos chamados a eleger a Câmara de Deputados. A proposta submetida a referendo será aprovada se participar da votação a maioria dos que têm direito, e se for atingida a maioria dos votos validamente expressos. A lei determina as modalidades de atuação do referendo (grifo nosso).
O artigo 39 da Constituição Argentina52 estabelece que
50 Textos retirados do site www.presidencia.gov.br, em jul/05. 51 Art. 75 – “È indetto referendum popolare per deliberare l’abrogazione, totale o parziale, di una legge o di un atto avente valore di legge, quando lo richiedono cinquecentomila elettori o cinque Consigli regionali. Non è ammesso il referendum per legge tributarie e di balancio, di amnistia e de indulto, de autorizzazione a ratificare trattati internazionali. Hanno diritto di partecipare al referendum tutti i cittadini chimati ad eleggere la Câmara dei deputati. La proposta soggetta a referendum è aprovata se há partecipato alla votazione la maggioranza degli aventi diritto, e se è ragiunta la maggioranza dei voti validamente espressi. La legge determina le modalità di attuazione del referendum”. 52 Art. 39 – “Los ciudadanos tienen el derecho de iniciativa para presentar proyectos de ley em la Cámara de Diputados. El Congresso deberá darles expresso tratamiento dentro del término de doce
117
os cidadãos têm o direito de iniciativa de apresentar projetos de lei a Câmara de Deputados. O Congresso deverá dar expresso tratamento dentro de até doze meses. O Congresso, com o voto da maioria da totalidade dos membros de cada Câmara, sancionará uma lei regulamentar que não poderá exigir mais de três por cento do eleitorado nacional, dentro do qual deverá contemplar uma adequada distribuição territorial para subscrever a iniciativa. [...] (grifo nosso).
e o artigo 40 que
o Congresso, mediante iniciativa da Câmara dos Deputados, poderá submeter à consulta popular um projeto de lei. A lei de convocação não poderá ser vetada. O voto afirmativo do projeto pelo povo da Nação Argentina o converterá em lei e sua promulgação será automática. O Congresso ou o Presidente da Nação, dentro de suas respectivas competências, poderão convocar a consulta popular não vinculante. Neste caso o voto não será obrigatório. O Congresso mediante o voto da maioria absoluta dos membros de cada Casa, regulamentará as matérias, procedimentos e oportunidades da consulta popular (grifo nosso).
Por vezes ocorrem dúvidas em torno da utilização dos termos plebiscito e
referendo, freqüentemente usados como sinônimos. “Em países de democracia
semidireta, como a Suíça, não se há atentado com rigor na distinção que
inumeráveis publicistas reclamam para fazer cientificamente precisas as duas
noções” (BONAVIDES, 2000, p. 288). Mas as tentativas de diferenciação chegaram,
até agora, aos seguintes resultados: a) o plebiscito, ao contrário do referendo, seria
circunscrito apenas à lei e teria por objeto medidas políticas, matérias constitucionais
e tudo aquilo que se referisse à estrutura essencial do Estado ou do governo; b)
caracterizar-se-ia como um pronunciamento popular válido por si mesmo,
meses. El Congresso, con el voto de la mayoría de la totalidad de los miembros de cada Cámara, sancionará una ley regulamentaria que no podrá exigir más del tres por ciento del padrón electoral nacional, dentro del cual deberá contemplar una edecuada distribuición territorial para suscribir la iniciativa. No serán objecto de iniciativa popular los proyectos referidos a reforma constitucional, tratados internacionales, tributos, presssupuestos y matéria penal”. Art. 40 – “El Congresso, a iniciativa de la Cámara de Diputados, podrá someter a consulta popular un proyecto de ley. La ley de convocatória no podrá ser vetada. El voto afirmativo del proyecto por el pueblo de la Nación lo convertirá em ley y su promulgación será automática. El Congresso o el presidente de la Nación, dentro de sus respectivas competecias, podrán convocar a consulta popular no vinculante. En este caso el voto no será obligatorio. El Congresso, con el voto de la mayoría
118
inteiramente unilateral, independente do concurso de qualquer outro órgão do
Estado, diferentemente do referendo que precisaria do consentimento tanto do povo
quanto do Parlamento. Mas estas não são efetivamente as distinções feitas no
Brasil.
Segundo Bonavides (2000, p. 289), Maurice Duverger entende que
a distinção entre plebiscito e referendum deve ser rigorosa. Ao passo que o referendum demanda apenas a “aprovação de uma reforma”, o plebiscito “consiste em dar confiança a um homem”, conceder-lhe faculdades ilimitadas de poder, prestigiá-lo com ampla base de sustentação popular, identificando ou harmonizando a causa do governante com os sentimentos e interesses das classes populares; enfim, segundo o mesmo autor, no referendum “vota-se por um texto”; no plebiscito, “por um nome”.
Para Maria Vitória Benevides (2003, p. 35), sob a influência dos autores
italianos, tende a predominar
a idéia de que o referendo vincula-se a deliberação sobre ato prévio dos órgãos estatais, para ratificar ou rejeitar (lei já em vigor ou projeto de lei, projeto ou norma constitucional). O plebiscito seria uma consulta “de caráter geral”, ou pronunciamento popular sobre fator ou eventos (e não atos normativos) excepcionais e que, justamente por serem excepcionais – e não “regulares”, como para o referendo -, fogem à disciplina constitucional.
Para ela, na verdade, a “excepcionalidade” das questões sobre as quais o
povo deve ser ouvido não é, necessariamente, o critério distintivo entre os dois
institutos, uma vez que o termo plebiscito nunca é citado, em alguns países, em
textos constitucionais ou debates políticos e acadêmicos, como nos exemplos das
Constituições acima demonstrados. No Uruguai e no Chile, o termo plebiscito é
utilizado, mas no sentido de referendo.
Vale ressaltar que o plebiscito e o referendo são citados separadamente
na Constituição brasileira de 1988, um no inciso I e o outro no II do artigo 14,
absoluta de la totalidad de los miembros de cada Cámara, reglamentará las materias, procedimientos y oportunidad de la consulta popular”.
119
resultando na impossibilidade de serem sinônimos. Portanto, no ordenamento
jurídico brasileiro essas expressões divergem, ainda mais quando o artigo 49 coloca
que cabe ao Congresso “autorizar”, quanto ao referendo e “convocar”, quanto ao
plebiscito.
Basicamente, essa divergência tenta ser explicada em virtude do momento
de suas respectivas realizações. Enquanto que o segundo é uma consulta prévia
que se faz ao cidadão sobre determinada matéria a ser posteriormente discutida
pelo Congresso Nacional, o primeiro consiste em uma consulta posterior sobre
determinado ato governamental para ratificá-lo.
Segundo as definições publicadas pelos jornais (e não contestadas por constituintes e/ou juristas), através do referendo a população aprova ou rejeita um projeto que já tenha sido aprovado pelo Legislativo; no plebiscito, a população decide pelo voto uma determinada questão (BENEVIDES, 2003, p. 36).
Todavia, esse posicionamento gera um grande questionamento: como,
então, denominar de plebiscito a consulta prevista nos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) sobre a forma e o sistema de governo, uma vez
que já estavam consagrados na Constituição? Não seria aí um caso de referendo
para aprovar ou rejeitar um texto já promulgado?
A posição de Benevides (2003, p. 36) é a de que esse questionamento
serve, simplesmente, para ilustrar a ambigüidade e a subjetividade dos conceitos,
mas que é possível que tenha predominado a tese de que se trata de “questão
excepcional”, revestida de “solenidade” e que, portanto, escaparia ao âmbito mais
banal dos referendos.
Essa posição de Benevides não é pacífica. Há uma outra ótica de clara
compreensão: a de que o que ocorreu em 1993 foi realmente um plebiscito, já que,
se houvesse a mudança para Parlamentarismo ou Monarquia, haveria a
120
necessidade de mudança constitucional, caracterizando, assim, a anterioridade da
consulta popular para posterior construção normativa.
Conclui Benevides (2003, p. 40) que o que distingue plebiscito de
referendo é a “natureza da questão que motiva a consulta popular – se normas
jurídicas ou qualquer outro tipo de medida política – e o momento de convocação”.
Em relação à natureza, o referendo se refere apenas a normas legais ou
constitucionais, e o plebiscito, a qualquer tipo de questão de interesse público, não
necessariamente de ordem normativa. Quanto ao momento da convocação, o
referendo é convocado sempre após a edição de atos normativos, enquanto que o
plebiscito é uma consulta popular anterior à edição ou não de norma jurídica. Essa
última é a posição dominante no Brasil.
6.2.1 O Plebiscito
A palavra “plebiscito” tem origem nas expressões latinas plebis (plebe) e
sciscere (decretar), formando o vocábulo plebiscitum (aprovados pelos plebeus). No
Direito Romano, assim se dizia da lei que era aprovada pelos plebeus reunidos em
comício. Em sentido amplo, quer exprimir a manifestação da vontade popular ou a
opinião do povo, expressa por meio de votação, acerca de assunto de vital interesse
político ou social (DE PLÁCIDO E SILVA, 1967, p. 1167).
O plebiscito é o primeiro dos instrumentos de democracia participativa
colocados à disposição do povo (art. 14, inc. I da CF/88 e Lei n. 9709/98) e consiste
numa consulta prévia à opinião popular, para adotar providências legislativas ou
outras quaisquer, dependendo do resultado da consulta, ou seja, consiste na
possibilidade de o eleitorado decidir uma determinada questão de grande relevo
121
para os destinos da sociedade, com efeito vinculante para as autoridades públicas
atingidas.
Ressalta, no entanto, Paulo Bonavides (2003a, p. 259-261), que esse
instituto é utilizado freqüentemente pelos ditadores, com o intuito de manipular as
massas, mediante o monopólio dos meios de comunicação. O que aconteceu na
França, nos períodos de Napoleão e Napoleão III; com Hitler, Mussolini e Stalin, bem
como com Pinochet no Chile, no século XX.
Graças ao plebiscito, os ditadores fizeram passar as reformas que
desejavam para obter faculdades ilimitadas de poder, prestigiar-se ou mesmo
legitimar a perpetuidade no poder.
Mas isso não quer dizer que estejamos excluindo de aplicação as intervenções legítimas do elemento popular, configurativas da chamada democracia semidireta. Com esta, o povo se empossa das faculdades soberanas de participação, exercitando em toda a plenitude um poder decisório legítimo. Nesse caso as instituições democráticas se aperfeiçoam ou saem fortalecidas (BONAVIDES, 2003a, p. 261).
No Brasil, além do já mencionado plebiscito de 1963, que foi convocado
pela primeira vez na história política brasileira, ocorreu em 1993, pela segunda vez,
um plebiscito em que foi chamado o eleitorado brasileiro para decidir uma importante
questão de ordem político-institucional: a forma (republicana ou monárquica) e o
sistema de governo (presidencialista ou parlamentarista), que já estava previsto no
texto constitucional de 1988, no artigo 2º dos ADCT53.
Primeiro, os monarquistas comemoraram a vitória que consistiu na
inclusão da votação sobre a monarquia nos ADCT da Constituição Federal de 1988.
Depois, amargaram a derrota da proposta monárquica para a republicana, decidida
53 Art. 2º - “No dia 07 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País”.
122
na votação, que também optou pela permanência do Presidencialismo em vez do
Parlamentarismo.
6.2.2 O Referendo
Referendo se origina da expressão latina ad referendum, que significa
submeter certas decisões à aprovação de outrem, para que possam ser tidas como
definitivamente tomadas e, assim, surjam ou extingam os efeitos jurídicos, que lhes
são próprios. Com ele, o povo adquire o poder de sancionar as leis, ou seja, a lei
elaborada pelo Estado só se faz juridicamente perfeita e obrigatória depois da
aprovação popular.
Origina-se da prática de consultas populares para que se tornassem
válidas as votações nas Assembléias cantonais, em certas localidades suíças, desde
o século XV, como nos cantões de Valais e Grisons (BENEVIDES, 2003, p. 34).
Segundo Bonavides (2000, p. 282-283), o referendo se classifica nas
seguintes modalidades: a) quanto à matéria ou ao objeto pode ser constituinte ou
legislativo. Constituinte quando se tratar de leis constitucionais, e legislativo quando
se aplica a leis ordinárias; b) quanto aos efeitos é constitutivo, quando a norma
jurídica passa a existir, e ab-rogativo, quando a norma vigente expira; c) quanto à
natureza jurídica é obrigatório, quando a Constituição estabelece que a norma
elaborada pela Casa Legislativa seja submetida à aprovação da vontade popular, e
facultativo, quando se confere a determinado órgão ou a uma parcela do corpo
eleitoral competência para fazer ou requerer consulta aos eleitores, consulta que
não representa obrigação constitucional; d) quanto ao tempo é ante legem, anterior,
consultivo, preventivo ou programático, quando a manifestação da vontade popular
123
antecede a lei, buscando conhecer de antemão o pensamento da massa eleitoral, e
post legem, sucessivo ou pós-legislativo, quando houver consulta popular depois de
a lei já ter sido votada pelo Legislativo.
É esta classificação quanto ao tempo que provoca as grandes discussões
acerca da diferença entre o referendo e o plebiscito, o que, no caso brasileiro, já
ficou pacificado o entendimento de que o ato anterior à elaboração da lei é
plebiscito, e o posterior é referendo.
A idéia de referendo trazida na Constituição brasileira de 1988 gera outro
problema. Como se diferir um referendo meramente consultivo de um vinculante?
O referendo consultivo não apenas antecede a lei, mas também não
garante nenhuma deliberação das autoridades no sentido de acatar a vontade
popular, desejando apenas conhecer a opinião do povo. Diferentemente do
vinculante que obriga a tomada de posição do Estado em relação ao que foi decidido
na consulta popular.
Na opinião de Benevides (2003, p. 135), independentemente da omissão
constitucional brasileira, é razoável estabelecer que os referendos devam ter caráter
vinculante. Diferentemente dos plebiscitos, que poderiam ser implementados ou não,
dado o caráter de consulta de decisões futuras.
Numa análise da ocorrência de referendos no mundo contemporâneo,
desde o inicio do século XX até a década de 70, a natureza e os tipos dos
referendos convocados por diferentes países variou bastante. Decidiu-se por
consulta populares sobre questões como a autonomia nacional (Noruega, em 1905,
para se separar da Suécia; Islândia, em 1944, para se separar da Noruega;
Gibraltar, em 1967, para permanecer vinculada à Inglaterra); disputas de fronteiras
em decorrência de guerras; e questões de alcance bem mais limitado, que incidem
124
sobre o cotidiano da sociedade, como a mudança de lado das ruas, onde os
veículos trafegam na Suécia, ocorrida em 1955 (MOISÉS, 1990, p. 65).
Mas, do final da década de 60, até os anos 90, o uso do referendo passou
a questões de significado mais importante para a soberania nacional e para a
política interna dos países. O referendo vem sendo utilizado por países que querem
ingressar ou permanecer na Comunidade Européia (Inglaterra, em 1975; Noruega,
em 1972); por países que enfrentaram tentativas separatistas (Canadá, no final dos
anos 60); por países que desejaram mudar suas regras institucionais, seus regimes
políticos ou formas de governo (França, em 1969; Gâmbia, em 1975 e Gana, em
1978); e países que quiseram acelerar ou bloquear política e institucionalmente o
seu processo de transição de um regime autoritário para um de natureza
democrática, como a Grécia, em 1974; a Espanha, em 1976; o Uruguai, em 1985 e
1989; e o Chile, em 1988 (MOISÉS, 1990, p. 65-66).
No início de 2005, dois países europeus, França e Holanda, passaram por
referendos na tentativa de aprovação e aceitação popular acerca da utilização de
uma Constituição comum entre os países que compõem o Mercado Comum
Europeu. Referendos estes que confirmaram a não-aceitação do povo de ambos os
países em relação a essa Constituição.
Atualmente, entre os países que incluem o referendo nos seus textos
constitucionais, encontram-se a Austrália, Alemanha, Argentina, Brasil, Canadá,
Dinamarca, Espanha, França, Finlândia, Grécia, Itália, Irlanda, Portugal, alguns
países da África e outros.
REFERENDOS NACIONAIS EM 16 PAÍSES (1900 – 1980)
Número de Referendos Realizados
Anos 1900-45 1945-62 1963-80 Total
Suíça 83 97 102 282
Austrália 0 5 13 18
125
N.Zelândia 0 9 8 17
Dinamarca 3 3 8 14
França 0 8 2 10
Irlanda 1 1 7 9
Itália 0 1 3 4
Suécia 1 1 2 4
Áustria 0 0 1 1
Bélgica 0 1 0 1
Noruega 0 0 1 1
Inglaterra 0 0 1 1
Alemanha 2 0 0 2
Holanda 0 0 0 0
EUA 0 0 0 0
Brasil* 0 0 0 0
Total 90 126 148 364 Fonte: MOISÉS, 1990, p. 68, in A comparative study os practice and theory, A Interprise Institute, Washington, 1978; e A. Lijphart, Democracies, Yale University, New Haven e London, 1984. * Dados inseridos pelo autor
O Brasil só veio a ter seu primeiro referendo no ano de 2005, quando em
23 outubro foi questionado se a comercialização de armas de fogo e munição no
País deveria continuar ou ser proibida.
6.2.3 A Iniciativa Popular
“De todos os institutos da democracia semidireta, o que mais atende às
exigências populares de participação positiva nos atos legislativos é talvez a
iniciativa” (BONAVIDES, 2000, p. 289).
