UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUÍSTICA APLICADA
Flávia Ferreira Lopes da Costa
CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ESCOLAS DE SAMBA EM SAMBAS-EXALTAÇÃO:
UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA
Natal ‒ RN
2018
Flávia Ferreira Lopes da Costa
CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ESCOLAS DE SAMBA EM SAMBAS-EXALTAÇÃO:
UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL),
da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como exigência parcial para a obtenção do
título de Mestre em Estudos da Linguagem na
área de concentração Linguística Aplicada.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marília Varella Bezerra
de Faria
Natal ‒ RN
2018
Flávia Ferreira Lopes da Costa
CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ESCOLAS DE SAMBA EM SAMBAS-
EXALTAÇÃO: UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL),
da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como exigência parcial para a obtenção do
título de Mestre em Estudos da Linguagem e
aprovada pela seguinte banca examinadora:
_________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Marília Varella Bezerra de Faria (Orientadora − Presidente)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Gilvando Alves de Oliveira (Examinador Externo)
Instituto Federal do Rio Grande do Norte
_________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves (Examinadora Interna)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Natal − RN
AGRADECIMENTOS
Minha gratidão absoluta a Deus, por me dar força, saúde e energia para concluir esta
pesquisa sem fraquejar ante as dificuldades de percurso.
Ao meu marido, companheiro de todas as horas, que vivenciou comigo todo este
processo, por sua paciência e compreensão plena neste momento de travessia.
À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Marília Varella Bezerra de Faria, exemplar profissional,
que, em sua generosidade ímpar, me orientou com dedicação e competência intelectual, tornando
bem mais fácil palmear o caminho.
À Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves, por acolher-me em seu grupo de estudos (aos
sábados), dando-me a oportunidade de partilhar saberes e refletir melhor sobre meu objeto de
estudo.
À Prof.ª Dr.ª Maria Bernadete Fernandes de Oliveira, que se fez presente, neste estudo,
com sua inesgotável sapiência sobre o Círculo de Bakhtin.
A Anne Michelle, que, além de me “presentear” com sua preciosa amizade, me animou
na caminhada com sua alegria contagiante.
A Diana Mendonça, amiga e companheira de todas as horas, que, com sua constante
presença, seus bons papos regados a cafés e crepes, seus conselhos e suas reflexões sobre a vida
e sobre nossas pesquisas, imprimiu leveza à jornada.
A Magda Renata, que, com sua grande generosidade, me recebeu de braços abertos, desde
o início, sempre me aconselhando, orientando, motivando e, principalmente, sendo uma grande
e fiel amiga.
A minha família que, mesmo longe, sempre me apoiou e torceu para o meu sucesso.
Aos amigos: Cíntia, Artur e Marcelle, pela amizade construída neste feliz encontro, em
que partilhamos saberes e vidas.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
RESUMO
Há mais de um século, o desfile das escolas de samba continua surpreendendo o grande público,
resistindo às cobranças, à mercantilização da cultura e às infindáveis mudanças em sua estrutura
organizacional. Assim como qualquer outra instituição cultural, as escolas de samba passam por
constantes transformações para se adequar à nova realidade e às exigências do público, que deseja
sempre ser surpreendido por um grande espetáculo. Diante da proporção que a festa carnavalesca
tomou e de todas essas mudanças ocorridas, dentro e fora do universo do samba, as escolas de
samba são pressionadas a se afirmar e mesmo a redefinir suas identidades culturais.
Considerando essa nova reordenação no universo do samba, este estudo objetiva analisar como
as escolas de samba do Rio de Janeiro se constroem identitariamente a partir de seus sambas-
exaltação. Para tanto, assume-se, a princípio, o pressuposto de que essas canções, assim como os
hinos nacionais, são propagadoras ideológicas de modos de pensar e constitutivas de identidades
da agremiação e da própria comunidade. Os sambas-exaltação, também conhecidos como hinos
de exaltação, são fundamentais no processo de construção e de afirmação da identidade dessas
instituições culturais. São gêneros discursivos que não só favorecem a elevação da autoestima da
comunidade participante mas também contribuem para desperta-lhe o sentimento de
pertencimento. A pesquisa insere-se na área da Linguística Aplicada, um campo teórico que
entende a linguagem como prática social e se ancora no modelo sócio-histórico, em que a
linguagem é entendida como prática discursiva (Círculo de Bakhtin). Ainda no campo teórico,
estabeleceu-se uma interconexão com os estudos culturais (Hall; Canclini; Bauman; Woodward),
considerando que a cultura constrói valores, produzindo diferenças em função de suas condições
de produção. As escolas de samba analisadas foram as três com o maior número de títulos até
2018: Estação Primeira de Mangueira, Grêmio Recreativo da Portela e Beija-Flor de Nilópolis.
No percurso investigativo, constatou-se que o processo de construção identitária das escolas de
samba é semelhante ao dos hinos nacionais. Constatou-se também que as escolas de samba
afirmam sua identidade por meio de sistemas representacionais, como a valorização de um
autêntico passado de glórias, a bandeira, as cores que as singularizam, as suas tradições e os seus
valores, o bairro/morro onde estão localizadas, um discurso de amor e devoção à “terra amada”
a ser assimilado e reproduzido pela comunidade, a sensação de felicidade, a identidade feminina,
a identidade religiosa, e a afirmação de seu status de lugar de samba, pelo qual querem ser
reconhecidas.
Palavras-Chave: Enunciado. Identidade cultural. Escolas de samba. Samba-exaltação. Signo
ideológico.
ABSTRACT
For more than a century, samba schools parades keep surprising the audience, resisting to certain
requirements, to culture commercialization, and also facing the endless changes in their
organizational structure. Like any other cultural institution, they are in constant change to
adequate themselves to the new reality and needs of the audience who always want to be surprised
by a huge spectacle. Due to the high proportion that the carnival party has taken and to all these
changes inside and outside of the samba universe, samba schools are impelled to reaffirm or even
change their cultural identities. In this context, this study aims to analyze how samba schools in
Rio de Janeiro have their identities built upon representations contained in their sambas-exaltação
– also known as anthems of exaltation. We start out with the premise that these songs are
ideological propagators of ways of thinking and constitutive of the identities of the institution
and of the community itself. Sambas-exaltação are constitutive of the construction and of the
affirmation of the identities of these cultural institutions. They are discursive genres that act upon
building up the community’s self-esteem and they develop a feeling of belonging. This study is
situated within the area of Applied Linguistics, a theoretical field that understands language as a
social practice, and it is based on a social and historical model of language, with language
construed as a discourse practice (Circle of Bakhtin). It also presents an interface with cultural
studies (Hall, Canclini, Bauman, Woodward), taking into account the fact that culture builds up
values and brings forth differences in respect of the conditions under which such values and
differences are produced. Three top samba schools were analyzed according to their number of
titles up to the year of 2018: Estação Primeira de Mangueira, Grêmio Recreativo de Nilópolis
e Beija-Flor de Nilópolis. Analyses indicate that the process of identity construction of samba
schools is similar to the one found in national anthems. Samba schools reaffirm their identities
through symbolic values: an authentic past of glories; flags and school colors; traditions and
values; the environment or the school neighborhood; words of love and devotion for the ‘beloved
land’ that the community must develop for the school; happiness; female identity; religious
identity; and the place of samba.
Key words: Utterance. Cultural identity. Samba schools. Samba-exaltação. Ideological sign.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 ‒ Tabela de Ranking das escolas de samba ……...……..………...…...………….. 92
Figura 2 ‒ Tabela de Ranking das escolas de samba ………………….…...………..…….…93
Figura 3 ‒ Tabela de Ranking das escolas de samba ...…...…..…………...….…….....…… 93
Figura 4 ‒ Águia da Portela …………………………………………....……………………105
Figura 5 ‒ Pomba do Espírito Santo …………………………….………………..……..…106
SUMÁRIO
1 ENSAIO TÉCNICO: As escolas de samba e os desafios do mundo pós-moderno ...........20
2 PRIMEIRO ENSAIO OFICIAL ...........................................................................................26
2.1 FANTASIAS E ALEGORIAS DA IDENTIDADE ............................................................ 26
2.2 A CULTURA POPULAR E A CARNAVALIZAÇÃO ...................................................... 33
2.3 AS FESTAS POPULARES DO RIO DE JANEIRO: resistência e transgressão ................. 40
2.4 ENFIM, AS ESCOLAS DE SAMBA E O SAMBA: Dentro da ordem do permitido .........47
2.5 ESTADO DA ARTE ........................................................................................................... 55
2.5.1 Identidades de Escolas de Samba .................................................................................. 56
2.5.2 Identidades de Comunidades, favelas e cidades ...........................................................61
2.5.3 As Festas populares do Rio de Janeiro e o surgimento das escolas de samba ...........64
2.5.4. Sambas-exaltação e hinos institucionais ...,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,......................................65
2.5.5 Gênero samba em busca de representações identitárias .............................................68
3 SEGUNDO ENSAIO OFICIAL .............. .............................................................................71
3.1 CONTRIBUIÇÕES DO CÍRCULO DE BAKHTIN PARA OS ESTUDOS DA
LINGUAGEM ............................................................................................................................ 71
3.2 SAMBA-EXALTAÇÃO EM DIALOGIA COM OS HINOS NACIONAIS...................... 75
4 OUTROS ENREDOS: CORTEJO METODOLÓGICO ...................................................87
4.1 A LINGUÍSTICA APLICADA E OS NOVOS CONTEXTOS: PESQUISA
QUALITATIVA-INTERPRETATIVISTA ............................................................................... 87
4.2 CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DO CORPUS ........................................................................ .91
5 ABRINDO O DESFILE: EM BUSCA DE IDENTIDADES ............................................. 96
5.1 ANÁLISE ENUNCIATIVA DOS SAMBAS-EXALTAÇÃO..............................................96
5.1.1 Grêmio Recreativo da Portela.........................................................................................96
5.1.1.1 Samba-exaltação Hino da Portela .............................................................................100
5.1.1.2 Samba-exaltação Portela na Avenida .......................................................................102
5.1.2 Estação Primeira de Mangueira...................................................................................107
5.1.2.1 Samba-exaltação Exaltação à Mangueira ................................................................109
5.1.3 Beija-flor de Nilópolis....................................................................................................111
5.1.3.1 Samba-exaltação A deusa da passarela ....................................................................112
5.1.3.2 Samba-exaltação Eu sou de Nilópolis .......................................................................114
5.1.3.3 Samba exaltação A soberana .....................................................................................114
5.2 DIALOGANDO COM AS IDENTIDADES .......................................................................117
6 APURAÇÃO FINAL .......................................................................................................... 122
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 126
19
Carnavalia ‒ Tribalistas
Vem pra minha ala
Que hoje a nossa escola vai desfilar
Vem fazer história
Que hoje é dia de glória nesse lugar
Vem comemorar [...]
Vamos pra avenida
Desfilar a vida, carnavalizar
A Portela tem Mocidade
Imperatriz
No Império tem
Uma vila tão feliz
Beija-Flor vem ver
A porta-bandeira
Na Mangueira tem morena da Tradição
Sinto a batucada se aproximar
Estou ensaiando para te tocar
Repique tocou, o surdo escutou
E o meu corasamborim
Cuíca gemeu
Será que era eu
Quando ela passou por mim [..]
20
1 ENSAIO TÉCNICO: AS ESCOLAS DE SAMBA E OS DESAFIOS DO MUNDO
PÓS-MODERNO
Como carioca, antiga moradora do bairro de Ramos, zona norte da cidade do Rio
de Janeiro, o universo do samba sempre esteve presente na minha vida, seja frequentando
os ensaios na quadra das escolas de samba, seja participando das feijoadas ou até mesmo
assistindo aos desfiles pela televisão. Apesar de não ter nascido dentro do que poderíamos
considerar como uma comunidade do samba, mas sim em um grande bairro da zona norte
carioca, frequentar a quadra da escola Imperatriz Leopoldinense, localizada neste bairro,
afigurava-se-me uma oportunidade lúdica, principalmente, durante o período que
antecedia aos desfiles.
Desde essa época, recordo-me que o momento de entoação do hino da escola era,
para mim, o mais emocionante. Era lindo ver e ouvir a comunidade cantando o hino com
tanta emoção como se estivesse participando de um jogo da seleção brasileira ou de algum
outro momento cívico. O som da bateria, de fato, junto ao clamor do público participante,
sempre me causou arrepios. E assim se foi construindo toda a minha relação afetiva com
o samba e com as escolas de samba.
Depois de muitos anos morando fora da cidade do Rio de Janeiro, e distante desse
universo, já no último período da graduação, no curso de Letras, iniciei os estudos sobre
identidade cultural na disciplina Literatura Brasileira. A partir daí, despertada pela
experiência com o mundo das escolas de samba, resolvi mergulhar na pesquisa sobre a
construção da identidade de escolas de samba, dando a devida relevância a seus sambas-
exaltação. Esta abordagem foi impulsionada, também, pela recém-descoberta dos estudos
de análise discursiva, que se vieram conjugar à minha admiração e curiosidade pelo
mundo do samba1.
1 De acordo com Leopoldi (2010), a expressão mundo do samba diz respeito ao conjunto de
manifestações sociais e culturais que fazem parte dessa esfera de comunicação verbal.
21
Ao ingressar no mestrado2, tive oportunidade de conhecer a concepção dialógica
da linguagem do Círculo de Bakhtin3, o que possibilitou olhar para meu objeto de estudo
com outras “lentes4”, fundamentais para melhor compreendê-lo.
Dito isto, sobre as escolas de samba, é importante recordar que, diferentemente do
passado, escolas de samba, hoje, institucionalizaram-se e se transformaram em um
importante empreendimento turístico e econômico para o Brasil. A partir do momento em
que o desfile passou a fazer parte de uma grande competição, a gerar visibilidade e lucros
às agremiações e às suas comunidades, novas escolas surgiram e a disputa ficou ainda
mais acirrada. O que era antes considerado um prazer, uma diversão para as comunidades,
deu lugar às constantes correrias, exigências e cumprimento de prazos para o desfile.
Há mais de um século o desfile das escolas de samba continua surpreendendo o
grande público, resistindo às cobranças, à mercantilização da cultura e às infindáveis
mudanças em sua estrutura organizacional. Assim como qualquer outra instituição
cultural, está em constante transformação para se adequar à nova realidade e às exigências
do público que deseja sempre ser surpreendido por um grande espetáculo. Diante da
proporção que a festa carnavalesca tomou e de todas essas transformações dentro e fora
do universo do samba, as escolas de samba são pressionadas a se afirmarem ou até
redefinirem suas identidades culturais.
Tudo isso acontece porque vivemos no tempo de uma sociedade fluida e
transitória (BAUMAN, 2001). E, nesse contexto de grandes incertezas, as identidades que
até então se consideravam estáveis, passaram a sofrer volições; não são fixas sequer no
interior de um mesmo grupo. Essa complexidade em que se transformou a vida moderna
“exige que assumamos diferentes identidades, mas essas identidades podem estar em
conflito”, vez que surgem em lugares de tensões “entre as expectativas e as normas
sociais” (WOODWARD, 2014, p. 32-33).
2 Grupo de pesquisa intitulado A construção identitária da cidade múltipla, coordenado pela Prof.ª Dr.ª
Marília Varella Bezerra de Faria, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, vinculado
ao grupo de pesquisa (no CNPq), Práticas Discursivas na Contemporaneidade. A pesquisadora integra
também, desde 2016, o Projeto de Extensão Ciclo de Estudos: diálogos com o círculo de Bakhtin, sob
a perspectiva da Linguística Aplicada, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves. 3 Nome dado ao grupo de intelectuais russos (Mikhail M. Bakhtin, Valentin N. Voloshinov e Pavel N.
Medvedev) que, entre 1919 e 1929, reuniam-se regularmente, com o intuito de discutir sobre o
pensamento linguístico a partir de uma natureza filosófica. Juntos, desenvolveram um conjunto de obras
sobre os estudos dialógicos da linguagem (FARACO, 2009). 4 Termo usado por Moita Lopes (2014) ao tratar dos novos rumos para pesquisas em Linguística
Aplicada.
22
Refletindo sobre essas questões e sobre os desafios enfrentados pelas escolas de
samba no atual contexto pós-moderno, fluido e transitório, não há como negar que, ao
transformarem-se numa grande instituição cultural, essas agremiações precisaram buscar
mecanismos para a afirmação de sua identidade e a consolidação de sua importância
dentro do universo do samba e, principalmente, dentro da própria comunidade onde estão
localizadas. A integração e o envolvimento da comunidade com a escola são
indispensáveis para que o desfile aconteça conforme a expectativa; afinal, seus
integrantes é que dão vida ao espetáculo sob as mais variadas formas, em especial por
meio de seu trabalho, muitas vezes, voluntário.
É muito comum as escolas de samba vincularem o nome da agremiação ao local
onde se encontram sediadas: morros, favelas ou bairros. Essa associação é uma
importante estratégia “para a sobrevivência e crescimento” dessas instituições culturais
(MATOS, 2005, p. 71). E ainda que atualmente incorporem outros frequentadores que
não pertencem à comunidade, continuam “reféns” de seus sambistas e de seus moradores;
“são estes os que ensaiam durante meses na bateria, carregam a bandeira da escola no
momento do desfile, frequentam a quadra da escola durante todo ano” (MATOS, 2005,
p. 71), e principalmente assumem sua identidade ao se irmanarem “patrioticamente” na
reprodução de seu hino, traduzido no seu samba-exaltação.
Em sua configuração de gênero discursivo, caracteriza-se pela exaltação das
qualidades da escola de referência e, tal como os hinos nacionais e os hinos de
agremiações futebolísticas, esse samba-exaltação, apesar de ter uma entoação diferente,
pode ser entendido como uma representação sonora da escola de samba, objetivando
construir e consolidar a identidade da instituição, desenvolver o sentimento de
pertencimento e elevar a autoestima da comunidade. Essas canções podem ser entendidas
como práticas discursivas que não somente disseminam mas também consolidam
identidades de uma forma mais ampla.
A entoação dos sambas-exaltação é parte dos acontecimentos que marcam os
desfiles das escolas de samba e também as disputas travadas entre as agremiações. Cada
uma dessas instituições culturais carrega, como signo ideológico, um ou mais hinos de
exaltação, uma bandeira representando as cores da escola “que podem ser reconhecidos
como transmissores de uma consciência partilhada” (MORAES, 2015, p. 75).
O discurso dos compositores opera como uma forma de afirmação da identidade
desses espaços e da própria escola. Nesse contexto, o samba-exaltação surge para reforçar
23
a importância da escola de samba para a comunidade, atribuindo identidades múltiplas a
essa instituição, transmitindo valores e formas de ver a agremiação. O principal propósito
comunicativo desse gênero é fazer com que todos os participantes se sintam envolvidos
e assimilem o mesmo horizonte comum, de exaltar e contemplar a escola de samba com
a qual se identificam.
Como qualquer outro gênero, o samba-exaltação está diretamente ligado ao
contexto e à esfera de comunicação verbal de que se deriva e a seu projeto de dizer,
cumprindo sua funcionalidade e sua finalidade. Todas essas especificidades vão
determinar seu tema, seu estilo e sua estrutura composicional.
A entoação dos sambas-exaltação e as escolhas lexicais expressam a identidade
que se deseja atribuir e instituem uma forma de pensar. Dentro dessa comunidade
discursiva, que são as escolas de samba, há a concretização de valores adquiridos e
socialmente aceitos, que definem a seleção lexical. O samba-exaltação não pode,
portanto, ser analisado desvinculado de seu contexto de produção e de circulação. Uma
abordagem que desconsidere o social tornaria esse estudo pouco coerente com a proposta
teórica do Círculo de Bakhtin.
Muito embora o samba-exaltação tenha sido estudado e analisado sob os mais
variados prismas, apropriamo-nos, nesta pesquisa, da teoria do Círculo de Bakhtin, em
que a linguagem é compreendida a partir de sua relação com o contexto de produção e
circulação, seu caráter dialógico, valorado e responsivo. Nessa perspectiva teórica, os
gêneros surgem a partir de relações dialógicas que constituem os enunciados e sua
formação axiológica. Assim, a escolha pelo gênero samba-exaltação foi norteada pelo
fato de tais canções, assim como os hinos nacionais, serem propagadores ideológicos de
modos de pensar e constitutivos de identidades da agremiação e da própria comunidade.
Em se tratando de uma investigação sobre o uso da linguagem na relação com o
mundo da vida, numa visão não essencialista, e assumindo a pretensão de produzir
respostas satisfatórias à nossa proposição de estudo, nortearemos nosso percurso
investigativo pelas seguintes questões:
1. Quais identidades as escolas de samba constroem a partir dos seus sambas-
exaltação?
2. Que relações dialógicas essas identidades estabelecem entre si?
Para responder essas questões, traçamos os seguintes objetivos:
24
avaliar como as identidades culturais das escolas de samba são construídas a partir
dos sambas-exaltação;
analisar as relações dialógicas entre esses discursos construídos pelas escolas de
samba em seus sambas-exaltação.
O trabalho tem como orientação teórica a concepção dialógica da linguagem do
Círculo de Bakhtin (2010, 2011, 2013, 2015, 2016, 2017), e os conceitos de identidade
sob a ótica dos estudos culturais contemporâneos (HALL, 2003, 2015; CANCLINI, 1997,
1999, 2015; BAUMAN, 2001, 2003, 2005, 2013; WOODWARD, 2014).
Metodologicamente, esta pesquisa insere-se na área da Linguística Aplicada (LA),
ancorada no paradigma qualitativo-interpretativista. Tal escolha justifica-se pelo fato de
analisarmos enunciados concretos, construídos por sujeitos reais, em uma sociedade real.
Não isolamos o objeto estudado da historicidade do acontecimento, que é parte
constituinte e constitutiva do todo do enunciado.
O texto encontra-se organizado em seis seções. Na primeira, intitulada Ensaio
Técnico: as escolas de samba e os do mundo pós-moderno, apresentamos uma breve
contextualização das escolas de sambas e dos desafios enfrentados por essas agremiações
dentro de um novo contexto pós-moderno; definimos o objeto de estudo desta pesquisa,
o problema de pesquisa e sua justificativa, as questões que norteiam o estudo e as escolhas
teórico-metodológicas que subsidiam nossa investigação.
Na segunda seção, Primeiro ensaio oficial, trataremos sobre o conceito de
identidade, a partir da visão dos estudos culturais contemporâneos de Hall (2015)
Canclini (1997, 2015), Bauman (2001, 2003, 2005, 2013) e Woodward (2014), e sobre o
conceito de cultura popular, apoiando-nos em Bakhtin (2013), Canclini (1999), Hall
(2003), entre outros autores. Abordaremos sobre as festas populares do Rio de Janeiro
como um movimento de resistência e transgressão, dialogando com os conceitos de
carnaval-carnavalização-riso-grotesco; o surgimento das escolas de samba como
afirmação da identidade dos espaços marginais da sociedade carioca até figurar como
símbolo da cultura nacional e entrar na ordem do permitido. Por fim, entrecruzaremos os
saberes de algumas pesquisas sobre o que até então já foi dito acerca do nosso objeto e
com outros que dialogam com o estudo em causa.
Na terceira seção, Segundo ensaio oficial, apresentamos a concepção dialógica da
linguagem bakhtiniana (Círculo de Bakhtin), a noção de alteridade, do signo ideológico
e dos gêneros do discurso, em que se ancora o presente estudo. É ainda nesta seção que
25
discorremos sobre o gênero samba-exaltação e sua dialogia com outros enunciados
concretos.
Na quarta seção, Outros Enredos: cortejo metodológico, definimos a
metodologia, delineando o procedimento de análise dos dados, justificamos também a
inserção desta pesquisa na área da Linguística Aplicada, e damos a conhecer os sujeitos
participantes da pesquisa e o processo de investigação pertinente a este tipo de pesquisa.
Na quinta seção, Abrindo o desfile: em busca de identidades, procedemos à análise
dos sambas-exaltação selecionados e, retomando os teóricos apresentados nas seções
anteriores, realizaremos uma análise dos posicionamentos identitários dos sujeitos
partícipes deste universo cultural, ideológico e multifacetado de comunidades concretas
da parte marginal carioca. Aqui, a música, compreendida como linguagem, ganha
significado no interior de uma dada cultura.
Na sexta e última seção, Apuração final, discutiremos os resultados obtidos com
a realização da pesquisa, bem como sua importância para os estudos da linguagem.
26
2 PRIMEIRO ENSAIO OFICIAL
Nesta seção, visando compreender o processo de construção identitária das
escolas de samba em seus sambas-exaltação, num contexto pós-moderno, em que a
velocidade do tempo contribui para a construção de identidades cada vez mais instáveis,
ancoramo-nos em postulados teóricos dos Estudos Culturais contemporâneos.
Subsidiando essa abordagem adotamos o conceito de cultura popular, tomando como
referência contribuições de Canclini (1997, 1999, 2015), Hall (2003, 2015) e Bakhtin
(2013), particularmente sobre carnaval-carnavalização. Ainda nessa seara, tratamos sobre
as festas populares do Rio de Janeiro que antecederam as escolas de samba, e que foram
fortemente coibidas pela polícia, sobressaindo-se, nesse contexto, como um fenômeno de
resistência e transgressão. Em arremate, procedemos a uma revisão de pesquisas que
dialogam com as discussões aqui empreendidas.
2.1 FANTASIAS E ALEGORIAS DA IDENTIDADE
Vivemos em tempos de velocidade e mobilidade, de identidades fluidas e
transitórias. Essa aceleração do tempo que caracteriza a sociedade moderna exige táticas
de sobrevivência. Nessa mesma linha de raciocínio, num mundo globalizado, pertencer a
uma comunidade e estabelecer a diferença é uma forma de ser notado. É bem esse o
posicionamento assumido por Geraldi (2009, p. 4) quando assim se pronuncia:
a aceleração do tempo, a mobilidade num mundo globalizado pelas
novas tecnologias, e supostamente também pela economia, parece
trazer a pá de cal: as identidades com que nos definimos como
pertencentes a uma cultura, a uma nação, a um povo evaporam-se. O
sólido estaria se desmanchando no ar. Somos ‘trans’ ou ‘pós’ qualquer
coisa que, talvez, nunca tenhamos chegado a ser.
Abstraímos, desse pensamento, a compreensão de que uma identidade não é
sempre igual a si mesma, pois os sujeitos são, desde sempre, múltiplos, porque as vozes
que os constituem são de ordens diversas. Desvendamos, sob essa perspectiva, uma nova
forma de conceber as identidades, que estão constantemente em processo de
reconfiguração, em permanentes mudanças.
Faria (2007, p. 26), uma das estudiosas da identidade cultural, sublinha que
27
a temática central dos estudos culturais contemporâneos contempla o
processo de formação das identidades culturais, baseado na
fragmentação e no deslocamento das identidades modernas. Estudam-
se as identidades de classe, de gênero, de sexualidade, de etnia, de raça
e de nacionalidade, além de suas características, de suas implicações e
de suas prováveis consequências.
Indubitavelmente, a problemática das identidades culturais tornou-se uma
abordagem preferencial nos vários campos de produção acadêmica, quer no âmbito do
estudo das linguagens, quer no domínio das ciências sociais, e para além dessas áreas de
saberes. Tudo isso se justifica pelas atuais mudanças trazidas pela globalização que
causaram a chamada “crise de identidade” na sociedade moderna (HALL, 2015, p. 50).
De acordo com Hall (2015), essa “crise de identidade” de que padece a sociedade
moderna faz com que os sujeitos percam suas referências que até então eram consideradas
estáveis e inabaláveis. Todas essas transformações sociais, além de causarem uma crise
contemporânea da identidade, contribuem, ao mesmo tempo, para o “fortalecimento de
identidades locais ou para a produção de novas identidades” (HALL, 2015, p. 50). Na
visão do autor, apesar de a globalização parecer excluir as diferenças, ela caminha junto
a um projeto de (re)afirmação das identidades como forma de reação ao “racismo cultural
e de exclusão” (HALL, 2015, p. 50). Essas estratégias visam a um retorno às identidades
de origem. E vale ressalvar que, nesse processo, as antigas identidades não são excluídas;
elas caminham simultaneamente às novas identidades. Ou seja, ao mesmo tempo em que
surgem novas construções identitárias, a globalização contribui também para o
fortalecimento das antigas identidades como forma de resistência.
Em outras palavras, a globalização, além de contribuir para o surgimento de novas
identidades e para a manutenção das já existentes, cria o que Hall denominou efeito
“pluralizante” (HALL, 2015, p. 51) sobre as identidades. Isto é, produz-se uma variedade
de possibilidades e novas posições de identidades. Há, nessa “pluralidade”, algumas
identidades que buscam recuperar uma tradição, uma pureza que sentiram perdida. Já
outras aceitam que as identidades estão sujeitas a mudanças e, por isso, não são “puras”.
É o que Hall (2015, p. 51-52) chamou de movimento de contradição entre “Tradição e
Tradução”, e que se está tornando evidente num mundo globalizado, dinâmico e
transitório. Isso implica dizer que, paralelamente à globalização, existe um processo de
“revitalização de diferenças” (GERALDI, 2009, p. 4).
28
E é nessa perspectiva que Hall trabalha o conceito de identidades múltiplas para
explicar o conceito de cultura num mundo globalizado. Em tempos de fluidez, de
transitoriedade, discutir identidade é refletir sobre os papéis desempenhados pelos
sujeitos nos dias atuais. O sujeito contemporâneo é cada vez mais instável, descentrado.
E nem poderia ser diferente; afinal, faz-se reflexo da sociedade em que vive, tão bem
definida por Hall (2015):
a sociedade não é, como os sociólogos pensaram muitas vezes, um todo
unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de
mudanças evolucionárias a partir de si mesma, como o
desenvolvimento de uma flor a partir de seu bulbo. Ela está
constantemente sendo ‘descentrada’ ou deslocada por forças fora de si
mesma (HALL, 2015, p. 14, grifo do autor).
É justamente por ser dinâmica que a sociedade produz, ao mesmo tempo, uma
pluralidade de identidades, ou seja, diferentes “posições de sujeitos”. Por isso mesmo,
não podemos pensar a identidade como um conceito; tampouco como uma essência.
Os sujeitos são sensíveis; assim, à medida que há transformações no cenário
cultural em que estão inseridos, também sofrem mudanças e/ou ressignificações. Esse
conjunto de mudanças é constante e acontece em tempo acelerado. Em outras palavras, o
sujeito não possui uma identidade única, sempre fixa e estável; ela muda de acordo com
o papel que o sujeito desempenha. Sob essa perspectiva, “[...] a identidade é formada na
‘interação’ entre o ‘eu’ e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior
que é o ‘real’, mas esse é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos
culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (HALL, 2015, p. 11,
grifo do autor).
A discussão sobre identidade é aqui concebida como uma construção
sociocultural, visto que resulta da junção entre o social/coletivo e individual. Todas as
transformações que ocorrem no meio social provocam alterações no processo de
construção identitária, sempre nesse processo de reformulação. Ademais, trata-se de uma
construção, uma representação e não de uma verdade em essência.
Parece, pois, bem evidente o fato de que estudar identidades na linha dos Estudos
Culturais é compreender que essas construções ocorrem na interação e essa interação não
precisa ser necessariamente entre sujeitos; ocorre também entre os espaços em que estes
habitam e se relacionam. Conforme Woodward (2014, p. 8), “essas identidades adquirem
29
sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são
representadas” (WOODWARD, 2014, p. 8).
