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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

ANNA CAROLINA NATALE RODRIGUES

DRONES E DRONE ART: PODER MILITAR, ÉTICA E RESISTÊNCIA

CUIABÁ-MT

2015

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ANNA CAROLINA NATALE RODRIGUES

DRONES E DRONE ART: PODER MILITAR, ÉTICA E RESISTÊNCIA

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Estudos de Cultura

Contemporânea da Universidade Federal

de Mato Grosso, como requisito para

obtenção de exame de defesa.

Linha de Pesquisa: Epistemes

Contemporâneas.

Orientadora: Profa. Dra. Dolores

Cristina Gomes Galindo.

Coorientadora: Profa. Dra. Flávia

Cristina Silveira Lemos.

Cuiabá – MT

2015

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

R696d Rodrigues, Anna Carolina Natale.

Drones e drone art : poder militar, ética e resistência / Anna

Carolina Natale Rodrigues. – 2015.

123 f. : il. color. ; 30 cm.

Orientadora: Dolores Cristina Gomes Galindo.

Coorientadora: Flávia Cristina Silveira Lemos.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,

Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de

Cultura Contemporânea, Cuiabá, 2015.

Inclui bibliografia.

1. Drones – Estados Unidos. 2. Drone art. 3. Aeronaves –

Pilotagem remota. 4. Drones – Uso ético. I. Título.

CDU 623.746-519:17

Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Jordan Antonio de Souza - CRB1/2099

Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte

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NATALE, Anna C.. Drones e Drone Art: Poder Militar, Ética e Resistência. 2015.

Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea) – Instituto de

Linguagem, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2015.

RESUMO

Aeronaves Remotamente Pilotadas, mais conhecidas como Drones nos textos da

imprensa, são aeronaves que funcionam como dispositivos de vigilância e defesa,

utilizados pelos Estados Unidos desde a Guerra do Vietnã. Por muito tempo esta

tecnologia esteve nas mãos dos israelenses, mas, nos últimos anos, os Estados Unidos

tornaram-se o maior produtor desse tipo de aeronave. A utilização desta tecnologia

começou a se tornar conhecida no último governo Bush após os ataques de 11 de

setembro com a chamada ‘Guerra ao Terror’. Mais recentemente, o governo Obama

intensificou o seu uso, com o aumento de investimentos militares, fabricação e

circulação desses dispositivos. Por mais que o uso civil desta tecnologia esteja

aumentando, o foco da pesquisa ainda em andamento é a utilização dela no contexto

militar, principalmente estadunidense. Há quase dois mil conflitos armados ao redor do

mundo desde o novo milênio e o número cresce a cada dia. A violência legítima, a

criminalidade e o terrorismo tornam-se indistinguíveis um do outro. Em decorrência

disso, os termos de validação tendem a entrar em colapso. Os chamados drones podem

ser operados a milhares de quilômetros de distância e costumam ser utilizados sem a

autorização do espaço aéreo dos governos invadidos. Vive-se em um momento de

conflitos difusos de pequenos inimigos em todo lugar e a utilização das Aeronaves

Remotamente Pilotadas confirma a ideia da presença de um inimigo constante, e quando

a guerra está na base da política, o inimigo tem a função constitutiva de legitimar a

vigilância e os ataques. Se o inimigo não é mais concreto, compreensível e localizável

sua aura é hostil, facilitando a legitimação daquilo que é na realidade insustentável.

Palavras-chave: drones; aeronaves remotamente pilotadas; ética; drone art.

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NATALE, Anna C.. Drones and Drone Art: Military Power, Ethics and Resistance.

2015. Dissertation (Master Degree in Contemporary Cultural Studies) – Language

Institute, Federal University of Mato Grosso, Cuiabá, 2015.

ABSTRACT

Remotely Piloted Aircrafts also known through the press as Drones, are surveillance

and defense devices used by The United States of America since the Vietnam war. For a

long time, this technology was in the hands of the Israeli armed forces, but in the last

few years, The United States became the largest producer of this aircraft. The use of

Drones became known in the last Bush administration, after the attacks of September

11, with the so-called "War on Terror". Moreover, more recently in the Obama

administration with the increasing manufacture of such devices. Even though the use of

this technology among civilians are increasing, the focus of this ongoing research is its

use in military context, mostly American. According to Hardt and Negri (2012),

nowadays there are almost two thousand armed conflicts around the world since the

new millennium. These numbers keep growing, therefore, the legitimate violence, crime

and terrorism became indistinguishable from one another, the terms of validation tend to

collapse. The remotely piloted aircrafts can be operated thousands of miles away and

often without the airspace permission of the invaded governments. We are in a time of

small and intern conflicts with small enemies everywhere. Moreover, using this aircraft

confirms the idea of this constant enemy, and when war is at the base of politics, the

enemy has the primary function to legitimate surveillance and attacks. If the enemy is

no longer concrete, understandable and traceable, then its aura is hostile, facilitating the

legitimacy of that is in reality unsustainable.

Keywords: drones; remotely piloted aircrafts; ethics; drone art.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea pela

oportunidade de realizar esta pesquisa e também pelo apoio financeiro da CAPES .

Agradeço a minha orientadora Dolores Galindo e a minha coorientadora Flávia Lemos.

Agradeço às Professoras Ludmila Brandão e Fabiane Borges, membros da banca

examinadora.

Renata, sempre agradecerei pelo seu apoio emocional e existencial, além de tantas

outras coisas que aprendi com você neste caminho! Jordan e Rony, obrigada por tudo.

Mãe, Ale, Bia e tia Olga, obrigada sempre!

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Drone Hunter ................................................................................................20

Figura 2 – Drone Shadow ...............................................................................................20

Figura 3 – Drone Pioneer................................................................................................22

Figura 4 – Captive Airship..............................................................................................84

Figura 5 – The Peace Drone............................................................................................90

Figura 6 – Sketch ............................................................................................................91

Figura 7 – 06_ARBackpack............................................................................................94

Figura 8 – The Graffiti Drone.........................................................................................94

Figura 9 – Graffiti Drone - KATSU................................................................................94

Figura 10 – Eco Drones modelo......................................................................................96

Figura 11 – Nesting Station.............................................................................................96

Figura 12 – Eco Drones...................................................................................................96

Figura 13 – Low Drone...................................................................................................98

Figura 14 – Low Drone website......................................................................................98

Figura 15 – Drone Shadow 001.....................................................................................100

Figura 16 – Drone Shadow 004.....................................................................................100

Figura 17 – Drone Shadow 002.....................................................................................101

Figura 18 – Drone Shadow 007.....................................................................................101

Figura 19 – Untitled (Drones).......................................................................................104

Figura 20 – Untitled (Reaper Drone).............................................................................104

Figura 21 – Untitled (Predator Drone)..........................................................................105

Figura 22 – Untitled (Predator Drone) .........................................................................105

Figura 23 – Antidrone Burqa.........................................................................................107

Figura 24 – Antidrone Hijab..........................................................................................107

Figura 25 – Antidrone Hoodie.......................................................................................107

Figura 26 – Movimentos do Charon..............................................................................109

Figura 27 - Impressão 3D dos movimentos do Charon ................................................109

Figura 28 - Imagem de vídeo do espetáculo de dança "Seraph"................................. 111

Figura 29 - Foto do espetáculo de dança "Seraph" .......................................................109

Figura 30 - Modelo do drone de papel para ser recortado.............................................112

Figura 31 - MQ-9/Predator ...........................................................................................116

Figura 32 - X-47B..........................................................................................................116

Figura 33 - MQ-9/Guardian ..........................................................................................117

Figura 34 – Reaper........................................................................................................117

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AIS Automated Identification System

Sistema Automatizado de Identificação

BDA Battle Damage Assesment

Avaliação de Danos de Batalha

C3 Command, Control and Communication

Comando, Controle e Comunicação

DOD Department of Defense

Departamento de Defesa dos Estados Unidos

EO/IR Electro-Optical/Infrared

Sensores Eletro-ópticos/Infravermelho

FAA Federal Aviation Administration

Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos

ISR Intelligence, Surveillance and Reconnaissance

Inteligência, Vigilância e Reconhecimento

LRF/D Laser Range Finder / Designator

Laser de Longo Alcance

MUM Manned Unmanned Teaming

Parceria Tripulada não-Tripulada

RMA Revolution in Military Affairs

Revolução em Assuntos Militares

RPA Remotely Piloted Aircraft

Aeronaves Remotamente Pilotadas

RSTA Reconnaissance, Surveillance and Target Acquisition

Reconhecimento, Vigilância e Aquisição de Alvos

SAR Synthetic Aperture Radar

Radar Sintético de Abertura

SIGINT Signal Intelligence

Sinal de Inteligência

SUAS Small Unmanned Aircraft Systems

Pequenos Sistemas Aéreos Não Tripulados

UAS Unmanned Aerial Systems

Sistemas Aéreos Não Tripulados.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

12

1. Apresentação e origem da pesquisa 12

2. O corpo teórico 14

3. Metodologia

4. Apresentação dos capítulos

5. Sobre os sistemas aéreos não-tripulados

6. Terminologia

15

18

19

22

CAPÍTULO 1

AERONAVES REMOTAMENTE PILOTADAS (DRONES):

CENÁRIO ATUAL E A SOBERANIA ESTADUNIDENSE

24

1. O Golem 24

2. Os sistemas aéreos não-tripulados: detalhamento 25

3. A construção do inimigo invisível

4. As definições de terrorismo e a transmutação da guerra

5. O novo soldado

35

45

56

CAPÍTULO 2

ÉTICA E RESISTÊNCIA: RELATÓRIOS MULTILATERAIS E GRUPOS

DE RESISTÊNCIA ANTI-DRONE

59

1. Apresentação

2. Star Trek: Uma amostra do Armageddon

3. Philip Alston - Relatório apresentados pelo relator especial sobre execuções

extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias.

3.1 Sobre o termo “assassinato seletivo” (targeted killing)

3.2 Compreendendo os detalhes deste relatório

3.3 Detalhamento do termo “assassinato seletivo”

3.4 Sobre a legalidade do “assassinato seletivo”

3.5 A soberania e a legítimia defesa

3.6 Sobre a criação de alvos e a condução do assassinato seletivo

3.7 Utilizando drones para o assassinato seletivo

59

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CAPÍTULO 3

DRONE ART: UMA CARTOGRAFIA DESCRITIVA

1. Introdução

2. A fotografia até então impossível

3. Somos todos testemunhas oculares

4. A Des-informação e a Drone Art

5. Recalibrando

5.1 - O Drone da Paz

5.2 - Mochila AR

5.3 - O Drone Grafite

5.4 - Eco-Drones

5.5 - Low Drone

6. Incomodando

4.1 – Drone Shadow 001

4.2 – Untitled (Drones)

4.3 – Stealth Wear

7. Coexistindo

7.1 – Charon

7.2 – Seraph

7.3 – 1000 drones

7.4 – MQ-9/Predator

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108

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112

113

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

118

120

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12

INTRODUÇÃO

1 Apresentação e origem da pesquisa

Os primeiros ensaios desta dissertação foram criados no segundo semestre de

2012, a partir da observação de um grande número de reportagens publicadas no jornal

online The New York Times, anunciando os drones como uma nova arma contra o

terrorismo e ao mesmo tempo, indiferente aos direitos humanos. Diferentes perspectivas

foram observadas sobre este dispositivo. Em alguns momentos parecia existir uma certa

admiração e em outros era como se o Golem tivesse saído de controle.

Nesta breve apresentação, desejo contar ao leitor quais caminhos que percorri

até chegar à proposta deste trabalho, tentando apontar as experiências que, ao olhar para

trás, mais fortemente se entrelaçam com o presente estudo sobre drones. Ao escrever

sobre a minha relação pessoal com o tema, apoio-me em Arjun Appadurai para quem:

A imagem, o imaginado, o imaginário - todos estes são

termos que nos direciona a algo crítico e novo nos processos

culturais globais: a imaginação como uma prática social.(...) A

imaginação é agora central a todos as formas de agência, é em si

um fato social, e é o componente-chave desta nova ordem global

(APPADURAI, 1996, p. 31, tradução nossa).

Desde o início da pesquisa, o tema cativou-me por dois motivos.

Primeiro, faz parte do meu repertório cinematográfico desde a infância. Sou fã

absoluta de filmes e séries de ficção científica. Com apenas 5 anos de idade, conheci os

chamados drones no filme “Batteries not included” (1987) de Steven Spilberg. No

Brasil, o filme recebeu o título de “O milagre veio do espaço”. No enredo desse filme

estava incluso um casal de pequenas aeronaves que tinha a necessidade de consertar

tudo o que estava quebrado. Logo depois, por meio do filme do diretor James Cameron

“The Abyss” (1989) ou “O segredo do Abismo” (na tradução portuguesa), percebi a

relação entre tecnologia, soberania e terrorismo. Com o passar dos anos, outros filmes e

séries (não infantis) se tornaram muito presentes na construção de um imaginário tecno-

científico/militar, como a série “Aliens” com Sigourney Weaver; “O Exterminador do

Futuro”; “Robocop”; “Star Trek”; “Arquivo X”; “Fringe” etc. A relação com este

imaginário construído mediante as referências fílmicas durante a infância e a

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adolescência serviu-me de base para o interesse de pesquisa com o tema aeronaves

remotamente pilotadas. Vale notar que, conforme expõe Sarah Franklin (2000), foi a

paixão por um tema — os dinossauros — que levou o escritor Michael Crichton a criar

o roteiro do filme “Jurassic Park”, cujo enredo recria as fronteiras do real.

Segundo, passei toda a juventude ao redor de aviões e de pilotos que contavam

histórias sobre a aviação comercial brasileira, aventuras, alegrias e desapontamentos.

Ainda recordo-me claramente quando o avião F-100 (Fokker 100) chegou ao Brasil e

pude estar presente no seu segundo voo doméstico realizado pela TAM Linhas Aéreas

juntamente com outras filhas de pilotos. Dessa experiência, uma frase memorável foi:

“Há doze computadores dentro deste avião”. Naquela época, a palavra “computador”

não fazia parte do vocabulário civil. Anos depois, escutei a seguinte frase sobre um

avião bem utilizado em inúmeras companhias aéreas internacionais: “estes novos aviões

possuem uma tecnologia tão avançada que se uma grave pane acontecer durante um

voo, o piloto não conseguirá ter controle manual do avião, é fisicamente impossível, não

são como os aviões antigos”. Nesse sentido, com base nessas referências pessoais, posso

afirmar que os constantes avanços tecnológicos das aeronaves, além de não causar

estranhamento, criaram uma relação próxima com as aeronaves representadas nos

filmes de ficção científica, o mesmo não pode ser dito em relação ao papel dos pilotos

neste processo. O questionamento de que esses avanços estariam diminuindo o valor e a

necessidade da presença do piloto faz sentido.

Quando lia aleatoriamente as reportagens publicadas nos jornais internacionais

sobre as aeronaves remotamente pilotadas, era possível observar o medo em relação a

este dispositivo, motivado por reflexões inundadas de referências imagéticas

cinematográficas, de poucas referências técnicas e históricas apuradas sobre a utilização

dos chamados drones. Neste cenário, este tema foi levado ao Lab.TECC (Laboratório,

Tecnologias, Ciências e Criação), sob a coordenação da Profa. Dra. Dolores Cristina

Gomes Galindo do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea

da Universidade Federal de Mato Grosso. Quatro meses depois, tivemos a oportunidade

de apresentar o primeiro texto sobre o assunto no Critical Social Psychology Congress,

que aconteceu em 2013, em Barcelona, no qual nosso trabalho foi muito bem

recepcionado. Entretanto, meses depois do evento, percebemos que os primeiros ensaios

já não eram mais aplicáveis depois de 1 (um) ano. O caráter inovador e instável do tema

requer a ação constante de identificar novas mudanças técnicas e sociais, que

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possibilitam o aprofundamento das discussões, tentando evitar tanto reflexões estéreis e

tecnofóbicas como reflexões futuristas superficiais.

Esta dissertação objetiva discorrer sobre usos bélicos de aeronaves remotamente

pilotadas pelos Estados Unidos, funcionando como um espaço de pesquisa e análise de

diferentes aspectos desta tecnologia que começou a ser elaborada conceitualmente no

início do século passado com o intuito de defender os Estados Unidos em futuros

combates. Discute ainda como essa mesma tecnologia contribui para delimitar novas

fronteiras geopolíticas e ativa órgãos transnacionais que visam regular as restrições de

liberdade em nome da segurança e ofertar segurança diante do intangível, bem como

desperta a atenção de artistas que a tomam como matéria de expressão sob a forma de

Drone Art.

2 O corpo teórico

Como foi dito anteriormente, as referências cinematográficas impactaram a

decisão de escolha deste tema de pesquisa. Nesse sentido, esta dissertação apresentará

uma breve descrição e reflexão sobre o conceito de Golem, originário da cultura judaica,

o qual remete a uma história de um homem que cria um monstro para derrotar seus

adversários, mas depois perde o controle sobre a sua criatura. Meu primeiro contato

com essa história deu-se ao assistir ao filme mudo, de 1920, O Golem — Como Veio ao

Mundo, cujo título original era Der Golem, wie er in die Welt Kam), pertencente ao

expressionismo alemão e mais recentemente esta mesma história foi abordada por Hardt

e Negri no livro Multidão.

No decorrer desta dissertação utilizamos relatórios militares das Forças Armadas

dos Estados Unidos. Esses relatórios dizem respeito ao sistemas aéreos não-tripulados.

Fazemos um contraponto às informações contidas nesses relatórios, tomando como base

as ideias disseminadas no livro Multidão, de Michael Hardt e Antonio Negri, no livro

The Administration of Fear, de Paul Virilio e Terror from the Air, de Peter Sloterdijk.

A descrição e análise do episódio Um gosto de Armageddon, da série televisiva

Star Trek, conhecido no Brasil também como Jornada nas Estrelas, foi apresentado nos

Estados Unidos no ano de 1967. A escolha desta referência deu-se pela ideia de guerra

antisséptica, apresentada no roteiro, um conceito muito próximo da guerra à distância,

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propiciada pelas aeronaves remotamente pilotadas, e também mencionada no livro

Multidão.

Um aspecto que permeia todos os capítulos são as questões éticas, envolvendo a

utilização das aeronaves remotamente pilotadas. No entanto, essas questões são mais

bem exploradas no segundo capítulo mediante a análise de dois relatórios da

Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). O primeiro, escrito por

Philip Alston, em 2010, apresenta as políticas do assassinato seletivo (targeted killing) e

questões da legalidade envolvendo este dispositivo. O segundo relatório utilizado foi

escrito por Christof Heyns, em 2013.

3 Metodologia

Diferentemente das descrições, as narrativas

possuem uma forte tonalidade estética que

performa prazer, beleza, horror e encantamento

(LAW, 2004, Tradução nossa)

Este trabalho tem como metodologia a pesquisa narrativa, conforme proposta

por Galindo, Martins e Rodrigues (2014) no artigo Jogos de Armar: Narrativas como

modo de articulação de múltiplas fontes no cotidiano da pesquisa. A pesquisa narrativa

fundamentou a maneira de apresentar a investigação, de fazer a análise e crítica neste

trabalho. Embora saibamos da existência de variadas estratégias metodológicas,

acreditamos que a chamada metodologia de pesquisa narrativa seja a mais adequada

para o tipo de pesquisa por nós realizada. Reconhecemos a importância do referencial

teórico, por conter informações técnicas e precisas, no entanto, acreditamos que as

experiências pessoais também precisam ser consideradas no estudo do tema.

A ideia de Donna Haraway de contar histórias como ferramenta para elaborar

conexões influenciou-nos na escolha da metodologia. Durante os encontros do grupo de

pesquisa Lab.Tecc, a leitura das ideias dessa autora, por meio de Law (2000), permitiu-

nos concluir que nosso trabalho também era uma tessitura de conexões entre tecnologia

militar, ficção científica, expressões artísticas e relatórios da ONU.

Donna Haraway e Sharon Traweek nos ensina que, quando contamos

histórias, estas são performativas. Isso porque elas também fazem a

diferença, ou, talvez, de alguma forma, façam a diferença ou esperam

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fazer a diferença. Aplicado à tecnociência, o argumento vai além

disso; na verdade, é bastante radical. É que não há uma diferença

importante entre histórias e materiais. Ou, colocando de outra forma:

histórias, histórias eficazes, performam dentro do mundo material na

forma de relações sociais, mas também na forma de máquinas,

arranjos arquitetônicos, corpos e todo o resto. Isto significa que uma

maneira de imaginar o mundo é que se trata de um conjunto (bem

desordenado) de histórias que se cruzam e interferem uns com os

outros. Isso também significa que estas são, no entanto, não apenas

narrações no sentido do padrão linguístico do termo (LAW, 2000, p.

2, Tradução nossa).

Neste trabalho, o processo narrativo da pesquisa permitiu explicitar as tensões

entre diferentes realidades e emoções, mostrando a complexa rede atravessada pelos

drones, ainda que tenhamos detido apenas no aparato criado e utilizado como tecnologia

bélica pelos Estados Unidos.

A primeira fonte de dados foram dois relatórios da Organização das Nações

Unidas, apresentando questões éticas.

O primeiro relatório, produzido por Philip Alston, foi apresentado em 28 de

maio de 2010, na décima quarta sessão do Conselho dos Direitos Humanos das Nações

Unidas, com o título Report of Special Rapporteur on extrajudicial, summary or

arbitrary executions. Escolhemos esse relatório porque alerta o mundo acerca da

utilização dos drones, quando o jornalismo internacional raramente cobria o assunto,

explicando a nova tecnologia e definindo o conceito e o funcionamento do que seria

assassinato seletivo (targeted killing).

O segundo relatório, com o mesmo título do primeiro, foi redigido por Christof

Heyns três anos depois. Ele foi apresentado ao Conselho dos Direitos Humanos das

Nações Unidas, na vigésima terceira sessão, realizada no dia 9 de abril de 2013.

Também o selecionamos por ser uma versão atualizada do primeiro, contendo

informações mais detalhadas sobre a utilização dos drones ou robótica autônoma letal

(Lethal Autonomous robotics – LARs), conforme aparece no relatório, e o seu uso

especificamente nos conflitos armados. Além disso, o relatório chamou-nos a atenção

por iniciar a discussão sobre a retirada da decisão humana durante o ataque (decision-

making out of the loop).

A segunda fonte de dados constituiu-se de expressões artísticas de designers,

arquitetos e artistas atravessados pelas tensões, às vezes conflituosas, invocadas pela

tecnologia dos drones. Ao observarmos as similaridades e diferenças entre as imagens

encontradas, pudemos organizá-las em três grupos de modo que as análises realizadas

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fizessem parte de um ambiente sinérgico e não completamente separados como se

estivessem isolados.

Eu quero fazer a diferença para a maneira em que nós imaginamos o que

pensamos atualmente sobre como o "pessoal", o "analítico", e também o

"político". Eu quero interferir em algumas das histórias padrão. Isso porque, se

fizermos direito, veremos então que o "pessoal" não é mais apenas qualquer

pessoal. Em vez disso, é um instrumento analítico e político para interferir e

fazer a diferença, uma entre várias que pode nos permitir desarmar algumas

bombas do que Donna Haraway chama de desordem estabelecida (LAW, 2000,

p. 2, Tradução nossa)

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4 Apresentação dos capítulos

Capítulo 1 — AERONAVES REMOTAMENTE PILOTADAS (DRONES):

HISTÓRIA, CENÁRIO ATUAL E SOBERANIA ESTADUNIDENSE. No primeiro

capítulo da dissertação, narramos uma história das aeronaves remotamente pilotadas,

alguns aspectos técnicos e as potencialidades letais e não-letais destes dispositivos na

atualidade, bem como perspectivas para os próximos anos. Essas informações foram

recolhidas no guia militar das forças armadas estadunidenses. Ainda, neste mesmo

capítulo, descreveremos a estrutura de treinamento dos pilotos de drones e situaremos

as aeronaves remotamente pilotadas no âmbito das áreas humanas, relacionando-as às

questões de poder militar e soberania do Estado.

Capítulo 2 — ÉTICA E RESISTÊNCIA: FICÇÃO E RELATÓRIOS

MULTILATERAIS. Neste capítulo, abordaremos, aspectos éticos do uso da tecnologia

drone e os direitos humanos internacionais, tendo como base dois relatórios da

Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).

Capítulo 3 — DRONE ART: UMA CARTOGRAFIA DESCRITIVA. Neste

capítulo, o material apresentado representa uma cartografia dos questionamentos e

reflexões artísticas por meio dos produtos idealizados e, algumas vezes, construídos por

artistas, designers e arquitetos de diversas nacionalidades. A coleta desses trabalhos foi

realizada por muitas horas, com o apoio de mecanismos de buscas convencionais e do

detalhamento na pesquisa em sites individuais de artistas, revistas de arte

contemporânea, fóruns online etc. Alguns dos projetos encontrados estavam tão

camuflados na rede que parecia ser proposital. Foram coletados projetos e organizados

em três categorias: a primeira, chamada Recalibrando, apresenta trabalhos nos quais

ocorrem modificações de diferentes tipos de drones civis, para uso em outro propósito.

A segunda categoria, nomeada Incomodando, mostra trabalhos que tendem a ser

conceitualmente agressivos, forçando o público a questionar os direitos à privacidade e

à vida. A terceira categoria, Coexistindo, apresenta novas experiências e interpretações

sobre como é viver em um mundo rodeado pela tecnologia do drone.

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5 Sobre os sistemas aéreos não-tripulados

O desenvolvimento dos Sistemas Aéreos Não-Tripulados (Unmanned Aerial

Systems – UAS) é um dos produtos da agenda de prioridades expressa em tendências

que passaram por grandes desenvolvimentos tecnológicos nas últimas décadas e

principalmente nos últimos anos. A primeira tendência está baseada nos avanços das

aeronaves tripuladas, tanto pelos militares quanto pelos civis, pois ambas são

construídas com sistemas computacionais complexos e cada vez mais autônomos. Além

disso, apropriam-se das responsabilidades que eram, anteriormente, destinadas somente

aos pilotos. A segunda tendência é a sofisticação das funções de seleção de alvo. E a

última diz respeito à melhoria dos sistemas de inteligência, vigilância e reconhecimento.

Esses sistemas permitem que alvos de grande valor sejam rastreados e tornados alvos,

tendo o potencial de reduzir danos colaterais e baixas civis (O’GORMAN; ABBOTT,

2013).

O constante desenvolvimento tecnológico entre as aeronaves tripuladas, os

mísseis e as aeronaves remotamente pilotadas tornam as fronteiras entre cada um destes

dispositivos cada vez mais turvo. Esta nebulosidade aparece também ao tentarmos

compreender as guerras e conflitos armados, cujo ponto de vista é corroborado por

Hardt e Negri (2012, p. 21): “as condições e a natureza da guerra e da violência política

estão mudando. A guerra transforma-se num fenômeno geral, global e interminável”.

Com tantas informações sendo geradas continuamente na imprensa nacional e

internacional sobre as características e usos das Aeronaves Remotamente Pilotadas

(Remotely Piloted Aircrafts – RPA), observamos que é uma tecnologia que não costuma

ser bem compreendida e, às vezes, apresentada com informações equivocadas por

pessoas e grupos que não pertencem ao ambiente militar. Em virtude desse quadro,

decidimos utilizar as informações dos manuais militares, focalizando as referências

sobre as funcionalidades e o cenário atual desta tecnologia, bem como as expectativas

em relação ao seu uso no futuro.

As Aeronaves Remotamente Pilotadas (Remotely Piloted Aircrafts, doravante

RPAs) começaram a ser utilizadas pelo Exército dos Estados Unidos para operações de

combate em outubro de 2001. Nesse período, eles possuíam 54 aeronaves Hunter

(figura 01) e Shadow (figura 02). Em 2010, nove anos depois, o Exército já possuía

cerca de 4 mil RPAs com diferentes tamanhos e funcionalidades. Ao fazer uso dessa

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Fonte: http://exemplesetlimitesia.e-monsite.com/pages/deux-exemples-d-ia/les-drones.html

tecnologia, pôde-se ampliar o suporte dado aos soldados durante as operações de

combate.

Fig. 1 – Drone Hunter

Fig. 2 – Drone Shadow

É importante ressaltar que, no ano de 2001, os Estados Unidos possuíam

cinquenta e quatro aeronaves remotamente pilotadas e foi nesse ano que ocorreram os

ataques de 11 de setembro. Estes ataques originaram a guerra do Afeganistão,

inaugurando uma nova era de guerra (com fundo religioso) como também mascararam a

tensão da passagem global da modernidade para a pós-modernidade. Esse movimento

deu início a um estado generalizado de guerra global, na qual é possível, em

determinadas situações, anulações temporárias de hostilidades, “mas a violência letal

está sempre presente como potencialidade constante, sempre pronta a irromper em

qualquer lugar” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 23).