Pactuar sem ressalvas dessa opinião causa séria desconexão com a
proposta central do trabalho. É aceitável a idéia de ser esse instituto o que mais
freqüentemente ocorre, mas somente em relação aos outros dois referidos. A
iniciativa está longe de ser utilizada no Brasil com a devida freqüência desejada pelo
princípio democrático. Mas esse assunto será tratado oportunamente em capítulo
próprio.
126
O conceito de iniciativa popular é estabelecido por diversos autores. José
Horácio Meirelles Teixeira (1991, p. 477) entende que iniciativa popular “consiste em
atribuir-se a uma certa parte ou porcentagem do eleitorado o direito de iniciar ou
propor a legislação, que deverá ser elaborada pelo Legislativo”.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1992 apud DUARTE NETO, 2005, p.
106) define o instituto como
o direito político de participação que se atribui aos cidadãos, em quorum especialmente definido, mas que pode ser estendido a certos tipos de pessoas jurídicas representativas de categorias de interesses, para propor uma medida legislativa ou uma decisão administrativa.
Celso Ribeiro Bastos (1989 apud DUARTE NETO, 2005, p. 106) o
conceitua como “a transmissão da faculdade de iniciar o procedimento de
elaboração legislativa, tanto ordinária quanto constitucional, a uma determinada
fração do corpo eleitoral”.
Para José Duarte Neto (2005, p. 107), a iniciativa popular é “o direito
político subjetivo concedido a um número de cidadãos, de, por intermédio de um ato
coletivo, iniciar o processo de elaboração legislativa”.
Não é exclusividade do Brasil a inserção desse instituto no seu
ordenamento, já que outros países espalhados pelo mundo também o prevêem nos
seus textos legais54.
A Constituição suíça atual faz menção à iniciativa popular, não olvidando
de mencionar que a utilização de processos de participação popular no Estado
Helvético, que é considerado o berço da democracia participativa moderna, data de
longo tempo.
54 Pesquisa realizada no site: www.presidencia.gov.br, em jul/05.
127
Os mecanismos de participação no ordenamento jurídico suíço foram
inicialmente aceitos no âmbito cantonal (Saint Gall – 1831, Eale – 1832, Valais –
1839 e Lucena – 1841). Em 1848, os processos já estavam em todas as demais
constituições cantonais, sendo absorvidos pela Constituição do país no mesmo ano.
Em 1º de janeiro de 2000, entrou em vigor o novo texto constitucional
suíço que passou por um processo de elaboração de cerca de trinta anos. Foi em
1965 que primeiro se pensou numa modificação constitucional e foram iniciadas as
primeiras discussões acerca do assunto. Em 1973, foi aprovado um primeiro
relatório que permitia a elaboração de um anteprojeto que contou com a aprovação
popular, por meio de um referendo. Em 1992, o povo rejeitou a adesão suíça ao
Mercado Comum Europeu, causando a paralisação dos trabalhos constitucionais. O
novo texto foi publicado em 1996, aprovado pela Assembléia Federal em 18 de
dezembro de 1998 e ratificado pelo povo em 18 de abril de 1999.
Na esfera federal, a iniciativa se resume à edição ou revogação de normas
constitucionais. Não há previsão para sua utilização para leis federais, da mesma
forma que se apresentava no texto constitucional anterior. Já na esfera cantonal,
pode ser utilizada tanto para as normas constitucionais quanto para as demais leis.
O texto constitucional estabelece que mediante subscrição popular é
possível iniciar a revisão total ou parcial da Constituição suíça. De acordo com o
artigo 136, 1 e 2, são aptos a tal ato aqueles com dezoito anos de idade, de
nacionalidade suíça, que não esteja interditado por enfermidade ou doença mental55.
55 “Art. 136 Diritti politici – (1) I diritti politici in materia federale spettano a tutte le persone di cittadinanza svizzera che hanno compiuto il diciottesimo anno d’età, purché non siano interdette per infermità o debolezza mentali. Tutte hanno gli stessi diritti e doveri politici. (2) Esse possono participare alle elezioni del Consiglio nazionale e alle votazioni federali, nonché lanciare e firmare iniziative popolari e referendum in materia federale”.
128
Segundo o artigo 138, parte 1, a revisão total é atribuída à iniciativa de
cem mil eleitores56. Uma vez apresentada, comporta consulta popular. Admitida a
proposta pelos cidadãos, a Assembléia Federal será dissolvida, ocorrendo uma
reeleição de seus membros, tendo a incumbência de reformar segundo as linhas
traçadas no projeto popular57.
A reforma parcial se dará mediante a mesma quantidade de assinaturas
da reforma total, mas com procedimentos diferenciados.
O aspecto que se sobressai em relação à iniciativa no âmbito federal na
Suíça é o seu vínculo com o referendo. Depois de passado por todas as fases –
iniciativa popular, discussão e aprovação do parlamento – a nova norma só entrará
em vigor se ao final for aprovada pela maioria dos cidadãos e dos cantões, ambos
ouvidos em referendo obrigatório58.
Outro aspecto importante a mencionar é a inexistência de maiores
formalidades para a colheita das assinaturas. Na lista tem de figurar o nome do
cantão e da comuna onde serão recolhidas seguidas das referidas assinaturas.
Deverão, ainda, ser acompanhadas de uma certidão da autoridade competente,
dando conta de que os subscritores possuem capacidade legal para o exercício dos
direitos políticos. Não há necessidade de autenticação das assinaturas, mas as listas
contêm advertência quanto à responsabilidade penal no caso de falsidade.
56 “Art. 138 Iniziativa popolare per la revisione totale della Costituzione federale – (1) 100 000 aventi diritto di voto possono proporre la revisione totale della Costituzione entro diciotto mesi dalla pubblicazione ufficiale della relativa iniziativa. (2) Tale proposta va sottoposta al Popolo per approvazione”. 57 “Art. 193 Revisione totale – (1) La revisione totale della Costituzione può essere proposta dal Popolo o da una delle due Camere oppure decisa dall’Assemblea federale. (2) Se la revisione totale è proposta mediante iniziativa popolare o se non vi è unanimità di vedute tra le due Camere il Popolo decide se si debba procedere alla revisione totale. (3) Se il Popolo si pronuncia per la revisione totale, si procede alla rielezione delle due Camere”. 58 “Art. 140 Referendum obbligatorio – (1) Sottostanno al voto del popolo e dei Cantoni: a. le modifiche della Constituzione; [...]”.
129
Segundo Duarte Neto (2005, p. 65), “a iniciativa popular encontra-se
permanentemente associada à prática política suíça, sendo instrumento de
indiscutível educação popular”.
Mais de um século de experiência nesse campo tem incutido no cidadão suíço um sentimento democrático sem correspondência no restante do mundo, fazendo-o o núncio de um modelo em que a iniciativa popular legislativa é uma forma de expressão (DUARTE NETO, 2005, p. 66).
Nos Estados Unidos da América, a iniciativa popular constitucional é
prerrogativa dos cidadãos para darem início à revisão constitucional. Difere-se do
ordenamento jurídico suíço quando não permite esse procedimento para a
Constituição Federal, mas somente para as estaduais.
Não ocorre em todos os Estados, só dezessete possuem esse instituto
(Arizona, Arkansas, Califórnia, Colorado, Flórida, Illinois, Massachusetts, Michigan,
Missouri, Montana, Nebrasca, Nevada, Dakota do Norte, Ohio, Oklahoma, Oregon e
Dakota do Sul), assumindo cada um contornos peculiares (DUARTE NETO, 2005, p.
69).
Uma das particularidades que vale ser ressaltada é a existência da
iniciativa popular direta na quase totalidade desses Estados mencionados, com
exceção a Oregon e Massachusetts, que optaram pela indireta, ou seja, há, no
primeiro caso, a dispensa da intervenção do parlamento no procedimento, enquanto
no segundo, o Poder Legislativo recebe a proposta com as assinaturas para
discussão e votação.
Outro aspecto relevante são as formalidades exigidas na colheita de
assinaturas. Na maioria dos Estados mencionados, as regras estabelecidas para a
arrecadação são muito rígidas.
130
Primeiro, o projeto tem de ser apresentado a uma autoridade superior, que
o intitulará. Depois, passa-se ao recolhimento das assinaturas, onde uma pessoa é
encarregada de indicar os nomes e endereços, controlando as assinaturas e
verificando se realmente se trata de eleitores. Na maioria dos Estados, o secretário
de Estado, com a ajuda de servidores locais, confere as listas, assinaturas e
endereços.
Alguns Estados procedem às verificações dos dados das listas apenas por
amostragem. Oklahoma e Dakota do Sul são os únicos que dispensam qualquer
verificação, mas exigindo-a se surgirem litígios.
A quantidade de assinaturas exigidas para o encaminhamento do projeto
se baseia em percentagem sobre o número de cidadãos ativos, sendo aqueles que
participaram da última eleição e não sobre todos os eleitores. Essa percentagem não
é baixa. Em Massachusets é de 3%, e vai variando entre os outros Estados até o
maior, que é de 15% em Oklahoma e no Arizona.
Como na Suíça, os projetos de iniciativa popular deverão obedecer ao
princípio da unidade da matéria, não podendo veicular mais de um assunto
(DUARTE NETO, 2005, p. 72).
Existe também a possibilidade de iniciativa popular para o processo
legislativo comum. É mais ampla que o constitucional, sendo prevista em vinte e um
Estados, dentre eles estão Califórnia, Michigan, Washington e Arizona, e doze deles
disciplinam a iniciativa de forma direta.
Não há conferência de tratamento privilegiado às leis elaboradas por
proposta popular. Quando em vigor, poderão ser alteradas ou revogadas por outras
leis de iniciativa do Poder Legislativo, reservada a possibilidade de convocação de
referendo facultativo. Mas em outros Estados podem ser observadas algumas
131
prerrogativas como: vedação de revisão durante certo prazo; revogação por maioria
qualificada; revisão com necessidade de concordância popular, sendo realizado
referendo, etc.
Outros ordenamentos também disciplinam a iniciativa popular, apesar de
não possuir a mesma importância atribuída aos outros instrumentos da democracia
semidireta: o referendo e plebiscito.
Na Europa, a iniciativa popular foi prevista antes da Primeira Grande
Guerra, na Constituição francesa de 1793. A Constituição de Weimar, de 1919,
previa a iniciativa popular no seu artigo 73, item 3, embora pouco usada,
diferentemente dos outros mecanismos, principalmente o plebiscito, que foi
extremamente útil ao Nazismo.
Depois da Segunda Grande Guerra, várias constituições previam em seus
textos algum dos mecanismos de participação direta, mas somente a italiana (1948)
e a espanhola (1978) previam a possibilidade de se iniciar o processo legislativo
pela iniciativa popular (DUARTE NETO, 2005, p. 79).
A Constituição Italiana previa o instituto no seu artigo 71, abordando sobre
a quantidade de assinaturas e a elaboração de uma proposta redigida em artigos59.
A espanhola previu o mecanismo de iniciativa popular em seu artigo 87,
parte 3, o qual estabelece a necessidade de quinhentas mil assinaturas para dar
início ao processo60, não permitindo o seu uso para a hipótese de reforma
constitucional.
59 Art. 71 – “L’iniziativa delle leggi appartiene al Governo, a ciascun membro delle Camere ed agli organi ed enti ai quali sai conferita da legge costituzionale. Il popolo esercita l’iniziativa delleleggi, mediante la proposta, da parte di almeno cinquentamila elettori, di um proggeto redatto in articoli”. 60 Art. 87, parte 3 - “Una ley orgánica regulará las formas de ejercicio y requisitos de la iniciativa popular para la presentación de proposiciones de ley. En todo caso se exigirán no menos de 500.000 firmas acreditadas. No procedrá dicha iniciativa em materias proprias de ley orgánica, tributarias e de carácter internacional, ni en lo relativo a la prerrogativa de gracia”.
132
O emprego da iniciativa popular na Espanha teve regulamentação por
meio de lei (Lei n. 3 de 26 de março de 1984), conforme determinava a Constituição.
Somente os cidadãos maiores de idade e inscritos perante o censo eleitoral são
permitidos assinar.
Na América do Sul, o instituto aparece em diversas constituições, mas
nunca como na americana ou na suíça. A Constituição uruguaia61 (art. 331, A) prevê
a iniciativa popular tanto para sua reforma quanto para a elaboração de leis. A
Argentina62 (art. 39) somente prevê o instituto para as leis comuns, vedando
expressamente a sua utilização para a reforma constitucional. As Constituições
colombiana e venezuelana também tratam da possibilidade dos cidadãos exercerem
por si a soberania popular.
Na Colômbia63 é permitido que uma pessoa indicada pelos cidadãos seja
ouvida pelas duas Câmaras durante o processo legislativo de iniciativa popular. Na
Venezuela64, o processo legislativo iniciado por meio popular obriga a que as
discussões parlamentares comecem na sessão legislativa ordinária que seguir a
apresentação da proposta. Se isso não acontecer, o projeto será enviado para um
referendo aprobatório.
No Brasil, a Constituição de 1988 instituiu a iniciativa popular nos três
níveis em que se organiza o sistema político brasileiro (o federal65, o estadual66 e o
61 Art. 331 – “La presente Constitución podrá ser reformada, total o parcialmente, conforme a los seguientes procedimientos: A) Por iniciativa del diez por ciento de los ciudadanos inscriptos en el Registro Cívico Nacional, [...]”. 62 Art. 39 – “[...]. No serán objeto de iniciativa popular los proyectos referidos a reforma constitucional, tratados internacionales, tributos, pressupuesto y materia penal”. 63 Art. 155 – “[...]. Los ciudadanos proponentes tendrán derecho a designar un vocero que será oído por lãs Cámaras em todas lãs etapas del trámite. 64 Art. 205 – “La discusión de los proyectos de ley presentados por los electores y electoras [...] se iniciará a más tardar en el periodo de sesiones ordinarias siguiente al que se haya presentado. [...]”. (Retirados do site: www.presidencia.gov.br). 65 Art. 61, § 2º - “A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara de Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”. 66 Art. 27, §4º – “A lei disporá sobre a iniciativa popular no processo legislativo estadual”.
133
municipal67) e não permitiu a utilização desse instrumento para alterar suas próprias
normas, restringindo-o à deflagração do processo da legislação ordinária e
complementar.
A possibilidade de iniciativa popular para leis ordinárias e complementares
da competência legislativa da União é estabelecida no § 2º do artigo 61 da
Constituição brasileira de 1988.
A iniciativa popular teve sua regulamentação junto aos outros instrumentos
da democracia semidireta, o plebiscito e o referendo, com a promulgação da Lei n.
9709, de 18 de novembro de 1998. O instituto é tratado nos artigos 13 e 14 da
respectiva lei, sendo que o primeiro se desdobra em dois parágrafos.
O art. 13 reitera o texto apresentado pela Constituição, já que, se fosse
modificado, cairia em vício de inconstitucionalidade. O § 1º estabelece a
possibilidade de o projeto abordar somente sobre um assunto, com o intuito de
facilitar os trabalhos legislativos e a compreensão da matéria pelos cidadãos, e o §
2º estabelece a impossibilidade de a Câmara rejeitar o projeto por vício de técnica
legislativa ou de redação. Caso ocorra alguma falha nesses, a Casa Legislativa deve
adequar o projeto apresentado68.
O art. 14 estabelece que o andamento do projeto de iniciativa popular será
consoante às normas do Regimento Interno da Câmara69.
67 Art. 29 – “O Município reger-se-á por lei orgânica, [...], atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: XIII – iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidades ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado”. 68 “Art. 13 – A iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos dos eleitores de cada um deles. § 1º - O projeto de lei de iniciativa popular deverá circunscrever-se a um só assunto. § 2º - O projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais improbidades de técnica legislativa ou de redação”. 69 “Art. 14 – A Câmara dos Deputados, verificando o cumprimento das exigências estabelecidas no art. 13 e respectivos parágrafos, dará seguimento à iniciativa popular, consoante as normas do Regimento Interno”.
134
No Regimento, a matéria encontra-se disciplinada no art. 252, com dez
incisos70. Nos incisos I, II e IV estão estabelecidos requisitos indispensáveis ao
colhimento das assinaturas, ou seja, técnicas para se aferir sua legitimidade e
autenticidade (DUARTE NETO, 2005, p. 133 – 135).
O inciso III tem de ser observado e aplicado com extremo cuidado para
não servir à iniciativa popular de leis, a interesses de grandes empresas,
organizações, ou mesmo a segmentos minoritários da sociedade disfarçados de
entidades ou associações, que fazem uso do poder econômico. Vale ressaltar que a
proposta desse inciso não é a da sociedade civil sozinha dar início ao processo, mas
tão-somente o de patrocinar e ajudar no recolhimento das assinaturas.
