UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES.
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
ERITIA COSTA DE ALMEIDA
O QUE É A RETÓRICA NO FEDRO DE PLATÃO
NATAL 2015
ERITIA COSTA DE ALMEIDA
O QUE É A RETÓRICA NO FEDRO DE PLATÃO
Monografia apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, como parte dos requisitos para obtenção do grau de bacharel em Filosofia. ORIENTADOR: Prof. . Dr. Markus Figueira da Silva.
NATAL 2015
ERITIA COSTA DE ALMEIDA
O QUE É A RETÓRICA NO FEDRO DE PLATÃO
Monografia apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, como parte dos requisitos para obtenção do grau de bacharel em Filosofia.
Aprovado em:____/____/_____
Filosofia Antiga.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof. Dr. Markus Figueira da Silva
Orientador
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
___________________________________________
Prof. Dra. Fernanda Machado Bulhões
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
___________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Eduardo Lima da Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
DEDICATÓRIA
Dedico esse trabalho a todos que de alguma forma cruzaram comigo neste
caminho filosófico, seja no início do curso ou no final. A todos que conheci que
desistiram no percurso, e mesmo aos que não cheguei nem a manter um contato
maior, e por fim; a mim mesmo por não ter desistido.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que colaboraram direta ou indiretamente para esta
conquista, mas em especial: a Deus; ao meu orientador Markus Figueira – pela
paciência e compreensão; a toda banca avaliativa nas pessoas do professor e
coordenador Sérgio Eduardo e a professora Fernanda Bulhões; a minha amiga
fiel Ida Carmen; a minha família – Maria Dalva, minha mãe, meu pai Elízio, meu
bem Paulo Cesar; e por fim, a todos que conseguiram me ensinar algo deixando
lembranças boas ou ruins.
“Palavras bonitas, nunca foram de meu feitio, acho que, bem certo, porque nunca as encontrei construindo escolas, levantando muros, ou matando a fome; por isso não acredito em verbos bem colocados e nessa sintaxe elaborada e regrada. Meramente nunca me deparei com uma palavra bonita que acordasse cedo pra trabalhar ou molhasse a terra árida do sertão. Todavia uma coisa é certa, essa palavra muitas vezes acaricia a alma cansada de esperar e possui a tênue maledicência de arrebatar minha familiar solidão.”
Erítia
RESUMO
O presente trabalho trata de analisar o tema principal do diálogo Fedro, de Platão,
que é a retórica. Por sua vez, trata da noção de persuasão, da utilização dos
sentimentos como mecanismo de sedução do ouvinte, a busca da verdade
através da dialética e da técnica da hermenêutica. Assim, demostra que a retórica
não possui o fim último de apenas entrelaçar palavras bonitas em público, mas
suas peculiaridades que vão desde o bem falar, no seu papel comunicativo, até
ser ferramenta fundamental na sociedade seja atual ou na Grécia antiga.
Apresenta-se inicialmente uma visão histórica sobre o caminho da retórica,
citando filósofos gregos e suas visões sobre este tema; posteriormente, a melhor
construção do bom entendimento e convencimento do ouvinte, a passagem pela
“erística” até a dialética, e as necessidades da retórica como técnica jurídica para
melhor exposição na defesa e construção do Direito.
Palavras-chave: Retórica. Hermenêutica. Dialética. Platão. Fedro.
ABSTRACT
This paper deals with analyzing dialogue "Phaedrus", Plato, on its main theme is the rhetoric. In turn, exposes concepts, persuasive vision, the use of feelings as a listener of seduction mechanism, the search for truth through the dialectic and the legal technique of hermeneutics. Thus showing that the rhetoric does not have the ultimate end only weave beautiful words in public, but their peculiarities, ranging from good words, their communicative role and fundamental tool in society is current or in ancient Greece. Based on this reasoning, presents initially a historical insight into the way of rhetoric, quoting Greek philosophers and their views on this subject; subsequently, the best building of good understanding and conviction of the listener, passing by "eristic" to the dialectic, and rhetoric needs as a legal technique for better exposure in the defense and construction of the right.
Keywords: Rhetorically. Hermeneutic. Dialectically. Platão. Fedro.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................10
2 NOÇÃO HISTÓRICA GERAL DE RETÓRICA NA GRÉCIA............................13
2.1 Surgimento da retórica................................................................................13
2.2 Os sofistas..................................................................................................14
2.2.1 Górgias ...............................................................................................15
2.2.2 Protágoras...........................................................................................16
2.2.1 Isócrates .............................................................................................18
2.2.2 Platão...................................................................................................18
3 CAPACIDADE DE CONVENCIMENTO (PERSUASÃO)................................ 22
4 A SEDUÇÃO SENTIMENTAL .........................................................................28
5 DIALÉTICA.......................................................................................................36
4 ORATÓRIA JURÍDICA....................................................................................42
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................48
REFERENCIAS....................................................................................................51
10
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho possui por objetivo analisar a visão platônica sobre a
arte de falar em público, observando a persuasão, sedução e desenvolvimento,
seja no campo da retórica, da emoção, da dialética e/ou da hermenêutica,
partindo das perspectivas apresentadas por Platão através do diálogo Fedro.
O Fedro é a obra que apresenta os principais temas filosóficos de Platão,
nele encontram-se discursões sobre o amor, a amizade, a retórica, a dialética, a
justiça, a felicidade, a confiança, o mundo das ideias, verdade e mentira; toda
esta coletânea de temas é apresentada através da análise sinuosa sobre a forma
de estudo da retórica na Grécia de seu tempo.
A retórica, por sua vez, é a arte da boa elocução, da argumentação
convincente e da concatenação de ideias de forma a obter o convencimento de
uma plateia, podendo o orador utilizar de argumentações contrárias, de
ferramentas emocionais, variantes sonoros na entonação da voz, entre outros
mecanismos. Todavia, um elemento peculiar na retórica é o estudo do espectador
pela observação de seu grau de conhecimento e de suas realidades individuais,
para, assim, melhor aproximar este de uma exposição compreensível.
A forma como Platão apresenta a retórica no Fedro é diferente do modo
negativo como havia explorado em outros diálogos como Górgias, o qual além de
compará-la de forma pejorativa com a arte culinária1, Górgias -, tido como um
grande orador- conduz sua discursão com Sócrates para diferenciar a capacidade
de convencimento dos estudos científicos em comparação a simples exposição
da opinião não fundamentada experimentalmente. Conclui que a retórica dos
tribunais e da política não apresenta a verdade, diferentemente do conhecimento
cujas bases estão na sabedoria que é o estudo da filosofia. No final do diálogo
resta a questão sobre a justiça e como ensinar a distinção sobre o que é justo ou
não.
Todavia, no diálogo Fedro, Platão partirá da retórica vista como a arte do
justo, na qual o bom orador é abençoado2 pela beleza e nobreza das palavras,
tendo a capacidade de demostrando o bem que existe nesta arte; da mesma
1 MIGALE. Uma Recordação da retórica no ‘Fedro’ de Platão ou a força de resposta do discurso jus político inspirado na ideia de justiça, 2008, p. 11 2 PLATÃO. Fedro,
11
forma, que busca a verdade real e o conhecimento como forma de não apenas
expressar a justiça, mas conhecer a alma humana e ser capaz de um
convencimento através da realidade ideal das coisas.
Utilizando o método interpretativo e analítico, este trabalho tratará de
esmiuçar a retórica, partindo de uma apresentação geral sobre vários filósofos
que a exploraram, até a visão platônica da importância pela busca da verdade
através da alma.
O tema sobre a retórica, aqui remetido, se faz útil à aplicação social na
atualidade, uma vez que vivemos em meio a uma crise no campo jurídico,
educativo, político e pessoal, diante das diversas opiniões e palavras
apresentadas como verdade. A população acaba por ser conduzida a caminhos
ditados por indivíduos retoricamente despreparados e não detentores do que
Platão considerava como sabedoria primordial para governar, tornando mais atual
a necessidade de uma visão e desenvolvimento do campo retórico filosófico.
Em nossos dias, muitos oradores utilizam os palanques, os júris, as
escolas e as praças públicas, e vários meios de comunicação, para conseguir
clamores e apoio popular para atividades ilegais e fora dos padrões morais,
influenciando uma aparente e efêmera liberdade de escolha. Como exemplo
mudanças políticas abruptas, elevação da maioridade penal quando é necessária
uma reforma penitenciária, ou a aprovação na influência consumerista de uma
sociedade que não escolhe mais o que tem ou usa, mas espera por ditames de
moda e atualidade.
Sendo assim, o que deve ser realmente tomado como certo ou errado?
De que forma sabemos que os desejos humanos são realmente influenciados ou
não? E o bom orador, deve se deter ou não com o papel da verdade e sua
formação nas opiniões populares? E a liberdade de expressão, qual seria seu
lugar na retórica? A retórica seria uma arte para expressar ideias ou um mero
palco teatral?
Diante deste cenário é construído um sistema político e social frágil, cujos
alicerces estão apenas na ausência do real conhecimento da verdade, ou das
virtudes necessárias àquele que possui o poder das palavras, e que Platão clama
no final do texto em sua prece aos deuses3. Assim, o bom orador acaba se
3 PLATÃO. Fedro, 279 c
12
escondendo no papel de “lobo ou cordeiro”, à medida que continua formando
pensamentos, seja nos dias atuais ou nos tempos gregos, nos quais a verdade
das coisas continua uma incógnita sem resposta e um ensaio retórico mal
explicado.
13
2 NOÇÃO HISTÓRICA GERAL DE RETÓRICA ENTRE OS SOFISTAS
O homem inicia sua história no instante em que passa a modificar o
ambiente em que vive. Todavia, pode-se dizer que este só conseguiu efetivar
seus registros ao longo do tempo após o desenvolvimento e surgimento da
linguagem. Através das palavras o indivíduo passou a se fazer entender,
gerenciar pensamentos, expressar-se, e convencer seus semelhantes, com essa
possibilidade de influenciar surge o desejo de poder e os primeiros resquícios do
que seria chamado, posteriormente, de persuasão retórica.
Como ocorreu na música, na filosofia e nas artes, a técnica de falar em
público surgiu entre os gregos; entretanto sempre se encontrou concatenada à
capacidade de verbalização e manipulação da linguagem. Os gregos, por sua
vez, elevaram a retórica da capacidade útil a uma reflexão e compreensão, e por
assim dizer, a um nível indiscutivelmente científico. Para este povo restou a
capacidade de ensinar e formar um exímio orador, formação que é conduzida
desde a postura física do cidadão perante uma plateia, o convencimento
argumentativo e o raciocínio rápido nas respostas, até à escolha estética das
palavras utilizadas.
2.1 Surgimento da retórica
A retórica já nasce vinculada a necessidade jurídica de uma época cheia
de conflitos, desde o surgimento da pólis grega. Após a queda do tirano Trasíbulo
em Siracusa na Magna Grécia, tornou-se necessária a restituição das terras
confiscadas pela tirania por volta de 456 a.C.4, e a retórica era um meio de
exposição para cada um defender sua causa.