De acordo com as forças táticas estadunidenses, moduladas pelo discurso da

eficiência e diminuição de custas, para os militares operarem com eficácia num

ambiente de incertezas e complexidades numa era de conflitos persistentes, é necessário

que os líderes compreendam cada situação de conflito com profundidade, adaptando

suas ações como também sejam capazes de realizar operações com rapidez em extensas

Fonte: http://www.unmanned.co.uk/unmanned-vehicles-news/unmanned-aerial-vehicles-uav-news/army-national-guard-flies-drone-that-can-read-a-penny-from-1453-feet/

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distâncias e longos períodos. Para eles, a importância dos Sistemas Aéreos Não-

Tripulados (Unmanned Aerial Systems, doravante UAS) está em ampliar o

conhecimento e melhorar as habilidades de ver, selecionar, mirar e destruir o inimigo

com rápida resposta e contínua sustentação de apoio em ambientes desprotegidos e

perigosos.

As condições da segurança global são mais ambíguas e

imprevisíveis do que no passado. Muitos especialistas em segurança e

inteligência nacionais partilham da avaliação do Exército, que as

próximas décadas serão marcadas por conflitos persistentes de

confrontos prolongados entre Estado, não-Estado, e atores individuais

que estão cada vez mais dispostos a usar a violência para atingir seus

objetivos políticos e ideológicos. Vivemos em um mundo onde

terroristas e ideologias globais extremistas, incluindo os movimentos

extremistas como a Al Qaeda, ameaçam a nossa liberdade pessoal e os

nossos interesses nacionais. Enfrentamos adversários hábeis e sem

escrúpulos, que exploram as diferenças tecnológicas, informacionais e

culturais para agrupar os insatisfeitos à sua causa. As futuras

operações neste ambiente dinâmico provavelmente irá abranger o

espectro do conflito das operações de manutenção da paz à contra-

insurgência até grandes combates (CASEY; GEREN, 2009, p. 2,

Tradução nossa).

Tendo como parâmetro o ideário de baixos custos e maior eficiência técnica, os

Sistemas Aéreos Não-Tripulados (UAS) melhoraram significativamente o cumprimento

das missões ao reduzir a carga de trabalho do soldado e também o contato direto com o

inimigo. Esses Sistemas são capazes de prover inteligência mesmo para os níveis táticos

mais baixos da hierarquia militar, por essa razão, tornou-se a arma de escolha para ações

letais ou não. Assim, esses sistemas estão direcionando a atuação do Exército nas suas

futuras operações: salvar vidas e aniquilar o inimigo.

Ao retomar a história desta tecnologia, é fundamental falar sobre o conceito de

voo não tripulado. Este conceito foi citado na dissertação escrita por Nicola Tesla, em

1915, em que ele descreveu uma aeronave armada e não-tripulada para defender os

Estados Unidos. O programa de sistemas aéreos não-tripulados foi concretizado em

1991 quando a aeronave Pioneer (figura 03) voou de forma bem sucedida em mais de

trezentas missões de combate durante as Operações Tempestade no Deserto (Desert

Storm). Em 2010, havia mais de trezentos e vinte oito aeronaves remotamente pilotadas

nos céus das áreas de combate. Essa ação produziu cerca um milhão de horas de

gravação e de suporte às operações de combate.

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Com os rápidos avanços tecnológicos, o Exército dos Estados Unidos percebeu

a necessidade de treinar mais de 2100 novos operadores, reparadores e líderes, isto

significou um aumento de 800 por cento em relação ao ano de 2003 (DEMPSEY;

RASMUSSEN, 2010). Esse drástico aumento no recrutamento e treinamento de

operadores valida o conceito de Estado de Guerra Global, dissolvendo as distinções

entre guerra e paz (HARDT; NEGRI, 2012).

Fig. 3 – Drone Pioneer

Fonte: http://cryptome.org/2012-info/drone-photos/drone-photos.htm

6 Terminologia

Para tentar manter as terminologias utilizadas internacionalmente, nos

documentos militares estadunidenses, optamos por não utilizar traduções abreviadas. A

razão desta escolha se baseia no fato de tais abreviações serem irreconhecíveis tanto por

pessoas que costumam ler sobre o assunto quanto por leigos. A utilização das

abreviações em português como VANT, que significa veículos aéreos não-tripulados,

aconteceu em grande quantidade no início da divulgação sobre a utilização dos drones

nos últimos 3 anos, mas, ao pesquisar tal abreviação em mecanismos de busca, os

resultados são irrelevantes.

Nos primeiros ensaios desta dissertação, a nomenclatura que costumava ser mais

utilizada era UAV (Unmanned Aerial Vehicle) que, traduzindo para o português,

significa Veículo Aéreo Não-Tripulado, a qual assume, na versão abreviada, a sigla

VANT. Porém essa nomenclatura trouxe questionamentos sobre a autonomia do

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dispositivo, pois esta abreviação é facilmente compreendida como um dispositivo aéreo

sem participação humana. Nos relatórios militares de 2013 e 2014 foi utilizada,

sobretudo, a nomenclatura RPA (Remotely Piloted Aircraft) Aeronave Remotamente

Pilotada, que aparece também em comunicados da ANAC (Agência Nacional de

Aviação Civil).

Durante a Conferência Internacional AUVISI´S Unmanned Systems, que

aconteceu em maio de 2014, em Orlando, nos Estados Unidos, duas nomenclaturas

estavam em evidência: UAV e RPA. Dessas duas, o uso de RPA destacava-se tanto nas

palestras realizadas por militares estadunidenses como nas realizadas por pesquisadores

acadêmicos e militares de outras nacionalidades. Por isso, nesta dissertação, será

utilizada a nomenclatura RPA ou Aeronaves Remotamente Pilotadas. Ressaltamos que

o termo comumente apresentado ao público civil pela imprensa internacional é drone,

mas o uso desse termo causa incômodo aos militares. Aqui, o termo drone será utilizado

em alguns momentos para facilitar o reconhecimento do assunto.

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CAPÍTULO 1

AERONAVES REMOTAMENTE PILOTADAS (DRONES):

CENÁRIO ATUAL E A SOBERANIA ESTADUNIDENSE

1 O Golem

Não há um caminho certo para matar e morrer por

razões políticas. Em outros lugares, em outros momentos

as práticas foram diferentes. Nós só podemos prosseguir

examinando o nosso próprio imaginário político, uma

vez que constrói uma imagem dos fins e dos meios de

responder à violência.

Kahn (2013)

O Golem é um personagem da cultura judaica, uma criatura feita de argila e

ganha vida através de um ritual realizado por um rabino que pronunciou o nome de

Deus sobre a imagem de argila e, assim, a vida foi dada à criatura de argila. O rabino

atravessou o poder de Deus e por isso a sua arrogância deve ser punida. O golem é um

ícone da guerra ilimitada e de toda a destruição e monstruosidade atrelada à guerra.

O golem foi criado não somente para defender a comunidade judaica, mas

também para atacar aqueles que a perseguiam. No entanto, com o tempo, a criatura

começa a matar os próprios judeus indiscriminadamente. Afinal, o golem é um monstro

da guerra incontrolável e para ele não existe diferença entre amigos e inimigos. O golem

é a própria guerra que leva ambos os lados à morte. Quando a situação saiu de controle,

o rabino o transforma em argila novamente. Para Hardt e Negri (2012), o golem não é

somente uma alegoria da perda de controle sobre o mundo e sobre as conquistas

realizadas por meio das máquinas, mas principalmente da falta de discernimento e da

violência gerada pela guerra.

Existe uma grande similaridade entre o golem e os drones. Nesse sentido, Harry,

no livro O Golem à solta, entende que a “A Ciência Golem não pode ser

responsabilizada pelos seus erros; os erros não nossos (...) Um golem, mesmo poderoso,

é fruto de nossa arte e engenho” (2010, p. 02). Essa assertiva nos remete a um ponto

fundamental, as aeronaves remotamente pilotadas são uma ferramenta, elas foram

pensadas, criadas, desenvolvidas e constantemente melhoradas por seres humanos,

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sendo que estes seres humanos já são resultantes de agenciamentos sociotécnicos dos

quais fazem parte os drones. Não existem fronteiras delimitadas e fixas entre o humano

e o técnico, estamos em constante heterogênese.

2 Os sistemas aéreos não-tripulados: detalhamento

A estrutura dos Sistemas Aéreos não-Tripulados é composta pela aeronave,

pela carga, pelo operador humano, pelo visor de elemento de controle, pela arquitetura

de comunicação, pelo ciclo de logística e pelo soldado a ser apoiado. A ideia de que os

Sistemas Aéreos Não-Tripulados são “ausentes de humanos” (unmanned) é um conceito

equivocado uma vez que é necessário um piloto/controlador altamente treinado para

operar e manter as aeronaves.

Atualmente, o exército utiliza estes sistemas em todos os escalões como

suporte tático, operacional e estratégico. Os escalões são por três níveis. O nível 1,

denominado Nível Batalhão e Inferior, possui aeronaves de pequeno alcance, as quais

atingem vinte cinco quilômetros, O tempo de voo contínuo pode durar de uma a duas

horas, sendo considerado de curta duração e também operam em baixa altitude. Essas

aeronaves estão minunciosamente integradas às forças terrestres, dando apoio às

operações táticas.

No nível 2, Nível Brigada, as aeronaves têm o alcance de cento e vinte e cinco

quilômetros, são de média duração, podendo ser operadas por cinco a dez horas e são

utilizadas em missões que integram as forças terrestres e outras aeronaves.

No último nível, Nível Divisão e Superior, as aeronaves são consideradas de

longo alcance, conseguem voar por cerca de duzentos quilômetros e a duração dos voos

chegam a dezesseis horas ou mais. São utilizadas em missões de suporte direto, ou de

suporte geral para os níveis táticos e operacionais.

O objetivo dos militares é de utilizar todas as habilidades que os Sistemas

Aéreos Não-Tripulados possuem no momento e atualizá-las com tecnologias

emergentes para que o combatente possa conduzir suas missões com maior eficácia em

qualquer tipo de conflito e com risco de vida reduzido. A melhora da eficácia durante o

combate já foi comprovada, já que a carga de trabalho do soldado e o risco de contato

direto com o inimigo foram diminuídos.

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As Aeronaves Remotamente Pilotadas (RPAs) são utilizadas da seguinte

forma:

Reconhecimento e Vigilância: Esta é a maior prioridade de uso

destas aeronaves. Elas possuem a tecnologia necessária para encontrar

explosivos químicos, biológicos, radiológicos, nucleares e explosivos

de alto rendimento, ajudando a minimizar a exposição dos

combatentes. Outro auxílio dado ao soldado é a possibilidade de

encontrar e destruir áreas explosivas e minas terrestres.

Segurança: As operações de segurança fornecem informações sobre

as ameaças e sobre o terreno onde acontece o conflito e permitem

observar se os soldados estão correndo risco de vida.

Ataque: As aeronaves servem para dar suporte ao combate ao operar

de forma combinada para destrui-lo com disparos. Também é possível

realizar o ataque eletrônico em que o equipamento do inimigo seja

degradado, neutralizado ou completamente destruído, neutralizando as

capacidades inimigas. Outra habilidade é a destruir alvos de grande

valia com fogo direto ou indireto, com a exposição mínima de

sistemas tripulados, nestas missões a tecnologia RPA deve localizar,

atacar e conduzir danos físicos com rapidez. Outra característica é a de

identificar e localizar com precisão os alvos militares em tempo real e

diferenciando-os entre amigos, inimigos, neutros e não-combatentes.

Funções de sustentação: Os Sistemas Aéreos Não-Tripulados podem

prover funções de entrega de suprimentos e materiais para unidades

que estão em campo de batalha (DEMPSEY; RASMUSSEN, 2010, p.

03, Tradução nossa).

O início dos voos não-tripulados começou quando Tesla, em 1915, acreditava

que uma aeronave armada não-tripulada pudesse ser usada para defender os Estados

Unidos. E em 1919, Elmer Sperry, o criador da tecnologia giroscópio e do piloto

automático, utilizou uma aeronave não-tripulada para afundar um navio de batalha

alemão como demonstração das potencialidades da sua tecnologia. Em 1953, no

Arizona, mais precisamente no Fort Huachuca, o exército utilizava a área para testar os

Sistemas Aéreos Não-Tripulados. Em 1979, o exército adquiriu sua maior aquisição em

UAS chamada de Programa Áquila, mas durante os testes operacionais somente sete dos

cento e cinco voos foram bem sucedidos, ou seja, somente 7,35% dos voos atingiram

seus objetivos.

Em 1985, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos (Department of

Defense, DOD) comprou de Israel a aeronave remotamente pilotada Pioneer. No

entanto, essa aeronave obteve um resultado completamente diferente do Programa

Áquila, o Pioneer, que possuía um sistema de melhor qualidade e voou em mais de

trezentas missões de combate, incluindo as operações Tempestade no Deserto em 1991,

caçando os mísseis Scud e alvos de grande valor.

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Em virtude do sucesso das Aeronaves Remotamente Pilotadas, o Congresso

dos Estados Unidos aprovou o FY 2007, lei pública 109-364, conhecida como John

Warner National Defense Authorization Act. Essa lei seria o ato de autorização de

defesa nacional e o Departamento de Defesa deveria estabelecer as seguintes políticas:

Identificar uma preferência de sistemas não-tripulados para a

aquisição de novos sistemas.

Estabelecer uma estrutura organizacional para um gerenciamento

eficaz.

Coordenar e orçamentar o desenvolvimento e aquisição de sistemas

não-tripulados.

Desenvolver um plano de implementação que possibilite o progresso

para que seja possível que, em 2010, um terço das operações de ataque

aéreo das Forças Armadas sejam não-tripuladas (DEMPSEY;

RASMUSSEN, 2010, p. 05, Tradução nossa).

Durante as leituras dos materiais militares, percebemos que o exército tem a

intenção de integrar os sistemas não-tripulados com os tripulados, aumentando as

possibilidades estratégicas e seu uso está atrelado aos momentos de paz. Desse modo,

estas aeronaves serão utilizadas em operações apropriadas seguindo os padrões

nacionais e internacionais quando forem definidos pela Administração Federal de

Aviação dos Estados Unidos (Federal Aviation Administration, FAA). Além disso,

tanto os mandatos congressionais como as lições aprendidas durante os testes e

combates já realizados e em andamento continuam a validar para os militares a

necessidade das capacidades dos Sistemas Aéreos não-Tripulados com uma comunidade

profissional e padronizada. Maiores níveis de autonomia vão aprimorar o desempenho

destas aeronaves, diminuindo também o custo, o risco e a quantidade de pessoas

envolvidas. E os avanços nos sistemas permitirão um grande aumento no processamento

de dados com origem de fontes variadas.

Podemos definir os Sistemas Aéreos não-Tripulados sendo compostos por

aeronave remotamente pilotada, carga, elemento humano, elemento de controle

(controle do feedback que atua na máquina que está sendo comandada), plataforma de

sistema de armas, display, arquitetura de comunicação, ciclo de vida da logística, e o

soldado a ser apoiado. Por mais que a aeronave em si seja não-tripulada, o sistema como

um todo tem a necessidade absoluta do componente humano para realizar as funções

táticas e operacionais. O exército pretende tirar o máximo de proveito desta tecnologia

para diminuir a carga de trabalho do soldado, aumentando a agilidade, flexibilidade e

adaptabilidade dos combatentes.

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As aeronaves não tripuladas podem ter suas asas fixas ou circulares realizando

rotações e até mesmo serem mais leves do que qualquer outra aeronave e são capazes de

voar sem tripulação. Dentro destas aeronaves estão os sistemas de propulsão, aviônica

(sistema eletrônico, equipamento e outros dispositivos), combustível, navegação e data

links (equipamento para a transmissão e recepção automática de informação)

(DEMPSEY; RASMUSSEN, 2010).

Conforme dissemos anteriormente, para que os Sistemas Aéreos não-tripulados

sejam empregados de forma bem sucedida, o elemento humano é crucial. Mas os

Sistemas Aéreos não-tripulados operam sim dentro de graus variados de autonomia,

mas sempre é necessária a intervenção humana durante a realização das missões. Os

comandantes das missões devem estar seguros de que o seu pessoal tenha os requisitos

necessários para operar esta tecnologia, que estejam em quantidade suficiente e

consciente das limitações da máquina em si, para que, então, as missões tenham êxito.

Atualmente, alguns sistemas não-tripulados precisam de duas ou mais pessoas no

controle da aeronave e da carga útil, referenciado como o payload que são a câmera e

sensores variados. Acredita-se que, no futuro, um único operador será capaz de

comandar múltiplos sistemas simultaneamente de uma única estação de controle.

As aeronaves remotamente pilotadas fornecem comunicação aérea capaz de

aumentar a rede de suporte a uma missão e possui a capacidade de retransmitir as

informações para as operações de terra. As chamadas datas links que realizam a

transmissão e recepção automática de informações podem fornecer diretamente ao

combatente imagens e outros dados informacionais. O combatente precisa que a

arquitetura de comunicação dos Sistemas Aéreos não-Tripulados transmita dados e voz

interoperáveis para reduzir o tempo sensor-disparo. Da mesma forma que as aeronaves

tripuladas, os sistemas aéreos não-tripulados precisam de suporte logístico, que inclui o

equipamento para combate, transporte, lançamento, recuperação, comunicação e de

sustentação do sistema.

A categorização dos Sistemas Aéreos não-Tripulados facilita na criação de

terminologias, na comunicação e no compartilhamento de conhecimento, produzindo

um quadro unificado para organizações e grupos de diferentes pontos de vista. A

importância da categorização está em criar referências não ambíguas e a metodologia

aplicada para a categorização está nas referências de peso, altitude e velocidade.

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Grupo 1 – As aeronaves deste grupo costumam ser lançadas

manualmente, são sistemas leves e portáteis utilizados por pequenas

unidades do nível batalhão e inferior, ou para a segurança da base, são

capazes de realizar ações de reconhecimento a curtas distâncias e

baixas altitudes (até 366 metros de altura) e tempo limitado de voo.

Grupo 2 – Os sistemas deste grupo são comumente considerados de

médio tamanho, lançados através de uma catapulta, são sistemas

móveis e dão apoio aos níveis de brigada e para inteligência,

vigilância, reconhecimento (ISR – intelligence, surveillance and

reconnaissance) e reconhecimento, vigilância e aquisição de alvos

(RSTA – reconnaissance, surveillance, and target acquisition) para

níveis inferiores do escalão. São sistemas que operam abaixo de 1067

metros de altitude e são de médio alcance. Costumam ser utilizados

em áreas onde não há pista de pouso. Trata-se de um grupo maior do

que o Grupo 1, mas possui maior potência e resistência (tempo de

voo), tornando possível que as aeronaves do grupo 2 carreguem

sensores e que suas câmeras tenham maior resolução. Mas para

transportar este sistema, é necessário mais recursos e pessoal do que o

grupo anterior.

Grupo 3 – Os sistemas deste grupo são maiores do que os do Grupo

1 e 2, alcançam médias altitudes e o seu alcance varia entre média e

longa distância, o mesmo acontece com a sua resistência (tempo de

voo). Na sua carga útil, há sensores eletro-ópticos/infravermelho

EO/IR (Electro-Optical / Infrared), laser de longo alcance (LRF/D -

Laser Range Finder / Designator), radar sintético de abertura (SAR -

Synthetic Aperture Radar), indicadores de alvos em movimento, sinal

de inteligência (SIGINT – Signal Intelligence), retransmissão de

comunicação, detecção de substâncias explosivas, detecção

armamento químico, biológico, radiológico, nuclear e de explosivos

de alto rendimento. Este grupo consegue carregar munições guiadas e

precisão e não precisam de pistas de pouso de qualidade. Mas quando

estão carregando armamento possuem menor duração de voo.

Grupo 4 – Neste grupo, os sistemas são consideravelmente grandes,

operando entre médias e altas altitudes, de longo alcance e longo

tempo de voo. A sua carga útil possui sensores eletro-

ópticos/infravermelho (EO/IR – Electro-Optical /Infrared), radares,

lasers, retransmissão de comunicação, sistemas automatizados de

identificação (AIS – Automated Identification System), sinal de

inteligência (SIGINT – Signal Intelligence), e armamento. As

aeronaves deste grupo devem estar dentro dos padrões de

aeronavegabilidade do Departamento de Defesa dos Estados Unidos

(DOD – Department of Defense) antes da operação dentro do espaço

aéreo nacional. A resistência das aeronaves remotamente pilotadas

deste grupo permite o carregamento de uma carga muito maior de

munição do que o grupo 3, mas, para ser utilizada em operações, é

necessário que a pista de decolagem/pouso seja de alta qualidade.

Grupo 5 – Neste grupo, estão os maiores sistemas que são capazes

de voar em médias e altas altitudes, além disso, possuem maior

alcance, resistência de voo e velocidade do que as aeronaves dos

grupos anteriores. Costumam ser necessárias para missões específicas,

onde uma grande área precisa estar sob vigilância e possível ataque.

Da mesma forma que o grupo 4, também é necessário que estejam

dentro dos padrões de aeronavegabilidade do Departamento de Defesa

dos Estados Unidos (DOD – Department of Defense) antes da

operação dentro do espaço aéreo nacional e também precisam de uma

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pista de decolagem/pouso de alta qualidade. A carga útil inclui

sensores eletro-ópticos/infravermelho (EO/IR - Electro-Optical /

Infrared), radares, lasers, retransmissão de comunicação, sistemas

automatizados de identificação (AIS – Automated Identification

System), sinal de inteligência (SIGINT – Signal Intelligence),

armamento e suprimentos. (DEMPSEY; RASMUSSEN, 2010, p.13,

Tradução nossa).

De acordo com a visão do exército sobre esta tecnologia, foi elaborada uma

lista de objetivos a serem alcançados a curto, médio e longo prazo, e três destes

objetivos chamaram a atenção:

Objetivo 2.2 — Desenvolver comportamento autônomo que permita a

capacidade de missões táticas independentes.

Objetivo 5.1 — Promover o desenvolvimento, adoção e aplicação de

padrões governamentais, internacionais e comerciais para o design,

produção, teste e operações seguras para os Sistemas Aéreos Não-

Tripulados.

Objetivo 5.2 — Desenvolver o domínio para os Sistemas Aéreos

Não-Tripulados para que possam “sentir” e “evitar” outros objetos,

provendo um nível de segurança equivalente as aeronaves tripuladas

(DEMPSEY; RASMUSSEN, 2010, p. 13-14, Tradução nossa).

Os Sistemas Aéreos não-Tripulados estão presentes em todo o escalão militar e

em operações variadas de reconhecimento; vigilância; segurança; ataque e comando,

controle e comunicação (C3 — Command, Control and Communication), dando suporte

ao combatente ao realizar ações precisas.

Um conceito muito difundido entre os militares é a chamada parceria tripulada-

não-tripulada (MUM — Manned Unmanned Teaming), a qual promove uma coesão das

qualidades das plataformas tripuladas em conjunto as qualidades dos Sistemas Aéreos

não-Tripulados, combinando robótica, sensores, veículos tripulados e não-tripulados e

realidade virtual para que o soldado compreenda melhor o combate através da

simulação contextualizada, aumentando a letalidade e as chances de sobrevivência.

Nesta parceria tripulada-não-tripulada, o piloto de uma aeronave tripulada pode acessar

os sensores da aeronave remotamente pilotada (por outro piloto) que pode estar até

mesmo a 80 quilômetros à frente, dando ao piloto uma capacidade sem precedentes nas

missões, aumentando a eficácia e taxas de sobrevivência não somente dos militares

americanos, mas também de forças amigas. Esta junção torna possível que sejam

disparados o armamento da aeronave remotamente pilotada, como também da aeronave

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tripulada, além disso, a utilização de tropas terrestres faz parte deste conjunto

operacional.

As operações de reconhecimento, vigilância, inteligência e aquisição de alvos

precisam de contínua vigilância e reconhecimento para que seja possível fornecer

indicativos oportunos e avisos de ameaça à segurança e de perigo iminente para ataques

já em andamento. As missões através das aeronaves remotamente pilotadas nestas

missões passam aos comandantes informações sobre o terreno inimigo, a organização, a

infraestrutura e as forças necessárias para planejar ações de combate em larga escala e,

possivelmente, duração e contingências. Estes sistemas também dão suporte à execução

de operações como monitoramento dos chamados centros de gravidade do inimigo,

capacidades de ataque, ofensiva inimiga e posições defensivas, e avaliação de danos de

batalha (BDA — Battle Damage Assessment).

Os Sistemas Aéreos não-Tripulados começam a dar suporte às funções dos

soldados em combate e acredita-se que este apoio será crescente nos seguintes aspectos:

Mobilidade e Manobra — Estes sistemas se movem com velocidade,

resistência e discrição e colaboram de forma coordenada com os

sistemas de formações terrestres e aéreos, com capacidades letais ou

não letais para conquistar posições vantajosas ampliando a eficácia do

comandante da operação.

Inteligência — Os Sistemas Aéreos não-Tripulados são elementos

integrados do chamado ISR (intelligence, surveillance and

reconnaissance), composto pela inteligência, vigilância e

reconhecimento. Tais sistemas são plataformas flexíveis e sensíveis,

equipadas com uma variedade de opções de carga útil para apoiar o

comandante da missão para o recolhimento de informações. Acredita-

se que com o passar dos anos, estes sistemas poderão processar mais

dados a bordo, transmitindo mais dados e informações pertinentes ao

soldado.

Disparos — Os Sistemas Aéreos não-Tripulados (UAS) dão suporte a

todos os aspectos do ciclo sensor-atirador (sensor-to-shooter),

diminuindo significativamente o tempo de resposta com o

reconhecimento e rastreamento de alvo, laser indicador de alvo e

avaliação de danos de batalha. Além dos suportes já mencionados,

eles também ajudam a pedir por disparo de fogo e a ajustar

indiretamente missões de fogo com morteiros e artilharia. As

aeronaves pilotadas remotamente que estiverem armadas podem

realizar ações letais e não letais, no caso de operações de informação,

por exemplo, a carga útil da aeronave é para realizar combates

eletrônicos (electronic warfare).

Proteção — Neste aspecto, os Sistemas Aéreos Não-Tripulados

(UAS) são capazes de manter a segurança e responder imediatamente

a ameaças emergentes durante manobras, operações de escolta e nas

proximidades de bases fixas, aumentando as chances de sobrevivência

do indivíduo. A utilização dos UAS na manobra, disparos e

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inteligência contribuem para a proteção das Forças Armadas,

fornecendo alertas precoces, rastreamento e reconhecimento de alvos.

A combinação entre as tecnologias tripuladas e não-tripuladas

oferecem o chamado overwatch que é quando uma unidade de

pequeno porte ou veículo dá suporte a outra unidade que está

realizando ações táticas ou estão no momento do combate.

Sustentação — Futuros sistemas poderão realizar de forma não-

tripulada o abastecimento de veículos/aeronaves, segurança de

comboio, evacuação médica, vigilância de gasoduto, armazenagem,

base em alto mar, capacidade em ações mortuárias. A sustentação

nestes sistemas não-tripulados vão garantir uma manutenção rápida e

ininterrupta.

Comando e Controle — Os sistemas atuais ampliam a gama de

Comando e Controle nas operações através de uma forte capacidade

de extensão de rede, e para o futuro é esperado o fornecimento de

entradas para transmissão e retransmissão de sinais em diferentes

bandas para os momentos de ausência de comunicação via satélite

(DEMPSEY; RASMUSSEN, 2010, p. 21, Tradução nossa).

A padronização de hardware e software de controle entre as plataformas

asseguram uma integração fluida durante as operações. Esta interoperabilidade é de

grande importância para o chamado SUAS que são as pequenas aeronaves não-

tripuladas (Small Unmanned Aircraft Systems, SUAS) com os veículos de terra não-

tripulados e sensores autônomos. A tendência crescente no compartilhamento de dados,

comando, controle e execução irão expandir o papel dos sistemas não tripulados e sua

aplicação em combate que terão seus hardwares cada vez mais miniaturizados.

A aplicação desta tecnologia nos combates pode ser separada em dois grupos:

ofensivas e defensivas. As operações ofensivas de combate são conduzidas para derrotar

e destruir as forças inimigas, ganhar terreno, recursos e áreas populosas, tais operações

pressionam os inimigos fazendo com que eles reajam, mostrando possivelmente

fraquezas que podem ser utilizadas contra o próprio inimigo, criando então uma espécie

de ciclo de deterioração, levando ao seu desaparecimento. Já as operações defensivas

são operações para derrotar ou anular um ataque inimigo, economizando forças e tempo,

mantendo tanto o território como se protegendo, criando, então, um cenário adequado e

propício para a realização de operações ofensivas que podem acontecer em qualquer

local.

Durante as operações no Iraque e no Afeganistão, a necessidade da utilização

de aeronaves remotamente pilotadas foi validada também para dar suporte às pequenas

unidades de soldados que estavam localizados em áreas de grande risco e de difícil

acesso, até mesmo locais em que veículos não conseguem rodar. As operações

realizadas nestes dois países aceleraram drasticamente a proliferação da tecnologia não

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tripulada e, atualmente, a maior parte das operações de vigilância já está sendo realizada

por aeronaves pilotadas remotamente.

Esta é uma tendência em ascensão, isso porque são ideais para operações de

reconhecimento com capacidade de ações ofensivas, mas suas capacidades ainda são

consideradas primitivas a curto prazo (ataque, sustentação e utilidade) em relação às

expectativas das Forças Armadas dos Estados Unidos. No momento, contínuas análises

e experimentações ajudam a determinar quando é apropriado utilizar a tecnologia não-

tripulada ou tripulada. Os soldados estão percebendo a rápida integração entre os

Sistemas Aéreos Não-Tripulados e a tecnologia existente indo ao encontro das

necessidades do campo de batalha. Mas as capacidades de rede atuais ainda estão

limitando a utilização destes sistemas. As melhorias tecnológicas como o controle de

vários sistemas, capacidade de decolagem e aterrisagem verticais, anticolisão,

sobrevivência, armamento, autonomia, parceria tripulada e não-tripulada, pequenos

motores pesados de combustível, comunicações/transmissão e extensão estão sendo

desenvolvidas continuamente.