Uma particularidade do projeto de iniciativa popular é o estabelecido no
inciso VII. Mesmo o projeto tramitando da mesma maneira que qualquer outra
70 “Art. 252 – A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um centésimo do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três milésimos dos eleitores de cada um deles, obedecidas as seguintes condições: I – a assinatura de cada eleitor deverá ser acompanhada de seu nome completo e legível, endereço e dados identificadores de seu título eleitoral; II – as listas de assinatura serão organizadas por Município e por Estado, Território e Distrito Federal, em formulário padronizado pela Mesa da Câmara; III – será lícito à entidade da sociedade civil patrocinar a apresentação do projeto de lei de iniciativa popular, responsabilizando-se inclusive pela coleta de assinaturas; IV – o projeto será instruído com documento hábil da Justiça Eleitoral quanto ao contingente de eleitores alistados em cada Unidade da Federação, aceitando-se, para esse fim, os dados referentes ao ano anterior, se não disponíveis outros mais recentes; V – o projeto será protocolizado perante a Secretaria-Geral da Mesa, que verificará se foram cumpridas as exigências constitucionais para sua apresentação; VI – o projeto de lei de iniciativa popular terá a mesma tramitação dos demais, integrando a numeração geral das proposições; VII – nas Comissões ou no Plenário, transformado em Comissão Geral, poderá usar da palavra para discutir o projeto de lei, pelo prazo de vinte minutos, o primeiro signatário, ou quem este tiver indicado quando da apresentação do projeto; VIII – cada projeto de lei deverá circunscrever-se a um único assunto, podendo, caso contrário, ser desdobrado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação em proposições autônomas, para tramitação em separado; IX – não se rejeitará, liminarmente, projeto de lei de iniciativa popular por vícios de linguagem, lapsos ou imperfeições de técnica legislativa, incumbindo a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação escoimá-lo dos vícios formais para sua regular tramitação; X – a Mesa designará Deputado para exercer, em relação ao projeto de lei de iniciativa popular, os poderes ou atribuições conferidos por este regimento ao Autor de proposição, devendo a escolha recair sobre quem tenha sido, com a sua anuência, previamente indicado com essa finalidade pelo primeiro signatário do projeto” (Textos retirados do site: www.camara.gov.br, em jul/05).
135
proposição, há a possibilidade de uma pessoa estranha à Casa Legislativa vir a
Plenário para discutir o projeto, podendo ser o primeiro subscritor ou pessoa por este
indicada.
Com o intuito de cuidar do projeto e de sua tramitação, suscitando questão
de ordem, a Mesa Diretora da Câmara designará Deputado com os mesmos
poderes ou atribuições do autor da proposição.
Esse Deputado designado tem também a prerrogativa de, em aceitando a
tarefa, defender o projeto na esfera judicial em caso de violação por ocasião de seu
trâmite. A competência para tal causa é do Supremo Tribunal Federal (DUARTE
NETO, 2005, p. 137).
Para José Duarte Neto (2005., p. 141) seria importante para esse
mecanismo popular ser conjugado com o referendo.
O § 4º do art. 27 da Constituição Federal de 1988 estabelece a
competência dos Estados-membros para disciplinar a iniciativa popular de leis no
âmbito de cada um deles, dada a sua autonomia e sua capacidade de auto-
legislação.
A maioria das constituições estaduais aborda a matéria de iniciativa
popular de leis de forma muito próxima. Cabe ressaltar que em algumas delas é
possível a utilização desse instituto para emendas à Constituição e não só para leis
estaduais (ordinárias e complementares).
As emendas à Constituição podem ser estabelecidas por iniciativa popular
nas Constituições do Acre (art. 53, § 5º); Amapá (art. 103, IV); Alagoas (art. 85, IV e
art. 86, § 2º); Amazonas (art. 32, IV); Bahia71 (art. 74, IV); Espírito Santo (art. 62, III);
Goiás (art. 19, IV); Pará (art. 103, V); Pernambuco (art. 17, III); Rio Grande do Sul
71 Art. 74, IV da Constituição do Estado da Bahia – “Esta Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [...]; IV – dos cidadãos, subscrita por, no mínimo, um por cento do eleitorado do Estado”.
136
(art. 58, IV); Roraima (art. 39, IV); Santa Catarina (art. 49, IV); São Paulo (art. 22,
IV); e Sergipe (art. 56, IV).
Os demais Estados estabelecem nas suas Constituições72 a possibilidade
de utilização da iniciativa popular somente para a criação de leis estaduais ordinárias
ou complementares, são eles: Ceará (art. 60, IV, c/c arts. 61 e 62); Maranhão (arts.
42 e 44); Mato Grosso do Sul (art. 67, caput); Minas Gerais (arts. 65, caput, e 67, §§
1º e 2º); Rio Grande do Norte (art. 46); Rondônia (art. 39, caput e § 2º); Paraná (arts.
65 e 67); Paraíba (art. 63, caput e § 2º); Piauí (art. 75, § 1º); e Rio de Janeiro (arts.
112, caput, e 119).
A Constituição do Estado da Bahia73 disciplina a iniciativa popular para as
leis estaduais ordinárias e complementares no seu art. 82. Enquanto que o
Regimento Interno da Assembléia Legislativa da Bahia74 faz menção apenas à
possibilidade de emendas à Constituição por via de iniciativa popular, repetindo o
que a Constituição estadual já mencionara.
A única Constituição estadual que inovou na proposta do estabelecimento
da iniciativa popular foi a do Rio Grande do Sul, quando estabeleceu a
obrigatoriedade de convocação de referendo, caso o projeto de lei de iniciativa
popular venha a ser rejeitado pela Assembléia Legislativa do Estado (art. 68, § 3º).
Essa idéia de vincular a iniciativa ao referendo vem dos ordenamentos suíços e
americanos (DUARTE NETO, 2005, p. 145).
Particularidades quanto a outros Estados devem também ser
mencionadas. As Constituições Acreana e Mineira estabelecem em seus arts. 53, §
72 Dados retirados do site: www.presidencia.gov.br, em jul/05. 73 “Art. 82 – É assegurado aos cidadãos o direito da iniciativa popular, mediante apresentação à Assembléia Legislativa de projeto de lei subscrito por, no mínimo, meio por cento do eleitorado estadual”. 74 “Art. 196 – A proposta de emenda à Constituição poderá ser apresentada: [...]; IV – pelos cidadãos, subscrita por, no mínimo, um por cento do eleitorado do Estado”.
137
5º e 67, respectivamente, da mesma forma que o Regimento Interno da Câmara de
Deputados, a possibilidade de patrocínio aos projetos populares por sociedades
civis. A de Minas Gerais vai mais adiante na inovação, quando estabelece a
subscrição da proposta de iniciativa popular por um número fixo de dez mil eleitores,
e não um percentual, o que facilita muito a prática de tal instrumento.
Na esfera municipal, a iniciativa popular é estabelecida no art. 29, inc. XIII
da Constituição Federal de 1988. Esse mecanismo é possível nas propostas de lei
de interesse do município, cidade ou bairro, mediante a subscrição de cinco por
cento do eleitorado.
138
7 REFLEXÃO TEÓRICA: DEMOCRACIA FORMAL E SUBSTANCIAL
Já que a parte demonstrativa dos institutos da democracia semidireta foi
abordada no capítulo anterior, há a necessidade, agora, de uma reflexão teórica que
sirva de transição à análise principal do trabalho, que se dará no capítulo seguinte.
A definição de democracia numa abordagem mais ampla, suas nuanças e
sua evolução histórica foram vistas anteriormente, tornando desnecessária sua
repetição. No entanto, dois conceitos em especial precisam ser abordados com mais
profundidade: o da Democracia Formal e o da Democracia Substancial. Conceitos
estes trazidos por Norberto Bobbio em sua obra “Dicionário de Política”.
Bobbio (1995, p. 328) conceitua democracia mediante a análise dessas
duas diferentes espécies, porque,
segundo uma velha fórmula que considera a Democracia como Governo do povo para o povo, a democracia formal é mais um Governo do povo; a substancial é mais um Governo para o povo. Como a democracia formal pode favorecer uma minoria restrita de detentores do poder econômico e portanto não ser um poder para o povo, embora seja um Governo do povo, assim uma ditadura política pode favorecer em períodos de transformação revolucionária, quando não existem condições para o exercício de uma Democracia formal, a classe mais numerosa dos cidadãos, e ser, portanto, um Governo para o povo, embora não seja um Governo do povo.
Aqui, o termo Democracia tem dois significados distintos: primeiro, a
“Democracia Formal”, que indica um certo número de instrumentos ou meios
trazidos pelo ordenamento jurídico; segundo, a “Democracia Substancial”, indicando
139
não mais os meios, mas os fins que podem ser alcançados com sua efetiva
utilização. No caso brasileiro, a democracia existe somente para estabelecer que o
Regime Político adotado pela Constituição de 1988 é a Democracia Semidireta,
independentemente dos fins que possam ser alcançados, o que impede a
demonstração na prática de que o Brasil é, realmente, uma Democracia Semidireta,
já que a democracia substancial não existe efetivamente, existindo apenas a formal.
Outros teóricos sustentam idéias próximas da trazida por Bobbio, de que a
prevalência deve estar adstrita à materialização ou à efetivação e não somente à
formalização pura e simples daquilo que caracteriza a estrutura política e normativa
de um Estado, reforçando ainda mais a necessidade de efetivação das normas para
que verdadeiramente a Nação tenha contornos reais de democracia.
Ferdinand Lassalle (2001, p. 5), em sua obra “A essência da Constituição”,
inicia a exposição em torno do questionamento: o que é uma Constituição?
Ressalta o autor que a Constituição está ligada aos fatores reais de poder
que atuam em toda sociedade, informando todas as leis e instituições jurídicas
vigentes.
Os fatores reais de poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são (LASSALLE, 2001, p. 10-11).
Conclui Lassalle que a Constituição de um país é, em essência, os
somatórios de todos os fatores reais de poder, que podem ser o que o rei, uma
minoria, a burguesia, os banqueiros ou a classe trabalhadora determina,
dependendo de que forma a sociedade é gerida e dominada, não se restringindo a
uma mera folha de papel. O que prevalece é a Constituição como essência, real, e
não uma Constituição jurídica, baseada meramente numa simples construção
textual.
140
Pactua dessa mesma idéia Edvaldo Brito (1993, p. 34), quando analisa o
próprio Ferdinand Lassalle, Carl Schmitt e Konrad Hesse. Ele reconhece que
“Constituição jurídica é um ‘conceito’ em crise”. Porque, a Constituição como
essência seria a expressão dos fatores reais do poder, expressos por um elemento
sociológico, que são a “variedade de segmentos de poder que medram na
sociedade civil para dar legitimidade ao poder político”, atuando no seio de cada
sociedade e correspondendo a uma força ativa e eficaz que informa todas as leis e
instituições jurídicas vigentes.
Neste mesmo sentido, Otto Bachof (1994, p. 39) distingue a Constituição
Formal da Constituição Material:
nos termos desta distinção, Constituição em sentido formal será uma lei formal qualificada essencialmente através de características formais – particularidades do processo de formação e da designação, maior dificuldade de alteração – ou também uma pluralidade de tais leis: corresponderá, portanto, ao conteúdo global, muitas vezes mais ou menos acidental, das disposições escritas da Constituição. Por Constituição em sentido material entende-se em geral o conjunto das normas jurídicas sobre a estrutura, atribuições e competências dos órgãos supremos do Estado, sobre as instituições fundamentais do Estado e sobre a posição do cidadão no Estado.
Não é satisfatório, portanto, para a existência de uma verdadeira
constituição, seu conteúdo normativo ser estabelecido apenas por um texto escrito,
sem a efetivação do que ele realmente estabelece, como no caso da democracia
semidireta estabelecida na Constituição brasileira de 1988. O reflexo das normas
constitucionais de forma efetiva na sociedade é essencial para a superação de uma
órbita meramente formal notadamente excessiva, como ocorre na Constituição
Federal de 1988, em relação aos aspectos ligados ao princípio democrático.
Assim, uma vez que a realidade teórica e formalizada é uma e a realidade
fática e prática é outra totalmente diversa, tanto a diferença entre essas duas
141
espécies referidas por Bobbio, quanto às abordagens trazidas pelos outros teóricos,
demonstram o foco principal da crise por que passa a democracia no Brasil. Gera-se
com isso os seguintes questionamentos: na prática, e isso é o que realmente
importa, o Brasil pode ser considerado uma Democracia em que sua Constituição
permita e dê oportunidades reais, para que a população possa participar diretamente
do processo de formação da vontade nacional (Democracia Direta pura), através dos
seus institutos: plebiscito, referendo e iniciativa popular? Seus representantes agem
de acordo com a vontade da maioria popular (Democracia Representativa) e não por
forças alheias à vontade do povo, como o poder econômico, por exemplo?
O ideal, para se caracterizar uma democracia perfeita, seria a integração
entre a Democracia Formal e a Substancial, e as conseqüentes idéias de
Constituição Essência e Jurídica, Material e a Formal.
A idéia trazida por Calmon de Passos75 demonstra claramente esses
ideais acima referidos:
uma imagem que parece poder ajudar a pensar. Posso colocar no papel um projeto de uma casa tecnicamente perfeito. Tudo previsto com acerto e corretamente disciplinado. Esse projeto é de todo impotente para me proporcionar a realidade “casa”. Mas igualmente posso dispor de tijolos, cimento, areia, brita, ferragens etc, e isso não me proporcionará, por seu turno, obter a casa que desejo. As duas coisas são essenciais e exigem o operador humano que leve a cabo a interação. [...]. Quando há instituições formais sem respaldo em instituição sociais sempre teremos disfuncionalidade. Resultados positivos só logramos quando há correspondência entre o repertório e a estrutura formalizadas e as interações que efetivamente se cumprem em nível de sociedade.
Mas isso é utópico, uma falácia quando se fala de Brasil. O exagero de
limitações dentro do ordenamento jurídico e a atuação desvirtuada dos
75 Palavras proferidas em aula sobre o tema “Democracia e constitucionalismo. A produção do direito num Estado de Direito Constitucional. A crise da democracia e do constitucionalismo. Reflexos nas funções legislativa e jurisdicional”, que faz parte do material fornecido pelo autor na disciplina “Teoria Geral do Processo”, do Mestrado em Direito Público da Universidade Federal da Bahia, em abril de 2005.
142
representantes políticos da população tornam, na prática, a Democracia Semidireta
inviável neste País.
Vale ressaltar, no entanto, que a proposta aqui discutida se refere apenas
à participação popular na função legislativa, aquela que qualifica o cidadão como
eleitor, deixando de fora uma apreciação mais profunda das modalidades de
participação nas outras esferas, embora não negando sua existência.
Além dos aludidos institutos (plebiscito, referendo e iniciativa popular), são
também contabilizados outras modalidades de participação popular, principalmente
aquelas ligadas à Administração Pública. Primeiro, a que identifica o cidadão como
agente de poder, ou seja, como no caso daqueles que ingressam como servidores
no poder público, por concurso ou não, mas que são nomeados para exercer algum
cargo ou função pública. Segundo, o que identifica o cidadão enquanto colaborador
na gestão privada de interesses públicos, como no caso de delegação de serviços
públicos a particulares, mediante concessão, permissão e autorização; na
subscrição de particulares como acionistas em sociedade de economia mista; no
exercício de funções ou cargos honoríficos; no trabalho, em conjunto com a defesa
civil, em situações de catástrofes e calamidades; na prática de mutirões para a
construção de obras públicas ou de interesse público; e na participação em
conselhos ou colegiados de órgãos públicos.
Muito embora a análise das democracias substancial e formal ora proposta
caiba perfeitamente aos institutos de participação popular, na esfera legislativa, não
se dá dessa mesma maneira o encaixe desse respaldo teórico, quando se fala em
participação na esfera administrativa, uma vez que neste caso a participação popular
acontece com muito mais freqüência, deixando a democracia consubstanciada tanto
formalmente quanto materialmente.
143
8 A CRISE DA DEMOCRACIA
Diante das impressões apresentadas por Müller em sua obra “Quem é o
povo?”, principalmente dentro de sua perspectiva de povo ativo, em que pese nesse
ponto o povo presente em eleições (a Democracia Representativa) e em votações (a
Democracia Direta), e de povo ícone, foi possível formular uma tese básica em torno
dos diferentes significados do conceito de povo, que podem ser utilizados na
Constituição brasileira de 1988.
Esses diferentes significados dependem de como a realidade do local se
apresenta, sendo que o maior risco é o da normatividade constitucional tornar-se
mera normatividade formal – diferenciação trazida por Bobbio e apresentada no
capítulo anterior do texto -, tendo apenas a intenção de alcançar a democracia
nominal ou formal sem, contudo, dar efetividade à previsão de um Estado em que o
poder emana realmente do povo.
Portanto, uma breve conclusão a que se chega, respaldada pelo conceito
de povo como ícone, é que se está muito longe de poder afirmar que, efetivamente,
a realidade brasileira vive em uma democracia plena – política, social e econômica.
Isto é o que se irá demonstrar neste capítulo, especificamente na órbita política.
144
8.1 A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E SUA CRISE
Quem primeiro falou do povo como agente político fundamental foi
Rousseau, por isso é necessário mencionar as idéias políticas referentes à
democracia e à representação expostas por ele. Todavia, antes, faz-se necessário
reportar-se a outros nomes que se referem também ao tema.
John Locke acreditava num modelo em que os deputados seriam os
verdadeiros representantes do povo, com liberdades para agir em seu nome, como
se exercessem uma parcela da soberania originária, ou seja, quando escolhidos, o
representante tinha plena autonomia para decidir em nome dos representados.
Da mesma forma, John Milton, autor político inglês, entendia que, depois
das eleições, os deputados já não são responsáveis perante os eleitores.
Segundo Bonavides (2000, p. 204), essa tese adquiriu força no século
XVIII, com o reforço que lhe deram pensadores como Blackstone e Burke. Segundo
Blackstone, os membros do Parlamento representam o reino inteiro e não um distrito
eleitoral particular. Burke afirmou que seriam “coisas extremamente desconhecidas
ao direito do nosso país” admitir que do eleitor derivassem instruções “imperativas” e
“mandatos”, bastantes para compelir o deputado a segui-los cegamente,
obedecendo-lhes ou aceitando seu voto ou argumento.
