UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Rafael Carvalho Bueno
A POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DE MULTA COMINATÓRIA
VENCIDA SOB A ÉGIDE DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Florianópolis
2019
Rafael Carvalho Bueno
A POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DE MULTA COMINATÓRIA VENCIDA SOB A
ÉGIDE DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Trabalho Conclusão do Curso de Graduação em
Direito do Centro de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal de Santa Catarina como
requisito para a obtenção do Título de Bacharel em
Direito
Orientador: Prof. Dr. Pedro Miranda de Oliveira
Florianópolis
2019
Rafael Carvalho Bueno
A POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DE MULTA COMINATÓRIA VENCIDA SOB A
ÉGIDE DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Este Trabalho Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do Título de Bacharel
e aprovado em sua forma final pelo Programa de Graduação do Curso de Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina
Local, 18 de junho de 2019.
________________________
Prof. Humberto Vecchio, Dr.
Coordenador do Curso
Banca Examinadora:
________________________
Prof. Pedro Miranda de Oliveira, Dr.
Orientador
Universidade Federal de Santa Catarina
________________________
Rodrigo Abreu
________________________
Bruno Bonemer
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha família, sobretudo aos meus pais e meu irmão, que não pouparam
esforços para me ajudar, de todas as formas imagináveis, nessa jornada gratificante que foi a
graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina.
Estendo os agradecimentos aos meus amigos, que estiveram presentes nos momentos
mais importantes, sempre dispostos a colaborar com a minha formação e me ajudar a
perseguir meus objetivos.
Por fim, serei eternamente grato a Universidade Federal de Santa Catarina, que me
ofereceu essa oportunidade única e forneceu, por meio do seu quadro de colaboradores, a
quem também agradeço, todo o necessário para uma formação acadêmica de excelência.
RESUMO
Pretende-se com esse trabalho elaborar uma revisão bibliográfica acerca da possibilidade de
redução do valor de multa cominatória já vencida sob a égide do Código de Processo Civil de
2015. A questão é envolta em polêmica, a doutrina erigida ao longo da vigência do Código
Buzaid era uníssona em admitir a possibilidade. Com a alteração da redação do dispositivo
que regulamenta a multa cominatória e a inclusão do termo “vincenda”, a discussão ganhou
corpo novamente. O trabalho se divide em três partes: a primeira aborda de maneira geral a
multa cominatória e a vedação ao enriquecimento sem causa, passando pelo seu conceito e
pelo desenvolvimento histórico desses institutos; a segunda envolve uma análise da posição
da doutrina quanto ao tema, enfocando quais os principais argumentos usados para defender e
para contestar a possibilidade; e a terceira, a posição da jurisprudência, buscando entender
como a modificação é vista nos tribunais pátrios e eventuais soluções encontradas pelos
aplicadores do direito.
Palavras-chave: Multa cominatória. Enriquecimento sem causa. Efetividade processual.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11
2 MULTA COMINATÓRIA E ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA .................. 13
2.1 MULTA COMINATÓRIA ........................................................................................ 13
2.1.1 Conceito ..................................................................................................................... 13
2.1.2 Histórico .................................................................................................................... 16
2.1.2.1 No Brasil..................................................................................................................... 18
2.1.3 Arbitramento do quantum ....................................................................................... 25
2.2 ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA ........................................................................ 27
2.2.1 Conceito ..................................................................................................................... 27
2.2.2 Histórico .................................................................................................................... 32
2.2.2.1 No Brasil..................................................................................................................... 37
3 ABORDAGEM DOUTRINÁRIA ........................................................................... 40
4 ABORDAGEM JURISPRUDENCIAL .................................................................. 50
5 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 63
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 65
11
1 INTRODUÇÃO
O trabalho trata da possibilidade de redução no valor de multa cominatória já vencida
segundo o Código de Processo Civil de 2015, isto é, se parece razoável, após o
descumprimento de ordem judicial que fixou multa pecuniária para esta hipótese, rever o
valor da dita multa. Ao longo do estudo são abordadas as principais questões conceituais
relacionadas à problemática, o histórico dos principais mecanismos que a envolvem, além da
posição doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, incluindo a evolução desta última, com
enfoque nas Cortes Superiores.
A temática envolve duas grandes áreas do direito: o direito civil e o direito
processual civil, ambas com codificações posteriores à Constituição Federal de 1988 e,
portanto, abalizadas por ela. Dessa feita, em muitos aspectos, os princípios que guiam as áreas
são semelhantes ou idênticos, contudo, há casos nos quais eles conflitam entre si, como é na
questão objeto desta monografia, onde a multa cominatória, um dispositivo do direito
processual que visa dar efetividade às decisões judiciais, pode conflitar com a vedação ao
enriquecimento sem causa, um instituto do direito constitucional civil.
A grande discussão repousa sobre o impacto que admitir a redução de uma multa
cominatória já vencida teria sobre o poder de pressão do dispositivo.
Ao mesmo tempo em que, certamente, o acumulo desarrazoado da cominação
ocasiona a leniência do credor, a possibilidade de revisão de um crédito já constituído reduz o
poder de intimidação que a multa exerce sobre o obrigado.
É, pois, necessária uma avaliação a respeito de quais princípios devem prevalecer, se
a efetividade processual deve sobrepujar a inibição ao enriquecimento sem causa ou o
contrário, e quando.
Serão abordados, ao longo de três capítulos, os principais aspectos que circundam o
debate, iniciando pela concepção doutrinária e por um remonte histórico de multa cominatória
e enriquecimento sem causa.
Após essa necessária conceituação, o trabalho propõe um estudo do posicionamento
da doutrina nacional referente à possibilidade de redução de multa cominatória já vencida,
objetivando levantar as convergências e as divergências existentes na nela, com destaque para
12
os principais argumentos, tanto dos autores que advogam contra a possibilidade quanto
daqueles que a defendem.
Será, então, feito um levantamento da jurisprudência, buscando considerar as
alterações que acompanham o Código de Processo Civil de 2015 e os aspectos que se mantém
intactos nos julgados, sobretudo das Cortes Superiores, bem como soluções que têm sido
apresentadas.
A metodologia escolhida para o desenvolvimento da pesquisa é a revisão
bibliográfica, através da leitura e explanação de artigos, livros e coleções da doutrina
nacional, assim como dos principais julgados que envolvem a matéria. Para a construção
redacional, o método escolhido foi o dedutivo, passando de uma concepção geral para uma
específica.
A metodologia empregada leva a uma construção na qual se inicia por um panorama
geral, visando consolidar conceitos fundamentais, para permitir assim uma compreensão das
divergências que contornam a questão.
O trabalho possui contornos de relevância devido aos numerosos casos sobre os
quais a controvérsia possui ingerência e pelo grande impacto econômico que o entendimento
acerca do tema pode causar.
Dessa forma, as páginas que se seguem pretendem levantar e apurar os
comportamentos doutrinários e jurisprudenciais quanto à possibilidade de redução de multa
cominatória já vencida sob a égide do Código de Processo Civil de 2015, com o intuito de
averiguar quais os principais argumentos para sustentar e atacar essa possibilidade, além de
buscar, na doutrina e na jurisprudência nacional, uma solução para o problema.
13
2. MULTA COMINATÓRIA E ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
A discussão quanto à possibilidade de redução de multa cominatória já vencida
passa, sobretudo, pela análise da multa cominatória enquanto dispositivo processual e da
inibição do enriquecimento sem causa enquanto princípio constitucional.
Sendo assim, para que se possa compreender adequadamente os motivos usados
pelos doutrinadores e julgadores para se posicionar quanto ao tema, é necessário discorrer
sobre o conceito e o histórico de ambos.
2.1 MULTA COMINATÓRIA
2.1.1 Conceito
Multa cominatória, ou astreinte, nos dizeres de Marcus Vinicius Rios Gonçalves1, é a
penalidade imposta ao devedor, consistente em multa periódica fixada na sentença judicial ou
no despacho de recebimento da inicial, relativa a obrigação de fazer ou de não fazer”.
O termo vem do latim, mais precisamente da expressão astringere (ad + stringere), e
esta, por sua vez, é uma forma de conjugação do verbo “astringo” ou “adstringō” e significa
apertar, compelir, pressionar2.
A doutrina comporta diversas acepções para o termo, dentre elas a de Enrico Tullio
Liebman3, que destaca a razão de ser do instituto:
Chamam-se “astreintes” a condenação pecuniária proferida em razão de
tanto por dia de atraso (ou qualquer unidade de tempo, conforme as
circunstâncias), destinada a obter do devedor o cumprimento da obrigação de
fazer pela ameaça de uma pena suscetível de aumentar indefinidamente.
Mais adiante ele arremata, ressaltando a inexistência de vínculo entre o prejuízo
auferido pelo credor e a multa:
Caracterizam-se as “astreintes” pelo exagero da quantia em que se faz a
condenação, que não corresponde ao prejuízo real causado ao credor pelo
inadimplemento, nem depende da existência de tal prejuízo. Constitui na
realidade, uma pena imposta com finalidade cominatória, tendo como
objetivo primeiro o cumprimento da obrigação no prazo fixado pelo juiz.
1 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2009. 2 LEWIS, Charlton T.; SHORT, Charles. A latin dictionary. Oxford: Clarendon Press, 1879. Disponível em:
<http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0059:entry=astringo>. Acesso em: 3 jun.
2019. 3 LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1968. p. 169.
14
Na literatura jurídica francesa, donde advém o instituto, Marcel Planiol e Georges
Ripert4 também ressaltam a inexistência de conexão direta entre a multa e o prejuízo causado
pela inadimplência do devedor:
Chamam-se astreintes às condenações monetárias ditadas em razão de
determinada quantidade por dia de atraso (ou por qualquer outra unidade de
tempo apropriada às circunstâncias) e destinadas a obter do devedor a
execução de uma obrigação de fazer, pela ameaça de uma pena considerável,
suscetível de aumentar indefinidamente. O que caracteriza esta medida de
coerção é, portanto, o exagero do montante causado ao credor por efeito do
atraso, e que nem sequer supõe a existência desse prejuízo. A soma assim
fixada é uma verdadeira pena, pronunciada a título cominatório e só em caso
de que o devedor não cumpra sua obrigação no prazo fixado pelo tribunal.
Na mesma toada, Savatier5 assevera: “Celle-ci consiste à condamner ce débiteaur, -
refusant la prestation qu’il doit, - a une somme d’argent destinée à l’intimider” (esta
penalidade consiste na condenação do devedor – que se nega a adimplir a prestação devida –
ao pagamento de uma quantia em dinheiro, destinada à intimidá-lo).
Em suma, se trata de um mecanismo feito para dar eficácia às decisões judiciais que
tratam das obrigações de fazer e não fazer, que Fredie Didier Jr.6 chamou de “técnica de
coerção psicológica do devedor”.
A ideia é simples: valer-se da psicologia humana, que prefere comportamentos
menos onerosos, e, dessa feita, impor ao devedor uma obrigação mais custosa que a original,
compelindo-o ao adimplemento desta.
Quanto à natureza jurídica da multa cominatória, Cassio Scarpinella Bueno7 frisa o
caráter “intimidatório” do instituto:
A multa não tem caráter compensatório, indenizatório ou sancionatório.
Muito diferente, sua natureza jurídica repousa no caráter intimidatório, para
conseguir, do próprio réu, o específico comportamento ou a abstenção
pretendida pelo autor e determinado pelo magistrado. É, pois, medida
coercitiva (cominatória). A multa deve agir no ânimo do obrigado e
influenciá-lo a fazer ou não fazer a obrigação que assumiu.
4 Cf. CÂMARA, Alexandre Freitas. Direito civil e processo. In: Estudos em homenagem ao Professor Arruda
Alvim. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 1561. 5 SAVATIER, René. La theorie des obligations. Paris: Dalloz, 1974, p. 381. 6 DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: execução. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 461. 7 BUENO, Cassio Scarpinella. Código de processo civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2008, p. 1474.
15
A multa cominatória não se trata, portanto, de pena, posto que, conforme ensina Luiz
Fux8, “não substitui o cumprimento da obrigação principal, mas meio de ‘coerção’ cuja
origem remonta às ‘astreintes’ do direito francês, para compelir o devedor ao cumprimento
das obrigações de fazer”.
Além disso, se faz necessário apontar que a multa cominatória não pode ser
confundida com a indenização por perdas e danos, que, ao seu turno, representa a soma dos
lucros cessantes com os danos emergentes, ou seja, aquilo que o prejudicado razoavelmente
deixou de ganhar ou efetivamente perdeu. Sobre a questão, Alexandre Freitas Câmara9
enuncia o seguinte:
Não se confundem as astreintes com perdas e danos, uma vez que a função
destas é reparar o dano causado pelo não cumprimento da obrigação,
enquanto aquela multa pecuniária tem o objetivo de constranger o executado
a realizar a prestação devida. A impossibilidade de confusão entre os dois
institutos é tão evidente que o próprio Código de Processo Civil afirma,
textualmente, que “a indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo
da multa (art. 461, § 2º, do CPC)
O artigo mencionado (art. 461, § 2º) é o do Código Buzaid. No Código de Processo
Civil de 2015, essa distinção está no art. 50010, o qual estabelece que “A indenização por
perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa fixada periodicamente para compelir o réu ao
cumprimento específico da obrigação”.
Ainda segundo o autor carioca, também não se pode confundir a multa cominatória
com cláusula penal, máxime porque esta tem caráter convencional, é estipulada pelas partes,
enquanto aquela é determinada pelo julgador, independendo da manifestação de vontade das
partes:
Também não se confundem as astreintes e a cláusula penal. Esta última é
uma pena convencional, fixada, pois, pelas partes, e que tem por fim prefixar
perdas e danos pelo inadimplemento total ou parcial da obrigação. As
astreintes, como visto, não tem natureza convencional, nem se prestam a
fixar perdas e danos, não se confundindo com estas.
8 FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 1082. 9 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 278. 10 BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2015-2018/2015/lei/L13105.htm>. Acesso em 3 de junho de 2019.
16
Na mesma linha, de que a multa cominatória se presta somente a coagir o réu a
cumprir a prestação, é o pensamento de Fredie Didider Jr.11, que ainda ressalta seu caráter
acessório:
A multa tem caráter coercitivo. Nem é indenizatória, nem é punitiva. Isso
significa que o seu valor reverterá à parte adversária, mas não a título de
perdas e danos (art. 461, § 2º, CPC). A multa tem caráter acessório: ela
existe para coagir, para convencer o devedor a cumprir a prestação.
O Superior Tribunal de Justiça12, ao tratar do tema, compactuou com o entendimento
apontado ao dizer que “as astreintes não têm caráter punitivo, mas coercitivo e tem a
finalidade de pressionar o réu ao cumprimento de ordem judicial”.
Esse caráter coercitivo é apontado também pela doutrina francesa. Mazeaud13, por
exemplo, afirmam: “Ce procédé de pression est solvente utilisé par les tribunaux” (este
processo de pressão é usado pelos tribunais).
O caráter da multa cominatória, então, não é compensatório nem punitivo, mas
coercitivo. E isso, conforme Edson Prata14, derruba a relação de proporcionalidade na relação
entre o possível dano e a multa, segundo o autor, “diferentemente das perdas e danos, falta à
‘astreinte’ o caráter correlativo, de proporcionalidade legal, entre o dano sofrido e a
indenização reparatória”.
2.1.2 Histórico
A multa cominatória deriva de um instituto oriundo do direito francês, as astreintes.
Com o Código Napoleônico, de 1804, foi, com base no respeito à liberdade, um dos lemas da
Revolução Francesa, consolidado o princípio nemo potest cogi ad factum (ninguém pode ser
diretamente coagido a praticar ato a que se obrigara)15, ou, nas palavras de Araken de Assis16,
o princípio da intangibilidade do executado, consubstanciado no banimento das medidas de
coação que recaíam sobre a pessoa do devedor.
11 Op. Cit., 2012, 451 p. 12 AgRg no AREsp 419.485/RS, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 4-12-2014, DJe 19-12-
2014 13 MAZEAUD, Henry Leon Jean. Leçons de droit civil – Obligations. Paris: Ed. Montchrestien, 1966, p. 878. 14 PRATA, Edson. As “astreintes” no direito brasileiro. In: Revista Brasileira de Direito Processual, vol. 22. Rio
de Janeiro: Forense, 1980, p. 32. 15 GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 108. 16 ASSIS, Araken de. Manual da execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 496.
17
A partir deste momento, não podiam ser empregadas constrições de ordem pessoal
nas execuções de fazer, algo que, por conseguinte, ocasionou maiores dificuldades no alcance
do adimplemento da prestação devida.
