UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS-UFT
CAMPUS UNIVERSITRIO DE PALMAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL
ELAINE APARECIDA TORICELLI CLETO
RESILINCIA E RECONHECIMENTO EM NEOCOMUNIDADES: O CASO DA
COMUNIDADE QUILOMBOLA MORRO DE SO JOO-TO
PALMAS-TO
2015
ELAINE APARECIDA TORICELLI CLETO
RESILINCIA E RECONHECIMENTO EM NEOCOMUNIDADES: O CASO DA
COMUNIDADE QUILOMBOLA MORRO DE SO JOO-TO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Desenvolvimento Regional da
Universidade Federal do Tocantins - UFT como
requisito parcial para a obteno do ttulo de
Mestre em Desenvolvimento Regional.
Orientador: Prof. Dr. Alex Pizzio da Silva.
PALMAS-TO
2015
Dedico este trabalho aqueles que so a expresso
maior do amor que permeia a minha vida e a
minha maior inspirao Marcelo, Marcelli, Sofia
e Heitor.
AGRADECIMENTOS
Agradeo profundamente a dedicada orientao do Prof. Dr. Alex Pizzio da Silva que com
confiana, respeito e amizade tornou esta pesquisa possvel. Agradeo as provocaes
intelectuais e o incentivo que tive durante esta trajetria, os quais contriburam para a minha
autonomia como pesquisadora. Sou imensamente grata a toda a comunidade Morro de So
Joo que me acolheu com tanto carinho, em particular aquelas que compartilharam comigo
suas memrias, reflexes e seu modo de viver. Sem sombra de dvida esta pesquisa seria
muito mais difcil sem o apoio de pessoas como a Sandra, a D. Maria e o Sr. Oniffe, famlia
da comunidade que me hospedou e acolheu em seu lar com todo o carinho. Sou
imensuravelmente grata a minha famlia pelo amor dedicado a mim, principalmente, com
meus momentos de impacincia e ausncia nestes ltimos dois anos e meio. Ao Marcelo,
companheiro de uma vida, meu porto seguro, a quem agradeo pelas diversas formas de
incentivo, inspirao e pacincia. Aos meus filhos Marcelli, Sofia e Heitor a minha imensa
gratido por serem to especiais na minha vida, a quem eu devo o meu desejo de querer lutar
sempre pelo melhor, e tambm pela pacincia impaciente com a minha ausncia durante todos
esses anos de formao. Agradeo aos amigos que me apoiaram nessa caminhada desde a
graduao, contribuindo cada um a sua maneira, Alex Pizzio, Mnica Rocha, Cristiane
Roque, Jeziel, Hber Grcio, Soraya Almeida, Regina Padovan, Wanderley Mendes, Eder
Ahmad Eddine, Luciano Gonalves, Joscelyn Junior, Rayssa Carneiro, Helen Lopes, Andr
Demarchi, Suy Omin, Eliane Henriques, Cleides Antnio Amorim (in memoriam) e Flvio
Moreira (in memoriam), Flvia Xavier, Luciana Aliaga, Marcelo Brice, Odilon Morais, Frank
Amorim, Rita Domingues. Em especial para Cristiane pelas importantes e fundamentais
leituras, correes e conversas, Soraya e Regina pela importante ajuda com a elaborao do
projeto para a seleo do mestrado e pelas vrias acolhidas em suas casas, Hber pelas
produtivas conversas e Mnica pela confiana e pela oportunidade de participar da equipe da
IPPA/TO. Aos colegas do PPGDR, Bruna, Leonardo, Nayara, Telma, Ariane, Emerson, Leila
e Josivaldo pelas experincias compartilhadas. A todos os professores do PPGDR, em
especial ao Airton Canado, Alex Pizzio, Antnio Pedroso, Monica da Rocha, Temis Parente,
Waldecy Rodrigues, o meu agradecimento pela contribuio no meu processo de formao.
Agradeo meus pais Lzaro (in memoriam) e Davina (in memoriam) a quem devo a minha
vida e o que sou, por terem sido exemplo de luta, honestidade e amor, sempre me
incentivando e confiando que eu poderia chegar at aqui. Partiram mas deixaram a essncia
do bem, do amor e da bondade. Aos meus irmos Aninha, Rosana, Martinho, Jura (in
memoriam) e Jlio pela maneira diferente de ser de cada um e pela presena cheia de amor e
carinho em minha vida. Sobrinhos e sobrinhas pelo prazer ter em minha vida pessoas que
manifestam com tanta sinceridade o amor. A Neusa e Mauri por terem me recebido como
filha. Por fim agradeo ao programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Regional da
UFT pela oportunidade de aprendizado, em especial coordenadora Mnica Ap. Rocha da
Silva e as secretrias Lethcia e Michele. E ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientfico (CNPq) pela concesso de bolsa de estudos por dois anos, apoio que possibilitou
que eu pudesse me dedicar integralmente aos estudos neste perodo.
Reconhece a queda e no desanima. Levanta
sacode a poeira e d a volta por cima.
Paulo Vanzolini
RESUMO
A sociedade atual marcada por importantes transformaes sociais e econmicas que, desde
o final do sculo XX, vem alterando profundamente a lgica produtiva global. Dentre estas
transformaes, os processos transnacionais de reestruturao produtiva, internacionalizao
da economia e globalizao tm resultado em importantes desdobramentos no processo de
regulao, resultando na produo de novos condicionamentos que atingem diretamente o
comportamento social, tanto individualmente quanto coletivamente, afetando o
desenvolvimento, a interao com o meio e a manuteno de identidade. Diante desse amplo
cenrio de transformaes, observa-se que as comunidades passam a enfrentar novas reas de
imprevisibilidade que promovem transformaes importantes na vida cotidiana e na
organizao social. Entretanto, chama ateno a capacidade que algumas apresentam no
enfrentamento positivo e na superao das adversidades. Essa capacidade tem sido apreendida
no meio acadmico por meio da ideia de resilincia. Desse modo, o objetivo deste trabalho
foi realizar uma investigao na Comunidade Quilombola Morro de So Joo Santa Rosa do
Tocantins/TO e verificar se esta uma comunidade resiliente e quais os fatores de promoo
desta condio. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada por meio de um estudo de
caso. Foram utilizadas variadas estratgias e tcnicas de coleta de dados tais como:
observao participante, entrevista no estruturada, pesquisa documental, questionrio e
histria de vida. A pesquisa etnogrfica foi realizada durante as quatro idas a campo e se deu
por meio da participao na rotina, nas cerimnias, nos festejos que aconteceram durante a
permanncia na comunidade, ao mesmo tempo em que foram realizadas observaes e
entrevistas com os moradores. O marco terico ateve-se abordagem dos conceitos de
resilincia, neocomunidade, reconhecimento, e cultura como recurso. Conclui-se que a
comunidade Morro de So Joo resiliente, pois apresentou indcios de superao das
adversidades, fato que pode ser verificado em mbito coletivo, embora ficou comprovado
atravs dos resultados da escala utilizada de que em mbito individual no h uma resilincia
consistente. O que se conclui que embora o Quest_Resilincia seja um instrumento utilizado
para mapear o comportamento de indivduos e grupos (equipes), no se chegou a um resultado
satisfatrio para o mapeamento das crenas em mbito coletivo, sendo ento insuficiente para
mensurar a resilincia comunitria. Isso sugere a necessidade de se traduzir e validar uma
escala de mapeamento em comunidades. Comprovou-se que o reconhecimento da identidade
cultural um fator de promoo de superao das adversidades.
Palavras-chave: Resilincia, Neocomunidades, Quilombola, Reconhecimento
ABSTRACT
Today's society is marked by major social and economic transformations that from the late
twentieth century, has profoundly altering the global productive logic. Among these
transformations, the transnational processes of productive restructuring, internationalization
and globalization of the economy has resulted in significant developments in the regulatory
process, resulting in production of new conditions that directly affect social behavior, both
individually and collectively, affecting the development, interaction with medium and
maintaining identity. Given this broad scenario of transformation, it is observed that
communities begin to tackle new areas of unpredictability that promote important changes in
everyday life and social organization. However, draws attention to capacity that some have
the positive coping and overcoming adversity. This capability has been seized in academia
through resilience idea. Thus, the aim of this study was to research in the Community
Quilombo Morro de So Joo - Santa Rosa do Tocantins / TO and verify that this is a resilient
community and what factors promote this condition. It is a qualitative research, carried out
through a case study. Various strategies and data collection techniques were used such as
participant observation, unstructured interviews, desk research, questionnaire and life story.
The ethnographic research was conducted during the four visits to the field and was through
participation in routine, the ceremonies, the celebrations that took place during their stay in
the community at the same time observations and interviews with residents were held. The
theoretical framework adhered to the approach of resilience concepts, neocomunidade,
recognition, and culture as a resource. It is concluded that St John's Hill community is
resilient, as it showed signs of overcoming the adversities, which can be verified in a
community basis, although it was proven through the scale of results used that on an
individual level there is a consistent resilience. What can be concluded is that although the
Quest_Resilincia is a tool used to map the behavior of individuals and groups (teams), not
reached a satisfactory outcome for the mapping of beliefs in a community basis, and then
insufficient to measure community resilience. This suggests the need to translate and validate
a mapping scale communities. It was shown that the recognition of cultural identity is a factor
of promotion of overcoming adversity.