Se, por um lado, se enfatiza a importância crucial da identidade para o bem-estar
pessoal e para a ação coletiva, por outro, teoriza-se a identidade como algo fluido, em
construção, múltiplo, dinâmico e fragmentado (BAUMAN, 2003). Tal fato se explica
porque os sujeitos não se definem mais apenas como seres pertencentes a uma única
identidade. A sociedade moderna, por ser dinâmica, produz uma variedade de identidades
que são contraditórias e estão em constantes processos de reconfiguração (HALL, 2015).
A ideia de identidade (comum a todos os sujeitos), sólida, firme e inabalável,
numa perspectiva essencialista, desconsidera os princípios éticos, sociais, culturais e
individuais. Logo, não deve ser pensada a partir do conceito de origem, associando os
sujeitos sempre a partir de características prefixadas e imaginárias. Esse tipo de
entendimento revela que, sendo a identidade uma construção discursiva, pode ser
facilmente manipulada.
A questão sobre identidade tem-se tornado um elemento central para agrupar
sujeitos em dois lados opostos e colocá-los numa relação de oposição entre o nós e os
outros. Essa oposição dá-se, em primeiro lugar, pelo compartilhamento de passado
comum e tradições; em segundo lugar, pelo reconhecimento dos mesmos valores. Em sua
gênese, esse jogo de oposição ocorre a partir do estabelecimento da diferença e se tem
tornado crucial na construção identitária de determinados grupos e nações. Trata-se de
uma forma de ser diferente, de singularizar-se; sobretudo, para obter vantagens em
relação aos outros grupos. Aqueles que gozam de determinada situação de prestígio
sentem-se em vantagem e subjugam o grupo do qual diferem, lançando mão de estratégias
para denigrir e fragilizar o outro, ou até mesmo dominá-lo para sentir-se superior e pregar
valores de natureza racionalista, como prática para manter a ordem vigente.
Tudo isso é revelador de que a identidade é uma questão relacional: uma
identidade depende da outra para existir. Ela é marcada por meio de sistemas simbólicos
que envolvem o estabelecimento da distinção, excluindo-se aquilo que ela não é. Os
grupos buscam afirmar suas identidades reivindicando um passado, um antecedente
histórico; e ao reafirmar “uma verdade histórica podem nos dizer mais sobre a nova
posição-sujeito”. Essa necessidade de afirmação pela reivindicação de um passado
“sugere um momento de crise e não, como se poderia pensar, que haja algo estabelecido
e fixo na construção da identidade [...]” (WOODWARD, 2014, p.11).
30
As reflexões precedentes levam-nos a compreender as perspectivas essencialista
e não essencialista sobre identidade. Justamente pelo fato de as identidades não serem
sempre as mesmas, elas são múltiplas e inacabadas; estão sempre em processo de
reconfiguração. Na visão essencialista, excluem-se as diferenças. Já na visão não-
essencialista, defendida por Hall (2015), a identidade não limita o sujeito.
Os sistemas simbólicos de representação identitária estão intrinsecamente
relacionados à cultura e ao significado, ou seja, para compreendermos seus significados,
precisamos entender quais são as posições-de-sujeito produzidas “e como nós, como
sujeitos, podemos ser posicionados em seu interior” (WOODWARD, 2014, p. 17). Em
outras palavras, as representações identitárias incluem
[...] as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos
quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito.
É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos
sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive
sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos
e aquilo no qual podemos nos tornar (WOODWARD, 2014, p. 17-18).
A construção identitária também é uma relação de poder, facilmente manipulada.
A mídia e as instituições culturais, por exemplo, nos dizem quais posições-de-sujeito
devemos assumir. Isso porque produzem sistemas simbólicos não arbitrários e que podem
ser facilmente identificados como reais. Como observa Silva (2000, p. 81), “a identidade
e a diferença não são, nunca, inocentes”. É pelo processo de diferenciação, de inclusão e
exclusão, quem pertence e quem não pertence, que se fazem presentes as relações de
poder. São demarcações simbólicas responsáveis em definir quem somos nós e quem é o
“outro”.
Anderson (1989, p. 14) defende a ideia de que a identidade de uma nação é uma
“comunidade imaginada”. Isso porque manipula símbolos que podem ser reconhecidos
facilmente por suas especificidades culturais, fazendo com que os sujeitos tenham coisas
em comum e que se “imaginem” pertencentes a essa nação. Sobre essa questão, Pacheco
(2004, p. 3-4) esclarece:
31
para haver essa “consciência” de nação, esse sentimento de pertencer a
um mesmo grupo, a uma mesma cultura nacional e tornar possível uma
identificação nacional, alguns dispositivos são acionados para
representar a nação e produzir significados. Nesse sentido, a língua, a
raça e a história enquanto narrativas homogeneizadoras foram/são
essenciais para a constituição das identidades nacionais, para a
constituição das culturas nacionais e para a formação de uma
consciência nacional, essas narrativas possibilitaram/possibilitam a
internalização da ideia de pertencimento nacional, de nacionalidade.
Para tal alcance, o Estado-nação vale-se da sustentação de determinadas
características que visam uniformizar e unificar modos de ser. A distinção cultural e
identitária é uma das estratégias para unificar e criar um sentimento patriótico, de
pertencimento. Os discursos da cultura nacional são modos de construir sentidos com os
quais os indivíduos se identificam, sentem-se pertencentes àquela nação.
No entanto, não é mais possível pensar uma identidade nacional como uma
construção homogênea. Nas palavras de Faria (2007, p. 42-43), isso ganha ainda mais
clareza:
a história moderna sinaliza para algo que poderosamente desloca as
identidades culturais – a globalização, que embora não seja um
fenômeno recente, tem uma característica importante para a aceleração
dos processos globais – a compressão espaço-tempo. Há no interior
desse processo, no entanto, dois movimentos opostos – enquanto um
reforça a autonomia nacional, o outro nos torna mais globalizados.
Esses movimentos simultâneos (de hegemonia e resistência) fazem com
que algumas identidades nacionais se desintegrem, dando lugar a novas
identidades; com que outras permaneçam inalteradas, como forma de
resistir bravamente à globalização, e tantas mais se remodelem e surjam
como identidades híbridas.
Como vimos, todas essas transformações têm como pano de fundo a globalização.
Aliás, desde então, tudo em nossa vida tem sido moldado por essa tendência. As
alterações sociais daí resultantes ocorrem de forma acelerada e se estendem a vários
campos, repercutindo nomeadamente na conceitualização da identidade e,
consequentemente, no sentimento de pertença a uma dada comunidade.
Com a globalização e as rápidas mudanças no mundo atual, as comunidades, que
pareciam se sentir plenamente seguras por laços de identificação, estão perdendo terreno
e se desestabilizando. O termo comunidade é também muitas vezes ligado ao sentido de
homogeneidade, um lugar onde grupos vivem de forma integrada, compartilham
objetivos em comum, os mesmos costumes, as mesmas tradições e estão ligados ao espaço
32
que ocupam (PAVÃO, 2009). Para Hobsbawm (1984), a comunidade seria o significado
moderno para nação, pois existe a ideia de compartilharem os mesmos valores.
No julgamento de Bauman (2003, p. 17), fazer parte de uma comunidade, “ter
uma comunidade” ou “estar numa comunidade” é “a busca por segurança no mundo
atual”. Mas essa comunidade que oferece tal sensação de segurança é uma “comunidade
imaginada”, uma “comunidade dos sonhos”. A real comunidade exige lealdade e é
homogeneizante. Isso porque a “distinção” significa “divisão entre nós e eles”. Na
comunidade dos sonhos, há uma relação de entendimento que é “natural” e “tácito”. A
partir do momento em que essa comunidade “passa a ser objeto de contemplação”,
quando fala de si mesma, exalta seus valores e virtudes, essa “comunidade não existe
mais” (BAUMAN, 2003, p. 10-17).
Bauman (2005) denomina esse novo cenário de grandes incertezas e transições de
“modernidade líquida”. Para o sociólogo, a globalização constitui-se com uma “grande
transformação” na vida quotidiana e nas relações humanas. As comunidades surgem
nesse contexto como abrigo aos efeitos trazidos pela globalização. Com os grandes
“deslocamentos, desencaixes e desenraizamentos”, pertencer e fazer parte de uma
comunidade seria uma das “tentativas desesperadas de reencaixar e reenraizar”
(BAUMAN, 2003, p. 31).
Levando em consideração todas essas questões aqui levantadas, o estudo sobre as
identidades torna-se cada vez mais relevante. Ademais, as atuais pesquisas em LA nos
conduzem a produzir novas respostas para os problemas que se colocam na pós-
modernidade, de forma não excludente, não homogeneizante, ou essencialista como até
então se teorizava.
Como dissemos, esta pesquisa pretende analisar sambas de exaltação e buscar as
representações identitárias das escolas de samba expressas nesse gênero discursivo. Se
analisarmos essa instituição sem considerar todas as mudanças e demandas trazidas pela
pós-modernidade, estaremos recaindo numa visão essencialista, ou seja, de que sua
identidade cultural não sofreu influências e permanece fixa no tempo e no espaço.
Nessa perspectiva, com vistas a melhor conhecer nosso objeto de estudo, as seções
a seguir pretendem discutir sobre o conceito de cultura popular e também sobre as festas
carnavalescas da cidade do Rio de Janeiro como forma de compreender os significados
imbricados no surgimento dessas manifestações.
33
2.2 A CULTURA POPULAR E A CARNAVALIZAÇÃO
Como nosso objetivo é analisar os sambas-exaltação de escolas de samba do Rio
de Janeiro ‒ uma manifestação cultural de origem popular ‒, e considerando o fato de que
a compreensão que se tem de cultura popular é relativamente ampla, vez que um mesmo
conceito passeia sob olhares distintos e perspectivas diversas, faz-se necessário delimitar
o que podemos definir como cultura popular. Sendo assim, apresentaremos, nesta seção,
algumas concepções que vão auxiliar na compreensão desse conceito tão polissêmico.
Canclini (1997, 1999, 2015), Hall (2003, 2015) e Bakhtin (2013), mais particularmente,
favorecerão, com suas ideias, esta abordagem.
No romantismo, a cultura popular era sinônimo de tradição e preservação do
passado. De acordo com Chauí (1986), foi a partir desse período que surgiram os
primeiros traços definidores da cultura popular: o primitivismo (preservação de
tradições), o comunitarismo (o popular nunca é algo individual) e o purismo (preservação
da pureza, não se contaminando pelos hábitos urbanos). Nesse primeiro momento, a
cultura popular é, portanto, associada a uma visão de povo e de folclore.
Outra concepção bastante explorada foi a relação entre o nacional e o popular, que
se colocou historicamente como uma discussão central no Brasil. Nessa abordagem, o
popular é compreendido como tradição e preservação folclórica, ou seja, “[...] o popular
é visto como objeto que deve ser conservado em museus, livros e casas de cultura”
(ORTIZ, 2006, p. 160).
Nesse contexto, até meados do século XVII, ainda não se estabelecia uma
distinção entre cultura popular e de elite. De acordo com Ortiz (2006), a elite frequentava
as mesmas religiões e os jogos realizados pela classe subalterna. No entanto, aos poucos,
a fronteira entre as duas culturas passou a ser bem delimitada e se instaurou um grande
processo de repressão sobre as manifestações populares, como veremos posteriormente.
Contrário a esse pensamento, surge uma outra perspectiva, deslocada para uma
discussão de natureza mais política, afastando-se do viés romântico, cujo interesse era
estabelecer a hegemonia burguesa. Os bens culturais produzidos pela elite passam a ser
valorizados em detrimento daqueles derivados da cultura tradicional e popular. Para Ortiz
(2006), esses ideais são impulsionados pela implementação de uma nova política e um
novo projeto de centralização do Estado e, principalmente, pela preocupação com práticas
34
geradoras de manifestações, tumultos e protestos, como o carnaval, entre outras
manifestações de cunho popular.
Em meados do século XIX, surge uma nova perspectiva de cultura apoiada num
projeto iluminista em que se rompe com a religião, e a ciência passa a ter um papel central.
Nesse contexto atual, há uma grande corrida rumo ao progresso, que “afaga” a todos com
seus grandes avanços tecnológicos, com meios de comunicação mais eficazes e
transportes mais modernos.
A partir da revolução industrial, a discussão sobre cultura passa a ser direcionada
por outra vertente ideológica. Com o aparecimento da teoria marxista, a questão central
não era mais o povo, numa visão de "povo como plebe explorada, dominada e excluída
(CHAUÍ, 1986, p. 21)”, mas a luta de classe. Aliada a esse pensamento marxista, surge,
nos anos 50, outra concepção fundamentada por estudiosos americanos em ciências
sociais: o de sociedade de massa e cultura de massa.
Ainda nesse período de grande efervescência e de “vários matizes ideológicos”
(ORTIZ, 2006, p. 162), ocorre o rompimento dessa perspectiva tradicionalista que
concebia o popular do ponto de vista folclórico. Com o desenvolvimento da cultura
popular há, um redimensionamento daquilo que até então era compreendido como cultura
popular. A indústria passou a transformar os produtos culturais em bens de consumo.
É em função dessa abordagem de cultura de massa e de sociedade de massa que
passa a separar e distinguir os artefatos culturais em "desejáveis e indesejáveis". Ter
cultura, portanto, significava ter um gosto refinado, apreciar o que era considerado
"grande arte", reservado à elite cultural, como, por exemplo, frequentar óperas e
concertos. Os bens voltados para o grande público, para a sociedade de massa, como
programas de TV, eram vistos como indesejáveis "para um homem ou mulher de cultura"
(BAUMAN, 2013, p. 7). E muito embora esse pensamento ainda persista entre muitos
sujeitos, Bauman (2013) refuta a ideia de se entender cultura a partir do estabelecimento
hierárquico entre bens culturais que pertencem à elite de um povo e aqueles que estão
abaixo dela. A sociedade não é mais a mesma e, nesse contexto de grandes mudanças,
surge um novo sujeito que consome os artefatos culturais de "maneira onívora", ou seja,
consome um pouco de tudo. Não há mais um confronto entre o que é considerado de
massa e o que é considerado de elite.
Assim, com o crescimento da indústria cultural, o “popular se reveste de um outro
significado, e se identifica ao que é mais consumido, podendo-se inclusive estabelecer
35
uma hierarquia de popularidade entre diversos produtos ofertados no mercado” (ORTIZ,
2006, p. 164).
Não parece mesmo restar qualquer dúvida quanto ao fato de que o conceito de
cultura popular sempre foi mal compreendido, e até tomado, muitas vezes, num sentido
genérico, “como uma expressão tradicional e subalterna, contrária ao erudito e assinalada
pelo moderno e hegemônico, colocada ao lado do folclore e da cultura de massa” (PAJEÚ,
2011, p. 114). Sob essa ótica, concebe-se a cultura a partir da marginalização da cultura
popular, usada como um mecanismo de distinção entre as classes sociais, “isto é, a classe
da elite versus a classe subalterna; a cultura popular versus cultura erudita” (PAJEÚ,
2011, p. 114), limitando, assim, toda a riqueza de significados que o domínio cultural
abarca.
Como vimos, a cultura não apenas representou uma relação de poder entre as
classes sociais mas também serviu para fins mercadológicos, sendo traduzida como objeto
de desejo e de consumo. Essa visão de cultura está fundamentada numa perspectiva
antropológica de que a cultura representava os valores, os costumes e a mentalidade do
povo.
De acordo com Canclini (1999), a cultura popular está inserida num processo de
muitas contradições entre moderno e tradicional; culto e popular; hegemônico e
subalterno. Apesar de hoje existir uma predileção pelo tradicionalismo que se combina
com o moderno, no que diz respeito à exaltação dessa tradição com vistas a perpetuar a
modernização, essa dicotomia colocada pelo autor ainda, de certo modo, persiste.
Em oposição a essas concepções, os atuais estudos orientam-nos a pensar o
conceito de cultura não como um conjunto de características e de costumes que
diferenciam uma sociedade da outra, mas como um “sistema de relações de sentido que
identifica diferenças, contrastes e comparações” (CANCLINI, 2015, p. 24). Essa
redefinição do conceito de cultura, ao invés de comparar culturas, deixa evidentes as
misturas e os mal-entendidos que se estabelecem entre os grupos. Para entender os grupos
sociais, é necessário descrever como se apropriam dos produtos materiais e simbólicos
alheios e os reinterpretam (CANCLINI, 2015). A cultura popular caracteriza-se pela
heterogeneidade, pelo hibridismo; portanto, hoje não deve mais ser entendida na mesma
visão apresentada pelos folcloristas e antropólogos.
Na esteira desse pensamento, existem outros tantos modos de compreender a
cultura. A concepção de Bakhtin (2013) surge como resposta a essas diversas vertentes.
36
Como se sabe, o autor não restringiu seus estudos apenas à reflexão sobre a linguagem;
seu empreendimento visa a um campo mais vasto, como a cultura popular.
O autor mergulha no estudo da cultura popular ao analisar a obra de François
Rabelais no contexto da Idade Média e do Renascimento. A festa carnavalesca coloca-se,
nesse entendimento, como um dos elementos centrais em toda obra de Rabelais. Para
Bakhtin (2013), é impossível não recuperar essa cultura para compreender a obra literária.
A prosa não existe isolada da realidade e é nessa relação entre o autor e seu universo que
a cultura popular tem um papel preponderante. Ainda segundo o autor, o ponto “chave”
para mergulhar na obra rabelaisiana é a materialização de uma outra “visão de mundo, do
homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial,
exterior à igreja e ao Estado” (BAKHTIN, 2013, p. 4-5).
Os pilares desse universo da cultura cômica popular é o riso, o vocabulário, a festa,
a feira na praça pública, o banquete, a imagem grotesca, o baixo material e corporal. Para
compreender esse universo particular, o autor deixa claro que ele não é homogêneo, os
mundos culturais coexistem e um não predomina sobre a outro. O que distingue a cultura
popular da Idade Média ‒ em que o “riso ocupa o lugar de destaque” (BAKHTIN, 2013,
p. 23)” da cultura “oficial” é um conjunto de expressões comuns e de uma visão de mundo
como um “processo ambivalente, interiormente contraditório” (BAKHTIN, 2013, p. 23).
Como se pode constatar, o autor não trata da cultura popular como sendo
independente da cultura “oficial”. Vê-se, ao contrário, que ela só existe e só faz sentido
se compreendida em partilha. Assim sendo, a cultura popular coloca-se paralela a um
universo “oficial”, interligada à cultura de elite.
Consoante entende Bakhtin (2013, p. 122), o carnaval
[...] propriamente dito (repetimos, no sentido de um conjunto de todas
as variadas festividades de tipo carnavalesco) não é, evidentemente, um
fenômeno literário. É uma forma sincrética de espetáculo de caráter
ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral,
apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de
épocas, povos e festejos.
Outra característica importante da cultura popular observada por Rabelais é o
tempo e o espaço, cronotopo5. No carnaval, ocorre um cronotopo diferente daquela
5 Conceito usado para Bakhtin por explicar o tempo e o espaço em que ocorre a festa carnavalesca e que
logo depois ele transporta para a obra literária.
37
concepção de mundo medieval; trata-se de “uma nova forma de tempo e uma nova relação
entre o tempo e o espaço” (BAKHTIN, 2013, p. 315-316).
O conceito de carnavalização criado por Bakhtin (2013) surge a partir da
compreensão dos modelos do carnaval e da cultura popular na Idade Média e no
Renascimento. O carnaval diz respeito à festa propriamente dita, ao ritual carnavalesco.
Já a carnavalização é a inversão da ordem durante essa manifestação cultural.
Sobre tais concepções, Ponzio (2009, p. 172) assim elucida:
Bakhtin chama de ‘carnavalização’ da literatura a transposição da
linguagem do carnaval à linguagem literária, que se reflete em várias
formas simbólicas (ações de massa, gestos individuais, etc.), unificadas
pela visão do mundo que todas elas expressam. Entre essas duas
linguagens, o carnavalesco e o artístico-literário, produz-se uma relação
de afinidade que tem permitido historicamente, a passada da primeira
para a segunda, isto é, a transposição, a tradução da linguagem
carnavalesca para a linguagem da literatura.
Nesse sentido, a carnavalização deve ser pensada a partir da transposição da
linguagem carnavalesca para o universo literário, que, obviamente, não se restringe ao
caráter verbal da obra, mas a todo o conjunto de significados e expressões de gestos que
envolve o carnaval. Todos esses elementos exprimem uma visão de mundo, uma
cosmovisão carnavalesca; melhor dizendo, uma visão de mundo que atravessa esse
universo, que é o carnaval, entendido como os modos de conceber o mundo e
experimentá-lo.
Assim, para pensar a cultura popular e suas diversas manifestações, do ponto de
vista bakhtiniano, é preciso entender que suas contribuições surgem como resposta às
outras concepções. Para o autor, não existem limites definidos quando se trata de cultura
popular, como bem traduzem suas próprias palavras:
não se deve, porém, imaginar o domínio da cultura como uma entidade
espacial qualquer, que possui limites, mas que possui também um
território interior. Não há território interior no domínio cultural: ele está
inteiramente situado sobre fronteiras, fronteiras que passam por todo
lugar, através de cada momento seu, e a unidade sistemática da cultura
se estende aos átomos da vida cultural, como sobre fronteiras: nisso está
sua seriedade e importância; abstraído da fronteira, ele perde terreno,
torna-se vazio, pretensioso, degenera e morre (BAKHTIN, 2013, p. 29).
38
Essa concepção nos permite pensar a cultura entre fronteiras, numa relação de
troca, de aproximação. A cultura está em todos os lugares, está nos diversos grupos
sociais, nas comunidades e nas diversas esferas, sempre em diálogo, em embate e em
constante transformação. Portanto, não podemos falar de cultura no singular; não existe
um único signo para definir o popular, porque são distintos fenômenos ligados e atrelados
a ela. Essas variadas manifestações culturais se constituem nas relações dialógicas, nas
diversas esferas. E é justamente essa mistura, essas diferenças, essa pluralidade ‒ e como
se relacionam ‒ que interessa a Bakhtin.
Em consonância com o pensamento de Bakhtin sobre cultura popular, Hall (2003),
a partir de estudo realizado por Allon White, propõe pensar a relação entre cultura popular
e cultura hegemônica diferente da “metáfora clássica”, ou seja, mudar os velhos padrões
de pensar o conceito de cultura. Para o autor, não se deve dicotomizar cultura popular e
cultura “hegemônica”, colocando-as como opostas. Trata-se de problematizar essa
relação, mesmo porque
[...] o que é surpreendente e original a respeito do “carnavalesco” de
Bakhtin enquanto metáfora da transformação cultural e simbólica é que
esta não é simplesmente uma metáfora de inversão – que coloca o
“baixo” no lugar do “alto”, preservando a estrutura binária de divisão
entre os mesmos. No carnaval de Bakhtin, é precisamente a pureza
dessa distinção binária que é transgredida. O baixo invade o alto,
ofuscando a imposição da ordem hierárquica; criando, não
simplesmente o triunfo de uma estética sobre a outra, mas aquelas
formas impuras e híbridas do “grotesco”; revelando a interdependência
do baixo com o alto e vice-versa, a natureza inextricavelmente mista e
ambivalente de toda vida cultural, a reversibilidade das formas,
símbolos, linguagens e significados culturais; expondo o exercício
arbitrário do poder cultural, da simplificação e da exclusão, que são os
mecanismos pelos quais se funda a construção de cada limite, tradição
ou formação canônica, e o funcionamento de cada princípio hierárquico
de clausura cultural (HALL, 2003, p. 226).
De acordo com Hall, não é esse o processo de carnavalização sobre o qual Bakhtin
aborda; não se trata de uma metáfora da inversão: o alto e o baixo não desaparecem; as
duas culturas estão numa relação de poder. A carnavalização, para Bakhtin, é uma relação
de resistência e transgressão. A oposição está, nessa relação, na problematização do alto
e do baixo. Numa visão marxista, a lógica é a de que uma se opõe a outra, e uma vence a
outra, rompendo com o hibridismo.
39
A cultura popular não surge a partir da cultura de elite e para se opor a ela. As
duas estão numa relação de troca; portanto, não há dicotomias rígidas entre elas. Colocá-
las em diálogo foge dessa lógica, coloca-as em relações semânticas. O “alto” e o “baixo”
existem, mas não é uma relação simples. A cultura do alto não apaga a do baixo. São de
ordem da ambivalência, do híbrido. A plurivalência e o dialógico permitem viabilizar essa
metáfora da transformação. A cultura popular e a cultura oficial estão numa relação de
alteridade, de transgressão, por isso o conceito de carnavalização. Para Bakhtin (2013),
durante um determinado período, nas festas, nas ruas, nas praças, as relações hegemônicas
são invertidas. O não oficial é considerado canônico e hegemônico, como se as outras
manifestações culturais não existissem.
No Brasil, a ideia de cultura e sociedade brasileira constituiu-se, durante muito
tempo, numa relação complexa. Algumas manifestações culturais passaram a ser usadas
como instrumento de poder entre as classes sociais e a refletir uma disputa/jogo entre
culturas consideradas hegemônicas e populares. Como já mencionamos na sessão
anterior, ao discutir sobre identidade e relação de poder, a classe dominante da sociedade
apodera-se de um conjunto de conhecimentos para exercer maior influência sobre as
outras classes sociais e manter um status de supremacia e vigência.
Vale ainda recordar que, durante os primeiros séculos de história brasileira, a
sociedade era basicamente constituída por senhores e escravos. Com a instauração da
República, seguida de um grande desenvolvimento no país, surgem, nesse novo contexto
socioeconômico, duas classes sociais distintas: a classe operária e a classe burguesa.
Desde o início, a elite brasileira cercou-se de bases jurídicas, religiosas e
científicas para subjugar a classe dominada, sobretudo os negros. Estes eram proibidos
de exercer seus direitos sociais e o desenvolvimento pleno da cidadania. As teorias raciais
do século XIX serviram para assegurar a superioridade da classe branca em relação às
classes representadas pelos não-brancos. A classe dominante, constituída por brancos,
colocava-se como raça superior e considerava os negros e os mestiços um atraso à
sociedade branca, rica e civilizada. Circunscrito nesse cenário, o Brasil vive um período
de branqueamento do tom da pele, assimilando unicamente os traços da cultura branca.
Esse processo contribuiu para aniquilar toda e qualquer autoestima do negro e sua
possível luta pelos direitos de igualdade, conformando-se ante os privilégios do branco e
sendo obrigado a aceitar a superioridade deste.
40
A classe dominante fez uso de todo seu poder para afogar qualquer artefato
cultural negro, principalmente o samba e o candomblé que, por sua vez, eram
manifestações de resistência a toda maneira de exclusão e segregação de sua cultura.
Nessa perspectiva, não podemos falar de cultura popular sem falar de resistência, pelo
menos em relação aos séculos anteriores. E cabendo uma melhor verticalização dessa
temática, reservamos à próxima seção tal abordagem, em que contemplaremos os
processos de resistência e transgressão da cultura popular, tendo como foco a cidade do
Rio de Janeiro.
2.3 AS FESTAS POPULARES DO RIO DE JANEIRO: RESISTÊNCIA E
TRANSGRESSÃO
Vimos, na seção anterior, que, ao estudar as festas populares na Idade Média e no
Renascimento, Bakhtin (2013) mostrou que essas manifestações, em especial o carnaval,
são fecundos espaços para a compreensão das tensões e conflitos das sociedades. Apesar
da singularidade do contexto social e histórico, o estudo realizado pelo autor contribui
para uma visão mais abrangente sobre as festas populares, (particularmente o carnaval),
o que nos permite compreender, um pouco mais, a evolução e o significado das escolas
de samba, bem como os processos culturais que ocorreram na cidade do Rio de Janeiro
antes de se configurarem em elemento da cultura nacional.
Ademais, a história das escolas de samba está diretamente ligada às manifestações
culturais de origem popular que ocorreram na cidade do Rio de Janeiro. É impossível
falar dessa instituição sem tratar do árduo caminho que os sujeitos (seus atores)
enfrentaram para se inserir e permanecer numa cidade que insistia em marginalizá-los.
Como veremos no decorrer desta seção, as escolas de samba não apenas renovaram a festa
carnavalesca mas também conferiram identidade aos sujeitos e aos espaços habitados por
eles (FERNANDES, 2001).
Inspirando-nos, a seguir, nas palavras de Bakhtin sobre o conceito de festa, esta
seção visa discutir sobre as festas populares do Rio de Janeiro, a princípio, como elemento
de resistência e transgressão, até se transformarem em uma das maiores manifestações
culturais do país, a ponto de as escolas de samba serem reconhecidas como símbolo da
identidade de toda uma nação.
41
as festividades (qualquer que seja o seu tipo) são uma forma primordial,
marcante, da civilização humana. Não é preciso considerá-las nem
explicá-las como um produto das condições e finalidades práticas de
trabalho coletivo nem, interpretação mais vulgar ainda, da necessidade
biológica (fisiológica) de descanso periódico. As festividades tiveram
sempre uma concepção do mundo. Os “exercícios” de regulamentação
e aperfeiçoamento do processo do trabalho coletivo, o “jogo no
trabalho”, o descanso ou a trégua no trabalho nunca chegaram a ser
verdadeiras festas. Para que sejam, é preciso um elemento a mais, vindo
de uma outra esfera da vida corrente, a do espírito das ideias. A sua
sanção deve emanar não do mundo dos meios e condições
indispensáveis, mas daquele dos fins superiores da existência humana,
isto é, do mundo dos ideais. Sem isso, não pode existir nenhum clima
de festa (BAKHTIN, 2013, p. 8, grifo do autor).
No fragmento acima, podemos observar, já na antiguidade, que as festividades são
importantes instrumentos de socialização entre os homens e uma necessidade humana
(foge de uma explicação biológica ou fisiológica). Ao falar de festa, Bakhtin (2013) toma
especialmente o carnaval por ser um momento de transgressão; por isso mesmo, longe de
representar prazer e descanso. O carnaval de que Bakhtin fala é a festa, um “espetáculo
ritual”, em cujo transcurso o tempo é suspenso e a vida transforma-se “como um modo
particular de existência” (BAKHTIN, 2013, p. 8). Essas manifestações culturais
expressam uma outra visão de mundo e de ideais, que circundam a existência, inerentes
àqueles em que estão imersos. Para o homem medieval, as festas surgiam como uma nova
possiblidade de vida, posto que
[...] durante o carnaval é a própria vida que representa, e por um certo
tempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específica
do carnaval, seu modo particular de existência. O carnaval é a segunda
vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva. A festa
é a propriedade fundamental de todas as formas de ritos e espetáculos
cômicos da Idade Média (BAKHTIN, 2013, p.7).
Trazendo as concepções de Bakhtin para pensar as festas populares do Rio de
Janeiro, é importante situar que as primeiras manifestações carnavalescas dessa cidade
ocorreram no período colonial e imperial, “ainda que celebrados fora do período do
carnaval” (MATOS, 2005, p. 18). Muitas aconteciam durante as festas religiosas que
dominavam o seu calendário festivo. As festas partiam de dentro das igrejas para as ruas
(TINHORÃO, 1962) e se tornaram um importante momento lúdico e mais esperado pela
população carioca. Este também era o átomo em que os grupos populares dividiam o
42
mesmo espaço com a monarquia que “transformava suas aparições em espetáculo,
transformando realidade em representação” (SCHARCZ, 1998, p. 253).