Com o intuito de reduzir a vulnerabilidade da pretensão formulada pelo credor,
começou-se a aplicar medidas gravosas que recaíam sobre o patrimônio do devedor. No
início, as cortes francesas fixavam multas em valores extraordinários, que aumentariam
indefinidamente caso o réu continuasse se recusando a cumprir a obrigação tutelada pelo
provimento jurisdicional.
O mecanismo, entretanto, encontrou resistência dos juristas, que criticavam a falta de
previsão legam e encaravam-no como uma forma de indenização, não de coação, como bem
aponta Enrico Tullio Liebman17.
Ao discorrer sobre a origem do instituto, Marcelo Lima Guerra18 faz uma crítica
muito semelhante:
Todavia, o respeito à liberdade do devedor levou a doutrina francesa a
exageros injustificáveis, na interpretação do mencionado art. 1.142 do
Código Civil [...] Entendeu-se, assim, que uma obrigação de fazer ou de não
fazer era uma obrigação facultativa, na qual o devedor se obriga, a título
principal, ao equivalente pecuniário e pode, se assim desejar, liberar-se de
realizar a prestação prevista no contrato.
Na sequência, o doutrinador19 assinala que essa dubiedade fez com que, após o seu
nascedouro, as astreintes passassem por uma fase de hesitação de anacronismo, quase
deixando de existir, afinal, por mais de uma década elas passaram a ser usadas, na França,
como uma espécie de indenização por perdas e danos:
[...] vale mencionar que durante um período que se estende de 1949 a 1959
ocorreu um retrocesso na orientação jurisprudencial predominante, quando
se passou a vincular o valor da astreinte liquidada ao valor real do prejuízo
sofrido pelo credor, em virtude do inadimplemento do devedor.
17 Op. Cit., 1980, p. 233. 18 Op. Cit., 1999, p. 109. 19 Ibid., p. 111.
18
E o autor20 conclui afirmando que esse processo de enfraquecimento pode ser bem
ilustrado pela criação de uma norma jurídica específica para disciplinar as astreintes em um
caso específico, qual seja, as ações de despejo:
Durante o pós-guerra, a recusa de locatários despejados em desocupar os
respectivos imóveis, por falta de lugar para onde irem, deu origem a um uso
generalizado de astreintes para efetivar as sentenças de despejo. Esse quadro
motivou o legislador a intervir e disciplinar especificamente o emprego de
tais medidas nessas situações. Assim, a Lei de 21.07.1949, relativa às ações
de despejo, estabeleceu a regra segundo a qual, a astreinte, quando decretada
para compelir o cumprimento de sentença de despejo, não poderia
ultrapassar o valor da quantia equivalente ao prejuízo causado pelo
inadimplemento do locatário.
Embora a legislação disciplinasse apenas a matéria concernente às ações de despejo,
os julgadores passaram a submeter toda e qualquer aplicação do mecanismo aos limites
impostos por ela. Foi só em 1959, pela pressão dos juristas, que esse entendimento foi
modificado e os valores puderam, uma vez mais, ser arbitrados independentemente do
prejuízo acarretado pelo não cumprimento da obrigação.
Em outras partes do globo, surgiram mecanismos semelhantes. Como na Inglaterra,
por exemplo, onde sanções severas passaram a ser admitidas (e o são até os dias de hoje) para
o contempt of Court, isto é, o desrespeito à autoridade do juiz ou tribunal que proferiu a
decisão21. Esse sistema, contudo, é mais abrangente que o sistema das astreintes, dado que se
estende ao direito penal, onde adquire um caráter eminentemente punitivo.
Na Alemanha, também, há previsão de multa pecuniária, que o juiz pode determinar
conforme sua conveniência, limitada ao montante de vinte e cindo mil euros, e prisão de até
seis meses em caso de desrespeito, como previsto no § 888 do Código de Processo Civil
Alemão (Zivilprozessordnung – ZPO).
2.1.2.1 No Brasil
No Brasil, o direito admite o uso desse mecanismo desde o Código de Processo Civil
de 193922 (decreto-lei n. 1.608, de 18 de setembro de 1939), que previa, em seu art. 1.005,
20 Op. Cit., 1999, p. 112. 21 Ronald Goldfarb, The history of the contempt power, 1961 Wash. U. L. Q. 1 (1961). Disponível em:
<https://openscholarship.wustl.edu/law_lawreview/vol1961/iss1/6/>. Acesso em: 3 jun. 2019. 22 BRASIL. Decreto-lei n. 1.608, de 18 de setembro de 1939. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del1608.htm>. Acesso em 3 de junho de 2019.
19
cominação pecuniária, que não poderia exceder o valor da prestação, para pressionar o
devedor:
Art. 1.005. Se o ato só puder ser executado pelo devedor, o juiz ordenará, a
requerimento do exequente, que o devedor execute, dentro do prazo que
fixar, sob cominação pecuniária, que não exceda o valor da prestação.
Além disso, em seu Livro IV, Título II, no art. 302, aquele códex previa a chamada
“ação cominatória”, cujo caráter generalista fica evidente por meio do inciso XII:
Art. 302. A ação cominatória compete:
[...]
XII – em geral, a quem, por lei, ou convenção, tiver direito de exigir de
outrem que se abstenha de ato ou preste fato dentro de certo prazo.
Esta ação, todavia, apresentava grandes dificuldades práticas, máxime porque a
distinção entre a obrigação de dar e de fazer não era, por vezes, de feitura simples ante a
conjuntura fática específica. Ademais, há controvérsia quanto à eficácia da prática de
cominação prévia da multa23.
Isso fez com que Alfredo Buzaid, autor do Código de Processo Civil de 1973,
deixasse de incluir a ação cominatória entre os procedimentos especiais de jurisdição
contenciosa.
A exclusão, contudo, não foi feita sem ponderação: Buzaid solicitou ao então
ministro, Moacyr Amaral Santos, que apresentasse um anteprojeto para o procedimento em
questão. O ministro apresentou um anteprojeto de simplificação do procedimento, buscando
extinguir as dificuldades levantadas. A proposta, porém, não resistiu ao crivo da Comissão
Revisora, que fundamento a negativa com a afirmação de que o procedimento ordinário
atenderia aos casos gerais de obrigação de fazer, além disso, alguns casos especiais, como a
“ação de prestação de contas”, ficaram mantidos.
A exclusão da ação cominatória, entretanto, não significa que o preceito cominatório
tenha desaparecido da legislação. Em vários dispositivos, o Código Buzaid trazia elementos
23 GRECO FILHO, Vincente. A extinção da ação cominatória no código de processo civil de 1973 e a
executoriedade do ato administrativo. São Paulo: Justitia, 1977, p. 1.
20
análogos, como é o caso do art. 275, II, alíneas “g” e “j”24, por meio do qual, admite-se, com
o procedimento sumaríssimo, o uso de multa cominatória para evitar a prática de atos que
contrariem a lei ou a urbanidade.
O art. 28725, por sua vez, prevê expressamente a multa cominatória, consignando que
o pedido de fixação de multa deverá constar na inicial. E, por fim, a figura da multa
cominatória aparece nos arts. 644 e 64526 do Código Buzaid.
Sobre a alteração, Eduardo Talamini27 conclui que o códex consagrou uma tendência
jurisprudencial presente em seu predecessor, no sentido de que a multa só poderia incidir
depois do trânsito em julgado da sentença:
É bem verdade que finalmente se institui inequívoca medida de coerção:
multa diária, que doutrina e jurisprudência vieram a reputar aplicável às
obrigações fungíveis e infungíveis, ilimitada e cumulável com as perdas e
danos [...] Mas desapareceu a possibilidade de um comando initio litis
acompanhado de medida coercitiva. Sob esse aspecto, o Código de 1973
acabou consagrando aquela tendência jurisprudencial que já se esboçava sob
a égide do Código de 1939, no sentido de que a multa só começaria a incidir
depois do trânsito em julgado. Para todos os casos em que era indispensável
uma tutela preventiva [...] o que quase sempre ocorre no âmbito dos deveres
de abstenção – passou-se a utilizar o processo cautelar. [...] No entanto, para
o processo cautelar faltava um adequado sistema de mecanismos coercitivos,
que asseguração a plena efetivação de seus provimentos [...] Continuaram,
porém, existindo ações especiais destinadas à tutela de deveres de fazer e de
não fazer, inclusive em caráter preventivo, fiéis ao antigo modelo interdital:
interdito proibitório, manutenção de posse, reintegração de posse, nunciação
de obra nova, etc.
24 Art. 275. Observar-se-á o procedimento sumaríssimo:
[...]
II – nas causas, qualquer que seja o valor:
[...]
g) que tiveram por objeto o cumprimento de leis e posturas municipais quanto à distância entre prédios, plantio
de árvores, construção e conservação de tapumes e paredes divisórias;
[...]
j) do proprietário ou inquilino de um prédio para impedir, sob cominação de multa, que o dono ou inquilino do
prédio vizinho faça dele uso nocivo à segurança, sossego ou saúde dos que naquele habitam; 25 Art. 287. Se o autor pedir a condenação do réu a abster-se da prática de algum ato, a tolerar alguma atividade,
ou a prestar o fato que não possa ser realizado por terceiro, constará da petição inicial a cominação da pena
pecuniária para o caso de descumprimento da sentença (arts. 644 e 645). 26 Art. 644. Se a obrigação consistir em fazer ou não fazer, o credor poderá pedir que o devedor seja condenado a
pagar uma pena pecuniária por dia de atraso no cumprimento, contado o prazo da data estabelecida pelo juiz.
Art. 645. A condenação na pena pecuniária deverá constar na sentença, que julgou a lide. 27 TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos direitos de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de
entrega de coisa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 103.
21
Durante a vigência do Código Buzaid, houveram algumas alterações quanto à
maneira como a multa cominatória se inseria no ordenamento jurídico tupiniquim, com
destaque para as leis 8.95228 e 8.95329, ambas de 13 de dezembro de 1994.
A primeira transformou o caput do art. 461 no parágrafo único do art. 460 e deu-lhe
esta redação:
Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer
ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se
procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado
prático equivalente ao do adimplemento.
§ 1º A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o
requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado
prático correspondente.
§ 2º A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art.
287).
§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio
de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela
liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar
poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão
fundamentada.
§ 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor
multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente
ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o
cumprimento do preceito.
§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado
prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as
medidas necessárias, tais como a busca e apreensão, remoção de pessoas e
coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva, além de
requisição de força policial.
A segunda, por sua vez, alterou o texto dos arts. 644 e 645, cujas redações passaram
e ser, respectivamente:
Art. 644. Na execução em que o credor pedir o cumprimento de obrigação de
fazer ou não fazer, determinada em título judicial, o juiz, se omissa a
sentença, fixará multa por dia de atraso e a data a partir da qual ela será
devida.
Parágrafo único. O valor da multa poderá ser modificado pelo juiz da
execução, verificado que se tornou insuficiente ou excessivo.
28 BRASIL. Lei n. 8.952, de 13 de dezembro de 1994. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8952.htm>. Acesso em 3 de junho de 2019. 29 BRASIL. Lei n. 8.953, de 13 de dezembro de 1994. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8952.htm>. Acesso em 3 de junho de 2019.
22
Art. 645. Na execução de obrigação de fazer ou não fazer, fundada em título
extrajudicial, o juiz, ao despachar a inicial, fixará multa por dia de atraso no
cumprimento da obrigação e a data a partir da qual será devida.
Parágrafo único. Se o valor da multa estiver previsto no título, o juiz poderá
reduzi-lo, se excessivo.
O texto passou, então, a contar com mais detalhes, esclarecendo o modo de aplicação
da multa cominatória e ampliando sua utilização, como ensina Cândido Rangel Dinamarco30:
A profunda remodelação por que passou a tutela específica das obrigações
de fazer ou de não-fazer repercutiu in executivis mediante nova formulação
que a lei n. 8.953, de 13 de dezembro de 1.994, veio a dar aos arts. 644 e 645
do Código de Processo Civil. Constitui a síntese e lema dessa novidade o
reforço das astreintes. Quis o legislador, visivelmente, revigorar o instituto e
dotá-lo de maior eficácia para o combate aos notórios óbices à efetividade
das decisões judiciais e das obrigações concertadas mediante títulos
executivos extrajudiciais (óbices ilegítimos ao acesso à justiça). (...) O
reforço do sistema de astreintes implantado pelo Código de Processo Civil
em 1974 é o reconhecimento da valia psicológica desse meio de execução
indireta, conforme expressa declaração contida na justificativa que
acompanhou o projeto da lei n. 8.953. Sabe o legislador que os meios de
pressão psicológica são particularmente eficientes e capazes de proporcionar
ao credor mais rapidamente a satisfação do seu direito, mediante a retirada
da resistência do obrigado.
O próximo grande marco para o instituto, e para o direito processual civil brasileiro
como um todo, é o Código de Processo Civil de 2015, que o prevê no § 1º do 56331 e lhe
conferiu um tratamento pormenorizado por meio do art. 53732.
30 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do código de processo civil. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 241. 31 Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o
juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo
resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.
§ 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a
busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva,
podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial. 32 Art. 537. A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em
tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação
e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito.
§ 1º O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou
excluí-la, caso verifique que:
I – se tornou insuficiente ou excessiva;
II – o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o
descumprimento.
§ 2º O valor da multa será devido ao exequente.
§ 3º A decisão que fixa a multa é passível de cumprimento provisório, devendo ser depositada em juízo,
permitido o levantamento do valor após o trânsito em julgado da sentença a favorável à parte.
§ 4º A multa será devida desde o dia em que se configurar o descumprimento da decisão e incidirá enquanto não
for cumprida a decisão que a tiver cominado.
23
Uma das inovações do sistema no Código de Processo Civil de 2015 é a
determinação expressa de que as astreintes são devidas ao credor. Em verdade, boa parte dos
doutrinadores, como Alexandre Freitas Câmara33, por exemplo, já defendia que o valor
deveria ser revertido em favor do credor, o carioca afirma que “[...] O valor devido em razão
da incidência das astreintes reverte em favor do exequente, e é exigível através dos
procedimentos da execução por quantia certa”.
Todavia, haviam aqueles em favor de que o valor angariado fosse revertido em favor
do Estado, dentre eles Marcelo Lima Guerra34, o qual, aludindo o ordenamento jurídico
alemão, argumenta:
Na realidade, a regra de que as quantias apuradas com o pagamento de
Zwangsgeld sejam convertidas em favor do Estado, nada mais faz que
ressaltar, com a maior coerência possível, o unanimemente reconhecido
caráter público do interesse protegido com as medidas coercitivas, a saber: a
proteção à dignidade da justiça e à sua correta e efetiva administração. O
mais certo, sendo essa a fundamentação principal para legitimar os juízes a
disporem (e os legisladores a autorizarem) de medidas coercitivas, na
execução forçada, é que esses fundos realmente revertam ao Estado.
Para contextualizar, ressalta-se que, consoante aponta Araken de Assis35, no sistema
alemão, essa multa é devida ao Estado, que tem sua autoridade questionada pelo
descumprimento de uma decisão.
Outro ponto que restou esclarecido com o advento da novel legislação diz respeito à
periodicidade da multa. Embora a doutrina e a jurisprudência já admitissem, na vigência do
Código Buzaid, que o magistrado utilizasse qualquer lapso temporal como marco de
incidência, aquele diploma apontava o dia, de maneira expressa, como medida apropriada. O
Código de Processo Civil de 2015, atento a isso, suprimiu a expressão “multa diária”,
encontrada no art. 461 de seu predecessor; e a expressão “por dia de atraso”, presente nos
arts. 644 e 645 daquele código.
§ 5º O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao cumprimento de sentença que reconheça deveres de
fazer e de não fazer de natureza não obrigacional. 33 Op. Cit., 2013, p. 278. 34 Op. Cit., 1999, p. 205. 35 ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 235.
24
Ademais, o novo código trouxe critérios bem definidos para a fixação das astreintes,
que não existiam em seu precursor, o qual precisou ter essa lacuna suprida pela
jurisprudência, que institui a “razoabilidade” e a “proporcionalidade” como parâmetros
balizadores do quantum indenizatório.
Por outro lado, o Código de Processo Civil de 2015 trouxe a previsão expressa de
parâmetros para o arbitramento do valor e periodicidade da multa, pois determinou que ela
deve ser “suficiente e compatível”. Embora suficiência e compatibilidade sejam critérios tão
abstratos quanto razoabilidade e proporcionalidade, trata-se de uma evolução em relação à
norma antiga, que nada previa sobre o assunto.