As operações mistas, em que aeronaves tripuladas e não-tripuladas ocupam o

espaço aéreo, fazem com que ambas as tecnologias sejam melhoradas para trabalharem

em sinergia. Com os Sistemas Aéreos não-Tripulados, uma integração de capacidades

em diversos tipos de operações começou a acontecer. Isso quer dizer que estes sistemas

não são apenas uma ferramenta em si, ela está influenciando a integração das equipes

militares em formações, alterando a estrutura social das unidades em todos os níveis,

trazendo a própria evolução do corpo militar.

O Departamento de Defesa dos Estados Unidos também utiliza os Sistemas

Aéreos Não-Tripulados para o suporte civil em situações de emergências domésticas

(nacionais), de necessidade de cumprimento da lei e outras atividades, como em

cenários de catástrofes naturais ou provocadas pelo homem, acidentes, ataques

nomeados como terroristas, e outros incidentes nos Estados Unidos e em seus

territórios. As operações de suporte civil acontecem quando os eventos superam as

capacidades das agências nacionais civis (DEMPSEY; RASMUSSEN, 2010).

A utilização dos Sistemas Aéreos não-Tripulados, para evacuar feridos, é

considerada inaceitável, e em curto prazo também é tecnologicamente inviável, além

disso, é necessário resolver aspectos morais, pois colocar um soldado ferido em uma

plataforma robótica sem acompanhamento humano e contínua assistência em vários

níveis, constitui abandono (DEMPSEY; RASMUSSEN, 2010).

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Para que os Sistemas Aéreos não-Tripulados sejam utilizados por outras

agências, o exército dos Estados Unidos planeja utilizar componentes, sistemas e

softwares dentro de um padrão, promovendo a interoperabilidade entre agências,

possibilitando que a Guarda Nacional do Exército possa proteger as fronteiras com estas

aeronaves e para que outras agências governamentais possam utilizar essa tecnologia

em desastres naturais e estados de emergência, onde as linhas de comunicação foram

interrompidas ou são inexistentes.

O Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security), o

Departamento de Energia, o Departamento Florestal e o Serviço de Pesquisa Geológica

Nacional estão adquirindo Sistemas Aéreos não-Tripulados para serem utilizados na

segurança de fronteira, localizar incêndios florestais, facilitar rápidas ações no caso de

desastres naturais e para conduzir pesquisa científica.

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3 A construção do inimigo invisível

Operações conduzidas entre populações locais em meio a crises humanitárias

com potencial de assassinatos em massa e limpezas étnicas, com culturas das quais os

soldados americanos não estão familiarizados, são e continuarão sendo o ambiente de

operações militares. As localizações comuns onde acontecem estas operações são áreas

desordenadas onde, de acordo com os militares dos Estados Unidos, não há lei. Existe a

ausência de segurança e de um governo eficaz, e o poder é disputado por diferentes

facções (DEMPSEY; RASMUSSEN, 2010).

As ameaças, nos contextos mencionados acima, são e continuarão a ser

híbridas, ou seja, virão de forças regulares ou irregulares, capazes de realizar ações

criminosas com táticas mutáveis, para alcançar seus objetivos. Essas táticas, passíveis

de se adaptar a um mundo globalizado e em rede (LATOUR, 2013), criarão constantes

dilemas e mesclar-se-ão na desordem das populações locais que possuem tecnologias

antigas e avançadas, incluindo a possibilidade de armas de destruição em massa.

Tais inimigos operam tanto de forma convencional como não-convencional,

empregando táticas criminosas, que combinam adaptações e assimetrias ao utilizar

capacidades militares tradicionais e inovadoras. As ameaças desafiam os Estados

Unidos de forma direta ou indireta, influenciando as vontades nacionais e políticas com

campanhas de informação sofisticadas, como também conduzindo ataques físicos dentro

do território dos Estados Unidos. As operações militares resultarão em compromissos a

longo prazo e a longas distâncias. Por isso, elas precisarão de ferramentas de

interagência e não-militares para ajudar na resolução dos conflitos. Tudo isso realizado

sob o olhar midiático impassível e onipresente, dando aos eventos locais uma

significância global.

O exército dos Estados Unidos não acredita na existência de outra força militar

equivalente à força estadunidense pelos próximos 25 anos (DEMPSEY; RASMUSSEN,

2010). No entanto, a proliferação de armas e tecnologia armamentista permitirá que os

Estados subdesenvolvidos e grupos independentes adquiram recursos semelhantes,

tornando a previsão de ambientes e tipos de conflito menos possível. Por exemplo, os

conflitos podem ocorrer em ambientes completamente diferentes, abrangendo desde

áreas urbanas complexas e densamente populosas (prédios, infraestruturas subterrâneas

e favelas) a áreas de baixo número populacional (zona rural, montanhas, desertos e

florestas). Cada ambiente produzirá um efeito direto e negativo sobre a capacidade de os

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Estados Unidos reagirem, dificultando-lhes a adaptação de forças específicas,

equipamentos e treinamentos para cada tipo de combate possível.

Os militares estadunidenses admitem que os futuros adversários e/ou inimigos

(ainda não estabelecidos) tentarão derrotar sua força militar para realizarem diferentes

operações. Nesse caso, o tipo de combate seria uma combinação da guerra tradicional,

misturada com o terrorismo e a insurgência. A incompatibilidade tecnológica global

entre os futuros adversários dos Estados Unidos e as suas Forças Armadas fará com que

estas enfrentem adversários descentralizados, distribuídos, amorfos, contínuos e

invisíveis como força militar, empregando operações de insurgência e paramilitares.

Também será possível o uso de outras táticas não-militares como operações

psicológicas, desobediência civil e resistência econômica, além do emprego de técnicas

de camuflagem, engodo e escudos humanos. Em menor escala, pode haver ameaças de

pequenos grupos a operar em terrenos complexos como áreas urbanas, selvas e

montanhas. Esses grupos utilizarão armas de pequeno porte, granadas, metralhadoras

antiaéreas, antitanque portátil, mísseis antiaéreos e outros tipos de armas produzidas

localmente como explosivos e minas. Essas são formas de dissimulação que exploram o

ambiente nativo e seus habitantes para efeitos de surpresa e proteção. Quanto às

ameaças aos Sistemas Aéreos Não-Tripulados (UAS – Unmanned Aerial Systems), os

riscos de danos recairão sobre a possibilidade de integração de sistemas aéreos inimigos

e ataques eletrônicos.

Da exposição realizada nos dois últimos parágrafos surgem alguns pontos de

reflexão: primeiro, a guerra funciona como um instrumento do Estado nas relações

políticas internacionais; segundo, a relação política efetua a distinção entre Estado

amigo e Estado inimigo; terceiro, o conceito de “estado de exceção”.

Em relação ao “estado de exceção”, Hardt e Negri (2012) põem-no em questão.

Para os autores, é preciso saber como a exceção (guerra) tornou-se a regra.

Historicamente, o conceito de “estado de exceção” está ligado à tradição jurídica alemã,

que previa, em momentos de graves crises e de guerra, a suspensão temporária da

Constituição e do império da lei e o estabelecimento de um executivo forte e poderoso

ou de um ditador para proteger o Estado. No entanto, o sentido antigo desse conceito

não recobre a realidade do novo estado de guerra. Por isso precisamos compreender

como ele funciona dentro da cultura política estadunidense, aparentemente complexa,

conforme se pode notar na declaração da ex-secretária Madeleine Albright: “Se

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precisamos recorrer à força, é porque somos a América. Nós somos a nação

indispensável (ALBRIGHT, 1998, p.1, Tradução nossa).

O excepcionalismo estadunidense tem duas faces. Por um lado, os Estados

Unidos apresentam a sua história como livre de corrupção das formas europeias de

soberania, apresentando-se como símbolo da pretensa democracia, dos direitos humanos

e do império internacional da lei. Por outro lado, esse excepcionalismo também

significa a exceção diante da lei. São exemplos disso as recorrentes desobediências a

acordos internacionais e a conduta livre dos militares norte-americanos em casos de

ataques preventivos, controle de armas e detenções ilegais, sob a justificativa de que

“aquele que comanda não precisa obedecer” porque “as leis devem coagir apenas as

más nações” (HARDT; NEGRI, 2012, p.28). Se a maior virtude estadunidense, isto é, a

democracia, pode ficar acima da lei, ela mostra-se, então, uma tirania, desfazendo,

contraditoriamente, a liberdade, a igualdade, a democracia, a ética e a moral.

Quando o estado de exceção torna-se a regra, as fronteiras entre a guerra e a

política obscurecem e a guerra transforma-se numa relação social permanente. Para

Hardt e Negri (2012), a guerra tornou-se um princípio da sociedade e os raros

momentos de paz são prelúdios de um novo conflito.

A guerra transforma-se na matriz geral de todas as relações

de poder e técnicas de dominação, esteja, ou não, envolvido o

derramamento de sangue. A guerra transformou-se num regime de

biopoder, vale dizer, uma forma de governo destinada não apenas a

controlar a população, mas a produzir e a reproduzir todos os aspectos

da vida social. Essa guerra traz morte mas também, paradoxalmente,

deve produzir vida. Isto não significa que a guerra foi domesticada ou

que sua violência tenha sido atenuada, e sim que a vida cotidiana e o

funcionamento normal do poder passaram a ser permeados pela

ameaça da violência da guerra (HARDT; NEGRI, 2012, p. 34).

Com a chamada guerra ao terror, os Estados Unidos demonstraram que ela

espalhar-se-ia pelo mundo e por tempo indefinido. Uma guerra para criar ou manter a

ordem social não pode ter fim, assim, o uso da violência será contínuo e não será mais

possível distinguir a guerra da atividade policial. Este novo estado de guerra desfaz as

fronteiras entre a política e as relações internacionais, bem como entre as forças

militares e as policiais. Não obstante, há uma sombra sobre este novo estado de guerra.

Por exemplo, a ideia de bem e mal ligada à religião permite que, em situações de

opressão a determinados fiéis de religiões “não-amigas”, o preconceito, racismo e as

secções nas sociedades ocidentais sejam disseminados. A crença de que determinado

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inimigo é a “encarnação do mal” retira os conflitos da esfera política para uma esfera

espiritual. A guerra contra o terror inaugurou a concepção de fronteiras móveis

(SUCHMAN, 2015), essa ideia é reforçada com a concepção de que territórios hostis

expandem-se de acordo com o medo do inimigo invisível.

Até o início do século 20, a palavra terrorismo era usada para atentados

anarquistas à bomba na Rússia, França e Espanha, mas seu significado foi ampliado.

Atualmente, trata-se de um conceito político de guerra ou de guerra civil que apresenta

três fenômenos: a rebelião contra um governo legítimo; a violação dos direitos humanos

por parte de um governo; e a violação das regras de combate durante um conflito

(HARDT; NEGRI, 2012). No entanto, estas definições variam de acordo com quem as

determina e as legitima. Tanto as doutrinas da guerra justa quanto as da chamada guerra

contra o terror empenham-se no controle social, diminuindo as liberdades civis e

aumentando os índices de encarceramento mediante a criação de uma guerra social

permanente. Conforme assinalam Hardt e Negri:

As novas formas de poder e controle funcionam em

contradição cada vez mais acentuada com a nova composição social

da população, servindo apenas para bloquear suas novas formas de

produtividade e expressão (HARDT; NEGRI, 2012, p. 33).

A guerra demanda hierarquia e obediência, a democracia cede espaço para a

autocracia, submissão incondicional ao Estado (ou líder). Se, de fato, o estado de guerra

é permanente, então, a democracia deixará de ser a regra.

Atualmente, a distinção entre a guerra global de uma ação policial não é fácil.

Antigamente, os modernos viam a guerra como elemento fundamental da vida social; os

militares modernos viam-na como algo destrutivo e inevitável; enquanto na filosofia a

guerra era percebida como um elemento positivo, de glória e de construção da

solidariedade social. Entretanto, dentro destes três grupos, a guerra não era vista como

algo absoluto, ou seja, a guerra não dominava a vida.

A guerra só se torna efetivamente absoluta com o

desenvolvimento tecnológico de armas que pela primeira vez tornaram

possível a destruição em massa e mesmo a destruição global. As

armas de destruição global rompem a moderna dialética da guerra. A

guerra sempre envolveu a destruição da vida, mas no século XX esse

poder destrutivo chegou aos limites da pura produção de morte,

simbolicamente representada por Auschwitz e Hiroshima. A

capacidade de genocídio e destruição nuclear atinge diretamente a

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própria estrutura da vida, corrompendo-a, pervertendo-a. O poder

soberano que controla tais meios de destruição é uma forma de

biopoder neste sentido mais negativo e terrível da palavra, um poder

que decide de maneira direta sobre a morte – não apenas a morte de

um indivíduo ou grupo, mas da própria humanidade e talvez mesmo

de tudo que existe. Quando o genocídio e as armas atômicas colocam

a própria vida no centro do palco, a guerra torna-se propriamente

ontológica (HARDT; NEGRI, 2012, p. 41).

O biopoder tem o poder tanto de destruição em massa quanto de exercício do

poder sobre o indivíduo, um exemplo disso é a tortura. Atualmente, a obediência em si

não parece mais suficiente para o Estado afirmar seu poder sobre os indivíduos. As

técnicas de tortura ao mesmo tempo em que se tornam mais sofisticadas e realizadas em

locais discretos, também se tornam cada vez mais banais. Revistas corporais, privação

de sono e tormentos físicos interseccionam a ação policial e a guerra, tornando-as

semelhantes. Conforme apontam Hardt e Negri (2012), trata-se de uma técnica de poder

essencial, inevitável e justificável1. A tortura psicológica também cresce nas regiões

atacadas por aeronaves remotamente tripuladas. Esta forma específica de tortura ocorre

mediante a tensão que acomete a população civil exposta à constante possibilidade de se

tornar a próxima vítima de um ataque de drone.

Simultaneamente, o poder soberano precisa proteger seus cidadãos, desde que

eles sejam capazes de produzir e consumir (aqui entra o biopoder novamente para

regular a vida). Nesse sentido, proteger os cidadãos estadunidenses é sempre uma

justificativa do Governo dos Estados Unidos para legitimar as intervenções militares.

No entanto, essa legitimidade2 passa pela aceitação social da inevitabilidade do conflito.

Muitas vezes, os sentidos evocados pela noção de guerra e todo seu campo semântico

provocam resistência social por estarem marcados negativamente. Mudanças políticas

são empreendidas nesse sentido. Um exemplo disso é a mudança efetuada pelo Governo

dos Estados Unidos, por meio da imprensa, do uso de “defesa” pelo de “segurança”,

pois esta noção evoca um comportamento político e militar ativo e contínuo para

prevenir futuros ataques.

1 Essencial, inevitável e justificável dentro do ponto de vista do poder soberano sobre técnicas de poder.

2 A palavra legitimidade aparece nos textos de Hardt, Negri, Virilio e também nos relatórios da ONU.

Aqui deixamos claro que nenhuma violência é legítima, porém o significado da palavra legitimate (em inglês) é sobre a legalidade de uma ação militar. Nesta perspectiva, acreditamos que a tradução para legítimo ou legitimidade utilizado em português não traduz o real significado da palavra na língua inglesa, mas mesmo assim, a replicamos por serem as palavras utilizadas na publicação em português de Multidão e dos relatórios da ONU.

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A mudança de paradigma reforça a irrelevância das fronteiras nacionais como

um ambiente continuamente condicionado por ações policiais e/ou militares com o

objetivo de tornar seus Estados seguros ou mesmo tornar seguro um Estado estrangeiro.

Pode-se dizer que esta é uma forma de biopoder. Hoje, a guerra não é mais uma ameaça

à estrutura de poder, ela tornou-se ativa e mantedora da atual ordem global e de sua

hierarquia, constituindo-se em base da própria política. O biopoder promove e regula a

vida e entra em conflito com a democracia.

Um exemplo de ação de guerra com o biopoder é a chamada “construção

nacional”. A esse respeito Hardt e Negri (2012, p. 46) assinalam que “as nações podem

ser destruídas, fabricadas ou inventadas como parte de um programa político”. Outro

exemplo da capacidade do biopoder é a retomada do conceito de “guerra justa”. Este

conceito não responde mais ao princípio moral tradicional, pois seu sentido foi alterado

com a Guerra Fria que o reinterpretou. A Guerra Fria podia ser considerada uma guerra

justa porque permitia conter as ameaças comunistas, mas não destruí-las, mantendo a

ordem global. O modelo de guerra justa foi utilizado dentro das políticas de guerras

humanitárias, redesenhando o mapa geopolítico. Depois dos ataques do 11 de Setembro,

juntamente com sua política ativa de segurança, os Estados Unidos apresentam a guerra

na ordem global. De acordo com Hardt e Negri (2012, p. 48) “a guerra imperial tem a

função de moldar o ambiente político global, tornando-se assim uma forma de biopoder

no sentido positivo e produtivo”. Trata-se de um processo regulador de poder. Além

disso, as operações irregulares da chamada guerra contra o terror motivam a expansão

de combates através dos sistemas aéreos não tripulados (SUCHMAN, 2015)

A violência legítima também pode ser monopolizada pelos Estados em um

âmbito nacional ou internacional. Quando a violência é legitimada significa que, ao

menos em teoria, os atores destas ações respondem por elas diante de ordens legais

nacionais e internacionais. Após a Segunda Guerra Mundial, a legitimação da violência

começou a ser limitada por meio do direito e dos tratados internacionais. O acúmulo de

armas também começou a ser restringido. Durante a Guerra Fria, praticamente todo o

poder militar estava nas mãos das duas superpotências. No entanto, com o fim da

Guerra Fria e o aparecimento dos discursos ligados à defesa dos direitos humanos, surge

um processo de deslegitimação da violência até mesmo dentro do território

estadunidense. Nesse sentido, Hardt e Negri observam que:

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Se a violência exercida pelo Estado-nação deixou de ser considerada

legítima a priori, com base em suas próprias estruturas legais, como

poderá então a violência ser legitimada hoje? Seriam igualmente

legítimas todas as formas de violência? (HARDT; NEGRI, 2012, p.

50).

Nos últimos anos, observa-se o uso crescente da palavra “terrorismo”, a qual,

sem definição explícita, é cada vez mais utilizada como forma de tentar legitimar a

violência em um mundo onde ela não é mais legitimada. Para alcançar essa

legitimidade, políticos, militares e acadêmicos invocam a moralidade, trazendo de volta

o antigo conceito de guerra justa na qual os direitos humanos apoiam-se por suas bases

morais. A falha desta linha de pensamento consiste na dificuldade de observar e admitir

diferentes perspectivas da situação. Ela reforça a opinião de estudiosos para os quais o

direito nacional e internacional são a única base válida para a legitimação da violência.

Atualmente, o conceito de guerra justa vem sendo substituído pelo de “nova justiça

imperial” que evoca a noção de crime contra a humanidade. Nesse processo, os

tribunais internacionais destroem os direitos de povos e a soberania das nações,

diminuindo consideravelmente o poder do direito internacional (HARDT; NEGRI,

2012).

Enquanto a justiça imperial toma forma e pune grupos e nações que estão em

um nível abaixo da hierarquia global, vemos a desigualdade nas normas legais quando

os Estados Unidos não permitem que seus cidadãos e militares submetam-se à

jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Nesse sentido, conforme Hardt e Negri

(2012), a violência dos que detêm o poder é legítima, já a violência dos que são

considerados “fracos” é tratada como terrorismo. A legitimação efetiva-se

principalmente quando ela visa manter a ordem imperial. A referência que tínhamos da

estética dos conflitos mudou. Não há mais um campo de batalha pré-determinado, cada

lado com uma estratégia específica; os alvos dos conflitos não são mais os inimigos e,

sim, os criminosos; os campos de batalha agora estão presentes dentro de áreas urbanas

e residenciais.

4 Inimigos ou Criminosos?

Ao transformar a guerra na base política, os governos atuais precisam criar a

presença constante de um inimigo, de preferência, um que ameace a ordem e não seja

específico nem visível. Trata-se da condição para tornar a segurança como algo vital.

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De acordo com Kahn (2013), a distinção entre inimigo e criminoso faz parte do

imaginário popular, está profundamente presente na teoria do estado moderno e opera

como princípio organizacional de suas instituições e ações. O autor assinala que, de

forma intuitiva, os cidadãos ocidentais sabem que os órgãos que aplicam a lei (law

enforcement) e a guerra (war) não são a mesma coisa; eles são capazes de discernir a

polícia do militar e distinguir, legalmente, o criminoso e do inimigo. Criminosos são

aqueles passíveis de punição pela sua violação à lei; os inimigos são aqueles passíveis

de morte por ameaçarem a soberania.

Em continuidade, Kahn (2013) pontua que o inimigo pode ser assassinado a

qualquer momento, mesmo sem agir, e esse ato não constitui pena de morte. Ao agir de

forma a matar pessoas e destruir propriedades, o inimigo não viola a lei. Ao ser

capturado, ele torna-se prisioneiro e detido, mas não punido. Em contrapartida, o

criminoso é punido pelo que faz, mas não morto, antes, submetido a um processo de

reabilitação social. O criminoso goza de proteção legal, o inimigo não é uma pessoa

diante da lei e sempre está fora de jurisdição, literalmente ou não.

(...) o Estado que não utilizar a categoria de inimigo, mas

somente a de criminoso, poderá não mais ocupar a moderna

categoria de Estado-Nação. Um mundo sem inimigos seria um

mundo sem uma concepção efetiva de soberania. Em tal mundo,

tribunais de crimes internacionais e mecanismos de aplicação da

lei iriam invadir o espaço dos exércitos nacionais. No entanto,

num mundo sem criminosos todos podem ser um potencial

inimigo (KAHN, 2013, p. 206, Tradução nossa).

Para Kahn (2013), há uma tendência em transformar os inimigos em criminosos.

Acreditamos, no entanto, que não ocorre uma mera substituição de categorias, tampouco

achamos que essa fosse a ideia expressa por Kahn em seu texto. Parece que os conceitos

de inimigo e criminoso difundiram-se de maneira a entrelaçar inevitavelmente o poder

militar aos órgãos de segurança pública, constituindo a guerra uma continuidade desses

órgãos.

Independente da tendência à categorização, o medo em si do Estado de ser

atacado mantém e alimenta o conceito de soberania. Conforme expusemos, o imaginário

popular ainda distingue inimigo de criminoso. Todavia, aplicar essa distinção na

realidade atual torna-se cada vez mais difícil. Afinal, “atos de violência não surgem

com rótulos” (Kahn, 2013, p. 208). A título de exemplo, observemos a dificuldade de

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categorização dos agentes dos ataques do 11 de Setembro. Seriam eles inimigos ou

criminosos? A dificuldade de categorização dos atores envolvidos nos conflitos também

pode ser aplicada à questão dos drones. Seriam as aeronaves remotamente pilotadas

armas de guerra ou instrumentos dos órgãos de segurança pública?

Seja criminoso ou inimigo, é marcado então uma distinção entre lei e

exceção. A decisão soberana nos diz de que lado estamos. Em uma era

de soberania popular, essa decisão não é uma função de declaração de

qualquer indivíduo, mas de uma percepção partilhada. As pessoas

decidem entre criminoso ou inimigo quando imaginam a política

mundial de uma maneira e não de outra. Isto não é nem a conclusão de

um argumento, nem um ato arbitrário. É uma maneira de dar sentido à

experiência, começando com uma imaginação distinta de tempo e

espaço (KAHN, 2013, p.208, Tradução nossa).

Kahn (2013) expõe que o Estado ocupa dois tipos de regime geográfico. O

primeiro é o território e o segundo é a propriedade. Externamente, o Estado é um

território fronteiriço, deixando clara a ideia de estar dentro ou fora deste local, mas,

internamente, o regime geográfico é o de propriedade, que é regida pela lei. No regime

de propriedade, cada área dentro do território fronteiriço pertence a uma pessoa,

empresa ou até mesmo ao Estado, que pode declarar posse sobre determinada

propriedade, compensando financeiramente os seus proprietários pela apropriação, caso

seja o caso. O regime de propriedade é uma forma de evitar contestações violentas sobre

uma área.

As fronteiras territoriais não pertencem a um proprietário. Sendo assim, de

acordo com Kahn (2013), a guerra entre Estados é um relacionamento entre regimes

territoriais. Por exemplo, o ataque terrorista a um prédio não coloca em questão a

propriedade individual do imóvel, mas sua pertença a um território. Caso o ataque ao

prédio seja analisado da perspectiva do conceito de propriedade, a ação terrorista será

considerada um crime. Logo, os agentes entrariam na categoria de criminosos e não

inimigos. Para Kahn, a figura do inimigo é construída da perspectiva do território. A

invasão do território é uma transgressão, não necessariamente um dano, pois invadir as

fronteiras significa invadir a integridade do Estado.

As guerras começam com a invasão das fronteiras. Um Estado soberano, cujas

fronteiras foram rompidas, perde a representação da sua existência, logo, de sua

soberania. A fragilidade das fronteiras atuais, facilmente rompidas pela tecnologia aérea

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bélica, leva-nos a cogitar que as aeronaves remotamente pilotadas são uma ferramenta

para destruir outros Estados soberanos pré-determinados, tornando as fronteiras

estadunidenses uma espécie de fronteira orgânica cuja expansão acompanha o

movimento das ações militares insistentes em determinados territórios.

Em um cenário de fronteiras frágeis, Sloterdijk (2009) e Virilio (2012) ressaltam

que o medo torna-se uma ferramenta de guerra. No caso dos Estados Unidos, o medo é

utilizado como uma propaganda de justificativa para a defesa que, na verdade, constitui-

se em ataque. Esta estratégia tem sido constantemente explorada desde a invasão das

fronteiras estadunidenses com os ataques do 11 de Setembro. A manutenção da ideia de

possibilidade de uma nova invasão iminente é fundamental para continuar os ataques

através dos drones. O caso da guerra dos Estados Unidos contra o Iraque é

exemplificativo. A acusação de posse de armas de destruição em massa por parte do

Governo iraquiano, embora nunca fora provado, renovou o ambiente de medo de que o

Governo estadunidense precisava para justificar os ataques nas regiões de seu interesse.

O cara, Saddam Hussein, teria muita receita fiscal como resultado da

alta do petróleo. E mesmo que não tenhamos... você sabe... encontrado

uma bomba, por exemplo — ele tinha a capacidade de fazer armas

químicas, biológicas e nucleares. E então... você sabe... é tudo muito

hipotético. Mas sim, eu poderia argumentar que estamos muito mais

seguros sem Saddam. E eu diria que o povo do Iraque tem uma melhor

chance de viver em paz — um Estado de paz (BUSH, 2014, Tradução

nossa)3.

Conforme podemos depreender da declaração do ex-presidente George Bush, a

possibilidade de ameaça pode motivar conflitos. A identificação do inimigo (de

preferência invisível) deve estar conectada à ideia de invasão, mesmo que seja a

distância. Por exemplo, uma invasão literal das fronteiras estadunidenses por parte das

forças militares iraquianas estava fora de cogitação, a ameaça consistia na possibilidade

de uso de armas químicas de destruição em massa, capazes de alcançar longas

distâncias.

Os aviões são os aparatos mais utilizados para o rompimento de fronteiras, sejam

eles pertencentes às companhias aéreas ou às Forças Armadas das nações. O avião

tornou-se o maior símbolo de rompimento de fronteira, ameaçando facilmente a

3 Entrevista com o ex-presidente George W. Bush, concedida ao programa “Morning Edition”, da rádio

pública nacional, o qual foi ao ar no dia 12 de novembro de 2014.

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soberania das nações. Ao utilizar este aparelho, o inimigo desencadeia uma ação

fundamental para renovar a presença soberana estadunidense, na forma de um

renascimento (cíclico) que evoca até mesmo a dimensão religiosa da palavra, criando

um renascimento da nação. A soberania revitalizada aumenta o patriotismo e cria

estátuas de guerra nas quais o inimigo nunca aparece, pois ele deve ser invisível e

transferível.

O avião [voo United 93] torna-se um espaço extraordinário de batalha,

uma re-encenação da fundação, do mito sacrificial do Estado: a partir

deste ato violento de matar e morrer surge um "novo nascimento da

liberdade". Nesse ponto, nós imaginamos o inimigo e não o criminoso.

Estes novos locais de sacrifício serão lembrados com os campos de

batalha memorizados. E os memoriais registram a quebra do tempo

normal e registram o sacrifício como a presença da soberania popular

(KAHN, 2013, p. 213, Tradução nossa).

