UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
MATHEUS PINHEIRO VASCONCELOS
DIANTE DO PELOTÃO DE FUZILAMENTO: MEMÓRIA E
ESQUECIMENTO EM CIEN AÑOS DE SOLEDAD
CURITIBA
2018
MATHEUS PINHEIRO VASCONCELOS
DIANTE DO PELOTÃO DE FUZILAMENTO: MEMÓRIA E
ESQUECIMENTO EM CIEN AÑOS DE SOLEDAD
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso
de Licenciatura em História – Faculdade de Ciências
Humanas, Letras e Artes da Universidade Tuiuti do
Paraná, como requisito parcial para a obtenção do grau
de licenciado em História.
Orientadora: Profª Drª Liz Andréa Dalfré
CURITIBA
2018
Um trabalho de história não é fruto apenas das incontáveis horas solitárias de
leitura, dos transtornos de se lidar com prazos e datas de entrega, de deixar na mão
amigos e familiares para colocar aquela ideia necessária e incandescente no papel. Não
é fruto apenas das aulas que frequentamos e deixamos de frequentar, dos xerox que
lemos e daqueles que não lemos por falta de dinheiro. Um trabalho de história não é
fruto apenas do historiador, mas sim do esforço, da ausência e da presença de muitas
pessoas que estão ao nosso redor compartilhando suas vidas e lembranças conosco.
Portanto, quero agradecer a esses incontáveis indivíduos que estiveram comigo
ao longo da minha vida. Agradeço primeiramente a minha orientadora Liz Andréa
Dalfré, que leu todos os meus esboços desde o começo do curso e que sempre esteve
presente: apesar de rodeada de alunos, nunca negou um ou dois segundos para me
ajudar. Agradeço aos meus professores da UTP, vocês sempre foram uma grande
família para todos os alunos do curso e me fizeram amar história mais do que já
amava.
Fica aqui a minha gratidão por todos os colegas e amigos de faculdade que me
indicaram leituras, sites, documentários, livros e me mandaram arquivos que foram
extremamente necessários para a minha pesquisa. Se seus nomes estão ausentes aqui
(por uma falha da memória), tornam-se presença nas quase vinte mil palavras e nas
mais de cento e quarenta notas de rodapé.
Agradeço também a todos os meus incríveis amigos. Muito de vocês leram e
releram muito do que está aqui, criticaram-me sempre, mesmo sabendo que eu
defendia esse trabalho com garras e unhas. Muitos de vocês me apoiaram sem
perceber: fazendo um simples e bonito gesto, de perguntar como andava minha
monografia. Vocês estiveram do meu lado, compreenderam a minha ausência,
disseram palavras importantes para eu manter a minha sanidade mental e me
presentearam com seus amores. Quero deixar agradecimento especial à Alexandra,
Bella, Carol, Eliz, Espanha, Gisele, Julia, Luigi, Milena, Pedro, Rafa, Thais e Yara.
Todos vocês me mostraram que um trabalho de história não é apenas feito em casa, na
frente de um computador e de um livro; ele também é construído em passeios,
conversas cotidianas, almoços, aniversário, bares e séries. Sem suas risadas e sorrisos
eu não conseguiria.
Quero agradecer a minha família: a minha mãe, Mara; ao meu irmão, Jonas; e a
minha tia, Andreia. Quero agradecer a meu pai, Jorge, ausente há anos, mas presente
naquela estrela que sempre brilha nas minhas noites. Vocês me proporcionaram todas
as minhas bases e sabedorias cotidianas; apesar de todas as nossas discussões diárias,
sacrificaram-se para eu terminar o curso e sempre estiveram aqui. Sem vocês o
alicerce desse trabalho não existiria.
Quero deixar um último agradecimento à literatura. Ela sempre esteve ao meu
lado, inspirando-me, dando sentindo e colorindo meu mundo. O que eu sou hoje se
deve muito a ela também. Talvez sem a literatura eu ainda conseguisse viver, mas com
certeza viveria num mundo frio e cinzento, sombrio e mais cruel do que de costume.
Seria um mundo quase sem sentido.
Vocês, desde a primeira letra digitada até o ponto final da última referência,
estão nesse trabalho, e por isso eu agradeço a todos. Fizemos um bom trabalho, não?
Resumo
A América Latina na década de 1960 é marcada principalmente pela Revolução Cubana e pelo Boom
da literatura latino-americana. A obra Cien Años de Soledad, do escritor colombiano Gabriel García
Márquez, foi escrita durante esse contexto e, portanto, representa o mundo “sensível” daquele período
político, social e cultural. Diante disso, a pesquisa pretende buscar os significados atribuídos às ideias
de memória e de esquecimento que o romancista elaborou em sua narrativa. Para caracterizar o uso da
literatura como fonte para o historiador será utilizado os estudos da historiadora Sandra Jatahy
Pesavento, enquanto a concepção de representação do texto literário ficará a cargo das reflexões do
historiador Robert Darnton. Para o estudo da memória e do esquecimento, o filósofo Paul Ricoeur
norteará toda a pesquisa através de sua fenomenologia da memória, nos guiando pelas várias faces da
lembrança, os seus usos e abusos e elucidando o dever da memória.
Palavras-chave: Literatura e História, América Latina, memória e esquecimento.
Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis
e Heródoto, para não esquecer os grandes feitos dele, o historiador
atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem
glória: ele precisa transmitir o inenarrável, manter vivo a memória
dos sem-nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados.
Sua “narrativa afirma que o inesquecível existe” mesmo se nós não
podemos descrevê-lo. Tarefa altamente política: lutar contra o
esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do
horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente). Tarefa
igualmente ética e, num sentido amplo, especificamente psíquica: as
palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a
cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de
luto que nos deve ajudar, nós, os vivos, a nos lembrarmos dos mortos
para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a verdade do
passado se completa na exigência de um presente que, também, possa
ser verdadeiro.
Jeanne Marie Gagnebin
A história pode ampliar, completar, corrigir, e até mesmo refutar o
testemunho da memória sobre o passado, mas não pode aboli-lo. Por
quê? Porque, segundo nos parece, a memória continua a ser o
guardião da última dialética constitutiva da preteridade do passado, a
saber, a relação entre o “não mais” que marca seu caráter acabado,
abolido, ultrapassado, e o “tendo-sido” que designa seu caráter
originário e, nesse sentido, indestrutível.
Paul Ricoeur
Sob a história, a memória e o esquecimento.
Sob a memória e o esquecimento, a vida.
Mas escrever a vida é outra história.
Inacabamento.