A principal inovação quanto à multa cominatória, e objeto desta monografia,
contudo, está no § 1º do art. 537, que equivale ao parágrafo único do antigo art. 644. O novo
dispositivo inclui o vocábulo “vincenda” ao texto, pelo que se entende que os poderes do
magistrado quanto à alteração de valor e periodicidade de multa cominatória já vencida, sob a
égide do Código de Processo Civil de 2015, foram drasticamente reduzidos.
Curiosamente, o anteprojeto do Código de Processo Civil de 201536 apresentava-se
ainda mais detalhista em relação à multa cominatória. No § 5º de seu art. 50337, ele atacava o
enriquecimento sem causa advindo da acumulação das multas, determinando que o montante
seria devido ao autor até o valor da obrigação e que o restante seria devido ao Estado.
36 Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496296>. Acesso em 3 de junho de 2019. 37 Art. 503. A multa periódica imposta ao devedor independe de pedido do credor e poderá se dar em liminar, na
ou na execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para
o cumprimento do preceito.
§ 1º A multa fixada liminarmente ou na sentença se aplica na execução provisória, devendo ser depositada em
juízo, permitido o seu levantamento após o trânsito em julgado ou na pendência de agravo contra decisão
denegatória de seguimento de recurso especial ou extraordinário.
§ 2º O requerimento de execução da multa abrange aquelas que se vencerem ao longo do processo, enquanto não
cumprida pelo réu a decisão que a cominou.
§ 3º O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou
excluí-la, caso verifique que:
I – se tornou insuficiente ou excessiva;
II – o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o
descumprimento.
§ 4º A multa periódica incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado.
§ 5º O valor da multa será devido ao autor até o montante equivalente ao valor da obrigação, destinando-se o
excedente à unidade da Federação onde se situa o juízo no qual tramita o processo ou à União, sendo inscrito
como dívida ativa.
§ 6º Sendo o valor da obrigação inestimável, deverá o juiz estabelecer o montante que será devido ao autor,
incidindo a regra do § 5º no que diz respeito à parte excedente.
§ 7º O disposto no § 5º é inaplicável quando o devedor for a Fazenda Pública, hipótese em que a multa será
integralmente devida ao credor.
§ 8º Sempre que o descumprimento da obrigação pelo réu puder prejudicar diretamente a saúde, a liberdade ou a
vida, poderá o juiz conceder, em decisão fundamentada, providência de caráter mandamental, cujo
descumprimento será considerado crime de desobediência.
25
Essa previsão se mostra bastante perspicaz: ao mesmo tempo em que combate o
enriquecimento sem causa, instiga o credor a ser diligente, ao menos após alcançado o
máximo de benefício que poderia ser obtido com a acumulação da multa, e tudo sem
enfraquecer o mecanismo.
2.1.3 Arbitramento do quantum
Outro aspecto que precisa ser abordado quando se trata da multa cominatória por
descumprimento de ordem judicial são os parâmetros para seu arbitramento. Como
mencionado anteriormente, o Código de Processo Civil de 2015 instituiu que a multa deve ser
suficiente e compatível. A expressão é notadamente abstrata, razão pela qual a doutrina se
debruçou sobre o tema e tratou de apresentar mais detalhes a respeito da delineação do valor
da multa.
Nesse sentido, conforme explanam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade38, o
valor deve ser alto, para que o devedor se sinta, de fato, pressionado ao cumprimento da
prestação:
[...] o valor deve ser significativamente alto, justamente porque tem natureza
inibitória. O juiz não deve ficar com receio de fixar o valor em quantia alta,
pensando no pagamento. O objetivo das astreintes não é obrigar o réu a
pagar o valor da multa, mas obrigá-lo a cumprir a obrigação na forma
específica. A multa é apenas inibitória. Deve ser alta para que o devedor
desista de seu intento de não cumprir a obrigação específica. Vale dizer, o
devedor deve sentir ser preferível cumprir a obrigação na forma específica a
pagar o alto valor da multa fixada pelo juiz.
Humberto Theodoro Jr.39 faz coro ao entendimento de que a multa deve atingir
patamar considerável, salientando que a força econômica do devedor deve ser observada. O
festejado processualista ressalta, entretanto, que o abuso deve ser evitado para que o
mecanismo não se converta em fonte de enriquecimento sem causa:
[...] o valor da multa não é definido por lei, podendo variar de acordo com as
circunstâncias do caso concreto. Deverá, de acordo com sua função,
38 NERY JR., Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Código de Processo Civil comentado e legislação
extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 808. 39 THEODORO JR., Humberto. Processo de execução e cumprimento de sentença. São Paulo: Liv. e Ed.
Universitária de Direito, 2007, p. 222.
26
corresponder a uma quantia “suficiente para constranger”, em face das
posses do devedor e a expressão econômica da obrigação. Há de evitar-se
abuso, obviamente, que possa transformar o meio legítimo de
constrangimento executivo em fonte de locupletamento indevido ou
enriquecimento sem causa [...]
Sobre a temática, Eduardo Talamini40 também deixa sua contribuição, ressaltando a
necessidade de análise quanto às possíveis vantagens obtidas pelo devedor com o
descumprimento da decisão e asseverando que o quantum pode vir a superar o atribuído ao
bem jurídico visado:
[...] montante tal que concretamente influa no comportamento do demandado
– o que, diante das circunstâncias do caso (a situação econômica do réu, sua
capacidade de resistência, vantagens por ele carreadas com o
descumprimento, outros valores não patrimoniais eventualmente envolvidos
etc.), pode resultar em quantum que supere aquele que se atribui ao bem
jurídico visado [...]
Insta mencionar, outrossim, que o exame sobre a valoração da multa deve repousar
em sua quantia periódica, e não em valor eventualmente acumulado pelo descumprimento,
como ensina a Ministra Nancy Andrighi41:
O valor da multa é aquele capaz de dobrar a parte renitente, sujeitando-a aos
termos da lei. Justamente aí reside o grande mérito diária: ela se acumula até
que o devedor se convença da necessidade de obedecer a ordem judicial. A
multa perdurou enquanto foi necessário; se o valor final é alto, ainda mais
elevada era a resistência da recorrente a comprir o devido. A análise sobre o
excesso ou não da multa, portanto, não deve ser feita na perspectiva de
quem, olhando para fatos já consolidados no tempo agora que a prestação
finalmente foi cumprida – procura razoabilidade quando, na raiz do
problema, existe justamente um comportamento desarrazoado de uma das
partes; ao contrário, a eventual revisão deve ser pensada de acordo com as
condições enfrentadas no momento em que a multa incidia e com o grau de
resistência do devedor.
Em julgado recente42, ela voltou a esposar esse entendimento:
Para se evitar essa situação, outro parâmetro que pode ser utilizado consiste
em aferir a proporcionalidade e a razoabilidade do valor diário da multa, no
momento de sua fixação, em relação ao da obrigação principal. Assim,
verificado que a multa diária foi estipulada em valor razoável se comparada
40 Op. Cit., 2003, p. 248. 41 STJ – REsp nº 1.022.038/RJ, 3ª T., rela. Mina. Nancy Andrighi, DJe 22/10/2009 42 STJ – REsp nº 1.714.990/MG, 3ª T., rela. Mina. Nancy Andrighi, DJe 18/10/2018
27
ao valor em discussão na ação em que foi imposta, a eventual obtenção de
valor total expressivo, decorrente do decurso do tempo associado à inércia
da parte em cumprir a determinação, não ensejaria a sua redução.
E ela conclui apontando os perigos de realizar-se um diagnóstico pautado no valor
acumulado da multa em detrimento de seu valor periódico:
Se a apuração da razoabilidade e da proporcionalidade se faz com o simples
cotejo entre o valor da obrigação principal e o valor total alcançado a título
de astreintes, inquestionável que a redução do último, pelo simples fato de
ser muito superior ao primeiro, poderá estimular a conduta de recalcitrância
do devedor em cumprir as decisões judiciais.
Naturalmente, portanto, o valor da multa não pode ser limitado ao valor da causa,
fato consagrado pelo enunciado 96 do Conselho da Justiça Federal43. Em razão disso, não se
pode aplicar à multa cominatória o disposto no art. 412 do Código Civil44, concernente à
cláusula penal.
Se a apuração da razoabilidade e da proporcionalidade se faz com o simples
cotejo entre o valor da obrigação principal e o valor total alcançado a título
de astreintes, inquestionável que a redução do último, pelo simples fato de
ser muito superior ao primeiro, poderá estimular a conduta de recalcitrância
do devedor em cumprir as decisões judiciais.
2.2 ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
2.2.1 Conceito
Enriquecimento sem causa, nas palavras de Limongi França45, é “o acréscimo de
bens que se verifica no patrimônio de um sujeito, em detrimento de outrem, sem que para isso
tenha um fundamento jurídico”.
No Brasil, o fundamento para a vedação ao enriquecimento sem causa é
constitucional, isto é, advém dos preceitos do Estado Democrático de Direito, que tem por
43 Os critérios referidos no caput do art. 537 do CPC devem ser observados no momento da fixação da multa,
que não está limitada ao valor da obrigação principal e não pode ter sua exigibilidade postergada para depois do
trânsito em julgado. Disponível em <https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-
judiciarios-1/publicacoes-1/i-jornada-de-direito-processual-civil>. Acesso em 3 de junho de 2019. 44 Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.
45 FRANÇA, R. Limongi. Enriquecimento sem causa. In Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva,
1987.
28
fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal)46 e, entre seus
objetivos fundamentais, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, da
Constituição Federal)47. Tais preceitos, como ensina José Augusto Delgado48, são diretivos e
de posição hierárquica superior:
Indiscutível a supremacia dos princípios explícitos e implícitos, das regras
programáticas e das disposições concretas adotadas pela Constituição
Federal sobre o ordenamento jurídico. Essa vinculação é de natureza
imperativa. A adaptação realiza-se pelo hierárquico da estrutura legislativa
aprovada pela própria Constituição Federal, formando um sistema destinado
a reger todas as relações jurídicas públicas ou privadas que se desenvolvem
em qualquer parte do território nacional.
As regras assumidas pelo Código Civil de 2002 deverão, em consequência
do afirmado, ser interpretadas de conformidade com a vontade contida na
Carta Magna.
Conclui-se, portanto, que a ordem constitucional é o alicerce das diretrizes do direito
civil tupiniquim, de maneira que os princípios constitucionais fundamentam a aplicação dos
institutos referentes às relações privadas e, nessa senda, também fundamentam a estrutura da
inibição do enriquecimento sem causa.
Sobre a influência da Constituição nas relações privadas, destacam-se os
ensinamentos de Rogério Ferraz Donnini49, que relaciona o princípio da dignidade da pessoa
humana com a possibilidade de interferência estatal no âmbito privado:
A Constituição Federal de 1988 interferiu e, ipso facto, alterou sobremaneira
nosso Direito Privado e o modelo clássico de contrato baseado em interesses
46 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição. 47 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
distinção. 48 DELGADO, José Augusto. O Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988. In Aspectos
controvertidos do novo Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 393. 49 DONNINI, Rogério Ferraz. A Constituição Federal e a concepção social do contrato. In Temas atuais de
direito civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 76.
29
individuais. Essa interferência vem sendo denominada constitucionalização
do Direito Civil, fato esse que tem propiciado o estudo deste à luz do texto
constitucional. E o direito contratual, a exemplo do que ocorreu com outras
áreas do direito, vem-se transformando e adaptando a essa visão e
determinação constitucionais.
Embora a livre inciativa esteja prevista no caput do art. 170 da CF, está ela
associada à valorização do trabalho humano, na existência digna, consoante
os ditames da justiça social. Esta, por sua vez, para ser atingida, importa na
redução das desigualdades regionais e sociais.
Há, também, o princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa
humana, inserido no art. 1º da CF, incompatível com disposições contratuais
desiguais, em que impere a ausência de boa-fé objetiva, transparência e
equilíbrio.
Justamente por encontrar supedâneo na Constituição, mais especificamente em
princípios abstratos, a vedação ao enriquecimento sem causa também possui esse caráter
generalista, consoante aponta Diogo Leite de Campos50:
O princípio que proíbe o locupletamento injusto à custa de outrem é um dos
mais gerais do sistema jurídico. O problema da compensação do
locupletamento à custa alheia é um aspecto da noção de direito, entendido
como ordem justa, uma das suas manifestações. Impedir o enriquecimento
injusto constitui uma das finalidades gerais do Direito das Obrigações, que,
no seu conjunto, tente a obter uma equilibrada distribuição dos bens
jurídicos nas relações inter-sociais.
Na mesma linha de pensamento, L.P. Moitinho de Almeida51 enfatiza que este
princípio está relacionado à noção de justiça inerente à atividade do direito:
O direito, qualquer que tenha sido a desvirtuação utilitária que tenha
recebido, acidentalmente, no decorrer dos séculos continua a ser, em
substância, a arte do bom e do justo, como pretendiam os jurisconsultos
romanos, pois é no jus de Roma que o direito privado moderno continua a
mergulhar as suas raízes mais profundas. O direito natural continua a ser,
assim, o conjunto de preceitos que dão a medida comum civilizada do que é
bom e do que é justo, qualquer que seja a região do globo onde forem
aplicados e qualquer que seja a ética religiosa e moral dos povos
considerados em estado de civilização que, por imperativo desta mesma
civilização, lhe estão submetidos no íntimo da consciência. Entre esses
preceitos, encontram-se, desde tempos imemoriais, os velhos princípios
neminem laedere e suum cuique tribuere, que é o mesmo que dizer: dar a
50 CAMPOS, Diogo Leite de. Enriquecimento sem causa, responsabilidade civil e nulidade. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1982, p. 259. 51 ALMEIDA, L. P. Moitinho de. Enriquecimento sem causa. Coimbra: Almedina, 2000, p. 14.
30
cada um seu, não lesar ninguém. É nesses mesmos preceitos, que informam
o espírito da lei, pelo menos em matéria de obrigações, que encontra o seu
fundamento, de jure condendo, a moderna teoria jurídica do enriquecimento
sem causa (enrichiessement sans cause), por virtude da qual o que foi
empobrecido, sem causa, no seu patrimônio, por acto a que corresponda o
enriquecimento doutrem, pode, em determinadas condições, exigir ao
enriquecido uma reparação correspondente ao seu empobrecimento.
Na contramão desse entendimento, vai Giovanni Ettore Nanni52, segundo o qual não
se pode exigir que a causa do enriquecimento de alguém seja adequada do ponto de vista ético
ou econômico, bastando sua adequação ao ordenamento jurídico:
Para definir a justa causa que fundamenta a relação jurídica e impede a
caracterização do enriquecimento sem causa, segundo Alberto Trabucchi,
não se requer sempre uma justificação econômica ou ética, como idealmente
seria auspicioso, bastando um meio válido, um adequado título jurídico,
legal ou convencional.
Impende apontar que, além de princípio, a inibição do enriquecimento sem causa, no
direito brasileiro, é também fonte de obrigações, as quais, segundo Maria Helena Diniz53,
consubstanciam-se no elemento que origina os direitos subjetivos:
A fonte das obrigações é o fato jurídico, uma vez que o fato jurídico lato
sensu é o elemento que dá origem aos direitos subjetivos, dentre eles os
obrigacionais, impulsionando a criação da relação jurídica e concretizando
as normas de direito.
Deveras, do direito objetivo não surgem diretamente os direitos subjetivos; é
necessária uma força de propulsão ou causa, que se denomina fato jurídico.
Somente a ocorrência de um fato qualificado gera uma obrigação, ou seja,
apenas o fato, estribado no direito objetivo, dá azo a que se crie a relação
obrigacional, que atinge o indivíduo em sua liberdade, restringindo-a, para
torna-lo vinculado ao poder de outra pessoa.
Uma vez que o enriquecimento sem causa está vedado pelo direito, ele constitui fato
jurídico, que origina uma obrigação.
Há os juristas que afirmam ser a lei fonte imediata de obrigação, como Sílvio de
Salvo Venosa54. O paulistano, porém, não rechaça que outras figuras possam ensejar o
surgimento de obrigações, caracterizando-as como “fontes mediatas de obrigação”:
52 NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 260. 53 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 3. 54 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo:
Atlas, 2003, p. 205.
31
Quer-nos parecer, contudo, sem que haja total discrepância com o que já foi
dito, que a lei é sempre fonte imediata de obrigações. Não pode existir
obrigação sem que a lei, ou, sem síntese, o ordenamento jurídico, a ampare.