Desde o período colonial, esses festejos ocorriam dentro do calendário religioso e
duravam até três dias; eram celebrados em praças públicas, mas a frente das igrejas ainda
era o espaço central onde aconteciam essas manifestações que envolviam um grande
público. Assim, além do carnaval, as festas religiosas continuavam sendo o principal
ponto de encontro entre as pessoas, pois surgiam como uma oportunidade lúdica para
esses sujeitos. De acordo com Albin (2009, p. 250), “o carnaval carioca seria influenciado
em suas origens mais remotas por festas de igrejas como as da Glória, da Penha, da Matriz
e por procissões religiosas, como as de São Jorge [...]”.
De acordo com Cabral (1996), o Rio de Janeiro, quando capital do Brasil, recebeu
um grande contingente de pessoas vindas de várias regiões do país, entre eles escravos,
além de africanos vindos de seus lugares de origem, “transformando a cidade numa
espécie de síntese da cultura popular do país” (CABRAL, 1996, p. 23).
Nesse contexto, a festa da Igreja da Penha foi um importante espaço para a
expressão cultural dos segmentos mais populares e “encontrou seu apogeu em fins do
século XIX e início do XX [...]” (SOIHET, 1998, p. 20). Para chegar à Igreja da Penha
durante o primeiro período, não era uma tarefa fácil: alguns chegavam de carros de bois,
em burros, cavalos, a pé. E ainda havia outros que se deslocavam bem antes para chegar
na véspera e garantir seu espaço com bastante antecedência. Com a criação do trem e a
facilidade de deslocamento, o número de frequentadores passou a ser maior.
Vários intelectuais da elite carioca da época expressavam seu desprezo e
preconceito a essas manifestações, chegando mesmo a sugerir a proibição da
“escandalosa e selvagem romaria” (SOIHET, 1998, p. 24). Vale salientar que, durante as
celebrações da igreja da Penha, além da presença significativa do segmento pobre, havia
“inclusive ‘senhoras da nossa melhor sociedade’ e famílias das ‘mais distintas’[...]”
(SOIHET, 1998, p. 23, grifo do autor). Tempos depois, pessoas de pontos mais afastados
passaram também a comparecer; dentre eles, a “comunidade de negros baianos, que, nas
décadas iniciais do nosso século, teriam passado a predominar” (SOIHET, 1998, p. 24).
Além do cumprimento de promessas e realização de missas, a festa da igreja da
Penha assumia uma natureza de arraial, com bandeirolas, barraquinhas de jogos, prendas,
muito vinho, comidas típicas e apresentações musicais e de dançarinos. Em torno das
43
famosas barracas lideradas pelas “tias”, os populares reuniam-se e se formavam rodas de
samba.
Sobre a festa realizada na Igreja da Penha, Soihet (1998, p. 24) observa:
[...] um contingente significativo era constituído pelos negros, que, nas
décadas iniciais do nosso século, teriam passado a predominar. Desses,
especial importância teve a comunidade de negros baianos, liderados
pelas famosas “tias” que armaram na Penha suas barracas, ponto de
encontro e de identidade cultural. Através da culinária, da música e da
dança, atraíam não só seus conterrâneos como os de outros locais. Em
torno dessas barracas formavam-se as rodas de samba, das quais
participavam operários, trabalhadores em geral e alguns dos capoeiras
mais famosos.
Assim, a festa da igreja da Penha constituía-se em um importante canal de
comunicação e socialização entre as várias classes sociais cariocas. “Na verdade, ali os
populares viviam um grande acontecimento, sem uma demarcação rígida, entre o sagrado
e o profano, categorias que se mesclam” (SOIHET, 1998, p. 26).
Podemos observar que, durante essas festividades, há a desestabilização da
seriedade da festa religiosa, quebrando sua oficialidade. Essa é a cosmovisão
carnavalesca a que Bakhtin faz menção. Coloca em diálogo o que estaria separado
temporariamente e fisicamente, o “alto” e o “baixo”, o “sagrado” e o “profano”. O riso
constitui-se o grande motor da cosmovisão carnavalesca. Todo esse processo de
carnavalização dá-se através do riso, pois o riso desestabiliza qualquer norma e lei,
criando o processo de subversão.
Os grupos populares bebiam, comiam, jogavam, cantavam e dançavam “batendo
palma e sacudindo o corpo desengonçadamente” (SOIHET, 1998, p. 24). Esse
comportamento era considerado um atraso e atrapalhava a nova fase que os grupos de
poder desejavam para o país. O alto estrato da sociedade buscava, de todas as formas,
coibir as tentativas de lazer dos grupos populares. A festa da Penha tornou-se palco de
grandes conflitos, pois era constante a presença da força policial que reprimia e perseguia
os participantes.
Muito ao contrário aconteceu com o samba moderno e seus desfiles.
Pelo menos até a invenção das escolas de samba, no final da década de
1920, os sambistas e a prática do samba eram reprimidos em seus
lugares de reunião, em suas rodas de samba, nos terreiros de macumba,
e em grandes festas, como no Carnaval e até na Festa da Igreja da Penha.
Mesmo em pequenos grupos, em suas casas ou sozinhos nas ruas, os
sambistas podiam ser coagidos e ter seus instrumentos musicais
apreendidos pela polícia. Por incrível que pareça, o direito de sambar
44
nas ruas do Rio de Janeiro foi durante muito tempo apenas tolerado,
sendo rotineira e arbitrariamente reprimido e proibido (FERNANDES,
2001, p. 5).
Esses sujeitos buscavam todas as formas alternativas para satisfazer suas
necessidades lúdicas, seu direito de se divertir. Mesmo com a proibição do samba e dos
instrumentos musicais que os acompanhavam, lançavam mão de vários outros artifícios.
Os grupos populares reagiram à exclusão e insistiram em sua participação social
por meio de sua cultura. Assim, a festa carnavalesca surge como um “momento
privilegiado”, como um “processo de resistência” (SOIHET, 1998, p. 50). Era o momento
em que a população marginalizada ocupava as ruas com suas músicas e danças.
Inserida nesse contexto, a classe dominante carioca ambicionava pelo progresso
do país e pela modernização aos moldes parisienses. A pretensão era transformar a cidade
em uma capital branca, rica, moderna e civilizada. Em contrapartida, a presença mais
marcante das classes populares em todos os espaços da cidade e as suas manifestações
culturais, em sua maioria de origem negra, representavam um atraso e ignorância para a
elite carioca. Por isso, “[...] teriam recorrido à força, apelando mesmo para a repressão
policial” (SOIHET, 1998, p. 28). Daí em diante, a festa da Igreja da Penha transformou-
se num espaço de grandes conflitos.
Mesmo quando fazer samba não era mais uma proibição, os populares não tinham
permissão para o uso dos instrumentos musicais. Porém, como nos informa Soihet (1998),
eles não se rendiam às proibições e criavam alternativas: usavam as palmas das mãos,
batiam garrafas ou até mesmo pedaços de paus. As letras dos sambas também
expressavam o direito de se divertirem. Todos esses processos de subversão e
transgressão ocorrem “através da carnavalização. Utilizavam-se do deboche, da paródia,
da inversão para tornarem explícita sua consciência da relatividade das verdades das
autoridades no poder [...]” (SOIHET, 1998, p. 46).
Ainda de acordo com Soihet (1998), a Belle Époque foi o período marcado pelo
lema da civilização e do progresso do país. Queria, a qualquer custo, higienizar a cidade.
Os “desfavorecidos” foram varridos de suas moradias nas áreas centrais para dar lugar ao
grande projeto de urbanização que transformava esse espaço da cidade em verdadeiro
“boulevard francês”.
45
Apesar das restrições, o carnaval continuava sendo o momento em que a classe
popular resistia às perseguições, às regras impostas. A dança e a música foram a forma
encontrada por esses sujeitos para reagirem à exclusão e à segregação.
Uma das principais iniciativas modernas foi a criação de um carnaval aos moldes
europeus, reservado à camada rica da sociedade carioca, com direito a bailes de máscaras
e ricas fantasias. “Elas significaram uma afirmação de posições ilustradas” (SOIHET,
1998, p. 54) e foram criadas com o intuito de dominar as celebrações carnavalescas, até
então dominadas pelo entrudo6.
A rua do Ouvidor era o espaço mais procurado pela multidão durante as festas
carnavalescas. Lá se assistiam a diferentes manifestações de cunho popular: cordões de
mascarados, os Cuncubis Africanos, os zé-pereiras, os ranchos e blocos, e ainda ao desfile
elegante das grandes sociedades7. Reprimida sob tais condições, a camada popular, então
varrida dos principais pontos carnavalescos, como a rua do Ouvidor, rendeu-se aos
“ranchos (originários da zona portuária) e ao carnaval da Praça Onze e do Largo de São
Domingos” (MATOS, 2005, p. 24). Na avaliação de Soihet (1998, p. 56),
[...] apesar do esforço para segmentar espaços, para restringir a avenida
ao carnaval dos segmentos mais elevados, isso não se concretizou de
todo. A presença local dos segmentos populares e a indesejada mistura
de classes eram uma realidade, não obstante o empenho desenvolvido
[...].
Ao final do século XIX, o carnaval passou a ocorrer em várias ruas do centro do
Rio de Janeiro. A praça onze foi conhecida como “o ponto alto do samba”. Assim, para a
elite carioca, o “Rio, em vez de progredir com o tempo, afundava-se cada vez mais em
gostos rudes e frívolos” (SOIHET, 1998, p. 56). As ruas eram enfeitadas por bandeirolas
e ficavam intransitáveis. Por lá passavam vários grupos populares de carnaval: os
mascarados, os cucumbis africanos, os cordões e os zé-pereiras. Muito embora se
posicionassem contrários a essa mistura, os representantes das grandes sociedades ainda
não haviam separado seus desfiles das manifestações populares. Logo depois, no entanto,
abandonaram as ruas para ocuparem teatros e clubes luxuosos. Desse modo, podemos
6 O entrudo é um tipo de festa popular de origem ibérica, trazida pelos portugueses e que permaneceu
no Brasil até meados do século XIX. Os participantes jogavam água nas pessoas, farinha e limões de
cheiro. Era considerado pelas elites como um tipo de “jogo selvagem e bárbaro”. E considerado
incompatível com a civilização que se buscava (FERNANDES, 2001, p. 14). 7 Desfile reservado à classe rica da sociedade carioca aos moldes europeus.
46
observar que, por certo período, o “alto” e o “baixo” ocuparam o mesmo espaço na festa
carnavalesca no cenário carioca.
Com a virada do século, o confronto entre as classes populares e a elite
intensificava-se. Vale ressaltar que o cenário carioca do século XX foi marcado por
grandes transformações. Houve um grande crescimento na indústria automobilística,
contribuindo para a chegada considerável de migrantes em busca de melhores
oportunidades. Além disso, muitos desses espaços eram constituídos, em sua maioria, por
mestiços, brancos mais humildes e negros, ex-escravos, que conheciam a liberdade há
pouco tempo. Excluídos da sociedade e sem lugares para se estabelecerem devido à
superpopulação instalada na cidade, esses sujeitos aglomeraram-se em morros e encostas
formando um novo cenário no Rio de Janeiro. Esse período foi marcado também pela
intolerância às favelas. Convém lembrar que essas comunidades estavam em processo de
consolidação e sua infraestrutura era distinta da que se observa atualmente. Por isso, um
dos grandes projetos políticos da época era a higienização desses espaços marginais da
cidade.
Sobre esse período, Fernandes (2001, p. 57) observa:
o estigma e a intolerância contra estas formas de habitação cresciam
tanto quanto elas se expandiam por todo o território da cidade,
impulsionadas pela imigração galopante e por um urbanismo
excludente que concentrava seus investimentos nas áreas nobres e não
destinava quase nada aos bairros e subúrbios populares.
Mesmo estigmatizada, a classe popular continuava indo às ruas com suas
manifestações culturais. Graças a essa insistência, sua forma de resistir às imposições dos
dominantes, sua cultura popular sobreviveu, provocando mudanças não apenas no
carnaval mas também na própria sociedade brasileira. Os negros tiveram um papel
importante nessa transformação e circularidade cultural.
O Estado viu a importância de manter essas manifestações, posto que seriam a
forma mais autêntica de expressão cultural, capaz de garantir um carnaval que despertasse
o interesse dos turistas. Assim, o carnaval, antes considerado produto da marginalidade,
passa a figurar nas páginas dos jornais como carnaval de verdade, o carnaval do samba.
As escolas de samba e suas comunidades deixam de ser lugares estranhos e passam a ser
locais de visitação por estrangeiros e celebridades, “chegando ‘senhoras da alta
47
sociedade’ a subir o morro e pedir apresentação dos sambistas” (SOIHET, 1998, p.180,
grifo do autor).
Após esse passeio pelos fatos mais marcantes das manifestações populares na
cidade do Rio de Janeiro, trata-se, a seguir da criação das escolas de samba e de sua
transformação em uma grande instituição cultural.
2.4 ENFIM, AS ESCOLAS DE SAMBA E O SAMBA: DENTRO DA ORDEM DO
PERMITIDO
Ao falarmos de escola de samba na contemporaneidade, não podemos deixar de
levar em conta que, diferente do século anterior, essas escolas, hoje, institucionalizaram-
se e, por conta de todas essas transformações, tiveram de se adaptar às novas exigências
advindas de sua reconfiguração como símbolo da cultura nacional. Em torno dessas
agremiações, como se sabe, há muitos interesses políticos e econômicos, o que as
transforma em espaços de disputas e de tensões. Por isso mesmo, não podem ser
consideradas apenas como uma manifestação cultural; são, na verdade, uma grande
instituição financeira, um grande empreendimento, que abarca grandes responsabilidades.
Mas antes de aprofundar essa temática sobre a industrialização dessa manifestação
de origem popular, faz-se pertinente reconstituir o percurso das escolas de samba, desde
seu surgimento até os dias atuais, dialogando com as concepções de Bakhtin (2013) sobre
o carnaval.
Como vimos na seção anterior, todas as manifestações culturais de origem negra
que provinham dos morros, das favelas e do subúrbio do Rio de Janeiro eram recriminadas
e estigmatizadas. Para a classe dominante, esses grupos e suas expressões culturais
“maculavam” a tão cobiçada imagem civilizada da sociedade brasileira. Apesar de toda
campanha discursiva para eliminar as formas de manifestação desses grupos, “a ação e
poder sobre eles não obteve êxito” (SOIHET, 1998, p. 120). A classe popular resistia a
toda opressão e intolerância por meio de sua cultura. “E as manifestações populares não
só persistiram, como também se difundiram e se entrelaçaram com a cultura dominante,
dando lugar à circularidade cultural” (SOIHET, 1998, p. 120).
Antes do surgimento das escolas de samba, em meados do século XIX, vários
grupos carnavalescos desfilavam pelas ruas do Rio de Janeiro. Segundo Augras (1998),
para alguns estudiosos, as escolas de samba seriam uma junção dos blocos, cordões e
48
ranchos “herdeiros, por sua vez, dos ternos de reis nordestinos” (AUGRAS, 1998, p. 17).
Já o samba das escolas vem dos terreiros de candomblé e do samba baiano de roda.
Sua origem remonta à década de 20, no bairro Estácio de Sá, mais especificamente
no morro São Carlos, espaço de encontro entre os sambistas que se reuniam em rodas
para produzir letras de samba. Esse local do Rio de Janeiro era dominado por morros e
favelas que se tornaram importantes na significação e formação da cultura desses sujeitos.
Ismael Silva foi o responsável pela fundação da primeira escola de samba “Deixa Falar”,
e também autor do termo “escola de samba”. Segundo Albin (2009, p. 253), a escolha
dessa expressão, pelo sambista, para nomear essas agremiações tem sua justificativa
assentada em três razões:
a primeira – e a menos importante ‒, porque a turma do Estácio se
reunia quase em frente à Escola Normal, situada na esquina da rua
Machado Coelho com a rua Alhares. A segunda razão – de importância
bem maior ‒, era o fato de, ao se intitularem escolas de samba, deferiam
a si mesmas a graduação de bambas, de mestres, de professores na arte
de produzir sambas. O terceiro motivo – o mais importante de todos ‒,
era que o termo Escola de Samba qualificaria uma possível melhoria e
ascendência em relação aos demais blocos carnavalescos, seus
concorrentes.
A escolha do nome “escola de samba” deu-se principalmente em razão de
poderem estas se diferenciarem dos blocos carnavalescos e de criar “algo melhor que os
demais concorrentes” (ALBIN, 2009, p. 253). No início de sua criação, as escolas de
samba serviam apenas como diversão e local de encontro para fazer samba, sem grandes
responsabilidades e imposições. Aos poucos, os blocos carnavalescos assumiram novo
posto de escola de samba.
A grande inovação destas em relação às outras manifestações culturais foi o uso
diferenciado dos instrumentos musicais, como tamborins, latas de manteiga, surdos,
cuícas, pandeiros e reco-recos, “cuja função era marcar o ritmo da dança e dos sambas
cantados” (FERNANDES, 2001, p. 51).
No início, os desfiles aconteciam na Praça XI, de modo mais informal e
espontâneo; reuniam apenas algumas dezenas de pessoas. Nesse período, as escolas de
samba ainda eram fortemente coibidas pela polícia, consideradas “coisa de malandragem”
e de desordeiros. Somente passaram a fazer parte do carnaval carioca a partir da década
de 30, quando intelectuais da época buscavam a construção de uma identidade nacional e
49
a valorização de uma cultura genuinamente brasileira. Um projeto-ideológico constatou
a ideia de cultura como um objeto que pudesse ser possuído e manipulado. Esse período
ficou marcado pelo discurso nacionalista exacerbado. Nesse contexto, muitos elementos
tipicamente populares foram transformados em símbolos da cultura nacional. Para eles, a
expressão cultural que vinha dos morros, favelas e subúrbios cariocas, era o que mais
poderia representar “as coisas nacionais”. Assim, as escolas de samba transformaram-se
em uma das maiores manifestações da cultura brasileira. Fernandes (2001, p. 21), a
propósito dessa questão, tece o seguinte comentário:
com origem nas camadas mais pobres da cidade, fortemente negra, a
escola de samba convergia para a busca de expressões de uma
sensibilidade nacionalista e popular que então agitava o país e cobria o
mundo. Logo encontrou seus defensores e promotores na imprensa. Um
leque de intelectuais e políticos importantes lhe prestou apoio e
legitimidade crescente ao longo do tempo, o que não significa dizer que
o costume de as autoridades promoverem perseguições e
arbitrariedades tenha sido totalmente abandonado.
Com seu formato diferenciado e suas composições de improviso, as escolas de
samba ganharam mais visibilidades dos jornais, que passaram a publicar notas sobre os
seus concursos. Em 1932, o campeonato foi patrocinado pelo Jornal Mundo Esportivo e
as escolas passaram a disputar títulos. Apesar de algumas divergências quanto ao
resultado, a primeira escola a vencer o campeonato foi a Estação Primeira de Mangueira,
de Cartola.
No ano seguinte, quando o samba e as marchinhas se consolidavam nas rádios do
país, o campeonato das escolas de samba começou a receber patrocínio do Jornal
impresso “O Globo”, e o número de escolas desfilantes era duas vezes maior que no ano
anterior. A Mangueira despontou novamente como vencedora do desfile e, desde então,
de acordo com Albin (2009, p. 253), a escola inaugurou “toda uma longa marcha de
glórias” e passou a figurar como um mito da história do carnaval, despertando paixões
até os dias de hoje.
É importante recordar que, apesar do aparecimento das escolas de samba no
cenário festivo carioca, o carnaval ainda era liderado pela alta sociedade, seguida pelos
ranchos e blocos. As escolas de samba ainda eram marginalizadas e desprezadas pela elite
carioca. Em 1934, o Jornal “O Paiz” coloca as escolas de samba em lugar “da excelência
das organizações carnavalescas” (ALBIN, 2009, p. 254). A Mangueira foi novamente
50
campeã, colocando-se em posição de destaque frente às outras escolas, mas contribuindo
para a consolidação das escolas de samba e o “primeiro pacto entre elas, que tomou o
nome de União das Escolas de Samba” (ALBIN, 2009, p.254).
O ponto de partida para a legalização das escolas de samba foi a oficialização do
concurso (1935), desde então inserido no calendário oficial do carnaval carioca. No que
se refere à constituição do desfile das escolas na atualidade, é importante recordar que,
quando começaram oficialmente a fazer parte de uma competição em busca de títulos e a
receber uma ajuda de custo, foram obrigadas a seguir todo um regulamento e, em
decorrência, promover infindáveis mudanças em sua estrutura política e organizacional,
o que determinaria o futuro dos desfiles.
O ano de 1935 estabelece o ponto inicial dos concursos oficiais das
escolas de samba. Na verdade, começaram a ter vida legal a partir daí.
Com o reconhecimento, as escolas de samba ingressaram no calendário
oficial do carnaval carioca, ganharam a sigla G.R.E e o direito de
recebimento de uma verba de ajuda para confecção dos seus carnavais,
chamada subvenção (ARAÚJO, 2003, p. 227).
Esteticamente (e visualmente), as escolas de samba tiveram uma mudança drástica
de um ano para o outro após a legalização. Na opinião de Albin (2009, p. 255), apesar das
mudanças, foi mantida a “inversão da estrutura social do carnaval tão cara ao carnaval”.
Podemos observar que as transformações das escolas de samba ocorreram em
todos os sentidos, inclusive no nome quando passaram a usar a sigla G.R.E (Grêmio
Recreativo Escola de Samba). A década de 30 marcou a história das Escolas de Samba.
E, nas décadas que se seguiram, cada agremiação foi em busca da sua própria identidade
como forma de distinção das outras manifestações culturais que já existiam.
Nas décadas de 40/50, as Escolas de Samba completam o ciclo de
formação e constituem suas ‘espinhas vertebrais’ básicas compostas
pelo enredo, samba enredo, alegorias e fantasias. Esses arcabouços dão
identidade própria às Escolas de Samba. Já é possível diferenciá-las das
Grandes Sociedades, ranchos e blocos” (ARAÚJO, 2003, p. 230-231,
grifo do autor).
Uma forma de marcar essas identidades, essas diferenças, é por meio do sistemas
de signos: a vinculação a uma comunidade ou bairro em que a escola de samba está
inserida, às cores da bandeira, o toque e a qualidade da bateria, os sambistas e toda
estrutura organizacional que compõe as escolas de samba e as torna singulares em relação
51
a outras manifestações populares. Todos esses elementos funcionam como “significante
importante da diferença” (WOODWARD, 2014, p.10).
Mas a grande mudança viria apenas ao final dos anos 50 quando a escola de samba
Salgueiro, fundada em 1953, e figurante obscura no quarto lugar, resolveu surpreender
seu público contratando os carnavalescos Marie Louise e Dirceu Nery. Uma das primeiras
providências foi acabar com as cordas que separavam os desfilantes da plateia, além de
trazer novos e jovens talentos do Teatro Municipal para agregar nos desfiles da escola.
Todas essas novidades, particularmente o interesse por jovens artistas plásticos de
formação universitária, serviram para impor uma nova estética ao carnaval carioca.
Apesar de muitos embates em relação a esse inusitado delineamento, aos poucos as
escolas de samba foram perdendo toda sua essência suburbana e popular.
Para os críticos, a inovação fez com que as escolas perdessem sua identidade
cultural suburbana, “de caráter artesanal e comunitário” (ALBIN, 2009, p. 256). O desfile
passou a ser reservado àqueles que poderiam pagar pelos ingressos caríssimos; o povo
ficaria em casa, assistindo, pela televisão, em suas casas. Com o tempo rigorosamente
cronometrado para o desfile, o que era antes considerado prazer e diversão deu lugar à
correria e ao cumprimento de prazos.
Um registro importante para a ascensão das agremiações foi o início das
transmissões dos desfiles pelas emissoras de televisão na década de 60. O espetáculo
começou então a atrair um público cada vez maior. Além da industrialização da cultura,
da fusão de outras classes no seio da escola, convivia-se com a inconstância dos locais de
apresentação, sempre em deslocamentos.
Outra grande reconfiguração estética no universo das escolas de samba ocorreu,
em 1975, com a chegada da Beija-Flor de Nilópolis, juntamente com seu carnavalesco,
João Jorge Trinta (Joãozinho Trinta), que imprime riqueza e luxo às fantasias, aos carros
alegóricos e às demais alas, o que rendeu à escola três anos consecutivos de vitórias. João
Jorge Trinta contribuiu para a renovação do carnaval carioca de tal forma que a partir de
então passaram a admitir “referências e construções dos grandes shows da Brodway e da
Walt Disney” (ALBIN, 2009, p. 258).
A partir de 1984, com a construção da Passarela do Samba, localizada na Avenida
Marquês de Sapucaí, no centro do Rio de Janeiro, o desfile passou a realizar-se em local
fixo. Com essa definição espacial, a separação social ficou ainda mais visível. “A
organização do espaço no sambódromo é uma hierarquia de visibilidade. Os melhores
52
lugares, que permitem a visão da evolução de toda a escola na pista são os mais caros”
(CAVALCANTE, 1994, p. 57). Em deriva, a transmissão dos desfiles torna-se por demais
importante já que nem todos poderiam adquirir os ingressos.
No mesmo ano, criam-se a liga independente das escolas de samba (LIESA), uma
associação responsável pela organização das escolas do grupo especial. Nesse novo
reordenamento, as escolas que constituem o grupo de acesso (LIERJ8), ao serem
promovidas para o grupo especial, precisam se filiar à LIESA. O desfile do grupo especial
é o único que tem transmissão televisiva para todo o mundo, com apresentações cuja
duração é de 75 minutos para cada escola.
Ao integrar o grupo especial, a escola de samba ganha mais visibilidade, e também
mais admiradores. A mídia televisiva teve (e ainda tem) um papel preponderante na
divulgação dessas escolas de samba, assumindo a exclusividade na transmissão (para
mais de 180 países) daquelas que compõem o primeiro grupo. Como se sabe, não é fácil,
para a maioria das escolas, mesmo para aquelas que são conhecidas do grande público,
permanecer ou fazer parte desse grupo; afinal, elas precisam sempre surpreender com um
grande espetáculo. O desfile desse grupo de elite transformou-se em um grande
espetáculo que encanta o mundo todo. Na esteira dessa festa, não apenas as comunidades
do samba mas também o Estado do Rio de Janeiro movimentam grandes lucros com o
show que proporcionam.
Como dito anteriormente, as escolas de samba nem sempre fizeram parte da festa
carnavalesca; muito menos foram consideradas parte da cultura nacional. Hoje, no
entanto, constituem uma das mais importantes expressões culturais do povo brasileiro.
Ao serem reconhecidas como patrimônio cultural do Brasil, proporcionaram visibilidade
ao lugar e aos sujeitos esquecidos que logo descobriram possibilidades de dar um novo
significado àqueles espaços. A classe dominante da sociedade carioca sentiu então
ameaçada a sua tão sonhada civilização. À população pobre, negra e mestiça foi negado
o direito à cidade e à expressão de sua cultura. Sendo assim, as manifestações populares
surgem inicialmente como uma forma de subversão e transgressão às regras impostas pela
elite carioca.
Atualmente, as escolas de samba se profissionalizaram, gerando milhares de
empregos, pelo necessário acolhimento de profissionais das mais variadas especialidades,
8 Liga independente das escolas de samba do Rio de Janeiro (LIERJ), associação das escolas de samba
do grupo de acesso.
53
como artesãos, artistas especializados, escultores dos mais diversos, trabalhadores
autônomos da própria comunidade (costureiras, bordadeiras, eletricistas, mecânicos), e
tantos outros aqui não mencionados.
Para os críticos de hoje, os desfiles perderam muito do seu purismo, de sua
autenticidade e de suas características da cultura popular. Mas essas transformações
dentro e fora das instituições culturais são regulares. Afinal, situamo-nos em novos
contextos sociais, os sujeitos são outros. A globalização exerce grande influência sobre a
produção cultural. Vivemos o tempo da impermanência e “produzimos cultura” para um
público cada vez mais exigente e difícil de surpreender. As escolas de samba sobrevivem
desse espetáculo, desse público para se afirmar e permanecer na indústria cultural.
Como dito, as festas populares no Rio de Janeiro do século XIX até meados do
século XX podem até confirmar os mesmos sentidos da festa que Bakhtin (2013)
encontrou na Idade Média. Os grupos populares fizeram do riso um instrumento de
resistência e subversão e passaram a incomodar a ordem vigente. Parece-nos o mesmo
riso apresentado pelo autor (2013): o riso que não é ingênuo, o riso que subverte e que
desestabiliza os traços mais sérios, tão sagrados nas sociedades primitivas. Não se trata
apenas de uma expressão facial; ele “contamina” toda a linguagem carnavalesca, e sua
invocação é fundamental quando se trata de cultura popular. E não só o riso,
[...] todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão
impregnadas do lirismo da alternância e da renovação, da consciência
da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela
caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas ‘ao
aveso’, ‘ao contrário’, das permutações constantes do alto e do baixo
(‘a roda’), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias,
travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos
bufões. A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-
se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um ‘mundo ao
revés”. É preciso assinalar, contudo, que a paródia carnavalesca está
muito distante da paródia moderna puramente negativa e formal; com
efeito, mesmo negando, aquela ressuscita e renova ao mesmo tempo. A
negação pura e simples é quase sempre alheia à cultura popular
(BAKHTIN, 2013, p. 9-10, grifo do autor).
Vimos também que, na visão bakhtiniana, as festas carnavalescas surgem como
uma possibilidade de transgressão e não um simples descanso periódico. Nascia para o
homem medieval como uma “segunda vida”.
54
Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de
libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de
abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras
e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e
renovação. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e
regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto
(BAKHTIN, 2013, p. 8).
O contraponto está no fato de que, no carnaval das escolas de samba, não se
encontra esse mesmo “desenho”, uma vez que, ao se institucionalizarem, elas entraram
na ordem do oficial, na ordem do permitido. O desfile transformou-se em produto de
exportação da cultura nacional, mudando todas as características do carnaval configurado
por Bakhtin. Fazer samba não é mais uma proibição. Toda sua estrutura exige
organização e regras bem definidas. O carnaval pós-moderno é estritamente
regulamentado. Para participar da festa, é preciso pagar pelas fantasias, pelas
arquibancadas ou pelos camarotes. O desfile é rigorosamente cronometrado e o
Sambódromo circunscreve-se em um espaço físico bem delimitado. A comissão julgadora
se encarrega de vigiar “o desempenho das escolas [...] para denunciar eventuais deslizes
que a podem levar à desqualificação” (AUGRAS, 1998, p. 16).
A grande festa carnavalesca proporcionada pelo Estado do Rio de Janeiro gira em
torno da mercantilização do desfile e envolve um grande “esquema econômico-financeiro
que assegura altíssimos lucros às diversas instituições que regem a organização do desfile
e sua divulgação” (AUGRAS, 1998, p. 16).