Keywords: Resilience, Neocomunidades, Quilombola, Recognition
LISTA DE ILUSTRAES
Quadro 1 Comunidades remanescentes de Quilombos Brasil 91
Quadro 2 Processos de regularizao fundiria abertos 92
Grfico 1 Anlise do Contexto 109
Grfico 2 Autoconfiana 111
Grfico 3 Autocontrole 114
Grfico 4 Conquistar e Manter Pessoas 116
Grfico 5 Otimismo com a Vida 118
Grfico 6 Sentido da Vida 120
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Crianas participando da Congada 57
Figura 2 Congada: Crianas como rei e rainha 58
Figura 3 Reunio de posse da nova diretoria da associao do Quilombo MSJ 62
Figura 4 Ritual no cemitrio e presena da imprensa local 80
Figura 5 Presena da imprensa local no festejo 81
Figura 6 Divulgao de festejos 82
Figura 7 Congada: o rei e a rainha de 2014 99
Figura 8 Congada: os congos 99
Figura 9 Capela So Joo Batista 100
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADI - Ao Direta de Inconstitucionalidade
ACxt - Anlise do Contexto
ADCT - Atos das Disposies Constitucionais Transitrias
ACnf - Auto Confiana
AC - Auto Controle
CMP - Conquistar e Manter Pessoas
CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico
EPT - Empatia
INCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
LC - Leitura Corporal
MDA - Ministrio do Desenvolvimento Agrrio
MCD - Modelo de Crena Determinante
MSJ Morro de So Joo
UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura
OIT - Organizao Internacional do Trabalho
OSCIPS - Organizaes da sociedade civil de interesse pblico
ONGS - Organizaes no governamentais
OS - Organizaes sociais
OV - Otimismo para a Vida
PBQ - Programa Brasil Quilombola
PNUD - Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento
RTID - Relatrio Tcnico de Identificao e Delimitao do territrio
SEDUC - Secretaria de Estado da Educao e Cultura do Tocantins
SEPPIR - Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial
SOBRARE Sociedade Brasileira de Resilincia
SV - Sentido de Vida
TCC - Teoria Cognitivo Comportamental
UFPA - Universidade Federal do Par
UFT- Universidade Federal do Tocantins
SUMRIO
1 INTRODUO............................................................................................... 14
1.1 Procedimentos metodolgicos........................................................................ 18
1.2 Descrio do Campo....................................................................................... 22
1.3 Descrio do objeto de estudo........................................................................ 23
1.4 A estrutura do trabalho.................................................................................. 25
2 A GLOBALIZAO E A DINMICA ENTRE O GLOBAL E O
LOCAL: NOVOS CONDICIONAMENTOS SOCIAIS.............................
28
2.1 As descontinuidades e fragmentaes proporcionadas pela
modernidade....................................................................................................
29
2.2 O processo de globalizao e os novos condicionamentos sociais............... 34
2.3 Impactos do processo de globalizao sobre as identidades individuais e
coletivas...........................................................................................................
45
3 RESILINCIA E RECONHECIMENTO: UMA IMPORTANTE
RELAO NO PROCESSO DE SUPERAO DAS
ADVERSIDADES......................................................................................
49
3.1 Origem e desenvolvimento do conceito de Resilincia................................ 49
3.2 O conceito de reconhecimento por Honneth e Taylor................................. 64
3.3 A importncia da relao entre resilincia e reconhecimento para a
superao das adversidades e construo de identidades...........................
70
4 CULTURA E NEOCOMUNIDADES: AS COMUNIDADES
QUILOMBOLAS NUM CONTEXTO DE RECONSTRUO
IDENTITRIA...............................................................................................
72
4.1 A cultura como recurso e estratgias para manuteno da cultura: o
caso da comunidade quilombola Morro de So Joo..................................
74
4.2 Anlise dos resultados obtidos com o Quest_Resilincia............................ 106
5 CONSIDERAES FINAIS......................................................................... 123
REFERNCIAS.............................................................................................. 128
ANEXO A Quest_Resilincia...................................................................... 134
ANEXO B Relatrio individual do Quest_Resilincia SOBRARE......... 142
14
1 INTRODUO
A sociedade atual marcada por importantes transformaes sociais e econmicas
que, desde o final do sculo XX, vm alterando profundamente a lgica produtiva global.
Dentre estas transformaes, os processos transnacionais de reestruturao produtiva,
internacionalizao da economia e globalizao tm resultado em importantes
desdobramentos no processo de regulao, implicando na produo de novos
condicionamentos que atingem diretamente o comportamento social, tanto individualmente
quanto coletivamente, afetando o desenvolvimento, a interao com o meio e a manuteno
de identidade. A concepo conceitual de novos condicionamentos sociais deriva da
compreenso de que as determinaes sociais existentes na base das sociedades capitalistas -
em sua lgica de produo material e simblica - configuram novos processos de mediao
com a realidade mais ampla, estrutural, nos perodos de crise pelos quais essas sociedades
passaram, e passam atualmente, visando manuteno de sua hegemonia. (LOPES, 2006).
Com esses novos condicionamentos sociais, as comunidades tradicionais brasileiras
passaram a enfrentar novas reas de imprevisibilidade, o que provocou transformaes
importantes na organizao e no modo de vida das mesmas, colocando-as em situao de
vulnerabilidade. Este cenrio marcado por um conjunto de obstculos para as comunidades
tradicionais, uma vez que podem implicar desenraizamento, sofrimento e excluso.
Entretanto, observa-se que algumas comunidades apresentam uma maior capacidade de
enfrentamento das adversidades resultantes deste contexto atual, se tornando mais fortes que
antes. E isso possvel, em grande medida, quando os sujeitos se sentem reconhecidos em
suas capacidades e qualidades. Esta capacidade discutida no meio acadmico por meio do
conceito de resilincia social, que a capacidade que grupos ou comunidades tm de se
apropriar de recursos culturais e institucionais que existem em seus ambientes com o intuito
de enfrentar os desafios gerados pelos novos condicionamentos sociais da era neoliberal.
(HALL; LAMONT, 2013).
A circunstncia de indivduos e coletividades imersos em situaes de vulnerabilidade
constitui, nos dias atuais, um tema gerador de discusses e reflexes por parte de diversos
estudiosos de diferentes reas do conhecimento. Diante deste contexto, com o intuito de focar
nas coletividades, a presente pesquisa foi direcionada reflexo do processo de resilincia em
comunidades tradicionais sob a influncia dos novos condicionamentos sociais impostos pela
15
globalizao, tendo como objeto de estudo a comunidade quilombola Morro de So Joo1. A
abordagem se deu a partir dos conceitos de neocomunidades e reconhecimento. A
comunidade est localizada na poro leste do municpio de Santa Rosa do Tocantins, cerca
de 140 km de distncia da capital Palmas. Em 2006 foi reconhecida como comunidade
quilombola pelo governo do Estado e pela Fundao Cultural Palmares, recebendo sua
certificao no mesmo ano. Composta por aproximadamente 80 famlias que, juntas
contabilizam cerca de 300 habitantes2 entre jovens, adultos e crianas, a comunidade vive em
situao de vulnerabilidade social devido falta de efetividade na prestao de servios
bsicos de sade, educao e saneamento bsico, sendo tambm impactada diretamente pelo
contexto econmico e poltico atual.
A motivao para o desenvolvimento desta pesquisa se deu em funo da participao
no projeto criado por um grupo de pesquisadores voltados para a compreenso das
transformaes ocorridas nas comunidades tradicionais da regio amaznica. O objetivo do
projeto, que ainda est em andamento, estudar o desenvolvimento dessas comunidades
diante da srie de novos condicionantes e riscos que o processo de globalizao representa
para as mesmas. Com a pretenso de verificar a ocorrncia de usos da cultura enquanto
recurso (YDICE, 2006) e seus desdobramentos como fator de resilincia comunitria, a
pesquisa intitulada Resilincia e Desenvolvimento em comunidades tradicionais da
Amaznia, tendo como instituio de fomento o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientfico (CNPq), constituda por pesquisadores da Universidade Federal do Tocantins
(UFT), da Unisinos e da Universidade Federal do Par (UFPA).
O que se sabe que existem comunidades que conseguiram superar as adversidades
advindas dos novos condicionamentos sociais por meio da capacidade de serem resilientes
diante do processo, mas nem todas conseguem o mesmo resultado, o que favorece que essas
fiquem em condio significativa de vulnerabilidade e sofrimento, podendo levar a alteraes
importantes no seu modo de vida. Por motivao e interesse em entender o que muda, neste
contexto, para as comunidades tradicionais em geral, e para a comunidade estudada em
particular, questiona-se se diante das adversidades impostas pelos novos condicionamentos
sociais, tais como falta de integrao com a sociedade global, falta de reconhecimento e de
cumprimento de direitos, como por exemplo, a demarcao da terra, que afetam as prticas e
1 Doravante MSJ.
2 Conforme dados do IBGE (2010), porm na observao em loco se percebeu que residindo na comunidade tem
em torno de 100 pessoas, os demais ou moram em outras cidades vizinhas e frequentam constantemente a
comunidade por considerarem que ainda pertencem ao Morro, ou por trabalharem ou estudarem em outras
cidades do entorno passam apenas os finais de semana na comunidade.
16
saberes tradicionais, deixando-as em situao de vulnerabilidade, a comunidade MSJ
resiliente. E, se em situao de resilincia, quais so os elementos que contribuem para este
processo e para o fortalecimento e manuteno da identidade da comunidade em questo?
Assim, diante do contexto de vulnerabilidade social em que se encontram as
comunidades tradicionais no Brasil, o objetivo geral desta pesquisa foi identificar se a
comunidade quilombola Morro de So Joo pode ser considerada resiliente diante dos novos
condicionamentos sociais impostos pela globalizao. Como desdobramento, os pontos
especficos da investigao foram: a) identificar, em situao de existncia de resilincia, que
elementos contribuem para este processo no que diz respeito ao fortalecimento da
comunidade; b) verificar se ocorre o processo de reconhecimento da identidade cultural na
comunidade e em que medida isso um fator de superao coletiva; c) verificar se e como a
partir do fenmeno da neocomunidade, e do uso da cultura como recurso, a comunidade MSJ
reconstri seu territrio, seus saberes e prticas como estratgia poltica de legitimao e
manuteno de suas tradies, objetivando a preservao de sua identidade.
A comunidade quilombola MSJ, embora esteja margem da sociedade tocantinense,
vive em subordinao ao Estado e no deixa de estar inserida no contexto moderno de
globalizao. No entanto, o que se observa que na prtica os novos condicionantes impostos
por este processo fazem com que esta insero resulte em adversidades que alteram a vida em
comunidade. Neste sentido, a pertinncia da pesquisa se situa no fato de que preciso avaliar
se a comunidade em situao de vulnerabilidade social consegue enfrentar esta conjuntura de
maneira resiliente. Mas, por outro lado, tem havido a iniciativa do Estado em fomentar o
reconhecimento das tradies, incentivando o resgate e a preservao das comunidades
favorecendo a utilizao da cultura como uma forma de recurso.