Todas as demais ‘várias figuras’ que podem dar nascimento a uma obrigação
são fontes mediatas. São, na realidade, fatos, atos e negócios jurídicos que
dão margem ao surgimento de obrigações.
É oportuno apontar que a vedação ao enriquecimento sem causa foi positivada pelo
Código Civil, sendo merecedora de um capítulo próprio, trata-se do Capítulo IV do Título
VII, referente aos atos unilaterais, que compreende os arts. 884, 885 e 88655. Dessa forma, o
enriquecimento sem causa é fonte mediata e imediata de obrigações.
Quanto à inserção da inibição do enriquecimento sem causa no título relativo aos
atos unilaterais, há crítica de parte da doutrina, que o caracteriza como elemento autônomo.
Dentre os juristas adeptos a esta crítica, está Giovanni Ettore Nanni56, o qual destaca que a
gênese do enriquecimento sem causa não está apenas em um ato de vontade do enriquecido:
[...] o enriquecimento sem causa surge não apenas de um ato de vontade do
enriquecido, mas também de um negócio jurídico, de uma situação objetiva
de desequilíbrio ou outra circunstância prejudicial a uma das partes, em que
a lei atua com a imposição da restituição do locupletamento à custa alheia.
Ainda sobre a categorização do enriquecimento sem causa como fonte de obrigação,
é forçoso mencionar a lição de Fernando Noronha57, que enaltece a autonomia do
enriquecimento sem causa ao dividir o estudo do Direito das Obrigações em três:
As primeiras (negociais) nascem de contratos ou de negócios jurídicos
unilaterais e nelas tutela-se o interesse do credor na realização da sua
expectativa de alteração patrimonial, fundada no compromisso assumido no
55 Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o
indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la,
e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas
também se esta deixou de existir.
Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir
do prejuízo sofrido. 56 Op. Cir., 2004, 180 p. 57 NORONHA, Fernando. Enriquecimento sem causa. In Revista de direito civil, imobiliário, agrário e
empresarial, v. 56. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, 51p.
32
âmbito da autonomia privada. As segundas (responsabilidade civil em
sentido estrito) nascem da prática de atos danosos, com violação do dever
geral de neminem laedere, e nelas tutela-se o interesse do credor na
reparação dos danos sofridos, repondo-se o seu patrimônio (quando o dano
seja patrimonial) no status quo ante. As terceiras (enriquecimento sem causa)
nascem da apropriação por outrem, ou do mero aproveitamento por outrem,
ainda que não doloso nem culposo, de bens que o ordenamento jurídico
destina (reserva) ao titular respectivo e nelas tutela-se o interesse do credor
na reversão para o seu patrimônio dos bens, ou do valor do aproveitamento
obtido à ‘sua custa’, mesmo quando ele nenhum dano (isto é, redução
patrimonial) haja sofrido.
Para o autor, pois, à caracterização do enriquecimento sem causa basta que haja um
impacto positivo no patrimônio de alguém às custas de outrem, ainda que sem dolo ou culpa,
e que este impacto não encontre refúgio no ordenamento jurídico. Mais adiante, ele clarifica
que o enriquecimento sem causa deriva da interferência não justificada na esfera jurídica
alheia:
As observações negociais nascem de compromissos assumidos no âmbito da
autonomia privada, a responsabilidade civil (em sentido estrito) tem por
causa a danificação de bens alheios e o enriquecimento sem causa nasce de
benefícios auferidos com a intervenção não justificada na esfera jurídica
alheia.
Em termo conceituais, portanto, a vedação ao enriquecimento sem causa pode ser
descrita como o impedimento de que alguém tenha seu patrimônio acrescido sem uma razão
passível de ser juridicamente descrita.
2.2.2 Histórico
A análise da gênese da inibição do enriquecimento sem causa não é de simples
feitura, mormente porque ela advém da evolução e conjugação de uma série de institutos ao
longo da história do direito, como leciona Manuel Teles de Menezes Leitão58:
A análise histórica do instituto do enriquecimento sem causa apresenta-se de
elaboração problemática, atendendo ao facto de terem sido diversos
institutos jurídicos, sujeitos a diferentes tipos de conexões e
desenvolvimentos durante a sua evolução histórica, que serviram de base à
consagração do princípio da repressão do enriquecimento injustificado.
58 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. O enriquecimento sem causa no direito civil: Estudo dogmático
sobre a viabilidade da configuração unitária do instituto face à contraposição entre as diferentes categorias de
enriquecimento sem causa. Coimbra: Almedina, 2005, p. 59.
33
Há duas teorias principais sobre a evolução do instituto no direito romano e elas se
contrapõe. A primeira, enunciada por Pernice e Girard, assevera que os romanos conheciam e
combatiam o enriquecimento sem causa desde os primórdios. Já a segunda, defendida por
Perozzi, Monier e Iglesias, sustenta que as movimentações para a compreensão e o embate ao
enriquecimento sem causa se iniciaram no tempo de Justiniano. Sobre a temática, ensina José
Carlos Moreira Alves59:
Sobre a evolução da noção de enriquecimento sem causa e das ações que o
atacaram no direito romano, há grande divergência entre os autores. Das
teorias que procuram explicá-la, duas são as principais: a primeira defendida,
entre outros, por Pernice e Girard; e a segunda, por Perozzi, Monier, Iglesias.
Segundo Pernice e Girard, os romanos, desde épocas remotas, levaram em
consideração, combatendo-o, o enriquecimento sem causa. Por isso, as
obrigações re (que correspondem, na técnica moderna, às obrigações
decorrentes de contratos reais), antes de serem sancionadas por outras ações,
o foram pela condictio, com base justamente no princípio de que não deve
subsistir inatacável o enriquecimento sem causa.
(...) Já de acordo com a segunda corrente de opinião, a evolução da teoria do
enriquecimento sem causa de processou de modo diverso. No direito pré-
clássico, o enriquecimento sem causa não era atacado por qualquer espécie
de ação. No direito clássico, apenas em algumas hipóteses – como, por
exemplo, na indebiti solutio – se concederam condictiones contra o
enriquecimento sem causa. Somente no tempo de Justiniano é que a
condictio – em diferentes modalidades – passa a sancionar o princípio
genérico de que não deve haver enriquecimento sem causa; cria-se, então, a
condictio incerti, e classificam-se em diversas condictiones.
Essa diversidade de disposições que identificavam o princípio e a inexistência de
uma estrutura geral análoga a que existe hoje é destacada por Sílvio de Salvo Venosa60, que
ainda ressalta como os romanos sempre possuíram a noção que dá azo à vedação:
Do estudo da matéria histórica, com os escassos pormenores que o âmbito
dessa exposição permite, importa sintetizar o tratamento do instituto em
Roma.
Valle Ferreira resume com felicidade o que tentamos esclarecer: (1º) O
preceito que condena o enriquecimento sem causa encontra-se disperso nos
textos romanos. O fato de a jurisprudência ter de invocar diferentes regras
para condenar o enriquecimento dificultou os desenvolvimentos
doutrinários, de tal modo que não foi devidamente fixada a estrutura daquele
instituto, não se firmando a teoria geral.
59 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 259. 60 Op. Cit., 2003, p. 205.
34
As soluções jurisprudenciais sempre se apresentaram como corretivos de
equidade, para revolver casos não previstos na legislação vigente; (2º) a
datio que importasse em transferência da propriedade constituía requisito
comum das condictiones, de tal sorte que por direito romano, excluía-se a
condictio quando coubesse a vindicatio (reivindicação da coisa).
De qualquer modo, é inafastável que o princípio do injusto enriquecimento
sempre foi de noção romana, pelo que se infere de duas passagens do
Digesto, que em tradução livre tinham em mira a ninguém permitir que se
locupletasse à custa alheia, em detrimento alheio.
Por outro lado, Giovanne Ettore Nanni61 defende que o enriquecimento sem causa no
direito romano antigo não era uma fonte geral das obrigações, tendo aplicação apenas em
casos específicos.
Ao buscar o instrumento jurídico de reação a um acréscimo patrimonial injusto mais
antigo, é comum deparar-se com a condictio, uma fórmula processual que constituía uma ação
visando a prestação de uma certa quantia ou coisa. Esta fórmula, segundo Luís Manuel Teles
de Menezes Leitão62, era pouco concreta:
Este meio processual terá certamente a sua origem na legis actio per
conditionem63, introduzida pela Lex Silio para os créditos que tinham por
objeto uma certa pecúnia, e estendida pela Lex Calpurnia aos créditos que
tinha por objecto uma certa res (gêneros e objetos não genéricos). Essa legis
actio per conditionem ter-se-ia caracterizado pelo facto de não ser feita
menção da causa do crédito, pelo que a acção poderia adaptar-se a qualquer
permissão ao dare oportere64 de um certum (pecúnia ou res),
independentemente da causa debendi. O seu carácter abstrato manter-se-ia
no processo formular, permitindo a aplicação da condictio a uma grande
variedade de situações.
A abstração, então, provinha da falta de exigência de menção ao fundamento da
ação, por meio da qual o magistrado condenava o réu, se resultasse do ius civile65 que ele
deveria transferir ao autor uma quantia ou coisa.
Inobstante, para o português, a condictio não era usada como forma de tutelar o
enriquecimento sem causa, mas como maneira de restituir uma prestação prestada por
equívoco ou de um bem furtado. Todavia, ele reconhece que o instituto como é hoje tem
nascedouro naquele instrumento66:
61 Op. Cit., 2004, p. 5. 62 Op. Cit., 2005, p. 68. 63 Ação usada para tutelar créditos. 64 Transmissão. 65 Direito romano aplicado aos homens livres residentes na república. 66 Op. Cit., 2004, p. 12.
35
As formas como eram obtidas as restituições pelo locupletamento indevido
pelas conditiones parecem conflitantes com uma teoria geral e única sobre o
tema, principalmente devido à abstração e ao formalismo que marcavam os
procedimentos, de tal sorte que não se consubstanciaram num princípio geral
do direito, observado na ótica como é analisado nos dias de hoje.
Porém, é inegável que a obrigação de restituir pelo instituto em tela encontra
seu germe teórico nas condictiones sine causa do direito romano, visto que
foram acolhidas tantas ações particulares com a mesma utilidade, só que
com destinações específicas, o que indica que se estava diante de verdadeiras
ações de enriquecimento. Se estas não conduziam a uma teoria geral,
esboçavam-na, o que foi concretizado pela natural evolução do direito
brasileiro.
Com a morte de Justiniano, no século VI, desenvolve-se, no Oriente, o direito
bizantino, caracterizado por José Critella Jr67. como “o conjunto de regras jurídicas justinéias
que continuaram em vigor de 565 a 1453”, quando os turcos tomaram Constantinopla. Por
ordem dos imperadores bizantinos, foram elaboradas compilações para a aplicação do direito
justinianeu, essas compilações transformaram a inibição do enriquecimento sem causa em um
princípio geral.
Paralelamente, na Europa, ao longo da Idade Média, o direito romano foi
desvalorizado, o que causou um atraso no desenvolvimento da vedação ao enriquecimento
imotivado. Com as invasões, o direito romano foi substituído pelas regras consuetudinárias
dos povos invasores e, neste ínterim, a inibição do enriquecimento sem causa não vigorava
como princípio das relações obrigacionais, pois a resolução de controvérsias era embasada na
estrutura feudal e nos costumes. Sobre esta decadência do direito romano, José Carlos
Moreira Alves68 leciona:
Depois da queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C., qual o
destino do direito romano na Europa?
A esse respeito, os dados de que dispomos são escassos até o século XI.
Sabe-se que, por ocasião da morte de Justiniano, existia em Roma uma
escola de direito, de cujo destino, após essa data, se perde o traço. Com
relação ao período que vai desse tempo até o século XI, há grande
controvérsia entre os autores sobre a persistência, ou não, do estudo do
direito romano no Ocidente. Alguns pretendem que o direito romano, então,
estudado como disciplina jurídica, enquanto outros – e esta corrente é maior
67 CRITELLA JR., José. Curso de direito romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rio de Janeiro:
Forense, 2001, p. 56. 68 Op. Cit., 2002, p. 57.
36
– julgam que nessa época o estudo do direito romano decaiu tanto que se
realizava nas escolas de arte liberais, onde se ensinavam noções jurídicas
muito sumárias e imperfeitas.
O renascimento do instituto no Ocidente deu-se pela escola dos glosadores, que,
conforme explica Luís Teles de Menezes Leitão, iniciou uma profunda reelaboração da
temática:
A escola dos glosadores inicia uma profunda reelaboração dogmática em
matéria do enriquecimento sem causa. Os glosadores recolhem dos
bizantinos a concepção da condictio como meio geral de repressão do
enriquecimento e a sua classificação das condictiones. Efectuam uma
articulação mais estreita das diversas condictiones entre si, e consideram-nas
como baseadas no princípio da proibição do enriquecimento injustificado,
constante de D.50.17.206 e D.12.6.14., através do recurso à ideia de
aequitas69, a qual os glosadores consideram imanente nos textos de
D.12.6.66. para a condictio indebiti70 e D.25.2.25. para condictio furtiva71 e
(ou) sine causa.
A respeito da classificação das condictiones, os glosadores atribuíram
preponderância à condictio sine causa que, conforme escreve Luís Teles de Menezes72,
“servia não apenas como tipo legal de recolha, mas também abrangia as restantes condictiones
como um gênero compreende as espécies, embora não se identificasse com elas, uma vez que
poderia ser exercida em sua substituição”.
Por outro lado, a doutrina canonista, a qual John Gilissen73 afirma se tratar do direito
da comunidade religiosa dos cristãos, mais especificamente da Igreja Católica, representou
uma reação formalismo das fontes romanas e passou a invocar a vedação do enriquecimento
sem causa, fundada na equidade natural e interpretando-a segundo os textos romanos. Dessa
feita, a inibição adquiriu maior abrangência e eficácia, pois para aquela doutrina, o
locupletamento às expensas de outrem obriga em consciência a restituição do enriquecimento,
tal qual registra Luís Manuel Teles de Menezes Leitão74:
De acordo com a doutrina canônica, nem todos os ganhos obtidos durante a
vida podem ser considerados como obtidos regularmente, ocorrendo uma
69 Equidade. 70 Ação para reaver o que foi pago por equívoco. 71 Ação para reaver coisa roubada. 72 Op. Cit., 2005, p. 155. 73 GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Tradução de A.M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 133. 74 Op. Cit., 2005, p. 190.
37
violação do ius divinum sempre que a sua obtenção derive de uma infração à
ordem natural, já que nessa hipótese se verificaria uma infração do sétimo
mandamento ‘não roubarás’ (furto non facies). Esse mandamento,
interpretado extensivamente, proibiria a obtenção de qualquer ganho em
infração à ordem natural, impondo assim a lei divina que esse ganho seja
anulado e a ordem natural restaurada. De acordo com a causa XIV do
Decretum de Granatius, de 1111, o enriquecimento pode ser obtido ex turpi
causa75 ou ser também imprópria a aquisição, o que acontece nas hipóteses
de furto, roubo, usura e simonia, devendo em todos esses casos, operar-se a
anulação do enriquecimento. Só que essa anulação não tem necessariamente
que se operar mediante a entrega de esmola aos pobres ou de doações à
igreja. Em certos casos, porém, quando não existe qualquer culpa do
empobrecido, como nas hipóteses de furto ou roubo, a anulação do
enriquecimento só pode ser efectuada através da restituição à vítima, única
forma de remissão do pecado cometido. O dever de restituição aparece assim
na doutrina da Igreja, primeiro como regra de fórum internum, proibindo a
absolvição do pecado sem que essa restituição se mostre efetuada, e
posteriormente como um dever genérico de restituição dos ganhos obtidos
irregularmente, sendo dessa forma teorizado pelos diversos teólogos
medievais.
Esta é, resumidamente, a origem da inibição ao enriquecimento sem causa, que,
séculos depois, tornou-se influente no direito brasileiro.
2.2.2.1 No Brasil
No ordenamento jurídico brasileiro, a vedação ao enriquecimento não foi apresentada
de maneira expressa no Código Civil de 1916, de autoria de Clóvis Beviláqua76, segundo o
qual “por mais que variemos as hipóteses, veremos que o direito e a equidade se podem
plenamente satisfazer, sem criarmos, nos Códigos Civis, mais esta figura de causa geradora de
obrigação, ou seja uma relação obrigacional abstrata e genérica”.