As escolas de samba transformaram-se, portanto, num grande fenômeno popular
que desperta grande interesse econômico. E o mercado não está preocupado com o fato
de serem de origem popular nem de preservar suas tradições, mas com o seu alcance como
objeto de consumo. Sobre a industrialização da cultura popular, Canclini (1997, p. 260)
observa:
Popular é o que vende maciçamente, o que agrada a multidões. A rigor,
não interessa ao mercado e a mídia o popular e sim a popularidade. Não
se preocupam em preservar o popular como cultura ou tradição; mais
que a formação da memória histórica, interessa à indústria cultural
construir e renovar o contrato simultâneo entre emissores e receptores.
E foi bem à satisfação dessa indústria massiva que as escolas de samba
reinventaram-se. Martín-Barbero (2003, p. 322) explicita melhor esse processo:
55
o massivo, nesta sociedade, não é um mecanismo isolável, ou um
aspecto, mas uma nova forma de sociabilidade [...]. Assim, pensar o
popular a partir do massivo não significa, ao menos não
automaticamente, alienação e manipulação, e sim novas condições de
existência e luta, um novo modo de funcionamento da hegemonia.
É justamente graças à massificação e à espetacularização da festa que as escolas
se estabelecem e a cultura popular sobrevive. A contrapartida para essa sobrevida é a
renovação constante para que se possam adequar, a essa nova realidade, os anseios do
novo público que deseja sempre ser surpreendido por um grande espetáculo.
Então, para sobreviverem às novas exigências nesse mundo pós-moderno, líquido
e transitório, as escolas de samba precisam aceitar o novo, ao mesmo tempo em que
buscam celebrar as tradições como uma forma de ser diferente, porque é justamente o seu
caráter exótico que atrai o interesse do público.
O carnaval, a que Bakhtin (2013) alude, é uma festa que acontece em espaço
público; é uma festa para todos; os expectadores não assistem ao carnaval, mas se
misturam e vivem a festa. Não existe limite de tempo e espaço. Os sujeitos assumem
papeis reversíveis. O que ele chamou de carnavalização foi essa liberação temporária das
relações hierárquicas. Para o autor, carnaval é uma festa popular universal, realizada em
um espaço público, onde é permitido todo tipo de expressão.
Nesse cenário de muitas tensões, acordos e desacordos, as festas populares não
apenas permaneceram firmes e fortes na sociedade moderna mas ainda passaram por
grandes transformações, a exemplo do carnaval carioca. A festa e a música foram
primordiais na afirmação da identidade da população marginalizada, dos espaços
ocupados por esses sujeitos, e na conquista de um espaço na sociedade carioca.
Após compreendermos como ocorreu o surgimento das escolas de samba do Rio
de Janeiro, bem como os processos culturais antes de se configurarem como elemento da
cultura nacional, a próxima seção apresentará o nosso estado da arte. Muitos desses
trabalhos irão complementar as discussões ao longo deste estudo.
2.5 ESTADO DA ARTE
Bakhtin construiu todo seu arcabouço confrontando outras teorias vigentes, ou
seja, dialogando com outros enunciados, opiniões e pontos de vista até então produzidos
e em circulação. Nesta seção, também estabelecemos diálogo com outros pesquisadores
56
que revelaram, em seus estudos, aproximações com nosso objeto de pesquisa, o que nos
favoreceu um “confronto” com diferentes abordagens.
Não raro as escolas de samba e o samba são objetos de investigação contemplados
em diversos trabalhos acadêmicos a partir diferentes visões teóricas. As análises recaem
com frequência sobre o surgimento e a ascensão dessas agremiações, principalmente dos
fatores que levaram essa manifestação popular a transformar-se (de um século para o
outro) em símbolo da cultura nacional. São igualmente recorrentes pesquisas que
associam as escolas de samba e o samba à construção da identidade nacional.
Levando em consideração que as identidades na pós-modernidade não são
permanentes, que estão sempre em transição porque os sujeitos são afetados pela
globalização, a nossa pesquisa tem como objetivo precípuo analisar como se constituem
as identidades de escolas de samba na contemporaneidade a partir das representações
evidenciadas nos sambas-exaltação.
Firmado o propósito investigativo, voltamos então para os sujeitos que são
construídos na interação com diferentes interlocutores, na relação com o contexto e, ao
mesmo tempo, afetados pelas mudanças trazidas pela já propalada globalização. E não
podemos esquecer que todas essas transformações fazem com que o homem esteja sempre
se renovando, reinventando-se a si mesmo para melhor adaptar-se a seu tempo e à sua
“nova identidade”, tal como fizeram as escolas de samba em seu processo de readaptação
espaço-temporal.
Neste ponto da abordagem, abrindo espaço às teorias subsidiárias, trataremos, em
primeiro lugar, sobre identidade de escolas de samba a partir de diferentes perspectivas
teóricas; em segundo lugar, sobre identidades de favelas/comunidades e cidades; em
terceiro lugar, sobre as festas populares do Rio de Janeiro que, de alguma forma, se
aproximam da discussão/reflexão de nossa pesquisa; e sobre o gênero samba-exaltação e
hinos institucionais e, por último, as representações identitárias.
2.5.1 Identidades de Escolas de Samba
As pesquisas realizadas por Pavão (2005, 2010) e Ericeira (2009), resguardadas
notáveis distinções/peculiaridades, têm muito a contribuir com a nossa pesquisa pela
semelhança de suas abordagens.
57
Ericeira (2009) trata da reconstrução do passado da escola de samba Portela nas
redes mundiais de computadores. O site foi criado pela equipe Portelaweb e pelos
compositores da escola com o objetivo de reconstruir e valorizar o passado da escola de
samba da Portela. De acordo com o pesquisador, no processo de reconstrução e
preservação desse passado portelense, são utilizados vários mecanismos, entre eles os
sambas-exaltação. O pesquisador observou a necessidade dos portelenses de voltar ao
passado em busca de suas glórias e de seus valores. Para ele, “graças aos apelos afetivos
que empreendem, os sambas de exaltação acionam processos explícitos de identificação
coletiva desses aficionados com a Portela” (ERICEIRA, 2009, p. 160). Essa valorização
do passado torna-se fundamental no processo de construção da identidade social como
portelense. Esquecer esse passado poderia resultar na perda de valores considerados
essenciais para a escola e também desfazer os laços afetivos que unem os portelenses e
os vinculam à agremiação.
A escola de samba da Portela também é objeto de pesquisa de Pavão (2005), que,
por sua vez, discute as transformações nas redes de sociabilidade da escola de samba a
partir das mudanças ocorridas nas últimas décadas. De acordo com esse pesquisador, as
transformações exteriores às escolas, e no interior da própria escola, contribuíram para
mudanças significativas nas redes de sociabilidade, responsáveis por manter o
funcionamento das engrenagens das escolas de samba cariocas. Nos últimos anos, houve
uma substituição da “comunidade tradicional” pela “comunidade eletiva”, embora a
comunhão de ambas seja essencial para o sucesso da agremiação. A comunidade da
Portela está localizada no bairro Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Por ser um bairro
heterogêneo, a agremiação não desperta o interesse dos moradores, caindo, muitas vezes,
no esquecimento. Em contrapartida, a indústria cultural contribui para que a memória da
agremiação ultrapasse fronteiras locais, incorporando indivíduos de outras regiões. Há,
nesse sentido, um deslocamento das relações sociais do contexto local, levando-se em
conta o fato de que algumas pessoas, por afinidade, elegem a escola como elemento de
identidade.
Pavão (2010), em sua tese de doutorado, desvela como, num contexto de mundo
globalizado e de influências culturais que desencadeiam a chamada crise de identidade,
“o samba carioca ressignifica suas práticas e atualiza sua importância para a sociedade
nos dias atuais” (PAVÃO, 2010, p. 11). Fundamentado em autores como Hall, Canclini,
Martín-Barbero, entre outros, o autor discute sobre identidades, cultura e globalização.
58
Observa que, sendo o Brasil um país múltiplo, de culturas diversas em todo seu vasto
território, torna-se uma utopia a ideia de uma identidade cultural comum a todos, ou uma
visão essencialista que desconsidera tal realidade. Uma das justificativas apresentadas
pelo pesquisador para explicar a rápida ascensão das escolas de samba no cenário cultural
nacional é a de que as “classes populares assumem o protagonismo dos discursos
românticos, sendo associadas à pureza pré-capitalista” (PAVÃO, 2010, p. 310),
atribuição feita anteriormente aos indígenas, quando, junto à natureza exuberante foram
eleitos “representantes originais da nação” (PAVÃO, 2010, p. 310). Destaca também o
papel preponderante do mercado editorial na consolidação dos projetos nacionalistas e na
construção de uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 1989). Do ponto de vista do
autor, houve também “transformações ideológicas do período em questão” (PAVÃO,
2010, p. 311), haja vista o fato de que as teorias raciais que, até então, condenavam a
sociedade brasileira ao fracasso, deram lugar a chamada valorização positiva da
miscigenação que, para ele, ocorreu também no aspecto cultural.
A dissertação de Matos (2005) analisa as escolas de samba como um elemento
ilustrativo no entendimento da metrópole carioca como espaço vivido e espaço
construído. O tema é abordado em uma dimensão geográfica, que objetiva “revelar a
construção, a percepção, a interpretação e a representação do sentido de lugar por parte
dos sambistas cariocas” (MATOS, 2005, p. 2). Para inserir as escolas de samba numa
perspectiva geográfica, a análise é realizada a partir de conceitos de lugar, identidade e
Imagem Urbana. Em sua concepção, estudar as escolas de samba a partir de uma
investigação “atravessada” pela geografia tem contribuído para interpretar como o
homem se apropria dos espaços, com eles se relaciona e deles se utiliza em seu cotidiano.
Esses espaços são repletos de significados e de valores (CAPEL, 1981). Matos observa
ainda que estudar as identidades espaciais torna-se importante na medida em que a
contemporaneidade é marcada pela fragmentação e pela multiculturalidade. Ao tomar as
festas carnavalescas como objeto de investigação, Matos justifica que esses eventos são
elementos importantes não apenas para unificar mas também para tornar as comunidades
mais explícitas. Além disso, é o mecanismo pelo qual pode ser explicado o fenômeno
urbano, pois representa os valores e as ações de um determinado grupo. A pesquisa parte
da hipótese de que as escolas de samba representam um canal de comunicação entre as
comunidades urbanas periféricas e a cidade como um todo.
59
Diferente de outras pesquisas que privilegiam as escolas de samba do grupo
especial, em seu estudo, Matos optou por uma escola pertencente ao grupo de acesso,
Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Lucas. Para ele, as escolas consideradas
menores “mantêm uma identidade ligada ao referencial de lugar ocupado pela
comunidade na metrópole de maneira mais forte” que as escolas do grupo especial, como
“mangueirense” e “salgueirense” (MATOS, 2005, p. 75). Essas escolas mais conhecidas
do público têm admiradores fora da comunidade de origem e, por isso, incorporam
identidades paralelas àquela que é assumida ao representar sua comunidade durante o
desfile.
E quando se “batiza” a escola com o nome da comunidade, fica evidente a
assunção de uma identidade territorial. Esse enraizamento do ser humano e o seu
pertencimento a uma comunidade revelaram-se útil na análise do mundo atual. No caso
dos sambistas, percebeu-se que estes não ficam presos ao espaço vivido, mas possuem
forte consciência de pertencimento à comunidade de origem e se utilizam desse
pertencimento na construção de sua identidade individual e coletiva. A comunidade é a
principal referência para um sambista. É também uma estratégia usada por eles para dar
mais visibilidades a esses espaços.
Na pesquisa de Poubel (2012), a escola de samba Vila Isabel foi analisada a partir
de sua relação com o seu bairro. A pesquisadora investiga as relações sociais criadas na
convivência dos indivíduos e grupos durante o ciclo que antecede o carnaval. As
atividades desenvolvidas na escola de samba evidenciam uma relação de convivência
entre os indivíduos do bairro. O sentimento de pertencimento é usado pela diretoria das
escolas com o objetivo de mobilizar seus componentes em prol da agremiação.
Isto é, comunidade acaba sendo uma denominação que engloba a todos
que se sentirem participantes. As pessoas de uma mesma localidade têm
na escola de samba o estabelecimento de discursos e práticas em
comum, e pertencer a uma mesma escola de samba influencia e dá
significados compartilhados pelas pessoas envolvidas. O gosto pelo
carnaval e pelo samba, o gosto pelos bares e pela feijoada, e os laços de
vizinhança instauram redes de relações ancoradas numa presença
constante em um determinado espaço. Surgem assim, relações de
sociabilidade criadas a partir de pertencimento comum (POUBEL,
2012, p. 7).
60
No decorrer da investigação, Poubel observou que a necessidade de desenvolver
o sentimento de pertencimento dentro da comunidade é uma preocupação dos
responsáveis pela escola de samba.
Há, na escola de samba de Vila Isabel, um vínculo entre o bairro e essa
agremiação, bem diferente do que ocorre em outros bairros e as escolas de samba locais,
que foram responsáveis pela construção da tradição relacionada ao bairro. Em Vila Isabel,
mesmo antes do surgimento da escola de samba, já existia uma identidade musical
referente ao samba, marcada, principalmente, pelo compositor Noel Rosa. Sendo assim,
a escola de samba incorporou símbolos e significados já existentes na construção de
narrativas sobre o bairro, adquirindo uma relação privilegiada com a comunidade. A
pesquisadora observou ainda que
[...] os moradores de uma mesma localidade têm na escola de samba
uma referência para a construção de identidades sociais, estabelecendo
discursos e práticas em comum. O fato de pertencer a uma escola de
samba de determinado bairro cria relações entre as pessoas, atuando na
construção de identidades e representações sociais que orientam as
práticas dos moradores dessas localidades e, muitas vezes, constroem-
se através da escola de samba, relações que distinguem o próprio bairro
do contexto mais amplo da cidade (POUBEL, 2012, p. 12).
Após observações participativas realizadas durante a preparação do carnaval da
escola de samba de Vila Isabel, Poubel percebeu um grande interesse por parte da
diretoria da escola em construir um sentido de “comunidade” visando ao alcance de
ganhos para a entidade. Aliás, já até se configura explicitamente uma troca de interesses
entre a comunidade e a escola: doam-se fantasias e se exige um bom desempenho durante
o desfile do carnaval. Assim, “o conceito de comunidade é aqui forjado visando à
obtenção de ganhos para a escola” (POUBEL, 2012, p. 73). Na visão da pesquisadora,
porém, isso não significa a inexistência de uma comunidade em Vila Isabel. Durante as
entrevistas em locais e em momentos diversos, ela constatou “o uso, a repetição e a
reafirmação dos símbolos pertencentes ao bairro como uma característica compartilhada
pelos moradores do bairro” (POUBEL, 2012, p. 97). Além disso, notou que ora o
sentimento é de pertencimento à escola de samba, ora ao bairro; em certos casos, a ambos.
Identidade e escolas de samba também são temas da dissertação de Santos (2013).
Essa pesquisadora estudou os processos de construção identitária das escolas de samba
de São Paulo a fim de verificar como esse sentimento contribui para motivar o
61
engajamento dos sujeitos em atividades não remuneradas dentro das agremiações. As
escolas de samba constituem-se em um importante instrumento de manutenção da cultura
dos negros no Brasil. Mesmo no século XXI, as escolas de samba de São Paulo ainda
carregam muito preconceito contra os descendentes de escravos e suas respectivas
manifestações culturais. A ascensão das escolas de samba contribuiu para a propagação
dos valores, da cultura e dos costumes afrodescendentes. Por sua vez, também foram esses
elementos da cultura negra que fizeram das escolas de samba uma manifestação autêntica
Nos relatos das entrevistas realizadas, ela registrou que um dos costumes herdados
da cultura negra foi o de se doar para a tribo ou comunidade. Atualmente, a cor da pele
não é mais levada em consideração, pois o sentimento de união tornou-se um dos
elementos mais importantes para o engajamento dos sujeitos nas escolas de samba.
Apesar do reconhecimento das escolas de samba como símbolo cultural nacional, esses
sujeitos relataram que existem vários fatores contrários, pois ainda estão às margens da
sociedade. Para esses sujeitos, fazer parte de uma comunidade do samba equivale “à
valorização na sociedade paulista” (SANTOS, 2013, p. 105). Além disso, contribuiu para
a elevação de sua autoestima e para uma nova forma de olhar o mundo.
2.5.2 Identidades de Comunidades, favelas e cidades
As pesquisas a seguir versam sobre identidades de favelas/comunidades e de
cidades a partir de diferentes perspectivas teóricas.
Na Universidade de Coimbra, Santana (2009) propõe discutir as representações
identitárias da favela, tendo como referência a telenovela brasileira “Duas Caras”. A
autora chama a atenção para a constante presença da periferia na ficção televisa, uma
forma de inserção que se tornou recorrente desde o filme Cidade de Deus (2002). A
telenovela “Duas Caras” foi exibida em outubro de 2007, ambientada numa favela fictícia
e com personagens centrais que contribuíam para a construção desse cenário. No entanto,
essa comunidade foi construída diferente do que normalmente estamos habituados, sem
violência e criminalidade. De acordo com o autor da novela, a intenção foi desmistificar
a visão de “que na favela só residem bandidos, enfatizando o carácter humano e
caracterizando a favela como espaço de pessoas honestas e trabalhadoras” (SANTANA,
2009, p. 2).
62
As questões que permeiam o trabalho de Santana são as seguintes: “como a favela
pode se tornar um espaço de identidade e quais os parâmetros de identificação”
(SANTANA, 2009, p. 2.). Em sua pretensão investigativa, a autora visa também
evidenciar como os personagens representam estereótipos construídos e determinados
socialmente. No esclarecimento de tais questões sobre comunidade, recorre a Castells
(2003), para quem a comunidade é um local onde as pessoas se socializam, formando
redes sociais entre vizinhos. Constata, além disso, que “as identidades locais entram em
intersecção com outras fontes de significado e reconhecimento social, seguindo um
padrão altamente diversificado que dá margem a interpretações alternativas”
(SANTANA, 2009, p. 3).
A comunidade criada pela novela representa uma comunidade estabelecida no
âmbito local: os personagens tendem a se agrupar em organizações, excluindo qualquer
tipo de individualização, e o espaço em que atuam reproduz, na aparência, o que, segundo
citado por Santana (2009), Castells (2003) entende como uma verdadeira comunidade, ou
seja, habitantes que, juntos, participam ativamente de movimentos sociais urbanos,
associados a um conjunto de metas que visam a uma mudança social coletiva, com
condições dignas de sobrevivência. Essas metas solidárias fazem da comunidade
televisiva imaginada um lugar de identidade, contribuindo para a afirmação identitária
cultural local desses sujeitos, dando-lhes uma sensação de pertencimento. Além do
espaço fictício criado pelo autor, as personagens representam a “favela carioca
politicamente correta” (SANTANA, 2009, p. 8), com estereótipos formados a partir do
imaginário da sociedade. Para Santana, existe um esforço da telenovela em se aproximar
ao máximo da realidade através de códigos que representam o real.
No âmbito da Linguística Aplicada, o trabalho de Lopes (2009) busca as
ressignificações da identidade da favela dentro da linguagem do funk carioca. Uma das
proposições do funk é mostrar a realidade da favela, como forma de denúncia de
movimento cultural. O uso de linguagens específicas na letra da música revela como os
artistas significam suas próprias experiências e reivindicam uma cartografia diferente
para a cidade do Rio de Janeiro. “Nessa linguagem, a favela deixa de ser o espaço genérico
da barbárie e se transforma em território com nome próprio e no local da habitação e de
hábitos cotidianos de inúmeros jovens favelados” (LOPES, 2009, p. 379).
A pesquisa realizada por Barros (2016) parte da percepção de que o cinema
colabora para o fortalecimento de discursos a respeito da favela e de seus moradores. Seu
63
estudo busca, por meio da Análise do Discurso Francesa, identidades atribuídas à favela
e a seus moradores representados no filme “Cinco vezes favela”, de 1961. Uma das
considerações feitas pela direção do filme foi a de que o intuito era mostrar o favelado
não de maneira folclorizada (BARROS, 2016). No entanto, Barros observou que, mesmo
tendo essa preocupação de denúncia, “é possível encontrar sentidos que reduzem seus
personagens à marginalidade e à criminalidade” (BARROS, 2016, p. 14). A constatação
conclusiva de seu estudo é a de que os meios de comunicação (entre eles o cinema)
apresentam discursos sobre a favela e sobre seus habitantes sempre sintonizados com os
discursos e saberes institucionalizados. E porque compreende o discurso como uma
construção social, entende que neste se refletirá, fatalmente, uma visão de mundo
determinada.
Um outro estudo, realizado por Barros (2013), buscou por identidades da favela e
de seus moradores no discurso de “Viver a Vida”. Para esse autor, as telenovelas também
têm um papel importante na construção das identidades no mundo contemporâneo.
Apesar de ser uma obra fictícia, os indivíduos estruturam suas identidades com base nos
“significados e visões de mundo” midiático (BARROS, 2013, p. 9). Essa pesquisa chegou
à conclusão de que a telenovela tem a intenção de alcançar maior audiência e, por isso,
busca atribuir ações de violência a esses locais, “visto que a criminalidade
espetacularizada funciona como atrativo para o público” (BARROS, 2013, p. 9).
Já a pesquisa empreendida por Da Cruz (2007) busca por identidades atribuídas à
favela e aos moradores de favela no ciberespaço. Esse meio de comunicação torna-se
um espaço pelo qual os moradores de favela podem interagir com o não-morador de
favela, possibilitando a esses indivíduos uma “inter-relação dos processos de construção
identitária” (DA CRUZ, 2007, p. 4); e essa identidade é construída a partir da relação de
alteridade, haja vista a permanente tensão entre o “nós” e os “outros”, sempre presente
nas falas de moradores e não-moradores de favelas. É também um espaço de vozes na
esfera pública. A pesquisadora também verificou que “os discursos produzidos sobre os
moradores de favelas ainda são fortemente marcados por estereótipos” (DA CRUZ, 2007,
p. 62), mesmo assim, os moradores buscam romper com esses discursos estigmáticos e
propõem novas representações desses espaços e de seus habitantes.
Sobre as identidades de cidades, temos a tese de Faria (2007), da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que trouxe importantes contribuições para as
atuais pesquisas em estudos culturais contemporâneos. Seu trabalho inscreve-se na
64
Linguística Aplicada e assume a concepção de linguagem do Círculo de Bakhtin. Em seu
estudo, Faria buscou por identidades culturais da cidade de Natal a partir de
representações expressas nos discursos de poetas potiguares, ao longo do século XX.
Essa escolha deu-se pela grande influência, nesse período, da poesia na construção
da identidade da cidade de Natal. Nesse processo investigativo, a autora demonstrou que
a poesia se colocou como importante registro da memória cultural de uma época. A
pesquisadora encontrou, nesse período, identidades múltiplas que representavam a cidade
de Natal: “Natal se mostra provinciana, exuberante, monótona, barulhenta, do ‘já teve’,
juvenil, sofrida/degradada, índia, desigual/injusta, asfixiada, internacional” (FARIA,
2007, p. 148, grifo da autora). Além de se revelarem como múltiplas, essas identidades,
segundo constata a autora, foram construídas vinculadas à tradição e à memória da cidade.
2.5.3 As festas populares do Rio de Janeiro e o surgimento das Escolas de Samba
As pesquisas a seguir reconstituem caminhos percorridos pelas festas populares
do Rio de Janeiro até o surgimento das escolas de samba, e assinalam a importância dessa
manifestação popular na construção e na afirmação da identidade dos sujeitos que
habitavam os espaços marginais da cidade. Os trabalhos desses pesquisadores
contribuíram para as discussões empreendidas em nossa pesquisa, na medida em que nos
auxiliaram a compreender como as agremiações se afirmaram no cenário cultural
brasileiro e de que forma seus idealizadores reagiram à exclusão imposta, fortalecendo
mais ainda sua cultura.
Fernandes (2001) focaliza, em seu estudo, a relação entre cidade, festa e cultura
popular a partir de uma perspectiva geográfica. Ao recorrer a Bakhtin e a outros autores
sobre o conceito de festa, o geógrafo ressalta a importância da festa e da música, como
instrumentos de interação e socialização entre os sujeitos que habitavam a favela durante
esse período. Segundo constata, a transformação das escolas de samba em símbolo da
cultura nacional não pode ser entendida como uma subordinação à elite; isso consistiu em
uma estratégia dos próprios sambistas para participar da festa carnavalesca e serem
reconhecidos por uma cidade que os excluía. Sendo assim, havia um interesse de ambas
as partes nessa aliança. Além disso, como o pesquisador também confirma, o
reconhecimento das escolas de samba renovou o carnaval carioca e conferiu identidade
não apenas aos sujeitos mas também às comunidades em que estes estavam inseridos.
65
Ainda em sintonia com nosso propósito investigativo, registramos a pesquisa de
Soihet (1998), em que se analisam as festas populares do Rio de Janeiro, no período da
Bélle Époque e no período Vargas, a partir da perspectiva do riso e da cultura popular em
Bakhtin. Soihet constata que essas manifestações populares, nos primeiros anos da
República, eram perseguidas e combatidas pela polícia. No entanto, esses grupos não
desistiram de sair às ruas para lutar, reagindo à exclusão por meio de sua cultura. A festa
carnavalesca surge como um “momento privilegiado” como um “processo de
resistência”, conforme explica Soihet. Era o momento em que a população marginalizada
ocupava as ruas com suas músicas e danças. Para a historiadora, o riso foi uma espécie
de arma usada pelos populares no processo de luta contínua, com avanços e recuos, mas
que, apesar de tudo, logrou o arrefecimento da discriminação e da segregação.
2.5.4 Sambas-exaltação e hinos institucionais
Nesta quarta etapa de revisão de pesquisas, agrupamos trabalhos sobre sambas-
exaltação, que têm, como denominador comum, evidências de que esse gênero musical,
até então marginalizado (produzido e consumido pelas classes populares), foi usado como
importante ferramenta de propagação de uma identidade nacional e de valores
trabalhistas.
A análise de Pereira (2012) evidenciou que, nesses sambas de exaltação, alguns
conteúdos temáticos sobressaíram mais que outros (a unidade da pátria; a formação social
brasileira e a miscigenação étnico-cultural), sendo seus discursos orientados sempre para
a ideia de unidade e integração nacional. A insistência na construção de uma memória
nacional era uma preocupação da época para reforçar o nacionalismo e para que o sujeito
se identificasse e se representasse com uma cultura macro.
O pesquisador ressalta que o discurso de construção de uma brasilidade deu-se a
partir da integração de uma cultura popular à cultura nacional, “estabelecendo e
reforçando os laços sociais entre as classes populares e a nação; negros, mestiços, pobres
e outras minorias representacionais tinham um traço cultural reconhecido e
nacionalizado” (PEREIRA, 2012, p. 117). Também atesta que, apesar do reconhecimento
das minorias, outra parte da grande diversidade regional brasileira foi silenciada ou
simplesmente não se viu representada.
66
Por fim, a apropriação do samba de exaltação, um gênero tipicamente popular,
que traz “carga genética” de “cultura negra” converteu essa manifestação considerada
“perigosa” em algo “seguro”, “limpo” e “domesticado”. Além disso, ao transformar uma
manifestação “subalterna” em hegemônica, pôde despertar o sentimento de pertencimento
em uma comunidade imaginada nacional” (PEREIRA, 2012, p. 117). Em termos
conclusivos, aponta a música como um sistema de linguagem capaz de difundir e forjar
identidades culturais. Nesse contexto, o samba cívico é orientado pela formação
ideológica do Estado Novo. Assim, a invenção de elementos formadores da cultura de
toda uma nação foi a forma encontrada pelos grupos de interesse para homogeneizar a
identidade brasileira e assegurar a ideia de uma cultura como artefato.
Outro artigo que reforça o pensamento de Pereira é o do Doutor em História Social
pela Universidade de São Paulo, Filho (2009). O pesquisador analisa sambas de exaltação
surgidos nos anos de 1930 e 1940, entre eles “Aquarela do Brasil”. Esse samba-exaltação
é identificado como um discurso que “vende” uma imagem do Brasil, traduzida por sua
natureza, pela felicidade, pela música, pela simpatia, e pela sensualidade de sua gente. A
investigação de Filho também teve como objetivo perceber em torno de quais ideias
buscou-se uma identidade nacional. Essa percepção é recorrente em várias pesquisas
sobre samba-exaltação.
Também em consonância com essas reflexões precedentes, a tese de Paranhos
(2005) analisa o discurso musical de compositores da música popular brasileira, entre o
final dos anos 20 e meados dos anos 40 do século XX, justificado por ele por ser o
“período que cobre desde o surgimento do samba carioca até sua consolidação como
expressão musical de brasilidade” (PARANHOS, 2005, p. 56). Sob sua ótica, o samba foi
sendo inventado como elemento essencial da singularidade cultural brasileira por obra
dos próprios sambistas, que contribuíram para a invenção do Brasil como terra do samba,
imagem que foi construída e que perdura até hoje. Como mostra ainda o pesquisador, este
gênero musical foi usado pelo Estado Novo como “instrumento na construção de um
discurso de unanimidade nacional e propagação de valores” (PARANHOS, 2005, p. 142).
No entanto, mesmo diante da incansável pregação trabalhista do governo Vargas,
Paranhos encontrou vozes que destoavam desse discurso e seguiam, em contracorrente,
mostrando que havia limites que o Estado não podia transpor.
No âmbito da Análise do discurso francesa, o artigo de Pereira (2012) referencia
os mecanismos usados pelo Estado Novo no processo de nacionalização do samba para a
67
construção de uma identidade nacional. Nesse contexto, o samba de exaltação atuou como
um discurso de consolidação de uma consciência nacional, enaltecendo/valorizando a
diversidade regional. No curso de sua reflexão, o autor observa que, para descer o morro
e ocupar o asfalto, o samba passou a ser controlado/domesticado pelo governo e, por isso,
sofreu uma série de exigências e transformações. Os sambas-enredo, por exemplo, foram
obrigados a abordar temas nacionais, eventos históricos e hinos nacionais de exaltação às
dádivas do país. Aproveitando-se ainda mais desse gênero, a ditadura Vargas estimulou
o aparecimento do chamado samba cívico, também conhecido como samba de exaltação.
O objetivo desse novo gênero era a exaltação de temas patrióticos e ufanistas, sempre
buscando ressaltar as maravilhas ao som de “orquestral pomposo”. Aquarela do Brasil foi
o primeiro samba desse gênero, responsável por difundir uma tradição discursiva de
exaltação.
O samba-exaltação é também entendido como hino de exaltação ou samba cívico.
Sob nossa perspectiva analítica, como já aludimos na primeira seção, assumindo, pois,
essa orientação, consideramos pertinente apresentar algumas pesquisas que analisam o
gênero hino e que vão contribuir para as discussões apresentadas nesta pesquisa.
Na Universidade de São Carlos (UFSCAR), Moraes (2015) buscou compreender
os mecanismos utilizados na construção do gênero hino a partir da perspectiva
bakhtiniana. O autor analisou os hinos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
Terra (MST) e do Movimento Zapatista, além do enunciado concreto “Vem Pra Rua”.