Contudo, foi Montesquieu o primeiro a apresentar na Europa a versão
continental do sistema representativo, pregando a idéia de que a maior vantagem
dos representantes é que eles, em substituição do povo, são aptos a discutir os
negócios. Para ele, dos eleitores bastava o representante trazer uma orientação
geral. Nada de instruções particulares acerca de cada assunto, como na Alemanha
(BONAVIDES, 2000, p. 205).
145
Montesquieu (2003, cap. 6, passim) ressalta a incapacidade do povo para
debater a coisa pública ou gerir os negócios coletivos, atuando como poder
executivo. No sistema representativo cabe ao povo somente a escolha dos
representantes, atribuição para o qual está qualificado.
Rousseau (1987, p. 40 e ss), entretanto, doutrinava uma idéia contrária a
estas. Primeiro, ele descaracterizou a democracia de forma bastante grave quando
afirmou que “a tomar o termo em sua acepção rigorosa, jamais houve, jamais haverá
verdadeiramente democracia” e mais: “se houvesse um povo de deuses, esse povo
se governaria democraticamente. Um governo tão perfeito não convém a seres
humanos”.
Se sua visão de democracia era feita dessa forma, muito mais longe lhe
parecia a idéia de uma representatividade. Rousseau considerava que o poder
soberano, cujo detentor primeiro é o povo, uno e indivisível, é totalmente atribuído
ao Estado, quando de sua constituição, não admitindo uma soberania divisível e que
o povo pudesse delegá-la a representantes escolhidos para o fim de substituí-lo na
tarefa única de decidir as questões do Estado.
Afirmo, pois, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode alienar-se, e que o soberano, que a nada é senão um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo. O poder pode transmitir-se; não, porém, a vontade. (ROUSSEAU, 1987, p. 40-43). A soberania não pode ser representada pela mesma razão que não pode ser alienada; consiste ela essencialmente na vontade geral e a vontade não se representa: ou é ela mesma ou algo diferente; não há meio termo. Os deputados do povo não são nem podem ser seus representantes, eles não são senão comissários; nada podem concluir em definitivo. Toda lei que o povo não haja pessoalmente ratificado é nula; não é lei. O povo inglês cuida que é livre, mas se engana bastante, pois unicamente o é quando elege os membros do parlamento: tanto que os elege, é escravo, não é nada, nos breves momentos de liberdade, o emprego que dela faz bem merece que a perca (ROUSSEAU, 1987, p. 107-108).
146
Rousseau (1987, p. 108) prossegue com sua exposição no tocante à
representação, estabelecendo uma distinção entre o Poder Legislativo e o Poder
Executivo. No primeiro, no que diz respeito à lei e à declaração da vontade geral, o
povo não pode ser representado; no segundo, que é a força aplicada à lei, o povo
não somente pode como deve ser representado.
Lastima, ainda, Rousseau, que nos grandes Estados, um de seus piores
inconvenientes seja o Poder Legislativo não se manifestar por si mesmo, o que gera
a corrupção presente nos corpos representativos. E que contra esse mal da
corrupção existem dois meios para suplantá-lo: a renovação freqüente das
assembléias, encurtando-se o mandato, e a submissão destes às instruções de seus
representados, a quem devem prestar contas de suas atividades.
Como se nota, a posição de Rousseau diante da possibilidade de
delegação de poderes do povo a um representante seria uma grande hipocrisia,
camuflando a verdadeira noção de democracia, em que o poder deveria ser exercido
por todos, através de instrumentos de intervenção direta nas decisões políticas.
Voltando-se para o Brasil e trazendo à tona uma idéia contemporânea
dessa crise anunciada por Rousseau, Raymundo Faoro (1976 apud BENEVIDES,
2003, p. 26), dentro de uma perspectiva de democracia como soberania popular,
expõe que
em última instância, a soberania popular não existe senão como farsa, escamoteação ou engodo [...]. O poder, a soberania nominalmente popular, tem donos que não emanam da Nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário.
No entendimento de Maria Victória Benevides (2003, p. 13)
a representação política – legítima e indispensável nas democracias modernas – é uma instituição deficiente para exprimir, com fidelidade, a vontade popular e a realização dos interesses do povo, na multiplicidade de suas manifestações.
147
A frase “os políticos são todos iguais” não sai da cabeça do povo em
virtude do descrédito da classe política. Os parlamentares e as próprias instituições
da democracia representativa, como os partidos políticos e o Poder Legislativo,
estão vivendo sob uma forte desconfiança da população.
Em virtude desse descrédito constante, o exercício dos direitos eleitorais
tem encontrado forte resistência junto à população, numa clara demonstração de
esgotamento do modelo democrático representativo. A crise da representação
política está presente, atualmente, nos estudos de vários autores brasileiros, como
Benevides, e de estrangeiros, significando um risco para os fundamentos basilares
da democracia.
Os eleitores deixaram de se sentir representados e exprimem tal sentimento ao denunciarem uma classe política cujo único objetivo seria seu próprio poder e, por vezes, até mesmo o enriquecimento pessoal de seus membros (TOURAINE, 1996, p. 18).
Além do Brasil, essa crise se apresenta em diversos países do mundo,
inclusive naqueles com longa tradição de lutas pela democracia, como França, Itália
e Alemanha, mas observada também em países de formação mais recente, como a
Austrália e os Estados Unidos da América.
Conforme dados apresentados por Müller (1999, p. 20), a crise na
democracia representativa norte-americana gera conseqüências graves.
Isso se expressa diretamente na participação tendencialmente decrescente nas eleições: na sua primeira eleição, Ronald Reagan tinha obtido os votos de menos de 30% dos eleitores, na sua segunda eleição, Bill Clinton tinha obtido mal 25% dos votos dos eleitores; e a participação nas eleições de 1994 para o Congresso Nacional dos EUA foi de 38%.
Nas eleições de 2000, o eleitor norte-americano demonstrou grande
desinteresse pelas eleições presidenciais. Pesquisas do “Centro de Imprensa,
Política e Políticas Públicas Joan Shorestein”, ligado à Escola de Governo John
148
Fitzgerald Kennedy, da Universidade de Harvard, mostravam, dias antes do pleito,
que 70% dos eleitores que não votavam e 67% dos que votavam manifestavam a
mesma opinião de que a campanha eleitoral era um teatro76.
Segundo Paulo Sérgio Pinheiro (1995, p. 19), as grandes democracias
mundiais, não só os EUA, passam por essa crise.
Nas grandes democracias, vale dizer, no G7, o Grupo dos Sete, as eleições revelam altos níveis de abstenção. Nas últimas eleições na França, chegou-se ao patamar de 50%, ou seja, metade dos votantes. Nos Estados Unidos, índices de 30, 40, 50% de abstenção são normais.
Outro país de secular tradição democrática, a Suíça, também demonstra
um esgotamento do modelo político representativo, o que fica claro mediante a
análise dos índices de participação da população em eleições para a escolha dos
membros do Conselho Nacional, uma das câmaras componentes da Assembléia
Federal Suíça. Em 1919, a taxa de comparecimento às eleições nacionais foi de
80,4% do eleitorado. Na de 1922, o índice caiu para 76,4%. Por muito tempo o
percentual se manteve nessa faixa, mas em 1959 os índices sofreram uma
considerável baixa para 68,5%. Desde então a queda foi constante e, conforme os
dados de 1983, a participação popular nas eleições foi de apenas 48,9% do total do
eleitorado (AUBERT, 1986, p. 253).
Internamente, Maria Victória Benevides (2003, p. 25), ressalta que “a
população brasileira, ontem como hoje, não se sente ‘bem representada’ no
Legislativo”. O eleitor brasileiro pode ser ignorante por acreditar num salvador da
pátria, mas pode também, por outro lado, ser politizado e participar de movimentos
populares na defesa de interesses coletivos. “Mas, decididamente, não confia nos
‘representantes do povo’. O que, sem dúvida, não é bom para a democracia”.
76 NASCIMENTO, Sandra. O desinteresse do eleitor americano. Gazeta Mercantil, São Paulo, p. A-3, 06 dez. 2000.
149
Prova disso são os índices brasileiros de abstenção eleitoral, próximos aos
dos demais países quanto ao seu percentual e gradual aumento, mas diferentes
quanto a um ponto: no Brasil o voto é obrigatório.
Em 1994, o Brasil tinha 94 782 803 eleitores. Nas eleições para Presidente
da República, Governadores de Estado, Senadores e Deputados Federais e
Estaduais, nas quais foi eleito Fernando Henrique Cardoso em 1° turno com 54,27%
dos votos (77 948 464 votos), o Tribunal Superior Eleitoral77 - TSE constatou uma
abstenção de 17,76%, correspondente a 16 824 339 eleitores, sendo que do total
dos votos computados 9,22% foram brancos (7 192 116 eleitores) e 9,55% foram
nulos (7 444 017 eleitores).
Durante as eleições para os mesmos cargos, em 1998, quando o País
tinha 106 101 067 eleitores, ficou constatada uma abstenção de quase 21,5% (22
803 294 eleitores). No mesmo pleito foi verificado que 8,03% dos votos foram
brancos (6 688 403 eleitores) e que 10,67% dos que votaram anularam seu voto (8
886 895 eleitores). Com isso, o candidato à Presidência da República eleito em 1º
turno, Fernando Henrique Cardoso, obteve 53,06% dos votos (83 297 773 votos) do
total de 106 101 167 eleitores registrados e habilitados a participarem do pleito.
Em 2002, nas últimas eleições para Presidente da República e para os
cargos acima mencionados, o Brasil tinha 115 253 447 de eleitores. Luis Inácio Lula
da Silva foi eleito em 2º turno com 61,27% dos votos, onde 79,53% do eleitorado
votaram (91 664 259 eleitores), sendo que 1,88% votou em branco (1 727 760
votos), 4,12% anulou o voto (3 772 138 votos) e 20,47% abstiveram-se de votar (23
589 188 eleitores).
77 Todos os dados referentes às eleições presidenciais e para o Governo do Estado da Bahia foram retirados do site do Tribunal Superior Eleitoral www.tse.gov.br , em 05 de maio de 2005.
150
Não foi diferente com as eleições para Governador no Estado da Bahia,
que em 1994 tinha 7 031 624 eleitores. Paulo Souto foi eleito em 2° turno com
58,64% de um total de 4 368 192 votos (62,12% do eleitorado), sendo que 1,73%
(75 722 votos) desses votos válidos foram brancos e 10,98% (479 768) foram nulos.
A abstenção foi de 37,88% (2 663 433 eleitores).
Com um eleitorado de 7 932 228, a Bahia em 1998 elegeu César Borges
para o Governo Estadual em 1º turno com 69,91% de um total de 5 406 422 votos
(68,16% do eleitorado), com 26,25% (1 419 238 votos) de brancos, 9,75% (527 326
votos) nulos e 31,84% (2 525 806 eleitores) de abstenções.
Por fim, nas eleições de 2002, a Bahia tinha 8 568 602 eleitores e foi eleito
Paulo Souto para Governador em 1º turno, com 53,69% dos votos válidos. Votaram
6 399 829 eleitores (74,69%), sendo que 4,88% (311 961 eleitores) votaram em
branco e 11,57% (740 409 eleitores) anularam o voto. A abstenção foi de 25,31% do
eleitorado (2 168 773 eleitores).
Portanto, com esse alto índice de abstenção, votos nulos e brancos
nessas três últimas eleições, perfazendo uma média de mais de 30% do eleitorado,
sem falar na escolha dos membros do Legislativo, uma vez que a média
abstencional circula em torno dos mesmos percentuais, nota-se que a população
esteve, está e provavelmente estará descrente com a classe de representantes e,
conseqüentemente, com a Democracia Representativa. Lembra-se, mais uma vez
que o voto no Brasil é obrigatório, havendo sanções para quem não participa do
pleito.
Segundo entendimento de Benevides (2003, p. 25),
as críticas mais moderadas à representação parlamentar apontam os vícios decorrentes de uma tradição oligárquica incontestável (o que levam a extrema “privatização” da política) e de defeitos inerentes à legislação, como a sub-representação dos Estados mais populosos e desenvolvidos. As críticas mais radicais apontam para o
151
que se convencionou chamar de verdadeiro “estelionato político”, decorrente da perversão da representação.
Para ela, além da descrença do povo na política e nos políticos, o
coronelismo, nas várias formas de clientelismo, o populismo, o sistema eleitoral
viciado e o abuso do poder econômico, em resumo, são os principais problemas da
representatividade política no Brasil, os quais chama de “males da representação”
(BENEVIDES, 2003, p. 25-26).
O coronelismo não aconteceu somente no passado, ele perdura até hoje.
Quando se observa o poder da situação política dominante detentora do erário, dos
empregos, dos favores, da força policial, oprimindo e subjugando a população, nota-
se claramente a sua presença, principalmente nas regiões rurais e menos
esclarecidas do País.
O clientelismo se refere à lealdade que a população tinha aos coronéis,
que persiste até hoje, tomando agora a forma de relação entre o Executivo e o
Legislativo. Os representantes legislativos passam a ser meros intermediários de
favores, de proteções e de exigências frente ao detentor de recursos e nomeações,
o Poder Executivo e aos financiadores de campanhas. Com isso, a representação
passa a ter um papel secundário (BENEVIDES, 2003, p. 29).
Essa questão do clientelismo, ainda para Benevides (2003, p. 30-31), traz
à baila “o papel dos partidos políticos como canais privilegiados da ligação entre o
Estado e a sociedade”. Ela critica aqueles que acham que para fazer política é
necessário entrar num partido, uma vez que, se é tarefa dos partidos o
encaminhamento de demandas e a representação de interesses, eles não são
detentores do monopólio da ação política democrática.
152
Benevides (2003, p. 29-30) traz também dentro de sua obra dois discursos
de políticos brasileiros acerca desse clientelismo que valem ser reproduzidos,
retirados dos Anais da Câmara de Deputados (ACD).
O Primeiro é de José Joffily, deputado paraibano, que em 20 de outubro
de 1961 disse:
Não é mistério para nenhum de nós que parcela ponderável da representação desta casa, a que pertencemos com tanta honra, mantém suas posições à custa da política de clientela, isto é, à custa daquela política que se faz em duas faixas: a faixa do emprego, dos favores pessoais, e a faixa de verbas que não têm primeira essencialidade no elenco dos problemas nacionais, mas têm primeira essencialidade diante do quadro municipal, e às vezes distrital, que vai decidir da sorte do Deputado, do Senador, do Vereador ou do Governador [...]. O orçamento, via de regra, é retrato de corpo inteiro dessa política de clientela, que nos transforma em despachantes de luxo.
O segundo é o de Tancredo Neves de 24 de julho de 1963:
O que é a República? República é representação. Mas quem fala em representação, fala em partidos, e quem fala em partidos fala em voto. E que é o voto no Brasil nos dias de hoje? É duro confessá-lo e mais duro ainda proclamá-lo: caminha celeremente para o descrédito, a desmoralização e o vilipêndio. Degradou-o a demagogia, corrompeu-o o poder econômico.
Para Benevides (2003, p. 25), ainda, uma das deficiências mais sentidas
na representação política no Brasil é a “total ausência de responsabilidade efetiva
dos representantes perante o povo”, existindo poucos mecanismos jurídicos para
sua cobrança, e que assim mesmo nunca são aplicados.
Dessa mesma maneira pensa J. J. Calmon de Passos78. Segundo ele o
representado passa pela seguinte situação:
tenho poder de eleger os que vão decidir, mas não participo das decisões nem tenho controle sobre elas, sem poder, inclusive, de
78 Palavras proferidas em aula sobre o tema “Democracia e constitucionalismo. A produção do direito num Estado de Direito Constitucional. A crise da democracia e do constitucionalismo. Reflexos nas funções legislativa e jurisdicional”, que faz parte do material fornecido pelo autor na disciplina “Teoria Geral do Processo”, do Mestrado em Direito Público da Universidade Federal da Bahia, em abril de 2005.
153
fiscalizar o exercício do mandato outorgado no tocante à sua fidelidade aos poderes conferidos. Trata-se quase de uma procuração em causa própria, mais uma alienação da vontade política que de seu exercício.
Entretanto, não só esses problemas vistos até agora provocam a crise na
democracia representativa. Outros favorecem ao agravamento da situação.
8.1.1 A Regra da Maioria
Afora todos os problemas já mencionados, outro que aparece com
bastante relevância é o desrespeito à regra da maioria, sendo um dos
procedimentos que melhor organizam as relações entre o Direito e a Democracia,
uma vez que é através dele que se mede a vontade popular e o governo das leis, a
partir de um critério de escolha da maior parte dos cidadãos. A democracia aqui é
estabelecida a partir do momento em que todos têm um mesmo poder de escolha,
que será tomada do consenso da maioria. Campilongo (2000, p. 16) dá uma
definição parcial e incompleta, mas com ciência das suas limitações de regra da
maioria.
A regra da maioria é uma técnica rápida de tomada de decisões coletivas que maximiza a liberdade individual e assegura a ampla e igual participação política dos cidadãos, aproximando governantes e governados por meio de uma prática social de legitimação eventual, finita no espaço e no tempo, que sujeita as decisões à contínua revisão e mantém a sociedade unida.
Entretanto, o dilema trazido pela regra da maioria se subscreve na idéia de
se questionar quem escolhe e quem decide nos processos trazidos pela democracia
representativa no caso do Brasil. A regra da maioria prevalece dentro do Brasil ou o
que se impõe, realmente, é a condução dos trabalhos legislativos dos
154
representantes do povo por uma minoria que dita os rumos do País: aqueles que
detêm o Poder Econômico?