A não apresentação explícita, contudo, não significa que o legislador admitia a
hipótese de que alguém pudesse enriquecer às custas de outrem sem que exista razão para
tanto, apenas representa uma opção pela não unificação do instituto, como assinala Caio
Mário da Silva Pereira77:
75 Por meio torpe. 76 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1954, p. 100. 77 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 290.
38
Daí não se conclua que o legislador brasileiro tenha admitido possa alguém
enriquecer-se com a jactura de outrem. Apenas não procedeu, como na
sistemática suíço-germânica, à unificação do enriquecimento sem causa, o
que não impediu que a doutrina e a jurisprudência realizassem a soldadura
das várias incidências, e acabasse por estruturar em termos de generalidades
a teoria respectiva.
Naquele diploma, todavia, notava-se a existência do “pagamento indevido”, que
ensejava restituição, em conformidade com a previsão contida entre os arts. 964 e 97178. O
que se vislumbra, então, é que, à época, a previsão expressa de uma vedação ao
enriquecimento sem causa não era necessária, porque o pensamento majoritário até então era
de que a noção de equidade e equilíbrio eram valores suficientes para evitar que o
enriquecimento imotivado acontecesse.
Posteriormente, o anteprojeto do Código de Obrigações, que data de 1965, continha a
previsão categórica de vedação ao enriquecimento sem causa. Caio Mário da Silva Pereira79,
autor do projeto, se referiu ao instituto da seguinte maneira:
130. O Anteprojeto adotou critério de sistematização do instituto do
enriquecimento sem causa. Enunciou o princípio geral da indenização do que
se enriquece à custa do sacrifício alheio, ainda que a causa venha a faltar
depois de obtido o proveito.
Ao contrário de outras legislações, para as quais a ação de locupletamento é
secundária, no sentido do que somente cabe quando faltar outro meio de
reparação, entendi que não devia consignar tal restrição, somente geradora
de recursos processuais inúteis de exceções desnecessárias, e de eternização
dos litígios. Quem tiver outro meio de restaurar o direito lesado poderá usá-
lo. Mas nenhum dano social existe no fato de tomar rumo, dede logo, pela
ação que visa a esta indenização.
78 Art. 964 - Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir. A mesma obrigação
incumbe ao que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição.
Art. 965 - Ao que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro.
Art. 966 - Aos frutos, acessões, benfeitorias e deteriorações sobrevindas à coisa dada em pagamento indevido,
aplica-se o disposto nos arts. 510 a 519.
Art. 967 - Se, aquele, que indevidamente recebeu um imóvel, o tiver alienado, deve assistir o proprietário na
retificação do registro, nos termos do art. 860.
Art. 968 - Se, aquele, que indevidamente recebeu um imóvel, o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso,
responde somente pelo preço recebido; mas, se obrou de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e
danos.
Parágrafo único - Se o imóvel se alheou por título gratuito, ou se, alheando-se por título oneroso, obrou de má-fé
o terceiro adquirente, cabe ao que pagou por erro o direito de reivindicação.
Art. 969 - Fica isento de restituir pagamento indevido aquele que, recebendo-o por conta de dívida verdadeira,
inutilizou o título, deixou prescrever a ação ou abriu mão das garantias que asseguravam seu direito; mas o que
pagou dispõe de ação regressiva contra o verdadeiro devedor e seu fiador.
Art. 970 - Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação natural.
Art. 971 - Não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido por
lei. 79 Op. Cit., 2004, p. 417.
39
131. O Anteprojeto, dentro do título de enriquecimento indevido, disciplina a
restituição do pagamento, acompanhando o Código de 1916, cujas
impropriedades emendou, como por exemplo, a referência à obrigação
natural, substituída por ‘obrigação judicialmente exigível’.
Como o Código de Obrigações acabou por não se converter em lei, a positivação da
vedação ao enriquecimento sem causa ocorreu no Código Civil de 2002, que foi abalizado
pela Constituição de 1988. No Título VII, Capítulo IV, entre os arts. 884 e 88680, o códex
cível trata dessa situação. Sobre a inserção de uma previsão expressa quanto à temática, Ruy
Rosado de Aguiar81 se pronunciou da seguinte maneira:
O art. 884 veio dispor expressamente sobre o enriquecimento sem causa,
preenchendo uma lacuna do nosso ordenamento. Trata-se de cláusula geral
que terá grande efeito no foro, porque permitirá reparar todas as situações de
vantagem indevida. É, no entanto, uma ação subsidiária, a ser usada se o
lesado não tiver outros meios para se ressarcir do prejuízo (art. 885).
A maneira explícita como o Código Civil tratou a vedação ao enriquecimento
imotivado é vista com bons olhos pela doutrina, dado que a matéria não se sujeitaria mais, de
maneira irrestrita, à interpretação da doutrina e da jurisprudência. É nesse sentido a exposição
de Carlos Alberto Dabus Maluf82: “Entendemos procedente a disposição expressa do
enriquecimento sem causa dentro de nossa lei civil, pois, assim, não ficaremos adstritos à
interpretações dos doutrinadores e da jurisprudência sobre tão-discutida matéria”.
Laconicamente, é deste modo que a vedação ao enriquecimento sem causa foi
inserida no ordenamento jurídico brasileiro.
80 Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o
indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la,
e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas
também se esta deixou de existir.
Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir
do prejuízo sofrido. 81 AGUIAR, Ruy Rosado. Projeto do código civil: as obrigações e os contratos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, n. 775, p. 29. 82 MALUF, Carlos Alberto Dabus. Pagamento indevido e enriquecimento sem causa. São Paulo: Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1998, n. 93, p. 130.
40
3. ABORDAGEM DOUTRINÁRIA
A controvérsia, que se cinge na possibilidade ou não de redução do valor de multa
cominatória já vencida sob a égide do Código de Processo Civil de 2015, encontra
posicionamentos diversos na doutrina. Se por um lado, evitar ganho injustificado de
patrimônio serve como causa para que alguns autores defendam que a redução seja permitida,
o texto da lei, que é categórico em afirmar que apenas multas ainda por vencer podem ser
modificadas, e a conservação da força de coação da multa fazem com que outra parte dos
doutrinadores defendam a impossibilidade de alteração.
Insta mencionar que a discussão quanto à viabilidade de modificação no valor de
multa cominatória já vencida dá-se apenas quando essa modificação implica diminuição do
valor originalmente estabelecido, pois, mesmo na vigência do Código Buzaid, o entendimento
era de que não se poderia aumentar o valor de uma multa já vencida, como enuncia Gulherme
Rizzo Amaral83:
Por óbvio, quaisquer alterações no quantum e na periodicidade da multa só
terão efeitos ex nunc, não podendo, portanto, retroagir para prejudicar o réu,
eis que desta forma estaria havendo punição do mesmo, o que descaracteriza
as astreintes, conforme já referido quando da análise da natureza jurídica da
medida.
Portanto, o debate reside na possibilidade ou não de redução de uma multa
cominatória já vencida. Nesse sentido, importa mencionar que, mesmo com a previsão ampla
que o Código Buzaid fazia sobre a faculdade do magistrado de alterar, a seu bel prazer, o
valor ou a periodicidade da multa, haviam doutrinadores que defendiam, ainda naquele códex,
que a alteração poderia ocorrer apenas quanto às prestações ainda por vencer, como é o caso
de Eduardo Talamini84:
Havendo diminuição da multa judicial em virtude de alteração das
circunstâncias concretas, o novo valor incidirá apenas a partir desses fatos
que ensejaram a mudança.
Note-se que não há base legal para o juiz, retroativamente, vir a eximir total
ou parcialmente o réu de multa que incidiu de forma válida (à diferença do
que se dá, por exemplo, no direito argentino e, com a ‘astreinte provisoire’,
no direito francês). A multa só é revisável ex tunc se tiver havido defeito em
sua fixação. Afasta-se a simples remissão pelo juiz.
83 AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004, p. 131. 84 Op. Cit., 2003, p. 248.
41
Com o advento da nova legislação e a inclusão do termo “vincenda” ao dispositivo
que regulamente a multa cominatória, o número de autores que passou a advogar pela
impossibilidade de alteração no montante originalmente arbitrado aumentou. Marcelo
Abelha85 é um dos autores que fazem coro a esse entendimento:
É importante observar que a possibilidade de o magistrado,
fundamentadamente, modificar o valor e a periodicidade da multa, e até
mesmo excluí-la nas hipóteses descritas nos incisos do §1.º do art. 537,
restringe-se apenas ao que não se referir ao passado, ou seja, apenas a
situações vincendas, posto que para o passado já está acobertada pela
preclusão, salvo se tiver sido objeto de impugnação recursal da parte. A
expressão "modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou
excluí-la" deixa muito claro que não pode o juiz, sob pena de violar a
segurança jurídica, mexer a seu bel prazer com a multa, ora colocando, ora
tirando, como se fosse um joguete nas suas mãos. Apenas sobre as vincendas
é que poderá revogar ou alterar o seu valor ou periodicidade.
Vê-se que o doutrinador adota um paradigma positivista, por meio do qual a única
interpretação possível é a de que, uma vez vencida a multa, o direito de contestá-la e a
faculdade do julgador de modificá-la estariam preclusos. Outro ponto que se destaca no
posicionamento do autor, e que é de suma importância para a discussão é acerca da segurança
jurídica dos envolvidos.
Além dele, Alexandre de Freitas Câmara86 também defende que a multa só pode ser
alterada se ainda não tiver vencido, para o carioca, alterar uma multa já vencida seria fatal a
um direito adquirido do credor:
Permite a lei que o juiz, de ofício ou a requerimento, modifique o valor ou a
periodicidade da multa vincenda, ou que a exclua, caso verifique que se
tornou insuficiente ou excessiva, ou se o obrigado demonstrar o
cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o
descumprimento (artigo 537, § 1º). Importante ter claro, porém, que só se
pode reduzir ou aumentar a multa vincenda, não sendo admissível a
alteração do valor da multa já vencida, o que implicaria em redução do valor
de um crédito já configurado do demandante, violando-se um seu direito
adquirido. Apenas as multas vincendas, portanto, podem ter seu valor ou
periodicidade modificados por decisão judicial.
85 ABELHA, Marcelo. Manual de execução civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 15. 86 CÂMARA, Alexandre de Freitas. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas, 2017, p. 370.
42
Novamente, a influência positivista é marcável, porque o autor fundamenta sua
posição com a constatação de que o texto prevê de maneira expressa a impossibilidade de
alteração de multa já vencida. Além disso, destaca-se afirmação de que a multa se trataria de
um direito adquirido do demandante.
Em uma linha semelhante de raciocínio, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz
Arenhart e Daniel Mitidiero87 argumentam que a jurisprudência, erigida ainda na vigência do
Código Buzaid, é clara quanto à possibilidade, e que sua motivação é evitar o enriquecimento
imotivado do demandante. Ao final, porém, concluem ressaltando que a redução, embora
possa acontecer em qualquer tempo, só deve atingir às multas vincendas, não podendo ter
efeitos retroativos:
O art. 537, § 1º, CPC, é expresso em outorgar poder ao juiz para modificar,
de ofício ou a requerimento da parte, o valor ou a periodicidade da multa que
se tornou insuficiente ou excessiva ou ainda em caso de parcial cumprimento
da obrigação ou de existência de justa causa para o descumprimento. Nesse
sentido, pode o juiz reforçar o valor da multa ou alterar sua periodicidade,
sempre que verificar a sua inaptidão para atuar sobre a vontade do
demandado. Pode, igualmente, reduzir a multa cujo valor se tornou
excessivo. A jurisprudência é pacífica em admitir essa redução, apontando a
necessidade de observância da proporcionalidade entre o valor fixado a título
de astreintes e o bem jurídico tutelado pela decisão (STJ, 1ª Turma, REsp
914.389/RJ, rel. Min José Delgado. J. 10.04.2007, DJ 10.05.2007, p. 361).
Busca-se evitar, com isso, o enriquecimento sem causa do demandante. A
redução da multa com valor excessivo pode ocorrer a qualquer tempo,
inclusive na fase de cumprimento da decisão – a coisa julgada não protege a
parte da decisão que fixa multa coercitiva (STJ, 4ª Turma, AgRg no Ag
745.631/PR, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 08.05.2007, p. 267). A
redução, porém, não pode ter efeitos retroativos, atingindo valores que já
incidindo, só se reduz as multas vincendas.
Estes doutrinadores, portanto, defendem que os tribunais devem atuar buscando
inibir o enriquecimento sem causa, ressalvando, contudo, que eventual alteração em relação à
multa cominatória só pode ser feita em relação àquelas ainda por vencer. Entendesse, assim,
que se faz presente no excerto a ideia de que os tribunais devem agir com diligência,
identificando situações nas quais a multa tornou-se excessiva, para alterá-la em tempo hábil,
sem violar o direito do credor.
87 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo
Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 583.
43
Ao abordar o tema, Humberto Theodoro Jr.88 é mais engenhoso, alegando que não
preclui o direito de questionar e a faculdade de alterar a multa e que a multa, por seu caráter
coercitivo, não é direito da parte:
Pode-se pensar em preclusão, que impeça a alteração da multa, quando a
parte tenha deixado de recorrer oportunamente da decisão que a cominou?
Pensamos que não. A multa não é direito da parte. Na espécie, trata-se de
medida judicial coercitiva, utilizada para assegurar efetividade à execução.
Interessa muito mais ao órgão judicial do que ao credor, o que lhe assegura o
caráter de providência de ordem pública. Esse caráter está bem evidenciado
na regra do art. 537, onde o poder-dever do juiz de aplicar a astreinte está
expressamente previsto como exercitável independentemente de
requerimento da parte; regra que se completa com a do § 1º do mesmo
dispositivo, que, mesmo depois da respectiva fixação, prevê a possibilidade
de o juiz de ofício “modificar o valor ou a periodicidade da multa
vincenda”, sempre que verificar “que se tornou insuficiente ou excessiva”.
Embora a consideração a respeito da não preclusão da multa seja relevante,
sobretudo porque o teor do § 1º do art. 537 deixa inconteste que ela pode ser questionada a
qualquer tempo. Porém, há de se mencionar que a ideia de que o interesse do órgão julgador é
maior que o do credor parece distante da realidade, pois, embora seja do interesse do Poder
Judiciário conservar seu poder de coerção, é o credor que terá ou não a efetivação da tutela
que buscou pela via judicial, ou seu patrimônio acrescido. Ademais, o órgão julgador trata-se
de uma estrutura sem vontade autônoma e seus agentes, funcionários públicos, pouco serão
afetados pelo cumprimento ou descumprimento das ordens judiciais.
Mais adiante89, ele reforça que, em se tratando de matéria de ordem pública, a multa
pode ser revista a qualquer tempo:
Quando algum acórdão deixa, eventualmente, de conhecer do pedido de
redução da multa, sob o argumento de não ter havido oportuno agravo contra
sua imposição, o que, na verdade, se afirma é que a matéria, não tendo sido
objeto de recurso oportuno, não poderia ser objeto de posterior arguição
direta no tribunal. Haveria, se assim não se procedesse, quebra do duplo grau
de jurisdição. A solução aparenta ser correta porque, até então, não se tratava
de questão enfrentada e solucionada na instância a quo, à qual a lei atribui a
competência para aumentar ou reduzir a pena. Uma vez, porém, que se cuida
de matéria de ordem pública, a falta de agravo não impede que o juiz da
88 THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 184. 89 Idem.
44
causa (ou da execução) exerça o poder de alterar a multa, agindo até mesmo
de ofício, como determina o § 1º do art. 537, em relação às parcelas
vincendas da multa. Esse poder, inerente à competência do magistrado que
dirige o processo, não desaparece em virtude da inércia da parte, pela
simples razão de que a lei, ao instituí-lo, não o subordinou à provocação do
litigante.
De fato, consoante a assinala o festejado processualista, a chance de discutir a multa
não se esgota pela falta de impugnação imediata, até mesmo porque o Código de Processo
Civil assim prevê, de maneira expressa, no art. 537.
Na sequência90, há um escorço acerca do entendimento jurisprudencial forjado na
vigência do Código Buzaid, que permitia ao magistrado alterar a multa quando constatado que
ela se tornou diminuta ou demasiada, sem qualquer restrição:
A boa jurisprudência erigida no regime do Código anterior, prestigiada por
numerosos precedentes do STJ, considerava que a previsão do § 6º do art.