Oradores como Tísias e Córax, supriam uma necessidade na defesa das
vítimas da tirania, que logo daria lugar a atividade do escrivão público - os
chamados logógrafos -, que adotaram as técnicas da retórica para exercer um
papel de defesa, garantindo convencimento em qualquer disputa de posse, seja
qual fosse o objeto da ação. Nesta atividade, já não havia preocupação com a
4REBOUL. 2004. p. 2.
14
exposição da verdade, mas da verossimilhança, conseguindo subtrair dos
argumentos mais fracos a vitória deseja.
Com o crescimento de tais práticas se desenvolve o córax 5, que consistia
em argumentar sempre na busca de um convencimento em favor de quem o
elucidava. Buscava então, demonstrado como verossímil de mais, ou óbvio de
mais o autor ser acusado do fato culposo, sendo considerado inocente por
notoriedade de uma culpa que não estaria tão explicita, caso realmente tivesse
praticado. Desta forma, não se atribuiria um crime a um indivíduo fraco o
suficiente para contribuir com tal delito, ou forte demais que o tornaria claramente
culpado, gerando duas direções: elevar o autor ou o réu a inocência ou a certeza
da condenação, dependendo do campo argumentativo apresentado.
Nestes termos, cita Reboul:
O mais maçante é que o córax pode ser voltado contra seu autor, afirmando que ele cometeu o crime por achar que pareceria suspeito demais para que dele suspeitassem, e que chegou a acumular propositadamente acusações contra si mesmo, para depois as refutar com facilidade (REBOUL, 2004, p.4).
Junto ao córax seria explorado o discurso jurídico, que seriam
argumentos decorados e recitados em júri na certeza de convencimento e ganho
de causa. Daí a retórica se encontrar no mero papel de convencimento tanto a
favor da verdade quanto da mentira.
Com o fortalecimento da democracia em Atenas os cidadãos passaram a
participar e ter voz nas assembleias6, tendo de votar e muitas vezes se expressar
em defesa se si mesmo ou de sua opinião, desenvolvendo a função política. Para
tal, os atenienses necessitavam de professores hábeis para ensinar a ciência do
raciocínio rápido e do convencimento da plateia. Tal papel seria dos sofistas7.
2.2 Os sofistas
Mesmo não construindo uma escola no sentido literal do termo, os
sofistas mantinham certa afinidade na forma de pensar e nos métodos propostos 5 “A técnica do corax leva o nome de seu inventor Córax” - coletânea de argumentos que sempre tenderia a justificar o fato ocorrido. 6 “Em Atenas as assembleias possuíam função judiciária, executiva e legislativa”. Mas só os cidadãos estavam habilitados para participar dessas reuniões públicas. Mulheres, crianças e escravos estavam excluídos deste direito por não serem considerados cidadãos. 7 Rostovtzeff, História da Grécia.1977, p.190.
15
para ensinar a arte da persuasão e da argumentação, além da exposição sobre o
justo e injusto8. Estes indivíduos foram os primeiros representantes da retórica e
porque ensinavam o bem falar, eram disputados entre os jovens bens nascidos de
sua época.
Com sua característica errante, os sofistas, iam de cidade em cidade,
espalhando seus ensinamentos, criando inúmeros seguidores, e construindo
pensamentos que serviriam de matéria crítica a filósofos como Sócrates, em
razão de lhes atribuir visões vazias, meramente cheias de palavras sem raciocínio
ou construção interpretativa e lógica, porém; enquanto isso, altas quantias eram
pagas pelos serviços destes professores que apresentavam ensinamentos além
da época passando de atividades físicas e cálculos.
2.2.1 Górgias
Entre os sofistas temos a figura de Górgias, nascido em 485 a.C.9. Era
Siciliano e desenvolveu uma retórica associada à visão estética, literária e
política. Górgias era discípulo de Empédocles e, em 427 a.C. , foi para Atenas,
conduzindo uma inovação diante de uma Grécia que só encontrava literatura na
poesia. Por sua vez, apresenta o discurso epidíctico10, rico de figuras de
linguagem, rimas, paronomásias, metáforas, perífrases e antíteses.
Um dos discursos mais magníficos de Górgias é o “Elogio a Helena”:
Se o olhar de Helena originou em sua alma desejo e paixão amorosa pelo corpo de Paris, que há nisso de assombro? Se o amor é um deus, como poderia resistir e vencer o divino poder dos deuses quem é mais fraco que ele? Se se trata de uma doença humana e de um erro da mente, não se deve censurá-la como se tivesse culpa, mas, sim, considera-la como pessoa de má sorte. E, com efeito, ela se foi para Tróia, como foi por causa dos enganos que padeceu em sua alma e não por voluntária decisão de seu espírito, devido à inexorabilidade do amor, por intrigas de sua arte. (GÓRGIAS- Elogio a Helena. 345 d).
Górgias em seu discurso, Elogio a Helena caberia elencar os fatos que
levou Helena a lançar a Grécia numa guerra de dez anos, em razão de sua
traição contra o rei Menelau, resolvendo abandoná-lo para acompanhar o príncipe
8 Platão Górgias. 1989, p. 62. 9 REBOUL. 2004, p.15. 10 Discurso público demonstrativo e ostensivo.
16
Páris. Inicia seu enredo apresentando a justificativa de um suposto rapto,
posteriormente de um decreto dos deuses ou um acaso do destino, podendo ser
também obrigada à força; e por fim, o convencimento por meio das palavras de
Páris, buscando assim utilizando tudo que fosse plausível para levar Helena a tal
ato. Em toda a alternativa Helena não estaria livre na sua escolha, mas Górgias
justificaria tal ação pelo poder sedutor da argumentação do jovem sedutor. Assim:
O discurso é um tirano poderosíssimo; esse elemento material de pequenez extrema e totalmente invisível alçam à plenitude as obras divinas: porque a palavra pode pôr fim ao medo, dissipar a tristeza, estimular a alegria, aumentar a piedade (GÓRGIAS apud REBOUL, 1925, p. 5).
Górgias sugere a inocência de Helena em seu discurso acima, não
apenas pelo fato de considerar que ela não tenha partido por livre vontade, mas
por apresentar o ato involuntário como algo não culpável, o que nunca fora
utilizado como defesa. Assim, esse discurso elevam-se os pontos fortes de um
discurso sofista- o jogo nas palavras, e fariam de Górgias um professor que
conduziria seu ensino pelas cidades, suprindo a necessidade de um novo tipo de
ensino, que partia de uma visão nova e intelectual, não religiosa e agora
profissional.
Todavia, Górgias é conhecido por sua linguagem difícil e já teria
rascunhado passos que seriam exemplos para Protágoras, Demóstenes,
Tucídides e Platão. Com os trabalhos de Górgias a retórica era vista como a arte
do belo, porém carente da compreensão de seus ouvintes.
2.2.2 Protágoras
Protágoras é outro sofista que através de seus discursos exalta o
interesse pelos substantivos, pelos tempos verbais e pela psicologia dos
personagens de Homero. Diante de tais preocupações surgiu o que seria
chamado de gramática e também os primeiros passos da erística11, tendo em
vista sua afirmação de que todo argumento poder ser refutado.
11 Combate dialogal, segundo o qual se vencia pela melhor argumentação, não se buscava encontrar a verdade.
17
A erística12 traria o que de mais problemático poderia vir no ensino dos
sofistas, já que sua preocupação estava apenas na refutação das ideias,
independente da ligação no sentido das frases, raciocínio ou questionamento que
o diálogo pudesse gerar nos ouvintes. As discussões nos diálogos eram a
principal mola mestra da arte erística e faria parte da história dos piores sofismas,
exemplo:
O rato (mys) é um animal nobre, pois é dele que provêm os mistérios [...] pode-se ser branco não branco ao mesmo tempo, porquanto o etílope é negro (na pele) e branco nos dentes. (NAVARRE apud REBOUL, 1925, p.65)
A citação acima demostram a falta de importância com a verdade no
conteúdo exposto, no entanto, algo de intrigante havia nos sofismas, tendo em
vista o grande esforço que pensadores como Platão13 e Aristóteles14 teriam se
ocupado em combater e rebater tais formas de pensar.
Protágoras era um filósofo que defendia uma verdade cujas bases
estavam na visão e no interesse do locutor, seja em cada cidade que exercia o
ensino retórico ou nos seus interesses almejados. Era uma verdade tão relativa
quanto à retórica que defendida, a qual se baseava no ambiente, podendo
legitimar a violência ou louvar a tolerância, criando uma total um relativismo15.
Só se conhece Protágoras através dos escritos e da visão de Platão, que
talvez pudesse ser considerado um de seus maiores inimigos, já que o
considerava perversor dos jovens. Em algumas obras de Platão é apresentado
um Protágoras cativante e respeitável, resultando uma lacuna em aberto no
entendimento sobre a personalidade e o trabalho deste filósofo. Sabe-se apenas
que colaborou com a gramática, desenvolveu uma eloquência mais rica, uma
sistematização do ensino e um discurso persuasivo.
A ligação entre a retórica e os sofistas estaria marcada diante da
ausência de uma verdade absoluta no discurso, criando uma mera aparência de
12
Forma argumentativa que, através de belas palavras, busca vencer um diálogo sem mesmo possuir a razão verdadeira do caso. 13 Platão na obra Górgias onde compara a retórica pejorativamente a arte da culinária, e no Fedro, diante da ausência de verdade nos discursos sofistas. 14 Aristóteles na obra “Arte retorica e Arte poética”, diante o sentido histórico e empírico da retórica. 15
Comentários a REBOUL, 1925, p.9
18
lógica ornamentada de estilos linguísticos, porém instigante e desafiadora do
poder e do duelo proposto pelas partes dialogantes.
É certo que para a retórica restaria o poder do discurso persuasivo, na
sua capacidade de impor, dominar e vencer, e as aptidões necessárias para
convencer o outro apenas com palavras, formando os futuros políticos que
ganhariam a plateia através de suas belas palavras. Agora a retórica seria a
rainha, dona de brilho e poder.
2.2.3 Isócrates
Isócrates era uma figura tida como grande professor de oratória,
conhecido por não utilizar palavras rebuscadas e rejeitava a automação do
ensino, influenciando a reflexão do aluno e criando um círculo de cooperação
entre discípulos e mestres, defendendo que para aprender retórica eram
necessária aptidão natural, prática constante e ensino sistemático. Contudo, na
ausência da aptidão natural, os demais métodos ensinados, e possivelmente
assimilados pelos seguidores, eram tidos como inúteis16.
Este filósofo irá apresentar uma prosa clara, precisa e livre de
malabarismos e firulas, não se detendo a rimas grandiosas e apenas usando
fechamentos precisos. Era essencial, segundo Isócrates, o acompanhamento de
uma moral à retórica, haja visto a necessidade de uma causa nobre que
justificasse o uso dessa técnica persuasiva. Portanto, conclui-se que esse filósofo
enalteceu o belo e a capacidade de fazer, da retórica, uma harmonia de discurso
e vida, numa educação estética e moral.