Alejandro Serrano Caldera (1996, p. 100), ao examinar esses dilemas da
democracia, pontua que
a prática da democracia indica a todos que querem ver que se produziu uma separação entre a minoria governante e a maioria governada, entre os representantes e os supostamente representados e que o destino de um país se encontra nas mãos de um número significativamente reduzido de dirigentes políticos. O vértice, absolutamente minoritário, decide pelo resto da pirâmide. A conduta do corpo social, dirigida por uma cúpula cada vez mais reduzida (não importa o corpo de partidos políticos), é de confrontação ou de indiferença, não de participação, que é o que, na realidade, constitui a essência do ser e da prática da democracia.
Dentro dessa ótica, vale ressaltar o que isso se convencionou chamar de
uma “ditadura da minoria”, ou seja, uma ditadura implantada por meio de
deliberações tomadas por uma minoria esclarecida que impõe sua vontade sob a
aparência de uma decisão discutida e elaborada por toda a sociedade de forma
coletiva, embora, na realidade, o que prevalece são as idéias de um grupo
minoritário e poderoso que faz uso dos mecanismos dispostos à democracia de
forma indiscriminada.
Alexis de Tocqueville (1998, p. 294-323) se refere a esse problema
usando o termo “tirania da maioria” e alerta para os riscos de um governo
democrático pautado na “onipotência da maioria”, sem freios e sem limites para as
suas decisões.
Portanto, quando vejo concederem o direito e a faculdade de fazer tudo a uma força qualquer, seja ela chamada povo ou rei, democracia ou aristocracia, seja ela exercida numa monarquia ou numa república, digo: aí está o germe da tirania (TOCQUEVILLE, 1998, p. 296).
155
O resultado disso é a derrocada do princípio do respeito à vontade da
maioria, cujas bases morais, de acordo com Tocqueville (1998, p. 290-291), seriam:
há mais sabedoria em muitos homens reunidos do que num só; e os interesses da
maioria devem ter preferência sobre os da minoria.
Como complemento, Alvin e Heide Toffler79 (1997, p. 121) comungam da
idéia de que em algum futuro os historiadores
poderão olhar para trás e considerar o voto e a procura de maiorias como um ritual arcaico seguido por primitivos em termos de comunicação. Hoje, entretanto, em um mundo perigoso, não podemos abrir mão nem mesmo da fraca influência popular que existe nos sistemas majoritários e não podemos permitir que as minorias tomem vastas decisões que tiranizem todas as demais minorias.
Portanto, nota-se que a implantação plena da vontade da maioria, base
de sustentação da Democracia Representativa, foi suplantada pela vontade de
grupos específicos, notadamente a classe com maior poder, seja ele econômico ou
outro qualquer, os chamados “Grupos de Pressão”.
Essa minoria são os grupos sociais que, para satisfazer interesses
próprios, procuram obter determinadas medidas dos Poderes do Estado e influenciar
a opinião pública. Em conseqüência, tais grupos intimidam os governantes que
passam a seguir suas instruções, defendendo seus interesses em detrimento dos da
coletividade.
79 Esses são os autores do livro intitulado de “A Terceira Onda”, de 1980, onde expõem a idéia de que a humanidade passou por várias mudanças chamadas de Primeira, Secunda e Terceira Ondas. Onde a primeira mudança se refere à revolução agrícola, que levou milhares de anos para se esgotar; a segunda se refere ao advento da revolução industrial, que levou apenas cem anos; e a terceira à revolução da informação, sendo esta a “mais profunda convulsão social e reestruturação criativa de todos os tempos” (TOFFLER, 1997, p. 19). Nesta última, eles colocam a revolução da informação numa perspectiva histórica, comparando-a com as outras duas grandes revoluções referidas, e fazem
156
8.1.2 Os Partidos Políticos e os Grupos de Pressão
Bonavides (2000, p. 426 e 429) expõe que os interesses coletivos, em
busca de representação, servem-se de dois canais para chegarem até ao Estado:
dos partidos políticos e dos grupos de pressão.
Para ele tantos os partidos políticos quanto os grupos de pressão têm
como característica comum serem categorias interpostas entre o cidadão e o
Estado, servindo como ponte entre ambos. Mas alguns traços distintivos os
diferenciam, como: a) o caráter permanente dos partidos e transitório dos grupos de
pressão; b) a perspectiva política global dos partidos e a perspectiva parcial dos
grupos de pressão; c) o envolvimento dos partidos para o interesse geral e dos
grupos para interesses particulares; d) a existência de responsabilidade política
definida em um programa exposto à publicidade dos partidos e a inexistência de
responsabilidade dos grupos.
Antes de definir grupos de pressão, porém, Bonavides (2000, p. 427) faz
questão de distingui-los de “grupos de interesses”, alertando que os primeiros
derivam destes. Para ele “os grupos de interesses podem existir organizados e
ativos sem contudo exercerem a pressão política. São potencialmente grupos de
pressão e constituem o gênero do qual os grupos vêm a ser a espécie”. Grupo de
pressão, entretanto, “se define em verdade pelo exercício de influência sobre o
poder político para obtenção eventual de uma determinada medida de governo que
lhe favoreça os interesses”.
Para aquele que acha que a ação dos grupos de pressão sobre o
processo político é um fato recente na história da humanidade, privativo do século
referência à interferência das mudanças implementadas pela Terceira Onda dentro da política, campanhas políticas e operações governamentais.
157
XX ou XXI, engana-se redondamente. Murillo Aragão (1994, p. 18), citando Karl
Deutsch, menciona que os antigos reinos nos vales dos rios da Índia, Mesopotâmia
e Egito permitiram dois grupos de pressão: guerreiros e sacerdotes. Os guerreiros
pretendiam se tornar nobres e os sacerdotes aspiravam ser proprietários de terras.
Durante o século XIX, dentro do Welfare State, outros exemplos de
grupos de pressão também aparecem, em virtude do aumento da esfera de
competência dos poderes públicos, que gera uma maior dependência dos
governados em relação ao Estado. Com isso, há um aumento significativo dos
grupos de pressão, tentando defender seus interesses perante o Estado ou através
de influência sobre ele.
No que diz respeito ao Brasil, a atuação dos grupos de pressão sobre o
Poder Legislativo é comprovada, também, desde o século XIX, também. Mário
Augusto Santos (1991, p. 16) salienta que a Associação Comercial da Bahia,
entidade fundada em 1811, atuou em defesa de diversos interesses de seus
associados junto ao Congresso Nacional, durante a Primeira República.
A identificação dos grupos de pressão não é facilmente obtida. Alguns
autores preferem identificá-los segundo a ordem dos seus interesses, distinguindo
os que se ocupam de vantagens materiais e os que propõem fins menos egoístas,
de âmbito moral ou ideológico. Outros entendem que os grupos podem ser
identificados segundo a sua técnica de ação, ou seja, segundo os métodos
empregados por ele para alcançar os resultados propostos. Embora haja essa
distinção, o certo é que o que vem prevalecendo dentro do processo político
brasileiro é a superposição dos grupos que buscam vantagens particulares em
detrimento daqueles que visam ao interesse coletivo.
158
O grande problema causado pelos grupos de pressão recai sobre a
ausência de regulamentação na atuação desses grupos no Parlamento e nos outros
órgãos do Governo. Nem a legislação ordinária, tampouco a Constituição Federal
aloja nos seus teores qualquer nota remissiva aos grupos de pressão, deixando-os à
vontade para agir. O resultado disso, portanto, é a geração de grave perigo à
democracia representativa e aos partidos políticos.
Os EUA, em 1946, introduziram em suas leis a matéria sobre a
institucionalização dos grupos de pressão com o Federal Regulation of Lobbying Act,
disciplinando pela primeira vez a atividade dos grupos de pressão, que já atuavam,
há muito tempo, junto ao Congresso norte-americano, debaixo das seguintes
denominações: lobby80, ou seja, o grupo organizado, lobbying, o método de ação
empregado e lobbyisten, as pessoas que se entregam a esse gênero de atuação
política. Essa lei reconheceu como legítimo os trabalhos dos grupos de interesses
realizados pelos lobbyisten, trazendo uma série de disposições restritivas, como a
obrigação de registro das pessoas que atuavam nisso na Câmara dos
Representantes e na Secretaria do Senado e a revelação da origem das somas
empregadas no exercício de influência, bem como dar publicidade dos propósitos
dos grupos e das quantias gastas com o ato (BONAVIDES, 2000, p. 435). Todavia,
mesmo com a implementação dessa lei, a prática do lobby feita de forma irregular
continua acontecendo nesse País, o que garante a subida ao poder daqueles que
interessam aos grupos de pressão.
Apesar da paridade de objetivos dos partidos políticos e dos grupos de
pressão, uma vez que são, ambos, pontes que ligam o cidadão e o Estado, autores
80 O termo lobby é de origem norte-americana e já é empregado em outros países como o Brasil. Literalmente, significa a parte de um prédio que se encontra aberta ao público, “antecâmara”, “corredor”, “vestíbulo”, evocando o local da casa legislativa onde os agentes dos grupos de pressão buscavam estabelecer contato ou audiência com os congressistas (BONAVIDES, 2000, p. 434-435).
159
mais modernos advertem para o declínio e a morte dos partidos políticos com a
ascensão dos grupos de pressão.
Munro há cerca de meio século já os batizara de “governo invisível”. Truman entende que eles são os “verdadeiros” sujeitos da ação política. Outros publicistas, exprimindo as mesmas apreensões, vêem nos grupos a imagem de “Estados dentro do Estado” ou chegam ao ponto de asseverar, conforme ressalta Kruger, que o Estado e seus órgãos já sucumbiram ao assalto dessas formações (Bonavides, 2000 , p. 427).
A Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 17, regulamentou os
partidos políticos como instrumentos necessários para a preservação do Estado
Democrático de Direito, assegurando-os autonomia para definir a sua estrutura
interna, organização e funcionamento.
No entanto, a crise do sistema representativo está ligada à crise desses
partidos, apresentando vários problemas como o da falta de imposição majoritária de
suas idéias em respeito e consonância à vontade da maioria, causando, como já
dito, um grande descrédito da população em relação aos seus representantes no
parlamento.
Outros problemas ligados à democracia de partidos vêm do sistema
eleitoral brasileiro e seu desvirtuamento da proporcionalidade; da questão da
fidelidade partidária; do financiamento de campanha.
A proporcionalidade da representação tem o objetivo de assegurar a cada
partido a perfeita correspondência de sua força numérica na sociedade dentro do
Poder Legislativo.
No entanto, o sistema eleitoral brasileiro gera um importante problema
dentro dessa perspectiva: a proporcionalidade, baseada no quociente eleitoral e no
quociente partidário, na verdade, gera nas eleições do Poder Legislativo uma
verdadeira desproporção, fazendo com que nem sempre aqueles que assumem
160
seus lugares nas casas legislativas sejam, realmente, os que obtiveram mais votos
nas eleições. Veja o exemplo do Deputado Federal paulista Enéas nas eleições de
2002, quando, em virtude da quantidade de votos obtidos por ele e,
conseqüentemente, para a sua legenda, levou consigo para o Congresso Nacional
deputados de seu partido, o PRONA, que obtiveram insignificante votação dentro do
universo de votos de outros candidatos. Daí o surgimento da dúvida se o que é
estabelecido pelo sistema eleitoral brasileiro reflete a verdadeira idéia de democracia
representativa, uma vez que essa distorção democrática provoca um distanciamento
entre a vontade expressa pelo Parlamento e a vontade da maioria popular.
As democracias parlamentares européias são construídas sobre uma
sólida base partidária: como no parlamentarismo pluripartidário com partidos
políticos fortes e ideológicos com governos de coalizão; no parlamentarismo
bipartidário como o da Inglaterra; e no parlamentarismo multipartidário com diversos
partidos políticos.
O sistema parlamentarista pode ser um sistema extremamente
democrático se todos os seus pressupostos de implementação estiverem presentes,
como: partidos políticos fortes e ideológicos; fidelidade partidária; cultura política e
sistema eleitoral que permitam que os eleitores votem na proposta de governo e não
em pessoas.
Mesmo que não seja adotado no Brasil um sistema parlamentar, a
existência de partidos políticos fortes, com fidelidade partidária e um programa
definido, é fundamental para a democracia representativa.
A fidelidade partidária aparece como outro problema da
representatividade, já que após as eleições ocorre com freqüência o total
desligamento do parlamentar de seu partido político e de sua conjuntura ideológica
161
acontecendo, muitas vezes, uma inversão de ideologia de extrema direita para outra
de extrema esquerda. Ou seja, a troca de partidos, sem sanções, feita pelos
representantes virou um hábito, causando instabilidade dentro das estruturas
partidárias e das próprias casas parlamentares.
Por fim, a falta de uma legislação apropriada para a obtenção de
financiamento de campanhas políticas no Brasil gera outro problema para a
democracia representativa: o financiamento proporcionado pelo setor privado
dificulta o controle e causa inevitavelmente o fortalecimento do poder econômico no
resultado das eleições, voltando à idéia do clientelismo e de uma representação
política de minoria poderosa e privilegiada.
O grande exemplo disso é o que acontece nos Estados Unidos da
América do Norte. O financiamento privado e sem teto de gastos no
presidencialismo norte-americano é visto como um dos mecanismos que
caracterizam o sofisticado sistema de filtros, que perpetuam o poder nas mãos do
poder econômico por detrás dos dois grandes partidos – o Republicano e o
Democrático – que representam, na verdade, os mesmos interesses e o mesmo
projeto de poder econômico e dominação global. Lá é praticamente impossível que
um projeto alternativo e uma candidatura estranha ao sistema chegue à Casa
Branca. A democracia norte-americana nos níveis federal e estadual é meramente
formal e aparente (MAGALHÃES, 2002, p. 14).
Nas palavras de Calmon de Passos81: “os representantes dos cidadãos
representam mais os interesses de seus financiadores que os interesses de seus
eleitores”.
81 Palavras proferidas em aula sobre o tema “Democracia e constitucionalismo. A produção do direito num Estado de Direito Constitucional. A crise da democracia e do constitucionalismo. Reflexos nas funções legislativa e jurisdicional”, que faz parte do material fornecido pelo autor na disciplina “Teoria
162
Com tudo isto, os partidos políticos deixam de constituir-se no mais
importante veículo de coleta das aspirações populares e direcionador das decisões
políticas do Estado, abrindo espaço, cada vez mais, para a atuação dos grupos de
pressão, que passam por um crescimento quantitativo e qualitativo surpreendente.
F. Badia (1987, p. 19) ressalta que
os grupos de interesse e de promoção crescem cada dia mais. Ora, todo grupo de interesse ou de promoção que veja prejudicada a sua razão de ser e seus objetivos por causa de extra-limitações do poder público ou da prepotência de outros grupos de sua espécie, e que não ache meios adequados de participação política e social para defender os seus interesses e as suas causas, ver-se-á obrigado a influenciar diretamente sobre as instituições do Estado, para salvaguardar seus objetivos próprios ou, então, influenciar indiretamente sobre a opinião pública, tornando-se dessa forma – e circunstancialmente – um grupo de pressão.
Chega-se à conclusão de que hoje em dia a importância dos grupos de
pressão aumentou tanto que não há nenhum exagero em afirmar que são parte da
Constituição viva ou da Constituição material, tanto quanto os partidos políticos, mas
independente de toda institucionalização ou reconhecimento formal nos textos
jurídicos (BONAVIDES, 2000 , p. 428).
Na Alemanha, em debate realizado em 1987 sobre a crise da democracia,
ficaram constatadas algumas causas da deterioração da representação: a) a
corrosão de referências morais e ideológicas na definição de direitos e deveres dos
cidadãos; b) na transformação da representação em mera representação de
interesses e em mera troca de serviços entre representante e representado; c) a
dupla lealdade dos partidos políticos, aos seus eleitores e aos poderes instituídos; d)
a manipulação do medo em troca de proteção, em virtude da propaganda do caos,
do terrorismo, do desemprego, da inflação, do desastre ecológico etc; e) a
Geral do Processo”, do Mestrado em Direito Público da Universidade Federal da Bahia, em abril de 2005.
163
incompetência dos representantes. Constatando-se, assim, quase todos os motivos
da derrocada da democracia representativa acima expostos.
8.2 LIMITAÇÕES AOS INSTITUTOS DA DEMOCRACIA DIRETA
A idéia de Müller de povo ativo presente em votações reforça a
participação popular nos processos de formação nacional na sua parte específica da
Democracia direta. Essa parte encontra-se na Constituição Federal de 1988, quando
aborda sobre os institutos da democracia semidireta: o plebiscito, o referendo e a
iniciativa popular.
Os três institutos, no entanto, dentro do que é estabelecido na
Constituição Federal de 1988, nas Constituições estaduais e em lei
infraconstitucional, possuem inúmeras limitações que os tornam ineficazes. O que
faz com que a sua utilização efetiva no Brasil se restrinja a quase nada, quando
comparada ao que se fez e ao que se faz, em relação à participação na formação da
vontade nacional marcada pela atuação do poder público, principalmente na esfera
do Poder Executivo.
8.2.1 Limitações à Iniciativa Popular
A iniciativa popular é a manifestação direta do povo na elaboração das
leis federais ordinárias ou mesmo complementares, como dispõe o art. 61, §2º da
Constituição Federal, bem como na hipótese de legislação municipal ou estadual,
como expõem os arts. 27, §4º e 29, XIII, também da CF.