461 do CPC/1973 (faculdade de o juiz da causa reduzir ou ampliar a multa, a
qualquer tempo, e de ofício) não se sujeita aos embaraços da preclusão, nem
mesmo da coisa julgada. O único requisito legal para que ocorresse a
alteração da astreinte é que o valor antes arbitrado “tenha-se tornado
insuficiente ou excessivo”, o que será aferido segundo a “peculiaridade do
caso concreto”, observada sempre a finalidade da medida: “compelir o
devedor a realizar a prestação devida”, de modo que “o meio executivo deve
conduzir ao cumprimento da obrigação e não o inviabilizar pela bancarrota
patrimonial do devedor”. Daí por que não precluía para o juiz a faculdade de,
a qualquer tempo, alterar o valor das astreintes, bastando ocorrer a
circunstância de ser aquele quantum insuficiente ou excessivo para sua
natural finalidade. Era pacífica a jurisprudência do STJ, nesse sentido.
Indo além91, ele comenta a alteração feita no dispositivo, que incluiu o termo
“vincenda” à norma:
No regime do novo Código, porém, o legislador ressalvou expressamente a
possibilidade de alteração apenas da parcela vincenda da multa (art. 537, §
1º). Com esse preceito, a nosso entender, o NCPC excluiu a redução do
montante vencido, seja quando questionado pela parte ou mesmo quando a
iniciativa for do juiz. Parece-nos que a intenção da norma é compelir o
devedor a questionar logo a multa que ele considera excessiva, evitando
impugnações tardias, quando as astreintes já teriam se acumulado, sem
resistência alguma do obrigado. Muitas vezes é o próprio credor que provoca
a progressão da multa. É preciso, portanto, avaliar caso a caso a razão pela
qual as multas vencidas se acumularam, para que o art. 537, § 1º, seja
aplicado de forma justa e razoável.
90 Op. Cit., 2017, p. 184 91 Idem.
45
Como apontado, o intuito do legislador, ao acrescer a palavra “vincenda” ao texto
legal parece ser o de instigar o devedor a questionar a multa desde logo, caso a entenda
injusta. Nesse sentido, há um endosso de que, por uma perspectiva positivista, a alteração no
valor de multa cominatória já vencida seria impossível sob a vigência do Código de Processo
Civil de 2015.
Entretanto, ao afirmar que é necessária uma avaliação casuística, dado que muitas
vezes o acumulo das multas é produto da falta de diligência do credor, o autor deixa claro que
não se fecha à possibilidade de redução, ainda que já esteja vencida a multa.
A posição do doutrinador acerca do tema, então, é a de que ainda se pode alterar o
valor de uma multa já vencida, contudo, com maior rigidez.
Uma alternativa, averiguada na obra de Guilherme Rizzo Amaral92, produzida antes
do Código de Processo Civil de 2015, é a distinção entre “modificação” e “supressão”:
A modificação do valor unitário ou da periodicidade da multa não pode se
dar retroativamente. Assim, a insuficiência ou excesso do valor unitário da
multa vincenda somente pode ser revisado para o futuro. Caso se verifique o
excesso de multa que já incidiu, a hipótese é de supressão (ou exclusão,
como prevê o § 1.º), e não de modificação do valor ou periodicidade. A
supressão do crédito resultante da multa periódica, assim como a
modificação de seu valor e periodicidade, não ofende a coisa julgada
material.
O mesmo autor93, acompanhado de Fredie Didier Jr., Tereza Arruda Alvim Wambier
e Bruno Dantas, ressalta que, por vezes, é a inércia do credor que ocasiona a acumulação da
multa e que, nesses casos, torna-se mais vantajoso a ele que a obrigação não seja cumprida:
Há casos em que se evidencia que o interesse do autor não está no
cumprimento da decisão judicial, mas antes no seu descumprimento para que
possa auferir benefícios com a incidência da multa cominada. Como
exemplo, vale mencionar a situação em que dada empresa por longo período
descumpre a decisão judicial não por deliberação consciente, mas por
desorganização interna e desconhecimento de fato do mandado de intimação;
92 Op. Cit., 2010, 266 p. 93 AMARAL, Guilherme Rizzo; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo;
DANTAS, Bruno. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2015, p. 1409.
46
perdido em algum escaninho ou central de recebimento de correspondências,
tendo ainda o autor deixado de requerer nova intimação do réu para
cumprimento. Em situações como esta, devidamente demonstradas e
comprovadas, somadas à constatação de que o benefício econômico do réu é
muito inferior ao valor resultante da incidência da multa, pode o juiz
suprimir este último, ao menos parcialmente. Trata-se, contudo, de hipótese
extraordinária, não devendo tornar-se regra sob pena de cair em descrédito o
instituto das astreintes, enfraquecendo-se assim seu poder coercitivo.
Por certo em algumas ocasiões o que narra o doutrinador é verdade, entretanto, há de
se mencionar que, ao mesmo tempo em que o demandante não pode se valer de má-fé para
ver crescer quanto lhe é devido, o Poder Judiciário não tem a função de socorrer grandes
companhias por sua desorganização. De mais a mais, como enunciado pelo gaúcho, a força da
multa cominatória se situa no temor que o devedor tem de ter que adimplir com prestação
mais onerosa que a tutelada, pelo que a modificação de uma multa após o seu
descumprimento tem um potencial lesivo grande à eficácia da medida.
Mouzalas94 segue linha semelhante à de Guilherme Rizzo Amaral, afirmando que o
exame quanto ao valor e a proporcionalidade deve ser feito no momento da fixação da multa,
porém que, em observância à boa-fé processual, não se pode admitir a inércia do credor por
longo período visando exclusiva ou majoritariamente o acréscimo do valor da multa,
alterando seu interesse do cumprimento da obrigação original para o ganho monetário
advindo da multa cominatória. Ele vai além e adita que pode ocorrer de o credor, por sua
leniência, induzir o devedor ao erro ou dificultar o adimplemento e ou o cumprimento da
ordem judicial, conduta que só pode ser verificada em uma análise individualizada do caso
concreto.
Outro autor que compactua com a ideia de que a multa pode ser revista quando
alcançar valor demasiado alto é Fredie Didier Jr.95, que defende esta possibilidade em
hipótese excepcional. Conforme o autor, o ideal é que o controle do valor e da periodicidade
da multa se dê concomitantemente à sua incidência com eficácia para o futuro, todavia, assim
como sugere Humberto Theodoro Jr., ele defende, assim como Mouzalas, que se faz
necessário apreciar o caso concreto e, estando evidente o choque entre a vedação ao
enriquecimento sem causa e os princípios da efetividade da tutela jurisdicional, o juiz faça
uma ponderação e reduza a multa.
94 MOUZALAS, Rinaldo. Processo civil. Salvador: Jus Podivm, 2016, p. 668. 95 Op. Cit., 2016, p. 616.
47
Sobre a efetividade da tutela jurisdicional de que fala Fredie Didier Jr.96, cumpre
apontar seu ensinamento, de que os direitos, além de reconhecidos, devem ser efetivados:
Da cláusula geral do “devido processo legal” podem ser extraídos todos os
princípios que regem o direito processual. É dela, por exemplo, que se extrai
o princípio da efetividade: os direitos devem ser, além de reconhecidos,
efetivados. Processo devido é processo efetivo. O princípio da efetividade
garante o direito fundamental à tutela executiva que consiste “na exigência
de um sistema completo de tutela executiva, no qual existam meios
executivos capazes de proporcionar pronta e integral satisfação a qualquer
direito merecedor de tutela executiva”.
A essa lição, cabe somar a de Teori Zavascki97, que ressalta a importância de o
processo atingir um resultado prático, sobretudo porque o indivíduo abdica de buscar por seus
próprios meios a concretização do direito pretendido, acreditando que a tutela estatal será
capaz de satisfazê-lo:
Sob a denominação de direito à efetividade da jurisdição queremos aqui
designar o conjunto de direitos e garantias que a Constituição atribui ao
indivíduo que, impedido de fazer justiça por mão própria, provoca a
atividade jurisdicional para vindicar bem da vida de que se considera titular.
A este indivíduo devem ser, e são assegurados meios expeditos e, ademais,
eficazes, de exame da demanda trazida à apreciação do Estado. Eficazes, no
sentido de que devem ter aptidão de propiciar ao litigante vitorioso a
concretização ‘Tática da sua vitória’.
A ponderação que sugere Didier, dessa feita, que deve ser considerada, além da
inibição ao enriquecimento sem causa, que constitui um notável princípio do direito civil e
cuja base, consoante explanado anteriormente, é constitucional, a efetividade do processo.
Nesse sentido, sendo a multa cominatória um mecanismo de efetivação de um direito
consagrado pelo Poder Judiciário, seu enfraquecimento afeta sobremaneira a capacidade que o
Estado tem de fazer valer seu poder de tutela e a confiança dos cidadãos nesse poder.
E é por isso que o apontamento do festejado processualista, que indica uma
observação casuística para averiguar a possibilidade e a necessidade de redução do valor de
multa já vencida, deve ser entendido como uma hipótese remota, bastante restrita, utilizada
96 Op. Cit., 2012, p. 47. 97 ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 64.
48
quando forem identificados elementos que denotem a falta de idoneidade do credor e a falta
de culpa do devedor.
Por outro lado, há aqueles, como Hartmann98, que fazem duras críticas à alteração da
lei processual e afirmam que os tribunais devem adotar uma posição contra legem, mantendo
o entendimento forjado na vigência do anterior diploma processual cível, o Código Buzaid.
Para o autor, a previsão legal vai de encontro aos julgados já consolidados:
[...] de maneira inexplicável o CPC desprezou a jurisprudência pátria e
passou a prever, em norma própria (art. 537 § 1º), que o magistrado apenas
pode mudar a periodicidade da multa vincenda. Não faz sentido seguir esta
orientação, seja pelos argumentos supra, seja também porque o próprio CPC
impõe que os magistrados devem seguir os precedentes (art. 927). Uma
lástima, portanto, a constatação de que diante do insucesso da revisão desta
tese no próprio Poder Judiciário, se tenha optado por outro caminho menos
tortuoso, diretamente perante o Poder Legislativo. É para se refletir
realmente.
A severidade da crítica é marcante: tanto o teor da norma, que, segundo o
processualista, é equivocado, por desprestigiar a vedação do enriquecimento sem causa;
quanto a sua aplicação, que implica no desrespeito dos precedentes já constituídos, causa um
colapso de parte do sistema de precedentes.
Para o doutrinador, houve um equívoco no processo legislativo, que desconsiderou o
que, para ele, foram avanços pavimentados ao longo dos anos pela jurisprudência contra o
enriquecimento imotivado.
Ao mencionar o art. 927 do Código de Processo Civil99, ele também insinua que um
dos efeitos colaterais de se entender impossível a revisão de multa cominatória já vencida é a
98 HARTMANN, Rodolfo Kronemberg. Curso completo do novo processo civil. Rio de Janeiro: Impetus, 2016,
p. 579. 99 Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em
julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal
de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
§ 1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º, quando decidirem com
fundamento neste artigo.
§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá
ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir
para a rediscussão da tese.
49
violação da segurança jurídica, dado que o mesmo códex prestigia os precedentes e,
logicamente, não é possível, em uma interpretação literal da disposição do art. 537, § 1º,
respeitar os precedentes quanto ao tema.
Impossível deixar de notar, no entanto, que a censura do autor desconsidera o trauma
proveniente do entendimento erigido ao longo da vigência do Código Buzaid. Naturalmente,
permitir a revisão de altas somas após um longo decurso de tempo causa uma sensação de
segurança em relação ao descumprimento da obrigação, o devedor toma ciência de que a
multa será executada, mas só até um patamar, então a partir daquele momento, ele perde o
interesse em obedecer a decisão judicial. E isso também faz com que não exista interesse em
questionar desde logo a multa, estendendo a discussão no Poder Judiciário por mais tempo do
que seria necessário.
Além disso, a crítica quanto à inobservância dos precedentes forjados ao longo da
vigência do diploma processual civil anterior é válida, mas ignora que a novel legislação,
invariavelmente, apresenta modificações, e o faz com um propósito: o de alterar a maneira
como o direito é aplicado. Se o Código de Processo Civil passou a prever que a redução não
poderá ter efeitos retroativos, é porque o legislador possui razões para tanto, e certamente uma
das razões mais contundentes é justamente a maneira como o dispositivo vinha sendo
interpretado de modo amplo, pelo que
O que se observa, então, é que a doutrina posterior ao Código de Processo Civil de
2015, em linhas gerais, reconhece o intuito da lei em restringir a possibilidade de revisão do
valor de uma multa cominatória já vencida. A partir de uma análise positivista, dir-se-ia que a
revisão é impossível, porquanto a inserção do vocábulo “vincenda” no § 1º do art. 537 deixa
inequívoco o sentido estrito da norma.
A motivação é hialina: preservar a força de um mecanismo tão caro à efetivação das
decisões judiciais, à conversão da tutela jurisdicional em prática, tal qual do Poder Judiciário
como um todo.
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais
superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração
no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de
casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios
da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
§ 5º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e
divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
50
Inobstante, é certo que a possibilidade de enriquecimento imotivado proveniente do
acumulo excessivo das multas é causa de desvirtuação do mecanismo e não deve ser tolerado.
É por isso que boa parte dos autores compreende que, mesmo ante a previsão expressa do
Código de Processo Civil, a multa pode ser revista em situações excepcionais, quando ficar
evidente que o credor agiu de maneira negligente, furtando-se de atuar em conformidade com
o que preceitua a boa-fé.
O entendimento, contudo, é de que a modificação implica uma maior restrição ao uso
do poder conferido ao juiz para reduzir a multa, algo que não deve ser feito arbitrariamente,
mas com parcimônia e em atenção aos pormenores do caso concreto, sobretudo para suprimir
a segurança jurídica.
Embora a doutrina tenha mostrado uma evolução clara em relação ao que era
entendido antes do Código de Processo Civil de 2015, a jurisprudência, consoante será
doravante explanado, tende a progredir de maneira mais lenta, mostrando uma dificuldade em
acatar o comando da lei e a instrução doutrinária.
4. ABORDAGEM JURISPRUDENCIAL
A jurisprudência, no que diz respeito à possibilidade de redução de multa
cominatória já vencida, tem se mostrado mais lenta que a doutrina em relação às discussões
que abordam a problemática sob a perspectiva do Código de Processo Civil de 2015.
Durante a vigência do Código Buzaid, a jurisprudência era quase uníssona: há
possibilidade de redução e esta deve ocorrer quando se verificar que o valor acumulado das
multas é incompatível com a obrigação principal. O tema, em verdade, era pacífico no
Superior Tribunal de Justiça e os julgados que endossam essa posição existem aos montes:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
ALTERAÇÃO DO VALOR DA MULTA DIÁRIA. VALOR RAZOÁVEL.
AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A
redução da multa diária só é cabível quando fixada em montante
exagerado ou irrisório, o que não ocorreu no caso em apreço. No caso, o
valor da multa, por si só, não se mostra elevado, ante a capacidade de
solvência da agravante, sendo, ao mesmo tempo, o suficiente a compeli-la a
cumprir ordem judicial de não inscrição do nome do agravado em órgãos de
proteção ao crédito [...]. 2. O agravante não trouxe nenhum argumento novo
capaz de modificar as conclusões adotadas na decisão ora agravada, a qual se
mantém por seus próprios fundamentos. 3. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp 297.092/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 16/04/2013, DJe 19/04/2013) (grifei)
51
PROCESSO CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM
RECURSO ESPECIAL. INSCRIÇÃO DO NOME DA AUTORA NOS
ÓRGÃOS DE RESTRIÇÃO AO CRÉDITO. COMPROVAÇÃO DO ATO
ILÍCITO. AUSÊNCIADE PREQUESTIONAMENTO DO ART. 188 DO
CC/2002. SÚMULAS N. 282 E 356 DO STF. ANTECIPAÇÃO DE
TUTELA. ANÁLISE DOS REQUISITOS. IMPOSSIBILIDADE.
ASTREINTES. REDUÇÃO. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-
PROBATÓRIO DOS AUTOS. SÚMULA N. 7/STJ. [...] 3. É inviável, na
instância especial, revisar o valor das astreintes fixadas pelas instâncias
ordinárias, salvo nos casos em que este se mostrar ínfimo ou
exorbitante. Precedentes. [...] (AgRg no AREsp 257.495/MT, Rel. Ministro
ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em
23/04/2013, DJe 29/04/2013) (grifei)
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE
INDENIZAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL. MULTA
COMINATÓRIA. REVISÃO DO VALOR. 1. Admite a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça, excepcionalmente, em recurso especial,
reexaminar o valor fixado a título de multa cominatória, quando ínfimo
ou exagerado. Redução da multa para adequá-la aos parâmetros da
jurisprudência do STJ e aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
2. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no REsp
1.022.081/RN, Rel(a) Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, DJe de
13/10/2011) (grifei)
CIVIL E PROCESSUAL. AGRAVO REGIMENTAL. EXECUÇÃO.