Paul Ricoeur
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7
CAPÍTULO 1 – A AMÉRICA LATINA NA LITERATURA ................................ 12
1.1 O BOOM DA LITERATURA LATINO-AMERICANA E CIEN AÑOS DE
SOLEDADO ............................................................................................................. 13
1.2 GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ E CIEN AÑOS DE SOLEDAD ......................... 17
1.3 O DISCURSO LITERÁRIO: A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO ................... 21
CAPÍTULO 2 – MEMÓRIA, IDENTIDADE, ESQUECIMENTO ....................... 29
2.2 A AMÉRICA LATINA NA DÉCADA DE 1960 ................................................... 29
2.3 A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO .................................................................. 33
CAPÍTULO 3 – MEMÓRIA TRAUMATIZADA .................................................... 39
3.1 LIDANDO COM A MEMÓRIA: O PASSADO VIOLENTO ............................... 39
CAPÍTULO 4 – MEMÓRIA E ESQUECIMENTO MANIPULADOS ................. 50
4.1 MASSACRANDO E ESQUECENDO OS TRABALHADORES ......................... 51
EPÍLOGO: A CONSCIÊNCIA LATINO-AMERICANA EM EVIDÊNCIA ....... 60
FONTES ....................................................................................................................... 65
REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA ........................................................................ 66
ANEXO A ..................................................................................................................... 68
7
INTRODUÇÃO
Quando o escritor colombiano Gabriel García Márquez, vestindo uma típica
roupa caribenha,1 recebeu o Prêmio Nobel de literatura em 8 de dezembro de 1982,
discursou – assinalando com números, estatísticas, fatos e comparações – sobre a
realidade descomunal em que vivia. Apresentou, recorrendo às crônicas dos viajantes e
navegantes do século XVI, como a América Latina desde sempre foi uma terra
imaginada, espaço do sobrenatural, das coisas estranhas e fantásticas; apontou esses
delírios como sendo os germes do romance latino-americano.
Após elucidar com cifras – de mortos, desaparecidos e exilados – a América
Latina tomada por golpes de estado, guerras e ditaduras, ponderou que talvez tenha
sido essa realidade e não apenas a literatura, que chamou a atenção da Academia
Sueca de Letras ao lhe entregar o Prêmio Nobel. Mostrou como, diante de tanta
opressão e injustiça nesse continente, ele acabou sendo apenas um sortudo numa terra
em que se pede muito pouca da imaginação, “porque para nós o maior desafio foi a
insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável”.2
Esse discurso revela os principais aspectos que fundamentam este trabalho: a
América Latina que García Márquez nunca cansou de retratar em sua literatura e a
metáfora, ferramenta mais que imprescindíveis para narrar sentimentos, ideias e
emoções do mundo ao nosso redor. Como a historiadora Sandra Jatahy Pesavento
aponta, “os indivíduos não apenas experimentam as sensações e os sentimentos, mas
têm ideias sobre eles e podem reproduzi-los e transmiti-los, como uma forma de
conhecimento produzido sobre o mundo”.3 E o mundo que encontramos na vasta obra
de Gabriel García Márquez é uma América Latina constantemente conturbada por
problemas sociais e situações históricas calamitosas, que ele apenas assinalou
brevemente em seu discurso do Prêmio Nobel.
1 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Eu não vim fazer um discurso. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record,
2011, p. 120. 2 id.ibid., p. 25.
3 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Pensar com o sentimento, sentir com a mente. In: RAMOS, Alcides; MATOS,
Maria; PATRIOTA, Rosangela. Olhares sobre a História: Culturas, Sensibilidades, sociabilidades. São Paulo:
Editora Hucitec, 2010, p. 23.
8
Portanto, partindo do contexto literário e histórico da América Latina durante a
década de 1960, a proposta do trabalho é analisar o livro Cien Años de Soledad, do
escritor Gabriel García Márquez, buscando esclarecer qual a ideia de memória e de
esquecimento que o romancista elaborou na narrativa de seu livro. Portanto,
juntaremos numa única pergunta o caminho que essa pesquisa seguirá: quais as ideias
e reflexões sobre memória e esquecimento que Gabriel García Márquez elaborou em
Cien Años de Soledad?
Na década de 1960, a Revolução Cubana atingiu o cenário político, social e
cultural da América Latina. O nervo que ela tencionou atingiu imediatamente não
apenas os modelos de organização social, mas a própria literatura latino-americana,
definindo que “dentro da Revolução, tudo; contra a Revolução, nada”,4 e fazendo com
que a política cultural cubana se estendesse para muitos intelectuais do continente.
Muitos literatos e críticos literários passaram a apoiar a causa cubana, e dentre eles
estava também Gabriel García Márquez, que trabalhou inicialmente a serviço da
Prensa Latina, o veículo jornalístico de Cuba.
Usufruindo dos holofotes do mundo que a Revolução Cubana trouxe para a
América Latina e dos meios de promoção cultural que Cuba proporcionava, muitos
romancistas e poetas conseguiram ampla disseminação e reconhecimento dos leitores
mundo a fora, expondo enfim a literatura latino-americana que vinha há décadas
retratando com originalidade a realidade da América Latina. Esse período de grande
disseminação literária é conhecido como o Boom da literatura latino-americana e Cien
Años de Soledad tornou-se um sucesso de críticas e de vendas muito por conta desse
cenário da época.
O foco da pesquisa limita-se apenas às ideias de memória e de esquecimento
que García Márquez desenvolveu em seu livro, pois – além do trabalho seguir um
caminho diferente de outros estudos desenvolvidos sobre Cien Años de Soledad – as
questões de memória e esquecimento são temas de pesquisa importantes para o
historiador. Estudar como a memória e o esquecimento são sentidos e pensados em
diferentes épocas e lugares abre caminho para reconstruir uma outra face da história.
4 Trecho do discurso de Fidel Castro, Palabras a los intelectuales. Site do Ministerio de Cultura de la República
de Cuba. Disponível em: <http//www.min.cult.cu> Acesso em: 27 mai. 2018
9
Uma face mais sensível do passado, que “incide justo sobre as formas de valorizar, de
classificar o mundo, ou de reagir diante de determinadas situações e personagens
sociais”.5 Pois, a faculdade da memória e a manifestação do esquecimento são
rotineiras, ligadas intrinsecamente ao cotidiano das pessoas.
Em outras palavras, lembrar e esquecer regulam as nossas vidas, dia após dia,
assim como tantas outras coisas. Essas duas experiências, tanto de lembrar quanto de
esquecer, ao ser devidamente analisadas, podem nos aproximar de aspectos das
experiências de vida das pessoas do passado. Como Pesavento esclarece:
Recuperar sensibilidades não é sentir da mesma forma, é tentar explicar
como poderia ter sido a experiência sensível de um outro tempo pelos rastros
que deixou. O passado encerra uma experiência singular de percepção e
representação do mundo, mas os registros que ficaram, e que é preciso saber
ler, nos permitem ir além da lacuna, do vazio, do silêncio.6
O rastro do passado que será analisado é uma obra literária, que, com seu
compromisso com a metáfora, revela uma realidade própria de seu escritor, a forma
que via seu mundo e o sentia. A escolha do romance Cien Años de Soledad como fonte
para essa pesquisa tem o intuito de evidenciar as reflexões de García Márquez sobre a
memória e o esquecimento e poderá revelar um mundo diferente, localizado numa
época e lugar – para a pesquisa, respectivamente, a década de 1960 na América Latina.
A fonte utilizada para análise será a edição comemorativa e crítica de Cien Años
de Soledad, promovida pela la Real Academia Española e la Asociación de Academias
de la Lengua Española, publicada pelo Grupo Santillana, em seu selo editorial
Alfaguara, em 2007, e com tiragem de 1 milhão de exemplares7. A edição é de capa
dura e tem 605 páginas. Conta com textos introdutórios,8 uma nota sobre o texto e a
edição que foi revisada pelo autor, a árvore genealógica da estirpe dos Buendías, um
glossário de termos e nomes, e mais textos que contextualizam Gabriel García
Márquez e Cien Años de Soledad no romance hispano-americano.9 Traz também a
5 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo Mundo Mundos
Nuevos, Colloques, fev. 2005. Disponível em: <https://journals.openedition.org> Acesso em: 25 mai. 2018. 6 id.ibid.