2.2.4 Platão
Diante da atuação dos sofistas que ensinavam a retórica aos bem
nascidos da época, surge Platão que através de seus diálogos irá demonstrar
descrença à retórica ensinada pelos sofistas ao mesmo tempo em que acredita
em outra capaz de formar o justo e o injusto. Vários diálogos, que se debruçaram
sobre a retórica, foram apresentados por Platão, entre eles “Górgias” e
“Protágoras”, os quais mostram uma preocupação com o papel político exercido
16 REBOUL. 2004. p. 11
19
pelos sofistas, tendo na retórica apenas a manipulação de técnicas
argumentativas que embaraçam a verdade.
Exatamente em “Górgias” haveria uma preocupação sobre o
convencimento versus o conhecimento, e sobre a retórica na sociedade e seu
poder dominador nos povos. Platão, através de Sócrates (como intérprete), inicia
o diálogo questionando a forma como poderia definir a retórica; e o personagem
Górgias responde afirmando ser “o poder de persuadir pelo discurso” 17, assim:
Górgias - Vou tentar Sócrates, revelar-te claramente o poder da retórica em toda a sua amplitude (...). Não ignore por certo que a origem desses arsenais, desses muros de Atenas e de toda a organização de vossos portos se deve por um lado aos conselhos de Temístocles e por outro aos de Péricles, mas em nada aos homens do ofício. Sócrates - É isso realmente o que se relata a respeito de Temístocles, e, quanto a Péricles, eu mesmo o ouvi propor a construção do muro interno. Górgias - E, quando se trata de uma eleição de que falavas há pouco, podes verificar que também são os oradores que em semelhante matéria dão seu parecer e que a fazem triunfar. Sócrates - posso verificar isso com espanto, Górgias, e por isso me pergunto há muito tempo que poder é esse da retórica. Ao ver o que se passa, ela se me aparece com uma coisa de grandeza quase divina. Górgias - Se soubesse tudo Sócrates, verias que ela engloba em si, por assim dizer, e mantém sob seu domínio todos os poderes. (PLATÃO, Górgias, p. 455 D, 456 C).
Platão através dos personagens Sócrates e Górgias coloca em questão o
papel da retórica diante dos especialistas da sociedade de sua época, pois como
exemplifica Reboul em sua obra “Introdução à retórica”18, não são os oradores
que promovem as vendas e sim os publicitários; as decisões políticas não são
tomadas por especialistas; os presidentes das empresas é que decidem e não os
engenheiros; da mesma forma o ministro da educação não precisa ser educador e
os melhores comandantes de guerra não são militares. O que levaria a tal
importância dada a retóricos? Talvez a ausência de seleção ou o grande volume
de técnicos, certo é afirma que na maioria dos profissionais falta o necessário,
saber ouvir e saber fazer-se ouvir.
17
PLATÃO, Górgias, 1991, p. 455 18 REBOUL, 1925, p. 15
20
O personagem Górgias, através de Platão, demonstrando as ideias de
Isócrates, acaba colocando a retórica a mercê da moral. Todavia, seria uma forma
de camuflagem de seu poder, tendo em vista que mesmo sendo utilizada de
forma benéfica não deixaria de ser uma arma e nunca seria totalmente
controlável. Assim, Platão irá comparar a retórica à atuação de um tirano, cujas
ações se deixam levar pelo desejo de prazer e poder, nunca deixando claro o que
realmente quer, parece ser uma satisfação efêmera e fugaz. A realidade é que
para Platão o ensinamento do sofista nunca pode chegar a uma ciência, tendo em
vista que lhe faltar a verdade como base de sua construção, da mesma forma que
falta ao tirano a força e a felicidade, como cita:
E a retórica, com todo o seu prestígio, sofre da mesma impotência; não passa de técnica cega e rotineira que, longe de proporcionar aos homens aquilo de que eles de fato precisam para serem felizes, apenas lhes lisonjeia a vaidade e agrada-os sem ajudá-los, prejudicando-os mesmo (PLATÃO, Górgias, p. 463).
Fica bem clara a posição controversa de Platão contra a total confiança
nos sofistas e no poder de seus ensinamentos, para ele o resgate da retórica
possui bases no conhecimento e no caminho das ideias para chegar à verdade
inteligível, o que estará claro a partir de seu diálogo Fedro: “A autêntica arte do
discurso, desvinculada do verdadeiro, não existe e não poderá jamais existir” 19.
Para Platão a ausência da verdade acaba por corromper o poder e a
técnica atribuída à retórica, o que a rebaixa não chegando à arte e muito menos à
ciência, caso não lhe tenha um motivo justo, uma ciência da justiça em primeiro
plano. Seu poder não é nada diante da justiça que realmente concebe a
felicidade, e assim sendo, Platão acabará achando na dialética o verdadeiro
caminho para os conhecimentos éticos e políticos, o condão de conceder
decisões irrefutáveis e gerar ações corretas e verdadeiras.
Platão apresenta uma retórica com base nas vaidades e no valor mínimo
dos discursos sofistas, de encontro à outra cuja base esta apenas na filosofia.
No diálogo “Fedro”, Platão parece aceitar uma retórica nova, a qual tendo na
dialética seu princípio encontra a capacidade de torná-la mais próxima da
19 PLATÃO, Fredo, 260 e.
21
verdade, gerando a “capacidade de falar e pensar” 20. Este filósofo por sua vez,
irá apresentar uma retórica que abandona das paixões e se eleva aos níveis da
causa pela verdade, sendo assim uma expressão do filosófico. Resta-nos
questionar: isso seria realmente retórica?
20
PLATÃO, Fedro, 266 b.
22
3 CAPACIDADE DE CONVENCIMENTO (PERSUASÃO)
O diálogo Fedro de Platão inicia sua trajetória com a saída dos
personagens da cidade, movidos pela discursão sobre o indivíduo apaixonado, e
a possibilidade de confiar ou não nele. Diante deste cenário, o jovem Fedro acaba
mencionando o discurso de Lisías que com belas palavras, e em razão de sua
devoção ao ser amado, é considerado digno de total desconfiança pela falta de
razão nas ações deste apaixonado; neste instante, o personagem Sócrates se
propõe a elaborar um discurso tão bonito quanto o apresentado e que apesente a
mesma temática questionada.
Após declamar o discurso de sua autoria Sócrates irá questionar as
razões de tal condenação, e ele busca um convencimento contrário, se propondo
a fazer bem melhor que Lisías, mas agora em defesa dos amantes, exemplo claro
de sua alta capacidade de convencimento e exposição, seja a favor ou contra o
tema elucidado.
O termo persuasão que significa: argumentação forte – sendo esta a
determinação na defesa de ideias em um diálogo, buscando convencer os outros
ou uma determinada plateia, e ainda conquistar adesão ou desacordo sobre a
ideia principal questionada.
Na argumentação, o contraste de ideias é enriquecedor, pois o
antagonismo de pontos de vista é o melhor caminho trilhado para a prática e o
desafio diante de ouvintes que podem ser convencidos sobre uma das teses. Da
mesma forma, um elemento essencial no caminho argumentativo é o estudo
sobre o destinatário e sua visão diante do tema apresentado, como também seus
preconceitos. Todos esses elementos irão influenciar a evolução da
argumentação como também é necessário um acordo entre as partes, para que
não busquem a imposição de uma verdade, tendo em vista que isso não seria
argumentação e sim uma mera imposição sobre determinado assunto.
Carlos Ceia, em seu texto no “Dicionário de termos e literatura” cita:
É, pois condição necessária, o estabelecimento de um acordo que em nenhum caso pode ser tácito. A argumentação não é um ato de persuasão meramente psicológica de um auditório. Não nos serve nem a pretensão de eloquência de Isócrates nem a definição de Sócrates referida à tradição sofística da retórica como uma psicologia ou persuasão da alma. (CEIA- 2014)
23
Certo é afirmar que a conquista do público é fundamental para o bom
desenvolvimento da argumentação em um diálogo, mas como defendido acima,
não basta apenas que a plateia seja convencida como antes era defendido pelos
sofistas. Faz-se, portanto, necessário um acordo no qual o interlocutor ou o
receptor estejam dispostos a ocupar a cadeiral de protagonista e em outras
vertentes estar na plateia.
A persuasão não pode ser o intuito fundamental do orador e, sim, o
enriquecimento de ideias no diálogo; neste raciocínio Platão elucidará o cuidado
com o papel da verdade no discurso na conversação entre Fedro e Sócrates,
atentando para o seguinte:
Fedro: Ouvi dizer que para quem deseja tornar-se um orador consumado, não se torna necessário um conhecimento perfeito do que é realmente justo, mas sim do que parece justo aos olhos da maioria, que é quem decide, em ultima instância. Tão pouco precisa de saber realmente o que é bom ou belo, bastando-lhe saber o que parece sê-lo, pois a persuasão se consegue não com a verdade, mas com o que aparenta ser verdade. (PLATÃO, Fedro, 260 a).
Platão passará a retomar a ideia exposta anteriormente pelos sofistas,
tanto sobre a conquista do público através da beleza do discurso, como do lugar
da verdade nos diálogos sofistas. Para eles a base argumentativa era lógico-
formal, deixando em segundo plano alguns argumentos que não seguiam
rigorosamente a lógica mesmo que detivessem importância significativa; o que
será muito criticado por Aristóteles que dividiu os argumentos estritamente lógicos
em analíticos e os dialéticos em retóricos.
O papel da verdade dentro do texto era uma preocupação na filosofia da
época, e havia sido esquecida por muito tempo devido a necessidade de formar
bons oradores. Mesmo sem conteúdo ou pensamento crítico, restava aos
formadores da época explorar o campo da capacidade de convencimento,
mencionar a distinção entre argumentação e exposição, já esmiuçada de forma
tímida acima; para tal, mais uma vez, cita-se um trecho de Carlos Ceia em sua
didática sobre o tema:
A argumentação não se confunde com a demonstração, pois enquanto esta não exige um auditório para ser concretizada ou construída, aquela depende dele para se concretizar plenamente.
24
A argumentação é, pelo contrário, um exercício racional monologado ou impessoal. No primeiro caso, prevalece uma relação entre um EU e o Outro a quem se tenta influenciar de algum modo; no segundo caso, subsiste a relação de um Eu com as leis da lógica, sendo o próprio sujeito o primeiro a ter de ser convencido das teses a demonstrar. (CEIA-2014)
Em alguns casos a argumentação pode ser destinada para o próprio “eu”,
não sendo necessário outro individuo para haver uma retórica, como nas
aplicações da psicanálise. Posteriormente, Platão irá demostrar o estudo sobre a
alma e seu caminho diante da verdade dos seres, nesta passagem descobre-se
um discurso que busca em si mesmo as respostas e os argumentos corretos na
arte de falar em público21, sendo determinante conhecer-se e explorar seu
oponente delimitando fraquezas próprias e do outro. Sócrates conhecia Fedro,
sabia de sua admiração por Lísias, escritor sobre o qual discutiam as ideias,
assim, permite que este jovem o tenha como ignorante perante o tema discutido a
fim observar sua posição argumentativa, e sobre as ideias admiradas por Fedro.