164
Nessas observações iniciais, notam-se as primeiras limitações impostas
pelo ordenamento aos institutos de participação direta da população. O art. 61, em
seu §2º, impõe que a proposta de iniciativa popular deverá ser subscrita, no mínimo,
por um por cento do eleitorado nacional e que estes eleitores estejam distribuídos
em pelo menos cinco Estados brasileiros, cuja manifestação por Estado não seja
inferior a três décimos por cento do eleitorado.
[...] a iniciativa popular, tal como prevista no art. 61, § 2º, da Constituição Federal, demonstra-se mais um óbice do que a concretização desse instrumento democrático. É o que se verifica da sua redação: [...]. Essa fórmula deverá ser simplificada, a fim de possibilitar ao cidadão o efetivo acesso à função legislativa, realizando a mens legis, obstaculizada por uma redação impermeável à idéia democrática da participação, no caso, do exercício do poder de elaboração das leis (GARCIA, 1997, apud DUARTE NETO, 2005, p. 130).
Esse dispositivo constitucional não vem tendo a efetividade que deveria. O
primeiro motivo se deve às dificuldades práticas do recolhimento de quase um
milhão de assinaturas, por cinco Estados. Em 1989, essa exigência significava que
qualquer proposta de iniciativa popular, no plano federal, exigiria um mínimo de 820
mil assinaturas, para um eleitorado de aproximadamente 82 milhões. Hoje, com um
eleitorado de aproximadamente 115 milhões de pessoas, a quantidade de
assinaturas necessárias subiria para cerca de 1,15 milhão
de assinaturas. Outro problema de ordem formal diz respeito à própria coleta de
assinaturas. Como recolhê-las? Quem recolhe as assinaturas pode receber por
isso? Quem controla a autenticidade das assinaturas? Deve haver fiscalização dos
partidos políticos, de entidades privadas ou do Poder Judiciário? Mas tais perguntas
não foram esclarecidas pelo ordenamento pátrio.
165
O segundo motivo decorre do primeiro, porque é muito mais fácil e barato
obter um “apadrinhamento” de um representante do legislativo federal e, com isso,
cair , mais uma vez, no problema da representatividade.
Além dessa limitação formal aparente, impende analisar ainda os limites
materiais a esse instituto. Quais as matérias que os cidadãos poderiam propor
projetos, ou sobre quais eles não o poderiam fazer? No entanto, nessa seara, o
constituinte e o legislador ordinário foram omissos.
Mas, retornando a limitação formal, vale ressaltar que, com o passar dos
anos, desde a promulgação da Constituição de 1988, poucos são os projetos que
contaram com a mobilização popular, e que desse modo chegaram à Câmara dos
Deputados.
São apenas três os projetos de iniciativa popular apresentados ao
Parlamento em quase duas décadas de história da Constituição vigente.
LEGISLAÇÃO FEDERAL
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1988* 35 2 0 0 37
1989 276 3 0 0 279
1990 166 2 0 0 168
1991 238 6 0 0 244
1992 222 1 2 0 225
1993 225 7 2 1 235
1994 131 3 0 0 134
1995 281 2 5 0 288
1996 177 5 6 0 188
1997 169 4 2 0 175
1998 178 3 3 0 184
1999 175 5 4 1 185
2000 218 3 7 0 228
2001 230 10 4 0 244
2002 237 2 4 0 243
2003 197 1 3 0 201
2004 252 1 3 0 256
2005** 99 1 3 0 103
Total 3471 61 48 2 3583 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.senado.gov.br Senado Federal
166
Em: 23.05.2005 * Levantamento feito a partir de 10/05/1988 (Constituição Federal) ** Levantamento atualizado em 19/10/2005
A primeira proposta de projeto de iniciativa popular foi apresentada em 19
de janeiro de 1992, sob o n. 2710/92. Esse projeto tem como co-autor o Deputado
Nilmário Miranda (PT-MG) e pretende a criação de um Fundo Nacional de Moradia
Popular, objetivando garantir a quem ganha até cinco salários mínimos recursos
para a construção, compra ou reforma da casa própria, arrendamentos de unidades
habitacionais, urbanização, saneamento básico e mesmo aquisição de materiais de
construção, já que o Brasil tem um déficit habitacional de sete milhões de moradias.
Os recursos do fundo serão distribuídos de forma descentralizada aos Estados e aos
Municípios, que terão de oferecer contrapartida na forma de recursos financeiros,
bens imóveis ou serviços vinculados aos empreendimentos habitacionais. Fica
também instituído o Sistema Nacional de Habitação de Interesses Sociais (SNHIS),
que centralizará todos os programas e projetos destinados a habitações populares
por meio da articulação entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
A proposta contava com mais de 800 mil assinaturas, distribuídas por
dezoito Estados. Foi admitido pela Mesa do Senado, que teve de superar o
obstáculo da autenticidade das firmas. Oficiou-se o Tribunal Superior Eleitoral - TSE
para que, por amostragem, conferisse a situação eleitoral dos subscritos. Contudo, a
Justiça Eleitoral ficou impossibilitada de cumprir a tarefa, pela falta de um cadastro
nacional integral. Mas, apesar disso, o projeto foi admitido e enviado para as
Comissões. Sua redação final foi aprovada pela Câmara dos Deputados em 03 de
junho de 2004 e posteriormente teve seu texto enviado ao Senado (09 de junho de
2004), onde ainda encontra-se tramitando.
167
O segundo projeto de iniciativa popular foi apresentado em 09 de
setembro de 1993, sob o n. 4.146/93, encabeçado pela dramaturga Glória Perez,
depois da ocorrência do trágico assassinato de sua filha, a atriz Daniela Perez, pelo
também ator Guilherme de Pádua. O projeto que tinha o apoio da classe artística,
dos meios de comunicação e da população em geral tinha o objetivo de dar nova
redação ao art. 1º da Lei n. 8.072/90, que dispõe sobre os crimes hediondos, que
passaria a incluir o homicídio qualificado no rol dos crimes por ela estabelecidos.
Sua tramitação foi bastante rápida, em vista do projeto anteriormente citado, já que
em 06 de setembro de 1994 o projeto foi transformado na Lei n. 8.930.
O terceiro projeto foi apresentado no ano de 1999, respaldado por um
milhão de assinaturas, sob o n. 1.517, com a participação da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB). Objetivava combater a corrupção eleitoral, alterando
dispositivos da Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997, e da Lei n. 4.737, de 15 de
julho de 1965 (Código Eleitoral). Em 28 de setembro de 1999 o projeto foi
transformado na Lei n. 9.840.
No âmbito federal, o Brasil tem cerca de 3.512 leis, entre ordinárias,
complementares e emendas à Constituição, sendo que apenas 3 foram propostas
por iniciativa popular, insignificantes 0,085% do total, ou seja, nada.
Nas esferas municipal e estadual, a iniciativa popular não está longe do
que acontece na federal. O art. 29, XIII, que se refere aos municípios, expõe que a
iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade
ou de bairros, se dará através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do
eleitorado; já o art. 27, §4º se reporta à necessidade de lei que disporá sobre a
iniciativa popular no processo legislativo estadual. Gerando, assim, problemas da
mesma ordem dos projetos para o legislativo federal.
168
O reflexo dessas limitações está claramente demonstrado na quantidade
de leis estaduais e emendas às constituições dos Estados da Federação que
tenham sido propostas por iniciativa popular.
Na Região Norte do Brasil ainda não há projetos de iniciativa popular
transformados em lei. A única proposta estava no Estado do Pará, mas já foi
arquivada. Esse Projeto de Emenda Constitucional, com origem externa (iniciativa
popular), inscrito sob o n. 03/98, visava isentar portadores de deficiência, com
dificuldade de locomoção, de tarifa dos transportes coletivos, rodoviários e
aquaviários.
ESTADO DO PARÁ
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 21 0 0 0 21
1990 52 5 0 0 57
1991 78 3 0 0 81
1992 20 2 0 0 22
1993 63 4 1 0 68
1994 88 12 0 0 100
1995 50 4 2 0 56
1996 83 1 4 0 88
1997 83 3 5 0 91
1998 82 2 1 0 85
1999 98 0 3 0 101
2000 68 1 1 0 70
2001 83 1 1 0 85
2002 93 5 0 0 98
2003 89 2 5 0 96
2004 94 3 5 0 102
2005** 51 1 2 0 54
Total 1196 49 30 0 1275 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.alepa.pa.gov.br Assembléia Legislativa do Pará Em: 02.05.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
ESTADO DO AMAZONAS
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 17 1 0 0 18
1990 76 1 1 0 78
1991 91 2 9 0 102
1992 72 2 1 0 75
1993 89 2 1 0 92
1994 58 2 2 0 62
169
1995 52 2 8 0 62
1996 58 1 2 0 61
1997 49 3 4 0 56
1998 44 1 7 0 52
1999 61 2 1 0 64
2000 42 4 1 0 47
2001 86 6 1 0 93
2002 66 0 2 0 68
2003 89 0 4 0 93
2004 70 8 5 0 83
2005** 45 5 4 0 13
Total 1065 42 53 0 1160
ESTADO DE RORAIMA
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989
1990
1991* 14 0 0 0 14
1992 21 1 0 0 22
1993 26 1 1 0 28
1994 27 8 1 0 36
1995 36 5 1 0 42
1996 38 5 1 0 44
1997 25 1 1 0 27
1998 35 6 0 0 41
1999 27 7 2 0 36
2000 32 4 1 0 37
2001 42 17 3 0 62
2002 34 6 2 0 42
2003 49 9 1 0 59
2004 25 2 0 0 27
2005** 17 1 0 0 18
Total 448 73 14 0 535 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.al.rr.gov.br Assembléia Legislativa de Roraima Em: 14.04.2005 * Levantamento feito a partir de 31/12/1991 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 19/10/2005
ESTADO DO TOCANTINS
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 42 0 1 0 43
1990 44 2 0 0 46
1991 56 0 2 0 58
1992 115 3 1 0 119
1993 93 0 0 0 93
1994 54 1 0 0 55
1995 44 2 0 0 46
LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.aleam.gov.br Assembléia Legislativa do Amazonas Em: 05.05.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
170
1996 33 3 0 0 36
1997 38 1 1 0 40
1998 56 6 2 0 64
1999 35 4 1 0 40
2000 55 3 1 0 59
2001 84 3 3 0 90
2002 40 5 1 0 46
2003 60 1 1 0 62
2004 114 5 0 0 119
2005** 68 0 0 0 68
Total 1031 39 14 0 1084 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.al.to.gov.br Assembléia Legislativa do Tocantins Em: 14.04.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
ESTADO DO AMAPÁ
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989
1990
1991* 0 0 0 0 0
1992 53 3 0 0 56
1993 89 1 0 0 90
1994 53 5 1 0 59
1995 65 1 3 0 69
1996 65 4 4 0 73
1997 82 1 2 0 85
1998 35 0 1 0 36
1999 53 1 3 0 57
2000 99 0 7 0 106
2001 50 0 4 0 54
2002 83 4 4 0 91
2003 68 3 2 0 73
2004 68 4 1 0 73
2005** 22 2 2 0 26
Total 885 29 34 0 948 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.al.ap.gov.br Assembléia Legislativa do Amapá Em: 09.05.2005 * Levantamento feito a partir de 20/12/1991 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 19/10/2005
ESTADO DE RONDÔNIA
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 21 1 0 0 22
1990 47 10 1 0 58
1991 55 13 1 0 69
1992 99 18 1 0 118
1993 90 35 1 0 126
1994 54 21 0 0 75
1995 48 19 0 0 67
171
1996 57 23 2 0 82
1997 63 33 1 0 97
1998 25 9 1 0 35
1999 83 11 11 0 105
2000 86 19 0 105
2001 66 8 4 0 78
2002 141 17 1 0 159
2003 11 21 0 0 32
2004 131 14 0 0 145
2005** 37 1 0 0 38
Total 1114 273 24 0 1411 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emenda Constitucional / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.ale.ro.gov.br Assembléia Legislativa de Rondônia Em: 03.05.2005 * Levantamento feito a partir de 28/09/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
A maioria esmagadora das leis ordinárias promulgadas nessa Região
expõe sobre a instituição de datas comemorativas, sobre declaração de utilidade
pública de instituições e sobre indicações de nomes para prédios públicos.
Com os Estados da Região Centro-Oeste do Brasil e no Distrito Federal a
iniciativa popular de leis é utilizada com a mesma intensidade, ou seja, nos Estados
de Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso não há leis que tenham advindo de
iniciativa popular.
Segundo a Agência de Notícias do Legislativo - ANL da Assembléia
Legislativa do Mato Grosso do Sul, as entidades e a população procuram os
gabinetes dos parlamentares para obterem orientações, e a assessoria do deputado
se encarrega de formular a lei com seu aval. O Deputado Paulo Tadeu, Ouvidor
Legislativo da Câmara Legislativa do Distrito Federal, também informa que não há
registros de lei ordinária, complementar ou emenda constitucional de iniciativa
popular, após a promulgação da Lei Orgânica de 1993 (informação documental por
meio de mensagem eletrônica).
172
ESTADO DE GOIÁS
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 114 1 0 0 115
1990 296 3 1 0 300
1991 273 5 2 0 280
1992 221 4 2 0 227
1993 349 1 0 0 350
1994 313 0 4 0 317
1995 288 4 2 0 294
1996 189 2 3 0 194
1997 210 2 7 0 219
1998 121 4 1 0 217
1999 138 1 2 0 141
2000 201 5 1 0 207
2001 295 3 5 0 303
2002 308 2 1 0 311
2003 267 8 3 0 278
2004 423 4 2 0 429
2005** 345 5 1 0 351
Total 4442 54 37 0 4533
ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 50 2 0 0 52
1990 104 2 0 0 106
1991 134 0 0 0 134
1992 101 0 0 0 101
1993 121 1 0 0 122
1994 84 1 0 0 85
1995 87 0 0 0 87
1996 81 2 0 0 83
1997 89 1 0 0 90
1998 121 1 0 0 122
1999 126 4 2 0 132
2000 142 4 0 0 146
2001 185 7 3 0 195
2002 210 4 3 0 217
2003 192 3 1 0 196
2004 178 4 0 0 182
2005** 120 1 2 0 123
Total 2125 37 11 0 2173 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.al.ms.gov.br Assembléia Legislativa do Mato Grosso do Sul Em: 10.05.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.assembleia.go.gov.br Assembléia Legislativa de Goiás Em: 09.05.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
173
ESTADO DO MATO GROSSO
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 52 0 0 0 52
1990 159 7 0 0 166
1991 199 4 2 0 205
1992 240 14 1 0 255
1993 216 5 5 0 226
1994 233 3 1 0 237
1995 109 7 1 0 117
1996 114 3 1 0 118
1997 132 1 0 0 133
1998 118 11 2 0 131
1999 143 11 2 0 156
2000 139 15 3 0 157
2001 213 18 1 0 232
2002 262 20 1 0 283
2003 183 30 3 0 216
2004 226 58 8 0 292
2005** 79 13 5 0 97
Total 2817 220 36 0 3073 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.al.mt.gov.br Assembléia Legislativa do Mato Grosso Em: 09.05.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
DISTRITO FEDERAL
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989
1990
1991
1992
1993* 112 0 0 0 112
1994 209 4 1 0 214
1995 152 4 2 0 158
1996 366 7 10 0 383
1997 450 40 10 0 500
1998 403 130 3 0 536
1999 241 88 6 0 335
2000 140 67 1 0 208
2001 209 94 2 0 305
2002 253 245 5 0 503
2003 161 10 0 0 171
2004 239 11 1 0 251
2005** 148 7 1 0 156
Total 3083 707 41 0 3832 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.cl.df.gov.br Câmara Legislativa do Distrito Federal Em: 23.05.2005 * Levantamento feito a partir de 09/06/1993 (Lei Orgânica) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
174
O Rio Grande do Sul, como representante nos levantamentos da Região
Sul do País, também não possui registro de lei estadual criada através de iniciativa
popular.
RIO GRANDE DO SUL
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 58 0 0 0 58
1990 208 9 0 0 217
1991 301 4 1 0 306
1992 312 3 2 0 317
1993 239 0 1 0 240
1994 301 8 2 0 311
1995 317 2 7 0 326
1996 224 12 0 0 236
1997 158 6 9 0 173
1998 216 10 2 0 228
1999 104 5 3 0 112
2000 162 5 0 0 167
2001 143 5 2 0 150
2002 156 10 5 0 171
2003 171 9 6 0 186
2004 153 6 7 0 166
2005** 115 4 3 0 122
Total 3338 98 50 0 3486
O Sudeste é a região do País que possui o maior número de projetos de
lei de iniciativa popular, embora somente um deles tenha se transformado
efetivamente em lei e ainda esteja em vigor.
Os Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro não contribuíram com esse
ranking. Somente os Estados do Espírito Santo e de Minas Gerais possuem projetos
de iniciativa popular.
LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.al.rs.gov.br Em: 23.05.2005 Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul * Levantamento feito a partir de 03/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
175
ESTADO DE SÃO PAULO
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 140 14 0 0 154
1990 376 7 1 0 384
1991 658 21 0 0 679
1992 544 28 0 0 572
1993 342 44 0 0 386
1994 508 45 0 0 553
1995 278 16 1 0 295
1996 141 17 2 0 160
1997 428 17 0 0 445
1998 294 16 2 0 312
1999 295 7 2 0 304
2000 216 28 1 0 245
2001 316 19 4 0 339
2002 306 27 3 0 336
2003 284 17 0 0 301
2004 200 12 3 0 215
2005** 316 12 1 0 329
Total 5642 347 20 0 6009 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.al.sp.gov.br Assembléia Legislativa de São Paulo Em: 17.05.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 58 1 0 0 59
1990 183 14 0 0 197
1991 166 4 4 0 174
1992 106 1 1 0 108
1993 156 3 0 0 159
1994 167 1 1 0 169
1995 127 2 0 0 129
1996 160 4 0 0 164
1997 218 3 0 0 221
1998 281 3 4 0 288
1999 188 1 2 0 191
2000 174 4 4 0 182
2001 225 6 7 0 238
2002 310 4 5 0 319
2003 202 2 4 0 208
2004 223 1 1 0 225
2005** 141 1 1 0 143
Total 3085 55 34 0 3174 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.alerj.rj.gov.br Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro Em: 10.05.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
176
No Espírito Santo houve um projeto de lei de iniciativa popular (n. 124/98)
que se transformou na Lei n. 5.743 de 20 de outubro de 1998, que teve o meio
ambiente como matéria e tinha como ementa: ”Institui a consulta plebiscitária sobre
saneamento básico e dá outras providências”. Essa lei dispunha que a concessão à
iniciativa privada dos serviços de fornecimento de água potável, de coleta,
tratamento e disposição de esgoto sanitário e domiciliar no Espírito Santo, seria
objeto de prévia consulta popular sob a forma de plebiscito. Acontece que tal lei só
vigorou por oito dias, quando foi expressamente revogada pela Lei n. 5.749 de 28 de
outubro de 1998, através do projeto n. 202/98, de iniciativa do então Governador do
Estado Vitor Buaiz. Portanto, um dos poucos exemplos de lei de iniciativa popular
promulgadas no Brasil teve “morte” prematura.
ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 57 0 0 0 57
1990 185 9 3 0 197
1991 122 0 0 0 122
1992 118 21 0 0 139
1993 139 13 2 0 154
1994 146 14 1 0 161
1995 161 15 1 0 177
1996 195 20 4 0 219
1997 201 19 1 0 221
1998 254 25 4 0 283
1999 243 37 9 0 289
2000 495 22 4 0 521
2001 481 28 7 0 516
2002 401 36 3 0 440
2003 262 20 7 0 289
2004 263 29 2 0 294
2005** 253 17 0 0 270
Total 3976 325 48 0 4349 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.al.es.gov.br Assembléia Legislativa do Espírito Santo Em: 16.05.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
177
Minas Gerais é um dos Estados com maior contingente legal e é também
o que possui maior quantidade de projetos de iniciativa popular, dois. Um foi
transformado em lei depois de passar por todo o processo legislativo como projeto
de iniciativa popular, enquanto que o outro foi anexado a outro projeto de iniciativa
do Poder Legislativo, sendo promulgado como tal. Assim, resta no Estado apenas
uma lei em vigor que foi iniciada através da participação popular.
O Projeto de Lei de iniciativa popular n. 1.644, de 16 de setembro de
1993, que tinha como objetivo Instituir o Fundo Estadual de Moradia Popular, teve
sua redação final aprovada em 13 de junho de 1995 e foi transformado na Lei n.
11.830/95.
Já o Projeto de Lei de iniciativa popular n. 1.789, de 05 de junho de 1998,
que dispunha sobre a destinação de verba de subvenção social no Estado de Minas
Gerais, foi, durante sua tramitação no Poder Legislativo, anexado ao Projeto de Lei
n. 1.698/98, de autoria do Deputado Germano Batista (PSDB), que posteriormente
foi transformado na Lei n. 12.925, de 30 de junho de 1998. Assim, esse projeto
iniciou-se como de iniciativa popular, mas fora transformado em lei como projeto de
iniciativa do Poder Legislativo.
ESTADO DE MINAS GERAIS
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 150 0 0 0 150
1990 276 0 0 0 276
1991 212 5 2 0 219
1992 425 2 5 0 432
1993 381 5 4 0 390
1994 366 5 2 0 373
1995 319 5 5 1 330
1996 412 7 2 0 421
1997 281 2 11 0 294
1998 355 2 6 0 363
1999 356 3 2 0 361
2000 389 4 9 0 402
2001 327 4 4 0 335
178
2002 423 2 3 0 428
2003 453 9 7 0 469
2004 493 9 7 0 509
2005** 325 1 2 0 355
Total 5970 65 71 1 6107 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.almg.gov.br Assembléia Legislativa do Espírito Santo Em: 16.05.2005 * Levantamento feito a partir de 21/09/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
Os Estados do Nordeste pesquisados não possuem também vestígios de
leis estaduais ou emendas às constituições que tenham sido originados de projetos
de iniciativa popular.
As leis do Estado da Paraíba, de Pernambuco e de Sergipe, na sua
maioria, possuem como matéria a concessão de títulos de cidadania, a nomeação
de logradouros públicos e o reconhecimento de utilidade pública de algumas
entidades. Existe, no Estado da Paraíba, um rol elevado de projetos transformados
em lei que tiveram origem dos seus Municípios. Tais projetos tinham como objetivo a
criação, fixação ou retificação de limites dos territórios municipais.
ESTADO DA PARAÍBA
Ano/órgão PL TC PE MP PJ LC Mun IP Total
1989* 7 7 45 2 7 2 0 0 70
1990 69 0 60 2 3 1 2 0 137
1991 112 2 68 6 9 7 4 0 208
1992 95 3 66 1 6 0 1 0 172
1993 79 4 57 6 6 4 1 0 157
1994 91 4 56 7 14 4 51 0 227
1995 145 5 40 3 9 1 5 0 208
1996 143 0 45 1 7 3 13 0 212
1997 113 3 43 2 1 6 3 0 171
1998 58 3 47 4 7 1 5 0 125
1999 84 1 29 2 5 2 2 0 125
2000 78 0 37 1 5 1 1 0 123
2001 65 0 27 0 2 1 6 0 101
2002 199 2 67 4 13 10 4 0 299
2003 134 0 87 2 9 12 2 0 246
2004 86 0 76 1 6 2 3 0 174
2005** 9 0 16 0 2 0 0 0 27
Total 1567 34 866 44 111 57 103 0 2782 PL: Poder Legislativo / TC: Tribunal de Contas / PE: Poder Executivo / MP: Ministério Público / PJ: Poder Judiciário / LC: Leis Complementares / Mun: Leis de iniciativa dos Municípios / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.al.pb.gov.br
179
Assembléia Legislativa da Paraíba Em: 28.03.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 19/10/2005
ESTADO DE PERNAMBUCO
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 147 0 0 0 147
1990 126 3 0 0 129
1991 174 0 0 0 174
1992 150 6 3 0 159
1993 161 1 2 0 164
1994 178 3 4 0 185
1995 121 3 2 0 126
1996 101 2 0 0 103
1997 94 2 3 0 99
1998 108 2 0 0 110
1999 111 6 6 0 123
2000 183 2 0 0 185
2001 237 13 1 0 251
2002 156 3 0 0 159
2003 211 11 1 0 223
2004 213 8 1 0 222
2005** 158 13 2 0 173
Total 2629 78 25 0 2732
ESTADO DE SERGIPE
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 77 0 0 0 77
1990 174 4 4 0 182
1991 188 4 3 0 195
1992 157 2 1 0 160
1993 143 4 1 0 148
1994 149 2 1 0 152
1995 104 9 0 0 113
1996 110 8 3 0 121
1997 117 4 1 0 122
1998 145 5 0 0 150
1999 142 3 5 0 150
2000 138 11 8 0 157
2001 149 11 0 0 160
2002 251 12 1 0 264
2003 523 12 2 0 537
2004 243 11 3 0 257
2005** 202 7 2 0 211
Total 3012 109 35 0 3156
LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.alepe.pe.gov.br Assembléia Legislativa de Pernambuco Em: 11.04.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constitucional Estadual) ** Levantamento atualizado em 19/10/2005
180
LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.al.se.gov.br Assembléia Legislativa de Sergipe Em: 28.03.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 19/10/2005
O Estado do Ceará não tem também leis promulgadas advindas de
projetos de iniciativa popular. A título de curiosidade, a Assembléia Legislativa do
Estado tem, até a data do levantamento dos dados demonstrada na tabela abaixo,
um total de 333 projetos de lei deliberados, referente ao período de maio de 2002 a
fevereiro de 2005 e 57 tramitando, referente ao período de novembro de 2001 a
fevereiro de 2005, mas nenhum dos projetos é de iniciativa popular.
ESTADO DO CEARÁ
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989*
1990*** 122 0 0 0 122
1991 128 1 6 0 135
1992 149 0 3 0 152
1993 199 0 0 0 199
1994 164 1 10 0 175
1995 140 2 6 0 148
1996 123 1 2 0 126
1997 112 2 6 0 120
1998 97 2 4 0 103
1999 114 10 6 0 130
2000 93 5 2 0 100
2001 94 3 2 0 99
2002 91 5 4 0 100
2003 154 6 4 0 164
2004 143 14 1 0 158
2005** 105 0 0 0 105
Total 2028 52 56 0 2136 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fonte: www.al.ce.gov.br Assembléia Legislativa do Ceará Em: 11.04.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 19/10/2005 *** Só há registro a partir de 1990
181
No que se refere ao Estado da Bahia, a própria Constituição baiana82
estabelece, através do seu art. 82, limitações ao instituto da Iniciativa Popular de
Leis causando, dessa maneira, os mesmos problemas ocorridos na esfera federal e
nos outros Estados da Federação. Assim, da mesma forma que a maioria dos outros
Estados, a Bahia não tem nenhuma lei ou emenda constitucional que tenha sido
proposta por iniciativa popular.
ESTADO DA BAHIA
Ano/órgão LO LC EC IP Total
1989* 224 1 0 0 225
1990 433 2 1 0 436
1991 362 4 2 0 368
1992 90 1 0 0 91
1993 101 0 0 0 101
1994 153 2 2 0 157
1995 225 0 1 0 226
1996 90 1 0 0 91
1997 228 2 0 0 230
1998 187 1 0 0 188
1999 140 0 1 0 141
2000 180 1 1 0 182
2001 237 1 0 0 238
2002 550 2 0 0 552
2003 426 2 2 0 430
2004 323 1 0 0 324
2005** 378 0 1 0 379
Total 4327 21 11 0 4359 LO: Lei Ordinária / LC: Lei Complementar / EC: Emendas Constitucionais / IP: Iniciativa Popular Fontes: www.bahia.ba.gov.br/assemb e anais da Assembléia Legislativa do Estado Assembléia Legislativa da Bahia Em: 30.08.2005 * Levantamento feito a partir de 05/10/1989 (Constituição Estadual) ** Levantamento atualizado em 20/10/2005
Chega-se à conclusão de que num universo de 61 897 leis e emendas
constitucionais, levantadas em dezenove Estados, Distrito Federal e Legislação
Federal, somente três leis de iniciativa popular vigoram no Brasil hoje: duas federais
e uma do Estado de Minas Gerais. Um projeto, do Estado do Pará, foi arquivado,
82 Art. 82 – “É assegurado aos cidadãos o direito da iniciativa popular, mediante apresentação à Assembléia Legislativa de projeto de lei subscrito por, no mínimo, meio por cento do eleitorado estadual”.
182
uma lei do Espírito Santo foi revogada depois de oito dias da promulgação, e um
projeto mineiro foi anexado, ainda em fase de tramitação, a um projeto de iniciativa
do Poder Legislativo. Portanto, somente 0,005% das leis que vigoram no País
tiveram origem através de iniciativa popular. Praticamente, esse percentual significa
0,0%, ou seja, nada.
8.2.2 Limitações ao Plebiscito e ao Referendo
O art.14 da CF estabelece que estes institutos, inclusive a iniciativa
popular, devem ser regulamentados mediante lei federal ordinária.
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular (grifo nosso).
Este era o primeiro limite: a necessidade de os institutos serem
regulamentados. Até a regulamentação ser instituída, a CF só previa a utilização do
plebiscito na hipótese arrolada no seu art.18, §§ 3º e 4º 83.
Com a redação atual84 dada pela Emenda Constitucional n.15/96,
expondo que a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios
teriam de ser feitas mediante lei estadual, dependendo de consulta prévia, mediante
83 Art. 18 – “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. § 3º Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar. § 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de municípios preservarão a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano, far-se-ão por lei estadual, obedecidos os requisitos previstos em lei complementar estadual, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas”. 84 § 4º do art. 18 – “A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos
183
plebiscito, às populações dos municípios envolvidos, mais a necessidade de
regulamentação através de lei complementar federal, cessou a criação desmedida
de municípios que até então vinha acontecendo, já que tal prática era disciplinada
pela Lei Complementar n. 01/67, dispondo sobre os limites materiais do plebiscito e
terminando como única necessidade de sua utilização a hipótese de criação de
município85.
O curioso é que somente no ano de 1989, mesmo antes da promulgação
da Emenda Constitucional n. 15/96, a Constituição baiana já limitava a criação de
novos municípios, o que fez com que em datas anteriores à sua promulgação
(05/10/1989) fossem criados 51 municípios no Estado da Bahia. No entanto, depois
dessa data somente dois municípios foram criados. O que gerou essa desproporção
foi a existência na Constituição do Estado86 do art. 54 que, em seu inciso I, vinculou
a criação, incorporação, desmembramento e fusão de municípios à consulta prévia,
através de plebiscito, entre as populações diretamente interessadas. Como exemplo
da violação constitucional há a ADIn n. 60/BA, de 17 de junho de 1999, do Ministro
Néri da Silveira:
Lei estadual nº 4.851, de 5 de abril de 1989, criação do Município de Adustina. Alegação de violação ao princípio da autonomia municipal. Vulneração do art. 18, § 4º, da Constituição. Pedido que se prende ao argumento da ausência de prévia consulta plebiscitária às populações interessadas - ADI 60/BA, 17.06.1999, Tribunal Pleno do STF, Rel. Min. Néri da Silveira (grifo nosso).
Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei” (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 15/96). 85 Art. 3º - As Assembléias Legislativas, atendidas as exigências do artigo anterior, determinarão a realização de plebiscito para consulta à população da área territorial a ser elevada à categoria de Município. Parágrafo único. A forma de consulta plebiscitária será regulada mediante resoluções expedidas pelos Tribunais Regionais Eleitorais”. 86 Art. 54 – “Lei complementar estadual disporá sobre a criação, incorporação, desmembramento e fusão de Municípios, estabelecendo os critérios e requisitos mínimos relativos à população, eleitorado, número de domicílios e renda, observadas as seguintes condições: I – consulta prévia, através de plebiscito, às populações diretamente interessadas, com manifestação favorável à maioria absoluta dos respectivos eleitores; [...]”.
184
Essa prática não se resumiu ao Estado da Bahia. Segundo a ADIn n.
458/MA – Maranhão, de 08 de junho de 1998, que teve como relator o Ministro
Sydney Sanches, foi configurada a violação do § 4º do art. 18 da Constituição
Federal, declarando-se “ex tunc” a inconstitucionalidade do art. 48 do ADCT da
Constituição do Estado do Maranhão, que criou mais de 100 municípios sem
consulta prévia às populações interessadas mediante plebiscito:
Quando da promulgação da Constituição do Estado do Maranhão, em 1989, em cujo art. 48 do ADCT foram criados mais de cem municípios, e também à época da Lei estadual nº 4.956, que é de 05.12.1989, estava em vigor a redação originária do § 4º do art. 18 da Constituição Federal, de 05.10.1988. À época dos atos impugnados, não havia lei complementar estadual, fixando os requisitos para a criação dos Municípios. E, além disso, as populações diretamente interessadas não foram consultadas mediante plebiscito (grifo nosso). [...] Aliás, também as exigências contidas na nova redação, introduzida pela E.C. nº 13/96, não estariam atendidas, se fosse o caso de aplicá-la, como texto superveniente, quais sejam as relativas ao período a ser fixado em lei complementar federal e à consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos - ADI 458/MA, 08.06.1998, Tribunal Pleno do STF, Rel. Min. Sydney Sanches (grifo nosso).
A ADIn n. 479/AM, de 05 de junho de 1996, também expõe que:
Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade, no art. 12 da Constituição do Amazonas, na parte em que implicou a criação de municípios, sem observância dos requisitos estabelecidos no § 4º do art. 18 da Constituição Federal, notadamente a realização de plebiscito - ADI 479/AM, 05.06.1996, Tribunal Pleno do STF, Rel. Min. Octavio Gallotti (grifo nosso).
A Constituição Federal, em seu art. 14, não impõe, contudo, limites
materiais ao exercício da soberania popular pelo plebiscito e referendo. O legislador
constituinte além de fornecer status constitucional a esses mecanismos, também
abriu possibilidades de serem regulamentados pela legislação infraconstitucional,
não se limitando às questões territoriais entre municípios.
A regulamentação do artigo constitucional veio através da Lei n.9.709 de
18 de novembro de 1998, nascida do substitutivo n. 3.589/93, do Deputado Federal
185
Almino Afonso (PSDB/SP), e com ela passou-se a ter a possibilidade de,
efetivamente, a população participar diretamente do processo de formação da
vontade nacional mediante a utilização destes três institutos. No entanto, esse novo
diploma legislativo pouco trouxe de novo à disciplina da iniciativa popular, guardando
novidades apenas para os outros dois mecanismos.