MULTA. ALTERAÇÃO DE VALOR ABSURDO. AGRAVO
IMPROVIDO. I. Esta Corte já firmou o entendimento de que a multa
pelo descumprimento de decisão judicial deve e pode ser alterada
quando fixada, na origem, em valor excessivo ou insuficiente (Artigo
461, § 6º, do Código de Processo Civil). II. Agravo improvido. (AgRg no
Ag 1032856/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA
TURMA, julgado em 17/09/2009, DJe 13/10/2009) (grifei)
Aqui cabe um adendo para salientar que, como salientado em algumas das ementas
colacionadas, em regra, o valor não poderia ser revisto pela Corte da Cidadania, mas não pela
preclusão, e sim porque, considerando que a avaliação quanto ao excesso ou falta de multa
dependeria do caso concreto e o Superior Tribunal de Justiça não realiza reexame de matéria
fático-probatória, não poderia aquela Corte analisar a matéria.
Contudo, o combate ao enriquecimento sem causa é tão presente na jurisprudência
que se mostra capaz de suprimir as restrições de acesso às instâncias superiores. Assim, a
revisão era admitida nas cortes de superposição apenas quando o valor se mostrava
demasiadamente alto. O entendimento, todavia, é claro no sentido de que a revisão do valor
52
de uma multa cominatória já vencida não encontrava óbice algum na norma processual, como
fica mais claro nos seguintes julgados:
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO
ESPECIAL. PROPÓSITO INFRINGENTE. RECEBIMENTO COMO
AGRAVO REGIMENTAL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MULTA
DIÁRIA. ASTREINTES. VALOR. EXCESSO. RAZOABILIDADE.
PROPORCIONALIDADE. POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO.
PREQUESTIONAMENTO IMPLÍCITO. ADMISSÃO. I. A multa por
descumprimento de decisão judicial não pode ensejar o enriquecimento
sem justa causa da parte a quem favorece, devendo ser reduzida a
patamares razoáveis. [...] III. Embargos de declaração recebidos como
agravo regimental, sendo negado provimento a este. (AgRg no REsp
1.041.518/DF, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, DJe de
25/03/2011) (grifei)
Do inteiro teor da monocrática que ensejou este agravo é possível colher o seguinte
excerto, fundamental à compreensão do tema:
O valor das astreintes deve encontrar limitação na razoabilidade e
proporcionalidade porque o seu objetivo é o cumprimento do decisum e não
o enriquecimento sem causa da parte. Na realidade, a imposição de multa
diária vem sendo comumente aplicada de forma tão onerosa a ponto de em
inúmeros casos passar a ser mais vantajoso para a parte ver o seu pedido não
atendido para fruir de valores crescentes.
Nota-se, pois, que havia na jurisprudência uma preocupação em não tornar
excessivamente vantajosa ao credor a incidência da multa, o que se entende, afinal, como
tratado anteriormente, em uma série de situações, a inércia do credor é fundamental para o
não cumprimento da obrigação, algo que acaba por desvirtuar o instituto, como disse
Mouzalas100.
Continuando com a análise da jurisprudência confeccionada ao longo do Código
Buzaid, vê-se que o entendimento era no sentido de que a multa cominatória não fazia coisa
julgada, mesmo após decorrido o lapso temporal que tradicionalmente seria o adequado para
sua impugnação, sob a justificativa de evitar um ganho desarrazoado de patrimônio ao
demandante:
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AGRAVO
DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE OBSTA RECURSO ESPECIAL.
100 Op. Cit., 2016, p. 668.
53
CONTRADIÇÃO NÃO CONFIGURADA. PROPÓSITO INFRINGENTE.
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO
REGIMENTAL. OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. EXECUÇÃO DE
MULTA DIÁRIA. VALOR EXCESSIVO. REDUÇÃO E LIMITAÇÃO DO
VALOR. POSSIBILIDADE. I. É possível a redução das astreintes, sem
importar em ofensa à coisa julgada, fixadas fora dos parâmetros de
razoabilidade e proporcionalidade ou quando se tornar exorbitante,
limitando-se o total devido a tal título, para evitar o enriquecimento
ilícito. II. O objetivo das astreintes é o cumprimento do decisum e não o
enriquecimento da parte. III. Embargos de declaração recebidos como
agravo regimental, sendo negado provimento a este. (AgRg no Ag
1257122/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA
TURMA, julgado em 02/09/2010, DJe 17/09/2010) (grifei)
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE
INSTRUMENTO. ASTREINTES. REDUÇÃO. POSSIBILIDADE. COISA
JULGADA. PRECLUSÃO. INEXISTÊNCIA. 1. A multa imposta com
base no art. 461 do CPC, quando considerada exorbitante ou
insuficiente, pode ser modificada pelo juiz a qualquer tempo, já que não
faz coisa julgada material, hipótese, portanto, em que não se opera a
preclusão. 2. Agravo regimental desprovido. (AgRg no Ag 1.144.150/GO,
Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJe de 31/03/2011) (grifei)
RECURSO ESPECIAL. ASTREINTES. REDUÇÃO. POSSIBILIDADE. 1 -
A multa decorrente de desatendimento à proibição judicial de inscrição do
nome do devedor em órgão de proteção ao crédito, enquanto pendente
discussão acerca do real valor da dívida, quando exorbitante ou insuficiente
pode, conforme o caso, ser reduzida ou aumentada. 2 - Nestes casos, não há
trânsito em julgado da sentença, a teor do disposto no art. 461, § 6º, do
Código de Processo Civil, e para evitar, como na espécie, o
enriquecimento sem causa. 3 - Precedente do Superior Tribunal de Justiça.
4 - Recurso especial não conhecido. (4ª Turma, REsp n. 785.053/BA, Rel.
Min. Fernando Gonçalves, unânime, DJU 29.10.2007) (grifei)
De fato, o § 6º do art. 461 do Código Buzaid era bastante amplo e dava azo a este
entendimento, de modo que se pode dizer a inibição ao enriquecimento sem causa estava
insculpida naquele dispositivo.
A posição, então, era a de que a multa cominatória, mesmo vencida, não configurava
crédito, de modo que seu questionamento poderia ser feito a qualquer tempo e, mesmo sem
que houvesse questionamento, o juiz, de ofício, poderia alterar o valor da multa.
Com a entrada em vigor da nova legislação, contudo, a posição se manteve incólume,
sem que haja o enfrentamento da matéria no que diz respeito à alteração do texto legal:
54
AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO
RECURSO ESPECIAL. REDUÇÃO DO VALOR DA MULTA POR
DESCUMPRIMENTO JUDICIAL. RAZOABILIDADE E
PROPORCIONALIDADE. 1. Prevalece, no âmbito do Superior Tribunal
de Justiça, orientação jurisprudencial segundo a qual a multa
cominatória deve ser fixada em valor razoável e proporcional, podendo
ser revista em qualquer fase do processo, até mesmo após o trânsito em
julgado, de modo a evitar o enriquecimento sem causa de uma das
partes. 2. Agravo interno não provido. (AgInt nos EDcl no REsp n.
1.406.369. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão) (grifei)
Do inteiro teor do julgado elencado acima, colhe-se o seguinte:
Nesse diapasão, quanto ao valor das astreintes, faz-se mister ressair que
realmente se apresenta excessivo à vista dos precedentes desta Corte. De
fato, prevalece, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, orientação
jurisprudencial segundo a qual a multa cominatória deve ser fixada em valor
razoável e proporcional, de modo a evitar o enriquecimento sem causa de
uma das partes, podendo ser revista em qualquer fase do processo, até
mesmo após o trânsito em julgado.
Se mostra importante, todavia, ressaltar que a orientação jurisprudencial à qual faz
menção o decisum foi constituída enquanto o Código Buzaid comandava o processo civil
tupiniquim e, naquele códex, o dispositivo que tratava da multa cominatória era mais amplo,
dando mais poderes ao juiz do que o atual.
Ainda é possível notar que já existem julgados que mencionam o novo dispositivo,
sem, entretanto, realizar uma análise de quais as implicações da alteração na lei:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
ASTREINTES. ENTENDIMENTO ESTADUAL NO SENTIDO DA
NECESSIDADE DE REDUÇÃO DO VALOR EXECUTADO.
MONTANTE DESPROPORCIONAL. CONCLUSÃO FUNDADA EM
FATOS E PROVAS. SÚMULA 7/STJ. POSSIBILIDADE DE REVISÃO
DA MULTA. SÚMULA 83/STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou o
entendimento de que o art. 461 do Código de Processo Civil de 1973
(correspondente ao art. 537 do novo CPC) permite ao magistrado, de
ofício ou a requerimento da parte, afastar ou alterar o valor da multa
quando este se tornar insuficiente ou excessivo, mesmo depois de
transitada em julgado a sentença, não havendo espaço para falar em
preclusão ou em ofensa à coisa julgada (Súmula 83/STJ). 2. A redução da
multa foi feita com base na apreciação fático-probatória da causa, porquanto
a segunda instância entendeu como elevada a quantia executada. Essa
conclusão atrai a aplicação da Súmula 7/STJ. 3. Agravo interno desprovido.
(AgInt no AREsp 1354776/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO
BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/02/2019, DJe 13/03/2019)
(grifei)
55
AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO
AGRAVO (ART. 544 DO CPC/73) - AUTOS DE AGRAVO DE
INSTRUMENTO NA ORIGEM - IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO
DE SENTENÇA - ASTREINTES - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE
DEU PROVIMENTO AO RECLAMO DA PARTE ADVERSA PARA
AFASTAR A COBRANÇA DA MULTA COMINATÓRIA.
INSURGÊNCIA DA EXEQUENTE/AGRAVADA. 1. A jurisprudência
desta Corte Superior é firme no sentido de ser inviável a imposição de
astreintes na exibição incidental de documento, porquanto submete-se a
procedimento específico (arts. 355-363 do CPC/73), o qual prevê solução
adequada à questão probatória, com eventual admissão da veracidade dos
fatos que, por meio do documento, a parte pretendia provar, conforme artigo
359 do Código de Processo Civil/73. 2. A jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o artigo 461 do
Código de Processo Civil de 1973 (correspondente ao art. 537 do NCPC)
permite ao magistrado, de ofício ou a requerimento da parte, afastar ou
alterar o valor da multa quando este se tornar insuficiente ou excessivo,
mesmo depois de transitada em julgado a sentença, não havendo espaço
para falar em preclusão ou em ofensa à coisa julgada. Precedentes. 3.
Agravo regimental desprovido. (AgRg nos EDcl no AREsp 361.371/MG,
Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em
07/06/2018, DJe 19/06/2018) (grifei)
Isso mostra que ainda não há, na Corte da Cidadania, um enfrentamento da questão,
dado que os precedentes de outrora continuam a fundamentar as decisões, mesmo existindo
uma mudança importante na legislação, cujo impacto já foi reconhecido pela doutrina.
Nas instâncias ordinárias, por outro lado, é possível vislumbrar uma série de decisões
que, à luz do Código de Processo Civil de 2015, reputam impossível a redução do valor de
multa cominatória já vencida:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA.
REDUÇÃO DE ASTREINTE FIXADA ANTERIORMENTE (VENCIDA).
IMPOSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 537, § 1º DO
CPC/2015. 1 - O instituto das astreintes visa dar efetividade às decisões
judiciais que estabelecem obrigações de fazer ou não fazer, de modo a
infundir verdadeiro temor no devedor, que, temeroso das consequências de
sua inércia, acaba por cumprir a obrigação imposta, ou assim deveria agir. 2
- Em que pese entendimento amparado no CPC/73, sufragado pelos
Tribunais, inclusive do STJ, quanto à possibilidade de redução do valor
das astreintes, quando considerada elevada, o novel Código de Processo
Civil, prevê, em seu artigo 537, § 1º, que ao Juiz não mais será lícito a
redução do valor da multa que já se aperfeiçoou, ou seja, VENCIDA,
sendo possível alterar, a pedido da parte ou de ofício, apenas em relação
as VINCENDAS. AGRAVO CONHECIDO E PROVIDO. (TJGO – AI nº
56
5305192.31.2017.8.09.0000, 6ª Câmara Cível., rel. Wilson Safatle Faiad)
(grifei)
Como destacado, a decisão menciona o entendimento erigido no Superior Tribunal
de Justiça, ainda sob a égide do Código Buzaid, e argumenta que a inclusão do termo
“vincenda” representa um aperfeiçoamento do mecanismo, que lhe confere mais eficácia.
Mais adiante, a decisão ainda ressalta a importância desse entendimento para a
conservação da pressão que a multa exerce sobre o devedor:
A quem não quiser, de qualquer forma, pagar o valor das multas
estabelecidas, impedindo que atinjam altas cifras, restam dois caminhos:
buscar a reversão de sua fixação, demonstrando a impossibilidade ou ao
menos a dificuldade exacerbada em seu cumprimento; ou, simplificando a
ação, e cumprindo a finalidade da lei, com o simples cumprimento da
obrigação imposta.
Vê-se que o julgado, diferente daqueles do Tribunal Cidadão, aborda a problemática
de maneira direta, pois considera que o devedor possui meios para evitar o crescimento
desenfreado do valor devido a título de multa, seja pelo questionamento oportuno, quando de
seu arbitramento, seja pelo cumprimento da ordem judicial, de maneira que não seria função
do Poder Judiciário protege-lo.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, também, emanou decisões que esposam
entendimento semelhante, ao passo em que levam em conta a alteração do Código de
Processo Civil para entoar a inalterabilidade de multa cominatória já vencida:
AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. SEGURO. VEÍCULO. ROUBO.
TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE. IMPOSSIBILIDADE
ENQUANTO NÃO LOCALIZADO. APÓS A RECUPERAÇÃO, A
TRANSFERÊNCIA DEVE OCORRER NO PRAZO DE TRINTA DIAS.
MULTA DIÁRIA. POSSIBILIDADE. REDUÇÃO DE VALOR.
AUSÊNCIA DE EFEITO RETROATIVO. INEXISTÊNCIA DE MULTA
VINCENDA. [...] III. De outro lado, é adequada a cominação de multa diária
para assegurar o cumprimento da ordem judicial, na forma dos arts. 536 e
537, caput, do CPC/2015. IV. No que tange ao valor da multa diária, o §
1° do art. 537 do CPC prevê que o Juiz poderá, de ofício ou a
requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda
ou excluí-la. O aludido dispositivo demonstra caráter futuro, de maneira
que o Magistrado somente pode alterar ou excluir a multa vincenda,
inexistindo efeito retroativo quanto à multa já vencida. Então,
considerando que a multa arbitrada encontra-se em sua totalidade vencida,
não existindo qualquer parcela vincenda diante do cumprimento da
obrigação, descabida a revisão do valor pretendida. Outrossim, restou
estritamente observada a Súmula 410, do STJ. [...] APELAÇÃO
57
DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70075363028, Quinta Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge André Pereira Gailhard, Julgado
em 29/11/2017) (grifei)
No voto que motivou essa decisão, é perceptível o viés positivista, na medida há
destaque para o fato de que “o aludido dispositivo demonstra caráter futuro, de maneira que o
magistrado somente pode alterar ou excluir a multa vincenda, inexistindo efeito retroativo
quanto à multa já vencida”.
Ainda no sentido de que a lei deve ser analisada de maneira restrita, há também o
seguinte precedente:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. FASE DE CUMPRIMENTO DA
SENTENÇA. COBRANÇA DE MULTA (ASTREINTE). IMPUGNAÇÃO.
ACOLHIMENTO PARCIAL. REDUÇÃO DO VALOR. 1. A possibilidade
de o juiz excluir a multa, modificar a periodicidade ou o valor quando ela se
torna insuficiente ou excessiva, podendo inclusive agir de ofício (CPC/1973,
§ 6º; CPC/2015, art. 537, § 1º), se exaure com o cumprimento da obrigação.
O § 1º do art. 537 do novo Código chega a ser explícito quando refere
multa vincenda, o que demonstra o caráter futuro, portanto, exclui o
efeito retroativo. Precedentes. 2. (...). 4. Recurso provido. (Agravo de
Instrumento Nº 70069449353, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 31/08/2016) (grifei)
Em outro julgado, aquela Corte volta a frisar que não se pode conferir efeito
retroativo à redução em tela:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. UNIÃO ESTÁVEL. CUMPRIMENTO
DE SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DE ACORDO. ASTREINTES.