A argumentação tem por base a incerteza, o paradoxo, as entrelinhas, o
duvidoso, pois para todo argumento há um oposto, e a capacidade de negar as
afirmações que apresentam uma verdade ainda não contestada, este, portanto,
será o campo minucioso trabalhado por Sócrates.
“Para uma afirmação sempre existe uma contra afirmação”, esta é a base
do texto filosófico dedutivo, segundo Carlos Ceia22. Uma afirmação deve ter sido
objeto de várias investigações, e todas as suas premissas podem ser
confrontadas por ideias adversas. A argumentação socrática possuía bases
sempre na refutação, quando o interlocutor se desarmava para conhecer o campo
do seu ouvinte, era o que os estudiosos chamavam de persuasão epistemológica,
que sempre deixava em aberto uma verdade não revelada, mas ia além de
destruir um argumento ou mera dialética negativa, como cita:
A argumentação socrática requer um acordo final entre as partes envolvidas no diálogo: o arguente “A” tem de convencer o arguente “B” de que a sua posição inicial era falaciosa, portanto, a argumentação de “A” tem que ser mais sólida e convincente do que a de “B”. O fim último da argumentação socrática não é o da simples contradição das ideias pré-concebidas por outrem, mas o
21 PLATÃO, Fedro, 1991. 22 CEIA. Argumentação - 2014.
25
de mostrar a este Outro como é que se de construir uma argumentação. (CEIA, 2014)
A persuasão surge da organização de teses, umas podem complementar
o raciocínio, e outras poder questionar a tese principal com extrema relevância.
Contudo é preciso elucidar que a intenção final do texto convincente é encontrar
um denominador que pode não gerar a concordância com as ideias apresentadas
pelo locutor, mas deve criar no ouvinte um desconforto pelos preconceitos que
eram defendidos: esse era o almejado por Sócrates.
Sabendo que nem todos os argumentos possuem a mesma força dentro
da argumentação, claro é respeitar uma ordem podendo ser esta decrescente,
crescente ou a chamada “nestoriana” – muito utilizada nas antigas retóricas, cujos
argumentos fortes se encontram no início e no fim, colocando os mais fracos no
meio. É necessário perceber que a capacidade de persuasão de um orador está
nas entre linhas que este possa perceber entre a observação dos seus ouvintes e
a boa colocação de suas teses, sejam estas contraditas ou iniciais23.
Um dos perigos do discurso argumentativo é a demagogia, esta acaba
quebrando o equilíbrio existente no discurso para construção das ideias, tendo em
vista que o orador passa a atuar como único fazedor de ideias, ator principal;
aglomerando os vocabulários rebuscados ou vãos, cuja validade é vazia ou fraca.
Esta era uma figura utilizado pelos sofistas, e não se pode ter a argumentação
como uma techne, mas apenas uma manipulação que enriquece o autor de
aplausos, não produzindo questões nem reflexões filosóficas, e para combater
tais atuações surge o questionamento sobre a veracidade e beleza do discurso de
Lísias, como cita Platão, através de seus personagens:
Sócrates: - como? Será preciso que o discurso seja elogiado por mim e por ti? Temos de afirmar também que seu autor disse tudo que era necessário, que cada expressão é clara, bem elaborada e compreensível? Seja, farei isso por amizade para contigo, se bem que eu, na minha incompetência, não tenha notado tal coisa. Só prestei atenção às qualidades retóricas, e creio que, visto desse aspecto, o discurso nem sequer ao próprio Lísias agradaria. Se me permites, caro Fedro, direi que ele me parece ter repetido a mesma coisa duas ou três vezes, como fazem as pessoas que não têm muito assunto; ou talvez essa matéria não se ajuste às suas capacidades. Para mim, é evidente que ele procedeu como
23 CEIA, Carlos. Argumentação, 2014.
26
um jovem pedante, querendo mostrar termos retóricos. (PLATÃO, Fedro, 235 a).
É perceptível a crítica de Platão sobre o uso demagógico das palavras.
Tendo como pano de fundo a discursão na tese da confiança no amante,
demostra, o filósofo, de forma veemente que qualquer um pode argumentar seja
contra ou a favor deste ou daquele assunto. No entanto, a riqueza e destreza na
persuasão é o questionamento feito pelas oposições alcançadas dentro de uma
afirmação já existente e alicerçada no ouvinte, como as que o jovem Fedro já
aceitava como verdade.
A posse do ouvinte sobre a verdade é um desafio apresentado ao locutor;
e por se tratar de um campo de conhecimento já dominado, vários indivíduos não
possuem a coragem de invadir este espaço, tendo em vista que é mais cômodo
deter-se apenas ao que já é afirmado que se lançar as críticas reproduzidas pelas
ideias contrárias.
Através da contestação Sócrates questionará a admiração também
estética, sobre o discurso em análise apresentado por Fedro. Ao mesmo tempo a
beleza do discurso pode estar na aptidão com as belas palavras e construir um
convencimento plausível com a conquista almejada pelo orador, ou seja; a
capacidade argumentativa vai além da visão do “outro”, podendo construir as
reações e confirmações sobre o que lhe seja capaz de ter como uma acepção ou
não24, assim cita Markus Figueira:
A retórica anuncia a figura do orador que luta para subjugar a massa de seus ouvintes. O lugar do discurso reveste-se de poder, passando a ser o lugar da autoridade. A formação dos indivíduos prima por estabelecer um hiato entre os que definem com seus discursos (logoi) o lugar da autoridade política e aqueles que a ela se submetem. A noção de sabedoria para a cidade dos muitos discursos passa a ser identificada com o poder. (FIGUEIRA, 2004, p. 325)
Portanto, o papel político de obtenção de poder que a retórica poderia
gerar na Grécia da época era desejado por muitos poderosos, e para isso a boa
exposição das ideias enriquece o discurso como um todo, e a participação entre
as partes que dialogam gera um equilíbrio, porém o fator essencial é a
24 PLATÃO, Fedro, 1991.
27
observação do “eu” que apenas escuta, tendo em vista que o convencimento é
buscado em seu íntimo, e no poder refletido mais profundas da plateia.
O outro e o eu agrupados, possuem a capacidade de construção de uma
persuasão cuja extensão atua de uma forma muito mais profunda, já que esta
fusão entre ouvinte e locutor tornam as ideias não meramente aceitas, mas
retidas em um campo de totalmente ímpar e sentimental, o caminho da alma.
28
4 A SEDUÇÃO SENTIMENTAL
Sócrates dentro de sua refutação do discurso de Lísias irá apresentar um
profundo estudo sobre a alma humana e sua forma de comportamento quando
movida pelo sentimento ou pela razão, além do caminho mais curto para
conquista do homem pela palavra através da capacidade de envolvimento do
ouvinte pelo reconhecimento de seus sentimentos25 pelas palavras do orador.
A persuasão a partir de agora descobre no apelo sentimental um aliado
na conquista de opiniões favoráveis, tornando-se uma das necessidades mais
cobiçadas dentro do meio retórico na época da Grécia antiga. Para
desenvolvimento deste ensino, várias ferramentas passaram a ser exploradas,
principalmente entre os sofistas, como cita:
Os sofistas prometiam a seus ouvintes/alunos, segundo Platão, que por intermédio das suas lições eles alcançariam a excelência (areté) da téchne oratória que os levaria a predispor do modo mais eficaz possível o surgimento da emoção no público. Daí a construção da plástica figura do orador-político, cujas armas são a sedução e a persuasão (FIGUEIRA DA SILVA, 2004, p.325)
Na elaboração de discursos que buscassem cativar o interlocutor através
de sentimentos, destacou-se o papel dos poetas, que através de versos e
palavras, conseguiam arrancar sorrisos nas comédias, ou lágrimas nos dramas,
tudo reflexo da aceitação das ideias remetidas e dos questionamentos
explorados.
Possuindo um papel fundamental na educação da época, os textos
poéticos e suas oratórias sabiam o caminho mais curto para a alma humana, e
reconheciam na retórica o mecanismo para atingir este caminho. A verdade é que
a poesia era apenas o eco dos clamores populares, que segundo Platão, não
ERA opinião verdadeira nem um conhecimento filosófico da palavra, restando à
declamação de imitações sobre a realidade existente nos versos do poeta que
clama segundo o que a multidão enaltece como bom ou ruim.
O papel educativo da retórica na Grécia, é exposto por Figueira (2004):
25 PLATÃO, Fedro, 1991.
29
Vem de longe a idéia de que é possível moldar o ethos por meio da educação. Desde a Grécia antiga, precisamente no século V a. C., a figura do didáskalos, isto é, o professor, toma o lugar do poeta-aedo na condução (agogé) do processo formativo do cidadão. A sofística inicia um movimento de tornar público os ensinamentos com a promessa de formar homens sábios, virtuosos, poderosos e felizes. Paralelamente a este novo modelo de educação surge à ideia de publicidade. Entre as duas a mais forte, a que vigora hoje como instrumento massificador e seduz com uma eficácia sem limites os sentidos por ela capturados é sem dúvida a publicidade. (FIGUEIRA DA SILVA- 2004, p.322)
Os poetas sabiam que a retórica que utilizavam era alimentada pelo
combustível dos aplausos populares, seja esta retórica possuidora de uma
verdade ou não, pois as paixões tornam as dores mais lamuriosas. A poesia
utiliza-se do fator retórico quando lhe convém, imitando a dor e representando o
sentimento de forma mais acentuada, acabando por lançar o homem com mais
entusiasmo no sentimentalismo. O poeta utiliza-se do “ethos” da poesia trágica
que sufoca o estado racional, lançando sobre um número de espectadores nos
festivais religiosos a influência de seus versos, sabendo que o território passional
da alma é facilmente estimulado pela visão, assim o uso de imitações e recursos
visuais, invadem o âmbito da ficção.
A sedução do discurso é apresentada de forma temática, formal e
expositiva, no diálogo “Fedro”, base do presente trabalho. Inicialmente pode-se
perceber a sedução dos argumentos pelo sentimento do jovem Fedro que se
encontra totalmente fascinado pelo tema do amante não confiável. O perigo do
amante, cujos atos são movidos pelo desejo, acaba reproduzindo o leitor na
pessoa do apaixonado nada confiável ou na figura do autor crítico e observador
sobre as faces do amor.