As comunidades tradicionais possuem modos de agir, cultura, organizao, prtica e
saberes, pautado em princpios e costumes ancestrais. Entretanto, por influncia do atual
contexto de mudanas, muitas destas comunidades tm suas caratersticas alteradas de forma
significativa. Assim, para sobreviver e manter suas tradies, muitas vezes, a comunidade em
situao de vulnerabilidade se v obrigada a enfrentar o problema e criar condies de
superao, se tornando resiliente. H outro elemento que merece destaque: embora a realidade
seja de impactos diretos no modo de vida das comunidades, fruto deste cenrio moderno, o
que se percebe atualmente, a existncia de um fenmeno de estmulo recriao das
comunidades tradicionais, conceitualizado por Lifschitz (2011), como neocomunidade.
17
Cabe destacar, que por comunidade tradicional3 entendem-se povos ou comunidades
que possuem culturas, prticas, modos de vida e saberes tradicionais que diferem da cultura
predominante na sociedade e que se reconhecem como tal. Esses possuem um modo de vida
prprio no que se refere organizao social, ocupao e utilizao do territrio e dos
recursos naturais como forma de manuteno de sua cultura e conservao do meio ambiente.
Desse modo, so consideradas comunidades tradicionais os quilombolas, os indgenas, os
ribeirinhos, os extrativistas, os pescadores, alm de outros agrupamentos.
No que se refere comunidade quilombola, objeto deste trabalho, a primeira memria
que se costuma ter de uma realidade escravista, mas sabe-se que os quilombos no
pertencem somente a este passado. Estas comunidades no se encontram isoladas no tempo e
no espao, sem qualquer participao na estrutura social predominante; muito pelo contrrio,
muitas delas com base no direito de propriedade de suas terras e de reconhecimento da
condio de Quilombola promulgada pela Constituio Federal brasileira desde 1988,
mantm-se vivas e ativas na luta por este direito de participao e reconhecimento tanto de
maneira exgena (por aqueles que so de fora da comunidade) quanto de maneira endgena
(pelos prprios membros da comunidade). Muitas comunidades ainda lutam pelo
reconhecimento dos direitos fundirios e pela regularizao de suas terras, fatores
importantssimos que, em praticamente todos os casos, so a garantia de sobrevivncia fsica
das populaes diferenciadas.
Embora isto seja um fato em expanso no Brasil, ainda h muita dificuldade para se
encontrar um quadro completo com dados sobre a realidade das comunidades de
remanescentes quilombolas. O que se encontra geralmente so informaes bastante dispersas
e com pouca sistematizao que, na maioria das vezes, se refere a uma parte das comunidades
que existem no territrio brasileiro, em grande medida, as que esto situadas nas principais
regies do pas ou so as mais conhecidas. Neste sentido, uma pesquisa de campo que
possibilitasse uma maior compreenso acerca da situao em que se encontra a comunidade
MSJ, principalmente no que se refere ao enfrentamento das adversidades e vulnerabilidades e
a capacidade de ser resiliente, constituiu um desafio e um exerccio importante. Espera-se que
por meio da socializao deste trabalho, seja possvel contribuir com a gerao de dados e
informaes que auxiliem na elaborao de polticas pblicas voltadas para a comunidade, no
que tange a superao da situao de vulnerabilidade social.
3 Cf Decreto Federal n. 6.040 de 7 de fevereiro de 2000.
18
1.1 Procedimentos metodolgicos
Para que haja uma investigao cientfica necessrio que um conjunto de
procedimentos intelectuais e tcnicos seja realizado com o objetivo de atingir o mtodo
prprio da cincia, chamado de mtodo cientfico; o qual consiste em um conjunto de
atividades sistemticas e racionais que permite alcanar objetivos, traando o caminho a ser
seguido, verificando erros e auxiliando as decises do pesquisador durante a investigao.
(MARCONI; LAKATOS, 2010). Segundo as autoras, pesquisa um procedimento formal e
reflexivo que necessita de um tratamento cientfico e se constitui em um caminho para se
conhecer uma realidade ou descobrir verdades. Para Silva e Menezes (2001), a pesquisa um
conjunto de aes propostas com o intuito de encontrar solues para determinado problema,
que tenha por base procedimentos racionais e sistemticos. Em outras palavras, quando se tem
um problema, mas no tem informaes para solucion-lo necessrio que seja realizada uma
pesquisa.
Nesse sentido, o papel do pesquisador imprescindvel, e, portanto, este deve estar
aberto e atento a todas as manifestaes que observa, sem adiantar as explicaes, nem se
conduzir pelas aparncias imediatas para que possa alcanar uma compreenso global dos
fenmenos (CHIZZOTTI, 2009). No possvel uma pesquisa ter sucesso se o pesquisador
no consegue se perceber, por um lado, como um ente transformador da realidade e por outro,
como um ser social consciente deste papel, da interferncia de seus valores e suas opinies no
momento em que for preciso analisar e interpretar os problemas sociais. (SAYAGO, 1999).
Diante disso, enquanto instrumento cientfico, esta pesquisa social, porque volta-se para o
estudo do comportamento humano e da sociedade. Possui finalidade aplicada, em relao a
sua inteno de descortinar verdades e interesses locais, ocorrendo por meio da aplicao de
teorias s necessidades humanas, buscando a melhoria na qualidade de vida da populao
(SILVA; MENEZES, 2001).
Com relao sua natureza a pesquisa qualitativa, a qual permite analisar as
experincias de grupos sociais que podem estar relacionadas a prticas cotidianas ou histrias
biogrficas (FLICK, 2009). Esta abordagem se fundamenta na ideia de que h uma relao
dinmica entre o mundo real e o observador, uma relao de interdependncia entre
pesquisador e objeto. Neste tipo de pesquisa o observador integra o processo de conhecimento
e interpreta os fenmenos, investigando e atribuindo a eles um significado (CHIZZOTTI,
2009). A pesquisa qualitativa parte da noo da construo social das realidades, se
19
interessando pela perspectiva dos indivduos pesquisados, tanto em relao s suas prticas
dirias quanto do seu conhecimento acerca do seu cotidiano, no que se refere questo em
estudo. (FLICK, 2009). Para tal, so fundamentais os relatos e histrias do dia a dia,
observao e registro da prtica de interao e comunicao, anlise documental, entre outros.
Desse modo, foi realizada uma pesquisa de campo em que se buscou em certa medida
utilizar tcnicas de etnografia e de observao participante como suporte pesquisa. Na
pesquisa de campo, o objeto de estudo ou fonte de estudo abordado em seu prprio
ambiente, desse modo, a coleta de dados ocorre em condies naturais em que os fenmenos
acontecem sendo observados diretamente (SEVERINO, 2007). A etnografia se refere a um
estudo descritivo das sociedades humanas de pequena escala, que requer alguma
generalizao e comparao implcita ou explcita acerca dos aspectos culturais. Tem como
objetivo combinar o ponto de vista do observador interno com o externo e descrever e
interpretar a cultura (MARCONI; LAKATOS, 2010). A etnografia uma ferramenta
importante pesquisa, j que possibilita ao pesquisador detectar os problemas sociais e as
diferenas culturais, permitindo diagnosticar, reconhecer e avaliar problemas especficos que
as comunidades enfrentam (SAYAGO, 1999).
Assim, o trabalho de campo consiste em uma experincia de vida, de convivncia e
troca constante com o grupo estudado. A observao participante uma tcnica que favorece
esta experincia, pois conjuga aproximao e distanciamento, no qual o pesquisador tenta ser
o mais objetivo possvel, porm, buscando estabelecer laos de colaborao e de
envolvimento dentro de um limite que no prejudique o objetivo final. Nesta pesquisa,
especificamente, o envolvimento e a observao se deram por meio da participao na rotina,
nas cerimnias, nos festejos que aconteceram durante a permanncia na comunidade, ao
mesmo tempo em que foram realizadas observaes e entrevistas com os moradores.
O pesquisador deve deter seriedade e compromisso no trato com a pesquisa e com o
seu objeto, para no deixar que ocorra manipulao dos dados coletados e falsa concluso. E,
neste caso, ambas as partes tm que ter conscincia do trabalho que est sendo realizado. A
experincia de campo para ser bem-sucedida depende de vrios fatores, como a biografia do
pesquisador, a escolha terica, o contexto scio histrico mais amplo e tambm das
imprevisveis situaes que ocorrem no dia a dia e que interferem na relao entre
pesquisador e pesquisado (SAYAGO, 1999).
O mtodo de abordagem utilizado para a realizao da pesquisa foi o indutivo. A
induo um processo mental por meio do qual o pesquisador parte de dados particulares,
20
que foram constatados previamente, para se chegar o mais prximo possvel de concluses
verdadeiras que no esto contidas nas partes examinadas, com o intuito de ampliar o alcance
dos conhecimentos. Desse modo, a utilizao do mtodo indutivo tem como objetivo levar a
concluses cujo contedo muito mais amplo que as premissas que foram utilizadas como
base (MARCONI; LAKATOS, 2010). De acordo com as autoras, o mtodo indutivo embora
se baseie em premissas da mesma forma que o mtodo dedutivo, o resultado final, ou seja, a
concluso que se pode chegar com os dois mtodos diferente, j que no dedutivo, premissas
verdadeiras levam inevitavelmente a concluses verdadeiras, no indutivo levam a concluses
provveis.
Em relao aos objetivos, trata-se de uma pesquisa exploratria, porque realizou uma
primeira aproximao com o tema, visando conhecer os fatos e fenmenos proporcionando
maior familiaridade com o problema. Buscou recuperar as informaes disponveis e tornar o
problema mais explcito. De maneira geral, assume a forma de pesquisas bibliogrficas e
estudo de caso (SILVA; MENEZES, 2001). No caso especfico foi realizado um
levantamento bibliogrfico e entrevistas com os moradores. Possui tambm uma dimenso
descritiva e foi utilizada no sentido de promover maior reflexo em relao ao tema. A
pesquisa descritiva tem como objetivo descrever as caractersticas do objeto estudado, para
isso utiliza tcnicas padronizadas de coletas de dados como observao sistemtica e
questionrio sob a forma de levantamento das caractersticas conhecidas ou no (SILVA;
MENEZES, 2001).