A resposta a uma ameaça traz a possibilidade do sacrifício da nação e do

soldado, a soberania precisa do inimigo, caso contrário, o ‘sacrifício foi em vão’, e isso

não sustenta a guerra, tampouco a presença soberana. Nesse sentido, em vez de criar

heróis, criam-se vítimas. Um aspecto relevante apresentado por Kahn (2013) e Hardt e

Negri (2012) é a atemporalidade do inimigo. Sem um antes e depois, ele dura tanto

tempo quanto a presença soberana, quando esta dissipa-se, o inimigo também

desaparece. Kahn ainda nos lembra da possibilidade de inimigos tornarem-se amigos

em um curto espaço de tempo a ponto de nunca parecerem ter sido inimigos, a exemplo

do que aconteceu após a Segunda Guerra Mundial com os Estados Unidos, Alemanha e

Japão.

Desse modo, dois motivos justificam a insistência na visão do inimigo como

uma entidade invisível: 1. Para que o sacrifício pela permanência da soberania não

esteja atrelado a um único inimigo; 2. Para que a noção de inimigo possa ser facilmente

transferível, porque não importa o emblema, mas a invisibilidade do inimigo que,

onipresente, pode a qualquer momento colocar em risco a existência do mundo como o

conhecemos.

5 As definições de terrorismo e a transmutação da guerra

A definição do conceito de terrorismo não é algo fácil. Schmid (2011), que se

dedica ao estudo na área, assinala que não há uma definição legal do termo, o que levou

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acadêmicos e profissionais a se empenhar na construção de um consenso acerca desse

conceito. O resultado consta no documento “Consenso da Revisão Acadêmica da

Definição de Terrorismo”, compilada por Schmid (2011).

O terrorismo é um conceito contestado. Embora existam muitas

definições nacionais e regionais, não existe uma definição legal

universal aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações

Unidas (aquele proposto pelo Conselho de Segurança na resolução

1566 (2004), não é obrigatório e não possui autoridade no Direito

Internacional). O Comitê Ad Hoc sobre Terrorismo do sexto Comitê

da Assembleia Geral, com algumas interrupções, tentou chegar a uma

definição legal desde 1972, mas em vão. Na ausência de uma

definição legal, tentativas foram feitas desde a década de 1980 para

chegar a um acordo sobre a definição de terrorismo dentro de um

consenso acadêmico. O último resultado é a definição revista,

representada abaixo. É o resultado de três rodadas de consultas entre

acadêmicos e outros profissionais.

1. Terrorismo refere-se, por um lado, a uma doutrina sobre a eficácia

presumida de uma forma especial ou tática de geração de medo,

violência política coercitiva e, por outro lado, a uma conspiratória

prática de ações violentas calculadas, demonstrativas e diretas sem

restrições legais ou morais, visando principalmente civis e não

combatentes, performadas por seus efeitos propagandistas e

psicológicos em vários públicos e partes em conflito;

2. Terrorismo como uma tática empregada em três contextos

principais: (i) repressão estatal ilegal, (ii) agitação propagandista por

atores não-estatais em tempos de paz ou zonas fora de conflito e (iii)

como uma tática ilícita ou irregular de guerra empregada por atores

estatais e não-estatais;

3. Ameaça ou violência física empregada pelos atores terroristas

envolvem atos monofásicos de violência letal (como atentados e

ataques armados), incidentes difásicos com risco de vida (como rapto,

sequestro e outras formas de tomada de reféns para negociação

coerciva), bem como ações sequenciais de múltiplas fases (como em

'desaparecimentos' envolvendo sequestro, detenção secreta, tortura e

assassinato).

4. A vitimização terrorista publicitada inicia processos de

comunicação baseados em ameaças que, por um lado, são demandas

condicionais feitas a indivíduos, grupos, governos, sociedades ou

regiões, por outro lado, é pedido pelos terroristas suporte de círculos

eleitorais específicos (baseados em laços de etnia, religião, filiação

política e similares);

5. Na origem do terrorismo está o terror — instilando o medo, pavor,

pânico ou mera ansiedade — espalhada entre aqueles que se

identificam ou compartilham similaridades com as vítimas diretas,

geradas por algumas das modalidades de atos terroristas —

brutalidade chocante, falta de discriminação, qualidade dramática ou

simbólica e desrespeito das regras de guerra e das regras de punição;

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6. As principais vítimas diretas de ataques terroristas são em geral não

as forças armadas, mas geralmente civis, não combatentes ou outras

pessoas inocentes e indefesas que não têm qualquer responsabilidade

em relação ao conflito que deu origem a tais atos de terrorismo;

7. As vítimas diretas não são o alvo final (como em um assassinato

clássico onde vítima e alvo coincidem), mas servem como geradores

de mensagem, mais ou menos inconscientemente, auxiliados pelo

valor das notícias da mídia de massa, para atingir diferentes públicos e

partes em conflito que se identificam seja com a situação das vítimas

ou com as causas professadas pelos terroristas;

8. Fontes de violência terrorista podem ser de autores individuais,

pequenos grupos, redes transnacionais difusas, bem como atores

estatais ou agentes clandestinos patrocinados pelo Estado (como

esquadrões da morte e grupo de executores);

9. Enquanto mostramos semelhanças entre os métodos empregados

pelo crime organizado como aqueles encontrados em crimes de

guerra, a violência terrorista é predominantemente política —

geralmente em sua motivação, mas quase sempre em suas

repercussões sociais;

10. A intenção imediata dos atos de terrorismo é aterrorizar, intimidar,

hostilizar, desorientar, desestabilizar, coagir, compelir, desmoralizar

ou provocar uma população alvo ou partido em conflito na esperança

de alcançar a partir da insegurança gerada um resultado favorável de

poder, por exemplo, obter publicidade, dinheiro de extorsão de

resgate, submissão às exigências terroristas e/ou mobilização ou

imobilização de setores de público;

11. As motivações para a prática terrorista cobrem uma ampla gama,

incluindo reparação por queixas alegadas, vingança pessoal ou vicária,

punição coletiva, revolução, libertação nacional e a promoção de

diversas causas e objetivos ideológicos, políticos, sociais, nacionais ou

religiosos.

12. Atos de terrorismo raramente estão sozinhos, são parte de uma

campanha de violência que por si só pode, devido ao caráter da série

de atos de violência e ameaças que estão por vir, criam um clima

generalizado de medo que permite os terroristas manipular o processo

político (SCHMID, 2011, p.86-87, Tradução nossa).

Conforme Sloterdijk (2009), a ideia de terrorismo surge no contexto do século

20, ligado a uma mudança na perspectiva de alvo. Se, desde a Idade Média até o início

da Primeira Guerra Mundial, os alvos eram os corpos do inimigo, a partir de então,

passaram a ser o seu ambiente. O foco no inimigo como alvo era tão forte que até a

Primeira Grande Guerra, a noção de soldado estava muito correlacionada à habilidade

de nutrir a sua intencionalidade, já sua masculinidade definia-se pela aptidão e boa

vontade de matar o seu inimigo de forma direta, ou seja, com a sua arma pessoal ou com

as suas próprias mãos. Conforme vimos, essa noção mudou.

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Na contemporaneidade, o terror é subsidiado pelo conhecimento. O grupo

terrorista ou o terrorista conhece muito bem sua vítima. Assim, “se o corpo do inimigo

não pode ser liquidado com ataques diretos, então, o agressor é forçado a tornar a sua

existência inabitável por um período suficientemente longo” (SLOTERDIJK, 2009, p.

16, Tradução nossa). Essa diferença de estratégia demonstra a transição entre a guerra

clássica e o terrorismo.

O terrorismo acontece além do combate convencional entre tropas. O ato

terrorista agride o ambiente cotidiano do inimigo. Por isso se diz que o terrorismo opera

dentro da assimetria. Por exemplo, ao sofrer os ataques do 11 de Setembro, os Estados

Unidos apropriaram-se do termo Terrorismo como vítimas, para, em contrapartida,

utilizar o mesmo método contra seu inimigo (invisível).

De acordo com Sloterdijk (2009), o ambiente ganha importância no contexto da

Primeira Guerra Mundial quando ambos os exércitos estavam tão protegidos um do

outro que se tornaram alvos impossíveis. No caso, a solução para o dilema foi a

utilização de gás. Essa técnica constituiu-se em uma quebra de paradigma no sentido de

mudar o alvo centrado nos soldados inimigos para o ar que respiravam. A consequência

disso foi a rápida popularização das máscaras de gás por aqueles que foram atacados e a

reação contrária foi o desenvolvimento de toxinas potentes o suficiente para penetrar os

respiradores. O terrorismo age como atentado, emboscada e explorador das

necessidades vitais do inimigo, mas, independentemente do método, sempre utiliza a

“máscara” do contra-ataque. Trata-se de um modus operandi e não um oponente.

O Terrorismo, do ponto de vista ambiental, anula a distinção entre a

violência contra as pessoas e a violência contra as coisas: o terrorismo

compreende uma forma de violência contra o ambiente humano, na

qual, sem este, as pessoas não podem permanecer pessoas.

(SLOTERDIJK, 2009, p. 25, Tradução nossa).

Conforme expõe Sloterdijk na citação acima, o terrorismo funciona pela

perspectiva da destrutibilidade ao explorar o fato de os habitantes comuns terem um

relacionamento com o seu ambiente, condicional a sua existência. Podemos apropriar-

mos do raciocínio desse filósofo e afirmar que os drones nunca erram os alvos. Ao

submeter populações estrangeiras ao constante e prolongado medo, submete as

populações à constante possibilidade de serem atacadas. Ainda que o ataque não

aconteça, o ambiente é consumido pelo medo e expectativa de aniquilação (uma tortura

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emocional). Com base na análise do mecanismo de ataque à atmosfera do inimigo, o

filósofo Peter Sloterdijk (2009) criou o termo atmoterrorismo.

Existe um aspecto sórdido no atmoterrorismo. Vivemos em um momento em

que o ataque direcionado ao corpo gera revolta, a tortura revolta, mas eliminar as fontes

de vitalidade do corpo é como se não tivesse ocorrido um ataque direto. Há dois vívidos

exemplos deste conceito na história ocidental: a utilização das câmaras de gás contra os

judeus na Segunda Guerra Mundial; e a pena de morte mediante o uso de injeção letal

(não mais cadeira elétrica), aplicada por alguns estados dos Estados Unidos. Trata-se de

uma tentativa de tornar o atmoterrorismo não para as suas vítimas, mas para a

consciência daqueles que realizam e/ou aprovam a prática.

De acordo com Kahn (2013), o equilíbrio entre as instituições e os princípios

tornou-se difícil, uma vez que as antigas regras não fornecem mais guias de como lidar

com as inovações. Simultaneamente, as novas normas não foram estabelecidas,

perdemo-nos e o mesmo está acontecendo com os novos métodos de guerra.

Até alguns anos atrás, poderíamos dizer que a Força Aérea dos Estados Unidos,

bem como a de muitas outras nações concentravam em si os seus aparatos de

atmoterrorismo. Atualmente, essa realidade mudou, ao menos no ambiente militar

estadunidense, aviões, helicópteros e drones existem nas outras instituições das Forças

Armadas, como no exército e na marinha. O uso de aeronaves sempre traz uma carga de

assimetria e efeito surpresa à situação, seja de combate ou de vigilância. A assimetria é

inevitável porque o combate aéreo entre aeronaves de potencialidades e quantidades

semelhantes nunca existiu. A ideia de simetria nesses combates é uma visão romântica e

nada viável, conforme demonstraremos na descrição do episódio de Star Trek, uma

amostra do Armaggedon no próximo capítulo.

Décadas atrás, segundo Virilio (2012), sentir medo era um defeito, um aspecto

negativo a ser evitado na constituição das características do guerreiro. No entanto, o

medo, com algumas mudanças de valores, passou de sentimento pessoal legítimo para

um sinal de sabedoria que não se pode ignorar. O autor continua pontuando que, se,

antigamente, instituições como a Igreja, famílias e sindicatos podiam proteger os

indivíduos, atualmente, o ato de desconfiar e temer destruiu essa confiança. A

desconfiança tornou-se uma ação de autodefesa, evocando, de certa forma, a constante

tensão provocada pela Guerra Fria. Afinal, os progressos científicos e tecnológicos

sinalizaram às nações que ninguém está seguro, a força da fé foi corroída pelo medo:

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A propagação do medo parece ser o produto de uma era

nuclear pervasiva onde a ciência, que uma vez foi a esperança do

Iluminismo ocidental, vem assumindo uma aparência ameaçadora.

Diante de tudo isso, uma posição moralista poderia, com razão, temer

o retorno do pensamento obscurantista que condena qualquer coisa e

tudo ligado ao progresso do conhecimento e da tecnologia (VIRILIO,

2012, p. 9, Tradução nossa)

Virilio (2012) propõe o termo “administração do medo” para explicar a situação

atual em que a consciência do temor coexiste com uma convicção de que mais

velocidade e onipresença são a resposta que procuram. Esse entendimento reforça a

linha de pensamento do filósofo Peter Sloterdijk (2009) de que os temores estão

disseminados como parte do ambiente.

Para Virilio (2012), o medo ocupa e preocupa tanto mentalmente quanto

fisicamente. Este sentimento costumava ser localizável e pertencia a uma escala de

tempo como epidemias e guerras. No mundo atual saturado de informações, as pessoas

sofrem de uma claustrofobia estressante não localizável e sem prazo. O medo perpassa a

bolsa de valores, o terrorismo e as pandemias. Simultaneamente, o Estado tenta criar

políticas para gerenciar este medo, principalmente o que está ligado à saúde. Contudo,

essas políticas envolvem o investimento tecno-científico para proteger os cidadãos dos

avanços tecno-científicos que saíram do controle (Golem), criando, assim, um ciclo

repetitivo de angústia que reforça a ideia de ocupação mental e física pelo medo.

Em relação ao terrorismo, os ataques do 11 de Setembro provaram ao mundo

que é possível “um único indivíduo causar tanto dano quanto uma arma. Que é também

‘fazer o medo’ no sentido literal da palavra, que é o que o terrorismo faz” (VIRILIO,

2012, p. 28, Tradução nossa). O “indivíduo-arma” forja um novo paradigma sobre como

fazer a guerra, mudando convenções tradicionais sobre força. Ao admitir que seres

humanos também são armas (uma característica não elimina a outra), possivelmente, o

aparato-bélico-humano torna-se a arma mais potente já construída, afinal, é difícil

defender-se de alguém que, para matar o inimigo, propõe-se a morrer. Nesse contexto,

entendemos que os drones (dispositivo atmoterrorista) são a ferramenta de escolha de

“defesa” do pânico, da instabilidade social e política, causada por um grupo de

indivíduos e alimentada contínua e intensamente mediante tecnologias de comunicação

que fomentam o medo.

Em maio de 2006, a capital São Paulo foi palco do que Virilio (2012) chama de

bomba de transmissão de informação quando a maior facção criminosa do Brasil,

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denominada Primeiro Comando da Capital (PCC), realizou atentados em vários pontos

da cidade. Enquanto ônibus eram queimados e universidades alvejadas, os canais

oficiais de comunicação não conseguiam fazer a cobertura dos atentados. Nesse cenário,

um movimento via internet de alta relevância surgiu: a população, através do software

Messenger, substituía seus nomes/nicknames/apelidos por informações que recebiam

via telefone de amigos, colegas e familiares e constantemente as atualizava. Essas

pessoas estavam fisicamente distantes dos atentados, em seus locais de trabalho ou em

casa, contudo, isso não impediu a disseminação do pânico generalizado, pois as

informações e o medo eram mais disseminados pela rede, por meio de um software, do

que pelos telejornais.

A velocidade da transferência de informação durante os atentados do PCC parou

a cidade de São Paulo. Para Virilio (2012), o efeito bomba de transmissão de

informação é um terror sincronizado em que o tempo destinado à reflexão é eliminado e

substituído por reações produzidas por emoções, como a ansiedade.

(...) nós estamos sob a pressão da permanente ocupação. Esta

ocupação nos coloca sob vigilância, nos observa, nos escaneia, nos

avalia, nos revela, e é cada vez mais presente, e cada vez mais aceita

como inevitável, como destino. Ao promover o progresso significa

que estamos sempre para trás: na internet de alta velocidade, em nosso

perfil no Facebook, na nossa caixa de entrada de e-mails. Há sempre

atualizações a ser feitas; nós somos os objetos de masoquismo diário e

sob constante tensão (VIRILIO, 2012, p. 47, Tradução nossa).

A demanda coletiva por segurança em diferentes aspectos do quotidiano é uma

realidade política não somente do território estadunidense, mas também de outros

países. Com base nesta demanda, tanto os poderes militares como os governamentais

começam a promover a suspensão de direitos dos cidadãos, ameaçando a democracia

(VIRILIO, 2012). Um bom exemplo é o uso de aparatos de vigilância dos cidadãos a

pretexto de protegê-los de um inimigo indefinido e invisível. Nesse contexto, os drones

vêm ascendendo como aparato de vigilância da polícia civil e militar, criando uma

ilusão de onipotência em que a realidade submete-se à força da tecnologia.

Virilio (2012) acredita que a rápida velocidade de transmissão de informação

(neste caso, os de vigilância) coloca em questão a noção de geografia. Para o autor, os

meios midiáticos e as redes diluem a noção de espaço e tempo no processo de

transmissão da informação. As dinâmicas de organização e funcionamento dos recentes

protestos ocorridos no Brasil e em alguns países da América Latina e Europa depõem a

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favor dessa perspectiva do autor. Já em relação aos casos envolvendo drones,

observamos uma outra forma de geografia cujas fronteiras tornaram-se orgânicas e em

constante movimento. Cercas ou linhas imaginárias dos mapas não mais se constitui em

fronteiras. Elas tomaram a forma dos aparatos de vigilância como os drones que, além

de vigiar pelas câmeras, captam pelos sensores temperaturas corporais e materiais

capazes de produzir armas químicas e nucleares. Podemos dizer que vivenciamos o

início da desconstrução dos Estados-Nação. Segundo Virilio (2012), no momento, o

estado é de desorientação das diretrizes tradicionais da legalidade e da ilegalidade que

culminará, posteriormente, na desorientação política.

Hardt e Negri trazem uma citação de Donald Rumsfeld, Secretário de Defesa dos

Estados Unidos, a qual reforça a discussão até então desenvolvida: “Enfrentamos neste

novo século um sério desafio: defender nosso país contra o desconhecido, o incerto, o

invisível e o inesperado” (2012, p. 63). A guerra está sempre a atender a soberania e o

faz reprimindo movimentos de resistência, impondo ordem à multidão e tornando a

contra-insurgência uma nova estratégia de guerra. Embora existam contradições como:

[...] as que decorrem de seu distanciamento dos métodos tradicionais

de guerras e as relacionadas às novas condições da sociedade e às

novas formas de trabalho social com que inevitavelmente se devem

defrontar o biopoder e a guerra (HARDT; NEGRI, 2012, p. 64).

Notamos que o formato de guerra é cambiante. Por exemplo, Hardt e Negri

(2012) classificam a Guerra Fria como a Terceira Guerra Mundial. Destacamos que o

próprio conceito de Guerra Fria aponta para um sentido de estado normal de guerra na

direção do entendimento de que a falta de combates letais não significa ausência de

conflito ou de guerra, apenas uma alteração nesta noção. Desse modo, da Primeira

Guerra Mundial à Quarta4, houve uma mudança no formato da guerra, bem como no da

natureza do inimigo.

Outra observação feita sobre a Guerra Fria é a da obrigação dos grandes

Estados-nação escolherem um dos lados para se alinhar. No dia 26 de maio de 1972, foi

assinado o Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM) pelos EUA e pela União Soviética.

O Tratado regulava a produção de armas nucleares. Hardt e Negri apontam esta data

4 Hardt e Negri (2012) argumentam os vários pequenos conflitos armados espalhados pelo mundo

consistem em uma Quarta Guerra Mundial atualmente vivenciada.

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como o início do estado de guerra que permanece até a atualidade. Desde a oficialização

deste Tratado, começou a desaparecer o modo de destruição em escala irrestrita.

A guerra propriamente dita começará a transmutar-se: menos voltada

para a defesa frente a uma mega ameaça coerente e mais centrada em

mini ameaças proliferantes; menos preocupada com a destruição geral

do inimigo e mais inclinada para a transformação e mesmo a produção

do inimigo. A guerra se viu de certa forma aprisionada. No lugar dos

combates totais em larga escala, as superpotências começaram a se

envolver em ações policiais de alta intensidade (HARDT; NEGRI,

2012, p. 66).

As ações policiais de alta intensidade são muito similares às ações de guerra de

baixa intensidade e, com o Tratado de Mísseis Antibalísticos, a guerra começou a se

tornar um elemento do biopoder com o objetivo de construção e reprodução da ordem

social global. Sabemos que as guerras sempre estiveram ligadas à produção econômica.

A guerra e a indústria moderna desenvolveram-se juntas. No caso da guerra pós-

moderna, as inovações são alcançadas pelo uso das novas tecnologias e pelo trabalho

em sinergia com a indústria.

O uso das tecnologias e da indústria na guerra evidencia-se no controle e na

organização militar, realizados mediante as tecnologias de comunicação e informação.

Hardt e Negri (2012), no livro Multidão, consideram temerário o rápido

desenvolvimento tecnobiológico e de tecnologias nucleares e químicas para finalidades

militares. Merece observação também o desenvolvimento tecnológico nas áreas de

controle de comunicação e informação, que cria um novo tipo de arsenal de guerra.

Hardt e Negri entendem que “uma guerra que procure apenas destruir inimigos

não será capaz hoje de sustentar uma nova forma de comando; ela terá não só de

destruir a vida como criá-la” (2012, p. 69). Os conflitos militares na pós-modernidade

demandam o uso central da tecnologia. Nessa direção parece convergir o surgimento,

depois da Guerra Fria, do conceito de RMA (Revolution in Military Affairs), que

compreende: (1) Um novo formato de combate mediante a tecnologia; (2) A eleição dos

Estados Unidos como a maior potência militar; e (3) A não classificação da guerra como

um conflito de massa. Nessa perspectiva, a necessidade de uma preparação para

combates intensos, prolongados e em larga escala é descartada, pois “as unidades de

combate devem ser pequenas; devem associar a capacidade de ação em terra, ar e mar; e

devem estar preparadas para vários tipos de missões” (HARDT; NEGRI, 2012, p.70).

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Ao se alicerçar no conceito de RMA, cujo sentido central está na superioridade

tecnológica nas áreas de comunicação, as Forças Armadas estadunidenses criam cada

vez mais uma assimetria em relação à qualquer outra força armada. Um dos principais

objetivos dessa assimetria é proteger os soldados americanos fisicamente. Dentro do

ambiente militar, os “tecnologistas” defendem o conceito de RMA e os

“tradicionalistas” acreditam na necessidade do patriotismo e do sacrifício pela nação

para preservar o seu poder. Para os últimos, o 11 de Setembro traria essa força de volta.

Durante os séculos XIX e XX, as guerras eram percebidas como um organismo

único e com objetivo de produção industrial. Toda a sociedade tornava-se uma fábrica

de guerra, em que os corpos eram destruídos nos campos de batalhas e outros dentro das

fábricas, todos eram anônimos e desconhecidos.

Já as novas tecnologias permitem uma espécie de guerra virtual na qual os

inimigos são destruídos com precisão através da tecnologia militar de ponta. Como as

Forças Armadas dos Estados Unidos são as que detêm essa tecnologia, seus soldados

são cada vez menos expostos a riscos. Essa vantagem permite que os novos soldados

não tenham apenas capacidade de matar, mas também “de determinar para as

populações conquistadas as normas culturais, jurídicas, políticas e de segurança a serem

cumpridas” (HARDT; NEGRI, 2012, p. 91).

No entanto, a fundamentação na noção de RMA também envolve algumas

contradições. Ainda que esta noção compreenda o uso de tecnologia de ponta, esta não é

infalível, pois está em evolução. Os danos colaterais dessas tecnologias demonstram

isso. Por exemplo, quando será eliminado o fogo amigo? Quando as crianças não serão

mais vítimas? Quando os soldados estarão preparados de fato para as tarefas sociais,

políticas e culturais da construção nacional?

Outra questão contraditória envolvendo o uso da noção de RMA são os ataques

suicidas. Isso porque eles negam que seus corpos estejam em risco quando definem a

forma de sua morte, que está também relacionada à morte de soldados e/ou civis

estadunidenses. Assim, esse conceito traz a corporalidade nesta nova guerra sem corpos.

Isso nos leva a este questionamento: Que incentivo terá um poder para pôr fim a uma

guerra quando não chega a sofrer com ela?

A insistência numa guerra sem baixas e na assimetria

tecnológica das forças armadas dominantes em relação a todas as

demais desposa a arte da guerra de sua face social, assim como do

problema dos corpos e de sua força (HARDT; NEGRI, 2012, p.77).

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Tecnologia militar de ponta pressupõe superioridade militar. Entretanto,

atualmente, as novas tecnologias servem para otimizar aspectos muito específicos.

Nesse sentido, a utilização de estratégias e armas consideradas antigas e/ou obsoletas

ainda é importante. Num conflito assimétrico (desproporcionalidade de estrutura e

tecnologia bélica em quantidade e/ou qualidade), os inimigos são guerrilheiros.

Ademais, a assimetria não significa vitória para as forças detentoras de potências

tecnológicas superiores. O mundo pôde observar isso tanto durante a guerra do Vietnã

como durante a invasão dos soviéticos no Afeganistão. Conforme observam Hardt e

Negri:

As forças guerrilheiras não podem sobreviver sem o apoio da

população e um superior conhecimento do terreno físico e social. Os

ataques guerrilheiros frequentemente contam com seu caráter

imprevisível: qualquer pessoa do povo pode ser um guerrilheiro, e o

ataque pode vir de qualquer direção, com meios desconhecidos. Desse

modo, os guerrilheiros obrigam o poder militar dominante a viver em

estado de constante paranoia. Num conflito assimétrico como este, o

poder dominante deve adotar estratégias de contra-insurgência que

busquem não só derrotar o inimigo por meios militares, mas também

controlá-lo com armas sociais, políticas, ideológicas e psicológicas.

(HARDT; NEGRI, 2012, p. 82).

A assimetria da tecnologia militar estadunidense em relação às outras nações é

bem clara. Esta superioridade, contudo, não desobriga as Forças Armadas

estadunidenses a buscar incessante adaptação para combater e controlar o inimigo

inferior por meio de estratégias de contra-insurgência. Essas técnicas podem ser

apresentadas como compromissos de guerra ou de paz. Ambos exigem controle social,

econômico, político, psicológico e ideológico, o que implica, novamente, o conceito de

biopoder. Não obstante, as tentativas de fabricação de sujeitos dóceis nunca são livres

de resistências.

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6 O Novo Soldado

Como foi dito anteriormente, as tecnologias bélicas de ponta romperam com os

paradigmas do combate; primeiro, em relação aos palcos dos conflitos; segundo, ao

tempo; e, terceiro, à figura do combatente.

No contexto em que a nova formatação dos conflitos centra-se no uso da

tecnologia, os drones surgem como uma ferramenta oportunista. Essa tecnologia

permite selecionar o alvo não apenas por questões de pertença à determinada

organização militar ou paramilitar, mas principalmente por sua possibilidade de ação,

analisada mediante monitoração contínua, incluindo de momentos comuns e íntimos de

sua vida privada. Com essas informações, o alvo pode ser atacado na ocasião ideal

(KAHN, 2013).

Sabemos, no entanto, que o drone, como parte das novas estratégias de uma

hierarquia militar e política estadunidense, não é uma máquina de ação autônoma, mas

uma ferramenta bélica que tem um piloto no controle. O drone é a nova arma de longo

alcance, cujo piloto/controlador pode ser considerado o novo atirador de elite que

protege os cidadãos estadunidenses.

Em relação aos alvos dos drones, podemos perguntar quem são os que

“merecem” ser eliminados após a longa observação de suas vidas privadas? São

criminosos ou terroristas? De acordo com Kahn (2013), não há mais uma separação

nítida entre estas duas categorias.

Quem pode matar e quem pode ser assassinado? Conforme apontamento de

Kahn (2013), a Lei Internacional Humanitária (International Humanitarian Law – IHL)

estabelece os privilégios do combatente como se determinados direitos fossem

expandidos para aqueles que possuem determinada lista formal de qualificações.

Questionamos se os privilégios previstos na referida lei protegem o indivíduo de uma

acusação legal pelos danos que causam. Existe uma espécie de aura sagrada sobre os

soldados já que suas ações são, de certa forma, isentas de responsabilidade, em virtude

da existência de uma hierarquia de comando a qual deve obedecer. No caso de

desobediência, o soldado é submetido à Corte Marcial que o julgará de acordo com as

regras de conduta/leis militares. Kahn afirma que “classicamente, a cadeia de comando

segue até o ponto onde a responsabilidade legal termina: no chefe de Estado que falou

com a voz soberana” (KAHN, 2013, p.214, Tradução nossa).

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Embora manuseie uma tecnologia de ponta, um piloto de drone não possui uma

visão macropolítica da guerra tal qual seus superiores. Esse piloto é um operador como

o é um soldado que carrega um rifle consigo. Nesse sentido, assim como um soldado

comum, o piloto de drone obedece a uma cadeia de comando. Desse modo,

teoricamente, a sua permissão de matar não deve ser produto de sua vontade e sim do

planejamento econômico e político de sua nação.

Por trás deste paradoxo está a intuição de que a guerra é um conflito

entre sujeitos sociais, inacessível a ideias comuns da responsabilidade

individual, seja soldado ou comandante. A contabilização moral pela

guerra como sofrimento da própria nação – não como uma resposta

subsequente legal a atores individuais (Kahn, 2013, p. 214, Tradução

nossa).