Platão irá também demostrar a atuação dos sentimentos no campo da
vaidade perceptível no jovem Fedro e no seu desejo de sabedoria levemente
retida no que lhe aparentava belo. Assim, Sócrates peonagem, através do diálogo
em questão, enaltece o ouvinte para observá-lo da forma mais próxima possível,
estudar seus limites íntimos e suas fraquezas mais próximas. Para tal exalta o
ego que o move, como abaixo:
Fedro: creio que disse o suficiente. Se te parecer, entretanto, que omiti alguma coisa, pergunta! Que achas deste discurso
30
Sócrates? Não é ele belíssimo, tanto no conteúdo como na expressão? Sócrates: - Caro amigo, o discurso me parece excelente, e deixou-me entusiasmado. E se me fez tal impressão, meu querido Fedro, foi por tua causa: eu te olhava, e durante a leitura tu parecias iluminado pelo discurso. Convenci-me de que nessas coisas, és mais competente do que eu. Segui o teu exemplo e deixei-me tomar pelo teu entusiasmo. Divina cabeça! (PLATÃO, Fedro, 234 d)
Claro e evidente é o estudo e a percepção da vaidade a qual Fedro se
encontrava, e de total encantamento que o texto havia efetuado nele. Fedro era
um jovem estudioso da retórica, e como podemos deduzir no item 2 deste
trabalho, abastado de bens, já que só os jovens bem nascidos teriam condições
para tais estudos, o que o coloca em situação privilegiada diante de seu tempo.
Assim, Sócrates problematizava os temas apresentado pelo jovem para utilizá-lo
a seu favor e vai aos pouco construindo um mapa de conhecimento sobre o
ouvinte, partindo de uma visão dialética que segundo ele iniciava no sensível para
chegar às ideias e depois retornar ao sensível para explicá-las26.
Sócrates irá iniciar seu segundo discurso expondo o que para ele é
fundamental: ter o verdadeiro conhecimento sobre o que fala além de demonstrar
que o bom orador pode expor duas visões sobre um mesmo tema, ao mesmo
tempo em que defende o método dialético. Este filósofo também combate
qualquer vestígio de imitação ou ausência da verdade, encontrando na alma o
princípio desta verdade:
Partindo do seguinte princípio: toda alma é imortal, pois aquilo que se move a si mesmo é imortal (...). A alma pode ser comparada com uma força natural e ativa, constituída de um carro puxado por uma parelha alada e conduzida por um cocheiro. Os cavalos e os cocheiros das almas divinas são bons e de boa raça, mas os outros seres são mestiços. O cocheiro que nos governa rege uma parelha na qual um dos cavalos é belo e bom, de boa raça, enquanto o outro é de raça ruim e de natureza arrevesada. Assim, conduzir nosso carro é oficio difícil e penoso. (PLATÃO- Fedro, 245 d).
A alegoria do cocheiro, presente no trecho acima demonstra a relação
alma e sentimentos humanos, onde o homem é movido por duas vertentes, quais
sejam, o racional e o irracional. O equilíbrio responde pelo cocheiro regente da
26 PLATÃO, Fedro, 1991.
31
carruagem, e os impulsos bons são os cavalos de boa raça; por fim, os
sentimentos o cavalo cuja raça é ruim e o adestramento difícil. O liame entre
razão e sentimento cabe apenas ao cocheiro que quando se encontra movido
apenas pelos desejos acaba dando liberdade ao cavalo rebelde e abandona as
rédeas a total irracionalidade humana, onde os desejos dominam o ser.
A manipulação das paixões é um dos mecanismos mais utilizados na
retórica, pois o estimulo aos sentimentos exacerbados eleva o potencial impulsivo
do homem e o coloca em total consentimento ao que vê e ouve sem qualquer
discernimento, como o descrito no texto de Lísias sobre o amante do primeiro
discurso. Tal dominação de sentimentos ocorre apenas na ausência da verdade e
do real conhecimento das coisas, como cita Aristóteles:
A verdade é que a alma está dividida entre esses dois logoi já em Platão, e que aí se trama o jogo das paixões, dos desejos sensíveis, embora estes não façam, verdadeiramente, parte do logos. Daí a alegoria, o mito, as imagens a que Platão recorre no Fedro para falar do que escapa à razão, do que se lhe opõe e que deveria também poder, apesar de tudo, voltar a ela. A alma é comparada a animais atrelados, conduzidos por um cocheiro que tenta harmonizar as paixões dos cavalos que se lançam em direções opostas. Eles simbolizam de fato o apetite sensível e a força de resistência a esse apetite, enquanto o cocheiro representa o julgamento da razão sã. (MEYER- 2000, p.20).
O domínio das paixões acaba por negar o equilíbrio, levando o cocheiro a
perder o controle e por muitas vezes acidentar toda a carruagem. Tal alegoria
pode muito bem ser aproximada ao que Platão temia quanto ao domínio da
imaginação e da ficção que acabava enaltecendo as imagens das imagens,
gerando no indivíduo reações alicerçadas no que ele chama de mimeses, no
diálogo A república.
As reações apaixonadas são respostas ao que, é apresentado ao
espectador e considerado como verdade por este sem qualquer questionamento,
é quando o ouvinte se encontra refletido em um discurso, podendo servir como
alimento para uma perfeita reflexão ou um questionamento do que ele é ou vive.
Assim a falta com a verdade torna deveras perigoso, diante do que o discurso
pode provocar em seu interlocutor, como cita:
32
Sócrates: - quando um orador desconhece o que seja a natureza do bem e do mal, encontra os seus concidadãos na mesma ignorância e os persuade, não a tomar a sombra de um burro por um cavalo, mas o mal pelo bem; quando, conhecedor dos preconceitos da multidão, ele a impele para o mau caminho – nesse caso, a teu ver, que frutos a retórica poderá recolher daquilo que ela semeou? Fedro:- não pode ser bom fruto. (PLATÃO, Fedro, 260 b)
Platão reconhecia o perigo das imitações, quando estas atuavam no
campo sentimental, e da exacerbação que estas provocavam nos indivíduos
quando o cocheiro era entregue ao domínio do cavalo de péssima raça. Mas
maior perigo, segundo o filósofo, estava na capacidade de influenciar as opiniões
e desmandos de toda uma plateia que se reconhecia no que via e ouvia e acaba
por reagir com efeitos massivos e irracionais. Assim, as paixões são as respostas
das reais intenções do orador, estas refletem nas representações que fazem do
ouvinte, materializando uma troca de imagens, e dando a entender o nível de
compreensão e consentimento das ideias defendidas na locução.
Porém, Aristóteles sai em defesa das paixões num estudo minucioso
através da interpretação de Meyer:
As paixões constituem um teclado no qual o bom orador toca para convencer. Um crime horrível deverá suscitar indignação, ao passo que um delito menor, absolutamente perdoável, deverá ser julgado com compaixão. Para despertar tais sentimentos, é preciso conhecer os que existem antes de tudo no instigador do auditório. (MEYER-2000. p. 16).
Nesta nova visão apresentada, É encontra na retórica uma função de
relativa equalização entre os indivíduos, já que a argumentação não visa apenas
convencer o ouvinte, mas, além disso, reconhecer que este convencimento da
plateia que o escuta possui uma extrema relevância para o bom convívio social,
diante da necessidade de uma maioria que precisa pensar e agir em acordo.
Esta atuação projeta prazeres elevados e lágrimas, sofrimentos e
alegrias. As paixões formam uma verdadeira relação epistêmica, repassando
sobre o indivíduo e sobre o outro a influência que exerce sobre eles, servindo
assim de parâmetros, num jogo de proximidade e distância, uma total e
revolucionaria atuação no campo da linguagem e do convencimento, seja pela
cólera, tranquilidade, amor e ódio, a segurança e o temor, a vergonha e a
33
imprudência, o favor, a compaixão e a indignação, a inveja, a emulação e o
desprezo, entre outros.
Em um estudo sobre as paixões, a cólera, segundo Aristóteles, constrói
parte do irascível da alma, ela se apresenta como a diferença florescente entre as
partes, habitando este lugar tênue entre o desencontrar e o encontrar-se, entre
orador e plateia. Pode ser uma diferença injusta, imposta ou apenas sentida,
demostrando assim que a imagem do locutor refletida no interlocutor não
apresenta fundamentos, daí o desejo de vingança. A cólera é o desnível na
junção do ultraje, da afronta e do desprezo. Por sua vez, a vingança acaba por
ver seu problema resolvido através da imaginação, como afirma:
A cólera é, pois, uma paixão que assenta num erro de julgamento de outrem sobre si mesmo (portanto, sobre nós), julgamento que lhe queremos provar ser errôneo. Aristóteles diz com razão que as pessoas que se julgam superiores- sobretudo os jovens e os ricos- são as que em geral provocam a cólera. (MEYER - 200 p.13).
Tal nuance mostra que a cólera possui como alicerce uma relação de
superioridade, que facilmente é quebrada com o surgimento do medo. De forma
geral na cólera se percebe na distância e um aumento da distância entre orador e
ouvinte, que se prolonga com o desenvolver das figuras no diálogo; tudo se dá no
rompimento de identidade.
Outro sentimento analisado por Aristóteles é a calma, que aparece como
um reverso da cólera, levando em consideração que refaz a simetria e a ruptura
que outrora dera vazão. Na calma a reflexão é positiva e a imagem refletida no
outro gera a virtude da temperança e da reserva podendo ser a melhor expressão
da indiferença, tendo em vista uma profunda aceitação. A calma e a cólera
representam por si um leque de todas as paixões, ondo seu excesso é a
anulação. A indiferença que vem de uma calma total é uma ausência das paixões,
pois se tem o contrário do arrebatamento dos indivíduos, apresentando um
caráter pragmático.
O amor e a amizade é um vínculo parcial, uma identidade, ao contrário do
ódio que dissocia. Da mesma forma que a base da cólera é a indiferença que se
une ou se afasta; no amor há uma reciprocidade, pois as distâncias de cada
indivíduo são insignificantes a ponto de alimentarem o amor e mesmo o ódio de
tanta violência.
34
O temor tem os fortes como base e estes são temidos, enquanto na
segurança tem-se certa superioridade criando um afastamento fictício ou real em
relação ao que pode ser prejudicado.
Diante da vergonha e da imprudência pode-se perceber nitidamente a
imagem do outro refletido, pois na vergonha existe uma inferioridade diante do
olhar lançado pelo outro que resgata essa minimização já presente no
interlocutor, ressaltando a importância da visão e opinião alheia. Já na
imprudência está à superioridade sem atentar para o outro, ignorando e anulando
o julgamento de fora, ressaltando o superveniente do eu.
O favor é o sentimento que traz consigo a resposta a outrem com um
caráter passional, prestando serviço, descobrindo a necessidade alheia, fazendo
tudo sem um interesse previsto. Nesses termos, onde o amor e a amizade fazem
para ver o bem do outro amado, o favor faz para ver em si mesmo a real intenção
de bem estar.
A compaixão é bem próxima à piedade, mas é alicerçada em razão da
sorte negativa do outro, mantendo certa distância e um nível elevado; todavia a
piedade supõe uma participação, uma identidade que evolui até a indignação. Na
medida em que a compaixão e a piedade mantém uma a distância do ocorrido, a
piedade mantém uma proximidade e por sua vez, a indignação não aceita
moralmente, criando uma desordem.
Por fim, a inveja deseja retirar o que o outro possui, e a emulação deseja
imitar a posição deste outro, mas ambos estão em níveis iguais, sendo relações
que prolongam a constância de sentimento, pois uma decai para a diferença e
outra a identidade. Por último o desprezo põe um ponto final, acaba e gera
ruptura.