Desse modo, em relao aos procedimentos metodolgicos, trata-se de uma pesquisa
de campo que se utiliza do estudo de caso como um procedimento para a coleta de dados. A
pesquisa de campo visa reunir e organizar informaes que comprovem a anlise realizada
(CHIZZOTTI, 2009). O estudo de caso, segundo Yin (1989) um fenmeno contemporneo
inserido em uma realidade contextualizada, para o qual so utilizadas diversas fontes de
evidncia. De acordo com Severino (2007), o estudo de caso uma pesquisa que se concentra
em estudar um caso particular, que considerado representativo de um todo, que possibilite
fundamentar um julgamento fidedigno e tambm propor uma futura interveno (SEVERINO,
2007, CHIZZOTTI, 2009).
Como procedimentos tcnicos de coleta de dados utilizou-se a pesquisa documental
que compreende a verificao de documentos de fontes primrias, ou seja, documentos
escritos ou no; e a pesquisa bibliogrfica que compreende fontes secundrias como livros,
revistas, jornais, e outras formas. Marconi e Lakatos (2010) as denominam de documentao
21
indireta. E tambm se utilizou a entrevista e a histria de vida que se referem documentao
direta (MARCONI; LAKATOS, 2010).
A entrevista uma conversao que ocorre face a face entre entrevistado e
entrevistador, de maneira metdica, visando coletar informaes importantes para a pesquisa.
O tipo de entrevista utilizado foi o despadronizado ou no estruturado, de modalidade no
dirigida. Neste tipo o pesquisador fica livre para conduzir a entrevista na direo que julgar
adequada, como forma de explorar mais uma questo especfica, podendo ocorrer dentro de
uma conversao informal, dando tambm ao entrevistado a liberdade de expressar suas
opinies e sentimentos (MARCONI; LAKATOS, 2010). J a histria de vida foi utilizada
para a obteno de dados relativos experincia dos moradores e que fossem importantes
para a pesquisa.
Outra tcnica utilizada foi a escala Quest_Resilincia, desenvolvida pelo
pesquisador George Barbosa em 2009, estando, atualmente, a cargo da Sociedade Brasileira
de Resilincia (SOBRARE) os direitos de cesso de todas as verses disponveis. Esta escala
se refere a um mapeamento das crenas que organizam o comportamento resiliente, com a
finalidade de mapear a intensidade destas crenas. Contribui para a identificao e
compreenso da forma como se acredita que os fatos e situaes adversas ocorrem na vida
(BARBOSA, 2010; 2014). De acordo com Barbosa (2014), o instrumento explicita o modo
como os sistemas de crenas vinculados com a resilincia esto estruturados, e de como essas
crenas organizam a maneira como algum se posiciona face aos fatores de proteo e risco
presentes no ambiente. Por meio desta escala possvel, em determinadas situaes,
compreender o tipo de superao de uma pessoa ou grupo, quando estes se encontram em
situao de adversidade. O instrumento apresentado sob a forma de categorias em uma
tabela com comentrios, traduzindo a intensidade das crenas que organizam as atitudes e de
como se acredita que pode superar as adversidades. dividido em duas partes que se
completam: a primeira parte traz o levantamento scio demogrfico no qual h um breve
mapeamento do perfil e histrico do respondente; j a segunda parte do Quest_Resilincia
traz as 72 afirmaes que expressam o contedo das crenas retiradas da literatura
especializada, solicitando que o respondente apresente uma intensidade em suas respostas
(BARBOSA, 2010; 2104). Para o objeto em questo se percebeu que a escala no foi eficiente
para aferir o que se props para esta pesquisa, mas trouxe elementos importantes para os
avanos da temtica que podem ser explorados em trabalhos futuros no que concernem os
valores e crenas como elementos importantes estruturao do processo de resilincia.
22
Em relao amostra, o tempo disponvel para a realizao desta pesquisa no
permitiu a participao de todos os moradores da comunidade, desse modo 10 foram
entrevistados e 10 responderam ao questionrio. A entrevista foi realizada com cinco
moradores idosos, que so os netos do Sr.Vitor de Sena Ferreira, fundador do Morro de So
Joo, e cinco bisnetos e tataranetos. J o questionrio foi aplicado entre os moradores com
faixa etria de 16 a 70 anos. A deciso por esta amostragem se deu pelo conhecimento que
possuem sobre a histria da comunidade e a participao na luta pela manuteno da cultura,
o que facilitou a compreenso acerca da identidade e do modo de vida dos moradores. A
escolha dos respondentes se deu aleatoriamente dentre os que possuem vnculos diretos com a
comunidade e aceitaram participar da pesquisa.
1.2 Descrio do campo
Nesta pesquisa a visita campo ocorreu em quatro momentos, a primeira ocorreu em
maro de 2014 como forma de primeiro contato e solicitao de autorizao para que a
pesquisa pudesse ser realizada na comunidade. Neste momento a aproximao se deu por
intermediao de uma das moradas da comunidade chamada Sandra Eliene, aluna do curso de
Histria da UFT, que gentilmente se disps a levar a pesquisadora at o local para as devidas
apresentaes, e agendamento da prxima visita. O segundo contato ocorreu em agosto de
2014, ocasio em que a permanncia na comunidade foi de quatro dias. Nesse momento foi
possvel visitar boa parte das residncias, realizando entrevistas com os mais idosos e
conversas informais com alguns moradores que trabalham como funcionrios pblicos na
prpria comunidade, como por exemplo, os servidores da escola. Nesta ocasio se ressaltou a
importncia da pesquisa e o interesse em conhecer a histria e o modo de vida dos mesmos. A
segunda ida a campo ocorreu em novembro de 2014, momento que foi realizada na
comunidade a festa da Congada. Nesta situao a permanncia da pesquisadora no local foi de
trs dias. Fato que possibilitou a observao antes e durante a realizao da festa, bem como
se aproveitou a oportunidade para entrevistar mais alguns moradores. No ms de maro de
2015 foi realizada mais uma visita com a permanncia de trs dias no local, em que foram
realizadas mais algumas entrevistas e tambm a aplicao do questionrio a alguns moradores
da faixa etria de 50 a 70 anos. Em abril de 2015 a aplicao do questionrio foi finalizada
com a participao dos mais jovens. Em todas as oportunidades, a hospedagem ocorreu na
residncia da D. Maria e Sr. Oniffe, casal que prontamente abriu as portas de sua casa e se
23
disps a dar toda a ateno necessria para a realizao da pesquisa. Fato que facilitou o
contato e a realizao do trabalho.
As entrevistas foram realizadas com dez pessoas de 52 a 92 anos, destes cinco so
idosos aposentados, sendo trs mulheres e dois homens. Um dos homens, com 84 anos ex-
lavrador e o outro com 78 anos, foi vereador no municpio de Santa Rosa por dois mandatos
nos perodos de 1993 a 1996 e de 1997 a 2000 e atualmente, mesmo aposentado ainda executa
algumas atividades como lavrador. As trs mulheres todas so aposentadas e trabalharam
durante toda a vida com a lavoura e os afazeres domsticos, a mais nova tem 70 anos e a mais
velha tem 92 anos. Os outros cinco entrevistados tm de 28 a 69 anos, desses uma
universitria e professora de danas tradicionais, uma lavradora e dona de casa, um
lavrador e funcionrio pblico e os demais trabalham como lavradores. Dos questionrios
aplicados cinco foram destinados s pessoas de 50 a 70 anos, sendo que trs so lavradores,
um lavrador e funcionrio pblico, com o cargo de vigia na escola da comunidade, e uma
senhora costureira e dona de casa. Os outros cinco questionrios foram aplicados aos jovens
de 19 a 28 anos sendo que destes trs so estudantes universitrios e um tcnico de
informtica e o outro trabalha em fbrica.
Cabe ressaltar que a receptividade da comunidade foi muito boa, no entanto, em
alguns casos se percebeu, no incio da entrevista, certa resistncia dos moradores em se abrir.
Isso ocorreu principalmente entre os mais idosos, mas aps algum tempo de conversa
informal, a entrevista pode ser realizada com mais confiana. Em relao aos questionrios,
os moradores que foram convidados a participar da pesquisa aceitaram de pronto, com
exceo de alguns membros da associao da comunidade que apresentaram negativa,
justificando esta pela falta de tempo para poder responder. Os que demonstraram maior
interesse em responder foram os mais jovens, se dispondo inclusive a conversar por telefone
quando fosse o caso.
1.3 Descrio do objeto de estudo
Com vistas a uma melhor compreenso acerca da comunidade MSJ, julga-se
necessria uma descrio mais detalhada sobre sua historiografia. No espao onde hoje o
municpio de Santa Rosa, estava situada a Fazenda Engenho que existiu por quase um sculo
como propriedade rural do Padre Jos Bernardino de Sena Ferreira. O religioso e sua famlia
se fixaram na regio por volta de 1857 trazendo consigo vrios escravos. Uma de suas filhas
24
chamada Sinhauta, pediu ao pai que lhe desse uma imagem de Santa Rosa, santa de sua
devoo, que foi colocada em uma capela construda, pelo coronel Marcolino Nunes da Silva,
na Casa Grande em 1907, onde residia a famlia. Este fato originou o nome do municpio
(IBGE, 2014).
O at ento povoado comeou a crescer por iniciativa dos prprios moradores da
regio que se reuniam para confraternizaes e foram se fixando no local. A criao do
Distrito de Santa Rosa se deu pela Lei n 14, de 27 de setembro de 1962, subordinado ao
municpio de Natividade. De 31 de dezembro de 1963 at 1 de julho 1983 o distrito figurou
em diviso territorial em Natividade. Em 1 de janeiro de 1988 foi emancipado politicamente,
tendo sua instalao ocorrida em 1 de junho de 1989. Com a diviso territorial de 1991 foi
constitudo do distrito sede, tendo mais dois distritos anexados. Foram eles o distrito de
Cangas criado pela lei municipal n 056 de 12 de novembro de 1993 e o distrito de Morro do
So Joo, criado pela lei n 057 de 12 de novembro de 1993 (IBGE, 2014).