FIXAÇÃO DE MULTA APÓS NÃO CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
NO PRAZO OUTORGADO PELO JUÍZO. REDUÇÃO DE VALOR QUE
NÃO TEM EFEITO RETROATIVO. POSSIBILIDADE DE PEDIDO DE
CUMPRIMENTO PROVISÓRIO DA MULTA. 1. O § 1º do art. 537 do
CPC/15 prevê a possibilidade de o juiz, mesmo de ofício, reduzir o valor
da multa vincenda, de modo que não se cogita de efeito retroativo à
decisão que redimensiona o valor da multa diária de R$ 250,00 para R$
100,00. 2. A multa deve ser revertida ao credor da obrigação, sendo meio de
compensá-lo pela demora a que foi submetido quanto ao cumprimento, e,
tomada a previsão expressa do § 3º do art. 537 do CPC/15 cabível a
execução provisória. Impõe-se, assim, reformar a decisão agravada também
na parte em que dispõe que as multas só poderão ser exigidas em processo
de execução autônomo, após ultimado o feito. DERAM PROVIMENTO.
UNÂNIME. (Agravo de Instrumento Nº 70070540901, Oitava Câmara
58
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado
em 27/10/2016) (grifei)
Mais próximo à Linha do Equador, o Tribunal de Justiça do Estado do Pernambuco é
outro que possui precedentes avançados em relação ao tema, que corroboram com a tese de
que se mostra impossível a redução de multa cominatória já vencida segundo o Código de
Processo Civil de 2015:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE PRÉEXECUTIVIDADE
NO CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE SENTENÇA. ASTREINTES.
PLEITO DE REDUÇÃO DO VALOR. IMPOSSIBILIDADE DE
ALTERAÇÃO DE ASTREINTES PRETÉRITAS. HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS SOBRE AS ASTREINTES. INCIDÊNCIA.
HONORÁRIOS RECURSAIS. IMPOSSIBILIDADE DE MAJORAÇÃO.
RECURSO IMPROVIDO. 1. É possível a revisão do valor das astreintes, em
observância ao princípio da proporcionalidade e razoabilidade, nos termos
do artigo 537, § 1º, do CPC/15 (correspondente ao artigo 461, § 6º do
CPC/73), inclusive para evitar o enriquecimento indevido do exeqüente. 2.
No caso, a redução do valor imposto a título de astreintes seria
permitida apenas com eficácia ex nunc, inatacáveis as multas já
vencidas. Apenas as vincendas se sujeitariam, segundo a literalidade do
artigo 537, § 1º, do CPC/15, a alteração ou exclusão. 3. As astreintes
compõem o decreto condenatório, portanto, os honorários advocatícios
fixados na fase de cumprimento de sentença incidem sobre a referida
multa.4. Interpretando sistematicamente o § 11 do art. 85 c/c o §1º do art.
523, ambos do CPC/15, entendo, no caso em concreto, não ser possível
condenar o Agravante em honorários advocatícios recursais, porquanto a
parte Agravada já alcançou o percentual máximo de 10% fixado pela
Magistrada de piso, ao decidir a exceção de pré-executividade objeto do
presente agravo. 5. Agravo improvido. (Agravo 441082-60006584-
79.2016.8.17.0000, Rel. Agenor Ferreira de Lima Filho, 5ª Câmara Cível,
julgado em 15/02/2017, DJe 13/03/2017) (grifei)
No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é igualmente possível encontrar
precedentes que acompanham esta linha de raciocínio, com destaque para o seguinte, de
lavratura do Desembargador Alexandre Antônio Franco Freitas Câmara, entusiasta do tema:
EXECUÇÃO DE ASTREINTES. MULTA VENCIDA.
IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO. PARÂMETRO HERMENÊUTICO.
CPC DE 2015. Direito processual civil. Execução de astreintes. Pretensão de
exclusão da multa por já ter sido cumprida a obrigação que se rejeita, uma
vez que o cumprimento se deu com atraso. Impossibilidade de redução da
multa já vencida. Vedação a que o órgão jurisdicional, reduzindo a
multa, viole direito adquirido do credor ao recebimento do valor
referente à multa que já se venceu. Fixação da multa que se dá rebus sic
stantibus, só podendo haver modificação do seu valor para o futuro e no caso
de haver alguma modificação das circunstâncias existentes ao tempo da
59
determinação de seu valor. [...] (TJRJ, AI 0024419-60.2015.8.19.0000 – Rel.
Des. ALEXANDRE ANTÔNIO FRANCO FREITAS CÂMARA –
Julgamento: 18/08/2015 – SEGUNDA CÂMARA CÍVEL)
Na fundamentação, se percebe um questionamento pertinente, acerca da
interpretação que se dá à norma:
Deve-se dizer, então, que preocupa, sobremaneira, uma tendência
manifestada na jurisprudência acerca da interpretação do dispositivo legal
que autoriza o juiz a reduzir a multa tradicionalmente conhecida como
astreinte. Deve-se considerar que tal interpretação contraria uma ideia
básica: a de que toda interpretação deve ser feita de forma a compatibilizar a
norma interpretada com o sistema jurídico em que se insere. A atual
tendência da jurisprudência acerca do assunto, data vênia, é a de promover
uma interpretação assistemática e que, por isso, acaba por contrariar o ideal
de efetividade do processo.
De fato, afigura-se paradoxal que o mecanismo, cuja razão de ser é justamente
compelir o devedor ao cumprimento de ordem judicial, seja invocado para revisar o valor da
dita multa, afinal, uma vez que a ideia é atuar na esfera psicológica do ordenado, oferecendo-
o, como alternativa, uma prestação mais onerosa que a original, permitir que essa prestação,
que por conceito deve ser mais onerosa, seja revista e torne-se menos onerosa, atua
diretamente contra o efeito pretendido com a fixação da multa. O ideal é que nunca seja
preciso executar uma multa cominatória, que todas as ordens judiciais sejam cumpridas, mas,
não sendo esse o caso, é necessário mostrar ao devedor que sua atitude lhe confere
consequências nefastas, tal qual enuncia o voto na sequência:
Pois é neste contexto que se manifesta a importância da astreinte e, mais
genericamente, dos meios de coerção. É que com a pressão psicológica
exercida pelo meio coercitivo, o Estado-juiz obtém (ou, pelo menos, pode
obter) mais rapidamente e com menos custo o resultado prático que se
poderia obter com meios de sub-rogação. Basta pensar, para se verificar o
acerto dessa afirmação, nos bons resultados práticos que historicamente se
têm produzido em razão da prisão do devedor inescusável de alimentos,
outro meio coercitivo.
Posteriormente, ele é enfático ao criticar a possibilidade de supressão de um crédito
constituído por decisão judicial:
60
É certo que os direitos adquiridos não podem ser suprimidos nem mesmo por
Emenda Constitucional. Neste sentido, por exemplo, pode-se trazer à
colação precisa lição de talentoso constitucionalista do Rio de Janeiro:
“Sem embargo da opinião de alguns dos mais prestigiados doutrinadores,
considerando que as garantias individuais são imodificáveis pela reforma
constitucional, em conformidade com o art. 60, § 4º, inc. IV, assim como o
direito adquirido consiste em garantia individual, em consonância com o art.
5º, XXXVI, ambos da CRFB, temos o entendimento de que é admissível a
alegação de direito adquirido em face de normas constitucionais derivadas,
vez que a emenda e a revisão constitucionais não podem ofender os direitos
adquiridos”.
Ora, se nem por Emenda à Constituição é possível suprimir-se um direito
adquirido, como aceitar que tal supressão se dê através de decisão judicial?
Isto constituiria verdadeiro absurdo.
Outro aspecto das decisões que reduzem o valor de multa já vencida muito criticado
foi a revelação de que há uma preocupação maior com o enriquecimento sem causa que com a
força das decisões do Poder Judiciário:
Ora, no caso que aqui se examina um ponto é certo: o enriquecimento do
credor que eventualmente ocorra não é sem causa. Trata-se de
enriquecimento com causa. Afinal, o enriquecimento do credor, aqui, é
causado pela demora do devedor em efetivar o comando contido na sentença
judicial. O enriquecimento, então, é consequência de uma previsão contida
em um provimento judicial. Há, assim, um meio válido, um adequado título
jurídico, que fundamenta o enriquecimento. Inadmissível, portanto, que se
lhe considere ilícito.
As críticas todas são válidas, porém é preciso reconhecer que há, por certo, um
problema relacionado à interpretação do § 1º do art. 537. Ao mesmo tempo em que a
conservação da força de multa cominatória deve ser prioridade para os tribunais, o
ordenamento jurídico brasileiro prevê a inibição ao enriquecimento imotivado e cabe ao Poder
Judiciário combate-lo.
Nessa toada, se mostra necessário buscar por soluções para que nenhum dos aspectos
seja negligenciado e, nesse diapasão, uma hipótese que se mostra promissora é a estipulação,
na ocasião da fixação da multa, de um prazo para sua incidência, sem prejuízo à fixação de
uma nova multa ou da determinação de que ela volte a incidir no futuro.
Neste cenário, o julgador avalia, com base na obrigação a ser cumprida, um prazo
razoável para que a multa incidisse, já considerando o quanto ela representaria caso o devedor
não cumpra com a determinação.
Tem-se que, com isso, não haveria possibilidade de o credor manter-se inerte para
ver aumentar o montante que lhe é devido, pois, ao menos a partir de um certo marco, seu
61
crédito não mais cresceria. Ao mesmo tempo, a multa não perderia sua força de coerção, ao
contrário, uma vez que quando a fixou o magistrado já considerou qual o valor final que ela
poderia alcançar, não há que se falar em excesso ou abuso.
Dessa feita, o devedor seria compelido a cumprir a determinação ou discutir desde
logo a multa arbitrada, sob pena de deixar precluir esse direito.
Insta mencionar, novamente, que essa solução não implicaria a impossibilidade de
imposição de nova multa periódica, que, inclusive, tende a ser maior que a anterior, a qual
teria se mostrado insuficiente.
O efeito prático disso é que o julgador passaria a, periodicamente, realizar um
escrutínio da multa, pelo que ela, se continuasse a crescer, o faria sob o olhar atento do juiz.
Em tese, essa revisão é possível pela determinação do art. 537, § 1º, I, do Código de Processo
Civil, contudo, por conta da alta demanda que o Poder Judiciário enfrenta, esse
acompanhamento se mostra inviável.
Uma mazela dessa sugestão é que, no período que compreende o término do prazo
estipulado pelo juiz para que a multa continuasse incidindo e a nova determinação, não
haveria incentivo para que o devedor cumprisse a ordem, posto que a multa já vencida seria
exigível de qualquer maneiro e, até nova movimentação processual, não haveria prejuízo em
seguir negligenciando o comando do juízo.
Outro ponto que pode derrubar a ideia é o § 4º do art. 537, que determina
expressamente: “a multa será devida desde o dia em que se configurar o descumprimento da
decisão e incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado”.
Cabe apontar, entretanto, que como demonstrado anteriormente, o comando expresso
do Código de Processo Civil é suprimido nas instâncias especiais quando os valores se
mostram demasiadamente elevados. Portanto, é mais prudente (e eficaz), tanto para garantir o
cumprimento da obrigação quanto para evitar o enfraquecimento do mecanismo e o
enriquecimento sem causa, relativizar o conteúdo do § 4º, possibilitando a fixação de um
prazo certo para a incidência da multa, após o qual será necessária nova análise por parte do
magistrado.
E é possível encontrar na jurisprudência precedentes que façam a aplicação dessa
solução, o Tribunal de Justiça do Acre é um exemplo:
62
DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO PROCESSUAL CIVIL.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO À SAÚDE. DEVER DO
ESTADO. PROCEDIMENTO CIRÚRGICO. OBRIGAÇÃO DE FAZER.
MULTA DIÁRIA IMPOSTA AO PODER PÚBLICO. ADEQUAÇÃO E
PROPORCIONALIDADE DA MEDIDA COERCITIVA. LIMITAÇÃO DA
PERIODICIDADE DAS ASTREINTES. PROCEDENTE. DILAÇÃO DO
PRAZO PARA CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO. REJEITADO.
RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Consoante a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça, as astreintes são instrumento processual
adequado para coagir a Fazenda Pública ao cumprimento de obrigações de
fazer, especialmente para garantir a efetividade de determinações judiciais
na área da saúde. 2. Não há como taxar excessivo o valor do dia-multa, ainda
mais a considerar a importância do bem jurídico tutelado na origem, bem
como o fato de ser recorrente a fixação de valores até maiores em sede de
demandas de saúde no âmbito deste Sodalício. 3. Faz-se necessária a
limitação da incidência das astreintes a 30 (trinta) dias, a fim de se
evitar o acúmulo desproporcional da medida, sem prejuízo de eventuais
majorações, a serem definidas pelo juízo a quo, decorrentes de eventual
recalcitrância. 4. Ainda que, a aquisição de insumos para a realização da
cirurgia determinada na decisão vergastada implique na realização de
trâmites burocráticos necessários à garantia da legalidade do procedimento
administrativo, o prazo de 60 (sessenta) dias não se mostra exíguo. Agravo
de instrumento parcialmente provido. (TJ-AC – AI 1002604-
02.2018.8.01.0900, 1º Câmara Cível, Rel. Laudivon Nogueira, DJe
13/03/2019)
A decisão é cirúrgica: combate o enriquecimento ilícito e garante a eficácia da
medida.
Certamente as instâncias extraordinárias ainda precisarão debruçar-se sobre a
questão, vez que ainda não enfrentaram a problemática advinda da modificação da lei. E é
possível vislumbrar nas instâncias ordinárias uma presença cada vez maior do entendimento
de que a modificação no texto legal deve acarretar uma mudança no posicionamento
jurisprudencial.
Inobstante, é impossível deixar de notar que existe um conflito entre princípios do
direito e que, a fim de preservar da melhor maneira possível o interesse da sociedade, dos
credores, dos devedores e do Poder Judiciário, é preciso buscar alternativas, sendo uma delas
a imposição de prazo para a incidência da multa cominatória.
63
5 CONCLUSÃO
A elaboração do presente trabalho permitiu uma análise da doutrina e da
jurisprudência nacional quanto à possibilidade de redução do valor de uma multa cominatória
já vencida, assim como uma visão acerca da existência de posições conflitantes, tanto na
doutrina quanto na jurisprudência.
A partir disso foi possível averiguar quais as principais motivações para aqueles que
advogam em favor da possibilidade e para aqueles que advogam contra ela e, por conseguinte,
obter uma compreensão da complexa situação do mecanismo dentro do ordenamento jurídico
brasileiro, com correntes divergentes, teorias opostas e até mesmo julgados contraditórios.
A principal hipótese, que norteou a pesquisa, é a de que a inclusão do termo
“vincenda” à redação do dispositivo que trata da multa cominatória faz com que o magistrado
tenha ingerência apenas sobre as multas ainda por vencer, o que encontra supedâneo no
posicionamento de diversos autores e cortes, principalmente com vistas à conservação da
força do instituto.
Ao mesmo tempo, restou evidenciado que a posição contrária é embasada em
princípios que norteiam o direito tupiniquim, com respaldo constitucional e uma série de
precedentes nas cortes superiores.
Dessa maneira, ao observar o resultado da pesquisa, pode se dizer que a possibilidade
ou impossibilidade de redução no valor de multa cominatória já vencida ainda não está
solidificada no ordenamento brasileiro. Apesar de ser clara a existência de um movimento que
reconhece a necessidade de uma alteração no entendimento vigente, sob pena de se condenar
um mecanismo tão caro ao Poder Judiciário, não é possível saber, neste momento, quais serão
os rumos que as instâncias especiais seguirão nos próximos anos.
Paralelamente, foi possível observar uma solução ao caso, que preserva tanto a força
coercitiva da multa cominatória quanto a inibição do enriquecimento imotivado. Trata-se da
imposição de prazo para a incidência da multa, sem prejuízo à fixação de nova cominação no
futuro.
A solução, embora aplicada em alguma medida, carece de um maior
desenvolvimento, sobretudo porque contraria o que está expressamente disposto no art. 537, §
4º do Código de Processo Civil. Não deixa, contudo, de surtir o efeito desejado e mostrar que
64
existe alternativa, não é preciso suprimir a força da multa cominatória e tampouco colaborar
com o ganho desarrazoado de patrimônio proveniente de seu acúmulo em excesso.
65
REFERÊNCIAS
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Revista dos Tribunais, 2000.
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Livraria do Advogado, 2004.
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Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
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______. Manual do processo de execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1954.
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del1608.htm>. Acesso em 3 de
junho de 2019.
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