Na análise Aristotélica das paixões percebe-se que estas vão além do
homem, por tudo que elas fazem nele, já que dominados pelos sentimentos o
indivíduo se mostra e se vê. Todas as manifestações das paixões são totalmente
vivas e tornam o homem próximo de sua humanidade.
Os sentimentos surgem na alma humana e sobre estes cita Platão:
Sócrates: - Desse modo, há homens que serão persuadidos por certos discursos, enquanto os mesmos argumentos terão pouca ação sobre a alma de outros.
35
É mister que o orador que aprofundou suficientemente os seus conhecimentos seja capaz de discernir rapidamente, na vida prática, o momento exato em que é oportuno usar uma ou outra forma de argumentação. Se assim não for, ele nunca saberá mais do que sabia quando ainda andava na escola. Quando for capaz de dizer por qual espécie de discurso se pode levar à persuasão as mais diferentes almas, quando, posto à frente de um indivíduo, ele souber ler no seu coração e souber reconhecer para si mesmo: eis o homem, eis o caráter que os meus mestres pintaram. Quando souber aplicar a esse homem o discurso apropriado, quando possuir todos esses conhecimentos, quando soube discernir o momento em que deve calar ou falar, quando souber empregar ou evitar o estilo conciso ou despertar com amplificações grandiosas e dramáticas as paixões, só então a sua arte será consumada e perfeita. (PLATÃO, Fedro, 245 A).
Tais paixões nascem no mais íntimo do homem onde nasce e habitam as
ideias e as imagens; sabendo disso os oradores pairavam no campo das
emoções para dominar seus argumentos em favor de seus interesses, o que os
tornava invencíveis ao ponto de proclamarem retóricas consideradas divinas.
Portanto, os sentimentos e sua exploração colaboram com o bom orador,
já que eles são o caminho mais curto para encontrar a alma humana, lugar onde
nasce às imagens e ideias. É na união, verso, beleza e paixão que o homem é
capaz de fazer o outro retornar a si mesmo ou sair de seu próprio eu. Para tal,
resta elaborar o caminho que busca o conhecimento verdadeiro através da melhor
eloquência e formação, assim surge a dialética.
36
5 DIALÉTICA
Dialética é a arte da discursão na busca da verdade através da exposição
de argumentos e contra argumentos que pouco a pouco constroem um enredo
rico em diversidade de ideias, onde os conceitos são expostos de forma
elucidativa e facilmente reconhecível.
Segundo Platão a verdade partir da alma assim, não há como separa
dialética sem buscar sua relação direta coma a condição na anamnese27, pois os
conhecimentos verdadeiros já se encontram no sujeito, bastando que seja
redescoberto no próprio indivíduo, e na dialética torna-se essencial esta busca
interior de uma resposta que ressurge dos questionamentos elencados no
diálogo.
A dialética possui sua base na relação entre sujeito e objeto dentro de
uma construção linguística. O objeto, por sua vez, poderá ser sujeito em outro
estágio, para que ambos encontrem intimamente a noção de objeto e forma
dentro da construção de uma ideia, através de um trabalho de rememoração,
sendo assim um processo de anamnese.
Nesta relação à alma atua como ponte intermediária entre o campo
sensível e o mundo das ideias, para daí rememorar o conhecimento verdadeiro.
Esse papel da alma vem de uma origem divina, que concede ao homem a
memória e, segundo Platão, só ela é capaz de conduzir a conceitos como
inteligibilidade, imutabilidade, imortalidade etc. Daí, então, se torna possível essa
ligação entre o sensível e o inteligível.
Partindo do conhecimento como um mecanismo de reconhecimento, claro
é perceber que o sujeito movido por experiências empíricas deve primeiro possuir
uma ciência pré-adquirida para expor seus dados, e assim extrair a importância
da verdade como uma busca constante.
Inicialmente a dialética está em Platão como um entretenimento coloquial,
entre respostas e perguntas, para gerar uma discussão. Todavia, diante das
variações expositivas, há de se salientar que no diálogo existe a participação de
mais de duas pessoas, enquanto que em um colóquio prevalece uma contradita
dual. Essas duas palavras: diálogo e colóquio, claramente podem se enquadrar
27 Anamnese é a capacidade de a consciência vir a retomar sua vivência individual e originária do mundo das ideias, assim para Platão saber é recordar.
37
nas ideias sobre a retórica e a dialética, sendo utilizadas seja em discurso longo
ou curto, podendo tanto enganar ou servir de abertura para uma verdade perante
a sua plateia.
A dialética busca fundamentalmente encontrar o conceito essencial de
cada coisa através de um jogo de perguntas e respostas, como cita o trabalho
base deste capítulo “Dialética e retórica em Platão”:
Dialético é aquele que apreende a essência de cada coisa. E aquele que não a possui quanto menos for capaz de prestar contas dela a si mesmo ou aos outros, tanto menos terá o entendimento dessa coisa. Platão preocupa-se em deixar bem diferenciado que retórica e dialética são bem distintas ( FEITOSA-1997 p. 227).
Se a dialética seria esse diálogo de perguntas e respostas para a
conquista de uma verdade real, e por sua vez a retórica seria a arte de falar de
forma convincente em púbico, não poderia a retórica ser um conteúdo da
dialética? Partindo desta premissa é salutar retomar a ideia da erística, que, foi
muito comum na Grécia antiga entre os jovens, a qual não apresentava a
preocupação com o assunto discutido ou ao menos com o surgimento de
questões plausíveis ao enriquecimento do conhecimento; deixando tal prática ser
levada pelo desejo de anarquia e injustiça tendo por vista apenas o sabor da
vitória, não considerando valores e tradições.
Elucidando uma diferença entre dialética e retórica cita Jaeger (1997):
O diálogo não deve ser tomado como veneno, mas como antídoto (farmakon) para proporcionar um bem estar aos homens. Por isso dialética e retórica não se confundem, ou ao menos não devem se confundir. Dialética está em consonância estreita a se integrar à ideia do Bem, enquanto que a retórica, ao contrário, não tem compromisso com a ideia de justiça, de bem ou outros valores que são necessários para a formação do bom cidadão, e, quem a pratica de forma abusiva “ainda não se elevou ao verdadeiro conhecimento”. (ZORAIDA- 1997 p. 228).
Nesta passagem, a ideia principal demostra uma retórica que nega a
verdade e a justiça, apenas se preocupando com o discurso público, todavia, a
boa argumentação necessária em qualquer discurso sempre deve possuir o
conhecimento para retirar o melhor desempenho em um diálogo, independente de
seu fim último. Da mesma forma que a exposição de ideias na dialética demonstra
38
a construção de conhecimentos a partir da busca pela verdade real, não se deve
classificar a retórica como boa e a outra como ruim, mas apenas aceitar que
ambas possuem o condão de reproduzir o que bem desejarem, dependendo
apenas do orador que as colocará em prática. Para isso, o conhecimento e a
habilidades no raciocínio perante os que lhe escutam, num estudo mais íntimo e
observador; tornasse mecanismo crucial, como demostra Platão através do
“Fedro”:
Quem não tenha classificado os caracteres dos seus futuros ouvintes; quem não for capas de dividir as coisas existentes segundo os seus caracteres específicos, e de reunir objetos particulares numa só ideia geral; jamais chegará a ser um artista da oratória dentro das possibilidades humanas! Ora isso é um resultado que ninguém consegue alcançar sem grande esforço, e só um insensato empreenderá tal tarefa com único fito de se exibir perante os demais homens, não com o propósito de agrada e aos deuses, pondo na sua escolha todas as suas energias, conforme os desejos dos deuses! Eis, Tísias, o que diz quem é mais sábio do que nós: o homem com poder de discernimento não procurará tornar-se agradável aos seus companheiros de escravidão, mas sim aos seus mestres de origem celeste. Eis porque não deve espantar-se com extensão deste caminho, pois este caminho só deve ser percorrido em busca de grandes ideias, nunca por causa dos fins que tens em mente! A razão mostra-nos que, se alguém o desejar, poderá também atingir esse magnifico objetivo por outros caminhos, bem diferentes dos teus! (PLATÃO, Fedro, 274 a)
Não seria plausível, em nenhum momento, classificar a dialética como
uma prática do bem enquanto que a retórica seria tida como ruim, pois ambas
possuem círculos que em determinado ponto efetuam uma intersecção, com
objetos e imagens comuns e gerados, muitas vezes, através de caminhos
semelhantes.
Segundo Platão, o domínio do conhecimento só pode ser adquirido
através da dialética, como também o acesso à verdade, e ao ser encontrada tem
de ser transmitida aos outros por obrigação social de quem a encontrou, daí o
retorno à caverna pelo indivíduo que descobre a realidade fora dela28.
A visão da dialética através do diálogo “Fedro” para ser compreendida,
exige fazer uma retrospectiva de seu enredo, assim, encontramos uma divisão
28 Alegoria da caverna de Platão: segundo esta os indivíduos se encontravam presos dentro de uma caverna e a única imagem que viam era produzidas pelo reflexo do fogo. Após encontrar a liberdade e conhecer a verdade real das coisas subindo ao mundo das ideias, o homem ao retorna é morto pelos que ainda se encontravam presos na caverna.
39
peculiar no texto de Platão. Em um primeiro momento são apresentados os
elementos tema através do encontro entre Platão e Fedro, e da apresentação dos
discursos; por fim, Platão retorna ao seu estilo conhecido de perguntas e
respostas, herança socrática.
Logo de início Platão demostra o conceito de psicagogia29 implícito na
exclamação: “Para aonde vais a esta hora, meu caro Fedro, e de onde vens?”
(Platão, Fedro-2000, 227 a). Este conceito parte da alusão de que a retórica é a
arte de guiar as almas pelo melhor caminho, e este seria o real procedimento na
alma de Fedro, um personagem jovem, estudioso da retórica que, nesta cena,
caminha para fora da cidade praticando o que mais lhe era admirado, a retórica.
Todavia este novo termo só será mencionado na última parte do texto, possuindo
um sentido negativo, diante da magia que seduz a vivos e mortos.
Contudo, a interpretação acima seria o levante fundamental de ligação
entre retórica e o seu papel na junção dialética versus alma humana; sendo um
elo entre logos e psyché. Esta condução da alma também estaria presente na
alegoria da parelha alada, no segundo discurso feito pelo personagem Sócrates,
cujo equilíbrio entre dois cavalos sensíveis bons e ruins deve ser almejado pela
alma, e a retórica é colocada como este guia, um condutor que influencia e
direciona a formação das opiniões equilibradas.