Para o autor, há uma relação dialógica entre as canções populares e as canções hinárias,
pois as canções populares podem tornar-se hinárias. Ele explica que, nessas composições,
há “reações ao campo/esfera na construção do tema”. Defende a tese de que as demandas
de reforma agrária, urbana e sociais, entoadas, “formam uma cadeia sócio-ideológica”,
como um chamado “aparentemente constante dos embates e lutas”. Esses movimentos
são sempre “dinâmicos e diferentes, dado que em cada entoação há uma eventualidade
única”. Também constata, pelos relatos de memórias, que o hino do MST, com sua
tonalidade axiológica, de fato reflete e refrata boa parte da realidade presente em suas
letras. No caso das marchas de junho, verifica, na tonalidade de sua entoação, a
consciência imediata das condições em que foi produzida. Em seu encaminhamento
conclusivo, admite que tenha sido esse momento histórico o grande motivador das
transgressões.
68
Ainda sobre o gênero hino, encontramos um artigo escrito pelos pesquisadores
Tubino, Souza e Valadão (2009), tratando dos hinos oficiais e populares dos principais
clubes cariocas de futebol, tendo como referência a primeira república do Estado Novo.
Os pesquisadores observaram que, nesse período, os governantes viram no futebol um
ingrediente fundamental para a construção de um discurso patriótico. Aliás, em sua
percepção, essa foi uma tendência frequente durante esse período, pois não apenas o
samba, como verificamos nos trabalhos anteriores, mas também os hinos de clubes de
futebol serviram como instrumento na construção da identidade nacional. Além disso,
conforme constataram, os pesquisadores ressaltam que os hinos de futebol serviram como
importante registro histórico sobre os modos de viver e de se relacionar do carioca e sobre
as contradições do período histórico analisado.
2.5.5 Gênero samba em busca de representações identitárias
Assumindo a perspectiva dialógica da linguagem do círculo de Bakhtin, a tese de
Nanci Moreira Branco (2016), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR),
buscou identidades de sambistas, por meio de representações subjacentes a seus
depoimentos. A pesquisa faz parte de um projeto intitulado Puxando conversa, que, de
1990 a 2004, registrou, em vídeo, relatos e aspetos da vida e obra de sambistas. O samba
é o meio pelo qual os sambistas se inserem socialmente e também uma forma de
identidade para esses sujeitos que produzem samba. De acordo com Branco (2016), o
samba mantém-se vivo nas comunidades graças à preservação de suas raízes, de suas
tradições e também aos “apelos da indústria cultural” (BRANCO, 2016, p. 23). A autora
lembra ainda que é igualmente necessário levar em consideração que outros fatores lhe
conferem o aspecto singular para a continuidade dessa manifestação popular: o “lugar
social de onde emerge e a coletividade que lhe constrói” (BRANCO, 2016, p. 12). Para
além disso, observa que o samba, desde seu surgimento, sempre esteve ligado a “uma
ideia de comunidade”, “como lugar de socialização” (BRANCO, 2016, p. 255); portanto,
um produto da interação social. Retomando ainda os relatos, a pesquisadora descobre um
pouco da história do samba e de sua relação com a indústria cultural. Como sujeitos que
viveram e presenciaram a constituição do samba e interagem com o lugar social onde
vivem, seus discursos revelaram que suas identidades e singularidades são construídas a
partir da relação de alteridade com a escola. Em se tratando de alteridade, a autora,
69
ancorando-se em Bakhtin (2006), ressalta que esse outro “não é necessariamente uma
pessoa, mas o lugar social em que o sujeito vive, a sua história e a desse lugar, as histórias
que fazem parte da sua vida, as várias vozes trazidas de suas relações” (BRANCO, 2016,
p. 197). A título de exemplo, recorta uma fala de um dos sambistas em que ele afirma
que suas composições são parte do seu dia a dia, “a vida na Baixada Fluminense”, “nas
periferias” (BRANCO, 2016, p. 197), reforçando, assim, a relação de alteridade desses
sujeitos com o espaço social, na troca de vivências, no espaço do samba. As falas desses
sambistas também deixaram evidente a importância de fazer parte de um grupo social e
neste interagir. Por isso, a marcação da origem é tão forte dentro do universo do samba e
de outras manifestações populares que surgem na periferia.
Além disso, a ideia de pertencimento a um grupo social aparece nos
depoimentos desses sambistas: o desejo/necessidade do sujeito de
“personificar-se, tornar-se mais definido”, “não ficar na tangente,
irromper no círculo da vida, tornar-se gente entre as gentes”
(BRANCO, apud BAKHTIN, 2006, p. 383-384, grifo da autora).
Por fim, Branco (2016) conclui que estudar a alteridade, a partir de uma
perspectiva backhtiniana, orienta ao entendimento de que, mesmo o sujeito constituído
em relação ao outro, também afirma sua singularidade; isso porque a alteridade não
significa que há diluição do eu; fato este comprovado nos discursos dos próprios
sambistas.
Em nosso programa de pesquisa em Estudos da Linguagem, na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Silva (2010) pesquisou por identidades negras
em sambas de enredo de temática africana, pertencentes aos grupos de elite do Rio. As
análises dos sambas foram realizadas sob a ótica da Análise do Discurso Francesa e dos
Estudos Culturais. Os sambas analisados correspondem ao período de 1960 e 2007. Entre
os instrumentos metodológicos, o pesquisador também aplicou questionários a
espectadores e desfilantes das referidas escolas de samba. O objetivo era descobrir se, de
alguma forma, a concepção de negritude e as práticas de cidadania de sujeitos negros do
Rio de Janeiro são afetadas pela produção de sentidos circulantes nas práticas discursivas
desses sambas. Tanto os questionários quanto as entrevistas revelaram que o samba-
enredo de temática africana ocupa um lugar importante, mas não vital na construção das
identidades étnico-raciais do negro brasileiro. Ademais, como não são estáveis, as
identidades podem assumir valores diferentes de pessoa para pessoa. E é bem essa a
70
conclusão derivada desse estudo sobre o lugar que ocupa o samba de temática africana na
construção identitária étnica do negro: essa construção não se revela de maneira idêntica
para todos os negros de todos os recantos do país.
Após conhecermos algumas pesquisas que dialogam com o nosso trabalho, a seção
a seguir apresenta os principais conceitos sobre a concepção de linguagem do Círculo de
Bakhtin que fundamentam a nossa pesquisa.
71
3 SEGUNDO ENSAIO OFICIAL
A concepção dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin contribui para
compreendermos como as escolas de samba constroem e afirmam suas identidades por
meio de seus discursos. Esses estudos empreendidos pelo Círculo partem da ideia de
linguagem como interação. Os enunciados que emergem do mundo da vida são parte
constituinte e constitutiva de uma realidade concreta, revelando seus valores e seus modos
de pensar.
Seguindo essa perspectiva teórica, esta seção foi organizada da seguinte forma:
em primeiro lugar, apresentamos os conceitos-chave que fundamentam o pensamento do
Círculo de Bakhtin a respeito da concepção dialógica da linguagem, da alteridade e do
signo ideológico; em segundo lugar, tratamos sobre o gênero samba-exaltação,
relacionando-o à noção de gênero do discurso, de enunciado concreto, das forças
centrípetas e centrífugas, do signo ideológico, dos tipos de discurso persuasivo e
autoritário e de cronotopo.
3.1 CONTRIBUIÇÕES DO CÍRCULO DE BAKHTIN PARA OS ESTUDOS DA
LINGUAGEM
À época dos estudos do Círculo de Bakhtin, predominava a ideia de linguagem
que desconsiderava o sujeito, o contexto, a situação e a historicidade. Em diálogo com
essas concepções que estavam em vigência, esses pensadores mergulharam no estudo
sobre a linguagem visando entender o ser humano em suas relações sociais (como se
relaciona socialmente com suas alteridades/com seus outros), e como essas relações se
constroem.
Nos primeiros textos do Círculo, surge a primeira noção de linguagem, entendida
como interação verbal e que, logo depois, é substituída pela noção de diálogo. O
dialogismo é uma noção basilar para a compreensão de toda a teoria bakhtiniana. De
acordo com os estudiosos do Círculo, a linguagem é dialógica porque os discursos são
construídos em dialogia com os muitos já ditos. Esse funcionamento da linguagem só
emerge a partir de uma relação dialógica, em que o sujeito sempre se orienta para o que
já foi dito. É o espaço em que se observa o processo de interação das vozes sociais, ou
seja, o modo como os sujeitos atuam nessa interação e como atribuem significados ao que
é dito.
72
A dialogia é um movimento da linguagem; não deve ser entendida como um
consenso ou acordo (FARIA, 2007). O diálogo tem um sentido mais amplo e se dá em
diferentes posições sociais. Um enunciado não existe, e tampouco pode ser
compreendido, de forma isolada; ele está sempre em diálogo com outros enunciados,
outros já ditos. São relações de sentido que se estabelecem entre enunciados produzidos
por sujeitos socialmente organizados. Surge de um lugar de tensão entre vozes sociais, de
conflitos e de luta com enunciados alheios, em que atuam movimentos centralizadores
(forças centrípetas) e descentralizadores (forças centrífugas).
A linguagem instaura-se numa relação constituinte com a realidade, com a vida
social, com o mundo concreto e com a alteridade. Constitui-se no processo de interação
verbal, na troca intersubjetiva, num espaço concreto, numa realidade concreta. Como
atividade, é viva, dinâmica e não deve ser entendida como uma construção psicológica,
devendo o sujeito se apropriar mentalmente de um sistema. Por conseguinte, foge de uma
concepção de linguagem como estrutura suficiente por si só, pois é uma ação e pressupõe
sujeitos em atividade.
A linguagem é um ato singular, que, por sua vez, é uma produção do pensamento;
o ato, em si, é responsável, ético e porta valores; é criado no mundo da vida e pertence
aos sujeitos situados espacialmente. Esses valores não são abstração do pensamento, são
construídos na relação entre sujeitos.
É pela linguagem que o sujeito pode assumir um ponto de vista, um
posicionamento; toda palavra dita expressa uma ideologia, um modo de pensar, mas esse
posicionamento é construído socialmente e não individualmente. É construído a partir de
uma interação com o outro. Por isso a linguagem deve ser considerada um fenômeno
social, porque “é produto da vida social, sua criação e sua representação”
(VOLOSHÍNOV, 2013, p. 141). Os sistemas de signos refletem e refratam essa realidade
e ela não é homogênea, é plurivalente. Os pontos de vista que existem na realidade são
múltiplos, não são iguais. Como esclarece Faraco (2009, p. 54),
[...]os signos são espaços de encontro de diferentes índices sociais de
valor, plurivalência que lhes dá vida e movimento, caracterizando o
universo da criação ideológica como uma realidade infinitamente
móvel.
73
A palavra reflete e refrata a realidade; faz parte de uma ação, um acontecimento,
não devendo ser isolada da experiência real da vida humana. Portanto, não é um sistema
de categorias gramaticais abstratas porque é “ideologicamente preenchida” (BAKHTIN,
2015, p. 40).
Assim, toda palavra sempre enfatiza uma posição no mundo axiológico, porque
“qualquer enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico” (FARACO, 2009,
p. 47). O artista é sempre responsável pela arte que cria, responsável pelo que assina, pela
produção de um conteúdo. Essa é a noção de responsabilidade (responde pelos seus atos
e pelos dos outros), porque essa responsabilidade é responsiva. Ela é sempre uma resposta
a algo, não é criada do nada.
Em outras palavras, na compreensão do Círculo, a linguagem não pode ser vista
como um conjunto de categorias abstratas. Ela envolve uma realidade axiologicamente
valorada. Valores que, para alguns, são considerados sem sentido; para outros, não,
porque esses valores precisam ser contextualizados, fazem parte de determinada
realidade. São construídos no mundo da vida e não no mundo da cultura, porque o mundo
da cultura representa, reflete e refrata esses valores, mas não os cria. Os valores são
criados pelos seres humanos em suas interações.
A linguagem é organizada em signos; “sem signos não existe ideologia”
(VOLOCHÍNOV, 2014, p. 31). Os sistemas de signos constroem a realidade; não servem
apenas como uma roupagem para as ideias. A linguagem, por sua vez, representa, age,
reflete e refrata a realidade, a qual não é homogênea; “convoca” pontos de vista
diferenciados. Caracteriza-se, dessa forma, como uma realidade ideológica, que tem sua
materialidade, é construída numa situação social determinada e condicionada por esta.
A própria consciência individual é um fenômeno de orientação social. É na
interação com o outro que se constrói a individualidade. Todo produto cultural produzido
nas atividades humanas, na vida real, é um signo e “todo signo é ideológico por natureza”
(VOLOCHÍNOV, 2014, p. 36). “Cada campo possui seu próprio material ideológico e
forma seus próprios signos e símbolos específicos inaplicáveis a outros campos”
(VOLOCHÍNOV, 2014, p. 99). Essa visão rompe, portanto, com a ideia de que há um
único código ideológico de comunicação e de que diferentes classes sociais se apropriam
de uma só língua. Em um mesmo signo há diferentes índices de valores, daí seu
significado não ser fixo e definitivo.
74
O enunciado é a “unidade da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2016, p. 103),
e sua construção visa sempre a um destinatário; “isso decorre da natureza da palavra, que
sempre quer ser ouvida, sempre procura uma compreensão responsiva e não se detém na
compreensão imediata, mas abre caminho e mais à frente [...]” (BAKHTIN, 2016, p. 105).
A compreensão desse enunciado, portanto, depende de uma compreensão responsiva, daí
a essência dialógica da linguagem.
O homem estabelece comunicação por meio de enunciados concretos. Esses
enunciados evidenciam as relações dialógicas, na medida em que comportam
interatividade, aspecto central do dialogismo. A língua é sociológica e axiológica, pois
todo enunciado tem valor social. Para o Círculo de Bakhtin, em todo discurso há “[...]
uma diversidade de vozes sociais e uma variedade de nexos e correlações entre si (sempre
dialogadas em maior ou menor grau)” (BAKHTIN, 2015, p. 30). Melhor situando: o
heterodiscurso não é apenas uma multiplicidade de vozes mas sim uma heterodiscurso
dialogizado, pois possui carga de valor; são vozes que dialogam com outras.
Um dos pressupostos básicos do Círculo é justamente o estabelecimento da
inegável relação entre linguagem e alteridade. A alteridade é o que se coloca em relação
ao eu; é o outro. Essa relação de alteridade leva em consideração a ideia de que o ser
humano se constitui a partir da relação com o outro, de que o ser humano é inacabado,
está sempre em processo de construção. Aqui, podemos compreender porque o homem é
considerado um ser de linguagem, porque a linguagem é inerente à concepção do ser
humano.
Os valores das sociedades humanas não são construídos a partir de um eu sozinho,
mas da relação desse eu com o outro. E essas relações, esses valores são os mais diversos
que existem na relação com a realidade, pois as pessoas, as sociedades e as esferas em
que circulam são diferenciadas. O signo só emerge na relação com o outro; não surge
sozinho. Concretiza-se em deriva de um processo de interação verbal, de troca entre duas
ou mais consciências.
Ao mergulhar na esfera literária, Bakhtin (2015) pondera sobre o fato de que a
relação autor e criador com a sua obra assemelha-se a uma relação entre o eu e o outro.
O que vai possibilitar ao autor criador (esse eu) enxergar o outro em seu inacabamento é
a sua visão exotópica, sua visão de fora, de um lugar exterior.
Na esteira do pensamento dos autores do Círculo, entendemos que ser humano
significa conviver, relacionar-se. Colocar-se sempre em relação com o outro. Essa relação
75
com a alteridade constrói-se temporariamente e diferentemente, o que não quer dizer que,
nessa constituição do eu com o outro, o eu se dilua, ou se desmanche no outro, que se faz
presente no enunciado. Na alteridade, o outro entra no discurso. No processo de
apropriação e transmissão da palavra alheia, por exemplo, os discursos direto e indireto
são maneiras de apropriação do discurso do outro; não apenas uma estrutura sintática,
conforme a gramática tradicional apresenta; é uma relação com o estilo, com a
enunciação, com o enunciado, é significação e valoração.
Após esse percurso por algumas noções do pensamento do Círculo de Bakhtin, a
seção a seguir apresentará o conceito de gênero do discurso e de enunciado concreto,
relacionando-os ao samba-exaltação, ao signo ideológico, às forças centrípetas e
centrífugas e ao discurso autoritário persuasivo.
3.2 O SAMBA-EXALTAÇÃO EM DIÁLOGIA COM OS HINOS NACIONAIS
Analisar o gênero samba-exaltação a partir da teoria bakhtiniana é compreender
que são os gêneros do discurso que traduzem as relações sociais e as tensões vividas pelos
sujeitos em um determinado tempo-espaço. Isso porque os discursos estão estreitamente
vinculados ao seu contexto de produção e à situação imediata, refletem e refratam essa
realidade porque não podem ser desvinculados de suas condições de produção, do
momento histórico do qual são parte constituinte e constitutiva.
Se a palavra for estudada como objeto ou coisa, assim como ocorre nas análises
puramente linguísticas, não se dá esse “enfoque dialógico, imanente a toda interpretação
profunda e atual” (BAKHTIN, 2015, p. 148). Como afirmamos na seção anterior, sobre
o modo dialógico da linguagem, os enunciados estão sempre em relação dialógica com
outros enunciados já ditos e por dizer, ou seja, estão sempre numa posição responsiva,
quer concordando, ou discordando, quer complementando. A palavra é viva e tem
significado que dialoga com a vida.
Tradicionalmente, os gêneros discursivos eram considerados um agrupamento de
procedimentos, concebidos a partir da categorização e da descrição tipológica e arbitrária.
O Círculo de Bakhtin, ampliou o estudo dos gêneros. Passou-se, então, a compreendê-los
como formas de comunicação humana que têm regras e finalidades tecidas na interação
social. Todas as interações entre os sujeitos são mediadas pelos gêneros do discurso e é
isso que confere o caráter de uma prática social a todo discurso.
76
Esse novo modo de compreensão vai de encontro àquela análise fechada da
palavra, própria da linguística tradicional. Isso porque todo e qualquer discurso verbal
desvinculado da vida, da situação pragmática extraverbal, que desconsidera a
arquitetônica enunciativa, ou seja, os sujeitos envolvidos na interação, os valores, o
contexto e a situação extraverbal, mostrar-se-á desprovido de significação.
O Círculo de Bakhtin desenvolveu a teoria sobre os gêneros “considerando não a
classificação das espécies, mas o dialogismo do processo comunicativo” (MACHADO,
2014, p. 152). A noção de gênero, para o Círculo, está relacionada à vida social e a uma
“atitude responsiva ativa” dos sujeitos envolvidos no processo comunicativo. Os gêneros
são fontes substanciais de conhecimento sobre uma dada realidade; uma das
características fundamentais à noção de gênero é a sua capacidade de mobilidade
discursiva; eles acompanham a evolução da sociedade, não são fixos no tempo e no
espaço; são heterogêneos. Nesse processo comunicativo, é possível observar “o
hibridismo, a heteroglossia e a pluralidade de sistemas de signos na cultura”
(MACHADO, 2014, p. 153).
Os gêneros discursivos são construídos a partir de um querer dizer do interlocutor,
uma finalidade comunicativa. É esse projeto de dizer que vai determinar o seu conteúdo
temático, seu estilo e sua construção composicional, o todo do enunciado.
Essa escolha é determinada em função da especificidade de uma dada
esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do
objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros, etc. Depois
disso, o intuito discursivo do locutor, sem que este renuncie à sua
individualidade e à sua subjetividade, adapta-se ao gênero escolhido
(BAKHTIN, 2015, p. 291).
No que se refere aos sambas-exaltação, estes correspondem a gêneros discursivos
que têm como propósito comunicativo exaltar a escola ou algum outro componente da
agremiação. Esses gêneros, que têm ampla divulgação midiática, tornam-se hinos e são
entoados dentro da quadra da escola ou no cortejo que antecede ao desfile na avenida.
São direcionados ao público em geral, mas principalmente àqueles que pertencem à
comunidade. Assim como outros hinos, de forma geral (nacionais, religiosos,
institucionais etc.), fazem parte de uma estratégia discursiva que visa construir um modo
de ser e de pensar, elevar a autoestima da escola e dos participantes, desenvolvendo um
sentimento de pertencimento a uma determinada nação, grupo ou comunidade. “O hino
77
[...] é um enunciado que reelabora a palavra do outro expressando por esse enunciado
uma entoação que nos guia, orientando-nos, apontando para um horizonte comum os
valores do momento no qual se executa” (MORAES, 2015, p. 14).
De acordo com Moraes (2015, p. 15), a tradição discursiva de exaltação “tem sua
origem na literatura grega com os hinos homéricos”, cujos versos se aproximavam do
louvor aos deuses ou heróis. Já os hinos pátrios (nacionais) tiveram seu primeiro registro
no século XVI e, principalmente, no século XVIII, pós-revolução francesa. Moraes
explica que o conceito de hino se relaciona a três práticas de comunicação verbal:
o conceito de hino, historicamente, está ligado a três práticas da
comunicação verbal: (i) às atividades populares festivas e religiosas da
Grécia Antiga, (ii) ao fenômeno denominado “nação” e aos conceitos a
ele imbricados como “nacionalismo” ‒ o que culminou na formação dos
estados nacionais ‒ e, por fim, (iii) a quaisquer entidades ou instituições
que tomam esse gênero como sua parte representativa (MORAES,
2015, p. 15).
O gênero hino (assim como qualquer outro gênero) é produzido para fins e
situações específicas; portanto, está diretamente ligado a esse contexto de produção e
circulação. No caso dos hinos nacionais, estes se atrelam a um período histórico, em que
se adotou o “estado-nação como administração política e social” (MORAES, 2015, p.
16). Essas canções surgem como propagadoras ideológicas de modos de pensar, de
valores que se deseja instituir e da identidade de uma nação.
O hino é, portanto, um produto ideológico; parte de uma realidade concreta que
revela os fatores históricos que envolvem sua construção. Os nacionais têm como objetivo
um processo de unificação cultural, regional e econômica. Nesse processo, apoderam-se
de gêneros do discurso secundário para o alcance do grande projeto de dizer. Há, portanto,
nesses enunciados, todo um apagamento das singularidades regionais e culturais. Todas
essas especificidades fazem parte do projeto de discurso e vão determinar a construção
do todo do enunciado: seu estilo verbal, seu tema e a sua estrutura composicional. É bem
essa a percepção de Voloshinov (2014, p. 118): "Os signos ideológicos constituídos da
moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do
cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim
o tom a essa ideologia". Esses enunciados criam uma ideia de nação ou comunidade,
inventando tradições, um lugar e um passado de glórias. Ressaltam as principais
características, dando um colorido a mais.
78
No que diz respeito às tradições, Hobsbawm (1984, p.10) alega que muitas
tradições foram inventadas, construídas por uma repetição contínua e quase obrigatória
de referência ao passado. Essa constante repetição do passado “caracteriza-se por
estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial”. Realinhando esse pensamento,
o autor assim conceitua o termo:
por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais
práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores
e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás,
sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado
histórico apropriado (HOBSBAWM, 1984, p. 10).
De pronto, remete-nos à construção do próprio hino nacional brasileiro como um
exemplo de “tradição inventada” por meio de um discurso contínuo, em que se forja uma
ideia de identidade brasileira, ou seja, “o passado real ou forjado a que elas se referem
impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição” (HOBSBAWM,
1984, p. 11). Parece inconteste o fato de que o gênero discursivo hino é um grande
propagador de identidades, no seu intento de cristalizar um modo de pensar que nem
sempre condiz com a realidade concreta.
A entoação de hinos é uma prática comum no dia a dia, seja na escola, num estádio
de futebol, seja em qualquer outro momento cívico. Os hinos mais conhecidos são os
nacionais e os religiosos. Mas, como vimos em Moraes (2015), sobre canções homéricas,
os hinos, assim como outros gêneros discursivos, diferenciam-se de acordo com seu
propósito comunicativo e podem assumir diferentes formas. Parece-nos ser justamente o
caso dos hinos de exaltação das escolas de samba.
Os hinos são enunciados que atuam como forças centralizadoras de modos de
pensar, denominadas por Bakhtin de forças centrípetas – “aquelas que buscam impor certa
centralização verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real” (FARACO, 2009, p. 69),
pois tentam tornar o signo monovalente, construindo uma ideia de unidade dentro da
diversidade. Faraco (2009) confirma que “a classe dominante tenta tornar monovalente o
signo – que é, no entanto, sempre polivalente – imprimindo-lhe, com este gesto, um
caráter de deformação do ser a que remete o signo” (FARACO, 2009, p. 71). Nesse
percurso reflexivo, podemos apontar os hinos nacionais como exemplos de atuação das
79
forças centrípetas, vez que estes constroem uma ideia de nação homogênea, forjando
tradições e um passado de glórias, parecendo excluir toda e qualquer diversidade.
O morro, a favela e o subúrbio do Rio de Janeiro criaram o gênero samba que
conhecemos hoje, um gênero de raízes africanas e marcado pela oralidade. Os sambas,
apesar de apresentarem uma melodia parecida, diferenciam-se de acordo com seu
propósito comunicativo (samba de roda, samba de partido alto, samba enredo, entre
outros). Antes de alcançar o status de símbolo da cultura nacional, por exemplo, o samba
serviu não apenas para cantar a vida boêmia e a malandragem mas também como
instrumento de luta e resistência contra a exclusão e a segregação, conforme
mencionamos na seção anterior. Nesse período, o samba atuava como as forças
centrífugas, “aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras, por meio
de vários processos dialógicos [...] a sobreposição de vozes etc.” (FARACO, 2009, p. 70).
O samba desenvolveu-se nas casas das tias baianas, em morros e favelas do Rio
de Janeiro. Esses espaços tornaram-se redutos importantes da cultura negra africana e,
apesar da discriminação quanto às suas práticas e aos cultos religiosos, o samba conseguiu
se desenvolver. Antes da gravação de Pelo Telefone9, em 1917, o samba não era
reconhecido como gênero musical.
À luz dos saberes sobre gênero difundidos por Bakhtin (2016), revalidamos o dito
quanto ao fato de que o samba (assim como outros gêneros do discurso) diferencia-se de
acordo com seu projeto de dizer e a situação imediata. Um enunciado tem determinada
forma porque o conteúdo assim estabelece. O conteúdo temático é orientado pelo tema a
ser tratado e também pelas especificidades do gênero. Já a estrutura composicional diz
respeito à forma, à organização arquitetônica. Em outras palavras, a forma arquitetônica
é o conteúdo (relação de valores), e a forma composicional está a serviço de uma forma
arquitetônica (rede axiológica).
O conteúdo é parte de qualquer enunciado. Trata-se de um conjunto de relações
axiológicas que são constitutivas do fazer estético. O objeto estético não deve ser
compreendido como um artefato ou apenas em função de seus elementos linguísticos;
deve considerar a realidade concreta e toda a arquitetônica do enunciado, ou seja, a esfera
de produção e circulação desse discurso, os sujeitos que interagem e seus valores.
9 Considerado o primeiro samba brasileiro a ser registrado e gravado.
80
A atividade estética não cria uma realidade inteiramente nova.
Diferentemente do conhecimento e do ato, que criam a natureza e a
humanidade social, a arte celebra, orna, evoca essa realidade
preexistente do conhecimento e do ato – a natureza e a humanidade
concreta e intuitiva desses dois mundos, coloca o homem na natureza,
compreendida como seu ambiente estético, humaniza a natureza e
naturaliza o homem (BAKHTIN, 1998, p. 33).
Relacionando esses conceitos ao nosso objeto de análise, o samba-exaltação
surgiu a partir do momento em que o desfile das escolas de samba passou a fazer parte de
uma competição, sendo conhecido incialmente como samba de “esquenta”. Mas foi
apenas em 1939, no governo de Getúlio Vargas, que o samba de “esquenta” passou a ser
denominado como samba-exaltação ou samba-cívico. Como já mencionamos, vários
estudiosos que direcionaram seus estudos ao gênero samba-exaltação (PARANHOS,
2005; FILHO, 2009; PEREIRA, 2012) afirmaram que esse período ficou marcado pelo
desejo de construção de uma consciência nacional. O samba, gênero produzido e
consumido nos morros e favelas da cidade do Rio de Janeiro, considerado até então
produto da malandragem, passa a ser usado como uma estratégia discursiva ideológica de
exaltação à nacionalidade e de entusiasmo ao trabalho.
Para descer o morro e ocupar o asfalto, o samba passou a ser controlado pelo
governo e, por isso, sofreu uma série de exigências e mudança em suas composições. Os
sambas-enredo, por exemplo, passaram a explorar temas nacionais que mostrassem as
dádivas do país e seus fatos históricos. Foi assim que, aproveitando-se ainda mais do
gênero que a ditadura Vargas fez surgir (o chamado samba cívico, conhecido também
como samba-exaltação ou hino de exaltação), se foi forjando a identidade de toda uma
nação.
Outras denominações afastavam-se da caracterização meramente
musical e informavam sobre certos predicados, como em “samba
cívico” ou “marcha patriótica”. A composição de Ari Barroso ajudou
a definir o formato e o nicho do “samba exaltação”. [...] seria
caracterizado por “melodia extensa e letra de tema patriótico, cuja
ênfase musical recai sobre o arranjo orquestral, inclusive com recursos
sinfônicos” (FILHO, 2009, p. 5, grifo do autor).
Como Filho (2009) observou acima, a principal característica desse gênero era a
exaltação às belezas naturais do Brasil, a prevalência de temas patrióticos e ufanistas.
Nesse período, vários compositores foram impulsionados a criar sambas-exaltação de
cunho patriótico. “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, foi o primeiro e mais conhecido
samba deste gênero, sendo responsável por difundir uma tradição discursiva de exaltação
81
à cultura nacional. Sob essa ótica, percebe-se como os grupos dominantes conseguiram
se apoderar de um instrumento genuinamente popular, o samba, para reforçar o discurso
monológico e centralizador de valores (forças centrípetas), corroendo todo esforço da
classe popular de promover a descentralização discursiva (forças centrífugas).
Ao subir os morros com as reformas urbanas o samba “amalandrou-se”,
mas para ser incorporado neste momento pela sociedade brasileira teve
que diminuir esse traço, contrário aos ideais trabalhistas do Estado
Novo. Este processo de “domesticação” do samba à serviço do Estado
combateu a figura do malandro, a vadiagem e a orgia. O lenço no
pescoço, chapéu panamá, tamanco e navalha costumamente
mencionados nas letras foram censurados, agora o sambista só podia
ser um trabalhador. De acordo com Caldeira (2007, p. 99), “a proibição
do tema da malandragem foi a primeira e visível operação direta de uma
agência central, no caso governamental, de manipulação do material
simbólico”. (PEREIRA, 2012. p. 3, grifo do autor)
Como é possível constatar, ao entrarem na ordem do permitido, ou seja, ao se
oficializarem, alguns sambas sofreram uma série de transformações, como foi o caso dos
sambas-enredo e dos sambas-exaltação. No dizer de Pereira (2012), o samba, um gênero
tipicamente popular, que traz toda uma “carga genética de cultura popular negra", ao
entrar na ordem do permitido, submete-se ao apagamento de uma identidade ou cultura
negra, convertendo "o que é orginalmente perigoso em algo 'limpo', 'seguro' e
“domesticado’” (PEREIRA, 2012, p. 14, grifo do autor).