Segundo relatos dos moradores da comunidade MSJ, esta existe h mais de 200 anos e
formada pelos descendentes do senhor Victor de Sena Ferreira, fruto do relacionamento
entre a escrava Pelnia e o Sr. Bernardino de Sena Ferreira, na poca proco da diocese de
Gois Velho, comarca de Natividade, e dono de grandes propriedades de terras naquela
regio. Dentre essas terras havia a fazenda Roma situada prximo confluncia do Rio
Manuel Alves, terra que o padre doou ao seu filho Victor. De acordo com os depoimentos,
essa poro de terra era de aproximadamente quatro lguas ou 1800 alqueires. Aps as vrias
divises de terra no decorrer das geraes, muitas partes foram vendidas para pessoas de fora
da comunidade, fato que atraiu para o entorno do Morro fazendeiros que iniciaram a criao
de gado e nos ltimos anos a produo de soja. Mas, as terras que foram mantidas pelos
descendentes do Sr. Victor so utilizadas hoje para a agricultura de subsistncia e criao de
gado, prtica conservada e mantida desde seus antepassados escravos. Cabe destacar que at a
presente data no foi realizada a demarcao oficial das terras, fato que, como afirmam os
prprios moradores, se torna uma questo de extrema urgncia.
Conforme relatos, a chegada dos fazendeiros s proximidades, tem consequncias que
resultam em contaminao da gua do crrego pelo uso de agrotxicos e tambm o avano de
animais como ona nas reas prximas comunidade devido ao desmatamento da rea nativa.
A ona se tornou uma grande preocupao aos moradores, pois o animal tem se alimentado
das poucas cabeas de gado que conseguem manter para a sua sobrevivncia. Sem falar no
medo de que o animal ataque tambm as pessoas. H outra questo que se remete aos
25
fazendeiros que gera opinies controvrsias entre os moradores, embora sejam uma fonte de
renda por oferecerem trabalho, alguns moradores consideram positivo terem trabalho nas
fazendas, j outros, dizem que os fazendeiros os exploram, inclusive, um deles afirmou que
trabalhou por vrios meses e recebeu por apenas um.
Com relao manuteno da identidade cultural, conforme relata Simone (28 anos,
universitria e professora de danas tradicionais)4, os membros da comunidade se esforam
para manter vivas as manifestaes culturais tpicas que foram trazidas por seus ancestrais
negros para a regio. Ressalta que embora tenham sofrido modificaes ao longo dos anos,
por influncia do prprio meio, os traos essenciais continuam preservados. De acordo com
Simone, a comunidade preserva sua cultura afro, principalmente por meio das crenas,
costumes, capoeira e festejos tradicionais que acontecem anualmente. Destaca-se, o festejo
em homenagem s Almas Santas Benditas que acontece no dia 02 de novembro, todos os
anos, com a realizao da congada. Esta uma celebrao que envolve grande parte dos
membros da comunidade, que se unem em prol da realizao do festejo e manuteno de sua
cultura. Outra celebrao importante para a comunidade a Festa de Santana, que ocorre no
ms de junho.
Ainda de acordo com a mesma informante, a comunidade busca manter seu modo de
vida e seu processo de produo atrelado aos mesmos parmetros utilizados pelos seus
antepassados escravos, mantendo suas moradias com vrias caractersticas das construes
feitas no perodo colonial, como as de adobe, com telhas coloniais, e a maioria delas possui
uma espcie de barraco, uns de telha outros de pau a pique, no fundo do quintal, espao
usado como cozinha ou rea de servio. No entanto, h um contraste entre estas caractersticas
mais rsticas e as inovaes modernas como energia eltrica, televiso, celular, computador,
entre outras. Afirma Simone que os medidores de energia incorporados nas paredes fazem
com que as casas percam um pouco da sua originalidade, mas no tem como ser diferente,
pois precisam da energia.
1.4 A estrutura do trabalho
A discusso que estrutura este trabalho est organizada em quatro momentos. No
primeiro, optou-se pela discusso da globalizao e a dinmica que este processo estabelece
4 Todos os nomes dos moradores citados no decorrer do trabalho so fictcios, isso foi feito atendendo a
solicitao dos mesmos de preservar seu anonimato. Mas a idade, sexo e profisso foram mantidos como forma
de demonstrar seus lugares na sociedade.
26
entre o local e o global, demonstrando como os novos condicionamentos sociais postos em
prtica tm impactos sobre as identidades individuais e coletivas das comunidades
tradicionais, alterando o seu modo de vida e influenciando a manuteno de suas prticas e
saberes. Para isso, foram utilizados tericos como Octavio Ianni, Manuel Castells, Anthony
Giddens e Stuart Hall. No segundo momento foram abordados os conceitos de resilincia e
reconhecimento, a partir das perspectivas de Elbio Nestor Ojeda, Edith Grotberg e Francisca
Infante sobre resilincia e Axel Honneth e Charles Taylor no debate sobre reconhecimento.
Neste ponto apresentou-se o desenvolvimento dos conceitos e demonstrou-se que as
caractersticas fundamentais da resilincia comunitria defendida por Ojeda (2005) podem ser
relacionadas com os trs pilares do reconhecimento defendido por Honneth (2003),
comprovando que o reconhecimento um importante instrumento no processo de superao
da adversidade.
No momento seguinte, o conceito de cultura foi discutido a partir da perspectiva de
Bronislaw Malinowski, Edward Taylor, Roque Laraia, Levi Strauss e Clifford Geertz. Em
seguida foi debatido o conceito de cultura como recurso utilizando como suporte terico
George Ydice, o qual apresenta a maneira como a cultura tem se tornado nas ltimas dcadas
em um conveniente instrumento de recurso em prol do desenvolvimento econmico. Diante
deste uso da cultura como recurso se percebe tambm que tem havido uma nova forma de
lidar com as comunidades tradicionais, incentivando-se o resgate das tradies. Esta ao
apresentada a partir de Javier Lifschitz que a denomina de fenmeno das neocomunidades,
com o intuito de demonstrar essa nova abordagem sobre o conceito de comunidade e a
recriao da tradio promovida pelo Estado, por meio de polticas de reconhecimentos de
saberes tradicionais. Apresentou-se tambm nesta parte do texto uma abordagem sobre as
comunidades quilombolas num contexto de reconstruo identitria. Por fim, no ltimo
momento de discusso, ponto alto do trabalho foi realizada a anlise dos dados coletados na
comunidade a partir dos conceitos de cultura como recurso, resilincia, reconhecimento e
neocomunidades.
Como resultado alcanado chegou-se concluso de que a comunidade MSJ vive em
situao de vulnerabilidade social, com falta de servios bsicos que so imprescindveis para
a qualidade de vida e o desenvolvimento humano. Outro problema detectado foi a falta de
efetividade do Estado em cumprir direitos garantidos por lei aos quilombolas, como a
demarcao do territrio, elemento to importante para a manuteno da identidade e
reconhecimento da cultura. Avaliou-se que o reconhecimento por meio da interao coletiva
27
um fator de promoo da resilincia. Percebeu-se, por meio dos resultados obtidos com o
Quest_Resilincia, que os sujeitos no plano individual no so plenamente resilientes, mas no
plano coletivo apresentam indcios de superao das adversidades que so impulsionados por
meio do reconhecimento da tradio e do sentimento de orgulho de pertencimento
comunidade, o que demonstra consistente resilincia. Essa concluso foi possvel ao
demonstrar que o Quest_Resilincia, embora consiga mensurar a resilincia em mbito
individual e em equipes, como se prope, e seja um importante instrumento para se mensurar
a resilincia comunitria, ainda insuficiente no mbito das comunidades, que abrange
elementos tradicionais, os quais diferem da cultura predominante, e precisam ser mensurados
em suas particularidades.
28
2 A GLOBALIZAO E A DINMICA ENTRE O GLOBAL E O LOCAL: NOVOS CONDICIONAMENTOS SOCIAIS
A globalizao um processo que se destaca no contexto atual, devido ao
fortalecimento e expanso que tem adquirido no sculo XXI. Com este fenmeno o mundo
deixou de ser um conglomerado de naes e sociedades nacionais com suas relaes de
interdependncia para se tornar em grande medida uma sociedade global, fato que
proporcionou uma mudana profunda na organizao social, poltica e cultural das
sociedades. Novos condicionamentos sociais foram postos em prtica, forando os
pesquisadores a reflexes a partir do conceito de sociedade globalizada. Como destacado no
inicio do texto, Lopes (2006) afirma que os novos condicionamentos sociais so as
determinaes sociais existentes na base das sociedades capitalistas que configuram novos
processos de mediao com a realidade social mais ampla, estrutural, nos perodos de crise
pelos quais essas sociedades passaram, e passam atualmente, visando manuteno de sua
hegemonia. Desse modo, no mais possvel o estudo de uma sociedade sem considerar a
influncia da globalizao em todos os aspectos de sua organizao e o resultado desta
dinmica nas demandas das comunidades e nas mudanas das identidades coletiva e
individual.
Como afirma Octavio Ianni (1994), evidente que no cenrio nacional, aspectos
particulares dos indivduos, grupos, movimentos sociais, lngua, cultura, poltica, mercado,
etc., continuam vigentes com sua fora original. No entanto, simultaneamente, a sociedade
nacional se articula de maneira dinmica e contraditria com as configuraes e movimentos
da globalizao. Todavia, antes de se abordar sobre a globalizao e seus impactos,
necessrio o esforo para compreender o contexto scio histrico atual que a envolve, nesse
sentido, necessrio discutir aqui o que vem a ser modernidade, bem como suas
consequncias e contradies.
Cabe destacar, acerca do que venha a ser modernidade, que h diferentes perspectivas
e interpretaes que tornam o exerccio mais difcil e complexo, havendo inclusive muitas
controvrsias sobre o nome que se deve dar a este momento histrico atual. H aqueles que
defendem que o momento atual considerado como ps-modernidade (HARVEY, 2003;
HALL, 2003), j outros acreditam que modernidade tardia (GIDDENS, 1991, 2002).