Conforme pudemos expor, fica claro que o piloto de drone não sofre

consequência jurídica em decorrência de suas ações, nem são moralmente, tampouco

legalmente, responsabilizados. Pelo que vimos pela mídia internacional, atualmente, a

isenção jurídica, moral e legal não o livra, porém, de complicações psicológicas.

O doutor Paul T. Bartone (2005), Coronel estadunidense aposentado com Ph.D

em Psicologia e Desenvolvimento Humano5, propõe um entendimento alternativo do

efeito psicológico das missões militares, principalmente quando é decorrente de

situações que não pertencem a um critério padrão de estresse pós-traumático. Segundo o

psicólogo, o significado da vida é desconstruído após o combate, criando uma neurose

existencial com alterações cognitivas, afetivas e comportamentais sobrepostas aos

sintomas de estresse pós-traumático. Essa crise pode provocar o suicídio. Para

Matthews:

Esta visão pode ser especialmente relevante para os pilotos

das aeronaves remotamente pilotadas. Enquanto eles não

experienciam o trauma pessoalmente por assim dizer, eles veem ou

podem imaginar as consequências letais de suas ações (MATTHEWS,

2014, p.54, Tradução nossa).

Bartone pontua que:

Soldados têm uma tremenda necessidade de ver o seu trabalho

e suas atividades como significantes e importantes. Como outros

5 O doutor Paul T. Bartone também é ex-professor da Universidade de West Point pesquisador sênior do

Centro para Política Nacional de Tecnologia de Segurança (Center for Technology & National Security

Policy) da National Defense University).

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humanos, soldados querem muito acreditar no valor e na benfeitoria

do que eles estão fazendo (BARTONE, 2005, p.319, Tradução nossa).

Podemos depreender das observações tanto de Bartone (2005) quanto Matthews

(2014) que o efeito psicológico proveniente de eventos impactantes é desenvolvido

como consequência de danos morais (moral injury) e não necessariamente de estresse

pós-traumático.

Quando forçados a tirar uma vida, mesmo sob as

circunstâncias favoráveis da guerra legítima, os militares são

propensos a experimentar uma dissonância entre sistemas de crença de

longa data e seu próprio comportamento. Porque as missões com as

aeronaves remotamente pilotadas podem frequentemente resultar na

morte de não-combatentes, a dissonância entre estrutura de crença e

comportamento pode ser ainda maior, levando a uma reação

psicológica ainda mais grave (MATTHEWS, 2014, p.54, Tradução

nossa).

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CAPÍTULO 2

ÉTICA E RESISTÊNCIA: FICÇÃO E ANÁLISE DE RELATÓRIOS

MULTILATERAIS

A ciência e a tecnologia avançaram de tal

forma que estão saindo de controle

Nina – Série de TV Fringe

(tradução nossa)

1 Apresentação

Esta parte consiste em apresentar os princípios internacionais para a utilização

de drones tanto em situações de conflitos armados como fora de conflitos através de

dois relatórios da Organização das Nações Unidas, compreendendo melhor a relação

entre a legislação dos direitos humanos e a lei internacional humanitária. Mas antes

disso apresentaremos a análise do episódio da série Star Trek sobre a guerra antiséptica.

2 Star Trek: Uma amostra do Armageddon

A diferença entre ficção científica e ciência é o tempo

(Colonel Christopher B. Carlile – USA Armed Forces)

Nesta seção, apresentamos a descrição e análise do episódio Armageddon, da

série televisa Star Trek. A título de informação, a seguir, mostraremos sua ficha técnica.

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Série de Ficção Científica: Star Trek – Jornada nas Estrelas

1ª Temporada. Episódio 23 — Ano: 1967

Título original: A Taste Of Armageddon.

Título em português: Um gosto de Armageddon.

a. Descrição do episódio

A Enterprise está rumo a aglomeração estelar NGC 321, com o objetivo de

estabelecer relações diplomáticas com as civilizações lá existentes. Ao chegar próximo

ao planeta Eminiar VII, a Enterprise envia uma mensagem informando os habitantes do

local das intenções amistosas. Após esperar um pouco de tempo, obteve uma resposta

mediante uma mensagem com o código 710, informando-a de que sob nenhuma

circunstância deveria se aproximar daquele planeta. O Embaixador da Federação, Sr.

Fox, a bordo da Enterprise, ordena o Capitão Kirk a ignorar a mensagem recebida sob a

justificativa de que, nos últimos 20 anos, muitas vidas foram perdidas naquele planeta,

as quais poderiam ter sido salvas se a Federação tivesse uma estação no local, e, de

acordo com o embaixador, salvar vidas seria um dos seus objetivos. Mas o capitão Kirk

diz que, ao desconsiderar o código 710, uma guerra interplanetária poderia ser

provocada. O Sr. Fox afirma estar preparado para assumir tal risco.

A partir de tal momento, a Enterprise entra em alerta amarelo, os escudos da

nave são levantados e a tripulação colocada de prontidão. O Capitão Kirk deseja entrar

pacificamente na órbita do planeta Eminiar VII, mas informa a tripulação que a entrada

acontecerá de maneira pacífica ou não. As ordens dadas ao capitão são claras:

estabelecer relações diplomáticas a todo custo. Spock diz que pouco se sabe a respeito

daquela civilização além do fato de ser avançada, fazer voos espaciais há séculos,

embora nunca ter se aventurado além do próprio sistema solar. No primeiro contato

feito com este planeta, há 50 anos, Eminiar VII estava em guerra contra o seu vizinho.

A expedição que fazia o relatório, a USS Valiant, não retornou da missão e acabou

sendo listada como desaparecida no espaço.

O capitão Kirk, representando a Federação Unida dos Planetas, estava com

Spock e outros três tripulantes. Ao descerem ao planeta, são imediatamente recebidos e

levados à Divisão de Controle. O personagem Mea3, uma mulher residente do Eminiar

VII, reafirma a Kirk que eles não deveriam estar naquele local. Kirk questiona a razão

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pela qual eles deveriam se afastar daquele planeta e Mea3 diz que era para a própria

segurança da tripulação da Enterprise. No entanto, Mea3 considera moralmente

incorreto tratar os tripulantes da Enterprise inospitamente uma vez que eles já se

encontravam no território de seu país. Mea3 informa que Anan7 e membros do Alto

Conselho aguardam a tripulação da Enterprise.

Ao se apresentarem na Divisão de Controle, Kirk diz que o objetivo da

tripulação da Enterprise é estabelecer uma relação diplomática com Eminiar VII, e

Anan7 observa ser impossível já que estavam em uma guerra há 500 anos contra o

planeta Vendikar. Spock alega que o planeta foi escaneado e que não foram encontradas

evidências de guerra. Anan7 afirma que o número de baixas por ataques inimigos varia

de 1 a 3 milhões de mortos por ano. Por isso, pediram a Enterprise que se afastasse,

pois, estar na órbita de Eminiar VII seria exposição a perigo.

Sirenes disparam e Anan7 diz que Vendikar está atacando-os naquele momento.

Mea3 assegura que o ataque não seria longo. Kirk pergunta se não iriam para abrigos, e

ela declara que não havia abrigos. Naquela guerra, os ataques eram frequentes e a

retaliação também. Mea3 observa o painel que apontava a área atacada e disse que a

cidade fora alvejada. A informação de Mea3 provocou o seguinte diálogo entre o

Capitão Kirk e senhor Spock:

(Kirk) – Ouviu alguma explosão, Sr. Spock?

(Spock) – Nenhuma, capitão.

Com um dispositivo, Kirk e Spock checam se havia qualquer distúrbio

radioativo. A leitura do dispositivo foi negativa. Então Kirk pergunta a Mea3:

(Kirk) - Se isto foi um ataque, quais armas o inimigo usa?

(Mea3) - Bombas de fusão, materializadas pelo inimigo sobre os alvos.

Kirk, ainda confuso acerca daquele tipo de guerra, escuta Anan7 dizer que foi

um ataque cruel, extremamente destrutivo e o número de mortos muito alto. Kirk

questiona se aquilo era um jogo e Anan7 ficou alterado com tal pergunta, dizendo que

não se tratava de um jogo e que meio milhão de pessoas estavam mortas naquele

momento. Spock compreende a situação e diz que eles guerreiam com computadores.

Kirk assinala que computadores não matam meio milhão de pessoas. Anan7 explica que

as mortes foram registradas e que eles têm 24 horas para se apresentar às câmaras de

desintegração. Acrescenta que o planeta está em guerra há 500 anos e que, sob

condições normais, nenhuma civilização poderia resistir a isso, esta foi a solução

encontrada. Spock pergunta se o ataque de Vendikar foi teórico e Anan7 afirma que foi

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muito real, lançado de maneira matemática. Anan7 lembra que, no último ataque,

perdera sua esposa, e completa “A nossa civilização vive, as pessoas morrem, mas a

nossa cultura continua”.

Anan7 informa que, quando a Enterprise orbitou o planeta, tornou-se um alvo

legítimo e foi classificada como destruída pela explosão de uma ogiva de tricobalto. Por

isso, todos a bordo da nave têm 24 horas para se apresentar às câmaras de

desintegração. Para assegurar a cooperação da tripulação que está na Enterprise, Kirk,

Spock e os outros três tripulantes serão mantidos em custódia até que eles se rendam.

Afinal, todas as pessoas da Enterprise já estão classificadas como mortas. O capitão

Kirk e os outros quatro tripulantes estão presos em uma sala vigiada. Mae3 pergunta-

lhes se precisam de alguma coisa e Kirk descobre que Mae3 também foi declarada como

morta, e no outro dia se apresentará ao desintegrador. Ele questiona se isso é fácil para

ela. Mea3 responde que sua vida tão preciosa quanto a do Capitão Kirk para si mesmo.

Caso ela não se apresente, e outros façam o mesmo, Vendikar não terá outra escolha

senão disparar armas reais. E Eminiar VII teria que fazer o mesmo para se defender. O

resultado seria a perda de vidas e a sua civilização destruída. Mas Kirk não vê essa

solução como a melhor opção.

Pouco tempo depois, Kirk, Spock e os outros tripulantes detidos conseguem

fugir do cativeiro e alertam Spock que, se necessário, terão que matar. Eles chegam

então a uma câmara de desintegração, observam pessoas se despedindo e entrando nela.

Ao se aproximarem, interrompem a caminhada de Mea3 em direção ao dispositivo e

Kirk atira na câmara de desintegração número 12, causando a sua explosão.

Anan7 decide abrir fogo contra a Enterprise com o objetivo de destruí-la. Mas os

escudos foram capazes de proteger a nave. Então, o Sr. Fox afirma que o ataque sofrido

foi somente um mal-entendido que será esclarecido. O tripulante encarregado da

Enterprise na ausência do Capitão Kirk diz: "O melhor diplomata que eu conheço é um

feiser totalmente ativado".

O Sr. Fox pede para entrar em contato com Anan7, que pergunta aos seus

conselheiros: "O que seria mais decente: honestidade ou uma mentira que pode salvar as

nossas vidas?". Anan7 diz ao embaixador Sr. Fox que o ataque dirigido a Enterprise foi

um engano, um erro nos sensores de Eminiar VII, os quais indicaram a Enterprise como

prestes a atacar. Informa que a ordem de cessar ataque fora ordenada e acrescenta que

os tripulantes em terra estavam vivos e bem. Por fim, Anan7 convida o Sr. Fox para ser

bem recebido pessoalmente. Ao encerrar a conversa, o Sr. Fox diz: "Diplomacia,

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cavalheiros, é uma tarefa que tem que ser deixada a diplomatas. Retorne a nave ao

regime pacífico imediatamente".

Kirk consegue entrar na sala onde Anan7 está e aponta sua arma para ele. Anan7

considera o comportamento do Capitão Kirk um barbarismo. Kirk retruca que, em seu

planeta, não há guerras mediante computadores, nem encaminhamento de vítimas a

estações de suicídio, há guerra real que poderia destruir Eminiar VII. Ao saírem da sala,

os guardas lutam contra Kirk, ele desmaia e é levado à sala do Conselho.

O Embaixador Fox desce e é recebido por Anan7 e ao ser levado pelos

corredores, diz ao Sr. Fox que ele e a sua equipe foram considerados perdas de guerra, e

serão levados às estações de desintegração. A entrada forçada do sr. Fox a câmara é

interrompida por Spock que chega armado, ordenando que os seguranças fujam. E diz

que está praticando uma variedade peculiar de diplomacia, e atira em uma outra câmara

de desintegração. Spock diz ao Sr. Fox que procedimentos diplomáticos normais não

têm efeito em Eminiar VII.

Anan7 diz a Kirk que, se a tripulação da Enterprise não se apresentar às câmaras

de desintegração, o ato será considerado violação de um acordo de 500 anos. Kirk

responde que a sua tripulação não é responsável pelos acordos de Eminiar VII. E Anan7

retruca Kirk dizendo que ele será responsável pela morte de milhares de pessoas e pela

destruição completa da cultura de Eminiar VII, da Cultura de Vendrikar e por desastres,

doenças, fome, horror, morte lenta, dor e agonia. Anan7 questiona Kirk sobre que tipo

de monstro ele é ao achar que a sua tripulação é mais importante do que as centenas de

milhões de inocentes de toda a população de Eminiar e Vendikar. Kirk responde que é

um bárbaro, conforme o próprio Anan7 o havia acusado anteriormente, e assegura que

irá provar isso. Anan7 declara que o comportamento do Capitão Kirk força-o a se

comportar como um criminoso, e abre o canal de comunicação com a Enterprise. Nesse

momento, o Capitão Kirk grita emitindo a Ordem Geral 24 para ser executada em duas

horas. Diante da reação de Kirk, Anan7 ameaça os tripulantes da Enterprise, dizendo

que, se toda a tripulação a bordo da nave não se teletransportar para Eminiar VII, em 30

minutos, os reféns serão mortos e a nave atacada. Mas o Capitão Kirk rebate que não

estará presente para tal destruição, pois a Ordem Geral 24 significa destruir todo o

planeta em 2 horas. Assustado, Anan7 dá a ordem de abrir fogo contra a Enterprise, no

entanto, a Enterprise sai do alcance do sistema de defesa a tempo.

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De Vendikar provém uma mensagem com a informação de que o tempo para

eliminação das milhares de pessoas do último ataque realizado está esgotando-se. E

acusa Eminiar VII de violar o tratado.

Kirk consegue golpear todos os guardas presentes naquela sala, tornando seus

reféns os membros do Conselho de Eminiar VII. Spock e os outros entram na sala do

Conselho e Kirk pede a ajuda de Spock na sala de guerra. Na sala, Kirk diz a Anan7:

"Morte, destruição, doença, horror... é isso que é a guerra, e é isso que faz com que ela

seja evitada. Vocês a tornaram limpa e sem dor. Tão limpa e sem dor, que não tiveram

motivo para pará-la, e é assim há 500 anos”.

Spock explica ao Capitão Kirk como funcionam os computadores de guerra e diz

que esta rede mantém contato constante com Vendikar, acrescenta que, ao romper o

contato, o acordo entre as duas partes em guerra será anulado. Kirk atira com sua arma a

laser nos computadores, causando uma explosão na sala de guerra. Nesse momento,

Anan7 indaga-o:

(Anan7) — Percebe o que fez?

(Kirk) — Sim, percebo. Eu lhe devolvi os horrores da guerra. Os vendikarianos

presumirão que vocês romperam o acordo e que se preparam para combater com armas

reais. Eles farão o mesmo, só que no próximo ataque eles farão mais do que contar

números no computador, destruirão as cidades, o planeta. O senhor, claro, desejará

retaliar, deveria começar a fazer bombas. Sim, Conselheiro, tem uma guerra real em

suas mãos. Pode combatê-la com armas reais ou poderia considerar uma alternativa.

Acabe com isso! Faça a paz!

(Anan7) — Não pode haver paz. Não vê? Admitimos para nós mesmos. Somos

espécies assassinas. É instintivo. Assim como vocês e a sua Ordem Geral 24.

(Kirk) — Certo, é instintivo, mas podemos lutar contra o instinto. Somos seres

humanos com o sangue de milhões de anos selvagens nas mãos. Mas podemos parar.

Admitimos que somos assassinos, mas que não vamos matar hoje. É disso que se

precisa. Saber que não mataremos hoje. Contate Vendikar. Acho que descobrirá que

estão tão atemorizados e assustados como vocês. E farão tudo para evitar a opção que

lhes dei: paz ou destruição total. Depende do senhor.

(Sr. Fox) — Como terceiro interessado só na paz e no estabelecimento de

relações normais, ficarei feliz em ser o mediador entre o senhor e Vendikar.

(Anan7) — Pode haver uma chance, temos um canal direto com o Alto Conselho

de Vendikar. Não é usado há séculos.

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(Sr. Fox) — Então está mais do que na hora. Vamos?

Fox e Anan7 se dirigem a outra sala.

Kirk cancela a Ordem Geral 24 e pede pelo teletransporte. Toda a tripulação

anteriormente feita refém volta para a Enterprise e logo depois recebem uma mensagem

proveniente de Eminiar VII, informando que as negociações do Embaixador com

Vendikar prosseguem com panorama esperançoso.

(Spock) — Capitão, arriscou muito.

(Kirk) — Eu arrisquei, Sr. Spock? Matavam três milhões de pessoas por ano.

Isso ocorreu por 500 anos. Um ataque real não teria matado mais que um daqueles por

computador, mas encerraria sua habilidade de guerrear. A luta estaria terminada

permanentemente.

(McCoy) — Mas não sabia se funcionaria.

(Kirk) — Não. Era um risco calculado. Mesmo assim, os eminianos mantêm

uma sociedade bem ordenada e a guerra de verdade é um negócio sujo. Um negócio

muito, muito sujo. Eu sentia que eles fariam de tudo para impedi-la. Mesmo falar em

paz.

(Spock) — Intuição não ajuda muito.

(Kirk) — Às vezes, intuição, Sr. Spock, é só o que os humanos têm para seguir.

(Spock) — Capitão, o senhor quase me fez acreditar em sorte.

(Kirk) — Sr. Spock, o senhor quase me faz acreditar em milagres.

b. Análise do episódio

Especialmente em uma democracia a questão é de

percepção: nós enxergamos um ato criminoso ou um

ato de guerra? Antes que exista uma distinção legal,

existe um ato da imaginação.

Kahn

No episódio Armageddon, de Star Trek, o objetivo da missão é de estabelecer

relações diplomáticas com as civilizações existentes na aglomeração estelar NGC 321.

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O maior planeta da aglomeração é Eminiar VII e o seu vizinho Vendikar, ambos

pertencentes ao mesmo sistema solar. O primeiro aspecto que chama a atenção é o fato

de o Embaixador da Federação dos Planetas, o Sr. Fox, ignorar o pedido de Eminiar VII

de não se aproximar do planeta. O Sr. Fox assume o risco de criar uma guerra

interplanetária com a sua disposição de estabelecer relações diplomáticas a todo custo.

Com isso, demonstra que a soberania de Eminiar VII é facilmente ignorada pelo poder

exercido pela Federação Unida dos Planetas. Essa atitude evidencia que o exercício do

poder é passível de ocorrer mediante o uso de violência.

Ao se teletransportarem para Eminiar VII, os representantes da Federação Unida

dos Planetas são levados à Divisão de Controle para se encontrarem com Anan7 e os

membros do Alto Conselho. Durante o diálogo Anan7 diz ser impossível estabelecer

uma relação diplomática enquanto estão numa guerra contra Vendikar. Quando as

sirenes disparam, sinalizando que Eminiar VII fora atacada, o capitão Kirk e Spock

ficaram confusos por não terem escutado nenhuma explosão. No entanto, ao saber que

meio milhão de pessoas morreram, Spock compreende que, em Eminiar VII, a guerra

ocorre por meio de um sistema de computadores. A respeito desse novo formato de

guerra, é pertinente a reflexão da filósofa alemã Hannah Arendt segundo a qual:

O mero fato de que aquelas pessoas que se dedicam ao

aperfeiçoamento dos meios de destruição atingiram finalmente um

nível de desenvolvimento técnico onde o seu objetivo, a luta armada,

chegou a ponto de desaparecer em sua totalidade em virtude dos

meios à sua disposição, parece um irônico lembrete dessa

imprevisibilidade que a tudo permeia, e que encontramos no momento

em que nos aproximamos dos domínios da violência. A razão

principal por que os conflitos armados ainda existem não é nem um

desejo secreto de morte da espécie humana, ou um irreprimível

instinto de agressão, nem, finalmente, e mais plausivelmente, os sérios

perigos econômicos e sociais inerentes ao desarmamento: porém o

simples fato de que substituto algum para esse árbitro final nas

relações internacionais apareceu ainda no cenário político (ARENDT,

1985, p. 5).

A reflexão de Hannah Arendt, exposta na citação acima, permite, em certa

medida, compreender o tipo de inquietação e de estranhamento vivenciado pelos

tripulantes da Enterprise em relação ao novo formato de guerra praticado por Eminiar

VII e Vendikar. Os investimentos realizados nas últimas décadas pelas forças armadas

estadunidenses, construindo novos meios de destruição, trazem esta mesma inquietação

com a utilização das aeronaves remotamente pilotadas, cujo uso faz decrescer cada vez

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mais o recurso do combate corpo a corpo decresce como fundamental para a vitória.

Kahn, em seu artigo Imagining Warfare (KAHN, 2013), reconhece que a guerra não se

parece mais com a guerra convencional, já que tropas uniformizadas não mais se

confrontam em uma área de combate pré-estabelecida. Será que a atual tecnologia

estadunidense se aproxima da proposta de combate antisséptico de Eminiar VII?

Acreditamos que existam mais diferenças do que similaridades. Uma dessas

diferenças é a própria questão da morte, mais precisamente quanto ao risco de morte. A

guerra entre Eminiar VII e Vendikar tem como regra fundamental o ato de matar o

inimigo inter-relacionado com a disposição de morrer pelo seu planeta. É exatamente

esse aspecto que as forças armadas querem evitar com a utilização das aeronaves

remotamente pilotadas. Uma das características mais marcantes da tecnologia é evitar o

risco de ferimentos ou de morte. A disposição de morrer na guerra de Eminiar VII é um

aspecto cultural que envolve a sociedade como um todo. Isso é confirmado quando

Anan7 diz que a sua esposa morreu no último ataque.

Percebemos que afirmação de Hannah Arendt de que "a própria guerra é o

sistema social básico, dentro do qual outros tipos de organização social conflitam ou

conspiram" (ARENDT, 1985, p. 08) pode ser aplicada na leitura do que ocorre nos dois

planetas apresentados no episódio Armageddon, de Star Trek. Subjacente à reflexão da

autora está o fato de mundo não ter conseguido a paz após a Segunda Guerra Mundial,

mas, em vez disso, a Guerra Fria. Ainda de acordo com Hannah Arendt, "a paz é a

continuação da guerra por outros meios6 — é o verdadeiro desenvolvimento das

técnicas da guerra" (ARENDT, 1985, p. 08). Por mais que a própria guerra seja o

sistema social básico, no Armageddon, a situação entre paz e guerra acontece

simultaneamente, porque a técnica já foi desenvolvida, compartilhada e utilizada de

maneira igual pelos planetas. Um detalhe interessante, no episódio, são os ditos guardas

residentes em Eminiar VII. Eles não sabiam lutar. Em Eminiar, ninguém era soldado,

mas todos cumpriam a sua função como engrenagem da guerra ao entregarem seus

corpos.

Hardt e Negri (2012) apresentam uma outra perspectiva sobre a relação entre o

episódio do Armageddon e as características dos conflitos da atualidade que também

nos é útil para pensar sobre a utilização de aeronaves remotamente pilotadas:

6 Hannah Arendt menciona a frase de Clausewitz, a paz é a continuação da guerra por outros meios,

porém sem referência específica de ano ou página.

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Esta aventura da nave Enterprise ilustra uma contradição do

sonho de uma guerra civilizada e incorpórea contida no conceito de

RMA. Sem o horror da guerra, é menor o incentivo para acabar com

ela, e uma guerra sem fim, como diz Kirk, é a pior das barbáries.

Existe no entanto, entre a ideologia da RMA e a situação do episódio

de Jornada nas Estrelas, uma importante diferença que exacerba

ainda mais a contradição, pois atualmente os dois lados em conflito

não são iguais. Quando os dirigentes americanos imaginam uma

guerra sem corpos ou sem soldados, pensam apenas, naturalmente, nos

corpos de soldados americanos. Os corpos de inimigos certamente

existem para morrer (e cada vez mais as baixas entre os inimigos,

sejam civis ou militares, não são informadas ou sequer calculadas).

Esta assimetria torna ainda mais difícil a abordagem da contradição,

pois apenas um dos lados carece de incentivo para pôr fim à guerra.

Que incentivo terá um poder para pôr fim a uma guerra quando não

chega a sofrer com ela? (HARDT; NEGRI, 2012, p. 75-76).

O episódio do Armageddon apresenta um novo modelo de guerra, uma guerra

civilizada e sem corpos mutilados. Talvez seja possível dizer que mostra um novo

modelo sociocultural. Nesta guerra o ambiente não é destruído e a cultura permanece

intacta, não existindo o processo doloroso da reconstrução que vemos continuamente

nas guerras e conflitos convencionais. Por mais que o número de mortes seja alto, existe

na guerra virtual a proporcionalidade que não existe nas guerras atuais ou nas

pertencentes aos livros de história. Nesta história, ambos os lados possuem a mesma

tecnologia. Por isso essa questão é tão significante para o trabalho desenvolvido nesta

dissertação. Entendemos que o problema não é a tecnologia dos sistemas aéreos não-

tripulados e, sim, a desproporcionalidade. Se imaginarmos uma situação mundial em

que todos possuam essa tecnologia, ela deixaria de ser eficaz. As aeronaves

remotamente pilotadas representam, no momento, o valor da soberania do estado e a

eficácia deste novo crime de guerra. Da mesma forma que séculos atrás aconteceu com

a criação da pólvora, as aeronaves remotamente pilotadas são uma extensão da

habilidade humana que está subordinada a uma hierarquia soberana.

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3 Philip Alston - Relatório apresentado pelo relator especial sobre execuções

extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias (ONU)7

Este relatório descreve as informações disponíveis publicamente sobre as

políticas do assassinato seletivo (targeted killing) e adereça as principais questões legais

levantadas. Identifica também as áreas nas quais enquadramentos legais foram

claramente violados ou expandidos além dos limites permissíveis. E sugere abordar a

comunidade internacional para normatizar um enquadramento consistente com a

proteção e o direito de viver, com a minimização de exceções.

3.1 Sobre o termo assassinato seletivo (targeted killing)

A definição de assassinato seletivo é aplicada quando existe o uso de força letal,

intencional e premeditada por Estados ou agências oficiais, as quais agem através de

uma pretensa aparência de o fazerem de acordo com a lei, ou milícias que lutam contra

indivíduos ou grupos que não estão sob custódia. Algumas nações, principalmente os

Estados Unidos, utilizam a política do assassinato seletivo às vezes de forma aberta e

outras vezes de forma implícita (ALSTON, 2010). Tais políticas são justificadas como

uma resposta legítima às ameaças “terroristas”, palavra a qual está entre aspas, porque a

definição de terrorismo não é clara e facilmente manipulável. Essas ameaças

“terroristas” são respondidas por meio de combates assimétricos (asymmetric warfare).

Na luta legítima contra o terrorismo, muitos atos criminosos foram

requalificados, de modo a justificar enfrentá-los no âmbito da lei do

conflito armado. As novas tecnologias, e aeronaves de combate

desarmadas ou "drones", foram adicionadas a esta mistura, tornando-o

mais fácil de matar os alvos, com menos riscos para o Estado em que

se localizam tais alvos. (ALSON, 2010, p.3, tradução nossa).

O resultado desse mix se tornou um grande problema, por depreciar as fronteiras

– é como se as fronteiras dos Estados que possuem alvos relevantes se tornassem

orgânicas. As fronteiras mapeadas deixam de existir em prol da luta contra o inimigo

invisível, em políticas que também não foram adequadamente delineadas, ignorando os

direitos humanos e as próprias leis de guerra elaboradas décadas atrás.

7 Título original: Report of the Special Rapporteur on extrajudicial, summary or arbitrary executions.

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3.2 Compreendendo os detalhes desse relatório

O assassinato seletivo concerne ao uso intencional, premeditado e deliberado de

força letal por Estados e agentes que atuam além da sua autoridade legal, ou por grupos

armados organizados em conflitos armados contra um indivíduo específico que não está

sob a custódia física de seu agressor. A política do assassinato seletivo tem sido

justificada de duas formas: como uma resposta legítima às ameaças “terroristas” e como

uma resposta necessária aos desafios da “guerra assimétrica”. Na “legítima luta” contra

o terrorismo, muitos atos criminosos foram requalificados, de modo a justificar

enfrentá-los dentro do âmbito da lei do conflito armado. Produz-se a luta e o inimigo

que a justifica.