O art. 2º dessa lei ressalta que as consultas através do plebiscito e do
referendo serão sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional,
legislativa ou administrativa. Os §§ 1º e 2º desse mesmo artigo reforçam a diferença
entre os dois institutos dentro do ordenamento jurídico brasileiro87, idéia já trazida no
capítulo 6 do texto.
O primeiro problema da Lei 9.709/98 salta aos olhos, trazendo outra
limitação à utilização dos institutos: o que vem a ser matéria de acentuada
relevância? Quem decide sobre essa relevância? Existe matéria constitucional que
não seja de acentuada relevância?
Iniciando a análise pela última questão, é difícil imaginar uma matéria
constitucional que não seja de acentuada relevância. Por ser constitucional, a
matéria é, obrigatoriamente, de acentuada relevância, ao menos sob a ótica do
constituinte, tanto assim que integra o texto da Constituição.
Todavia, nem toda matéria constitucional poderá ser levada à consulta
popular, mesmo que seja reconhecidamente de acentuada relevância. A razão disso
está estabelecida no art. 49, XV da Constituição Federal, quando expõe que é da
competência exclusiva do Congresso Nacional a autorização de referendo e a
87 Art. 2º - “Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa”. § 1º - “O plebiscito é convocado anteriormente a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido”. § 2º - “O referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição”.
186
convocação de plebiscito, e no art. 3º da Lei 9.709/98, quando reforça a atribuição
da competência ao mesmo Poder Legislativo Federal.
Não parece lógico que nas matérias de exclusiva iniciativa do Poder
Judiciário, do Poder Executivo ou mesmo de competência privativa do Congresso
Nacional, quando não for possível a delegação de competência, possa ocorrer a
convocação ou autorização do plebiscito ou do referendo como se apresenta pela
Lei 9.709/98, restringindo-se a um único Poder, o Legislativo.
No que tange às matérias não constitucionais, a Lei 9.709/98 continua a
limitar a participação popular, quando responde, ainda em seu art. 3º, as duas outras
questões formuladas acima: “[...] o plebiscito e o referendo são convocados
mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros
que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional, [...]”. Portanto, quem diz
quais matérias são de acentuada relevância é o Poder Legislativo Federal. O povo
não escolhe sobre o que irá decidir, mediante a utilização do plebiscito e do
referendo.
Um exemplo atual do estabelecimento da acentuada relevância de
determinada matéria para ser objeto de consulta popular é questionamento mediante
referendo do dia 23 de outubro de 2005, que decidiu pela manutenção da
comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, como
estabelece o art. 35, caput e § 1º da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2006
(Estatuto do Desarmamento). Não há dúvidas de que esta matéria é de acentuada
relevância para a Nação. Mas sempre vai ser assim? O Poder Legislativo saberá
sempre estabelecer a importância de determinada matéria para ser objeto de
plebiscito ou de referendo?
187
O certo é que, mesmo com o advento da lei regulamentadora, as
possibilidades do uso desses mecanismos de participação direta da população estão
limitadas àquilo que os representantes querem e não o que o povo deseja,
transferindo-se a determinação do que seja acentuada relevância para o corpo
legislativo, voltando-se, mais uma vez, à questão da crise da representatividade
dentro do processo democrático brasileiro, onde esta depende, não da vontade da
maioria popular, mas da vontade da minoria dominante.
8.2.3 Comissão Permanente de Legislação Participativa
Como tentativa de aliviar as limitações impostas pela Constituição Federal
ao instituto de iniciativa popular, facilitando a participação popular no processo de
elaboração das leis, a Câmara dos Deputados criou, em 30 de maio de 2001, a
Comissão Permanente de Legislação Participativa – CLP.
A iniciativa da criação da Comissão partiu do então Presidente da Câmara
Deputado Aécio Neves, constituindo-se em instrumento de educação política e de
fortalecimento da democracia representativa. A sua criação viabilizou maior
participação da sociedade no processo legislativo, ao permitir que proposições
baseadas em sugestões (Sugestões Legislativas) elaboradas por associações e
órgãos de classe, sindicatos e entidades organizadas da sociedade civil tramitem no
Parlamento, apresentadas pela própria Comissão. As sugestões são vedadas aos
Partidos Políticos e aos organismos internacionais.
São admitidas todas as iniciativas que se enquadrem na competência das
comissões permanentes da Casa Legislativa Federal, como projetos de lei
complementar e ordinária, de resolução, requerimentos de convocação, informação,
188
audiência pública, decretos legislativos e emendas à Lei Orçamentária Anual e ao
Plano Plurianual. Não podem ser apresentadas sugestões de Proposta à Emenda
Constitucional (PEC), nem de Requerimento de Criação de Comissões
Parlamentares de Inquérito (RCPI), nem de Proposta de Fiscalização e Controle
(PFC). Convém lembrar que são inconstitucionais proposições que incidam sobre
assuntos de iniciativa privativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal
Federal, dos Tribunais Superiores e do Ministério Público.
A tabela e o gráfico abaixo permitem visualizar a quantidade de sugestões
apresentadas à CLP ao longo de sua existência. Salienta-se que a Comissão foi
instalada em 08 de agosto de 2001 e que nenhuma das sugestões foi proposta por
entidades do Estado da Bahia.
ANO Quantidade Recebida Quantidade Aprovada
2001 35 07
2002 80 34
2003 74 30
2004 40 16
2005 46 16
Total 275 103 Fonte: www.camara.gov.br Câmara dos Deputados Em: 26.08.2005
O Senado Federal também tem uma Comissão de Legislação
Participativa. Essa idéia também foi seguida por várias casas legislativas estaduais.
Assembléias Legislativas Nome Situação
Acre Comissão de Legislação Participativa Em funcionamento
Amazonas Comissão de Legislação Participativa Em funcionamento
Maranhão Comissão de Legislação Participativa Em funcionamento
Mato Grosso do Sul Comissão de Legislação Participativa Em funcionamento
Santa Catarina Comissão de Legislação Participativa Em funcionamento
São Paulo Comissão de Legislação Participativa Em funcionamento
Minas Gerais Comissão de Legislação Popular Em funcionamento
Paraíba Comissão de Legislação Cidadã Em funcionamento
Rio Grande do Sul Comissão de Participação Legislativa Popular
Em funcionamento
189
Goiás Não há nome Em fase de instalação
Pernambuco Não há nome Em fase de instalação Fonte: www.camara.gov.br Câmara dos Deputados Em: 26.08.2005
Embora houvesse boa intenção do Poder Legislativo Federal na criação
dessa Comissão, está claro que ela serve para fortalecer a democracia
representativa e não a participação direta da população, principalmente porque fica
a sugestão adstrita ao relatório de um Parlamentar e à apreciação da Comissão
quanto à sua aceitação ou não, para, a partir daí, ser encaminhada à Mesa da
Câmara, iniciando, assim, sua tramitação na Casa como projeto da própria
Comissão, de acordo com o art. 3º da Resolução 21/01 que cria a Comissão88.
A pergunta que se pode fazer, como conclusão, é a seguinte: a Comissão de Participação Legislativa abriu uma real saída para os impasses que se criaram com a Iniciativa Popular de Lei e criou um mecanismo substitutivo ao instrumento previsto na Constituição, de tal forma que se possa esquecê-lo de vez, já que, com os problemas indicados, é como se este instrumento não existisse? (WHITAKER, 2003, p. 198).
Portanto, da mesma maneira que acontece com os procedimentos
necessários para a convocação do plebiscito, que fica restrito à vontade do
Congresso Nacional, a participação popular, através da Comissão de Legislação
Participativa, fica também dependente da vontade do Poder Legislativo, limitando a
participação do povo diretamente e reabrindo as discussões em torno da
88 Art. 3º - “O art. 254 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 254. A participação da sociedade civil poderá, ainda, ser exercida mediante o oferecimento de sugestões de iniciativa legislativa, de pareceres técnicos, de exposições e propostas oriundas de entidades científicas e culturais e de qualquer das entidades mencionadas na alínea “a” do inciso XVII do art. 32. § 1º As sugestões de iniciativa legislativa que, observado o disposto no inciso I do artigo 253, receberem parecer favorável da Comissão de Legislação Participativa serão transformadas em proposição legislativa de sua iniciativa, que será encaminhada à Mesa para tramitação. § 2º As sugestões que receberem parecer contrário da Comissão de Legislação Participativa serão encaminhadas ao arquivo”.
190
Democracia Representativa no Brasil, ou seja, aquela de que a maioria não tem
vontade, restringindo-se à vontade da minoria dominante.
Neste capítulo, portanto, ficou demonstrado de maneira cabal, que não
basta o atendimento aos aspectos formais ou meramente procedimentais para que
se possa garantir a existência de uma verdadeira democracia e sim a utilização
prática e real daquilo estabelecido na lei formalmente. Como diz Touraine (1996, p.
20): “As regras de procedimento não passam de meios a serviço de fins nunca
alcançados, mas devem dar seu sentido às atividades políticas”.
191
9 CONCLUSÕES
O fato é que, não há dúvidas de que a Democracia brasileira passa por
uma grave crise.
A proposta de uma “complementaridade” entre as formas de
representação e de participação, isto é, a junção do referendo, do plebiscito e da
iniciativa popular aos direitos políticos já garantidos nas eleições para cargos
executivos e legislativos, é uma tentativa de solução da crise democrática.
A complementaridade, portanto, é a união entre a representação
tradicional, ligada à eleição de representantes no Executivo e no Legislativo, e as
formas de participação direta, com a votação em questões de interesse público, que
se dá através da utilização do plebiscito e do referendo, mais a apresentação de
projetos de lei pela iniciativa popular.
Nota-se que essa complementaridade, que é proposta por Maria Victória
Benevides, é nada mais nada menos que a Democracia Semidireta, a qual seria
uma solução para um Estado que por ventura fosse pautado ou na Democracia
Direta Pura ou na Democracia Representativa apenas. Mas esse não é o caso do
Brasil que, por determinação constitucional, já se enquadra nesse Regime Político
intermediário.
192
Acontece que, segundo seus defensores, esse sistema só teria sucesso
se propiciasse satisfatório equilíbrio entre a representação e a soberania popular
direta, isto é, o Parlamento dividindo com o povo o poder constituinte e o poder
legislativo. Entretanto, como foi incansavelmente demonstrado, esse equilíbrio entre
os dois lados da mesma moeda democrática, políticos e população, no caso
brasileiro, não existe. Primeiro, em virtude do desvirtuamento da representatividade,
ocorrido principalmente pela falta de controle das atividades políticas pelo povo,
deixando ao livre arbítrio dos políticos todas as decisões importantes para o Estado
e para a sociedade, e segundo, pelas impossibilidades práticas e reais da utilização
satisfatória pelo povo dos instrumentos de participação direta que só estão
estabelecidos no papel.
As soluções para o Estado brasileiro se enquadrar efetivamente na
proposta constitucional de uma Democracia Semidireta verdadeira se iniciam com
uma ampla reestruturação política e terminam com mudanças legais na disciplina do
plebiscito, do referendo e da iniciativa popular, principalmente com a diminuição da
quantidade de limitações impostas a esses institutos.
A crise do sistema representativo encontra-se ligada diretamente à crise
dos partidos políticos e de seus membros. Essa afirmativa está mais do que
comprovada, em tempos atuais, pelos graves fatos que vêm ocorrendo dentro do
Poder Legislativo Federal brasileiro, nesse ano de 2005, com o aparecimento
comprovado de propinas e desvios de verbas públicas através de “mensalões” e
“mensalinhos”89.
89 Termo utilizado para se referir ao pagamento de propina pelo Governo Federal a alguns membros do Poder Legislativo federal, que veio à tona no ano de 2005.
193
Há a necessidade, portanto, dos partidos políticos e da própria
democracia representativa sofrerem alguns aprimoramentos, com a finalidade de
aproximação da vontade do povo à vontade do Parlamento.
Assim, a própria Constituição tem que mudar no sentido de não mais
permitir a elegibilidade, ou seja, a disputa a cargos eletivos, somente por meio de
filiação partidária, ou, se isso continuar assim, haver um maior controle para a
prática exagerada de mudança de partido, alterando radicalmente as normas de
fidelidade partidária; os quadros partidários necessitam de maior democratização,
possibilitando o acesso ao pleito, de forma igualitária, a todos aqueles que
pretendam cargos eletivos; o sistema político da proporcionalidade para as eleições
de cargos do Legislativo tem que ser revisto, no intuito de expressar
verdadeiramente a vontade da maioria; tem de haver um maior controle por parte da
população em relação aos políticos que se desvirtuam das ideologias partidárias e
das propostas de campanha, no sentido de se impor penalidades mais graves,
chegando até a perda do mandato; criação de regulamentação na atuação dos
grupos de pressão diante do Parlamento; mudança na forma e aumento no controle
dos financiamentos de campanha, etc.
Dados revelam que entre 1985 e 6 de outubro de 2001, quando foi
encerrado o prazo de filiação partidária, tendo em vista a eleição de 2002, nada
menos do que 846 parlamentares, entre titulares e suplentes, mudaram de partido
na Câmara dos Deputados, sendo que 138 deles trocaram de partido pelo menos
duas vezes na mesma legislatura. Portanto, nas hipóteses de infidelidade partidária
ou de mudança volitiva de partido, poderia ser estabelecida uma espécie de
“quarentena política”, para que o parlamentar só pudesse participar de novas
eleições depois de um determinado prazo, ou seja, o mandato pertenceria à legenda
194
e seria necessário que o candidato fosse filiado, no mínimo, há três ou quatro anos a
um partido, para concorrer em uma eleição. No entanto, há uma solução mais
drástica: a perda do mandato daqueles que abandonassem voluntariamente a
legenda. Esta alternativa seria mais difícil de ser aprovada, pois implicaria numa
mudança constitucional, mas para a primeira bastaria mudança na legislação
ordinária.
O controle do eleitorado sobre os parlamentares, por práticas que violem
preceitos constitucionais ou legais, pode ser feito através de mecanismo semelhante
ao recall norte-americano, que concede ao eleitor legitimidade para a propositura de
procedimento de perda de mandato.
As atividades dos grupos de pressão no Parlamento brasileiro podem ser
controladas através de um instituto semelhante, também, ao utilizado pelos norte-
americanos, chamado de Lobby Act, que obriga aos grupos informar quanto é gasto
com suas atividades e de onde vem o dinheiro.
O financiamento das campanhas deve ser público para que seja possível
o controle efetivo dos gastos e para que haja condição de igualdade de competição
entre as propostas políticas, que devem ser apresentadas à população de maneira
objetiva e clara. O financiamento privado dificulta o controle e causa o fortalecimento
do poder econômico no resultado das eleições.
No que tange aos institutos da Democracia Direta, há a necessidade de
sua maior utilização, uma vez que isso é raro ou quase inexistente no Brasil.
O plebiscito ocorreu apenas duas vezes, sendo que uma aconteceu antes
da Constituição de 1988 e outra, depois, no ano de 1993. O referendo aconteceu
somente uma vez em 23 de outubro de 2005. Já a iniciativa popular de leis, como
195
visto, tem um percentual de 0,005% do total de leis federais e estaduais levantadas,
comprovando que seu uso é quase inexistente.
O implemento do uso dos instrumentos de participação popular está
diretamente ligado à diminuição ou mesmo ao término da crise que a Democracia
Semidireta vem passando atualmente no Brasil.
A primeira solução diz respeito à iniciativa popular. Os limites impostos a
esse instrumento causam sua quase inexistência, por isto, a proposta feita pela
Deputada Luiza Erundina (PT-SP), em 1999, de diminuir o número de assinaturas
exigidas para a apresentação do projeto, que passaria a ser de 0,5% do eleitorado
nacional, seria um início de melhoria, ou mesmo, talvez, com a diminuição ainda
mais desse percentual. Outra solução seria a possibilidade de dirigentes de
entidades, com um correspondente número de associados, assinarem em seu nome
o projeto de lei de iniciativa popular, desde que tenha sido aprovado em assembléias
das suas respectivas entidades.
Em relação aos outros institutos, o plebiscito e o referendo, só valeria
aperfeiçoar os atuais dispositivos constitucionais, totalmente inócuos quanto à
expressão direta da vontade popular, se esse aperfeiçoamento os fizesse perder o
caráter de “propaganda enganosa” da Constituição Cidadã, criando uma real
possibilidade de o próprio povo, sem intermediários, determinar o que deve ser
ouvido em questões que ele mesmo considere fundamentais, diferentemente do que
está estabelecido na legislação vigente, quando determina que esta função cabe ao
Congresso Nacional.
Assim, fica demonstrado de maneira cabal, que não basta o atendimento
aos aspectos formais ou meramente procedimentais, para que se possa garantir a
196
existência de uma verdadeira democracia e sim a utilização prática e real daquilo
estabelecido na lei formalmente.
Portanto, a conclusão final, caso essas adequações, modificações e
inclusões não ocorram no ordenamento jurídico brasileiro, é a de que o plebiscito, o
referendo e a iniciativa popular nunca serão, como nunca foram, utilizados
satisfatoriamente como meios de dar plena efetividade ao disposto no art. 1º da
Constituição Federal, colocando em xeque a existência de um dos lados da
Democracia Semidireta no Brasil, a Democracia Direta pura. Ou mesmo
questionando o outro lado da Democracia Semidireta, a Democracia Representativa,
uma vez que ela não se apresenta na prática da maneira que deveria, levando, com
isso, à descaracterização não da Democracia Semidireta apenas, representada por
um de seus lados, mas do próprio Regime Democrático brasileiro na sua totalidade.
197
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