Inclusive, h aqueles que ainda insistem em denominar este perodo de modernidade,
alegando no ter havido ainda uma ruptura significativa que o alterasse (GIDDENS, 2002).
Mas, mesmo quem defende esta ideia no deixa de reconhecer que houve mudanas
29
importantes a partir da segunda metade do sculo XX, pois, o sujeito que era unificado e
centrado passou a ser descontinuado e desencaixado (GIDDENS, 1991, 2002), encontrando-se
cada vez mais rompido e fragmentado (HARVEY, 2003). O entendimento acerca desta
temtica requer um enfoque mais detido, por esse motivo, optou-se pela abordagem das
teorias de Anthony Giddens e David Harvey, que possuem interpretaes distintas e
importantes sobre o assunto, que sero apresentadas separadamente, iniciando com a
perspectiva de Giddens e posteriormente a de Harvey.
2.1 As descontinuidades e fragmentaes proporcionadas pela modernidade
Anthony Giddens (2002) discute sobre as descontinuidades que separam as
instituies sociais modernas das ordens sociais tradicionais e utiliza o termo modernidade
para se referir s instituies e modos de comportamento que foram estabelecidos pela
primeira vez na Europa aps o feudalismo, porm, ressalta que seus impactos se tornaram
mundiais no sculo XX. Em outra obra, o autor define modernidade como [...] estilo,
costume de vida ou organizao social que emergiram na Europa a partir do sculo XVII e
que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influncia. (GIDDENS,
1991, p. 11). Afirma que a modernidade at pode ser considerada aproximadamente como
equivalente ao mundo industrializado, entretanto, no se pode desconsiderar que esta era
possui vrios eixos institucionais, do qual o industrialismo um deles. O industrialismo se
refere s relaes sociais que esto implicadas no uso generalizado da fora material e do
maquinrio nos processos de produo. Outro eixo destacado pelo autor o capitalismo, o
qual se refere a um sistema de produo de mercadorias que envolvem mercados competitivos
de produtos e mercantilizao de fora de trabalho. Alm destas duas dimenses, h tambm
segundo Giddens (2002), as instituies de vigilncia que compreendem a base do
crescimento macio da fora organizacional associado ao surgimento da vida social moderna;
ou seja, o controle e a superviso de populaes submissas. Como aponta o autor, para
utilizar os termos de Foucault, uma espcie de superviso visvel, ou o uso da informao
para coordenar as atividades sociais.
Giddens (2002) ressalta que a modernidade produz formas sociais distintas, entre elas
o Estado-nao, a qual se constitui em uma entidade sociopoltica que se desenvolve como
parte de um sistema maior de Estados-naes, que, no contexto atual, atingiu um estgio
global contrastando com a maioria dos sistemas tradicionais. Os Estados modernos se
30
configuram como sistemas reflexivamente monitorados, que seguem polticas e planos que
so coordenados em uma escala geopoltica. Assim, destaca que uma das caractersticas mais
gerais da modernidade justamente a ascenso da organizao. Desse modo, as organizaes
modernas so caracterizadas pelo monitoramento reflexivo que elas permitem e implicam,
possibilitando que haja um controle regular das relaes sociais dentro de espao e tempo
indeterminado.
Diante dessas caratersticas, [...] em vrios aspectos fundamentais, as instituies
modernas apresentam certas descontinuidades com as culturas e modos de vida pr-
modernos. (GIDDENS, 2002, p. 22). Em vrios momentos histricos ocorreu a transio de
uma sociedade para outra, proporcionando as descontinuidades. Mas, as transformaes que
ocorrem na modernidade so mais profundas que as mudanas caractersticas de perodos
precedentes; tanto em matria de extenso, pois suas formas de interconexo social cobrem o
globo, quanto em inteno, pois vieram a alterar caractersticas ntimas e pessoais da nossa
existncia cotidiana (GIDDENS, 1991). Conforme Giddens (1991), no d para negar que
entre o tradicional e o moderno existem continuidades, e nenhum dos dois formam um todo
parte, mas as mudanas que ocorreram foram to marcantes, to impactantes, que aquilo que
se acredita conhecer se reduz, ou pelo menos se remete a perodos precedentes mais recentes
na tentativa de interpret-los.
Diante disso, conforme destaca o autor, diversas so as caractersticas que envolvem
as descontinuidades responsveis pela separao entre instituies sociais modernas e as
ordens sociais tradicionais. Entre elas est o ritmo de mudana social, que posto em
movimento pela era moderna de maneira muito mais rpida que nos sistemas tradicionais. So
maiores tambm a amplitude e a profundidade dos seus impactos sobre as prticas sociais e
sobre os modos de comportamento. Na comunidade MSJ, essa influncia evidente,
conforme relatos a gerao mais velha de moradores que compem o grupo nascia, crescia e
morria dentro da comunidade utilizando para sua sobrevivncia o que tiravam da terra e de
seus esforos dentro deste espao. A gua era limpa e utilizada do crrego ou de cacimbas e
poos que ficavam dentro da comunidade. Atualmente isso j no mais realidade, pois
utilizam gua de um poo providenciado pela prefeitura, que distribui para todos os
moradores, porm com qualidade ruim, a gua salobra5, fato que, segundo os relatos, tem
influenciado no aumento do nmero de hipertensos no local, inclusive crianas.
5 Salobra significa [...] 1 que tem certo sabor de sal 2 que tem em dissoluo alguns sais ou substncias que a
tornam desagradvel ao paladar (diz-se de gua) 3 [...] a base sal [...] (HOUAISS, 2004, p. 2502). Segundo a
31
Outro elemento que foi relatado, que os moradores mais velhos, quando estavam em
fase escolar, utilizavam somente os servios educacionais da escola situada na prpria
comunidade, que atendia inclusive crianas das fazendas vizinhas. A vida acontecia
majoritariamente em mbito local, sem grandes impactos da dinmica externa, inclusive a
maioria dos casamentos se dava entre parentes, mais especificamente entre primos.
Atualmente algumas diferenas podem ser notadas: a maioria das crianas em fase escolar
precisa ir para Santa Rosa para concluir o ensino bsico; os jovens esto buscando a formao
profissional, para isso saem da comunidade e utilizam os servios de instituies educacionais
modernas como a universidade; e os casamentos j ocorrem com muita frequncia, no
exclusivamente, com pessoas de fora da comunidade; o uso de tecnologias tem se tornado
cada vez mais constante entre os moradores. Estas alteraes demonstram como as influncias
globais tem impactado o modo de vida local.
Uma segunda caracterstica o escopo da mudana, no qual ondas de transformao
social vo penetrando virtualmente todo o globo. Uma terceira descontinuidade se refere
natureza intrnseca das instituies modernas. Algumas instituies nem se encontram em
perodos histricos precedentes, como o caso do sistema poltico do estado-nao; outras
possuem uma continuidade aparente com ordens sociais pr-existentes, como o caso da
cidade (GIDDENS, 1991).
Para Giddens (2002), uma caracterstica marcante da modernidade o dinamismo.
Cada cultura pr-moderna desenvolveu sua forma de clculo do tempo e de ordenamento
espacial, mas nas sociedades modernas, vivemos em um mundo no qual o sistema de tempo
universal e as zonas de tempo so globalmente padronizadas. Mas, isso no significa que o
tempo e o espao esto alheios organizao social humana, pelo contrrio, a organizao
social moderna exige uma coordenao precisa das aes entre os homens que esto
fisicamente distantes, ou seja, o quando dessas aes est diretamente ligado ao onde
(GIDDENS, 2002). Em outras palavras, esta separao [...] a condio para a articulao
das relaes sociais ao longo de amplos intervalos de espao-tempo, incluindo sistemas
globais. (GIDDENS, 2002, p. 26). Para o autor, a separao entre tempo e espao condio
importante para o processo de desencaixe das instituies sociais.
Os mecanismos de desencaixe das instituies sociais se referem ao segundo elemento
discutido pelo autor. Trata-se de um elemento essencial da natureza e do impacto das
instituies modernas, o deslocamento das relaes sociais de seus contextos locais e sua
Organizao Mundial de Sade (OMS) a ingesto de sal em excesso pode elevar o risco de doenas cardacas,
como hipertenso arterial e derrames cerebrais.
32
rearticulao por meio das partes indeterminadas do espao-tempo. Tais mecanismos
consistem em dois tipos, fichas simblicas e sistemas especializados, que em conjunto
formam o que Giddens (2002) chama de sistemas abstratos. As fichas simblicas constituem
meios de troca, com valor padro, que so intercambiveis em diversos contextos: o dinheiro
um exemplo. O segundo denominado de sistemas especializados, que dispondo de modos
de conhecimento tcnico possuem validade independentemente dos praticantes e clientes que
fazem uso deles. Tais sistemas penetram em diversos aspectos da vida social moderna e
podem ser exemplificados desde os alimentos que comemos s casas que habitamos ou os
transportes que usamos. So exemplos tambm os mdicos, cientistas, os tcnicos,
engenheiros, etc. Os mecanismos de desencaixe separam a interao social das
particularidades do lugar, de modo que, afirma o autor, os sistemas especializados no se
limitam a reas tecnolgicas, mas se referem tambm s relaes sociais e s intimidades do
eu. Esses sistemas dependem basicamente da confiana, a qual Giddens (1991, 2002) define
como crena na credibilidade de uma pessoa ou no sistema, tendo em vista os resultados em
que essa crena expressa uma f na probidade ou no amor de outro, ou na correo dos
princpios abstratos.
O terceiro e ltimo elemento de influncia sobre o dinamismo da modernidade
reflexividade, que se refere [...] ao uso regularizado de conhecimento sobre as circunstncias
da vida social como elemento constitutivo de sua organizao e transformao. (GIDDENS,
2002, p. 26). Na comunidade em questo, embora os membros lutem para preservar os
saberes, as prticas tradicionais e a identidade quilombola, no deixam de estar inseridos na
lgica moderna global e de utilizar informaes e conhecimentos adquiridos em instituies
educacionais para auxiliar nas prticas cotidianas. Alguns moradores saem para estudar fora,
em busca de conhecimento e de formao profissional e depois retornam para trabalhar na
prpria comunidade, como o caso da diretora do colgio, dos professores e da enfermeira.