As novas tecnologias e especialmente os veículos aéreos não-tripulados

desarmados ou “drones” foram inseridos nessa luta por tornar mais fácil matar alvos,

com menos riscos para o Estado que determinou os alvos. Mesmo em situações às quais

as leis da guerra são aplicáveis, parece haver uma tendência da expansão da qualificação

de alvo e de suas condições, mostrando que Estados com intenção de realizar o

assassinato seletivo não conseguem justificar legalmente tal política, tampouco

conseguem fornecer mecanismos de responsabilização por violações. Colocam em

voga, por conseguinte, o sigilo de informações sobre quem foi morto, a razão e quais

foram as consequências desse ato. Ou seja, normas jurídicas, de certa forma, acabam

sendo substituídas, a fim de criar uma ampla permissividade para matar e,

consequentemente, a falta de prestação de contas por suas ações.

3.3 Detalhamento do termo assassinato seletivo (targeted killing)

Cada vez mais a expressão assassinato seletivo é empregada, porém, esse termo

não existe ou é definido dentro do direito internacional, tampouco se encaixa em

quadros políticos legais. Ele se tornou comum através do Estado de Israel, no ano 2000,

depois que este tornou pública a política do "assassinato seletivo" de supostos terroristas

nos territórios palestinos ocupados.

[...] o Estado de Israel confirmou a existência de uma política nos

termos das quais ele justifica o assassinato seletivo como legítima

defesa, de acordo com o Direito Humanitário Internacional

(International Humanitarian Law - IHL), porque as autoridades

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palestinas não estavam conseguindo prevenir, investigar e reprimir o

terrorismo, principalmente ataques suicidas direcionados a Israel.

(ALSTON, 2010, p. 6, tradução nossa).

Os métodos do assassinato seletivo podem variar: veneno, carros-bomba, tiro à

queima-roupa, mísseis de helicópteros e drones. Não importa exatamente o método,

porém, que de fato a força letal seja usada deliberadamente contra um indivíduo ou mais

indivíduos selecionados previamente. Uma situação que não é caracterizada como

assassinato seletivo ocorre quando a força policial identifica um homem-bomba que está

prestes a ativar a bomba; em tal situação, o ato de matar está dentro da legalidade, desde

que o objetivo inicial da operação não seja o de matar. Na verdade, na maioria das

situações envolvendo os assassinatos seletivos, os quais violam o direito à vida, a

circunstância excepcional do conflito armado em si pode torná-la legal.

O assassinato seletivo sempre existiu, contudo, seu uso por Estados é

oficialmente raro e a existência dessa política negada, de sorte que tanto os assassinatos

como as justificativas permeiam um espaço sigiloso. A utilização das Aeronaves

Remotamente Pilotadas pelos Estados Unidos em missões de assassinato seletivo em

conflitos armados acontecem nos territórios do Afeganistão e do Iraque. Os Estados

Unidos supostamente adotaram uma política secreta de assassinato seletivo, logo após

os ataques de 11 de setembro de 2001, declaradamente realizada pela Agência Central

de Inteligência (Central Intelligence Agency - CIA), por meio dos drones "Predator" e

"Reaper", contando igualmente com o apoio de forças de operações especiais e

empreiteiros civis para a implementação dessa política.

Presume-se que a Agência Central de Inteligência estadunidense controle sua

frota de Aeronaves Remotamente Pilotadas em sua sede em Langley, no Estado da

Virgínia, trabalhando em conjunto com pilotos perto de campos de pouso escondidos no

Afeganistão e no Paquistão. Ainda de acordo com o relatório, mas desta vez apoiado em

uma reportagem,8 a frota de drones da CIA é pilotada por civis, oficiais da Inteligência e

militares aposentados, sendo as missões aprovadas pelo chefe de serviços clandestinos

da CIA. Há ainda uma lista de alvos aprovados pela equipe sênior do governo

estadunidense, e a CIA não precisa identificar o seu alvo pelo nome, mas através da

observação do seu cotidiano, pela vigilância. Os pontos apresentados nas linhas

8 Artigo da Revista The New Yorker: The Predator War - What are the risks for the C.I.A.´s covert drone

program? http://www.newyorker.com/magazine/2009/10/26/the-predator-war

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anteriores são de alta relevância, porém, ao se observar a reportagem, a qual foi muito

bem redigida, ainda não constam provas sobre esses aspectos.

Alston apresenta também um trecho de um relatório9 em que destaca que não há

restrições sobre o uso da força diante dos alvos selecionados, o que significa que eles

podem ser mortos ou capturados no campo de batalha, enquanto a norma para que

suspeitos entrem na lista requer duas fontes humanas verificáveis e uma evidência

substancial adicional. As justificativas legais do Governo para assassinatos seletivos

foram estruturadas no direito de legítima defesa, bem como no IHL, além da

circunstância de que os Estados Unidos estão em um conflito armado contra a al-Qaeda,

o Talibã e forças associadas.

Embora esta afirmação seja um importante ponto de partida, não aborda

questões jurídicas centrais, incluindo: o escopo do conflito armado na

qual os Estados Unidos afirma estar envolvido; o critério para

selecionar e matar indivíduos; a existência de quaisquer garantias

materiais e/ou processuais para garantir a legalidade e precisão de

assassinatos, bem como a existência de mecanismos de

responsabilização. (ALSTON, 2010, p.8, tradução nossa).

Na página 9 do relatório elaborado por Alston, item "C. - New Technology",

consta um único parágrafo com o seguinte conteúdo apropriado de uma reportagem da

revista online estadunidense Newsweek10

:

Drones foram originalmente desenvolvidos para reunir informações e

realização de vigilância e reconhecimento. Mais de 40 países já

possuem essa tecnologia. Alguns, incluindo Israel, Rússia, Turquia,

China, Índia, Irã, Reino Unido e França, têm ou estão buscando drones

que tenham a capacidade de disparar mísseis guiados por laser com

peso variando de 35 a 100 libras. O apelo dos drones armados é claro:

especialmente em terreno hostil, eles permitem assassinatos seletivos

com pouco ou nenhum risco para o pessoal do Estado e eles podem ser

operados dentro do Estado de origem. Também é concebível que os

grupos armados não-estatais poderiam obter essa tecnologia.

9 US Senate Foreign Relations Committee. Afghanistan´s Narco War: Breaking the Link Between Drug

Traffickers and Insurgents: Report to the Senate Committee on Foreign Relations. S. Rep. No. 111-29, at

16 (2009). 10

Artigo da Revista online Newsweek: Hizbullah´s Worrisome Weapon (9/10/2006). Disponível em:

http://www.newsweek.com/hizbullahs-worrisome-weapon-109377 Acesso em: 3 de abril de 2015.

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As frases "Mais de 40 países já possuem essa tecnologia" e "Têm ou estão

buscando drones que tenham a capacidade de disparar mísseis guiados por laser" não

trazem em nenhum momento referências que favorecem a comprovação dessas

informações. Como o jornalismo internacional não precisa comprovar o que redige, mas

causa estranhamento a Organização das Nações Unidas usar tais reportagens como se

fossem de fato referências relevantes para abordar essa nova tecnologia, ao invés de

empregar outras fontes com informações apuradas sobre o que é produzido. Essa

reportagem alude ao receio israelense e estadunidense de grupos terroristas usarem

drones contra Israel, sendo que esse Estado os utiliza continuamente contra a Palestina,

de sorte que se trata de uma reportagem que não tão sutilmente reafirma a importância

de manter uma assimetria bélica. A utilização de referências jornalísticas de baixa

qualidade e nível investigativo diminui a credibilidade dos relatórios desenvolvidos pela

ONU, quando o assunto são as Aeronaves Remotamente Pilotadas.

3.4 Sobre a legalidade do assassinato seletivo

Para que o assassinato seletivo esteja numa situação legalizada, é necessário

observar o contexto em que está inserido, seja em conflitos armados, seja fora da

situação de conflito armado, seja ainda nas relações interestaduais de força.

No contexto de conflito armado:

Seguindo as regras do direito internacional humanitário, o assassinato

seletivo é apenas legal quando o alvo é um combatente; caso seja um

combatente civil, este pode ser alvo somente enquanto participa

diretamente das hostilidades. Além disso, o assassinato seletivo deve ser

militar, o uso da força deve ser proporcional, de modo que qualquer

vantagem militar será considerada um dano esperado para os civis da

vizinhança. Tudo deverá ser feito para evitar erros e minimizar danos

aos civis. Essas normas aplicam-se independentemente de o conflito

armado ser entre Estados e um grupo armado não-estatal (conflito

armado não internacional), incluindo supostos terroristas. Ataques ou

represálias punitivas contra civis são proibidos. (ALSTON, 2010, p.10,

tradução nossa).

Fora do contexto de conflito armado:

O quadro jurídico: A legalidade de um assassinato fora do contexto do

conflito armado é governado pelas normas dos Direitos Humanos,

especialmente as que dizem respeito ao uso da força legal. Embora

essas normas ssejam comumente referidas como "Forças da Lei” (law

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enforcement), o modelo não se aplica somente às forças policiais ou em

tempos de paz. Os "agentes da lei" (law enforcement officials) que

podem usar a força letal incluem todos os funcionários do governo que

exercem poderes da força policial, incluindo as forças militares e de

segurança de um Estado, operando em contextos onde existe violência,

mas ficando aquém do limiar de um conflito armado. (ALSTON, 2012,

p. 10-11, tradução nossa).

Sob a Lei dos Direitos Humanos: Um assassinato estatal somente é

considerado legal, se for necessário para proteger a vida (usando força

letal proporcional), quando não há outros meios para protegê-la, como a

captura ou a incapacitação não letal. A exigência da proporcionalidade

limita o nível admissível de força baseada na ameaça representada pelo

suspeito para com os outros. O requisito da necessidade impõe a

obrigação de minimizar o nível de força usada, independentemente da

quantia que seria considerada proporcional, através, por exemplo, do

uso de advertências, contenção e captura.

Isso significa que, nos termos da legislação dos direitos humanos, o

assassinato seletivo (intencional, premeditado e deliberado) por agentes

da lei não pode ser legal, porque, ao contrário de um conflito armado,

nunca é admissível que o objetivo único e final de uma operação seja o

assassinato. Assim, por exemplo, a política de "atirar para matar" viola

a lei dos direitos humanos. Isso não quer dizer, como alguns o fazem

erroneamente, que as "Forças da Lei" (law enforcement) sejam

incapazes de atender às ameaças que os terroristas representam, em

particular os "homens-bomba". Tal argumento baseia-se em um

equívoco da lei dos direitos humanos, que não requerem que Estados

escolham entre deixar as pessoas serem mortas e deixar seus agentes da

lei (law enforcement officials) usarem força letal para prevenir tais

mortes. Na verdade, segundo a legislação de direitos humanos, é dever

dos Estados respeitar e garantir o direito à vida, que implica a obrigação

de exercer uma devida diligência para proteger a vida de indivíduos de

ataques por criminosos, incluindo terroristas. A força letal sob a lei dos

direitos humanos é legal se, e somente se, for diretamente necessária

para salvar a vida. (ALSTON, 2010, p.11, tradução nossa).

O uso da força entre Estados:

O quadro jurídico: Assassinatos seletivos realizados nos territórios de

outros Estados levantam preocupações sobre a soberania. Seguindo o

artigo 2(4) da UN Charter, os Estados são proibidos de usar a força no

território de outro Estado. Quando um Estado realiza um assassinato

seletivo no território de outro Estado com o qual ele não está em

conflito armado, se o primeiro Estado viola a soberania do segundo,

será determinado pela legislação aplicável o uso de força interestadual,

enquanto a questão de saber se a morte específica do indivíduo ou

indivíduos é legal, regida pelo IHL e/ou a legislação dos direitos

humanos. (ALSTON, 2010, p.11, Tradução nossa).

Sob a Lei dos Direitos Humanos: O assassinato seletivo conduzido por

um Estado dentro do território do segundo Estado não viola a soberania

do segundo Estado, se: (a) o segundo Estado consente, ou (b) o primeiro

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Estado tem esse direito, de acordo com a lei internacional de usar a

força em legítima defesa (Artigo 51 da UN Charter), porque (i) o

segundo Estado é responsável por um ataque armado contra o primeiro

Estado, ou (ii) o segundo Estado não quer ou não consegue parar os

ataques contra o primeiro Estado lançado de seu território. O direito

internacional permite o uso da força letal em legítima defesa em

resposta a um "ataque armado", desde que essa força seja necessária e

proporcional. (ALSTON, 2010, p.12, Tradução nossa).

3.5 A soberania e a legítima defesa

Para Alston (2010), a ação de um Estado permitir o ataque dentro de seu

território, ou seja, permitir o uso de força letal, não absolve nenhum deles em relação as

suas obrigações diante das leis dos direitos humanos e do IHL sobre o uso de força letal

contra um ser-humano. A reponsabilidade de um Estado de proteger a vida de seus

cidadãos deve ser aplicada continuamente, e este pode autorizar um ataque em seu

território, quando essa ação estiver de acordo com as leis dos direitos humanos e IHL.

Além disso, o Estado deve, no mínimo, requerer que aquele que visa a atacar demonstre

de forma verificável que a pessoa pode ser selecionada para o assassinato seletivo

conforme a lei. Se, após o assassinato, o Estado não conseguir garantir a legalidade da

sua ação, o Estado que consentiu tal ação deverá investigar essa irregularidade e buscar

o julgamento dos infratores e compensação para as vítimas.

Ainda de acordo com o relatório redigido por Alston (2010), caso o

consentimento não seja cedido, o Estado pode invocar o direito à legítima defesa como

justificativa para o uso extraterritorial da força envolvendo assassinatos seletivos. Além

do direito de legítima defesa, os Estados têm o direito da defesa “antecipatória” ou

“preventiva”. A chamada “legítima defesa preventiva” foi invocada pelo ex-presidente

George Bush, que ainda reflete a política estadunidense a qual autoriza o uso da força,

mesmo que a ameaça não seja iminente e não haja certeza sobre onde e quando

acontecerá um ataque inimigo. Esse ponto de vista estadunidense é amplamente

contestado e não encontra suporte no direito internacional.

Alston (2010) salienta que é uma tradição os Estados se recusarem a admitir a

existência de um conflito armado contra grupos não-estatais, para não darem

reconhecimento a esses grupos e parecerem “fracos” por não conseguirem deter tal

violência; ao invés disso, insistem que se trata de criminosos sujeitos às leis domésticas.

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3.6 Sobre a criação de alvos e a condução do assassinato seletivo

A maior fonte de falta de clareza sobre assassinatos seletivos no

contexto do conflito armado é sobre quem está qualificado

como alvo legítimo, onde e quando o indivíduo pode se tornar

um alvo. (ALSTON, 2010, p.19, Tradução nossa).

Durante um conflito armado internacional, os combatentes podem ser

selecionados como alvos a qualquer momento e em qualquer lugar, desde que isso

esteja de acordo com as regras do IHL. Os civis que podem ser atacados, por sua vez,

são aqueles que "[...] participam diretamente de hostilidades" (directly participate in

hostilities - DPH), porém, não há uma definição pré-estabelecida sobre os civis que

participam diretamente em hostilidades, de maneira que essa definição fica aberta à

interpretação de cada Estado, que evita divulgar ao público a sua interpretação

(ALSTON, 2010).

Todavia, algumas condutas são compreendidas como participação direta: civis

que atiram em agentes da lei ou cometem violência no contexto hostil que possa causar

a morte ou o ferimento de civis. Já as condutas que tradicionalmente são excluídas

como participações diretas são: exercer advocacia, fornecer alimento e abrigo, fornecer

suporte econômico e propaganda (ALSTON, 2010).

Alguns comentaristas acreditam que os agentes da CIA os quais realizam

assassinatos seletivos com drones estão cometendo crimes de guerra, já que, ao invés de

militares, eles não seriam combatentes (mesmo que o contexto fosse de um conflito

armado), de sorte que não poderiam participar de hostilidades. Porém, esse argumento

não é validado pelo IHL. Fora do contexto de um conflito armado, os assassinatos pela

CIA constituem execuções extrajudiciais, porque estes não estão de acordo com os

direitos humanos. Sendo assim, deveriam ser investigados e condenados tanto pelos

Estados Unidos quanto pelo Estado onde ocorreram os assassinatos ilegais (ALSTON,

2010).

Alston (2010) aponta também um outro aspecto muito importante: ele assinala

que, se o assassinato seletivo viola as regras do IHL, como, por exemplo, selecionar

civis que não “[...] participam diretamente nas hostilidades”, não importa quem

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conduziu o assassinato, quer a Inteligência, quer as Forças Armadas. Assim, o autor e

todos aqueles que autorizaram tais ações podem ser executados por crimes de guerra.

3.7 Utilizando drones para assassinato seletivo

O uso de drones para assassinatos seletivos tem gerado uma controvérsia

significativa. Alguns têm sugerido que drones desse tipo são armas proibidas pelo IHL,

pois eles causam, ou têm o efeito de causar, assassinatos de civis de forma

indiscriminada, como aquelas da vizinhança de uma pessoa selecionada. É fato que o

IHL impõe limites sobre as armas que os Estados podem utilizar, as quais são, por

exemplo, inerentemente não seletivas (como as armas biológicas) e que são proibidas.

No entanto, um míssil disparado de um drone não é diferente de nenhuma outra arma

comumente usada, incluindo uma pistola disparada por um soldado ou um helicóptero

ou caça que disparem mísseis. A questão legal central é a mesma para todas as armas: se

seu uso específico está em conformidade com o IHL (ALSTON, 2010).

Defensores dos drones argumentam que, desde que os drones adquiriram uma

maior capacidade de vigilância e precisão superior a outras armas, eles podem prevenir

de maneira mais eficaz as baixas e ferimentos colaterais de civis. Alston assevera que

isso pode até ser verdade, por uma perspectiva, mas é um quadro incompleto. A

precisão, exatidão e legalidade de um ataque de drone dependem da inteligência

humana que fundamentou a decisão sobre o alvo (ALSTON, 2010).

Como os pilotos/operadores de drones estão localizados a milhares de

quilômetros de distância do campo de batalha e empreendem operações por intermédio

de telas de computadores e retorno de áudio remoto, há um risco de que desenvolvam

uma mentalidade “Playstation” para matar. Estados devem garantir que os programas de

treinamento para pilotos/operadores os quais nunca tenham sido submetidos aos riscos e

rigores da batalha adquiram respeito ao IHL e adequem um salvo-conduto em

conformidade com ele (ALSTON, 2010).

Fora do contexto de conflito armado, o uso de drones para assassinatos seletivos

quase nunca é passível de legalidade. Um assassinato seletivo por drone dentro do

território do próprio Estado, sobre o qual o Estado tem controle, dificilmente esbarraria

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nas limitações da Lei dos Direitos Humanos Internacional (International Human Rights

Law – IHRL) sobre o uso de força letal (ALSTON, 2010).

Nos aspectos da legalidade do uso dos drones, os relatórios da ONU redigidos

tanto por Alston (2010) quanto por Heyns (2013) são semelhantes, porém, Heyns traz

contextualização do que ele chama de robôs autônomos letais (Lethal Autonomous

Robots – LARs) – o termo LARs refere-se a sistemas de armas robóticas que, uma vez

ativados, podem selecionar e engajar alvos sem qualquer outra intervenção de seu

operador humano. O elemento importante é de que o robô tem uma “escolha”

autônoma, no que concerne à seleção de um alvo e ao uso de força letal (HEYNS,

2013).

De acordo com Heyns (2013), alguns argumentam que robôs nunca poderão se

enquadrar nos requerimentos do IHL ou IHRL, e que, mesmo que pudessem, por uma

questão de princípios, robôs não deveriam adquirir o poder de decidir quem deve morrer

ou viver. Esses críticos pedem por uma proibição total de seu desenvolvimento,

produção e uso. Para outros, tais avanços tecnológicos – se mantidos dentro de limites

razoáveis – representam avanços militares legítimos, que poderiam, em alguns casos,

até ajudar a tornar o conflito armado mais humano e salvar vidas de todos os lados.

Conforme esse argumento, recusar essa tecnologia seria o equivalente a não proteger a

vida de forma adequada (HEYNS, 2013).

Uma próxima questão enfocada por Heyns (2013) é se os LARs são capazes de

agir em conformidade com os requerimentos do IHL. No âmbito de uma resposta

negativa, eles deveriam ser proibidos. Entretanto, de acordo com os defensores dos

LARs, isso não significa que os LARs sejam obrigados a nunca cometer erros – o

parâmetro deveria ser a conduta dos indivíduos que estariam tomando as decisões, caso

contrário, já não podem ser considerados de alto padrão. Um ponto comum apontado

por Alston (2010) e Heyns (2013) é a importância da proporcionalidade, que, sem

dúvida, constitui um dos aspectos mais importantes de ambos os relatórios – talvez seja

até o aspecto de maior prioridade.

Heyns (2013) afirma que, no contexto especificamente sobre drones, são

importantes as regras do IHL de distinção e proporcionalidade. A regra de distinção

busca minimizar o impacto de conflitos armados em civis, proibindo que estes sejam

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alvos de ataques indiscriminados. E, como os LARs não podem distinguir com

segurança combatentes de civis, o seu uso será ilegal.

Heyns (2013) salienta também que, com a atual proliferação de guerras

assimétricas e conflitos não internacionais, bem como em territórios urbanos, eles

representam uma grande barreira à capacidade dos LARs em distinguir civis de outros

alvos tido como ilegais. Isso ocorre especificamente onde avaliações complexas, como

“participação direta em hostilidades”, são necessárias. Especialistas indicaram que, em

situações de contrainsurgência e conflitos não convencionais, nos quais geralmente

combatentes são identificados apenas através da interpretação de conduta, a inaptidão

dos LARs em interpretar intenções e emoções será um obstáculo significante ao

cumprimento da lei de distinção.

A regra da proporcionalidade requer que o dano esperado em civis seja

mensurado, antes do ataque, e comparado com a vantagem militar esperada na operação

a ser realizada. Essa regra, descrita como “uma das mais complexas regras das leis

humanitárias internacionais”, depende preponderantemente de estimativas subjetivas e

específicas para cada contexto. Proporcionalidade é amplamente tida por envolver

julgamentos distintivamente humanos. As interpretações legais predominantes dessa

regra contam explicitamente com noções como “bom senso”, “boa fé” e “padrões de

comando militar sensatos”. Ainda será visto a extensão pelas quais esses conceitos

poderão ser traduzidos em programas de computador, agora ou no futuro (HEYNS,

2013).

Como robôs não têm nenhuma agência moral e como resultado, não

podem ser responsabilizados de nenhuma forma reconhecível se eles

causarem a privação da vida, o que normalmente demanda uma

prestação de contas se um humanos tivesse tomado as decisões.

Quem, então, deve assumir a responsabilidade? (HEYNS, 2013, p.14,

Tradução nossa).

Heyns (2013) enfatiza que, tradicionalmente, a responsabilidade criminal seria

atribuída primeiramente de acordo com a hierarquia militar. Responsabilizar o comando

deve ser considerada uma solução possível para a responsabilização de violações de

LARs. Se um comandante pode ser responsabilizado por um humano subordinado a ele,

ser responsável por um robô autônomo subordinado a ele pode parecer análogo, apesar

de a responsabilização do comando tradicionalmente ser aplicada apenas quando o

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comandante sabia ou deveria saber que o indivíduo planejava cometer um crime e, no

entanto, ele ou ela não tomou medidas para evitá-lo ou não o puniu, após o fato. Será

importante estabelecer se os comandantes militares terão condições de compreender

suficientemente bem a programação complexa de LARs, a fim de justificar a

responsabilidade criminal (HEYNS, 2013). Por mais que Heyns sugira uma estratégia

de responsabilização de ataques ilegais, no momento em que ele afirma que, ao punir os

militares que permitiram o assassinato seletivo, é preciso compreender a complexa

programação para que isso seja viável, parece indicar uma forma de negar a

responsabilidade por suas ações. Uma vez que as Forças Armadas e de Inteligência

pertencem a determinado governo, a responsabilização dentro de uma hierarquia é

fundamental (HEYNS, 2013).

Nos aspectos da legalidade do uso dos drones, os relatórios da ONU tanto

redigidos por Alston (2010) quanto por Heyns (2013) estão de acordo. Porém, o grande

diferencial proporcionado por Heyns é o completo convencimento de que drones

totalmente autônomos com respeito à decisão humana já existem e, por isso, o autor

percebe o drone como um robô exterminador da vida (lembrando do personagem do

filme O Exterminador do Futuro). Estranhamente, tal percepção apocalíptica desse

aparato de guerra tornou este segundo relatório muito mais sobre como responsabilizar a

máquina do que como responsabilizar o governo sobre tais ações. Acredito que o

relatório fornecido por Heyns (2013) não evoluiu, de fato, quanto ao trabalho realizado

por Alston (2010).

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CAPÍTULO 3

DRONE ART: UMA CARTOGRAFIA DESCRITIVA

O que é a arte de guerra? [...] É a

humanidade retratada em seu melhor e seu

pior. É o registro da civilização quando a

vida está em segundo lugar em relação à

morte. É o lugar onde refletimos e

lembramos.

(BRANDON, 2012, p.131, Tradução nossa).

1 Introdução

A guerra é um dos grandes temas da arte, outro tema recorrente é a religião e

ambos os temas estão interligados por interesses políticos. A chamada Arte de guerra

sempre fez parte da cultura humana, desde os Assírios (talvez previamente) até os dias

atuais. A arte de guerra funciona de maneiras diferentes, na sociedade, mas o seu uso

como uma ferramenta política é constante (BRANDON, 2012).

De acordo com Laura Brandon (2012),11

até o final da Guerra do Vietnã, a

televisão se alimentou continuamente com esse evento, e as tragédias e atrocidades se

tornaram imagens cotidianas vistas por pessoas em diversos países. O conflito era o

espetáculo. E, ao pensarmos na arte de guerra, isso resultou em duas áreas de trabalho

distintas: a primeira apresenta um preocupante parentesco da arte de guerra com

imagens pornográficas, enfatizando a sua brutalidade e apresentando-a como

desempenho. A segunda evidencia a indignação moral diante dos acontecimentos.

Ambas as abordagens são combatidas através de peças reflexivas e de tristeza,

mantendo a dor e o luto como seus centros, em projetos de pinturas, fotomontagens e

instalações.

Este capítulo tematiza a importância da Drone Art como estratégia de resistência

e forma de criticar o uso de dispositivos de vigilância e ataque com as aeronaves

remotamente pilotadas, em áreas de conflito ou de público visado. Nos últimos anos, a

utilização dessa controversa aeronave chamou a atenção de artistas e pensadores de

11

Laura Brandon é historiadora do Canadian War Museum, desenvolvendo pesquisa sobre Arte e Guerra.

É autora dos livros: Art or Memorial?: The Forgotten History of Canada´s War Art e Art & War, que é

utilizado neste capítulo.

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diferentes nacionalidades, envolvidos com diversas áreas de pesquisa. Os produtos

artísticos criados por eles são: pintura, fotografia, escultura, dança e moda.

Com as novas tecnologias midiáticas, inúmeros países observam cada vez mais o

uso dos drones e de suas aplicabilidades. Essas novas tecnologias permitem receber de

forma intensa imagens de guerra simultaneamente aos ataques. Outro aspecto para o

qual as novas tecnologias têm contribuído é a disseminação de informações sobre um

conflito armado. Para isso, não é mais necessário ser um soldado. Atualmente, filmes,

séries de TV, fotos e vídeos jornalísticos, vídeos feitos por civis com suas câmeras de

celulares e por meio da indústria de games também são referenciais. Com o

entretenimento, a audiência entra em contato com a potencialidade do impossível,

recebendo imagens de objetos que vão além da nossa imaginação. Referências visuais

são parte integral das nossas vidas, e as experiências estéticas configuram as crenças, as

ações e o conhecimento. Portanto, faz-se necessário estarmos alertas para o que está

velado sob as obras artísticas que serão apresentadas neste capítulo.

Os produtos da Drone Art tematizam o poder militar, a ilegalidade, a vigilância

não autorizada, o desrespeito às fronteiras, a falta de declarações oficiais de conflito

armado, a ausência de justiça a crimes de guerra e a assimetria da tecnologia militar. A

Drone Art possui métodos variados, bem como possibilita a seus espectadores criticar o

poder de um império que decide sobre a vida e a morte de cidadãos os quais não estão

dentro das fronteiras estadunidenses. Se esses cidadãos são islâmicos e não pertencem a

uma raça caucasiana, a possibilidade de sofrerem uma intervenção é bem maior.

Vivemos em um momento menos caracterizado por grandes guerras e mais por

dezenas de pequenos conflitos ao redor do globo (HARDT; NEGRI, 2012). Os Estados

Unidos nos apresentam a sua tecnologia militar por meio de ações de biopoder,

conflitos crescentes protegidos por distintivos, ideologias, religiões e raças. Na

atualidade, compreender as distinções entre violência legítima, crime e terrorismo não é

fácil. Se a legitimação da violência não é clara, então, toda a forma de violência mescla-

se a uma variada gama de tons de cinza que oprimem populações estrangeiras. O poder

militar pode ser legitimado, quando a sua função é a de manter a ordem e não,

necessariamente, a paz, tornando possível realizar atos de violência legais, ilegais e

imorais, desde que essa violência resulte na produção e manutenção do poder (HARDT;

NEGRI, 2012).