7 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien Años de Soledad. España: Afaguara, 2007.
8 Textos de Álvaro Mutis, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, Victor García de la Concha e Claudio Guillén
9 Textos de Pedro Luis Barcia, Juan Gustavo Cobo Borda, Gonzalo Celorio, Sergio Ramírez
10
bibliografia utilizada nos textos críticos. A primeira edição apareceu nas livrarias
argentinas em maio de 1967. Editado pela Sudamericana, levou em sua capa uma
ilustração de um galeão azul em meio a selva e com um fundo cinza. O recorte
temporal da pesquisa será a década de 1960, por ter sido o momento de escrita e
publicação da obra analisada nesta pesquisa.
Hoje o livro já foi traduzido para mais de 40 línguas diferentes e conta com a
cifra de 150 milhões de exemplares vendidos pelo mundo.10
A edição atual do livro no
Brasil tem os direitos reservados à editora Record e tradução de Eric Nepomuceno em
três versões, uma popular que conta apenas com o texto, outra de capa especial e conta
com uma introdução do tradutor e o discurso do Prêmio Nobel de Literatura de Gabriel
García Márquez (1982), e a última é de capa dura, mas sem textos extras; a obra já
ultrapassou a 97° reimpressão. O livro é encontrado em qualquer livraria e também é
disponibilizado gratuitamente na internet.
Para a análise teórica da fonte, o filósofo Paul Ricoeur – a partir de seus estudos
desenvolvidos em A Memória, a História, o Esquecimento – servirá como guia para o
trabalho com suas concepções sobre os usos e abusos da memória e do esquecimento,
elaboradas a partir dos conceitos de memória impedida e memória manipulada. Para
demonstrar como se pode fazer o uso da literatura na pesquisa histórica, serão
utilizadas as reflexões de Sandra Jatahy Pesavento, com seu artigo História e
Literatura, um velha-nova história. Ela ajudará a esclarecer o debate atual do uso da
literatura como fonte para o historiador, apresentando-se então, como opção
metodológica para a presente pesquisa. O artigo do historiador Robert Darnton,
História e Antropologia, também ajudará a compreender o conceito de representação
numa obra literária.
O trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro será apresentado o
contexto literário da década de 1960 e de que forma a América Latina é retratada na
literatura desse período. Veremos, na sequência, onde que Cien Años de Soledad e
García Márquez estão situados nesse contexto e de que forma a obra apreende a
realidade do continente. Após um breve debate sobre o discurso literário e o conceito
10
Informações sobre número de vendas em: <https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/05/09/o-legado-
de-garcia-marquez-e-o-impacto-de-cem-anos-de-solidao-na-literatura.> Acesso em: 29 de Abr. 2018.
11
de representação, será feito uma análise preliminar da história do romance, buscando
esclarecer como a ideia de memória e de esquecimento elaborados pelo escritor estão
inseridos na narrativa literária.
No segundo capítulo, será abordado o contexto histórico da América Latina
durante a década de 1960, apontando a influência da Revolução Cubana para os
escritores e intelectuais latino-americanos, definindo temas que foram debatidos na
literatura e em periódicos da época. Com isso, será possível compreender como esse
contexto influenciou diretamente nos temas e questões abordados em Cien Años de
Soledad e como eles estão ligados à memória e ao esquecimento da América Latina.
Nos capítulos três e quatro, a análise recairá nos significados que Gabriel
García Márquez atribuiu às ideias de memória e de esquecimento, e que estão
presentes na narrativa de Cien Años de Soledad. Serão analisados passagens e trechos
do romance para se buscar o significado que o romancista deu a elas em sua realidade
latino-americana da década de 1960. O foco de análise recairá no que Ricoeur chama
de memória traumatizada, em que vamos buscar qual o sentido que García Márquez
atribuiu ao passado da América Latina, quais símbolos representam-na e de que forma
percebemos que essa memória do passado é traumatizada e impedida ser rememorada.
No capítulo quatro será a vez de analisar as situações em que a memória e o
esquecimento são manipulados por aqueles que detêm o poder e por agentes externos.
Assim, para estudarmos a questão do testemunho e da “história oficial”, duas
narrativas sobre um dos episódios do livro – são relatos que se confrontam – serão
analisadas.
Por último temos o epílogo. Nele vamos analisar o final do livro e nos
indagarmos sobre uma questão que percorre paralelamente toda a trajetória da
pesquisa: a ideia de consciência latino-americana. Ideia essa que não apenas anda de
“mãos dadas” com as concepções de memória e de esquecimento, como
constantemente se cruza com elas.
12
1. A AMÉRICA LATINA NA LITERATURA
Escribir novelas es un acto de rebelión contra la realidad, contra Dios,
contra la creación de Dios que es la realidad. Es una tentativa de
corrección, cambio o abolición de la realidad real, de su sustitución por la
realidad ficticia que el novelista crea. Éste es un disidente: crea vida
ilusoria, crea mundos verbales porque no acepta la vida y el mundo tal
como son (o como cree que son). La raíz de su vocación es un sentimiento de
insatisfacción contra la vida; cada novela es un deicidio secreto, un
asesinato simbólico de la realidad.
Mario Vargas Llosa
A América Latina da década de 1960 foi influenciada principalmente pelo
processo revolucionário cubano, que teve início em 1959. A Revolução Cubana
impactou diretamente e imediatamente o continente, trazendo novos aspectos culturais,
sociais e políticos.
No campo da cultura, a literatura latino-americana entrou em um período na
qual era bastante disseminada e reconhecida pelo mundo, ganhando popularidade
também na Europa e nos Estados Unidos. No campo político e social, a Revolução
significou uma nova alternativa de organização social para os países da América
Latina. Portanto, passou-se a discutir intensamente o papel social e político da
literatura no continente, e esse cenário propiciou obras características da época. Os
romancistas e poetas relataram essa nova fase de consciência política-social, de
autoafirmação de sua condição como latino-americano e de aspectos identitários da
America Latina nas histórias e poemas que escreviam. Dentre eles também estava Cien
Años de Soledad.
O escritor colombiano Gabriel García Márquez tratou de apreender aquela
realidade latino-americana da década de 1960 em sua obra, desenvolvendo reflexões e
perspectivas de vida; elaborando, entre outras coisas, uma representação a respeito da
noção de memória e de esquecimento – e como as duas estão intrinsecamente ligadas
ao passado da América Latina e ao contexto atual do período de escrita de Cien Años
de Soledad.
Num primeiro momento vamos esclarecer as mudanças no campo da literatura –
conhecido como o fenômeno do Boom da literatura latino-americana –, suas principais
13
características e onde Cien Años de Soledad se insere nesse contexto literário. Na
sequência vamos situar Gabriel García Márquez na década de 1960, sua relação com a
Revolução Cubana e a escrita do seu romance mais célebre. Por último, vamos
adentrar um pouco em uma das problemáticas que o romancista elaborou na narrativa
da obra: suas reflexões sobre a memória e o esquecimento.