Diante desta perspectiva sabe-se que a informao e o conhecimento so constitutivos
das instituies modernas, e preciso ressaltar que, neste cenrio, as Cincias Sociais
desempenham um papel bsico na reflexividade da modernidade, pois elas no se limitam a
acumular conhecimentos como as Cincias Naturais. Giddens (2002) afirma que a
reflexividade foi introduzida na prpria base da reproduo do sistema, desse modo o
pensamento e a ao esto constantemente mudando de direo entre si e a rotinizao da vida
cotidiana no tem nenhuma conexo intrnseca com o passado.
33
Giddens (2002) ressalta que a modernidade possui tanto caractersticas unificadoras
quanto desagregadoras. Afirma que existiam sistemas pr-modernos que eram formados por
grupos fragmentados de comunidades humanas, assim como na modernidade tardia h
situaes em que a humanidade, em alguns aspectos, se torna um ns, enfrentando
problemas e oportunidades onde no h outros. Desse modo, na perspectiva do autor, a
modernidade possui elementos de fragmentao e de unificao ao mesmo tempo, ou seja,
A alta modernidade caracterizada pelo ceticismo generalizado juntamente razo
providencial, em conjunto com o reconhecimento de que a cincia e a tecnologia
tm dois gumes, criando novos parmetros de risco e perigo ao mesmo tempo em
que oferecem possibilidades benficas para a humanidade. (GIDDENS, 2002, p. 32).
Nesse sentido, conforme destaca o autor, a vida social moderna introduz novas formas
de perigo que a humanidade inevitavelmente ter que enfrentar, por isso deve se precaver
realizando uma estimativa e avaliao dessa possibilidade. De maneira que o futuro precisa
ser reflexivamente organizado no presente como forma de evitar resultados irreversveis. No
que nas sociedades pr-modernas isso no fosse presente, pelo contrrio, a vida sempre foi
cercada de perigos. A diferena segundo Giddens (2002), que na sociedade pr-moderna os
membros de cada sociedade se preocupavam em levar sua vida tendo como base o seu
conhecimento local ou, no mximo, de um grupo de parentesco imediato. J na sociedade
moderna isso no possvel, primeiro porque o conhecimento incorporado nas formas
modernas se encontra acessvel a todos, desde que tenha recurso, tempo e energia para
adquiri-lo. Isso contribui para o carter errtico e descontrolado da modernidade (GIDDENS,
2002).
Recorrendo interpretao de George Simmel acerca da vida urbana moderna, Harvey
(2003) afirma que esta nos colocou diante de uma diversidade de experincias e estmulos.
Nessa perspectiva, embora tenhamos nos libertado da dependncia subjetiva e conquistado
uma maior liberdade individual, isso ocorreu custa de tratarmos os outros de maneira
objetiva e instrumental. Em outras palavras, os relacionamentos passaram a se dar de forma
fria e calculista, atitude necessria diante das relaes monetrias modernas, fruto da nova
diviso social do trabalho, imposta pela hegemonia da racionalidade econmica calculista, a
qual se est preso. Conforme destaca Harvey (2003), a rpida urbanizao tambm trouxe o
que Simmel chama de atitude blas, na qual o homem urbano diante de tantos estmulos e
acontecimentos se sente incapaz de reagir a todos eles com as energias adequadas, [...]
porque somente afastando os complexos estmulos advindos da velocidade da vida moderna
poderamos tolerar os seus extremos. (HARVEY, 2003, p. 34). Desse modo, afirma o autor
34
que a nica sada seria cultivar um falso individualismo no modo de agir por meio da moda,
posio social, marcas pessoais, etc.
A sociedade contempornea marcada por mltiplas fontes de opresso e por outro
lado mltiplos focos de resistncia dominao. Este pensamento trouxe um carter mais
libertador, tendo a alteridade como uma de suas preocupaes (HARVEY, 2003). Houve
ento uma abertura para se compreender a diferena e a alteridade, oferecendo certa liberdade
aos novos movimentos sociais, com o propsito de dar aos grupos o direito de falar de si
mesmos, com sua prpria voz, dando a eles a legitimidade e autenticidade essencial para o
pluralismo cultural contemporneo (HARVEY, 2003).
No entanto, segundo Harvey (2003) a sociedade atual caracterizada pela
fragmentao e a instabilidade da linguagem e dos discursos que impede a criao de
estratgias para um futuro radicalmente melhor. Esta concepo leva a uma desordem
temporal, uma dificuldade de unificar o passado, presente e futuro da nossa prpria
experincia de vida. Defende o autor que importante reconhecer as diversas formas de
alteridade. necessrio ser considerado, tambm, como algo que imita as prticas sociais,
econmicas e polticas da sociedade, todavia, como imita facetas distintas dessas prticas
pode se apresentar com aparncias variadas. Acredita que a sociedade possui uma
caracterizao fragmentria, efmera e catica, enquanto exprime um intenso ceticismo
acerca de como conceber, representar ou exprimir o eterno e o imutvel. Essas caractersticas
do momento histrico atual fazem com que alguns autores afirmem que vivemos em um
mundo em descontrole (GIDDENS, 2002) ou mesmo em uma desordem em mbito global
(CASTELLS, 2005), em que os indivduos esto em estado de insegurana e perdendo o
controle sobre suas vidas.
2.2 O processo de globalizao e os novos condicionamentos sociais
De acordo com Giddens (2002), as disposies globalizantes so inerentes s
influncias dos elementos que constituem o aspecto dinmico da modernidade. A
globalizao da atividade social, fruto da modernidade, constitui um processo de
desenvolvimento de laos genuinamente mundiais. Destaca que a globalizao se refere
[...] interseco entre presena e ausncia, ao entrelaamento de eventos e relaes sociais
distncia com contextualidades locais. (GIDDENS, 2002, p. 27). Para o autor, a
globalizao precisa ser entendida como um fenmeno dialtico, isso porque, os eventos que
35
ocorrem em um polo de uma relao podem produzir resultados divergentes ou contrrios ao
serem produzidos no outro, o que o autor denomina de dialtica do local e do global.
As transformaes que a identidade e a globalizao vm sofrendo so, segundo
Giddens (2002), os dois polos da dialtica do local e do global, pois, as mudanas que tem
ocorrido na vida pessoal esto diretamente ligadas ao estabelecimento de conexes sociais de
grande amplitude, de maneira que o Eu e a sociedade se encontram inter-relacionados num
meio global. No passado, os elementos culturais e da organizao social das comunidades
tradicionais, que caracterizavam sua identidade, se mantinham sempre mais ou menos da
mesma forma no mbito coletivo, ou seja, havia poucas mudanas. As transies na vida dos
indivduos, como por exemplo, a chegada vida adulta, eram destacadas pelo grupo, por meio
de rituais de passagem, de maneira que as mudanas de identidade do indivduo eram
claramente indicadas de gerao em gerao. Mas, tais mudanas no resultavam
necessariamente na mudana de identidade da comunidade. Na comunidade MSJ, h at hoje
a insistncia por parte dos membros em lutar para manter os elementos que constituem sua
identidade, sendo os rituais e os festejos anuais exemplos ntidos desta luta. Conforme relatos,
poucas foram as mudanas que ocorreram na organizao e na execuo dos festejos,
mantendo-se os elementos essenciais como era feito originalmente. Algumas alteraes foram
feitas, segundo eles, apenas para deixar a festa melhor, como por exemplo, aumentar a
variedade de comida a ser oferecida aos participantes e visitantes, mas sem deixar de fazer os
pratos tradicionais como o bolo, o beiju e o caf.
J na sociedade moderna as identidades precisam ser exploradas e construdas como
parte de um processo reflexivo de conectar mudana pessoal e social. Como ressalta o autor,
os sistemas abstratos institucionais esto cada vez mais envolvidos na formao e
continuidade da identidade. A primeira socializao das crianas, por exemplo, depende
muito mais de instituies como escolas, conselhos, pediatras, do que da iniciao direta feita
pelos pais e avs. No que a comunidade MSJ no tenha atualmente elementos da sociedade
moderna embutidos em seu cotidiano, pelo contrrio, como dito anteriormente, embora seja
tradicional e mantenha saberes e prticas que moldam sua identidade, tambm est inserida na
lgica moderna e, portanto, possu elementos modernos. Pode-se citar como exemplo, o uso
da energia eltrica, da tecnologia, dos conhecimentos modernos adquiridos nas universidades,
o uso de aparelhos eletroeletrnicos, entre outros.
Analisar este processo constitui um exerccio de imprescindvel importncia, devido
capacidade de transformao que promove na estrutura da sociedade. De acordo com Ianni
36
(1994), diante desta nova configurao, o termo sociedade sofreu alteraes no seu
significado e passou a compreender um conjunto de vrias sociedades, que embora ainda
possuam cada qual certo grau de autonomia, esta geralmente relativa e condicionada. Isso se
deve inevitvel condio de Estados Naes que esto relacionalmente entrelaados de
maneira global. Desse modo, [...] o local e o global determinam-se reciprocamente, umas
vezes de modo congruente e consequente, outras de modo desigual e desencontrado (IANNI,
1994, p. 151). Embora a nao e o indivduo continuem a ser muito reais e inquestionveis,
povoando todo o lugar com sua reflexo e imaginao, no so mais hegemnicos nas suas
decises, pois foram subsumidos pela sociedade global, pelos movimentos da globalizao
(IANNI, 2007).
Na comunidade em questo, embora os moradores mantenham seus hbitos e
costumes tradicionais o mais prximo possvel da maneira como eram feitos por seus
antepassados, so influenciados cotidianamente pelos elementos transformadores da
globalizao. Percebe-se, a todo o momento, a mescla do moderno com o tradicional nos usos
e costumes da comunidade. Exemplo disso est nas casas que so parte de adobe e parte de
alvenaria; est tambm nos eletrodomsticos utilizados nas casas como, por exemplo, o uso
do fogo a lenha e do freezer; o caminhar descalo dos mais velhos, contrastado pelo uso do
salto ou o uso da chapinha nos cabelos pelas mais jovens; dentre outros.