A Drone Art apresenta uma vasta gama de projetos e uma oportunidade de

examinar a justiça social, democracia e questões éticas, ajudando-nos a observar as

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conexões entre arte, cultura, ideologia e poder, além de refletir sobre os conflitos

armados que acontecem hoje em dia. No entanto, nem todos os projetos de Drone Art

são sobre resistência. Alguns deles abordam o tema das aeronaves remotamente

pilotadas, sem assumir necessariamente o objetivo de criar algo que demanda reações

diretas e fortes de sua audiência, nem de questionar alianças biopolíticas condutoras do

uso desse aparato com o poder de eliminar vidas.

Atualmente, há muitos projetos em desenvolvimento. Durante a pesquisa,

encontramos trabalhos de artistas da Inglaterra, Suécia, Paquistão e Estados Unidos,

demonstrando a influência geopolítica dos conflitos armados no cenário criativo. Após a

coleta de projetos encontrados, percebemos que a maioria é de artistas estadunidenses,

questionando a política internacional dos Estados Unidos.

A partir dos projetos encontrados até o momento, optamos por separá-los em três

diferentes grupos para abordar a Drone Art: (1) Recalibrando - escolhemos empregar

esse nome, porque os produtos deste grupo são pequenos drones ou outros aparatos

aéreos controlados remotamente, os quais tiveram a sua utilidade modificada; (2)

Incomodando - envolve trabalhos conceitualmente agressivos, forçando o público a

questionar os direitos de privacidade e de manutenção da vida; e (3) Coexistindo -

abrange projetos de novas experiências e interpretações sobre como é viver num mundo

rodeado por tecnologias, como os drones. Na primeira categoria, serão apresentadas as

obras The Peace Drone, AR Backpack, The graffiti drone, Eco-drones e Low Drone. Na

segunda categoria, dispusemos os trabalhos Drone Shadow 001, Untitled (Drones) e

Stealth Wear. Já na terceira categoria, reunimos os projetos Charon, Seraph, 1000

drones e MQ-9 Predator.

2 A fotografia até então impossível

Antes de iniciarmos a apresentação das categorias de Drone Art, é interessante

voltarmos um pouco no tempo, abordando o trabalho do fotógrafo estadunidense

George R. Lawrence, um dos grandes responsáveis pela criação da fotografia aérea.

De acordo com Janice Petterchak (2002)12

, George Raymond Lawrence, de

Chicago, começou a aprender sobre revelação em 1896 e se tornou um inventor de

câmeras, além de inovar nos processos técnicos de fotografia e revelação. Foi

considerado o pai da fotografia com flash para ambientes fechados, substituindo o

12

Janice Petterchak é historiadora e ex-diretora da Biblioteca Presidencial Abraham Lincoln (Abraham

Lincoln Presidential Library).

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método anterior, o qual era de alto risco. Essa nova tecnologia possibilitou registrar

momentos políticos importantes, nos primeiros anos do século XX, como a foto do

então presidente dos Estados Unidos, William McKinley, no ano 1900. Entre as suas

criações também está a fotografia panorâmica, que superou em três vezes o tamanho das

câmeras existentes naquele momento, como a “maior câmera do mundo”.

Já conhecido pelos registros fotográficos em grandes formatos, Lawrence

desejava criar panorâmicas aéreas e pedira a uma firma para construir um balão a gás. A

primeira tentativa de usar esse “balão cativo” aconteceu em 20 de junho de 1901, ao

sobrevoar o Chicago Union Stock Yards, uma área destinada ao processamento de

carnes. Entretanto, por uma questão técnica, o fotógrafo não conseguiu altitude

suficiente; já na segunda tentativa, alcançou 275 metros de altura. Logo depois,

começou a registrar imagens aéreas de parques e de eventos esportivos.

Petterchak (2002) aponta que Lawrence, ao observar uma pipa carregando um

banner com um anúncio, começou a pensar sobre o uso desse dispositivo para

transportar câmeras fotográficas. A autora ressalta, no entanto, que, em 1895, o

fotógrafo estadunidense William A. Eddy já havia feito uso de pipas para registrar

imagens. As pipas de Eddy eram lançadas de terraços de altos prédios. Nesse sentido,

Lawrence continuou e melhorou o projeto de Eddy, ao criar pipas de diferentes

tamanhos e modelos para serem usadas em diferentes tipos de vento, portando uma

câmera fotográfica. A cena representada na figura 1 abaixo é um exemplo desse tipo de

experiência.

Fig. 4 – Captive Airship

Fonte: Havlik, 2013

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Lawrence desenvolveu, também, um escudo para balancear e suspender a

câmera fotográfica que era carregada por dezessete pipas, contendo válvulas e outras

ferramentas de manobra em situações de mudança de vento. Elas eram presas a um cabo

estabilizador e, sempre que uma foto era disparada, um pequeno paraquedas se abria,

indicando que a foto fora tirada e, então, as pipas eram puxadas para baixo e a câmera

recarregada. Essa invenção recebeu o apelido de “Balão Cativo” (do original Captive

Airship). O invento chamou a atenção do presidente Theodore Roosevelt, que tinha

interesse nessa tecnologia para eventual uso em momentos de guerra. Em decorrência

desse interesse, Lawrence foi convidado pelo Exército e pela Marinha estadunidenses

para uma demonstração, para cuja realização ele embarcou no USS Maine, no dia 25 de

agosto de 1905 (PETTERCHAK, 2002).

Em 1907, o presidente Roosevelt ofereceu a Lawrence, durante o treinamento de

três dias de batalha, uma frota do Exército e outra da Marinha para testar suas técnicas

fotográficas, a fim de utilizá-las em trabalho de reconhecimento aéreo militar. Nesse

experimento, ficou provada a praticidade dessa tecnologia para localizar o inimigo em

uma altitude de 610 metros de altura. Os militares, impressionados com os resultados,

começaram a empregar alguns equipamentos e métodos desenvolvidos por Lawrence

(PETTERCHAK, 2002). Dessa forma, o uso desses equipamentos é o ponto de partida

para o surgimento, no cenário de guerra e militar, de diversos dispositivos de vigilância,

como os drones estudados por nós.

3 Somos todos testemunhas oculares

Durante a história da arte de guerra (pensando a partir da Primeira Guerra

Mundial) os militares colocavam artistas em determinadas áreas dos conflitos, com o

objetivo de desenharem aquilo que estavam observando: o artista era a testemunha do

que estava acontecendo. Com a fotografia (ainda com uma estrutura maquinaria

pesada), eram poucos os lugares a que os fotógrafos tinham acesso (BRANDON, 2012).

Um outro aspecto centraliza o que pode de fato ser testemunhado na área de conflito,

independentemente das questões de poder. Durante a segunda Guerra do Golfo (2003),

os militares estadunidenses inseriram alguns jornalistas para terem acesso ao conflito

como jornalistas de guerra, porém, o acesso era controlado. Já os jornalistas que não

tinham sido selecionados receberam um comunicado, asseverando que a segurança

deles não poderia ser garantida, desencorajando sua participação. Os artistas presentes

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nos combates em conflitos estadunidenses anteriores passaram pela mesma situação.

Como os jornalistas de hoje, havia pouca liberdade de movimentação, de modo que seus

relatos também eram limitados. Ainda pensando em guerras passadas, a historiadora

Laura Brandon assinala:

Poderiam as pinturas que foram finalizadas longe do campo de guerra

e com mais conhecimento, reflexão e compreensão, transmitir melhor

o significado e as implicações da guerra, ao invés de relatos de

testemunhas oculares? A evidência sugere que a percepção em longo

prazo, complementada por um ponto de vista contextual mais amplo, é

o mais valioso testemunho dos eventos. (BRANDON, 2012, p. 91,

Tradução nossa).

Para a autora, o público interessado em arte assume o conceito de "testemunha

ocular" de forma mais elástica, em que se incluem até obras em resposta a temas do

tempo e da informação na mídia. Durante a Guerra do Vietnã, a televisão levou o

conflito para as salas de estar e trouxe aquilo que foi compreendido como estando muito

próximo de estar realmente lá. As emissoras podem filtrar o que é mostrado, mas, por

conta da natureza da fotografia como mídia, temos a tendência de equiparar o que

vemos com a experiência de testemunha ocular. A arte surgida durante a primeira

Guerra do Golfo mostrou que, naquele momento, os artistas não registravam apenas os

eventos ocorridos ao longo do conflito, mas também valores e atitudes daquela época,

evidenciando que a guerra, além de ser sobre luta, é principalmente sobre como é

percebida. Em acréscimo, existe uma expectativa ainda presente sobre a atuação de

artistas e jornalistas de guerra, sendo necessário que seu trabalho seja verdadeiro,

apresentando fatos, pois aqueles que trazem reconstruções criativas (embora coerentes

dentro do ambiente de guerra) são desacreditados (BRANDON, 2012).

E quais serão as consequências de apresentar o combate como ele é (ao menos

numa tentativa de revelar a sua realidade)? Será que as imagens reportadas contribuem

para a continuação do conflito? Estaríamos criando um ambiente de atmoterrorismo

midiático, similar à guerra focalizada em 1984, de George Orwell?

Laura Brandon (2012) acredita que a poderosa maquinaria da propaganda de

massa é o infeliz legado das guerras mundiais do século XX. Essa tecnologia tornou

viáveis graus inimagináveis de confronto entre ideologias incompatíveis, as quais

lembram as Cruzadas do passado. Tais confrontos são geralmente religiosos e a

chamada guerra contra o terror é direcionada aos islâmicos extremistas, vistos como

ameaça à segurança das potências ocidentais, principalmente a estadunidense. Nos

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últimos anos, a arte de guerra se transformou em um assunto não mais associado ao

esforço e manipulação militar, porém, relevante para o debate global sobre guerra e paz.

Artistas procuram papéis significativos para ajudar na compreensão do público sobre

um conflito. O movimento massivo de pessoas, após o término de conflitos, contribuiu

para artistas os vivenciarem como civis e não como soldados (como acontecia

antigamente), de sorte a refletir sobre essas experiências na segurança de seus lares.

Nestes tempos, a mídia de massa torna possível artistas comentarem e criarem sobre

uma série de eventos, sem nunca terem estado lá (BRANDON, 2012).

Questiono se os artistas que produzem a drone art já presenciaram ataques

realizados com drones. Estranhamente, a brutalidade dos ataques não está aparecendo

nos projetos de drone art. Observamos as ações dos drones através do jornal em formato

impresso ou digital, assim como em pesquisas na internet, cujas páginas mostram fotos

resultantes de ataques. Ou seja, essa arte está sendo produzida (até o momento), por

intermédio da observação de eventos de combate que passaram por, no mínimo, dois

processos midiáticos. Primeiro, o fotógrafo que registra a imagem; depois, esta é

apresentada em um contexto que segue a agenda política do jornal escolhido. Se os

resultados brutais dos ataques não estão aparecendo nesses trabalhos artísticos, seria por

tentar evitar o sensacionalismo ou porque a própria distância entre os artistas e as zonas

de conflito criam um ambiente antisséptico, como aquele enfocado no episódio de Star

Trek, em que você não está presente na guerra, mas faz parte dela, ao pensar na perda?

4 A Des-informação e a Drone Art

É necessário examinar como a arte contemporânea responde às

realidades políticas de tipos particulares de conflito. [...] A

representação do conflito – a transmissão de imagens – está

intimamente conectada às demandas políticas que podem mudar

frequentemente durante os momentos chamados de “segurança

nacional”. (DOWNEY, 2014, p.100, tradução nossa).

As restrições sobre imagens de conflito não são apenas políticas, mas também

estéticas, algumas desqualificadas por não serem suficientemente brutais (DOWNEY13

,

2014). Podemos asseverar que estamos em um momento no qual a realidade da guerra

13

Anthony Downey é diretor do programa de Mestrado em Arte Contemporânea do Sotheby’s Institute of

Art, e pesquisa sobre a relação entre arte e política.

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se tornou virtualizada (como em Star Trek, “Um gosto de Armageddon”) já que o

protagonista está em uma sala de controle comandando uma máquina e a audiência

(cidadãos ocidentais) também estamos em uma sala de controles, consumindo imagens

através da televisão e da internet; todos são removidos do perigo, menos as vítimas dos

conflitos assimétricos promovidos pelos Estados Unidos, os quais enfraquecem a

democracia.

Como a mídia responde a esse conflito e o uso das aeronaves remotamente

pilotadas? Ao mesmo tempo em que existe a estratégia de venda, ao colocar títulos

reforçando a ideia de que os drones são robôs assassinos, totalmente autônomos,

trazendo a imagem do O Exterminador do Futuro14

, com o intuito de causar um pânico

sem fundamento técnico, como reportagens da revista brasileira Veja15

e do jornal

estadunidense The New York Times, traduzidas e apresentadas através do site do jornal

brasileiro Folha de S. Paulo16

, tem-se a falta de pesquisa técnica para compreender

melhor esses aparatos, afinal, a indústria jornalística também lucra com a guerra, o

medo e a desinformação. Tais publicações sensacionalistas, para as quais os drones são

seres que matam, de certa forma, tiram a responsabilidade do governo estadunidense

sobre suas ações. Infelizmente, grandes jornais nacionais e internacionais muito

raramente reportam sobre a importância de punir os responsáveis pelo assassinato de

crianças por intermédio dos drones, um esclarecimento fundamental. Existe um vácuo.

E, por isso, a drone art traz uma vitalidade e coerência a discussão sobre drones.

Vitalidade, por abordar diferentes perspectivas sobre a utilização dessas aeronaves, já

que cada artista possui a sua. E coerência, porque os artistas não usam o

sensacionalismo como jornalistas o estão fazendo. Para trazer o Exterminador do Futuro

à discussão, seria necessário já termos alcançado a inteligência artificial, mas estamos

ainda longe disso. Tal postura faz parecer que a imprensa protege os ataques militares,

porque, ao invés de deixarem claro que os Estados Unidos estão cometendo crimes de

guerra, eles seguem o caminho mais fácil, ao criarem textos sensacionalistas sem

14

O Exterminador do Futuro (1984) – Filme de ficção científica dirigido por James Cameron, em que há

um cenário no qual os seres humanos foram aniquilados pelas aeronaves e ciborgues, que possuíam

inteligência artificial, mas um pequeno grupo de resistência tenta alterar o curso da história, salvando os

humanos dessas máquinas. 15

Revista Veja: Os drones – que os EUA usam como arma de guerra – se espalham por São Paulo para

xeretar lugares e pessoas. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tema-livre/os-drones-

que-os-eua-usam-como-arma-de-guerra-se-espalham-por-sao-paulo-para-xeretar-lugares-e-pessoas/

Acesso em: 3 de agosto de 2015 16

Jornal Folha de S. Paulo, através do The New York Times - Cresce o número de armas que atacam sem

supervisão humana. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/11/1551593-cresce-uso-

de-armas-que-atacam-sem-supervisao-humana.shtml Acesso em: 3 de agosto de 2015

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pesquisa técnica. São raros os jornais que conseguem trabalhar numa perspectiva

incisiva sobre o emprego dos drones, porém, geralmente são jornais/revistas digitais de

pouca visibilidade.

Para Downey (2014), a relação entre o artista com a ação do ver traz uma

importante questão sobre as práticas da arte contemporânea e as políticas de

representação e a de se engajar em um conflito. Ele questiona: “[...] como pode a arte

como uma reflexão prática e, portanto, re-imaginar o trauma histórico relacionado com

o conflito sem se limitar a repetir o espetáculo associado com a guerra?” Acrescenta ser

necessário responder a uma segunda questão: “[...] como a arte pode evitar fetichizar17

os objetos e os locais de conflito?” (DOWNEY, 2014, p. 112, tradução nossa). Para o

autor, as realidades do terror, quando transmitidas por imagens repetidas e alteradas,

conseguem induzir a uma ansiedade sobre a proliferação de tais imagens. Com os

ataques de 11 de setembro de 2001, imagens foram exaustivamente repetidas, criando

um efeito de distorção da realidade e alimentando o apoio da população para com o

governo, ao lançar uma guerra assimétrica com a utilização dos drones.

No caso das imagens de guerra e conflito, poderíamos argumentar que

isso é tanto uma questão de política como de estética, ou seja, pode-se

dizer que a ficção científica tem sido utilizada para “preparar” uma

audiência para o evento real de terror. De fato, em outubro e

novembro de 2001, representantes da Casa Branca abordaram

executivos em Hollywood com o objetivo de coordenar como os

estúdios de cinema poderiam passar para os espectadores uma

mensagem favorável à Guerra ao Terror. (DOWNEY, 2014, p. 124).

5 Recalibrando

Como se frisou na introdução, optamos por separar as obras de Drone Art em

três grupos, baseados na observação de características em comum proporcionada por

seus criadores. A seguir, serão apresentados trabalhos que pertencem ao grupo

Recalibrando; aqui, os artistas utilizaram pequenas aeronaves de controle remoto ou

drones civis e trouxeram novas propostas de uso, reformulando-as conceitualmente, ou

seja, como uma forma de melhorar a qualidade de vida das pessoas ou de questionar

diretamente o uso dos drones como aparato assimétrico de combate.

17

Por mais que tenha sido Downey a usar o termo fetiche, aqui, essa palavra é percebida através do

conceito formulado por Latour como forma de manipulação de crenças, conforme se vê em seu artigo

“Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches”.

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5.1.1. “The Peace Drone” (“O Drone da Paz”)

O trabalho “The Peace Drone” foi criado pelo artista sueco Axel Brechensbauer,

que, ao modificar conceitualmente a função do drone de vigilância, explicita seu

trabalho da seguinte maneira, em seu website:

Uma proposta para as Forças Armadas dos Estados Unidos: Matar

estrangeiros com drones Predator é passado. Deixe-me apresentar “O

Drone da Paz”. Sobrevoe cidades e áreas hostis tocando música alta de

palhaço, sorrindo em todo lugar e entregando nuvens de oxicodona:

uma linda droga estadunidense descrita como uma heroína

farmacêutica. Pessoas felizes são melhores do que pessoas mortas e o

melhor de tudo é que elas estarão viciadas em você!

(BRECHENSBAUER, s.d, não paginado, tradução nossa).

Axel Brechensbauer é um artista que trabalha principalmente com esculturas,

questionando a relação do homem com a natureza por meio das formas. O trabalho “The

Peace Drone”, apesar de diferente dos outros realizados esse artista, possui o mesmo

senso de humor cínico. Para um leitor desatento, a solução proposta pelo artista parece

divertida, afinal, pessoas felizes são melhores do que pessoas mortas.

THE PEACE DRONE

Fig. 5 – The Peace Drone

Fonte: Axel Brechensbauer

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Fig. 6 - Sketch

Fonte: Axel Brechensbauer

No entanto, mesmo com a mudança da função conceitual do drone em relação ao

seu uso militar, bem como a manutenção do emprego desse objeto na arte para tematizar

a insanidade de matar, levantando questões sobre a moralidade de usar força letal sem

julgamento, o objetivo final foi mantido, uma vez que permanece a ideia de existência

de populações merecedoras de punição: o vício de estar continuamente sob o efeito da

oxicodona, que possui o dobro de potência da morfina, um analgésico de efeito

prolongado, que, além de viciante, causa depressão respiratória e circulatória.

O artista não anota a data de criação da sua obra, mas, como o acesso ao site foi

realizado em agosto de 2013, de qualquer forma, sua criação antecedeu ao evento

ocorrido na Índia. Com efeito, no dia 28 de outubro de 2014, na cidade de Trilokpuri, na

Índia, a polícia utilizou um drone com spray de pimenta na tentativa de controlar a

população, durante protestos. De acordo com o jornal online estadunidense CNN18

, o

superintendente da polícia indiana, Yashasvi Yadav, disse ao jornal que a Índia pretende

comprar mais drones para serem utilizados durante protestos. E, no dia 8 de abril de

2015, o jornal inglês The Telegraph 19

reportou que a polícia usou novamente os drones

com spray de pimenta na população, mas, desta vez, na cidade de Lucknow, ao norte da

Índia, que possui dois milhões de habitantes. Conforme o segundo jornal, o chefe de

polícia assim se expressou:

18

CNN. Security from the sky: Indian city to use pepper-spray drones for crowd control Disponível em:

http://edition.cnn.com/2015/04/09/asia/india-police-drones/ Acesso em: 20 de abril de 2015 19

The Telegraph. Indian police to use ‘pepper-spray drones’ on protesters. Disponível em:

http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/asia/india/11521639/Indian-police-to-use-pepper-spray-

drones-on-protesters.html Acesso em: 20 de abril de 2015

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Os resultados foram brilhantes. Conseguimos descobrir como usá-lo

para atingir precisamente os alvos com vento e em áreas

congestionadas. (Yashasvi Yadav, tradução nossa)

Observe-se que a Índia, um país considerado de terceiro mundo, já investe

recursos financeiros para a compra e adoção de drones civis adaptados para

exclusivamente impedir que a sua própria população reivindique mais direitos e

melhorias na qualidade de vida, mostrando que a rápida evolução e disseminação da

máquina drone acontece quase que exclusivamente para suprir o desejo de controle do

Estado sobre sua população.

5.1.2. “06_AR Backpack” (“06 Mochila AR”)

Eric Meyer, arquiteto do Estado do Novo México, trabalha com as intersecções

entre arquitetura, natureza e cultura, a fim de indicar uma nova forma de utilizar drones.

Ele adaptou o drone civil “AR.Parrot”, conforme Figura 4, abaixo, para ser usado por

artistas localizados em cidades e países controlados por políticas opressoras e de alta

vigilância.

A descrição dada por Meyer (2013) sobre seu trabalho é a seguinte:

Por um preço acessível, a mochila AR permite que o usuário conecte

um aerossol a sua escolha ao drone AR Parrot para ser utilizado em

territórios inalcançáveis a pé, ou perigosos demais para serem

ocupados. Esta mochila é carregada com uma lata de tinta spray,

abrindo para os artistas um novo território para marcar, rascunhar,

pintar e subverter. (MEYER, 2013, p. 14, tradução nossa).

Desde 2011, estruturas arquitetônicas do Cairo se tornaram quadros brancos para

artistas de todo o país expressarem questões sobre revolução e assédio sexual. A rua

Mohammad Mahmoud, em particular, tornou-se um painel sobre justiça social, de

maneira que, segundo o jornal Voanews, “[...] os muros da cidade se tornaram um

campo de batalha político onde os artistas são os soldados” (MEYER, 2013, tradução

nossa). No Quênia, o graffiti é uma ferramenta usada pelos artistas expressarem,

anonimamente, a sua revolta contra a corrupção e as injustiças realizadas por oficiais do

governo (RUVAGA, 2014).

No Cairo e no Quênia, o grafite não é realizado por meio de drones. No entanto,

projetos como os de Meyer podem funcionar como suporte para a concretização de

trabalhos de artistas que objetivam criar obras de intervenções urbanas capazes de

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exprimir a injustiça social nesses locais. Nesse sentido, o projeto de Meyer poderia

ampliar as possibilidades quantitativas e espaciais desses artistas.

O grafite reivindica espaços públicos principalmente para aqueles que são

excluídos e resistem ao confinamento social e ao controle espacial, rompendo a

vigilância urbana. Mobilidade e invasão de espaços são essenciais para esse tipo de

transgressão, tornando o AR Backpack uma excelente ferramenta de resistência.

5.1.3. “The Graffiti Drone”

KATSU é considerado um artista, vândalo e hacker. Vive em Nova York e foi

um dos pioneiros no uso do extintor de incêndio como jato de spray para grafitar. Essa

criação ampliou fisicamente a magnitude de seu trabalho. Ele realizou uma

demonstração dessa técnica durante o “Art in the Street” (Arte nas Ruas), que aconteceu

no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles, em 2012. Mas KATSU, que não foi

convidado a se apresentar no evento, usou a técnica de grafite no muro externo do

museu20

.

KATSU desenvolveu um sistema para anexar uma lata de tinta spray a um

quadricóptero. De acordo com Michel (2014), jornalista da revista Motherboard, apesar

de o projeto desenvolvido por KATSU ter sido o primeiro drone grafite do mundo, não

se sabe quem o desenvolveu primeiro, se foi Eric Meyer (apresentado anteriormente) ou

se foi realmente KATSU, já que, num curto período de tempo, ambos os projetos foram

criados. A principal diferença entre os projetos de KATSU e Meyer concerne a registros

de vídeos disponíveis por KATSU, mostrando a sua utilização. O drone grafiteiro

consegue alcançar até trinta metros de altura, possibilitando realizar o movimento de

resistência em locais de difícil acesso.

Por mais que os drones civis empregados por Eric Meyer e KATSU sejam bem

inferiores aos drones militares, não devemos esquecer que conceitualmente são

similares e, mais importante ainda, tornaram-se de fato uma ferramenta de resistência

contra a sua versão militar. KATSU planeja desenvolver o drone por meio da tecnologia

open source, a fim de que artistas de qualquer nacionalidade e de qualquer lugar do

mundo possam fazer o seu próprio drone grafite.

20

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Wd1XKfhYKyM. Acesso em: 7 de agosto de 2015

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AR BACKPACK

Fig. 7 – 06_ARBackpack

Fonte: Meyer, 2013

THE GRAFFITI DRONE

Fig. 8 – The Graffiti Drone

Fonte: Michel, 2014

Fig. 9 – Graffiti Drone - KATSU

Fonte: Michel, 2014

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5.1.4. “Eco-Drones”

Christopher Geist é um arquiteto, graduado na Georgia Tech, nos Estados

Unidos, e foi professor assistente na Universidade de Columbia. Atualmente, reside em

Nova York e, em 2012, criou o projeto Eco-Drones, uma nova forma de utilizar os

drones, modificando a vida e a natureza na cidade. Ele adotou as diretrizes da

Administração Federal de Aviação estadunidense (FAA) para o emprego dessa

tecnologia na cidade.

No projeto conceitual (Figuras 10 e 11), aeronaves carregariam sementes de

diferentes tipos, as quis seriam jogadas em áreas de possível plantio na cidade de Nova

York. Cada qualidade de superfície receberia um tipo de semente, reintroduzindo na

cidade árvores e plantas e trazendo também a sustentabilidade. Essa tecnologia

possibilita a criação das chamadas eco-cidades, necessárias aos países e estados

preocupados com o aquecimento global e a economia de energia.

Nas áreas urbanas, o eco-drone poderia ser usado em terrenos baldios, terraços

de prédios e qualquer tipo de área sem uso. Além disso, seria ainda uma alternativa para

grandes áreas de plantio, como fazendas e locais sem tecnologias de plantio. Ao criar

esse projeto, dois recursos muito interessantes são apresentados. O primeiro relaciona-

se à movimentação: o Eco-Drone pode sobrevoar áreas de forma independente ou se

acoplar em táxis ou metrô, economizando energia. O segundo recurso trabalha a

durabilidade: caso a bateria acabe, o Eco-Drone vai ao encontro de uma “estação-ninho”

(nesting station), que estaria localizada nas paredes de prédios para recarregar a bateria

e para trocar informações de ações executadas durante o dia.

No dia 17 de abril de 2015, a empresa Bio Carbon Engineering21

publicou, em

seu blog, a proposta de utilizar drones para restaurar ecossistemas florestais, a partir da

biodiversidade local. A empresa trabalha em conjunto com experts, elaborando um

coeficiente para determinar quais sementes são de grande importância para aquele

ambiente e a sua renovação, dando suporte a uma sustentabilidade a longo prazo. Trata-

se de uma instituição recente, mas que, da mesma forma que o arquiteto Christopher

Geist, percebeu um uso promissor dessa aeronave. A meta da BioCarbon Engineering é

de plantar um bilhão de árvores por ano.

21

A empresa Bio Carbon Engineering tem como seu fundador Lauren Fletcher, engenheiro ambiental que

trabalhou na NASA por vinte anos. Disponível em: www.biocarbonengineering.com Acesso em: 20 de

abril de 2015.

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ECO DRONES

Fig.10 – Eco Drones Modelo

Fonte: Christopher Geist (Experiments in Motion)

Fig. 11 – Nesting Station

Fonte: Christopher Geist (Experiments in Motion)

Fig. 12 – Eco Drones (2012)

Fonte: Christopher Geist

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5.1.5. “Low Drone”

Em 2005, Angel Nevarez e Alex Rivera criaram o “Low Drone - The

Transnational Hopper” (O Saltador Transnacional), classificado como o primeiro drone

de baixa altitude com capacidade de vigilância. A experiência propiciada pelos artistas

já começa na página inicial do site www.lowdrone.com:

Ao entrar neste site, você estará participando de transgressões em

áreas na fronteira entre o México e os Estados Unidos através do uso

de um lowrider voador não-tripulado.

Termos de uso: 1 - Eu não vou responsabilizar o LowDrone.com pelas

consequências do meu salto transnacional; 2 - Eu não vou denunciar o

LowDrone.com às autoridades relevantes; 3 - LowDrone.com reserva-

se o direito de adaptar toda e qualquer tecnologia transfronteiriça:

Drones Predador, Carros, Internet, etc.; 4 - Ter o Flash Player

instalado no meu computador. (NEVAREZ; RIVERA, 2005, não

paginado, tradução nossa).

Ao clicar “entrar”, o Low Drone é apresentado. Ele é um drone com sistema de

vídeo wireless, turbinas cromadas, giroscópio, sensores térmicos, pedestal de veludo e,

no topo, há um modelo de um carro Gold '37 Ford Coupe. Nessa página, o usuário clica

em qualquer lugar para iniciar a experiência e, então, é levado para outra página que

mostra a câmera contida no drone. Por curiosidade, entramos nessa página em diferentes

momentos e podemos notar que, quando escurece, a câmera com visão noturna é ligada.