1.1 O BOOM DA LITERATURA LATINO-AMERICANA E CIEN AÑOS DE
SOLEDAD
Nunca a poesia tivera papel tão grande quanto nos períodos
revolucionários: a poesia cedeu sua voz à revolução e em troca a revolução
libertou-a de sua solidão
Milan Kundera
O Boom da literatura latino-americana foi um período literário em que os
escritores e poetas latino-americanos conseguiram um reconhecimento mundial a
partir de sua literatura. Suas obras passaram a ser disseminadas em larga escala na
América Latina, alcançando também um grande número de vendas em países como
Estados Unidos e continentes como a Europa. Seu inicio é marcado pela publicação
de Rayuela (1963) de Cortázar e tem como seu final o ano de 1973.11
Os romances publicados durante essa fase apresentaram algumas características
em comum. Muitos deles tiveram bastante influência literária da obra Ulisses do
romancista irlandês James Joyce12
e dos romances do escritor estadunidense William
Faulkner (ele também influenciado por Joyce).13
As obras do Boom tinham o intuito de
narrar uma história particularmente latino-americana, e as motivações dos escritores e
poetas era a busca por identidades e a libertação cultural do continente. Por isso é
comum ver nesses romances a procura pela construção de uma identidade e de
metáforas14
para representar a história da América Latina. Suas narrativas são
11
MARTIN, Gerald. A narrativa latino-americana, c. 1920- c. 1990. In: BETHELL, Leslie. A América Latina
após 1930: Ideias, Cultura e Sociedade. São Paulo: Edusp, 2011, p. 380. 12
id.ibid., p. 381. 13
García Márquez considerava William Faulkner como seu mestre e sempre deixou clara a importância dele para
sua própria literatura. 14
Muitas obras da época traziam elementos fantásticos e sobrenaturais para metaforizar, em muitos casos, a
fundação de um povo, de uma nação e do próprio sujeito latino-americano.
14
labirínticas, mitológicas, repletas de simbologias e de preocupações referentes à
consciência latino-americana.15
Cien Años de Soledad não foge dessas marcas literárias. Utilizando de uma
narrativa em 3° pessoa onisciente, uma estrutura temporal circular e labiríntica,16
narrando personagens latino-americanos em suas vidas cotidianas, propõem uma
metáfora cuja suposição era de que os leitores da América Latina como um todo se
identificariam com as características dos personagens e com as situações históricas
que eles enfrentavam. A busca de uma identidade, que era um registro da literatura da
época, normalmente não é apresentada diretamente num diálogo aberto dos
personagens, mas é reconhecido a partir das motivações do escritor em construir uma
história com a qual os leitores podiam se identificar.
Portanto, como o crítico literário uruguaio Ángel Rama disse sobre García
Márquez: “Acredito realmente que nenhum outro romancista percebeu com tanta
agudez e tanta verdade a estreita relação entre o quadro sociopolítico de um país e o
comportamento de suas personagens”.17
E podemos notar o prestígio de Cien Años de
Soledad tanto em suas críticas quanto em seu número de vendas, pois o livro foi
considerado o ápice do Boom e alcançou um grande público, figurando inclusive na
lista dos Best-sellers nos Estados Unidos.
O fenômeno do Boom, à grosso modo, surgiu a partir de alguns fatores
principais que podem ser organizados em produção, distribuição, recepção e
reconhecimento, todos intrinsecamente ligados e indissociáveis.
O primeiro caso diz respeito ao valor que os romancistas ganharam no contexto
da década de 1960, pois eles desempenharam o papel de interlocutores. Almejavam
que os latino-americanos buscassem uma conscientização sobre os problemas sociais e
históricos da América Latina. O segundo caso está ligado ao grande “milagre”
editorial que teve como suas causas a transferência dos centros editoriais da Espanha
15
id.ibid., p. 389-390. 16
A organização dos capítulos segue, de certa forma, conforme o tempo do livro progride. Contudo, por ser um
narrador onisciente, ele sabe tudo que já aconteceu e o que ainda acontecerá no decorrer da história. Assim, ele
deposita “pistas” das situações que os personagens ainda vão viver. O leitor tem a impressão de ter um quebra-
cabeça em sua frente que deve ser completado. Além disso, fica claro com a leitura de Cien Años de Soledad,
que García Márquez busca sempre “despistar” o leitor, fazendo com que seja muito difícil definir a passagem do
tempo dentro da história do livro, e em que momento cada episódio narrado ocorreu. 17
RAMA, Ángel. ap., id.ibid., p. 387.
15
para bases hispano-americanas, como Buenos Aires e a Cidade do México – cidades
que já na época colonial se mostravam como polos culturais no continente –; e a
Guerra Civil Espanhola que ajudou a promover esse “reaquecimento cultural”, pois
inúmeros escritores, editores e professores espanhóis buscaram exílio na América
Latina.
Não há muitas controvérsias de que o desenvolvimento de uma indústria
editorial e dos meios de produção, reprodução e distribuição da literatura,
assim como os motivos sociais, econômicos e culturais que potencializaram
essas transformações foram, se não detonadores do surgimento deste
fenômeno literário na América latina, ao menos contribuíram de forma
imprescindível para a continuidade da chegada ao mercado do enorme
volume de romances latino-americanos que se publicava e se republicava
durante toda a década de sessenta.18
Por sua vez, a recepção está ligada a um público leitor que, como os
romancistas da época idealizavam, durante esse período também se tornava
“consciente” de si mesmo, de suas identidades e seus problemas sociais e culturais do
período, um amadurecimento político nos leitores que o próprio Cortázar19
relatou no
Colloque de Royaumunt, em dezembro de 1972, em Paris: “o que é o boom senão a
mais extraordinária tomada de consciência por parte do povo latino-americano de uma
face de sua própria identidade? O que é essa tomada de consciência senão uma
importantíssima parte de „desalienação‟?”20
Outro fator determinante desse fenômeno é a Revolução Cubana. Ela esteve
ligada principalmente à literatura por ser uma das principais disseminadoras de cultura
na década de 1960 – ao lado do processo editorial. A fundação da instituição cultural
cubana, Casa de las Américas,21
foi uma grande ferramenta neste processo, e através
de sua revista, “contribuiu de forma inquestionável para romper com o bloqueio
18
BRAGANÇA, Maurício. Entre o boom e o pós-boom: dilemas de uma historiografia literária latino-americana.
In: IPOTESI, v. 12, n. 1, Juiz de Fora, jan./jul. 2008, p. 124. 19
id.ibid., p. 123. 20
CORTÁZAR, Julio. apud. RAMA, Ángel. El Boom en Perspectiva. In: _____. La crítica de la cultura en
America Latina. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1972, p. 266-306. 21
A instituição Casa de las Américas foi fundada em 1959, com direção de Haydeé Santamaría. Ela foi
fundamental para estabelecer a ligação cultural entre os países da América Latina. Ela contava com uma revista,
premiações aos escritores, bibliotecas, uma editora e centros de pesquisa. Promovia também as artes plásticas e o
teatro.