O terico Manuel Castells, em seus estudos, traz um elemento importante para se
pensar a sociedade do sculo XXI: a ideia de sociedade em rede por meio da qual analisa, de
maneira abrangente, as diversas dimenses da sociedade diante do fenmeno da globalizao
e da tecnologia da informao. Nessa anlise, destaca que a sociedade atual possui uma nova
estrutura social, caracterizada por um sistema de redes interligadas, o qual denomina de era da
informao.
Com a revoluo tecnolgica e consequentemente o surgimento de novas tecnologias,
a superfcie do mundo todo se transformou, proporcionando uma remodelao da base
material da sociedade em ritmo acelerado (CASTELLS, 2005). Como fruto desse fenmeno
houve o desenvolvimento da tecnologia da informao, tornando o conhecimento globalizado,
por meio de instrumentos como TV, computador e Internet. Saber o que ocorre em outros
pases se tornou mais fcil e rpido j que as notcias e informaes so transmitidas ao
mundo no momento em que acontecem. As barreiras geogrficas foram sendo superadas, e as
comunidades antes isoladas foram sendo inseridas no processo global.
37
Portanto, com a globalizao e o avano da tecnologia da informao criou-se uma
extensa rede de informaes que conecta o mundo todo, trazendo consequncias em todas as
dimenses da sociedade. Atualmente, as novas tecnologias constituem importante instrumento
de transformao social, econmica, poltica e cultural. Para discutir sobre o processo da
globalizao e da tecnologia da informao, Octavio Ianni em Teorias da Globalizao
(2007), faz uso de algumas metforas para realizar sua anlise. Com a metfora da aldeia
global, o autor faz uma analogia com a ideia de um mundo sem fronteiras. Sugere que com a
globalizao surgiu uma comunidade mundial, fato possibilitado pelo advento da
comunicao, da informao e da relao aberta, proporcionada pela tecnologia. Em pouco
tempo as naes, regies, civilizaes so atravessadas e articuladas pelo sistema de
comunicao e informao, que foi favorecido pelo advento da tecnologia.
Nesse sentido, com a globalizao, tudo passou a ser passivo de ser comercializado e
consumido como mercadoria: a informao, a comunicao, o entretenimento, as ideias, a
cultura, o corpo, etc. Conforme afirma Ianni (2007), deixamos de produzir apenas produtos
empacotados e passamos para o empacotamento de informaes. Prev o autor que
[...] a Terra ter a sua conscincia coletiva suspensa sobre a face do planeta em uma
densa sinfonia eletrnica, na qual todas as naes se ainda existirem como
entidades separadas vivero em uma teia de sinestesia espontnea, adquirindo
penosamente a conscincia dos triunfos e mutilaes de uns e de outros. (IANNI,
2007, p. 17).
H algumas dcadas os mercados estrangeiros eram invadidos por mercadorias, hoje
culturas inteiras so invadidas com informao, entretenimento, redes sociais e tudo mais que
a tecnologia e a internet propiciam. Diante desta realidade, para se sustentar, o processo de
globalizao necessita cada vez mais de tecnologia. A informao gerada em tempo real se
transformou em um combustvel para o sistema capitalista. Ento, quanto mais tecnologia se
utiliza, mais tecnologia se precisa, entrando em um crculo vicioso.
A tecnologia chega a todos os lugares, sendo possvel hoje utilizar um equipamento
tecnolgico, como celular, por exemplo, em espaos rurais que nem mesmo tem energia
eltrica. A utilizao das antenas externas para celular possibilita que os moradores da rea
rural tenham acesso a sinal de telefonia mvel. Na comunidade foco deste trabalho, isto uma
realidade, e todas as casas tem antena externa para sinal de celular, o que possibilita o contato
entre os moradores e as pessoas que residem em outros locais. Mas, embora o celular seja
uma realidade no Brasil h pelo menos 25 anos, na comunidade s chegou h uns 3 anos.
Antes da existncia dessas antenas, a comunicao entre os moradores e seus parentes era
38
muito difcil, pois s existia um telefone pblico que ficava a maior parte do tempo com
defeito. Nesse caso, para ter notcia de algum era necessrio viajar ou esperar que algum
visitante trouxesse a informao. Como afirmam os moradores, esta foi uma vantagem que o
mundo moderno trouxe para eles, pois reduziu a preocupao por falta de notcias.
evidente tambm a ocorrncia de outros fatores derivados do processo de
globalizao: o mundo se v diante de novos modelos de negcios; ocorre em grande parte a
virtualizao do trabalho; a demanda por mo de obra especializada aumenta
significativamente; etc. Desse modo, o contexto globalizado do sculo XXI, implica um
desafio s empresas, instituies, Estados. O desafio manter-se num mercado cada vez mais
exigente e com empresas cada vez mais dinmicas, imediatistas e diversificadas, o que requer
que os pases utilizem de maneira sistemtica toda a capacidade tecnolgica para no ser
atropelado.
Utilizando outra metfora, da fbrica global, Ianni (2007) indica uma transformao
quantitativa e qualitativa do capitalismo, no qual tudo passa a ser desenvolvido no mais
apenas em escala internacional ou multinacional, mas sim em escala mundial. Com a
globalizao a economia nacional se torna provncia da economia global e mercado, a diviso
social do trabalho e as foras produtivas passam a serem organizadas conforme os ditames
mundiais. Este fator, em alguma medida, tambm j impactou a comunidade em questo, isso
porque antes, h alguns anos, a produo nas terras era realizada apenas para subsistncia e
atualmente, devido necessidade de aumentar a renda, que majoritariamente origina-se de
bolsas assistencialistas ou de cargos pblicos (trabalham dentro da prpria comunidade em
instituies como escola, correio e posto de sade), alguns dos moradores criam estratgias
para vender alguns produtos de sua produo. Conforme relato, entre uma das estratgias est
a produo de polpas de frutas e a criao de galinhas para produzirem refeies que sero
vendidas para frequentadores das praias na alta temporada. Infelizmente, como afirma uma
informante, isso s vantajoso mesmo nas temporadas, que ocorrem geralmente de maio a
outubro, perodo da estiagem, porque em outros meses do ano no se consegue vender muito,
a no ser para os prprios moradores ou visitantes, que demandam pouco. Outros criam
algumas cabeas de gado, mas a produo pequena, pois nas proximidades da comunidade
existem os grandes fazendeiros que possuem mais poder de venda. E h aqueles que abriram
um pequeno armazm para atender a pouca demanda local, atividade que no rende muito.
Observou-se tambm a existncia de um pequeno bar, que conforme relato, traz um pouco de
distrao aos moradores e uma renda ao casal de proprietrios. Cabe destacar que so poucos
39
os moradores que dependem de renda conquistada fora da comunidade, entre estes alguns
trabalham nas fazendas que ficam no entorno da comunidade, outros trabalham em Porto
Nacional, mas a maioria aposentado, lavrador ou funcionrio pblico (trabalha na prpria
comunidade).
Segundo Ianni (2007), com a globalizao houve uma tecnificao das relaes sociais
e em todos os nveis ela se universaliza. Ao mesmo tempo em que houve o desenvolvimento
do capitalismo no mundo, houve tambm uma generalizao da racionalizao do mercado,
das empresas, do Estado, do capital, das ideias, enfim tudo foi codificado nos princpios do
direito. O autor afirma que
Juntam-se o direito e a contabilidade, a lgica formal e calculabilidade, a
racionalidade e a produtividade, de tal maneira que em todos os grupos sociais e
instituies, em todas as aes e relaes sociais, tendem a predominar os fins e os
valores constitudos no mbito do mercado, da sociedade vista como um vasto e
complexo espao de trocas. Esse o reino da racionalidade instrumental, em que o
indivduo se revela adjetivo, subalterno (IANNI, 2007, p. 21).
Em suma, Ianni adverte que diante de todas as caractersticas do advento moderno da
globalizao, o indivduo ser moderno significa anular a sua prpria individualidade, renegar
as suas origens culturais e se dedicar ao consumo de bens e informaes que a mdia veicula
diariamente. Segundo Ianni (1994), h que se pensar que a sociedade global no apenas uma
extenso qualitativa e quantitativa da sociedade nacional, mas sim uma realidade original,
desconhecida e carente de interpretao.
Mas, por outro lado, preciso lembrar que as mudanas no aconteceram de uma hora
para outra. Como bem destaca Castells (2005), no caso da revoluo tecnolgica, o incio se
deu em meados dos anos 1970, porm a consolidao s se deu por volta de 1990. Durante o
intervalo de tempo de aproximadamente 20 anos, as empresas, as instituies, as organizaes
e o povo, ou seja, a sociedade como um todo, precisou processar as mudanas para conhecer,
se acostumar e aprender a lidar com o novo paradigma tecnolgico que invadia o sculo XX.
Por isso, as decises de como seriam a aplicao dessa ferramenta levou certo tempo para
ocorrer. Com esta revoluo [...] o que mudou no foi o tipo de atividade em que a
humanidade est envolvida, mas sua capacidade tecnolgica de utilizar, como fora produtiva
direta, aquilo que caracteriza nossa espcie como uma singularidade biolgica: nossa
capacidade superior de processar smbolos (CASTELLS, 2005, p. 142). Assim, conforme
demonstra o autor, entre as dcadas de 1970 e 1980 as economias nacionais no refletiam de
maneira integral o resultado da revoluo tecnolgica no crescimento da economia. E tambm
40
esse reflexo no foi sentido por todos os pases da mesma forma, sendo que cada setor
nacional sentiu e reagiu sua maneira, resultando em maior ou menor avano na economia
dos pases6.
Diante deste panorama de transformaes advindo do protagonismo das novas
tecnologias da informao e da comunicao, diversos pases no mundo todo passaram a
manter uma relao econmica de interdependncia global, apresentando assim um novo
formato de relao entre Estado, sociedade e economia. Assim, destaca Castells (2005) que a
economia mundial, no final do sculo XX, acabou se tornando uma economia global 7
. Este
fato ocorreu sob dois aspectos: com base na nova infraestrutura que a tecnologia da
informao e comunicao pde propiciar e tambm com a ajuda das polticas de
desregulamentao e da liberalizao que os governos e instituies internacionais colocaram
em prtica. Esse cenrio tambm fez com que o capitalismo enfrentasse um movi
Top Related