O outro fator que defendemos é a plurivocalização do samba, uma vez
transformado em nacional-popular e inserido no mercado cultural, este
gênero musical, além de ter um alcance representativo, também
funciona como espaço de fala dos mais diversos segmentos sociais, de
seu contexto histórico e de sua ideologia (PEREIRA, 2012, p. 6).
Vale relembrar o fato de que o samba é um gênero discursivo que foi inicialmente
construído no curso de forças centrípetas. Isso porque rompia com a lógica do pensamento
dominante que determinava as formas de vida e varria qualquer artefato cultural negro.
Por ser música e ter grande representatividade cultural, o samba teve um alcance imediato
e se configurou como um importante divulgador de ideologias10 do Estado, como já
assinalam os estudos de Pereira (2012), Filho (2009) e Paranhos (2005). Essa estratégia
10 Nos textos do Círculo de Bakhtin, ideologia diz respeito a todo universo de manifestações que envolvem
as superestruturas: a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política (FARACO, 2009,
p. 46).
82
do samba como propagador das ideologias vigentes, por parte das classes dominantes, é
uma forma de “apagar as possibilidades do outro se alterar, impondo nesse lugar a
identidade estática e genética, edificando dessa maneira uma hegemonia discursiva
opressora através dos meios de comunicação cada vez mais eficazes e diversificados”
(MORAES, 2015, p. 25).
A ideologia tem sua essência na vida cotidiana, no dia a dia e é criada pelos seres
humanos em suas mais diversas interações sociais. A palavra serve de veículo a essa
ideologia, que tem sua origem tanto nas classes dominantes (ideologia oficial) quanto nas
classes dominadas (surge no cotidiano, parte de encontros fortuitos e causais, na
proximidade social com as condições de produção e reprodução da vida). Na visão de
Machado (2014, p. 170),
[...] todo signo, além dessa dupla materialidade, no sentido físico-
material e no sentido sócio-histórico, ainda recebe um “ponto de vista”,
pois representa a realidade a partir de um lugar valorativo, revelando-a
como verdadeira ou falsa, boa ou má, positiva ou negativa, o que faz o
signo coincidir com o domínio ideológico.
O conjunto de signos que fazem parte de cada escola de samba, como a bandeira,
os símbolos e as cores, usados para representar a agremiação e seu hino de exaltação,
formam o que Volóchinov (2017) denominou de universo de signos. Quando pensamos
na Escola de Samba da Mangueira, por exemplo, logo vêm à mente, as cores verde e rosa;
a escola da Portela, por sua vez, remete-nos à sua águia azul e branca.
Apesar de não encontrarmos nenhuma semelhança entre os hinos e os sambas-
exaltação, em sua forma entoacional e modelar, em ambos é a “a realidade imediata da
situação social que promoveu as condições da forma” (MORAES, 2015). Assim, segundo
Moraes (2015), podemos dizer que os hinos são gêneros discursivos “falaciosos pelas
monovalências” (MORAES, 2015), pois simulam uma imagem que não coincide com o
real, e com aquilo que eles almejam da comunidade; veiculam modos de pensar,
suprimindo as outras vozes e ignorando outras formas de ser e outros índices de valores.
Atualmente, com a crescente rivalidade entre as agremiações e as dificuldades
enfrentadas no âmbito da própria comunidade, o samba-exaltação (assim como os hinos
nacionais e religiosos) tornou-se uma espécie de ritual das escolas: seus versos exaltam e
enaltecem suas qualidades e vitórias, reforçam o sentimento de pertencimento e
contribuem para a construção da identidade da escola e propagação de seus valores.
83
Durante a entoação dos hinos, os participantes são guiados por seu tom emocional,
sentem-se mais envolvidos, motivados, e bem mais próximos à agremiação. É o momento
de construção do sentimento “patriótico”, o verdadeiro representante da agremiação e do
espaço da comunidade; de fato, um dos elementos constitutivos da escola.
Os sambas-exaltação, assim como os hinos nacionais, simulam uma realidade
forjada, criam a ideia de “ser comunidade”, reforçam valores que desejam instituir e
constroem modos de pensar. No caso das escolas de samba, a mídia tem um papel
preponderante na ampla divulgação e consolidação das identidades dessas agremiações.
No que diz respeito à escola de samba da Mangueira, por exemplo, ouvimos
constantemente da mídia televisiva que ela tem tradição de samba.
Assim, podemos dizer que o samba-exaltação enquadra-se naquilo que Bakhtin
(2015) denomina de gênero secundário, que é produzido em uma esfera de atividade
sociocultural mais complexa, mais elaborada.
Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários
tipos de enunciados em particular (primários e secundários), ou seja,
dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer estudo
[...] Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que
assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo
lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade
do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida
(BAKHTIN, 2015, p. 264).
Em sua forma composicional, os sambas-exaltação abrigam os valores e os modos
de pensar que a agremiação deseja instituir. Chamam, igualmente a atenção, pelo seu
caráter axiológico-entonacional, pois são carregados de valores, harmonizados com tom
musical capaz de envolver e emocionar, e é esse valor “que faz um “enunciado-palavra”
se tornar um hino”. O momento de entoação de um hino seria como o apagamento das
singularidades em prol de um discurso unificador que corresponde às ideologias
pretendidas (MORAES, 2015, p. 15).
Podemos dizer que os hinos nacionais e religiosos entram na categoria
denominada por Bakhtin discurso autoritário (2015). Em termos bakhtinianos, a
linguagem é socialmente constituída por uma multiplicidade de vozes. Os enunciados
estão repletos de palavras dos outros, em graus diferenciados de alteridade e de
assimilação. Assim, considerando o modo de assimilação da palavra do outro no discurso,
Bakhtin (2015, p. 142) apresenta duas categorias:
84
a palavra de outrem se apresenta não mais na qualidade de informações,
indicações, regras, modelos, etc., ‒ ela procura definir as próprias bases
de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso
comportamento, ela surge aqui como a palavra autoritária e como a
palavra interiormente persuasiva. [...] O conflito e as inter-relações
dialógicas destas duas categorias da palavra determinam
frequentemente a história da consciência ideológica individual.
De acordo com o autor, esse tipo de discurso autoritário (religioso, político,
científico, entre outros) possui graus diferentes de autoritarismo e pode ser organizado
dentro de outros discursos que o aplicam de modos vários. Trata-se de um discurso
monológico visto que se fecha para as relações dialógicas. Exerce forte influência sobre
os outros discursos e se coloca hierarquicamente superior. Para Bakhtin, a palavra
autoritária “entra em nossa consciência verbal como uma massa compacta e indivisível”
(BAKHTIN, 2015, p. 144). Não há fusão entre os dois discursos, o discurso autoritário
“permanece acentuadamente destacado, compacto e inerte: ele, por assim dizer, exige não
só aspas como também um destaque de letras” (BAKHTIN, 2015, p. 137). Ele não se
dilui dentro do discurso do outro, seus limites são facilmente reconhecíveis.
Não se representa o discurso autoritário: ele é apenas transmitido. Sua
inércia, seu acabamento semântico e sua ossificação, seu afetado
isolamento externo, a inadmissibilidade de que se aplique a ele um livre
desenvolvimento estilizante [...] (BAKHTIN, 2015, p. 138).
O discurso internamente persuasivo é muito comum na esfera publicística,
religiosa e nos hinos nacionais. Nas propagandas, é muito comum o uso de modelos e
construções de valores que são facilmente assimilados como reais e autênticos
socialmente. Essas formas de discurso do outro ocorrem de maneira diversa e
fundamentam a nossa “relação ideológica com o mundo e o nosso comportamento”
(BAKHTIN, 2015, p. 139). Nesse sentido, a linguagem não é uma construção neutra;
orienta-se sempre visando a um possível interlocutor e antecipando possíveis respostas à
sua enunciação.
Embora a ideia que se tem de hino seja muitas vezes vinculada à noção de oficial,
como se esse gênero estivesse sempre ligado a instituições públicas ou privadas, Moraes
(2015, p. 18) demonstra que o que faz o “enunciado-palavra” se tornar um hino é o “valor
axiológico-entonacional”; a propósito,
85
[...] é sabido que o valor axiológico-entonacional é o que permite que
um “enunciado-palavra” se torne um hino, sendo esse o momento em
que aquilo que é tido como oficial ou de qualquer nação terá um sentido
único, nem sempre correspondendo às ideologias pretendidas pelas
classes das instâncias superestruturais, pois são inúmeras as canções
que, devido às determinações do momento histórico e das interações
que ocorrem no interior de cada esfera transmutam-se para esse gênero,
na passagem de uma canção a outra. Dos tempos homéricos até os dias
atuais, entoar um hino é promover uma suspensão do corriqueiro, do
cotidiano em prol da constituição de um sentido, ora oficial ‒ em que
se pretende apagar as singularidades ‒ ora como atividade social
espontânea de alargamento da visão de mundo
A entoação é outro aspecto importante dos enunciados. A entoação é o meio pelo
qual se exterioriza uma visão avaliativa do mundo, denominada nos textos do Círculo
como expressão axiológica-emocional. Na relação dos enunciados com a situação
extraverbal que os produz, a entoação-expressiva é responsável pelo sentido pleno do
discurso verbal, que completa o significado do que se enuncia. É um “elemento axiológico
de posicionamento a partir do qual podemos identificar o caráter ideológico das vozes
dos sujeitos que se alternam no discurso” (MORAES, 2015, p. 55). Essa é uma
característica do gênero hino, visto que os gêneros do discurso veiculam uma visão de
mundo por meio da “expressão axiológica entonativa” (MORAES, 2015, p. 25).
O entendimento do enunciado não depende apenas do conhecimento da situação
extraverbal; pode-se expandir quando temos acesso ao horizonte global da situação. “A
entoação estabelece um elo firme entre o discurso verbal e o contexto extraverbal – a
entoação genuína, viva, transporta o discurso verbal para além das fronteiras do verbal,
por assim dizer” (VOLOCHÍNOV, 1976, p. 7).
No caso do samba-exaltação, a entoação vem da necessidade dos interlocutores
de criarem um sentimento patriótico pela escola de samba. É a emoção causada pela
entoação do hino que provoca esse efeito nos participantes. Por isso, nesse caso, a
compreensão global do enunciado é expandida pela entoação que lhe é dada.
Na entoação, o discurso entra diretamente em contato com a vida. E é
na entoação sobretudo que o falante entra em contato com o interlocutor
ou interlocutores – a entoação é social por excelência. Ela é
especialmente sensível a todas as vibrações da atmosfera social que
envolve o falante (VOLOCHÍNOV, 1976, p. 10).
86
Fica, pois, bem claro o fato de que a entoação só adquire força quando existe
“apoio coral” dos interlocutores. Sem a “comunhão de julgamentos básicos”, o discurso
perde sua capacidade. Nesse sentido, o samba de exaltação toma força e adquire
significados pretendidos quando há o envolvimento dos participantes. Nessa perspectiva,
a entoação dada aos sambas-exaltação é capaz de dar uma atitude ativa à escola de samba,
torná-la objeto vivo. Isso considerando que
[...] cada instância de entoação é orientada em duas direções: uma em
relação ao interlocutor como aliado ou testemunha, e outra em relação
ao objeto do enuncia como um terceiro participante vivo, a quem a
entoação repreendeu ou agrada, denigre ou engrandece. Essa orientação
social dupla é o que determina todos os aspectos da entoação e a torna
inteligível (VOLOCHÍNOV, 1976, p. 13).
São todos esses aspectos do discurso verbal que fazem com que o samba-exaltação
adquira sentido. Ele toma forma nesse processo de orientação: o falante (sambistas), o
interlocutor (público participante) e o tópico (escola de samba). Justamente porque faz
parte de um evento social, é “a alma social do discurso verbal” que lhe “dá também
significado artístico” (VOLOCHÍNOV, 1976, p.13). Nessa forma, o samba-exaltação
adquire ainda mais sentido por causa de uma série de fatores – a entoação, a situação
extraverbal, o discurso verbal e todo o significado que a escola de samba engloba, que
conferem ao gênero do discurso uma forma enunciativa e não uma forma linguística, pois
sua significação relaciona-se ao contexto da interação, aos efeitos comunicativos e
expressivos (MACHADO, 2014, p. 158).
Após compreendermos alguns conceitos-chave do Círculo de Bakhtin, nos
apropriamos dessa abordagem teórico-metodológica para interpretar os significados
construídos bem como os valores atrelados a construção dos hinos das escolas de samba.
87
4 OUTROS ENREDOS: CAMINHOS METODOLÓGICOS
Esta seção visa contextualizar o nosso objeto de pesquisa e apresentar os
fundamentos e escolhas metodológicas que subsidiam o nosso estudo para a análise do
corpus.
4.1 A LINGUÍSTICA APLICADA E OS NOVOS CONTEXTOS: PESQUISA
QUALITATIVA-INTERPRETATIVISTA
Como dissemos na seção de introdução deste estudo, esta pesquisa é norteada pela
concepção de linguagem dialógica do Círculo de Bakhtin, associada aos estudos culturais
contemporâneos. Insere-se metodologicamente no âmbito das Ciências Humanas e
Sociais, no domínio da Linguística Aplicada (LA) e está amparada pelo paradigma
qualitativo-interpretativista (MOITA LOPES, 1994); (BOGDAN & BIKLEN, 1994).
Essa escolha torna-se pertinente na medida em que se coloca em sintonia com os novos
cenários que se configuram na atualidade, exigindo dos pesquisadores uma nova postura,
uma nova forma de produzir conhecimentos que possam satisfazer as demandas dessa
nova realidade.
Nesse modelo de pesquisa, não há lugar para a concepção de linguagem
tradicional, considerada como objeto autônomo, em que a língua é apenas uma estrutura
sintagmática ou abstração do pensamento, relegando-se, em sua fundamental
importância, a linguagem em uso, sua historicidade e suas esferas de produção e
circulação. A noção de linguagem aqui assumida dialoga com a vida, uma vez que é
considerada como prática social, não se devendo desvincular do estudo da sociedade e da
cultura da qual ela é parte constituinte e constitutiva.
Atualmente, a LA é uma área que dialoga com a vida e está focada na “resolução
de problemas das práticas de uso da linguagem dentro e fora da sala de aula” (MOITA
LOPES, 2015, p. 18). As pesquisas em LA buscam refletir sobre o problema da linguagem
em uso nas práticas sociais e nas diversas esferas sociais. Constitui-se, dessa forma, em
uma das áreas de produção de conhecimento mais amplas, cuja principal característica é
estar sempre em processo de reconfiguração.
Essa compreensão de língua como prática social rompe com a lógica de uma
linguagem entendida como estrutura gramatical. A língua está diretamente ligada à
88
realidade, às mudanças da vida social. Ela não está isolada como uma abstração. Seu
objeto de estudo não nega o sujeito e nem sua historicidade.
As transformações ocorridas ao longo dos últimos séculos contribuíram para a
formação de novos cenários e outros modos de ser dos sujeitos. A origem dessa
problemática está no processo de globalização, em que as mudanças ocorrem numa
velocidade ímpar, o que vem afetando as identidades, que se definiam antes tão estáveis
e seguras. Ao inserirmos esta pesquisa no campo de estudos da LA, enredamo-nos num
emaranhado de fios a serem conectados; isso porque as respostas para essas questões
requerem um passeio por múltiplos saberes. Afinal, uma das características mais notáveis
e unânimes da LA é a sua transdisciplinaridade, sua capacidade de dialogar com
diferentes áreas do conhecimento: História, Sociologia, Psicologia, Antropologia, estudos
culturais, entre outras.
E para enfrentar os questionamentos da pós-modernidade, a Linguística Aplicada
busca respostas diferentes daquelas consideradas como universais, abrindo espaço para
as diferenças, para a “periferia social” (BOHN, 2005, p. 21). Preocupa-se em
problematizar e questionar as contingências do mundo atual, sem pretensões de trazer
verdades incontestáveis e indiscutíveis, nem de provar exaustivamente as causas e os
efeitos, assim como ocorre nas áreas das ciências naturais. Esse tipo de investigação
adotado nas ciências naturais e exatas reduz a “complexidade do mundo a leis simples”
(BOAVENTURA, 2016, p.1), “insuficientes” para gerar respostas para as ciências
humanas. Isso porque o objeto de estudo é “multifacetado, repousando em
multicausalidades” (OLIVEIRA, 2012, p. 2).
Em diálogo transfronteiriço com outras áreas de produção de conhecimento,
assume-se como uma área mestiça, transgressora e indisciplinar. Indisciplinar porque não
se constitui como disciplina, mas como uma área de produção de conhecimento que se
coloca além dos paradigmas consagrados (MOITA LOPES, 2015).
A LA indaga as teorias tradicionais, propondo novas formas de produzir
conhecimento, distanciando-se de “verdades consideradas universais”. Os estudos
tradicionais ignoravam a historicidade dos sujeitos, desvinculando-os do mundo real. A
LA entende a linguagem como prática social constitutiva das relações humanas, atuando
nas múltiplas esferas de atividade sociais. Nesse sentido, fazer pesquisa em LA pressupõe
que é preciso levar em conta o contexto sócio-histórico.
89
Para “criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem um
papel central” (MOITA LOPES, 2015, p. 14), a LA necessita aliar-se a teorizações e a
uma concepção de linguagem que deem respostas a essas perguntas e sejam compatíveis
com esse pensamento. Dentre as várias concepções de linguagem existentes na
atualidade, a do círculo de Bakhtin é uma das que têm contribuído para apreender o ser
da linguagem.
O conjunto de obras dispostas pelo Círculo de Bakhtin conduz ao entendimento
do que seria produzir conhecimento em Ciências Humanas e as diretrizes para
compreender melhor o objeto estudado. Para os autores do Círculo, nas pesquisas em
ciências humanas, “a questão da voz do objeto é decisiva” (AMORIM, 2001, p, 10).
Ao contrário do que pensam, o Círculo de Bakhtin criou não apenas uma teoria
para os estudos da linguagem mas “também uma metodologia para as Ciências Humanas”
(GERALDI, 2010, p. 27). Os pensadores do Círculo colocaram o ser “humano como
centro das pesquisas”. Em outras palavras, seus estudos demonstram que a linguagem
decorre de toda atividade humana e, portanto, não se deve estudá-la fora de seu contexto
de produção e circulação porque é “onde a linguagem circula e onde ela faz sentido”
(GERALDI, 2010, p. 27). Vê-se, pois, que esses estudiosos não se amarram nas estruturas
sintagmáticas, “ou no sistema, ou no signo isolados dos seus contextos e relações, ou no
objeto objetivados”. Retiram a ideia de texto como objeto puramente linguístico, colocam
“o texto como o material sígnico ideológico por excelência” (MIOTELLO, 2005, p. 10)
porque partem do entendimento “da palavra como arena mínima de embates ideológicos”
(MIOTELLO, 2005, p. 10).
É nesse aspecto que, segundo Bakhtin (2016), reside a diferença entre fazer
pesquisa nas ciências humanas e fazer pesquisa nas ciências naturais:
o pensamento das ciências humanas nasce como pensamento sobre
pensamentos dos outros, sobre exposições de vontades, manifestações,
expressões, signos atrás dos quais estão os deuses que se manifestam (a
revelação) ou os homens (as leis dos soberanos do poder, os legados
dos ancestrais, as sentenças e enigmas anônimos, etc.) (BAKHTIN,
2016, p.72).
As ciências humanas estão voltadas para desvendar os pensamentos, os sentidos e
significados que se materializam em forma de texto. O texto é, portanto, o ponto de
partida para o conhecimento, independente dos objetivos. Os elementos verbais são dados
90
primários porque “todo texto tem um sujeito, um autor (o falante, ou quem escreve)
(BAKHTIN, 2016, p. 72)”. Nesse processo, o pesquisador entra como um segundo autor
porque cria um novo “texto emoldurador (que comenta, avalia, objeta, etc.)” (BAKHTIN,
2016, p. 73).
O texto, seja oral ou escrito, faz parte de uma realidade imediata. São fontes
substanciais de conhecimento: “onde há texto há objeto de pesquisa e pensamento”
(BAKHTIN, 2016, p. 71). Ademais, todo texto “pressupõe um sistema universalmente
aceito (isto é, convencional no âmbito de um dado grupo) de signos, uma linguagem
(ainda que seja a linguagem da arte)”. Se não há linguagem, não é um texto, “mas um
fenômeno das ciências naturais (não embasado em signo), por exemplo, um conjunto de
gritos naturais e gemidos desprovidos de repetição linguística (semiótica)” (BAKHTIN,
2016, p. 74).
Bakhtin não rejeita a ideia de que todo texto tem elementos que vão além dos
limites humanísticos e que podem ser chamados de elementos técnicos: “Não há e nem
pode haver textos puros”; todo texto pressupõe um sistema de linguagem. O que faz o
texto ser um enunciado são todas as intenções comunicativas pelas quais foi criado e,
portanto, faz dele algo único, singular e individual.
No campo de estudo da LA, os sujeitos de pesquisa não são considerados objetos
estáticos que se afastam do funcionamento real da língua, dos discursos produzidos em
sociedade. Seu propósito é estudar a língua real, a língua em uso, em seus vários contextos
de produção e circulação.
Ao tentar compreender o ser humano no “processo de sua existência”, Bakhtin
(2012) critica os princípios universais que direcionam as teorias da época. Para o autor, a
produção de conhecimento não pode ser isolada “do ser e de sua existência concreta nos
eventos do mundo da vida” (OLIVEIRA, 2012, p. 3). O mundo da vida, mundo em que
se realizam as ações humanas, é onde se encontram as orientações necessárias para a
investigação e a compreensão dos seres humanos e suas ações.
Esse tipo de pesquisa requer, portanto, um modo de pensar “pós-abissal”
(BOAVENTURA, 2016). A produção de conhecimento nas ciências humanas não deve
separar a realidade das formas de fazer ciência; deve tonar visível as minorias, não dividir
o mundo humano do subhumano.
Parece-nos bem evidenciado o fato de que o objeto de estudo da LA é a linguagem
em suas práticas discursivas, configurando, nesse sentido, um modo específico de
91
investigação, pois estudar a linguagem por meio da relação do sujeito com a sociedade à
qual pertence requer uma análise que vá além dos dados quantitativos.
E vale ainda considerar que, nas ciências humanas, trabalhamos com a
“interpretação das estruturas simbólicas” e o sujeito é um objeto falante e não mudo como
se encontra nas ciências exatas (FREITAS, 2002, p. 24). Sendo assim, torna-se necessário
um método de estudo compatível com o estudo da língua em sua natureza viva como
componente de análise. Por isso optamos pelo método qualitativo-interpretativista. Sobre
essa questão, Bogdan e Bliken (1994) deixam claro que as análises na investigação
qualitativa assumem caráter indutivo, pois, diferente de outras formas de fazer ciência,
não há, nesse procedimento, a preocupação em confirmar hipóteses. Na percepção de
Oliveira (2016, p. 56), a construção do conhecimento é um ato de responsabilidade social,
até porque
[...] o pesquisador não é um observador objetivo, politicamente neutro.
Seu posicionamento é o de um observador da condição humana e, na
relação entre pesquisador e pesquisado, um não pode emudecer a voz
do outro. Isso é, ao pesquisador é necessária a clareza de que o ato
cognitivo a ser por ele praticado vai encontrar um objeto (sujeito) já
apreciado e de certa forma ordenado, perante o qual ele deve ocupar,
com conhecimento de causa, sua posição axiológica.
Nas ciências humanas, o pesquisador tem participação ativa no ato de investigar.
Ele não é neutro e assume responsabilidades na produção de conhecimentos, pois “sua
ação e também os efeitos que propicia constituem elementos da análise”. O pesquisador
entra numa relação com o sujeito pesquisado, questionando, desafiando e, ao mesmo
tempo, dialogando com ele, ou seja, faz parte da “própria situação de pesquisa”
(FREITAS, 2002, p. 24).
4.2 CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DO CORPUS
Levando em consideração o fato de que, atualmente, são setenta escolas
desfilantes11, treze delas, inseridas no grupo especial (LIESA), também conhecido como
grupo de elite, e que as demais cinquenta e seis formam os chamados grupos de acesso,
11 Informação retirada dos sites: Liga independente das escolas de samba (LIESA), associação responsável
pelo grupo especial; Liga independente das escolas de samba do Rio de Janeiro (LIERJ), associação das
escolas de samba do grupo de acesso, Apoteosa – ordem de desfiles 2017.
92
adotamos quatro critérios para a seleção do corpus. O primeiro deles foi o de
pertencimento ao grupo especial do Rio de Janeiro (pelo fato de essas escolas serem
conhecidas pelo grande público e de sua importância no universo do samba).
Grêmio Recreativo da Portela
Estação Primeira de Mangueira
Império Serrano
São Clemente
Unidos de Vila Isabel
Paraíso do Tuiuti
Acadêmicos da Grande Rio
Mocidade Independente de Padre Miguel
Unidos da Tijuca
União da Ilha do Governador
Acadêmicos do Salgueiro
Imperatriz Leopoldinense
Beija-flor de Nilópolis
Figura 1: Tabela de Ranking
Fonte: http://liesa.globo.com/ Acesso em: 28 de maio de 2017
Feito o levantamento das escolas de samba pertencentes ao grupo de elite,
aplicamos o segundo critério: a escolha das escolas de samba com maior número
de títulos até o ano de 2018.
93
Total de
Títulos
Agremiação
22 Grêmio Recreativo da Portela
19 Estação Primeira de Mangueira
14 Beija-flor de Nilópolis
9 Acadêmicos do Salgueiro
9 Império Serrano
8 Imperatriz Leopoldinense
6 Mocidade Independente de Padre Miguel
4 Unidos da Tijuca
3 Unidos de Vila Isabel
1 Acadêmicos da Grande Rio
Figura 2: Tabela Ranking
Fonte: http://liesa.globo.com/ Acesso em: 28 de maio de 2017
Das treze escolas de samba que fazem parte do grupo de elite do Rio de Janeiro,
dez delas possuem títulos. No entanto, levando em conta a impossibilidade de analisar
essas dez escolas, operamos mais um recorte, que se definiu como nosso terceiro critério:
as três escolas detentoras do maior número de títulos, para além de dez. Por esse critério,
as escolas analisadas serão as seguintes:
Total de Títulos Agremiação
22 Grêmio Recreativo da Portela
19 Estação Primeira de Mangueira
14 Beija-flor de Nilópolis Figura 3: Tabela Ranking
Fonte: http://liesa.globo.com/ Acesso em: 28 de maio de 2017
O quarto e último critério diz respeito à escolha dos sambas reconhecidos pelas
escolas como hinos, ou seja, sambas-exaltação divulgados no site da própria escola e
entoados durante o cortejo que antecede o desfile e durante os ensaios, conhecidos
também como “hinos de exaltação” ou “sambas de esquenta”.
No que tange ao levantamento do corpus analisado nesta pesquisa, é importante
registrar que nem todos os sambas-exaltação tornaram-se, de fato, hinos oficiais da escola.
94
De acordo com Ericeira (2009), apenas aqueles que têm maior divulgação popular são
inseridos no ritual que antecede o desfile; e nem todos os sambas-exaltação são
divulgados, sendo difundidos apenas no interior das escolas de samba. Isso justifica a
escolha daqueles sambas que são reconhecidos como hinos de exaltação das escolas de
samba.
Observando as peculiaridades do critério adotado, os sambas-exaltação analisados
serão aqueles pertencentes às seguintes escolas de samba do Rio de Janeiro: Grêmio
Recreativo da Portela, Estação Primeira de Mangueira e Beija Flor de Nilópolis.
Em nossa próxima seção, apresentaremos as categorias de análises interpretadas
de acordo com as incidências linguístico-discursivas dos enunciados concretos. Vale
ressalvar o fato de que, em se tratando uma pesquisa de abordagem qualitativo-
interpretativista, as categorias não são preestabelecidas; elas surgem em função do
próprio corpus.
Os estudos empreendidos pelo Círculo de Bakhtin nos direcionam a conhecer
melhor o objeto estudado, de modo que o analista do discurso, por meio de gestos de
interpretação (GINZBURG, 1989), seguirá as pistas para compreender o enunciado
concreto em seu contexto de produção e de circulação. Como dissemos no início desta
seção, o objeto nas ciências humanas é “um ser expressivo e falante” (BAKHTIN, 2010,
p. 84), ou seja, ele não está mudo e nem inerte. Está sempre em interação com o que já
foi dito em outros enunciados, ao mesmo tempo em que produz respostas ativas. Portanto,
ao buscar pelas identidades das escolas de samba, exercemos a prática de ouvir o nosso
sujeito de pesquisa, para que ele nos sinalizasse as categorias, tornando-se guia em nossa
análise.
Após a seleção das escolas de samba e dos respectivos sambas-exaltação (a partir
dos critérios apresentados na seção 4.2), examinamos os enunciados sob a perspectiva
dialógica da linguagem, com vistas a buscar os sentidos reveladores do modo como, em
seus discursos, essas escolas se representam identitariamente.
Ao ouvir nosso sujeito de pesquisa e observar as incidências linguístico-
discursivas, verificamos alguns aspectos em comum na construção dos sambas-exaltação
como: exaltação à bandeira, exaltação às cores da escola, valorização do passado, palavras
que sugerem sentimentos de amor, paixão, de felicidade e de devoção que a comunidade
deve desenvolver pela escola, relação de alteridade com a comunidade ou bairro, palavras
95
que despertam emoção, elementos tipicamente religiosos, lugar de natureza e lugar de
samba.
96
5 ABRINDO O DESFILE: EM BUSCA DAS IDENTIDADES
Com a base teórica e metodológica instituída, esta seção discorrerá sobre as
análises dos sambas-exaltação das escolas de samba com a finalidade de responder as
questões que norteiam a nossa pesquisa: como as escolas de samba se constroem
identitariamente a partir dos seus sambas-exaltação? Que relações dialógicas estabelecem
entre si?
5.1 ANÁLISE ENUNCIATIVA DOS SAMBAS-EXALTAÇÃO
Nesta seção, como já estabelecido na metodologia, optamos por sistematizar a
análise da seguinte forma: em primeiro lugar, traçamos um percurso investigativo sobre
o contexto em que cada escola de samba analisada se insere; em segundo lugar,
apresentamos a letra dos sambas-exaltação da escola analisada e a interpretação desse
enunciado, fazendo ancoragem nos conceitos já apresentados nas seções de
fundamentação teórica.
As seções de análise foram organizadas seguindo o critério de construção do
corpus, ou seja, iniciando pelas escolas de samba com o maior número de títulos (ficando
na seguinte ordem: Grêmio Recreativo da Portela, Estação Primeira de Mangueira e
Beija-flor de Nilópolis) e prosseguindo com a análise de seu samba-exaltação. Trazer o
contexto das escolas de samba junto à análise de seu respectivo samba-exaltação permite
enxergar as condições sócio-históricas em que a interação verbal acontece, reforçando a
ideia de que esses enunciados não podem ser desvinculados da situação imediata da qual
são parte constituinte e constitutiva.
5.1.1 Grêmio Recreativo da Portela
A escola de samba Grêmio Recreativo da Portela está localizada em Cascadura,
zona norte do Rio de Janeiro, bairro conhecido pelas estações de trem e pela via de acesso
ao grande bairro de Madureira. No começo do século passado, com as grandes
construções urbanísticas promovidas por Pereira Passos12, novos moradores chegavam à
12 Nesse período, o Rio de Janeiro, sob administração do prefeito Pereira Passos, passou por grandes
transformações arquitetônica nos principais centros. Vários locais de moradia popular foram demolidos
97
região; em sua maioria, negros varridos dos grandes aglomerados urbanos. Suas moradias
eram humildes, distantes do centro e desprovidas de serviços públicos básicos. Sem
maiores opções para o lazer, o bairro tornou-se mais conhecido pela quantidade de
conjuntos carnavalescos.