16
imposto pelos Estados Unidos, articulando uma verdadeira ponte cultural entre países
latino-americanos naquele momento histórico tão difícil para o continente”.22
Além de configurar um novo modelo político e social na América Latina, a
Revolução Cubana deu liberdade (ao menos no seu início) para as utopias germinarem,
ocasionando uma boa receptividade nos escritores que viam nesse processo uma
esperança. Fazendo com que os romancistas cressem no poder de transformação da
literatura23
e se juntassem à Revolução, buscando cada vez mais um engajamento
político. “Literatura e política pareciam indissociáveis e a Revolução Cubana construiu
o eixo ideológica que impregnou os relatos, discursos e narrativas”, surgindo assim
uma nova face do escritor; “esse escritor-intelectual é solicitado a opinar sobre os
acontecimentos de seu tempo e deve ser capaz de sustentar um discurso intelectual
articulado e progressista”24
. Toda a geração do Boom, e isso inclui sem sombra de
dúvidas Gabriel García Márquez, passou a manifestar uma profissionalização,
diferente de outros escritores que não tinham apenas a escrita como seu ofício.25
Seguindo essa ligação entre difusão e reconhecimento, a editora espanhola Seix
Barral,26
um dos principais disseminadores do Boom no meio internacional, tratou de
premiar romancistas latino-americanos, publicar suas obras e fazer com que fossem
traduzidas em outros idiomas.27
Fruto do reconhecimento dos romances latino-
americanos na Europa e nos Estados Unidos, as tiragens aumentaram, tomando
proporções nunca antes vistas no continente. Por sua vez, a revista Casa de las
Américas, tratou de qualificar, junto com as editoras, os livros: trazendo resenhas e
ensaios, criando festivais e também premiando.28
A relação que os literatos e a Revolução Cubana tinham, segundo o escritor
chileno José Donoso, era uma via de mão dupla: os romancistas ganhavam visibilidade
por estarem ligados a Cuba e o governo revolucionário cubano aproveitava a literatura
22
BRAGANÇA, op.cit., p. 125. 23
COSTA, Adriane Vidal. Os intelectuais, o boom da literatura latino-americana e a Revolução Cubana, In:
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo: ANPUH, 2001. p 1. 24
BRAGANÇA, op.cit., p. 126. 25
COSTA, op.cit., 2001. p 6-7. 26
Foi fundada em 1911 em Barcelona com linha editorial de história e literatura juvenil. Em 1955 com Victor
Seix e Carlos Barral refundaram a empresa, iniciando novas coleções de literatura e premiações. 27
id.ibid., p 7. 28
BRAGANÇA, op. cit., p. 125.
17
para legitimar o processo revolucionário.29
O fato é, a Revolução chamou os holofotes
do mundo para a América Latina, mostrou a sua imagem e, por tanto, é visto como um
fator positivo diante do Boom, pois a literatura latino-americana foi igualmente
“descoberta” pela Europa.30
Como García Márquez disse em entrevista:
A grande importância cultural de Cuba na América Latina foi servir como
uma espécie de ponte para transmitir um tipo de literatura que existia na
América Latina há muitos anos. Em certo sentido, o boom da literatura latino
americana nos Estados Unidos foi causado pela Revolução Cubana. Todos
os escritores latino-americanos dessa geração já vinham escrevendo há vinte
anos, mas as editoras europeias e norte-americanas tinham muito pouco
interesse neles. Quando a Revolução Cubana começou, houve subitamente,
um grande interesse por Cuba e pela América Latina. A revolução virou um
artigo de consumo. A América Latina entrou em moda. Descobriram que
existiam romances latino-americanos suficientemente bons para serem
traduzidos equiparados ao resto da literatura mundial.31
Diante de todas as informações levantadas, podemos concluir que o Boom, além
de um período literário, foi um fenômeno em que pela primeira vez na história os
escritores latino-americanos tiveram reconhecimento, ao mínimo, ocidental, sendo eles
difundidos não apenas em seu continente – como era antes – mas tomando proporções
maiores, passando a circular não apenas em maior quantidade nas livrarias da América
Latina, mas também nas europeias e estadunidenses.
Foi nesse contexto histórico e literário que Cien Años de Soledad foi escrito e
disseminado.
1.2 GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ E CIEN ÃNOS DE SOLEDAD
O colombiano Gabriel García Márquez morava na Venezuela quando o ditador
de Cuba, Fulgêncio Batista, caiu perante a Revolução Cubana em 1959. Seu primeiro
contato direto com a Cuba revolucionária aconteceu quando García Márquez foi à
Havana em 19 de Janeiro de 1959, após ser convidado no dia anterior, junto com
alguns jornalistas e escritores, a visitar Cuba para presenciar a “Operação Verdade”,
29
COSTA, op.cit, 2001, p 7-8. 30
id.ibid., p 1-2. 31
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. As históricas entrevistas da Paris Review II. Seleção Marcos Maffei, São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 338.
18
um julgamento público dos partidários de Batista que haviam cometido crimes durante
a ditadura. Três dias depois voltou a Caracas, mudando-se em seguida à Bogotá para
abrir, junto com seu amigo Plinio Mendoza, o escritório da filial colombiana da recém-
criada agência de notícias cubana, a Prensa Latina. Em pouco tempo, o escritório se
tornou um lugar para os encontros da esquerda colombiana.32
García Márquez retornou à ilha em setembro de 1960, quando o argentino Jorge
Ricardo Masseti – o fundador da Prensa Latina – convidou-o a trabalhar no escritório
em Cuba para se atualizar sobre os novos métodos da agência de notícias com o intuito
de treinar novos jornalistas e abrir filiais. Numa das suas idas e vindas daquele
período, que durou três meses, acabou por encontrar no aeroporto de Camaguey(Cuba)
aquele que viria a ser nos anos seguintes um dos seus grandes amigos, Fidel Castro.
Apresentou-se e conversaram brevemente.
No começo de 1961 foi designado por Masseti para administrar o escritório da
Prensa Latina em Nova York, onde a pressão dentro da agência entre comunistas
“linha-dura” e os “homens” de Masseti se intensificou. Após a invasão da Baía dos
Porcos e a vitória cubana, García Márquez pediu demissão, e em junho do mesmo ano
chegou à Cidade do México depois de duas semanas viajando de ônibus.33
Morou
grande parte de sua vida no México, onde também escreveu Cien Años de Soledad. O
escritor nunca mais voltaria a morar na Colômbia.
Na Cidade do México, após tentativas falhas de virar roteirista de cinema, ele
escreveu e reescreveu os capítulos do livro, passando 18 meses, de julho de 1965 a
agosto de 1966, escrevendo das 8h30 às 14h30, tirando as tardes para rever anotações
e pesquisar. A sala que escrevia era pequena, tinha um sofá, seu próprio banheiro, um
aquecedor, algumas estantes e uma mesa onde sua máquina de escrever Olivetti
chacoalhava ao ritmo de sua escrita. Ele usava então um macacão azul. Nesse tempo as
economias da família acabaram, ficaram devendo 8 meses de aluguel e o escritor teve
que vender o carro e empenhorar muitos dos pertences da família para sobreviver.34
E
apesar de tudo, o livro foi escrito.
32
MARTIN, Gerald. Gabriel García Márquez: uma vida. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 310-316. 33
id.ibid., p. 324-337. 34
Pesquisado com cuidado, essa foi a imagem que Geral Martin trouxe na biografia do escritor. MARTIN,
id.ibid., p. 367-383.