Para que o usuário ligue o drone, basta clicar na ignição do carro e, depois, no

acelerador e movimentar o volante. Nesse projeto, o drone está estacionado em um dos

locais mais vigiados do planeta, a fronteira entre o México e os Estados Unidos, mais

precisamente entre Tijuana e o sul da Califórnia. Um aspecto importante desse trabalho

refere-se à utilização do carro na parte superior do drone. Esse carro, um lowrider

(sistema de suspensão modificado, colocando o veículo muito próximo ao chão) é uma

tecnologia desenvolvida pela juventude latina. Ambos os artistas trabalham com temas

latinos e ligados à imigração.

Por outro lado, de acordo com o jornal PanAm Post, os Estados Unidos estão

usando drones Predator (sem míssil) na fronteira com o México, na tentativa de

restringir a movimentação de imigrantes ilegais e traficantes de drogas, porém, 92%22

das missões não obtiveram evidências de tais ações.

22

PanAm Post. Predator Drones Now Patrol Half of US-Mexico Border. Disponível em:

http://panampost.com/panam-staff/2014/11/14/predator-drones-now-patrol-half-of-us-mexico-border/

Acesso em: 5 de abril de 2015

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LOW DRONE

Fig. 13 – Low Drone

Fonte: Angel Navarez e Alex Rivera, 2005

Fig. 14 – Low Drone website

Fonte: Angel Nevarez e Alex Rivera, 2005

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5.2. Incomodando

Neste segundo grupo da cartografia, a principal característica é provocar

reflexões acerca de dinâmicas políticas que atingem os cidadãos das mais diferentes

nacionalidades. As temáticas são sobre poder.

5.2.1. “Drone Shadow 001”

James Bridle, escritor e artista que reside em Londres, recebeu prêmios no Prix

Ars Eletronica 2013 e no Japan Media Arts Festival 2014, entre outros, por sua

produção artística impressionante, tanto no que concerne à quantidade quanto à

qualidade. Seus projetos estão associados à tecnologia e costumam sugerir aspectos de

resistência, bem como temas sobre tecnologias militares e vigilância.

Bridle é um dos nomes mais conhecidos quando o assunto é Drone Art. Esse

artista, ao traçar o contorno fiel em tamanho real dos drones, cria visualizações diretas

das aeronaves remotamente pilotadas em áreas públicas da cidade. Ele criou uma série

de sete trabalhos, chamados Drone Shadow (a sombra do drone). O primeiro deles,

“Drone Shadow 001”, foi elaborado em fevereiro de 2012, em Londres; “Drone Shadow

002” foi feito em Istambul, em outubro de 2012; o 003 foi construído à beira-mar de

Brighton, na Inglaterra; o 004 foi inventado em junho de 2013, em Washington DC, nos

Estados Unidos; o 005, em Brisbane, na Austrália; o Drone Shadow 006 e o 007

também foram feitos em Londres.

Em 2013, Bridle aplicou o Drone Hermes, usado pelo Exército brasileiro em São

Paulo. As intervenções urbanas realizadas mediante o uso de drones mostram aos civis

que passam pelos locais onde elas são feitas a representação de armas de guerra e insere

no cotidiano o incômodo gerado pela vigilância militar e a possibilidade de um conflito

armado. Conjecturamos se não haveria a possibilidade de estarmos sob vigilância e

corrermos o risco de sofrermos os mesmos ataques de drones a que os mulçumanos

estão submetidos, há anos? Mediante a Drone Art, somos intimados a pensar sobre o

desenvolvimento de novas tecnologias e na evolução das estratégias militares. Essa arte,

ao retirar os observadores de suas rotinas, convida-os a adentrarem um espaço de

sensibilização e resistência e refletirem sobre as exageradas exposições à violência que

a torna comum.

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DRONE SHADOW

Fig. 15 – Drone Shadow 001

Fonte: James Bridle (2012)

Fig. 16 – Drone Shadow 004

Fonte: James Bridle (2013)

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Fig. 17 – Drone Shadow 002

Fonte: James Bridle (2012)

Fig. 18 – Drone Shadow 007

Fonte: James Bridle (2014)

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5.2.2. “Untitled (Drones)”

Trevor Paglen é um artista estadunidense. Seus trabalhos têm como objetivo

problematizar a máquina militar por meio de uma máquina artística. Em 2010, ele

produziu a foto Untitled (Drones), que visa a provocar o sentimento de impotência

diante da vigilância política, realizada por aeronaves remotamente manipuladas. Sobre

seu trabalho, Paglen, em entrevista concedida a Curcio, diz o seguinte:

Acho que há um pouco de ironia no ato de “observar as pessoas que

estão observando você”, este é certamente algo que tenho

desenvolvido em um subtema bem explícito em alguns trabalhos.

Mas, no geral, não acho que essa dinâmica em particular é algo em

que estou categoricamente interessado. Essa leitura parece enfatizar o

aspecto “vigilância” excessivamente e eu não estou particularmente

interessado em vigilância, por assim dizer. Mas isso aponta para algo

que me interessa, que é a “fotografia emaranhada” (entangled

photography) ou a “fotografia relacional” – o que eu quero dizer com

isso é pensar a fotografia além das fotografias. O que aconteceria, se

começássemos a pensar sobre a prática da fotografia como um

processo de incorporar o momento crítico no trabalho? Em outras

palavras, e se o “fato” de fotografar algo é o ponto crítico essencial de

um trabalho? Comecei a pensar sobre isso há algum tempo, quando eu

estava fotografando bases militares e prisões secretas da CIA. Para

mim, uma parte crucial dos projetos nem sempre é o que as imagens

parecem, mas a política de produzi-los. (CURCIO, 2013, não

paginado, tradução nossa).

A pesquisadora Beatriz da Costa, em seu artigo “When Art Becomes Science”,

citado por Costa e Philip (2008), assinala que é notória a presença de artistas

politicamente orientados, engajados em discursos tecnocientíficos. E, com alguns

projetos de Drone Art, criados sob a luz de ambientes multidisciplinares, é possível

encontrar alguns artistas engajados. A resistência evidenciada pelo artista

tecnocientífico político Trevor Paglen é clara. Com suas imagens, ele reforça o tema da

legitimação da violência, levantado por Hardt e Negri (2012). O uso dos drones

confirma a ideia de um inimigo constantemente presente. Quando a guerra está na base

política, esse inimigo tem a função constitutiva de legitimar violência e ataques. Ao não

ser mais um inimigo concreto, compreensível e rastreável, facilita a legitimidade

daquilo que é insustentável (HARDT; NEGRI, 2012).

As obras elaboradas por Trevor Paglen consistem basicamente em temas sobre

vigilância, opacidade política e restrição de informação, todavia, sua fascinação pelos

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drones começou em 2003, numa entrevista para a revista Dazzed, quando Trevor

assinala:

Se você estiver dirigindo no Estado do Nevada, às vezes é possível vê-

los. Eu estava pensando sobre a colonização e a transformação do céu

como uma coisa estética, mas também como uma coisa política.

Naquela época (2003), os militares e o pessoal da Inteligência não

estavam tão apreensivos sobre os drones, então eu era capaz de visitar a

base, fazer simuladores e conhecer os pilotos. Hoje, essa base está

completamente bloqueada para civis. (DAVIES-CROOK, 2013, p.1,

Tradução nossa).

O conjunto de obras Untitled (Drones) é sutilmente inquietante, a começar pelo

próprio nome Untitled, que significa "sem título" em português. Na primeira vez em que

tive contato com esses trabalhos, imaginei que o artista apenas não queria colocar um

título, mas hoje interpreto que o não título é muito mais sobre a falta de informações

sobre os ataques realizados com drones, já que a maioria das informações são secretas.

Por isso, não temos acesso nem ao título das obras, tratando-se de uma relação de poder.

Todas as obras revelam o céu limpo, de cores variadas, contudo, sempre limpo –

qualidade necessária para que os voos aconteçam. Outro aspecto muito interessante é a

aparente "ausência" dos drones, os quais estão lá como um pequeno ponto dentro da

imensidão; eles nos enxergam e têm poder sobre nosso ambiente e nossos corpos,

porém, não conseguimos visualizá-los, trazendo uma metáfora sobre o sigilo, que vai

além do que podemos ou não saber, pois é sobre aquilo que é removido dos nossos

olhos.

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UNTITLED (DRONES)

Fig. 19 – Untitled (Drones)

Fonte: Trevor Paglen, 2010

Fig. 20 - Untitled (Reaper Drone)

Fonte: Trevor Paglen, 2010

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Fig. 21 - Untitled (Predator Drone)

Fonte: Trevor Paglen, 2010

Fig. 22 – Untitled (Predator Drone)

Fonte: Trevor Paglen, 2010

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5.2.3. “Stealth Wear” (“Vestuário Furtivo”)

É possível vestir resistência? De acordo com Adam Harvey, sim, é possível. A

palavra Stealth (na tradução portuguesa “furtivo”), usada para nomear essas

vestimentas, remete à aeronave estadunidense Stealth, cuja principal qualidade é ser

invisível aos radares.

A Stealth Wear é uma coleção de peças de vestuário produzidas para servirem de

escudo contra a tecnologia de vigilância termal, que é amplamente utilizada por drones.

Esses produtos trazem questões sobre o aumento da vigilância, o poder que detêm os

que exercem a vigilância e a constante perda da privacidade perante o autoritarismo.

Desenvolvidas por Adam Harvey como soluções de contravigilância, as peças são

divididas em quatro: “Antidrone” burqa, que custa 2500 dólares; “AntiDrone” Hijab,

anunciado por 550 dólares; “AntiDrone” Hoodie, com um custo de 475 dólares; e o

boné “Drone T”, por 40 dólares. Todos esses produtos podem ser adquiridos online na

loja privacygiftshop.com. Adam Harvey (2013) explica a razão pela qual se inspirou em

vestimentas islâmicas da seguinte forma:

A lógica por trás da hijab e da burqa é que elas fornecem uma

separação entre o “homem e Deus”. Similarmente, a lógica por trás da

burqa e do hijab “Anti-Drone” são para proporcionar uma separação

entre o “homem e o drone”. (HARVEY, 2013, não paginado, tradução

nossa).

Além dos pontos enfocados por Adam Harvey, as vestimentas antidrone

fomentam perguntas sobre a geopolítica da guerra, uma vez que a maioria dos ataques

realizados com as aeronaves remotamente pilotadas costuma ter como alvo populações

com características e crenças específicas. A palavra hijab significa “barreira”, e Harvey

torna uma vestimenta que remete ao islamismo e aos ataques terroristas de 11 de

setembro em uma forma de defesa contra a vigilância estadunidense via drones.

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STEALTH WEAR

Fig. 23 – Antidrone Burqa

Fonte: Adam Harvey, 2013

Fig. 24 – Antidrone Hijab

Fonte: Adam Harvey, 2013

Fig. 25 – Antidrone Hoodie

Fonte: Adam Harvey, 2013

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5.3. Coexistindo

O grupo “Coexistindo com os Drones” proporciona aos espectadores o impacto

da tecnoarte poética. Tais projetos evocam reações ambivalentes; alguns poderiam

percebê-las como assimilações sem crítica, quando ocorre exatamente o contrário. Os

artistas nos interpelam: Como p em frente às dinâmicas micropolíticas das

subjetivações, de maneira que os conflitos armados acabam ficando em segundo lugar,

no aspecto macropolítico.

5.3.1. “Charon”

O projeto “Charon” foi desenvolvido por Sterling Crispin, da Califórnia.

“Charon” é uma instalação escultural interativa destinada a encarar a tensão entre os

humanos, agentes autônomos da robótica e os modelos virtuais. Esse drone civil,

modelo quadróptero (aeronave com quatro hélices), foi programado para voar

autonomamente dentro de um espaço pré-determinado, em um laboratório de captura de

movimento. Nesse espaço o seu criador também interage com o drone, numa espécie de

dança espontânea, visto que o aparato foi programado para se movimentar de forma

imprevisível naquele espaço. Para Crispin, essa interação lhe deu a sensação de

curiosidade cautelosa, pois nessa espécie de dança havia uma oscilação entre combate e

cooperação. Todos os movimentos do drone foram registrados e transformados em uma

escultura em 3D, criada a partir da impressão 3D, ou seja, essa escultura de aparência

orgânica, a qual representa a memória e a capacidade de resposta durante a dança com o

seu criador.

Como uma civilização e espécie, nós atravessamos o Rio Rubicão

(aquele atravessado por Júlio César), entrando em territórios

desconhecidos a partir da qual não podemos voltar. Esses inteligentes

agentes tanto encarnados (embodied) como desencarnados

(disembodied), visíveis e invisíveis, físicos e virtuais, estão vigiando,

contemplando e evoluindo em meio a nós. A tensão entre o humano, o

outro tecnológico e o ser-allo23

vai definir o século 21. Como é que

essas entidades irão além dos limites da simbolização e como surgirão

seus aspectos emocionais, psicológicos e espirituais. (CRISPIN, 2013,

p.1).

23

O conceito ser-allo (alloself) vem da pesquisa proposta por Marcos Novak, em que esse ser é um

"alien" pertencente a uma ordem completamente diferente. Disponível em:

http://www.mat.ucsb.edu/~marcos/transvergence.pdf Acesso em: 6 de abril de 2015

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CHARON

Fig. 26 – Movimentos do Charon

Fonte: Crispin, 2013

Fig. 27 – Impressão 3D dos movimentos do Charon

Fonte: Crispin, 2013

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110

5.3.2. “Seraph”

Criado por Robby Barnett, Molly Gawler, Renee Jaworski e Itamar Kubovy

(Grupo Pilobolus24

), em colaboração com o laboratório de robótica distribuída do MIT

(Distributed Robotics Laboratory), o “Seraph”, um espetáculo de dança contemporânea,

apresenta um novo aspecto dos drones na sociedade. Nesse caso, a problematização não

é sobre a guerra, mas sobre o relacionamento construído entre o humano e essa outra

“coisa”. Nesse sentido, com o “Seraph”, os autores desejam indagar o seguinte: se os

drones vieram para ficar, então, como podemos coexistir?

Nesse espetáculo, o dançarino Matt Del Rosario, de longos cabelos escuros,

veste somente uma minúscula tanga fio dental cor da pele, tornando-o a imagem de

Tarzan em seu primeiro encontro com aquilo que nunca viu antes. Observando essa

perspectiva, é interessante usarmos como espelho: agora nós, os ocidentais, nos

tornamos os selvagens diante da tecnologia. Afinal, ela está na nossa frente e não temos

ideia de como nos comportar perante ela, de maneira que diversos tipos de reação

aparecem – os agressivos, os medrosos e os controladores.

Ao assistir ao vídeo disponibilizado no YouTube, vemos o ser-drone no início

praticamente estático, ficando cada vez mais veloz e expressivo e, aos poucos, criando

um vínculo com um homem. Nesse sentido, questionamos: até que ponto nos

relacionaremos com os drones? Com o passar do tempo, o nosso vínculo será tão denso

quanto com os animais de estimação ou eles serão percebidos como máquinas, da

mesma forma que os carros?

24

Grupo Pilopolus. Disponível em: -

http://www.pilobolus.org/page.jsp?page=works&subNav1ID=1&subNav2ID=1&contentID=136&backgr

oundID=136 Acesso em: 12 de setembro de 2014

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SERAPH

Fig. 28 - Imagem de vídeo do espetáculo de dança "Seraph”

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=hS8dg5RibD8#t=29

Fig. 29 - Foto do espetáculo de dança "Seraph"

Fonte: Andrea Mohin http://www.nytimes.com/2011/07/20/arts/dance/piloboluss-seraph-at-joyce-theater-

review.html?_r=0

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5.3.3. “The 1000 drones – A Participatory Memorial” (“Os 1000 drones – Um

memorial participativo)

O projeto “Os 1000 drones — Um memorial participativo” foi idealizado pelo

professor Joseph DeLappe, do Departamento de Arte da Universidade de Nevada, nos

Estados Unidos, o qual coordena o programa de Mídias Digitais.

No ano de 2014, DeLappe criou uma instalação para estimular o engajamento da

comunidade na reflexão sobre os drones e sua utilização. O projeto de DeLappe convida

o público a intervir na criação de uma réplica em miniatura feita de papel da aeronave

remotamente pilotada MQ-1 Predator (uma aeronave com capacidade de ataque).

Para proposição do projeto, mil drones de papel foram criados no período de três

meses por estudantes e voluntários do Departamento de Arte da Universidade de

Nevada. O engajamento do público no projeto de arte de DeLappe ocorre do seguinte

modo: cada participante escreve sobre as asas do drone de papel o nome de um civil

morto em ataques que ocorrem no Paquistão e Iêmen. Por mais que essa obra vise ao

engajamento da comunidade, existe nela igualmente uma forte passividade: o criador

tentou aproximar fisicamente o drone da comunidade pela criação da miniatura, mas

não fica clara a real discussão e conscientização sobre o problema do emprego dos

drones pelos Estados Unidos. Na verdade, esse mesmo trabalho realizado por DeLappe

poderia ser feito em relação a todos os que morrem em acidentes de carro, por exemplo.

Fig. 30 - Modelo do drone de papel para ser recortado

Fonte: Joseph DeLappe

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5.3.4. MQ-9/ Predator

A paquistanesa Mahwish Chishty apresentou elegantemente como os drones se

tornaram um dispositivo comum, na vida de seus familiares e amigos. Mahwish Chishty

iniciou sua carreira na pintura em miniatura, na Escola Nacional de Artes, em Lahore,

no Paquistão, e, em suas práticas, começou a explorar intensamente as novas mídias.

Suas obras foram expostas no Maryland Art Place, em Baltimore; na Gallery 10, em

Washington D.C.; no Rohtas Gallery, em Lahore, no Paquistão; e no Canvas Gallery,

em Karachi, também no Paquistão. A artista camuflou os drones com imagens folk e

iconografias. Seu trabalho aquece questões complexas de aculturação, política e poder.

Hoje, ela é professora adjunta da Maryland University, em Washington, nos Estados

Unidos. Mahwish Chishty entrou para a subcultura da Drone Art depois de uma visita

ao Paquistão para encontrar a família e amigos que falavam constantemente sobre

drones, na fronteira do país. Por cerca de dez anos, os Estados Unidos mantiveram

presença militar nessa área, com a mediação das aeronaves remotamente pilotadas,

controlando a região para encontrar e vigiar “terroristas”.25

Em 2011, Mahwish Chishty começou a produzir uma série de trabalhos com

tinta guache sobre papel artesanal. Na pintura MQ-9/Predator, a folha parece ter a

mesma textura de papel reciclado caseiro, as mudanças tonais são visíveis,

assemelhando-se à cor de terra e a grãos de areia, assim como anulam, também, a noção

de tempo. Assim, não há maneira de saber visualmente se este é um trabalho recente ou

não. O que marca a contemporaneidade da obra é a forma reconhecível do drone

lançando seus mísseis. A artista encontrou uma maneira de trazer beleza a um

dispositivo letal. A obra MQ-9/Predator é uma, entre uma série de pinturas sobre

drones.

A riqueza de detalhes das obras envolve o apreciador, causa-lhe estranhamento

e, possivelmente, paixões. Podemos indagar: Mahwish Chishty estaria tentando, com

sua arte, levar seu público a esquecer todos os danos causados por esse dispositivo de

guerra usado na África e no Oriente Médio? Ao observar obras de Chishty, é necessário

não esquecermos que as aeronaves remotamente pilotadas têm como função a vigilância

e os ataques em conflitos armados. Entretanto, o trabalho artístico da pintora camuflou

os drones. O cinza metálico existente nas aeronaves militares foi substituído por cores

25

O uso das aspas na palavra “terroristas” busca indicar que a definição de grupos e pessoas sob esta

alcunha é política.. Assim, em nome de atos terroristas, os ataques com RPA’s no Paquistão mataram

mais de 2 mil pessoas, a maioria civis.

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claras e variadas, as quais dão vida à representação de um dispositivo controlado a

quilômetros de distância e que foi desenvolvido para observar, destruir e matar. As

cores utilizadas são, em sua maior parte, azul-claro, azul-escuro, vermelho e laranja. A

seleção de cores e ornamentos traz uma delicadeza oposta à rigidez original do drone.

Em artigo não assinado, publicado no jornal online Patheos, notamos a seguinte

observação acerca da obra da pintora:

A curiosidade pela propaganda por trás da guerra com drones inspirou

Chishty a reimaginar os drones e pintá-los na tradição de arte de

caminhão, no Paquistão. Pintar caminhões é uma forma de arte local,

criada por caminhoneiros que pintam seus veículos com cores

vibrantes e padrões florais, muitas vezes mostrando a representação

artística de heróis e outras vezes com a caligrafia, a fim de embelezá-

los. Chishty justapõe as silhuetas de drones com imagens de arte de

caminhão, usando os diferentes formatos de drones e cobrindo-os em

decoração, como os motoristas que decoram seus caminhões.

(PATHEOS, 2013, não paginado, tradução nossa).

A artista questiona se seu trabalho descaracterizou esse aparato de guerra por

meio da beleza. Seria a beleza uma forma de resistência? Quando ela utiliza uma técnica

de pintura comum em sua terra natal, apresenta oficialmente os drones para o quotidiano

como se eles tivessem se tornado parte da vida dos cidadãos. Será que esses dispositivos

se tornaram tão comuns quanto os caminhões paquistaneses? Em uma entrevista à

revista digital Mother Jones, concedida a Harkison, em 2013, Mahwish Chishty assinala

que sua arte,

[é] uma espécie de arte popular. É uma tradição, uma cultura. As

pessoas que dirigem esses caminhões vivem basicamente neles,

dormem neles. Eles meio que o tornam sua casa móvel, e o decoram

de forma agradável aos olhos. São pinturas extremamente belas, eles

gastam muito tempo nisso, sem receber qualquer apoio financeiro por

esse trabalho. Isso é algo que eles fazem como interesse pessoal. E

essa pintura não possui nenhuma outra função além da sua estética. Eu

sempre pensei que não era dada importância ao mundo da arte, e eu

queria que as pessoas pensassem o que aconteceria se os drones

tivessem uma aparência mais amigável, ao invés da aparência metálica

dura das máquinas de guerra. (HARKISON, 2013, não paginado,

tradução nossa).

Não está clara a razão pela qual a artista quis tornar a representação desses

dispositivos letais em imagens amigáveis. Mas, ao torná-los convidativos, não muda o

propósito inicial dessas aeronaves.

Um detalhe interessante na pintura de Chishty é a introdução de elementos

novos na representação dos drones. Por exemplo, ela criou uma área para o piloto, como

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uma espécie de cabine, que na realidade não existe nos drones. Essa pintura possui uma

flor branca, reforçando as dualidades: guerra e paz, vigilância e liberdade. Outro

destaque da obra da pintora é o modo de composição dos mísseis. Em relação às cores, a

autora escolheu quatro: vermelho, laranja, amarelo e branco. Se observarmos apenas os

mísseis, sem associá-los ao contexto do conflito, é impossível reconhecê-los como

mísseis. Nesse sentido, eles também foram camuflados. No caso da movimentação, há

duas possíveis leituras: (1) seis mísseis seriam disparados em diferentes direções e (2)

um único míssil caindo em direção à parte inferior da folha. No entanto, não há alvo,

não há vítima, não há sangue, não há dor. O míssil, ao que parece, foi disparado

aleatoriamente, como se o poder militar não fosse fatal. É interessante notar que, na já

citada entrevista concedida a Harkison, na revista Mother Jones, Chishty pontua que vê

essas pinturas como objetos e não como máquinas de guerra. Não podemos deixar de

apontar uma intrigante contradição nessa posição da pintora, uma vez que ela nasceu em

um país onde pessoas morrem constantemente com ataques aéreos, os quais fazem uso

justamente desses dispositivos como instrumento de guerra (HARKISON, 2013).

Outra leitura possível da posição da artista seria entendê-la como certa recusa a

ver os drones como dispositivos bélicos. Poderíamos conjecturar se o ato de

reapropriação das formas desses dispositivos e sua transformação em algo simples,

bonito e pacífico, não seriam formas de resistência contra esses ícones de morte e

destruição. Conforme o próprio Exército dos Estados Unidos esclarece, conflitos

armados contra seus inimigos mediante o uso de drones serão constantes: “Nós

esperamos que os futuros sistemas aéreos não-tripulados contribuam com a sustentação

responsiva e contínua em ambientes perigosos e austeros” (DEMPSEY; RASMUSSEN,

2010, p. i). Desse modo, podemos afirmar que a Drone Art resiste às tramas bélicas de

poder, encorajando transformações sociais, políticas e éticas.

A depender da observação de cada projeto, alguns parecem trabalhar com

aspectos críticos mais contundentes que outros. A Drone Art revela a importância de

questionar a violência que se aproxima de nós como as sombras das nuvens. Nos

últimos três anos, muitos projetos de Drone Art foram elaborados para questionar o uso

dos drones militares e civis. Mesmo que não estejam armados, continuam sendo usados

para a vigilância e, muitas vezes, mascarados de entretenimento. A tecnologia drone

está se tornando uma parte dolorosa da vida de muitas pessoas.

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Fig. 31 - MQ-9/Predator

Fonte: Mahwish Chishty (2011)

Fig. 32 - X-47B

Fonte: Mahwish Chishty (2012)

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Fig. 33 - MQ-9/Guardian

Fonte: Mahwish Chishty (2011)

Fig. 34 - Reaper

Fonte: Mahwish Chishty (2014)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O novo Golem é o drone, mas este monstro tão presente na cultura judaica não é

mais feito de barro, mas sim de metal, engrenagens e circuitos de informação. Chega a

ser irônico observar que o novo Golem cresceu em Israel já que por anos este foi o

maior fabricante de drones no mundo. Mas agora, o Golem drone está começando

amadurecer principalmente dentro do espaço militar estadunidense, e réplicas deste

monstro estão sendo criados em diversos países, mas mesmo assim, o maior deles segue

a política Bush/Obama. Este novo Golem funciona como uma pele que conecta o desejo

de poder de uma nação sobre a outra.

É confortável chamar este novo Golem de monstro, cada vez que isso acontece a

sua monstruosidade torna-se menos humana, ao chamarmos os drones de monstros

acabamos tirando a responsabilidade que temos sobre a sua criação, ação e

consequência. A máquina drone é uma máquina e materialmente é nada além disso,

porém ela representa o desejo da nação estadunidense de exercer poder sobre quem

deseja durante o tempo que quiser.

Durante o evento AUVSI 2014, fiz a seguinte pergunta a uma mesa de

palestrantes formada por militares estadunidenses, fabricantes de drones e pesquisadores

desta tecnologia: "Vocês acham que as Nações Unidas estão fazendo um desserviço

com a produção dos relatórios sobre os sistemas aéreos não-tripulados?" Nenhum deles

quis responder a pergunta, mas baseado no que li a resposta é afirmativa. A ONU parece

estar despreparada para discutir o assunto. Como pudemos ver no capítulo 1, as

aeronaves remotamente pilotadas existem por décadas e como foi apresentado no

capítulo 2, a utilização do drone torna quase que automática a assimetria bélica. Esta é

uma tecnologia que vai contra os direitos humanos e por isso o papel da ONU é de

fundamental importância, afinal, eles deveriam conduzir formas de preparar através de

seus Conselhos formas de punir os Estados que utilizam esta tecnologia para realizar

ataques e que tiveram como consequência a morte de muitos inocentes. Mas no segundo

relatório (escrito por Heyns), não aparece a tentativa de real responsabilização, toda a

atenção estava na explicitação sobre drone como um golem, como um “exterminador do

futuro”. Afastando-se da realidade de povos islâmicos que agora olham para o céu azul

a sabem que devem ter medo dele já que os drones precisam de um céu limpo para

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voarem. Acho que por isso gostei tanto das fotografias de Drone Art de Trevor Paglen,

mostrando que o céu agora não é mais o mesmo que conhecíamos antigamente.

A Drone Art, que finaliza esta dissertação mostra a preocupação em níveis

variados sobre esta máquina, e seja qual o produto final da reflexão realizada, eles

mostram receios e passividades diante dos drones. Até chegaram a antever

possibilidades de uso por agentes da lei para controlar a população como o "The Peace

Drone"; ao mesmo tempo mostraram como tentar criar uma resistência com esta

máquina através dos projetos "06_ARBackpack" e "The Graffiti Drone"; também como

tentar recriar florestas através do "Eco Drones" e principalmente tentar trazer para o

ocidente o medo dos céus através das obras "Drone Shadow", "Untitled" e "Stealth

Wear"; sem esquecer que com a velocidade que esta tecnologia atravessa o cotidiano

civil estamos ainda percebendo os drones como no espetáculo "Seraph", mas ao mesmo

tempo tentamos conviver com eles (dentro do possível) como observamos nas obras

“Charon” e os drones encantadores desenhados por Mahwish Chishty

Em 2004, o gasto militar mundial chegou a 1.035 trilhões de dólares

americanos, e com mais de 20 guerra acontecendo sobre o globo. A

partir destas estatísticas parece muito viável que a arte de guerra

continuará fazendo parte da cultura global – como registro, memorial,

protesto e celebração (BRANDON, 2012, p. 132, Tradução nossa)

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