Apesar das divergências quanto à sua fundação, de acordo com registros oficiais,
consta como a mais antiga agremiação do Estado do Rio de Janeiro, e também a que
acumula o maior número de títulos ‒ vinte e dois no total.
São Sebastião (Oxossí) e Nossa Senhora da Conceição (Oxum) são padroeiros da
escola; as cores azul e branca fazem referência às vestes de Nossa Senhora da Conceição.
Além desses símbolos, a escola faz-se representar pela imagem da águia. Nas palavras de
Ericeira (2009) “as cores azuis e brancas de sua bandeira e da águia - consubstanciam
uma dimensão simbólica da experiência de ser portelense” (ERICEIRA, 2009, p. 167,
grifo do autor).
Diferente de outras escolas, a Portela não faz parte do que podemos denominar
de comunidade; é mais um grande bairro do subúrbio carioca. Além disso, seu nome não
faz associação ao bairro onde está localizada, como ocorre com outras escolas. Talvez
por esse motivo, a participação da população do bairro de Cascadura seja diferente
daquela de outras agremiações que se integram dentro do morro/comunidade onde estão
localizadas, incorporando seu nome.
Na opinião de Pavão (2005), antropólogo que pesquisa sobre a escola de samba
da Portela, o envolvimento dos moradores do bairro é diferente em relação a outras
escolas. Nos últimos anos, houve uma substituição da “comunidade tradicional” pela
“comunidade eletiva”. A “comunidade tradicional” seria aquela composta pelos próprios
moradores do bairro, enquanto a “comunidade eletiva” é composta pelas pessoas que
vivem em outras localidades, mas que desenvolvem um laço afetivo com a escola de
samba. Para esse pesquisador, por estar localizada em um grande bairro da zona norte, e
muito heterogêneo, a agremiação não desperta o interesse dos moradores, caindo muitas
vezes no esquecimento. A indústria cultural contribui para que a memória da agremiação
ultrapasse fronteiras locais, incorporando indivíduos de outras regiões. Há, nesse sentido,
um deslocamento das relações sociais do contexto local, na medida em que, por afinidade,
muitas pessoas elegem a escola como elemento de identidade.
para dar lugar às grandes construções, como a abertura da Avenida Central, do Teatro Municipal, do
Porto do Rio de Janeiro e da Avenida Beira-Mar.
98
A Portela vivenciou vários momentos de conflitos internos que, inclusive,
ocasionaram o afastamento de Paulo da Portela13 e de alguns compositores. Natal da
Portela14, outra figura importante quando se fala da agremiação, passou a se dedicar à
escola após a morte de Paulo Portela. Foi responsável pelos dez títulos conquistados pela
escola, entre 1951 e 1970. Nesse período, a escola “foi a primeira das principais escolas
de samba cariocas a ter um homem forte do jogo do bicho determinando suas diretrizes
no carnaval” (ERICEIRA, 2009, p. 82).
Os anos de 1950 e 1970 foram marcantes na história da Portela em razão da vinda
de artistas plásticos que trouxeram, com suas experiências profissionais, uma nova
estética para a escola. Entre as transformações ocorridas, destacam-se “a criação de um
Departamento Cultural; a inserção de Paulinho da Viola, músico profissional, como
integrante da ala de compositores portelenses” (ERICEIRA, 2009, p. 84). Lembrando
que, até então, como vimos na seção sobre as escolas de samba, a Acadêmicos do
Salgueiro era considerada a primeira agremiação a trazer esse tipo de mudança estética.
Em 1970, criam a Velha Guarda Show da Portela, contribuindo para significativa
mudança no discurso dos portelenses sobre a escola: “a escola deixava de encarnar o papel
de pioneira nas mudanças dos cortejos carnavalescos e passava a ser classificada como o
celeiro do samba de raiz, tradicional e autêntico” (ERICEIRA, 2009, p. 85).
De acordo com Pavão (2005), entre os anos de 1970 e 1990, a escola da Portela
viveu um grande dilema entre modernizar-se para se tornar mais competitiva ou manter
a tradição. Essa crise entre o antigo e o novo, entre modernidade e tradição dividia a
escola em grupos da ala tradicionalista, que criticavam as mudanças dentro da escola, de
novos integrantes, revelando pontos de tensão, vez que “estavam em jogo também a
disputa por prestígio e pela hegemonia das relações de poder dentro da escola”
(ERICEIRA, 2009, p. 87).
Com o enfraquecimento da Portela no cenário carnavalesco, chegando a ficar dez
anos consecutivos sem ganhar campeonatos, a escola “via-se obrigada a resguardar o que
13 Quando se fala da Portela, não tem como não citar Paulo da Portela, figura importante quando se trata
do passado dessa escola. Nas palavras de Ericeira (2009), Paulo da Portela, além de fundador e grande
compositor, destacava-se como um grande líder, responsável por difundir os valores da escola. Paulo
da Portela teve um papel preponderante na construção da identidade da escola, na sua divulgação e na
sua afirmação no universo do samba. 14 Natal da Portela administrava bancas de jogo do bicho em Madureira. Parte da renda dos jogos era
destinada à escola, fato que contribuiu para seu grande prestígio dentro da Portela. No entanto, Natal da
Portela também ficou conhecido “pelos crimes que cometeu”, além dos processos por contravenção
(ERICEIRA, 2009, p. 81).
99
lhe restava de bens significativos: a memória de seu passado e o discurso de defensora da
autenticidade e da tradição do samba”. Assim, dá-se seu retorno à tradição, como uma
forma de afirmar positivamente a agremiação e legitimá-la no universo do samba. Desde
1990, a Portela vem “mergulhando” na busca de seu passado; seus sambas-enredo
transformaram-se numa espécie de samba-exaltação, trazendo “fortemente um processo
de autolouvação” (ERICEIRA, 2009, p. 93). Essa busca pelo passado não fez com que a
escola saísse vitoriosa, mas melhorou relativamente seu desempenho e sua posição entre
as outras agremiações. Além dos sambas-enredo, Ericeira destaca outros projetos de
fixação e memorização do passado da Portela e dos valores da escola.
Outro fato importante sobre a Portela é a forte devoção pelos santos padroeiros,
como um dos principais valores a serem incorporados pela comunidade. Várias missas
são realizadas para celebrar a fé religiosa dos portelenses e homenagear seus padroeiros.
Essa fé fica evidente na citação a seguir:
Homenagens aos santos padroeiros da agremiação, modificações
de nomes de ruas, inaugurações de bustos em homenagem a
determinados portelenses, são alguns dos usos da memória
portelense que fortalecem o grupo internamente e mantêm o seu
sentido de continuidade através do tempo [...]. Às seis da manhã,
ao raiar do dia, um corneteiro anunciava a Alvorada com queima
de fogos, cuja duração foi de dois minutos. Os componentes da
bateria, enfileirados em direção aos fogos, rufaram os
instrumentos e se dirigiram ao altar de São Sebastião, onde
tocaram em sua homenagem. Entre lágrimas, os poucos presentes
se abraçavam, alguns choravam e se cumprimentavam saudando-
se com um ‘feliz ano novo’. Perguntei a um dos presentes o
porquê daquela saudação aparentemente extemporânea, o qual
respondeu: “para o verdadeiro portelense, o ano só efetivamente
começava após os festejos do nosso santo padroeiro”
(ERICEIRA, 2009. p. 98, grifo do autor).
Vimos que, em seus tempos áureos, a escola de samba Grêmio Recreativo da
Portela manteve-se vitoriosa por sete anos consecutivos. É conhecida na história do
carnaval por acumular o maior número de vitórias, muito embora tenha passado um
período longo de crise e conflitos dentro e fora da própria comunidade, chegando a ficar
anos sem ganhar campeonatos. O último título foi conquistado em 2017. Nesse ano, a
escola resolveu novamente trazer o passado da Portela para dentro da Sapucaí, com o
tema “Quem nunca sentiu o corpo arrepiar ao ver esse rio passar”.
100
5.1.1.1 Samba-exaltação Hino da Portela
E para melhor expressar o que representa a Portela, passamos à interpretação de
seus sambas-exaltação, levando em conta o contexto de produção da escola de samba
analisada. No levantamento do corpus, verificamos que a Portela tem dois sambas-
exaltação considerados hinos da escola.
Hino da Portela
Compositor: Chico Santana - 1935
Portela
Suas cores têm
Na bandeira do Brasil
E no céu também
Avante portelense para a vitória
Não vê que o teu passado é cheio de glória
Eu tenho saudade
Desperta oh! Grande mocidade
As suas cores são lindas
Seus valores não têm fim
Portela querida
És tu na vida pra mim.
Nos versos desse primeiro samba analisado, observamos que os enunciados são
marcados pela valorização das cores da bandeira da escola: “Portela/Suas cores têm/ Na
bandeira do Brasil”. A referência às cores da escola associadas à bandeira do Brasil
contribui para reforçar o “sentimento patriótico” pela escola e sua valorização, assim
como se dá com a bandeira nacional. O verso “E no céu também” parece colocar a escola
em um status mais elevado em relação às rivais. Na sequência dos enunciados,
verificamos novamente a necessidade de a escola exaltar as suas cores: “As suas cores
são lindas”. A valorização da bandeira e de suas cores é também muito comum no gênero
hino pátrio, até para criar uma ideia de pertencimento e de uma identidade para
determinada nação/comunidade.
O samba-exaltação em análise foi gravado em 1935, ano do primeiro título
conquistado pela Portela (antes, e por três anos consecutivos, pertencente à Mangueira).
No verso “Não vê que o teu passado é cheio de glória”, a escola busca afirmar sua
101
importância no universo do samba pela valorização de um passado de glórias, tomando
como suporte para isso um título recém-adquirido. Esse "passado de glórias" pode não
estar relacionado a títulos conquistados, mas pode dizer respeito ao fato de a escola
continuar mantendo-se entre as mais bem colocadas desde o início. Ou ainda pode tratar-
se de uma estratégia no sentido de querer dizer que tem um passado “cheio de glória” e,
dessa forma, atribuir-se maior importância, ficando à frente de outras agremiações, quem
sabe igualar-se à sua maior rival, a escola de samba da Mangueira, que vinha
conquistando a maioria dos títulos até então. Essa estratégia é muito comum aos
movimentos nacionalistas, em que a identidade é reforçada com referência a um “suposto
e autêntico passado” cheio de glória (WOODWARD, 2014, p. 28). Relacionando esses
enunciados com os momentos de crise vividos pela agremiação, podemos dizer que “[...]
essa redescoberta do passado é parte do processo de construção da identidade que está
ocorrendo neste exato momento e que, ao que parece, é caracterizada por conflito,
contestação e uma possível crise” (WOODWARD, 2014, p. 12). Esse pensamento é
reforçado no verso: “Eu tenho saudade”, que apresenta um discurso nostálgico e
saudosista sobre esse passado que ainda não existe ou já existiu.
Todos esses mecanismos de recordar o passado contribuem para levantar a
comunidade, para despertar o desejo-emotivo dos participantes e fazer com que se sintam
mais envolvidos e motivados a trabalhar pela escola, conforme conclama o verso “Avante
portelense para a vitória/ Não vê que seu passado é cheio de glórias”.
No verso “Portela querida/ És tu na vida pra mim”, registram-se palavras de amor
e devoção pela escola, o que pode transmudar-se em um discurso internamente persuasivo
(BAKHTIN, 2015). Como sabemos, uma das características desse tipo de discurso é o de
jogar com as emoções, de despertar o emotivo-volitivo da comunidade. Não se permite,
nessa forma de manifestação, a abertura para o discurso do outro; este quer ser
reconhecido e assimilado pelos interlocutores.
Além da valorização de suas cores e de seu passado de glórias, a escola também
tenta reforçar a transmissão de valores que deseja instituir, como bem sublinha o verso:
“Seus valores não têm fim”.
102
5.1.1.2 Samba-exaltação Portela na avenida
Após a análise do primeiro samba-exaltação, passamos para o segundo samba
registrado no site da escola como hino oficial da Portela.
Portela Na Avenida (samba-exaltação)
G.R.E.S Portela – 1980
Compositor: Mauro Duarte E Paulo César Pinheiro
Portela
Eu nunca vi coisa mais bela
Quando ela pisa a passarela
E vai entrando na avenida
Parece a maravilhosa de aquarela que
surgiu
O manto azul da padroeira do Brasil
Nossa Senhora Aparecida
Que vai se arrastando
E o povo nas ruas cantando
É feito uma reza, um ritual
É a procissão do samba
Abençoando
A festa do divino carnaval
Portela,
É a Deusa do samba o passado revela
E tem a velha guarda como sentinela
É por isso que eu ouço essa voz que me
chama
Portela
Sobre a tua bandeira este divino manto
Tua águia altaneira é Espírito Santo
No templo do samba
As pastoras e os pastores
Vem chegando da
Cidade, da favela
Para defender as suas cores
Como fiéis na santa missa da capela
Salve o samba, Salve a Santa, Salve ela
Salve o manto azul e branco da Portela
Desfilando triunfal
Pelo altar do Carnaval
Como se pode constatar, a religiosidade é uma característica marcante no segundo
samba-exaltação da Portela. Suas escolhas lexicais dão a ideia de se estar numa
“procissão”, “feito uma reza, um ritual”. A escola de samba faz-se representar como
sendo a “Padroeira do Brasil”; “Nossa senhora Aparecida”. A águia, símbolo da escola,
é o “Espírito Santo”; a avenida por onde as escolas de samba desfilam é o “altar”; o
público participante são os “fiéis na santa missa da capela”; o ensaio ou desfile da escola
é a “festa do divino”. Assim, no plano estilístico, todo campo semântico dos enunciados
remete a temas religiosos como “abençoado”, “divino manto”, “templo”, “pastoras e os
pastores”, “salve o samba, salve a santa, salve ela”, “salve o manto”. A identidade
atribuída à escola é de santa: “Nossa senhora do Brasil/ Nossa senhora Aparecida” e
“padroeira do Brasil”. Em termos gerais, a escola assume uma identidade religiosa, e o
seu desfile apresenta-se como um momento divino. Num outro plano, constrói sua
identidade à semelhança de uma mulher: “Eu nunca vi coisa mais bela/ Quando ela entra
103
na avenida/ Parece a maravilhosa de aquarela que surgiu”, “É a Deusa do samba o
passado revela”.
Esses enunciados, ao inserirem elementos religiosos num ambiente de festa
carnavalesca, colocam em diálogo o “sagrado” e “o profano”, revelando todo processo de
carnavalização a que Bakhtin (2013) faz referência. A festa carnavalesca tem como
característica a abolição de tudo que é sagrado durante um determinado período. Até já
se fazem muito comuns paródias carnavalescas de textos e rituais sagrados. O samba-
exaltação analisado não pertence ao gênero paródia, é verdade; mas comporta o que
Bakhtin (2013) denomina de mésalliance carnavalesca, pois aproxima tudo aquilo que
estaria separado.
E vale dizer, a título de esclarecimento, que não é por ingenuidade que temas
religiosos aparecem em letras de samba. A religiosidade, não raro, esteve presente na
construção das letras desse gênero do discurso e relacionada à própria escola. Como
vimos na segunda seção desta dissertação, as festas populares do Rio de Janeiro eram,
muitas vezes, celebradas durantes as festas religiosas.
Esse segundo samba-exaltação foi escrito em 1980 quando a Portela conquistou
seu vigésimo título de campeã do carnaval, após ficar dez anos consecutivos sem ganhar
campeonatos. Nesse atual contexto sócio-histórico em que se encontrava, todas as
escolhas lexicais fazem parte de um projeto de dizer que busca conquistar a adesão do
público por meio do discurso religioso, caracterizado como discurso autoritário, pois
vimos que este último está ligado ao dogmático, próprio da esfera religiosa.
A Portela mantém relação importante com a religiosidade e tenta preservar essa
devoção como um dos principais valores da escola. Sempre homenageia seus santos
padroeiros. O samba-exaltação acima entra diretamente em diálogo com as rezas e os
cânticos religiosos de missas em celebração aos santos.
Em pleno período colonial no Brasil, o gênero hino era muito utilizado pela igreja
como instrumento de conversão dos povos indígenas. Nesse caso, podemos dizer que o
samba-exaltação da Portela segue os mesmos propósitos comunicativos desse período
uma vez que, por meio de signos religiosos, o samba-exaltação também serve de
mecanismos para converter os participantes da comunidade.
E vale acrescentar o fato de que registramos a presença de ideologias diversas
nesse samba-exaltação, que vão se formando a partir de signos socialmente aceitos.
Apoderam-se de símbolos ideológicos já estabilizados, mais aceitos socialmente, como é
104
o caso dos símbolos religiosos, com o intuito de exercer maior influência. Mesmo porque,
como sabemos, a “compreensão de um signo ocorre na relação deste com outros signos
já conhecidos; em outras palavras, a compreensão responde ao signo e o faz também com
signos” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 95). Dá-se, desse modo, a combinação entre os
gêneros hino religioso, rezas, cantos religiosos e samba-exaltação, caracterizando uma
forma híbrida de construção. Nesse sentido, o samba-exaltação deve ser compreendido
como unidade real de comunicação, mantendo relações com outros enunciados já ditos.
De acordo com Rojo (2007, p. 176), a hibridização é uma construção típica das canções
populares.
Sobre os gêneros híbridos, Bakhtin explica:
chamamos de construção híbrida um enunciado que, por seus traços
gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a um falante, mas
no qual estão de fato mesclados dois enunciados, duas maneiras
discursivas, dois estilos, duas “linguagens”, dois universos semânticos
e axiológicos. Entre esses enunciados, estilos, linguagens e horizontes,
repetimos, não há nenhum limite formal – composicional e sintático: a
divisão das vozes e linguagens ocorre no âmbito de um conjunto
sintático, amiúde no âmbito de uma oração simples, frequentemente a
mesma palavra pertence ao mesmo tempo a duas linguagens, a dois
horizontes que se cruzam numa construção híbrida e, por conseguinte,
tem dois sentidos heterodiscursivos, dois acentos (BAKHTIN, 2015, p.
84).
Em seu samba-exaltação, a Portela novamente reforça a necessidade de a
comunidade “defender as suas cores”, tal como se conclama no discurso patriótico. No
verso “Salve o manto azul e branco da Portela”, as cores adquirem um valor sagrado ao
serem associadas à palavra manto. A referência às cores da bandeira é uma estratégia
comum também nos hinos pátrios e nos hinos de times de futebol. São marcações
simbólicas usadas como estratégias discursivas que contribuem para a afirmação
identitária de uma nação ou de uma instituição. “A marcação simbólica é o meio pelo
qual damos sentido a práticas e relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído
e quem é incluído. É por meio da diferenciação social que essas classificações da
diferença são ‘vividas’ nas relações sociais” (WOODWARD, 2014, p. 10, grifo da
autora). Determinadas cores podem ser diretamente associadas à determinada nação,
comunidade, marca ou time de futebol.
Apesar de o hino fazer referência às cores azul e branca como cores de sua
bandeira, fazendo associação às cores da padroeira, estas podem também caracterizar as
105
cores Oxóssi e Oxum da religião de origem africana. Além desses elementos, não
observamos nenhum outro aspecto de referência à cultura e à identidade negra, sendo
procedente a afirmação de que há nesses hinos o apagamento da identidade e da cultura
negra. Parece, pois, legítimo dizer que o samba, ao entrar na ordem do permitido, tornou-
se “domesticado, limpo, seguro” conforme sublinha Pereira (2012).
Outro símbolo muito importante para a escola da Portela é a águia, citada no verso
“Tua águia altaneira é Espírito Santo”. Tomando a águia como um signo ideológico,
podemos dizer que, simbolicamente, remete ao poder, à imponência, à força. Já a palavra
altaneira significa soberana, orgulhosa, altiva. Na religião afro, a águia é um animal solar
e tem um significado sagrado, a mais alta divindade, considerada a rainha de todos os
pássaros. Simboliza poder e força espiritual. De acordo com Ericeira (2009), o carro
alegórico com o símbolo da águia na avenida causa fascínio e emoção nos portelenses.
Aliás, todos esses signos ideológicos representados pela imagem da águia são valores que
a escola deseja instituir e afirmar como sua marca identitária. E são igualmente
importantes para despertar o emotivo-volitivo (atitude responsiva) dos participantes, que,
em resposta, se empenharão mais ainda durante o desfile em prol do êxito comum.
De fato, como podemos observar abaixo (Figura 4), a imagem da águia azul e
branca, com as asas abertas, entrando na avenida pode facilmente remeter à imagem da
pomba representada pelo Espírito Santo. A expressão “facial” da águia impõe aquilo que
simbolicamente ela representa: poder, imponência e força.
Figura 4
Fonte: http://www.gresportela.org.br/ Acesso em 09 de junho de 2018
106
Figura 5
Fonte:https://pt.dreamstime.com/foto-de-stock-pomba-do-esp%C3%ADrito-santo-
image52057728/ Acesso em: 09 de junho de 2018
Entendendo, como Volóchinov (2017), que toda palavra veicula uma ideologia e
está diretamente ligada à situação extraverbal, podemos dizer que a escolha da águia
como símbolo da escola não se restringe a uma decisão aleatória; cumpre um objetivo
bem-definido: faz parte de um projeto de dizer que visa construir uma atitude responsiva
da comunidade e afirmar uma identidade positiva e competitiva para a escola.
Bakhtin (2016, p. 105) lembra que toda palavra tem, por natureza, a necessidade
de ser ouvida; “sempre procura uma compreensão responsiva e não se detém na
compreensão imediata, mas abre caminho sempre mais e mais à frente (de forma
ilimitada)”. Assim, todo enunciado é construído visando sempre a um destinatário e sua
compreensão constitui-se num processo dialógico.
Nesse processo dialogizado, há a assimilação de discursos que pertencem à
categoria do discurso autoritário (religioso e nacional). Para Bakhtin, “o discurso de
autoridade pode organizar em torno de si massas de outros discursos” (BAKHTIN, 2015,
p. 136-137). Sob essa ótica, pode-se considerar que o samba-exaltação da Portela vincula-
se ao discurso de autoridade, na medida em que visa alcançar mais adesão do público,
obter mais o empenho da comunidade. Trata-se de aplicar material de outro discurso em
uma nova situação para “conseguir novas respostas (uma vez que um eficiente discurso
do outro gera dialogicamente nosso novo discurso responsivo) (BAKHTIN, 2015, p.
141).
107
O discurso autoritário caracteriza-se como sendo monológico porque impõe seus
valores desconsiderando as outras vozes; está fechado para outras opiniões e outros
questionamentos. É um tipo de discurso que exerce poder sobre os outros e “entra em
nossa consciência verbal como uma massa compacta e indivisível” (BAKHTIN, 2015. p.
144),
Ao misturar elementos do discurso religioso e de hinos nacionais, percebemos, na
composição do já aludido samba-exaltação, uma forma de molduragem do discurso do
outro, posto que se intercalam traços sintáticos e elementos do léxico próprios de outro
gênero, mas que “permanecem acentuadamente destacados”. Há, portanto, no samba-
exaltação da Portela dois universos discursivos de estilos, linguagens e horizontes de
universos distintos: o religioso e o nacional que, juntos, constroem um projeto de dizer.
Ao estabelecermos a comparação entre os dois sambas-exaltação dessa escola (um
escrito em 1935; ano do primeiro título conquistado; outro gravado em 1980, ano em que
a escola de samba conquista seu vigésimo título, após ficar dez anos sem ganhar
campeonatos), constatamos que o primeiro samba afirma uma identidade baseada num
passado recém-conquistado, o que se traduz na valorização das cores de sua bandeira (um
discurso mais nacionalista). Já o segundo samba-exaltação busca outra estratégia para
conquistar a adesão do público: o apelo à religiosidade, à elevação do espírito, visto que
o portelense estava com a autoestima baixa por ficar tanto tempo sem receber títulos.
5.1.2 Estação primeira de Mangueira
Localizada ao lado de uma das linhas férreas da cidade, com vista privilegiada
para a Quinta da Boa Vista e para o estádio de futebol Maracanã, a escola de samba da
Mangueira é, muito provavelmente, uma das mais conhecidas em todo o território
nacional e talvez a que contabiliza mais adeptos. É uma das agremiações que levam o
mesmo nome da comunidade onde está localizada; e foi graças à sua presença que a favela
“passou a ser considerada o celeiro e patrimônio da cultura popular e berço de alguns
poetas mais geniais da música popular brasileira” (COSTA, 2002, p. 33).
Assim como a Portela, a escola de samba da Mangueira também faz questão de
preservar o título de escola mais antiga, de valorizar seu passado, suas raízes e seus
personagens mais ilustres. As cores verde e rosa [seu principal símbolo] estão em todos
os lugares; por isso mesmo, ainda nas palavras de Cabral (1996, p. 56), “não dá para
108
separar o morro da escola de samba” Além de ser considerada uma das escolas mais
antigas, está situada, de acordo com os registros15, numa das favelas (a terceira) mais
antigas do Rio de Janeiro.
A população do complexo da Mangueira chegou à região impulsionada pela
localização de fábricas em torno do morro, condição favorável ao surgimento de grande
contingente de migrantes mineiros e nordestinos, em sua maioria, negros, filhos e netos
de escravos, à procura de melhores oportunidades. Nos anos 20, o morro da Mangueira
ainda era uma comunidade pequena (bem diferente do que se observa nos dias de hoje),
constantemente ameaçada de remoção por força de ações judiciais.
Desde seu aparecimento, a favela da Mangueira foi centro de grandes
manifestações da cultura popular. Mesmo antes da fundação da escola, já era considerada
reduto de sambistas (CABRAL, 1996).
A escola de samba da Mangueira foi fundada em 28 de abril de 1928, sob a
liderança de Cartola, que também foi quem escolheu o nome e as cores da Estação
Primeira; por isso o compositor tornou-se menção obrigatória quando se fala da
Mangueira. A escola é também conhecida por possuir grandes compositores. Esse
diferencial levou-a a ganhar mais prestígio no universo do samba carioca.
Contando com o patrocínio de grandes empresas, essa agremiação mantém
inúmeros projetos sociais para o desenvolvimento da educação, da cultura, do esporte e
lazer dos moradores da comunidade. De acordo com Costa (2002), a escola mantinha-se
sem a contribuição do tráfico de drogas ou do “jogo do bicho”, prática muito comum entre
as escolas de samba no século passado. Tudo isso contribuiu para dar-lhe mais
credibilidade.
Sua história revela que, desde seu advento, a Estação Primeira de Mangueira
sempre se colocou numa posição de destaque em relação às demais escolas, ficando
conhecida na história do carnaval carioca por construir toda uma “marcha de glórias”
(ALBIN, 2009, p. 253).
O período de maior destaque da Mangueira situa-se entre as décadas de 30 e 40,
quando (juntamente com a Portela) liderou, com hegemonia, os desfiles das escolas de
samba. Albin (2009) observa que, nesse período, as escolas de samba da Mangueira e da
15 Dados da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Disponível em (http://www.fau.ufrj.br/prourb/cidades/favela/anamang.htlm.)
109
Portela inseriram traços da ideologia de Prestes16 nas composições dos sambas e se
firmaram com grande liderança frente as outras escolas. Depois desse longo período de
vitórias e de supremacia, essas escolas tiveram seu protagonismo desafiado com a
chegada da escola de samba Império Serrano e, logo depois, da Beija-flor de Nilópolis.
Com a inauguração do Sambódromo, em 1985, a Mangueira “sinalizaria uma volta
profética aos tempos idos e vividos” (ALBIN, 2009, p. 258).
A comunidade da Mangueira “inflama-se” de orgulho pela escola, pois foi graças
a essa agremiação que deixou de ser considerada lugar estranho à cidade (FERNANDES,
2001). Por isso mesmo, faz questão de divulgar e preservar a história da escola e das
principais figuras com a criação da sede “Palácio do Samba”.
5.1.2.1 Samba-exaltação Exaltação à Mangueira
No processo de levantamento do corpus, verificamos que, apesar de existirem
vários sambas-exaltação em homenagem à mangueira, a escola de samba registra, em seu
site, apenas um deles como hino oficial desde de 1956.
Exaltação à Mangueira (hino da Mangueira)
Compositor: Enéas Brites Da Silva / Aloísio Augusto Da Costa
Intérprete: Jamelão
Ano:1956
Mangueira teu cenário é uma beleza
Que a natureza criou, ô...ô...
O morro com seus barracões de zinco,
Quando amanhece, que esplendor,
Todo o mundo te conhece ao longe,
Pelo som de teus tamborins
E o rufar do seu tambor
Chegou, ô... ô...
A mangueira chegou, ô... ô...
Ó Mangueira, teu passado de glória,
Ficou gravado na história,
É verde-Rosa a cor da tua bandeira,
16 Esse período Prestes e Getúlio Vargas disputavam o poder pela presidência. Prestes defendia uma ideia
de evolução social vinda das classes sociais mais baixas, das massas.
110
Pra mostrar a essa gente,
Que o samba, é lá em Mangueira !
Nesse hino de exaltação, os espaços apresentam-se como lugares de beleza “que
a natureza criou”, ao mesmo tempo em que os elementos típicos dos morros e das favelas,
os “barracões de zinco”, símbolos de simplicidade e pobreza, mostram-se em todo o seu
esplendor: “Quando amanhece, que esplendor”. Todas essas escolhas lexicais visam
construir uma descrição de lugar, em que os elementos caracterizadores do objeto em
foco estabelecem a relação de alteridade entre a escola e a comunidade. A valorização do
lugar e das paisagens é muito comum no discurso patriótico, que visa fixar não apenas
um imaginário de lugar mas também uma identidade, construída a partir de uma ideia de
pertencimento territorial.
Nesse samba-exaltação, as escolhas lexicais contribuem para ressaltar as virtudes
da escola e ainda enaltecer o seu “passado de glórias”. A valorização do passado em busca
de vitórias (e glórias) é também uma característica do gênero hino pátrio. Recordar o
passado reiteradamente é uma estratégia de manutenção do sentimento de pertencimento
dos que fazem parte da comunidade/nação. Esse apelo afetivo e a valorização do lugar,
visam fortalecer ainda mais o vínculo com a escola.
Essa insistente valorização de um “passado feito de glórias” também se faz
recorrente nos hinos nacionais. No caso em foco, a alusão a um “passado feito de glórias”
é uma forma de colocar-se superior a outras agremiações; afinal, diferentemente das
demais, conta com uma história gloriosa. Essa constante repetição dos grandes feitos
pode ser considerada uma tática de sobrevivência, uma forma de ser diferente e também
de afirmação da identidade dessas instituições culturais.
A Mangueira ainda reforça sua identidade por meio da marcação simbólica da
bandeira da escola, como se verifica no verso “É verde-Rosa a cor da tua bandeira”. Ao
dizer que verde-rosa são as cores da bandeira, a escola, indiretamente, alude ao
“sentimento patriótico” que a comunidade deve desenvolver pela escola, tal como se
processa com as cores da bandeira nacional.