19
Cien Años de Soledad – utilizando do realismo mágico,35
em que García
Márquez é reconhecidamente como o maior representante desta corrente literária –
narra a trajetória de vida de uma família ao longo 6 gerações.36
Começa com o casal de
descendentes de espanhóis, José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, e segue até o
último da estirpe dos Buendía, Aureliano Babilônio, uma espécie de literato e
intelectual latino-americano. O patriarca, José Arcadio Buendía, reúne um grupo de
pessoas e parte para atravessar a serra buscando o mar, mas acaba ficando pelo
caminho e fundando uma aldeia de nome Macondo. É lá que toda a história se
desenrola. Não há uma data exata sobre o inicio do povoamento, mas se sabe que é
após o ápice das independências dos países latino-americanos, início do século XIX. A
história termina no final da década de 1950 e inicio de 1960.
Ao longo da trajetória, alguns episódios do romance retratam o
desenvolvimento político, social e cultural da América Latina. Como são as ondas de
imigração, as guerras civis entre liberais e conservadores, a modernidade crescente,
decorrida da tecnologia inovadora para o continente e que tem grande peso nas
transformações da aldeia – uma delas é a construção da ferrovia –, o caudilhismo, o
imperialismo estadunidense, entre outros. O que é importante relatar, é que há uma
mudança social e cultural ao longo da história, os pensamentos dos habitantes mudam
conforme a época, mas algo nunca some de vista: a solidão, problema decorrido do
abandono da aldeia e sua constante submissão, dando a entender que a falta de
controle da própria história gera cada vez mais a solidão de seus habitantes.
E foi esta história que passou de “mão em mão” entre seus amigos e críticos
literários. García Márquez mandou capítulos do livro para o escritor mexicano Carlos
Fuentes, que repassou para o poeta argentino Cortázar e para o crítico literário
35
Utilizando das reflexões de Bella Jozef, a historiadora Adriane Vidal Costa esclarece o realismo mágico:
“Segundo Bella Jozef, „o fantástico, como categoria do literário, é um discurso que coloca em discussão a lógica
da realidade compreendida como real, acusando as contradições do mundo contemporâneo. [...] Na literatura
fantástica não se trata de crer no real para reconhecer o imaginário, mas tomar por um imaginário o real que
recusamos a assumir. No fantástico, o inconsciente vem à tona (daí a importância do não-dito).‟ A narração
fantástica se constrói a partir de uma realidade minada e se nutre de uma visão ambígua do real que diferencia o
realismo mágico da ficção tradicional que refletia a realidade em „seu simplismo épico‟. Dessa forma, muitos
chamavam a literatura do boom, na época, de „nova literatura‟.” COSTA, Adriane Vidal. Intelectuais, Política e
Literatura na América Latina: o debate sobre revolução e socialismo em Cortázar, García Márquez e Vargas
Llosa (1958-2005). 413 f., 2009. Tese (doutorado em História) Linha História e Culturas Políticas, da
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2009, p. 132. 36
A árvore genealógica completa da família Buendía se encontra no Anexo A
20
uruguaio Rodríquez Monegal, “ativando” uma rede de intelectuais latino-americanos
que surgiu em volta de Cuba – assunto sobre o qual trataremos logo mais. Esses
romancistas e críticos literários passaram a escrever críticas, comentar e apresentar,
tanto o romance, quanto García Márquez. 37
Foi assim que Cien Años de Soledad teve sete capítulos publicados em diversos
periódicos, criando assim toda uma expectativa ao redor da obra. O capítulo 1 foi
publicado no jornal El Espectador, de Bogotá, em 1º de maio de 1966. O capítulo 2
saiu pela revista Mundo Nuevo, publicada em Paris, em agosto do mesmo ano. A
revista literária peruana Amaru tratou de publicar o capítulo 12 em janeiro de 1967. A
revista colombiana Eco publicou o capítulo 17 no mesmo período. Novamente a
revista Mundo Nuevo publicou em março de 1967 o capítulo 3. Em abril do mesmo
ano a revista mexicana Diálogos publicou o capítulo 16. O último dos sete capítulos
publicados saiu uma semana antes do lançamento do livro pela revista argentina
Primeiro Plano, que publicou um fragmento do capítulo 6.38
Como Adriane Vidal
Costa ressalta, “o êxito de vendas desse livro se deve, em grande medida, à existência
dessa rede de escritores que queriam tornar a literatura latino-americana reconhecida
dentro e fora do subcontinente”.39
Enfim, a primeira edição do romance foi lançada em 30 de maio de 1967, com
suas 352 páginas, uma tiragem de 8 mil exemplares e custando 650 pesos, foi lançado
pela editorial Sudamericana, com sede em Buenos Aires. Na primeira semana o livro
vendeu 1.800 cópias, alcançando a terceira colocação na lista de Best-seller na
Argentina.40
As três edições seguintes, ainda no mesmo ano, tiveram a incrível tiragem
de 20 mil exemplares.41
No ano seguinte 25 mil, e após 1969, tiragens de 100 mil,42
número excepcional para o comércio de livros na América Latina.
37
id.ibid., p. 149-154. 38
A pesquisa feita dos capítulos que García Márquez publicou antes de lançar seu livro está elucidada na
reportagem do jornal El País, que esclarece também as mudanças que o escritor fez dos capítulos publicados para
o livro editado que apareceu nas livrarias. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/27/cultura/1495898941_823449.html> Acesso em: 25 de mar. 18. 39
COSTA, id.ibid., p. 154. 40
Geral Martin não esclarece a qual país a lista pertence. Por isso supus, pelo livro ter sido lançado primeiro na
Argentina, que pertença à Argentina. 41
MARTIN, op.cit., p. 390-393. 42
BRAGANÇA, op.cit., p. 121.
21
1.3 O DISCURSO LITERÁRIO: A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO
O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do
que é a vida humana na armadilha que se tornou o mundo.
Milan Kundera
Esclarecendo um pouco do contexto literário e histórico que García Márquez
estava inserido, podemos agora nos voltar a uma análise preliminar de seu romance
Cien Años de Soledad, buscando os significados atribuídos à ideia de memória e de
esquecimento que o romancista elaborou em sua obra a partir da sua realidade.
Essa análise vai ser importante, pois o livro como fonte histórica permite
acessar aspectos sensíveis da década de 1960 na América Latina; com isso queremos
dizer que podemos estudar elementos daquela época, utilizando as elaborações de
García Márquez a respeito da memória e do esquecimento para buscar uma dimensão
daquele passado. Diante disso, como Sandra Pesavento aborda, o discurso literário é
uma forma de dizer o “real”. É uma representação sobre o mundo e que traduz
“sentidos e significados inscritos no tempo”,43
ou seja, do momento que a ideia do
livro foi pensada, elaborada e escrita.
Contudo, o texto literário não necessariamente apresenta fatos e acontecimentos
do passado; ele utiliza de metáforas, uma forma cifrada de ver o mundo. A literatura
não visa representar o “real concreto” e os acontecimentos do passado, mas ela busca
expressar o mundo sensível, sentido; um mundo subjetivo, lugar das emoções e das
formas que as pessoas veem e sentem o mundo à sua volta. A literatura não é a
realidade concreta, mas ao passo de que experiências, sentimentos, ideias e
perspectivas são narradas, o escritor inscreve em sua obra os significados do seu
mundo – da forma que o vê.44
Portanto, Cien Años de Soledad constrói, à sua maneira, um mundo simbólico,
repleto de alegorias e símbolos – que trataremos logo mais –, que buscam representar
uma América Latina vertiginosa, cheio de problemas, dentre eles a construção da
43
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e literatura: uma velha-nova história. Nuevo Mundo Mundos Nevos, n°
06, abr. 2006, p. 07. Disponível em: <https://journals.openedition.org> Acesso em: 25 mai. 2018. 44
id.ibid., p. 07.