Pouco a pouco o texto acaba por desenvolver um enredo não sobre a
argumentação racional, mas sobre a conexão entre diálogo e sensível, através do
caminho que a alma percorre até o conhecimento, caminho este que segundo o
texto pode ser coordenado e influenciado pela retórica. E em face do papel
dialético no discurso, Sócrates personagem; irá mencionar:
Eu também sou muito dado, caro Fedro, a esta maneira de reduzir e analisar as ideias, pois é o melhor processo de aprender a falar e a pensar, e sempre que me convenço de que alguém é capaz de aprender, simultaneamente, o todo e as partes de um objeto, decido-me a seguir esse homem como 'se seguisse as pegadas de um deus!' Em verdade, aos homens que possuem este talento [...] sempre os tenho chamado de 'dialéticos. (PLATÃO, Fedro, 266b-c)
29 Psicagogia é a evocação das almas, cerimônia mágica e religiosa na condução das almas, segundo Platão a retórica é a arte de guiar as almas pelo bom caminho.
40
Sócrates aprecia e assume sua posição dialética, ao mesmo tempo em
que esmiúça a visão apresentada pela alegoria, defendendo que as almas dos
mortais necessitam seguir as almas imortais para encontrar equilíbrio e assim
contemplar o inteligível, colocando a filosofia e os filósofos como estes serem
próximos ao inalcançável, e a dialética seria, portanto, seria então o caminho
disponível aos humanos para encontrar a verdade.
Platão na época do “Fedro” já sabia do desprezo dos atenienses pelo
método socrático, mas o diálogo iria ressaltar a visão do filósofo que encontra no
discurso não apenas uma beleza em si mesma, mas um caminho para o
inteligível. Assim, Platão, irá apresentar a relação entre os gêneros com a
definição do objeto em questão:
[O primeiro] consiste em abarcar em uma única Ideia, graças a uma visão de conjunto, as noções disseminadas em múltiplos lugares, a fim de que, pela definição de cada uma dessas Ideias, possamos tornar manifesto o assunto que se tem em vista tratar [...]. [O segundo consiste], inversamente, em dividir novamente uma Forma geral em suas articulações naturais, evitando, todavia, mutilar suas partes como faria um mau açougueiro. Como vimos há pouco, os nossos dois discursos apresentaram, primeiro, uma Forma geral de manía. Logo a seguir, assim como a unidade do nosso corpo compreende, sob a mesma designação, os membros do lado esquerdo e os membros do lado direito, também os nossos discursos concluíram, dessa Forma geral, duas noções distintas, a saber: uma à esquerda, que distinguiu o que estava errado e vilipendiou merecidamente o amor; outra que, situando-se do lado direito, tomou a via mais acertada, e se lançou à descoberta de outro amor, igualmente divino, ao qual cumulou de elogios e apresentou como o maior dos bens. (PLATÃO, Fedro, 265d-226b)
O processo da dialética acaba por ressaltar um problema peculiar, tendo
em vista que Sócrates utiliza caminhos diferentes para criar os discursos
apresentados. No primeiro explora a diferença entre dois desejos, o prazer e o
bem, mas posteriormente não esclarece o fundamento para esta diferenciação,
muito menos irá esclarecer a relação gênero e espécie apresentada logo a seguir.
Depois Platão coloca o amor dentro de um gênero do desejo pelo prazer, sem
explicar a relação e finalidade para esta classificação30.
30 Oliveira. 2010, p. 82
41
Portanto, por mais que demostre a redução de síntese e análise em
gênero e espécie como método de dialética, o diálogo por muitas vezes acaba
não o utilizando, mesmo que o autor defenda tal mecanismo como o mais
plausível para o conhecimento. Mas o que levaria Platão a utilizar um caminho
diverso do que defendia? Talvez uma interpretação diversa dos termos gênero e
espécie, ou de seu emprego direto na dialética; quem sabe até mesmo uma
ligação direta entre dialética e inteligível.
Resta apenas a defesa de uma retórica que salve o papel artístico do
discurso e aproxime o homem do humano, divergindo de uma dialética que, cada
vez mais profunda, torna o filósofo próximo ao divino, e enaltece o método
científico. Porém, a retórica não possui sua essência no que é exato, tendo suas
raízes subjetivas, como nas ciências jurídicas.
42
6 ORATÓRIA JURÍDICA
Nos Diálogos de Platão, Sócrates afirma que a retórica de seu tempo não
passa de um mero jogo de persuasão, em nada preocupada com valores e a
defesa da justiça. Esta era a visão tanto sobre retórica como sobre a política de
sua época, tendo em vista que o esquecimento da ética tornava-se perceptível
nas praças públicas, nas assembleias e nos tribunais.
Por sua vez, a obra “Fedro” vem no resgate do que Platão encontra de
justo dentro da retórica, passando a tratar o discurso como arte, cujo fundamento
deveria estar na nobreza e na beleza. Neste contexto surge o desejo do orador
pela benção da justiça e da retidão, como a oração ao Deus pã partilhada com o
jovem Fedro seu interlocutor:
“Concedei-me que me torne nobre e belo interiormente, e que todos meus bens exteriores estejam em amigável harmonia com o que é interior. Que eu possa considerar o homem sábio, rico. E quanto ao ouro, que possa ter eu dele somente a quantidade que alguém moderado é capaz de suportar ou portar consigo”. (PLATÃO, Fedro, 279 c)
O desejo do orador de sua época é antes de tudo conhecer a alma do
homem como caminho da verdade e da justiça. A arte retórica no “Fedro” é uma
persuasão necessária dos profissionais da educação, da política, dos juristas e de
uma forma geral de todos que desejam convencer uma plateia diante de um bem
comum.
O desejo pela justiça sempre estaria em contraponto ao de vitória em um
debate retórico ou numa lide perante os julgamentos, o que acabaria por produzir
diversas argumentações e contra argumentações, para defesas ou acusações
nos tribunais.
Uma das teses apresentadas no diálogo em questão está no discurso de
Lísias, enaltecendo a desconfiança nos apaixonados. Esta tese claramente
justificaria a morte do amante, se caso necessário na defesa de uma honra ferida.
Poderia, também, servir de base na vedação da partilha dos bens numa relação
homoafetiva ou no não reconhecimento do trabalho do cônjuge que se dedica
apenas ao lar, mesmo não lhe sendo devida uma prestação pecuniária, acabando
por colaborar com o enriquecimento do parceiro.
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Para rebater esta tese Sócrates, personagem, coloca o amor como algo
que une os amantes e tem na generosidade seu fundamento, seja diretamente ao
ser amado ou aos que tenham com ele relação indireta. Neste sentido, os
próximos, são todos que circundam um raio reacionário de contato com os
amantes, hoje de forma global e universal diante da diversidade nos meios de
comunicação, onde o campo de contato seria bem mais abrangente.
O bem reproduzido pelo amor é enaltecido de uma forma que contagia os
verdadeiros amantes e ultrapassa o universo criado por estes, justificando o olhar
amado, seja este lançado sobre o ser que ama ou sobre as circunstâncias
criadas, tendo em vista uma unidade de visão que o amor é capaz de gerar.
Assim, a lógica do amor é vista pelos olhos da sua própria loucura, e esta loucura
afeta até os que não amam, já que não cabe ser explicada pela razão.
O amor é deveras contagiante, e acaba por afetar os que circundam o
ambiente dos apaixonados, pois o bem necessariamente deve ser o papel
essencial do amor seja em direção ao que ama ou a outros sujeitos. Assim, o
amor é bom e se realiza na solidariedade; daí a capacidade de confiança num
homem apaixonado, defendida por Platão.
Diante da visão destas duas teses apresentadas, o “Fedro”, de Platão,
exalta a conversação entre as partes com ideias oponentes, através do diálogo
entre o jovem e Sócrates, o que possibilita ao homem à argumentação e a
concórdia, gerando um olhar benevolente na persuasão jurídica; a qual tal como a
vocação das cigarras, que enaltem a musicalidade até perecerem, deve o jurista
desejar o dom de enaltecer o justo e virtuoso em prol da compreensão.
Para tal atividade benevolente, desenvolveu-se uma forma própria de
interpretação, leitura de códigos e signos, uma habilidade surgindo da
necessidade de uma explicação racional, valorativa e capaz de tocar o mais
sensível existente nos jurados. Todavia, demonstração de dados no campo
jurídico nem sempre obedece a uma lógica real, mas muito mais probatória,
buscando a justa medida no provável. Em áreas dialéticas, esta medida é o mais
próximo possível de uma verossimilhança, que seria considerada e criticada por
Platão, como uma imagem em terceiro nível ou mera aparência do real.
Tais demonstrações verossímeis negam uma lógica funcional e facilmente
tornam uma nuvem passageira em torrente de dilúvios mentirosos. Tal empasse,
já preocupante na Grécia antiga faria Aristóteles separa a erística da retórica; e
44
posteriormente, seriam base para São Tomás de Aquino apoiar a persuasão na
lealdade mesmo diante divergências litigiosas.
Maria Helena Damasceno em seu artigo “Uma recordação na retórica do
Fedro” (2008), publicado da revista Brasileira de Estudos Políticos, afirma:
O que se afirma sob a ótica das probabilidades deve ser pesado com as medidas da própria vida. Por isso, deve corresponder ao que é próprio do humano, com o reconhecimento de suas contingências e paradoxos. O exercício da dialética, presente no raciocínio que trabalha com uma lógica compreensiva, conduz à compreensão dos atos e circunstâncias em jogo mediante o emprego de normas próprias. A obra da persuasão nesse campo justifica-se na produção dos dados da experiência integrados num sistema lógico regido por regras e princípios, que constituem objetivo de qualquer ciência. (DAMASCENO. 2008, p. 10)
Desta forma ao absolver um indivíduo acusado de homicídio, não se pode
basear tal resultado numa premissa lógica de ação e reação, tendo assim um
raciocínio na causalidade da vida real – alicerce do direito, cuja regência possui
regras e princípios singulares, com valoração do correto ou errado, levados a
subjetividade de modo intencional. O jurista assim deve observar o caso concreto
através de uma ótica de valores regida pelo campo de um pesar entre a liberdade
e as dificuldades na complexidade da vida, cabendo tanto uma absolvição por
legítima defesa como pela prescrição31 do ocorrido.
Tais raciocínios de diferenciação entre ação e julgamento são o alicerce
de conceitos como isonomia32, que busca uma igualdade de pronunciamento ou
equilíbrio de elucidação das ideias para ambas as partes, servindo estas ideias de
base dialética nos discursos de Platão33, Aristóteles34, Santo Agostinho35, e
outros.
No campo subjetivo a visão do que é certo ou errado gera controvérsias e
distorções, como cita Platão ao mencionar a interpretação sobre o nome ferro e
prata onde o entendimento é sem dificuldades diante do que é visível, porém
difícil na subjetivação. Todavia, quando o filósofo menciona justo e bom, ocorre
31 Prescrição é a perda do direito de buscar na justiça para pleitear um direito em razão de um determinado decurso de tempo. 32 Isonomia seria a igualdade entre as partes, no entanto; no direito seria a máxima de tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais. 33 No Diálogo “Fedro”. 34 Na obra “Arte e retórica”. 35 Na obra “As confissões”.
45
uma quebra de raciocínio, surgindo assim um empasse íntimo, com seu próprio
eu interlocutor.