No discurso autoritário nacionalista, também é muito comum a exaltação à
bandeira como estratégia para reforçar os principais símbolos de uma nação. Em seus
sambas-exaltação, a Mangueira utiliza semelhante estratégia: lança mão de um modo de
dizer com o propósito de conquistar a adesão do público por um discurso “patriótico” que
supervaloriza os principais símbolos da escola.
111
Fica, pois, evidenciado o fato de que a identidade da Estação Primeira de
Mangueira é construída a partir da relação de alteridade da escola com o
morro/comunidade onde está localizada. Tanto é que as referências ora remetem à escola
de samba, ora ao “morro com seus barracões de zinco”. Reforçar essa relação das escolas
de samba com suas comunidades parece fundamental para o fortalecimento de suas
identidades e o enfrentamento das dificuldades criadas em razão das exigências a serem
satisfeitas para que se possam manter no grupo das campeãs.
Como revelamos nas seções anteriores, a relação de alteridade é assimilada com
frequência no nome da própria escola de samba, visto que muitas delas adotam o nome
da comunidade ou do bairro como marcação de origem, a exemplo da escola de samba da
Mangueira que leva o mesmo nome do morro onde está localizada; da Unidos da Tijuca,
localizada no bairro da Tijuca; da Beija-flor de Nilópolis, entre outras escolas. As
comunidades são, para algumas escolas de samba, um “prolongamento de sua própria
identidade” (POUBEL, 2012, p. 4). Desde sua criação histórica, elas estiveram ligadas à
ideia de comunidade, pois foi nesses espaços que se constituíram e se afirmaram. Vale
salientar que essa associação surge como uma necessidade de sobrevivência para essas
agremiações e a interação com esses espaços fortalece a relação de alteridade, pois é nessa
troca que a escola constrói sua identidade.
A escola de samba Mangueira também quer ser reconhecida pelo “som de seus
tamborins” e o “rufar de seu tambor”. Afinal, é lugar de samba; e de samba de qualidade!
De fato, é uma identidade que a escola de samba da Mangueira tenta preservar, pois, como
vimos, mesmo antes de seu surgimento, a comunidade da mangueira era reconhecida pela
qualidade de seu samba, pelo destaque de compositores, como Cartola, que deu esse título
à Mangueira.
Por fim, é importante registrar que esta escola de samba, ao narrar sua história (em
seu site), “alardeia” sua relação com os batuques e os cantos advindos de várias nações
africanas, e também as religiões afro-brasileiras, o candomblé e a umbanda. Não obstante,
em seu samba-exaltação, observamos poucas referências de origem afro-brasileira.
5.1.3 Beija-flor de Nilópolis
A escola de samba Beija-flor de Nilópolis foi fundada em 25 de dezembro de
1948; é a terceira escola com o maior número de títulos ‒ o último conquistado este ano
112
(2018) ‒, somando treze no total. Está localizada na baixada do Rio de Janeiro,
especificamente no bairro de Nilópolis. Tem como principais símbolos as cores azul e
branca e o beija-flor.
O município de Nilópolis tem, pela escola, um grande orgulho, principalmente
porque, graças ao reconhecimento internacional dessa agremiação, associado às vitórias
conquistadas na história do carnaval, a cidade tornou-se mais visível nacionalmente e
mundialmente.
Antes do surgimento da Beija-flor, as escolas da Mangueira, da Portela e o Império
Serrano eram as mais bem colocadas e dominavam o carnaval carioca há mais de três
décadas. A Beija-flor desfilou pela primeira vez com as grandes escolas apenas em 1960,
conseguindo, nesse ano, ficar no sexto lugar. Nos anos seguintes, foi-se aprimorando em
suas apresentações, de tal modo a obter vitórias sucessivas (1976, 1977, 1978), acabando
com a primazia das escolas da Mangueira, Portela e Império. Outros títulos vieram em
1980, 1983, 1998, 2003, 2004, 2005, 2007, 2008, 2011, 2015 e 2018, definindo-a como
uma das principais escolas no cenário carnavalesco do Rio de Janeiro.
Como já mencionado (cap. 2), a Beija-flor teve um papel importante na
transformação do desfile das escolas de samba. E essa meteórica progressão deveu-se,
sem dúvida, ao carnavalesco Joãozinho Trinta, responsável pela reinvenção do desfile das
escolas de samba. Muito embora alguns estudiosos defendam a tese de que essa rápida
ascensão da Beija-flor deve-se à contribuição do mecenato do jogo do bicho (QUEIROZ,
1992; CAVALCANTI, 2008).
5.1.3.1 Samba-exaltação A Deusa da Passarela
Ao buscar pelo hino oficial da escola, verificamos que a Beija-Flor registra três
sambas-exaltação como oficiais, sendo A Deusa da Passarela o mais famoso e o mais
divulgado midiaticamente.
A Deusa da Passarela
Compositor e intérprete: Neguinho da Beija-Flor
Ano: 1979
É ela,
Maravilhosa e soberana
De fato nilopolitana.
113
Enamorada deste meu país
É ela,
A deusa da passarela
Razão de meu cantar feliz.
É ela,
Um festival de prata em plena pista,
É sorriso alegre do sambista,
Ao ecoar do som de um tambor... ôô
Beija-flor minha escola,
Minha vida, meu amor.
Como se pode observar nesse samba-exaltação da Beija-flor de Nilópolis, todas
as estrofes são introduzidas pela expressão “É ela”. Constrói-se, assim, uma identidade
feminina sempre em referência à escola: “É ela/ Maravilhosa e soberana/ De fato
nipolitana / Enamorada deste meu país/ É ela/ A deusa da passarela”. É também em
função das escolhas lexicais que se enaltece a escola. Os epítetos “deusa da passarela”, e
“Maravilhosa e soberana” pertencem ao que Valença (1983, p. 83) denominou de “área
semântica de esplendor”; são recursos discursivos comuns utilizados pelos sambistas não
só para caracterizar as escolas de samba mas também para definir o lugar que elas devem
ocupar. Todas essas adjetivações “personificam” a escola, que é “de fato nilopolitana” ‒
uma expressão de orgulho para o lugar em que se situa.
Os enunciados que se seguem apresentam palavras que exprimem amor, paixão e
devoção. Aliás, são os sentimentos mais evocados na maioria dos sambas-exaltação.
A escola também quer ser conhecida como lugar de felicidade. Por isso a presença
de palavras que expressam amor e felicidade em alguns de seus versos: “Razão do meu
cantar feliz/Beija flor minha escola/Minha vida, meu amor”, “Um festival de prata em
plena pista/ É o sorriso alegre do sambista”. Todas essas escolhas parecem produzir uma
sensação de felicidade e buscam desenvolver um sentimento afetivo pela escola,
caracterizando um discurso persuasivo, tal como na linguagem publicitária. Sugerem
ainda que a escola é lugar de pessoas felizes e essa alegria está no fato de pertencerem à
escola Beija-flor de Nilópolis, lugar de “sorriso alegre”. O conjunto desses elementos
formalizam uma declaração de amor à escola, e seu tom emotivo-volitivo desperta o
engajamento da comunidade pela agremiação.
Vimos, com Moraes (2015), que uma característica comum do gênero hino é sua
tendência a ser um discurso monológico, aquele que, segundo Bakhtin, tenta
homogeneizar as vozes. Esse tipo de discurso é dogmático “já que ele quer fazer com que
114
se ouça nele apenas uma voz” (AMORIM, 2001, p.11). As escolhas estilísticas,
associadas à entoação própria do gênero, estão orientadas para surtir esse tipo de efeito.
A escola de samba Beija-flor de Nilópolis expressa, com frequência, o “patriotismo” em
termos de um amor exacerbado, quase numa devoção (“Razão do meu cantar feliz/Beija-
flor minha escola/ Minha vida, meu amor”), bem ao estilo do ufanismo presente nas letras
dos hinos nacionais.
Diferentemente da Portela e da Mangueira, a escola de samba Beija-flor de
Nilópolis, por ser uma das escolas mais modernas, não usa como estratégia discursiva o
seu “passado de glórias”; investe muito mais em uma estratégia de passionalização.
Constrói toda uma temática de amor, de devoção, de vivência em um ambiente de
felicidade a fim de despertar o emotivo-volitivo e uma atitude responsiva da comunidade,
com o intuito de alcançar bons resultados na avenida. Afinal, é a dedicação e o trabalho
da comunidade que contribui para que o desfile satisfaça as expectativas.
Apesar de não figurar entre as escolas de samba mais antigas do Rio de Janeiro, a
Beija-flor de Nilópolis teve um papel importante na transformação dos desfiles de modo
geral. Como vimos (na segunda seção deste estudo), essa agremiação trouxe exuberância
e modernidade para a passarela. “Em termos gerais, essas inovações no carnaval carioca
possibilitaram que agremiações, como Salgueiro, Beija-Flor, reconfigurassem a então
hegemonia exercida pela Portela, Mangueira, Império Serrano, no universo das escolas
de samba cariocas” (ERICEIRA, 2009. p. 84).
5.1.3.2 Samba-exaltação Eu sou de Nilópolis
O próximo samba-exaltação registrado como hino oficial da Beija-flor de
Nilópolis chama-se “Eu sou de Nilópolis”, escrito também pelo compositor Neguinho da
Beija-flor, ano de divulgação desconhecido.
Eu sou de Nilópolis
Compositor: Neguinho da Beija-flor
Ano: Desconhecido
Vem um e diz que é da mangueira
Outro diz que é do Estácio de Sá
Finalmente todos querem
Exaltar o seu lugar
Eu sou de Nilópolis
Terra que tem gente bamba
E tem macumba e tem samba
115
Nilópolis terra da magia.
Quem é Nilópolis é a mesma coisa
Que ser da Bahia
Em Nilópolis tem sol, jogo bom
Que é futebol, terra de gente de raça
Temos parques e cinemas, negras,
loiras
E morenas desfilando em nossas
praças.
E além de tudo isso tem nego bom no
feitiço
E no samba é professor
É de lá a escola de samba Beija-flor
Nesse samba-exaltação, o próprio-enunciado título “Eu sou de Nilópolis” já
estabele uma relação de alteridade entre o bairro e a escola de samba. Nesse sentido, usa
como estratégia discursiva a vinculação ao bairro onde a escola de samba está localizada.
Essa estratégia de marcação geográfica é muito comum em hinos pátrios que visam criar
uma ideia de pertencimento a partir da remissão particular ao “território pátrio”,
estabelecendo, assim, uma origem comum a todos. De acordo com Berg (2014), a
geografia foi também simbolicamente importante na construção da identidade nacional,
servindo para todo o imaginário desses espaços.
Nos versos “Quem é de Nilópolis é a mesma coisa que ser da Bahia” / “E tem
macumba e tem samba”, registramos aspectos que valorizam a origem afro-brasileira,
tratando da diversidade e da origem do próprio samba, referências não encontradas nos
outros sambas analisados.
E mais uma vez, atesta e valoriza a diversidade que se faz presente em seu espaço
quando descreve a cidade de Nilópolis como “[...] terra de gente de raça”/ “temos
parques e cinemas, negras, loiras”/ “E morenas desfilando em nossas praças”.
5.1.3.3 Samba-exaltação A soberana
O último samba-exaltação da Beija-flor foi divulgado em 2014, novamente pelo
compositor Neguinho da Beija-Flor. De acordo com o sambista, esse samba-exaltação
seria uma continuação do primeiro, “Deusa da Passarela”.
A soberana
Compositores: Neguinho da Beija-flor e Samir Trintade
Ano: 2014
Eu tô numa boa
De bem com a vida e até sorrindo a toa
Porque a minha escola é...
116
Felicidade, garra, e samba no pé
Ela é de fato da avenida Soberana
Da bateria que tem harmonia e gana
Quando ela chega o mundo grita lá vem ela (OBÁ)
A Deusa da passarela
Maravilhosa é mesmo tudo para mim
E é isso que eu canto assim
Brilhou na tela o meu grande amor
Beija-flor
Com a comunidade meu canto ecoou
A campeã chegou!
Quando esse terceiro samba foi escrito, a Beija-flor já vinha acumulando títulos,
quase que numa sequência desde 2003. Talvez, por esse motivo, a escola faça uso de
expressões como “Eu tô de boa/ De bem com a vida e até sorrindo a toa” e “A campeã
voltou”, com a pretensão de diferenciar-se das outras agremiações e colocar-se superior.
Ao que parece, após alcançar as outras escolas e colocar-se entre as que têm o maior
número de títulos, a Beija-flor de Nilópolis passa a incluir outro tipo de discurso em seus
sambas-exaltação, o de “campeã”.
E também nesse samba, novamente a Beija-flor cria uma ideia de lugar de
“Felicidade” e de gente “sorrindo a toa”. Ela visa ser conhecida como lugar de gente
com “garra e samba no pé”, com uma “bateria que tem harmonia e gana”.
Nesse samba, a escola recorre ainda ao mesmo discurso persuasivo de amor e
devoção pela escola, presente em suas outras composições, a exemplo dos seguintes
versos: “Maravilhosa é mesmo tudo para mim” e “Brilhou na tela o meu grande amor/
Beija-flor”.
No dicionário de símbolos, o beija-flor que carrega o nome da escola e é a todo
tempo evocado na letra de seus sambas-exaltação, representa o mensageiro dos deuses,
como também é significado de alegria, de beleza, de harmonia, de energia, de delicadeza
e de renascimento.
Nesse terceiro samba da Beija-flor de Nilópolis, registramos traços típicos da
religião afro brasileira com o uso da palavra “OBÁ”. No candomblé, “Obá” é um orixá
guerreira feminina. Já na umbanda, essa expressão significa uma saudação aos Orixás.
Ao comparar esses três sambas-exaltação da Beija-Flor de Nilópolis, verificamos
algumas recorrências em seus enunciados: relação de alteridade entre a escola e o
117
município onde se encontra sediada; uso de palavras que evocam os sentimentos de amor
e devoção à escola, o verdadeiro “refúgio da felicidade”.
5.2 DIALOGANDO COM AS IDENTIDADES
Ao longo da análise dos sambas-exaltação das três escolas com maior número de
títulos do Rio de Janeiro, percebemos que, em seus enunciados, a construção de suas
identidades assemelha-se ao processo de construção identitária de uma nação, isto é, suas
identidades são construídas por meio da afirmação e da valorização de sistemas
simbólicos que marcam a diferença, criando uma ideia de pertencimento.
Vimos, na seção teórica, que a identidade é uma relação de poder, propensa a ser
manipulada por meio de sistemas simbólicos que podem ser facilmente reconhecidos
como reais. Essas instituições manipulam a posição-sujeito que se deve ocupar
socialmente. O discurso nacionalista faz uso das mesmas estratégias. Visa construir uma
unidade dentro da diversidade e instituir valores, modos de pensar e modelos capazes de
influenciar comportamentos, caracterizando-se como um discurso autoritário e altamente
persuasivo (BAKHTIN, 2015).
Assim, é possível que as escolas de samba construam o que Anderson (1989)
denominou de comunidade imaginada. O autor defende a ideia de que as comunidades
nacionais constroem uma série de sistemas de representação cujos significados são
facilmente identificados pelos seus membros. A ideia de nação não é algo concreto ou
definido a partir da extensão territorial; ela só existe por meio de um sentimento de
pertencimento e de uma imaginação compartilhada por todos. Dessa forma, para o autor,
as comunidades nacionais são politicamente imaginadas “porque até os membros da mais
pequena nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria
dos outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe
a imagem da sua comunhão” (ANDERSON, 1989, p. 14).
No caso específico das escolas de samba, elas se fazem representar por meio da
seleção de sistemas simbólicos não arbitrários, isto é, aqueles que são facilmente
percebidos pela comunidade como reais. É como um jogo que precisa levar em conta o
sentido que deve ser construído com credibilidade. Daí a seleção daquilo que se deseja
preservar e ressaltar. Esse sistema simbólico de representação é o mecanismo de “poder
para gerar um sentimento de identidade e lealdade” da comunidade pela escola de samba
118
(HALL, 2015, p. 106). A identidade é, portanto, “um discurso – um modo de construir
sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de
nós mesmos”. São sistemas de signos “com os quais podemos nos identificar” (HALL,
2015, p. 50-51).
Assim, podemos dizer que as escolas de samba constroem uma espécie de
nação/comunidade imaginada, pois, tal como uma nação, elas também marcam suas
diferenças por meio de símbolos como bandeira, brasão, cores e hino. De acordo com
Berg (2014, p. 11),
[...] os símbolos nacionais possuem uma amplitude de formas e
representações: bandeira, hinos, canções, marchas, brasões, timbres,
selos, cores, a flora e fauna, monumentos, santuários, moeda, língua,
escrita/alfabeto, personificação da nação etc.
Para Fernandes (2001), as escolas de samba são o que Hobsbawm (1984)
denominou como tradição inventada, ou seja, inventam tradições e uma continuidade em
relação ao passado. Uma das características das “tradições inventadas” é assegurar
elementos marcantes de sua identidade, e todo esse processo de implantação ocorre com
velocidade. Desde seu surgimento, as escolas de samba se apoiaram num discurso de
tradição, muito comum nesse tipo de manifestação cultural.
No curso desse processo de análise (e já respondendo a primeira questão desta
pesquisa: como as escolas de samba se constroem identitariamente a partir de seus
sambas-exaltação?), constatamos que a construção identitária das escolas de samba
assemelha-se àquela dos hinos nacionais. Cada uma delas afirma sua identidade por meio
de sistemas representacionais que marcam a necessária diferença em relação às demais
concorrentes: a valorização de um autêntico passado de glórias; a bandeira e as cores da
escola; as tradições e os valores; o bairro/morro onde a escola está localizada; um
discurso de amor e devoção à “terra amada” que a comunidade deve desenvolver pela
escola; a sensação de felicidade; a identidade feminina; a identidade religiosa; e o lugar
de samba que ela representa.
E quando se questiona (como o fazemos em nossa segunda questão de pesquisa)
que relações dialógicas essas identidades estabelecem entre si, respondemos que a Portela
e a Mangueira afirmam suas identidades a partir da reivindicação de um passado “feito
de glória”, de “suas raízes”. Nesses casos, a antiguidade é uma vantagem em relação às
119
outras agremiações. Mesmo indiretamente, a Portela e a Mangueira estabeleceram essa
distinção com as outras agremiações; mas, em nenhum momento, fizeram referência ao
nome de outras escolas de samba rivais em seus enunciados. Quando tratamos (na seção
teórica) sobre identidade cultural, vimos que estabelecer a distinção é uma estratégia
comum, na construção identitária, para separar grupos em lados oposto, para dizer quem
pertence ou quem não pertence a uma dada comunidade, nação ou grupo, a partir da
diferença. Reivindicar um passado é uma forma de obter vantagens em relação aos
adversários, para colocar-se superior aos outros e estabelecer a singularidade.
No caso da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, talvez por não figurar entre
as mais antigas do Rio de Janeiro, as estratégias são outras. A escola investe,
principalmente, no discurso de passionalização e de vinculação ao município de
Nilópolis, numa relação de alteridade.
Sua identidade é construída, em primeiro lugar, pelo uso de um discurso de
exaltação, que a coloca em lugar de destaque, enaltecendo o seu grande esplendor; em
segundo lugar, pelo uso de expressões capazes de ativar o emotivo-volitivo da
comunidade, que evocam o devotamento e o amor pela escola, provocando a sensação
de felicidade por pertencerem àquela comunidade, por se situarem naquele bairro. Esse
tipo de discurso é monológico e lança mão de estratégias que mexem com a emoção e
“vendem” uma imagem que não corresponde à real. É dessa forma que as escolas de
samba dizem qual posição-de-sujeito os participantes devem ocupar e os valores que
devem cultivar.
A Mangueira e a Beija-Flor também se fazem representar identitariamente por
meio da relação de alteridade com a comunidade onde estão localizadas. No samba-
exaltação da Mangueira, ora se faz referência ao morro, ora à escola de samba. Nos três
sambas da Beija-flor de Nilópolis, a marcação geográfica fez-se presente. Parece que a
agremiação faz mesmo questão de estabelecer essa vinculação com o município de
Nilópolis. Aliás, a ligação a uma comunidade também é uma forma de dispor sujeitos em
lados opostos, em uma relação de oposição (WOODWARD, 2014), ou seja, quem
pertence à comunidade da Mangueira e quem pertence à cidade de Nilópolis. Essa
marcação espacial também é uma estratégia muito comum nos hinos pátrios, justamente
para criar uma sensação de pertencimento e dizer quem faz parte e quem não faz parte
daquela comunidade/nação.
120
No samba-exaltação da Portela, a vinculação ao bairro de Cascadura não é
marcada como nos sambas da Mangueira e da Beija-flor. Talvez, como afirmou Pavão
(2005), por ser um grande bairro da zona norte e bastante heterogêneo, a relação com a
escola de samba não seja a mesma que ocorre com as outras agremiações.
Outras relações dialógicas na construção identitária das escolas se estabelecem
entre os sambas-exaltação da Portela e da Mangueira, que diferente do da Beija-flor,
afirmam sua identidade por meio de marcação simbólica e exaltação da bandeira e das
cores (de sua bandeira), o que igualmente acontece nos hinos nacionais. Essa marcação
simbólica contribui para criar uma ideia de nação e de pertencimento a esses espaços.
Assim, para essas escolas tornarem possível a identificação com a agremiação,
descrevem a comunidade com características que possibilitam a ideia de pertencimento.
Há, nos sambas-exaltação, uma escolha de palavras que estão diretamente ligadas à esfera
em que foram produzidas, ou seja, a palavra só faz sentido dentro dessa comunidade
discursiva. Portanto, não podem ser isoladas da situação de produção.
Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da
palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em
relação à coletividade. A palavra é lançada entre mim e os outros. Se
ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o
meu interlocutor (VOLOCHÍNOV, 2013, p.115).
Ademais, os discursos são construídos visando a um projeto de dizer que é levado
para o todo da enunciação. As palavras não são escolhidas aleatoriamente; fazem parte
de um esquema discursivo. Quando a palavra adquire um sentido concreto, quando se
refere a determinada realidade e às condições reais de comunicação, estamos diante de
um enunciado concreto. Por isso, quando analisamos uma palavra na perspectiva do
Círculo de Bakhtin, ela não é considerada “enquanto palavra da língua” (BAKHTIN,
2015, p. 290), mas como palavra inserida em uma determinada situação real de
comunicação e sua “ativa posição responsiva” (BAKHTIN, 2015, p. 290) em relação a
essa realidade concreta. Assim, “toda palavra pronunciada [...] é a expressão e o produto
da interação social” (VOLOCHÍNOV, 1976, p. 110).
Nesse processo, é preciso igualmente levar em conta a entoação expressiva que
um enunciado pleno de significação ganha. Toda palavra como enunciado concreto ganha
“um tom emocional” (VOLOCHÍNOV, 1976, p. 110). No caso dos sambas-exaltação, a
121
entoação tem grande efeito sobre os participantes; faz com que se sintam mais envolvidos
e pertencentes à agremiação.
Vale lembrar que o sujeito vivencia trajetórias sócio-históricas distintas, reflete o
conjunto de relações do meio social no qual se insere. Portanto, não possui os mesmos
valores axiológicos e o mesmo horizonte de expectativa porque pertence à mesma
comunidade. Cada um vivencia a experiência de forma singular.
Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de
orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira.
Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social. É
seu caráter semiótico que coloca todos os fenômenos ideológicos sob a
mesma definição geral (BAKHTIN, 2011, p. 33).
Todos esses discursos revelam as especificidades desse campo de comunicação
verbal e revelam que “o signo e a situação social em que se insere estão indissoluvelmente
ligados” (VOLOCHÍNOV, 2014, p. 16).
Como dissemos, todas essas incidências podem ser interpretadas como
representativas do propósito comunicativo almejado pelos sambas exaltação: exaltar a
escola de samba, atribuindo-lhe identidades múltiplas; manter o sentimento de
“pertencimento patriótico” à escola; instituir valores, valorização e afirmação de sua
importância no universo do samba.
122
6 APURAÇÃO FINAL
Nesta dissertação, objetivamos, em primeiro lugar, identificar como as escolas de
samba se constroem identitariamente a partir de seus sambas-exaltação, e, em segundo
lugar, determinar as relações dialógicas entre os discursos estabelecidos pelas escolas nos
enunciados de seus respectivos sambas-exaltação.
No decorrer da análise dos sambas, constatamos que o processo de construção
identitária das escolas é semelhante ao encontrado nas composições dos hinos pátrios, na
medida em que, nos dois casos, se visa reforçar o sentimento de pertencimento e criar
uma unidade na diversidade por meio de sistemas de signos que marcam a diferença, a
exemplo da valorização de um autêntico passado de glórias, da valorização das cores da
bandeira, da valorização da natureza e, em referência particular às escola, do bairro/morro
em que a escola está localizada, do uso de palavras que traduzem sentimento de amor e
de devoção à “terra amada”, da identidade religiosa e de sua caraterização como lugar de
samba.
Como já mencionado, para que exista esse sentimento de pertencimento a uma
dada nação/comunidade, é preciso uma série de símbolos capazes de “tornar possível uma
identificação” (PACHECO, 2004, p. 3-4). Há, para tanto, vários sistemas de signos não
arbitrários que estabelecem a distinção identitária entre os grupos e fazem com que os
indivíduos se sintam pertencentes a uma dada nação/comunidade.
Nesse processo comparativo (samba-exaltação x hino pátrio), verificamos que,
embora o samba-exaltação seja diferente do hino pátrio, registra-se uma aproximação
estilístico-semântico no modo de construção dos enunciados que compõem o gênero.
Todos os elementos que compõem os enunciados despertam o emotivo-volitivo dos
participantes e exigem deles uma atitude responsiva; afinal, toda enunciação está voltada
a um ouvinte e espera dele “sua concordância ou discordância” (VOLOCHÍNOV, 2013,
p. 163). O orador não fala para um público inerte, imóvel, seu ouvinte é sempre um
avaliador. É isso que confere caráter dialógico à linguagem.
Quanto às representações identitárias das escolas de samba analisadas,
percebemos que algumas se diferenciam pela forma como constroem suas identidades. A
Portela e a Mangueira, por exemplo, recorrem ao passado de glórias; já a escola de samba
da Beija-flor, provavelmente por ser mais moderna, recorre a uma estratégia de
123
passionalização; assume o discurso de amor e de devoção pela escola, caracterizado como
um tipo de discurso autoritário e altamente persuasivo (BAKHTIN, 2015).
Todos esses elementos (associados à entoação-expressiva coletiva do hino, como
um ritual comum nos cerimoniais cívicos) contribuem para tocar o emotivo-volitivo do
público participante, sendo de capazes criar toda uma atmosfera de comunhão e de
desenvolver (em uns) / reforçar (em outros) o sentimento de pertencimento.
Os hinos, de modo geral, pátrios e institucionais, têm um papel importante na vida
dos indivíduos, especialmente porque os leva a identificar-se como sujeito de uma nação,
de uma crença religiosa etc. Em qualquer caso, o ritual de entoação dos hinos faz com
que os indivíduos se sintam mais fortes, mais envolvidos, pertencentes a um grupo.
Todos, enfim, reunidos em uma só voz e agindo como um único corpo coletivo,
compartilhando os mesmos valores, numa emoção unânime. Essas canções valem-se de
um conjunto de palavras característico de seu universo e representam um dos símbolos
mais significativos de uma nação, de uma crença religiosa, de uma escola de samba...
Quanto ao gênero samba-exaltação, constatamos que este obedece ao padrão,
tanto no que concerne à sua forma composicional quanto no que diz respeito a seu
conteúdo, e apresenta, como projeto discursivo, a exaltação da escola de samba com vistas
a desenvolver o sentimento de pertencimento da comunidade, explorando os principais
símbolos e valores da agremiação.
O samba-exaltação e as escolas de samba já foram temas privilegiados em vários
estudos acadêmicos; mesmo assim, acreditamos haver marcado a singularidade desta
pesquisa pelo fato de termos procedido a uma análise dos enunciados, pondo em destaque
a sua relação com o contexto de produção e de circulação, sua dialogicidade, seu caráter
valorado e responsivo. E isso o fizemos em sintonia com os ensinamentos de Faraco
(2009), para quem os gêneros não devem ser estudados de forma cristalizada, mas levando
em consideração seu caráter dinâmico e não estático, visto que estão sempre se adaptando
à nova realidade, aos novos contextos e horizontes de expectativas.
De fato, os sambas-exaltação (assim como os hinos nacionais) são canções
importantes para a construção e afirmação de identidades. E porque se propagam pela
melodia, tem-se impressão de que o processo de assimilação dos valores atinge os
participantes de forma mais ampla, mais rápida. É a entoação do samba que toca o
emotivo-volitivo e faz com que os participantes se sintam envolvidos pela mesma esfera.
124
A análise também deixou evidente que não existe neutralidade quando se trata de
discurso, posto que toda linguagem possui um conteúdo ideológico e está intrinsecamente
ligada a uma determinada situação social, mantendo relações dialógicas com outros
enunciados, outros signos. Assim, para interpretar esses enunciados, é preciso levar em
conta todas as características dessa esfera e o atual contexto em que as escolas de samba
se inserem. Por isso mesmo, não os analisamos assumindo um pensamento essencialista,
como ponderamos na discussão acerca das construções identitárias.
Muitas vezes, as ideologias não são evidentes, como é o caso do samba-exaltação.
Volóchinov (2017) alerta-nos para o fato de que toda palavra dita, por mais neutra que
possa parecer, veicula uma ideologia, porta valores e modos de pensar. Ademais, cada
esfera de atividade humana constrói seu sistema ideológico, que possui função específica;
não pode ser separado dessa realidade. Esses signos são feitos especificamente para essas
esferas e não são aplicáveis fora dela.
Com todas as transformações causadas pela globalização, as escolas de samba são
prova dessa busca de afirmação e reafirmação, da busca da distinção, entre “tradição e
tradução”, ou seja, entre o celebrar as tradições e o renovar-se. Não é, pois, sem razão
que Geraldi (2009, p. 1) assevera: “O tempo da velocidade é o tempo da exigência de um
novo contínuo, sem transcurso temporal: tudo é substituído e deve ser substituído com
pressa”. Assim, para sobreviverem às novas exigências num mundo pós-moderno, as
escolas de samba precisam aceitar o novo e, ao mesmo tempo, celebrar aquilo que as
singulariza, que as diferencia, como é o caso da valorização de suas tradições, de suas
raízes e de seu passado. Nesse sentido, constroem suas identidades como uma verdade
essencialista, representações que muitas vezes não condizem com o real, pois
desconsideram todas as mudanças, revelando “que, se a identidade é fruto de uma
construção, ela também passa por processos de manipulação” (SILVA, 2010, p. 32). Essa
seria uma estratégia de sobrevida num mundo globalizado no qual é preciso “inserir-se
como distinto para se fazer notado” (GERALDI, 2009, p. 18).
Numa última palavra, com a crescente rivalidade entre as agremiações para
manterem-se no grupo das campeãs, e dada a aceleração do tempo e as exigências do
mundo pós-moderno, as escolas de samba precisam sempre achar o seu diferencial, a sua
singularidade, o que, em deriva, render-lhes-á mais simpatizantes, quiçá mais
investidores, e, principalmente um maior envolvimento da comunidade. Aliás, num dizer
125
mais definitivo, as escolas de samba precisam sempre se afirmar como importante
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126
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