22
identidade, o imperialismo estadunidense, o passado traumático e, por fim, o
significado que García Márquez atribuiu à ideia de memória e ao esquecimento.
É utilizando da metáfora, signos escritos e símbolos, que o romancista
representa seu contexto histórico. Pois, como Robert Darnton esclarece, a
representação é estabelecida por relações metafóricas, que envolvem, como já dito,
“signos, ícones, índices (...) e outros recursos da maleta de truques retóricos”.45
Resta
saber de que forma García Márquez retratou seu contexto histórico e de que maneira
enquadrou os problemas da América Latina na perspectiva da década de 1960.
Como fruto de sua época, Cien Años de Soledad – utilizando da metáfora –
constrói uma representação da América Latina. E os símbolos construídos no texto
literário funcionam, segundo Darnton, “devido à sua posição dentro de um quadro
cultural”.46
É por este motivo que foi necessário explicar o contexto da Revolução
Cubana para o continente e do Boom da literatura latino-americana; ou, em outras
palavras, do quadro cultural da década de 1960. Portanto, a literatura como fonte dá
acesso especial ao imaginário da época; traz as imagens sensíveis do mundo do
escritor, 47
de Gabriel García Márquez, que,
Situando sua narrativa de maneira padronizada, baseando-se em imagens
convencionais e recorrendo a associações usuais, (...) passa um sentido sem
torná-lo explicitado. Ele introduz o significado em sua história, pela maneira
como a relata.48
A partir dessa relação da literatura com a história, teremos como foco de
análise as ideias que Gabriel García Márquez elaborou sobre a memória e o
esquecimento. Portanto, para começar a analisar, deve-se ressaltar que a história do
livro se inicia durante a guerra civil entre o Partido Conservador e o Partido Liberal.
De início o escritor já retrata uma situação história da Colômbia: as guerras
civis colombianas que perduraram de 1880 à 1903, um período mais conhecido como a
Regeneração.49
O país passou a ser governado pela elite conservadora e o Poder
45
DARNTON, Robert. História e antropologia. In:_____. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 344. 46
id.ibid., p. 350 47
PESAVENTO, op.cit., 2006, p. 07. 48
DARNTON, op.cit., p. 351-352. 49
HYLTON, Forrest. A Revolução Colombiana. São Paulo: Edusp, 2010, p. 53-62.
23
Executivo foi fortalecido, dando autoridade ao presidente Rafael Núnez para designar
governadores provinciais – que são representados pela imagem do personagem Don
Apolinar Moscote, designado à ser o corregidor de Macondo. Na história do livro,
quando Apolinar chega ao povoado, seguindo as ordens do governo central, promulga
uma leia que demonstra a dominação conservadora: as casas deveriam ser pintadas de
azul, a cor do Partido Conservador. Vale acrescentar ainda que foi durante a
Regeneração que a pena de morte foi reestabelecida.50
E é numa sentença de morte que
a história do livro começa.
Sob a mira dos fuzis das tropas conservadoras, pensaríamos que o personagem
coronel Aureliano Buendía – um rebelde liberal – não escaparia e que a morte era
certeira. Contudo, não levamos em consideração, no incido da leitura, uma das
faculdades humanas mais poderosas que podemos ter: a memória. Assim, o Coronel
não apenas “escapou”, como se lembrou do dia em que seu pai o levou para conhecer
o gelo, nos primórdios da sua cidadezinha, Macondo.
Ela foi fundada por José Arcadio Buendía – seu pai – junto de sua esposa
Úrsula Iguarán – sua mãe – quando se aventuravam numa viagem de 26 meses em
busca de uma rota para o mar. Nos primeiros anos de Macondo, era costume que no
mês de março os ciganos aparecessem na aldeia trazendo os inventos e descobrimentos
do restante do mundo. Assim José Arcádio Buendía, fascinado pelas novidades,
perseguiu seus sonhos de encontrar ouro – com imãs que comprou dos ciganos – e de
transformar a luneta, que conseguiu trocando com os próprios ciganos, numa arma de
guerra. E em seus experimentos científicos, descobriu que a terra era redonda. As
pessoas da aldeia acharam que estava louco, mas o cigano Melquíades, tratou de
assinalar a inteligência do patriarca e lhe deu um laboratório de alquimia – assim como
sua amizade.
Numa dessas idas e vindas, os ciganos trouxeram o que José Arcádio Buendía
acreditava ser o maior invento de seu tempo: o gelo. Está é a lembrança que faz o
coronel Aureliano Buendía se lembrar do seu passado. E com ela podemos traçar
alguns parâmetros do fenômeno da memória.
50
id.ibid., p. 54.
24
A lembrança, com as palavras de Paul Ricoeur,51
é a presença de uma coisa
ausente, que vem na forma de uma imagem, marcada com o selo da anterioridade. Em
outras palavras, a lembrança é a imagem daquilo que nos lembramos por ser de
alguma forma marcante ou/e costumeira. Ela está presente porque nos lembramos do
passado no tempo presente que estamos vivendo. E nos lembramos de algo que já
passou, ou seja, não está mais lá: logo, está ausente. A lembrança vem com o selo de
anterioridade porque ela é o que dá o caráter temporal do passado, ela que estabelece e
dá significado de que aquele acontecimento já passou, que é anterior a formulação de
sua imagem – que vem como uma lembrança. Partimos então à icônica frase inicial do
livro: “Muchos años después, frente ao pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano
Buendía había de recordar aquella tarde remota em que su padre o llevó a conecer el
hielo”.52
Quando José Arcadio Buendía levou seu filho Aureliano (futuro coronel) para
ver o gelo, aquilo se tornou marcante para ele, principalmente por ser algo nunca antes
visto na aldeia; tanto que o gelo, a princípio para o patriarca, era a maior das invenções
de sua época. Assim, aquele momento ficou em sua memória justamente por ser
marcante. No instante que o coronel está de frente ao pelotão de fuzilamento, ele não
apenas está lembrando, como – e sentimos isso pela narrativa – está revivendo aquele
passado; logo, ele está presente. Contudo o gelo e os primeiros anos de Macondo não
estão lá, estão ausentes, estão “(n)aquella tarde remota em que su padre lo llevó a
conecer el hielo”. E o coronel, sabe que aquela experiência marcante de tocar o gelo e
senti-lo “hiervendo”53
já aconteceu e está no passado, pois sua memória diz que aquilo
não está no presente, mas que já passou. A memória, enfim, possibilita e marca o
acesso a uma experiência que está no passado, que é anterior ao pelotão de
fuzilamento.