O que é facilmente sensível torna-se comum a razão, e a uma previsão
de imagem e forma, porém o que surge a partir da alma, como a ideia de justiça,
bondade, honestidade e amor, acaba gerando uma divisão interpretativa. Tal
divergência se dá em razão do olhar por muitas vezes já lançado num julgamento
anterior ao que a alma se pronuncie, negando a luz que uma boa reflexão poderia
efetivar sobre determinado fato.
A reflexão e análise valorativa diante dos fatos e questões torna-se
essencial para a proximidade com a verdade e o bom entendimento, assim, tais
valorações, acabam questionando conceitos como aborto, eutanásia, sistema
prisional, vida sub-humana e trabalho escravo, onde muitos se omitem diante tais
opiniões e acabam por gerar realidades com alicerces superficiais e frágeis,
diante de uma sociedade que se contenta apenas com a erística apresentada
pelos políticos.
Segundo o julgamento aparente, Maria Helena Damasceno cita
Saramago (2008):
A reflexão sobre os temas da vida (e da morte) parte da alma sob pena de não chegar aos olhos e o sujeito permanecer com cegueira, tão cego como aquele personagem de Saramago, que não percebera, enquanto aguardava recuperar a visão, ser dispensável conservar os olhos abertos sob a suposição de que desse modo a visão neles entraria. Não são os olhos, mas a alma, ao mesmo tempo, canal e manancial de luz que ela recebe e transmite. A estes e aos demais sentidos, porém, compete sinalizar à alma, a qual dará ou não aceite ao que a ela vier, inclusive a luz. Na verdade, esta irradia de dentro, num processo de retransmissão para iluminar a compreensão, que, então, será virtuosa . (DAMASCENO- 2008, p. 15)
O julgamento, como forma de visão, possui um reflexo próprio na opinião
individual entre as partes num diálogo. Os prejuízos ou juízos provisórios,
segundo Kant36, e os preconceitos inautênticos que circundam a questão da
avaliação particular, possuem uma importância precípua dentro da hermenêutica
jurídica, pois a verdade pode principiar de uma opinião, no entanto esta deve ser
remetida ao crivo da dialética para conseguir alcançar seu fim.
36 Kant na obra “Lógica”, 1992, p. 83 e seguintes.
46
O que deve ser feito quando apenas existem opiniões em detrimento de
um perigo na demora no juízo? Cabe suspender tal juízo, o que o direito irá
chamar de liminar, gerando assim uma verdade imediata diante da necessária
resolução de conflitos, sobre a tutela do “fumus boni iuris” 37, que associada a
verossimilhança acabam por resolver de forma urgente a lide questionada, porém
o juiz, no fim do processo, deve rever tal concessão e apreciar de forma concreta
o caso, podendo até chegar a nova conclusão.
O Direito por sua vez, alimenta-se também de probabilidades, no entanto;
não lhe cabe analisar apenas o que é provável, nem colocar em patamar diverso
as demais ciências exatas, pois diante da impossibilidade de averiguar os fatos,
resta a inexatidão da vida e sua complexidade diante do ser humano. Da urgência
na interpretação, surge a união e o papel fundamental das ciências como a
sociologia criminal e a psicóloga aplicada ao direito, as questões entre direitos
humanos, direito do meio ambiente, da informática; em confronto a outras
vertentes do direito como o tão famigerado direito do inimigo38.
Platão valorava a busca pela verdade, na política, nas assembleias e nos
julgamentos, para tal via a salvação da retórica apenas nos discursos cujos
oradores possuíam uma base filosófica, tendo em vista que apenas a filosofia era
detentora da verdade.
Para o filósofo, quem ama a sabedoria vai além do ferro ou do ouro, até
onde nem sempre o forte é corajoso e o fraco é covarde, indo além das meras
aparências, e considera que lá esta a verdade real das coisas; mas aí não está o
papel da verdade e sim o fundamento de onde se parte um julgamento.
O que julga as relações jurídicas deve partir da tutela sobre a dignidade
humana numa ideia de justiça, por isso, afirma-se no “Fedro”, que melhor é
suportar a injustiça do que praticá-la, sendo semelhante a absolver um culpado
em detrimento a condenar um inocente.
O único possuidor do conhecimento para o discurso verdadeiro é o
filosofo, tendo este uma ligação quase divina com a verdade, assim a arte retórica
37 Fumus boni iuris: Significa: fumaça do bom direito. É um sinal ou indício de que o direito pleiteado de fato existe. Não há, portanto, a necessidade de provar a existência do direito, bastando a mera suposição de verossimilhança. Esse conceito ganha sentido especial nas medidas de caráter urgente, juntamente com o periculum in mora – perigo na demora. 38
Idealizada por Gunter Jakobs é a teoria de um direito penal que ressalta a punição negando os direitos individuais.
47
deve buscar conhecer através da filosofia. Como ocorre no “Fedro”, também no
discurso jurídico existe a necessidade de ir além do conhecimento de fatos,
buscando a veiculação do justo pela harmonia entre as partes e o equilíbrio entre
calar e falar, surgindo a herança entre os que compreendem e os que explicam, aí
está a força do discurso jurídico.
Assim é veemente a escolha do Éros como plano de partida nos discurso
apresentados no diálogo, já que para amar é necessário convencer o ser amado
da valoração deste sentimento; mas essencial é julgar tal amor como digno de
apreciação ou de mera expectativa. O julgar e ser julgado são caminhos
bifurcados que cabe a quem explica a retórica de ganhar súditos dignamente
justos para construir a força jurídica na dignidade de um discurso, seja ele uma
retórica jurídica ou filosófica, seja numa contradita sobre amor ou não, confiar ou
não; resta questionar o caminho ou a sensibilidade para valorar o que pode
merecer a coroa da verdade.
48
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cenário apresentado no “Fedro”, por Platão, traz a relação entre “Eros”
e “Logos” que, utilizando a retórica como arte, procurando desvendar a realidade
do ser que deseja encontrar a verdade pelo conhecimento. Por sua vez, é
perceptível uma maturidade das ideias platônicas e suas teses na defesa do
encontro de uma perfeita formação do indivíduo através da reminiscência39.
Partindo das análises deste diálogo de Platão, inicia-se o presente
trabalho com uma retomada histórica diante do caminho percorrido e das diversas
facetas apresentadas pela retórica através das ideias e imagem de muitos
filósofos; da mesma forma que esta apresentação acaba emergindo na figura de
Platão em uma retórica inicialmente criticada pela obra “Górgias”, e
posteriormente defendida pelo “Fedro”, na busca de um resgate da arte e da
verdade que a dialética é capaz de alicerçar ao discurso.
No terceiro capítulo coloca-se a formação e uma análise sobre a
persuasão no interlocutor, deixando claro um estudo minucioso sobre a plateia,
tendo em vista a necessária equiparação entre o nível intelectual do ouvinte e o
discurso que lhe é apresentado, para que este possa ser mais bem compreendido
e assim aceito.
Posteriormente é apresentado o poder e a utilização dos sentimentos
como forma de sedução diante de uma plateia que se reflete nas palavras ou na
ficção criada pelo expositor, gerando assim reações efetivamente percebidas,
como no teatro e nos discursos apelativos. Em sequência, está a passagem da
erística à dialética, tida por Platão como o caminho real para a verdade e o
encontro do papel educativo da retórica.
Por fim, a hermenêutica como campo jurídico e forma técnica que
alicerçada na retórica acaba por tomar papel importante na resolução dos litígios,
tendo em vista a exposição e defesa de teses, o papel da verossimilhança diante
da urgência nas decisões, a ideia sobre fumus boni iures, e o necessário
equilíbrio nos empasses litigados que requerem uma resposta urgente, efetiva, e
segura para o bom convívio coletivo.
39 Lembrança por recordações, conhecimentos já existentes no individuo que apenas são estimulados e afloram.
49
Todavia, observando de forma superficial do diálogo em questão, também
são apresentados os temas principais de Platão como: a verdade, a justiça, a
amizade, a sabedoria, o conhecimento e; a generosidade. Todas estas são
expressões de empasses filosóficos, poéticos, e existenciais da humanidade.
Inicialmente Platão explora como tese os favores que devem ser
oferecidos aos não apaixonados; e, logo ao escutar o discurso de Lísias recitado
pelo jovem estudante Fedro, Sócrates afirma conseguir uma eloquência tal qual a
do admirado autor. Tendo feito sua réplica, o personagem Sócrates, retoma uma
percepção de ofensa ao deus Eros40 e ao Logos41, restando-lhe então, uma
reparação condigna e mais ainda, que enaltecesse um real estudo sobre o amor e
a capacidade de persuasão.
Deste terceiro discurso, Platão, retira a união entre a temática da
confiança e a ideia sobre a bondade originária dos que amam, buscando na
virtude o que de mais justo faz do homem bom: o amor; oferecendo assim um
discurso que enaltecesse o filho de Afrodite, elevando a generosidade dos
amontes e a amizade com quem o cerca.
No “Fedro” Platão vai além da simples técnica de falar em público
buscando aproximar a vida da arte com as palavras, enaltecendo as grandes
verdades que se desvelam no decorrer de um discurso, onde a busca pelo
conhecimento é uma forma fundamental de tornar-se vivo e para tal elucida a
importância de conversar em vez de dormir ao meio dia, exemplificando pelo mito
da cigarra42 presente no texto.
Neste mito os homens encantados pela arte da música passam a viver
apenas dela, não necessitando de alimento, daí as cigarras que devotadas ao
canto das musas apenas viveriam para cantar até perecerem. O desejo pela
verdade tornou Sócrates como uma dessas cigarras, tendo este perecido pela
nova forma de questionar e buscar a verdade.
A verdade sempre foi tomada como este verme que permeia o caminho
dos que utilizam a palavra como forma de expor conhecimentos ou elucidar
ideias. Cabe analisar uma associação entre verdade e liberdade tornando a
retórica um ambiente questionador. Até aonde a verdade precisa comprometer-se
40 Considerado entre os gregos como Deus do amor. 41 Significa o verbo- palavra escrita ou falada. 42 Platão, Fedro,254.
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com a retórica? Será que deve haver um papel social dentro da erudição? Aonde
pode ser colocada a verdade quando a retórica como arte se associa a ficção?
A retórica pelo “Fedro” readquire sua beleza prima sem perder sua
humanidade, mas muitas questões ainda encontram-se em lacunas abertas, e
certo é afirmar que através das palavras o homem não apenas transforma o
mundo e a sociedade, mas é capaz de mudar outros homens, através da
persuasão.
Portanto, a arte retórica possui um papel fundamental na sociedade, seja
diante da verdade ou não, ela nunca deixará de possuir seus brios e sua beleza,
todavia, quanto à sua função no mundo técnico, pode-se convir que, a busca pela
verdade pode muito bem responder está questão. Para Fedro restou a certeza
que tudo pode ser dito e o ouvinte exercerá seu poder de resposta, seja com
lágrimas ou sorrisos, mesmo que tudo não passe de sentimentalismo, e certo é
afirmar que talvez seja mais confortável viver como protagonista em um teatro de
belas palavras, que ser mero espectador de uma realidade acre.
51
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