51
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2014. Todas as
explicações, investigações e estudos a respeito de o que é uma lembrança estão na Parte I, “Da Memória da
Reminiscência”, no capítulo 1, “Memória e Imaginação”, pp.25-70. 52
Todas as traduções das citações são minhas até ser dito o contrário: “Muitos anos depois, diante do pelotão de
fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de lembrar aquela tarde remota em que seu pai o levou para
conhecer o gelo”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., 2007, p. 9. 53
“Fervendo”. id.ibid., p. 27-28.
25
Como Ricoeur esclarece desde o inicio e sustenta ao longo do livro, “uma
ambição, uma pretensão está vinculado à memória: a de ser fiel ao passado”.54
Isso
acontece porque a memória é o único recurso capaz de dar o significado de passado
para um acontecimento, um sujeito ou uma situação, que aconteceu antes de nos
lembramos deles.
Essa exímia capacidade humana que é a memória é exercitada por meio da
evocação e da recordação. É isto que o coronel pratica no momento que os fuzis estão
apontados para ele: “había de recordar aquella tarde remota”. A evocação diz respeito
a uma lembrança que vem a nós sem ser “chamada”, ela surge num relampejo. Em
outras palavras, ela é involuntária: um aparecimento atual de uma lembrança. No
momento que o coronel Aureliano Buendía estava para ser fuzilado
la rabia se había materializado en una sustancia viscosa y amarga que le
adormeció la lengua y lo obligó a cerrar los ojos. Entonces desapareció el
resplandor de aluminio del amanecer, y volvió a verse a si mismo, muy niño,
con pantalones cortes y un lazo en el cuello, y vio a su padre en una tarde
espléndida conduciéndolo al interior de la carpa, y vio el hielo.55
Aqui, enfim, o cenário do fuzilamento se completa. E percebemos que a
lembrança do gelo, que deu inicio a narrativa da história dos primeiros anos de
Macondo, foi uma evocação. O ato se complementa no momento que o coronel
reconhece a lembrança.
Há, entretanto, uma diferença do significado da palavra “recordar” para Paul
Ricoeur e o que está presente em Cien Años de Soledad. O filósofo reserva o termo de
recordação para aquela lembrança que é particularmente buscada, não evocada.
Portanto, o ato de recordar parte do sujeito que busca uma lembrança por conta
própria. E, como Ricoeur esclarece, a busca vem do resultado do medo de esquecer
algo. “Assim, boa parte da busca do passado se encaixa na tarefa de não esquecer”.56
Em suma, é o medo de que a lembrança seja esquecida que faz a busca ser necessária.
Na essência, esse é o dever da memória.
54
RICOEUR, op.cit., p. 40. 55
“A raiva havia se materializado em uma substância viscosa e amarga que adormeceu sua língua e o obrigou a
cerrar os olhos. Então o brilho de alumínio do amanhecer desapareceu, e tornou a ver a si mesmo muito pequeno,
com calças curtas e um laço no pescoço. E viu seu pai em uma tarde esplêndida conduzindo-o ao interior de uma
tenda, e viu o gelo” GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., p. 153. 56
RICOEUR, op.cit, p. 48.
26
Já em Cien Años de Soledad, García Márquez usa a mesma palavra “recordar”,
contudo, o coronel não pratica o ato de recordar como Paul Ricoeur delimitou. O que
acontece no momento do fuzilamento do coronel Aureliano Buendía é uma lembrança
evocada: “el coronel Aureliano Buendía había de recordar”. García Márquez usa a
palavra recordar com o significado geral de lembrar. Como vimos anteriormente,
lembrar engloba tanto a evocação quanto a recordação de uma lembrança – segundo
Paul Ricoeur. Foi num relampejo, numa evocação, que a lembrança do momento foi
até o coronel, e ele a reconheceu, vendo a si mesmo pequeno.
Agora que os parâmetros do que é uma lembrança e como ela opera estão
estabelecidos, podemos dar sequência à história. Há um episódio do livro, limitado ao
capítulo 3, em que muito desses parâmetros (e muitas outras reflexões que
estabeleceremos com a análise seguinte) são percebidos pelos próprios personagens da
história. Ele é conhecido pela calamidade que flagela a aldeia: a peste da insônia.
Enquanto o patriarca José Arcadio Buendía organizava a aldeia para os novos
moradores, uma órfã de 11 anos chegou à casa dos Buendía. Era Rebecca. Ao que
parecia era parente deles e não demorou a fazer parte da família. Visitácion, uma índia
guajira que chegara a Macondo junto com o irmão, tinha o papel de serva da casa e
tratou de cuidar da criança adotada.
E numa noite a índia encontrou Rebeca Buendía acordada. Aterrorizada,
Visitácion reconheceu os sintomas da enfermidade que obrigou ela e o irmão a fugir
“de un reino milenário en el cual eran príncipes. Era la peste del insomnio.”57
Logo
José Arcadio Buendía perdeu o sono, e em seguida o restante da casa: “Habían
contraído, em efecto, la enfermedad del insomnio”58
Por fim, a peste acabou tirando o
sono de todo mundo da aldeia. O patriarca reuniu os chefes das famílias e decidiram
tomar medidas para que a peste não se alastrasse para outra cidade.
A princípio, ninguém se alarmou. Ficaram felizes, afinal de contas, havia muito
o que fazer em Macondo. “„Si no volvemos a dormir, mejor‟, decía José Arcadio
Buendía, de buen humor. „Así nos rendirá más la vida‟”59
Nessa aceitação da insônia,
57
“de um reino milenar na qual eram príncipes. Era a peste da insônia”. Grifo meu. GARCÍA MÁRQUEZ,
op.cit., p. 56. 58
“haviam contraído, de fato, a enfermidade da insônia”. id.ibid., p. 57. 59
“„Se não voltarmos a dormir, melhor‟ disse José Arcadio Buendía, de bom humor. „Assim o dia nos renderá
mais‟” id.ibid., p. 56.
27
ou seja, do estado deles, que se abre a brecha para o esquecimento se manifestar. A
insônia se tornou tão natural que a aldeia passou a organizar a vida sem se incomodar
mais com a falta do sono.
Enquanto seu irmão fugiu, a índia Visitacíon ficou, pois acreditava que não
importasse aonde fosse, a peste lhe perseguiria. Assim “les explico que los más
temible de la enfermedad del insomnio no era la imposibilidad de dormir, pues el
cuerpo no sentía cansancio alguno, sino su inexorable evolución hacia una
manifestación más crítica: el olvido”.60
Vale ressaltar aqui, que el olvido, o
esquecimento, estando relacionado como uma enfermidade e tomando proporções
calamitosas ao atingir todo o povoado, ganhou sem dúvida um sentido negativo. O
esquecimento, desde o começo, não foi visto com bons olhos.
Com esse episódio começamos então a confrontar, distinguir e opor
esquecimento e memória, estabelecer alguns valores e significados que eles ganham
dentro da história e de sua narrativa. Se conhecemos de início as façanhas da memória,
de possibilitar o acesso à experiências do passado e nos dar a sensação de
temporalidade, conheceremos agora as ameaças do esquecimento.
A explicação continua, a índia
quería decir que cuando el enfermo se acostumbraba a su estado de vigilia,
empezaban a borrarse de su memoria los recuerdos de la infancia, luego, el
nombre y la noción de las cosas, y por último la identidad de las personas y
aun la conciencia del propio ser, hasta hundirse en una especie de idiotez sin
pasado.61
Aqui o esquecimento e a identidade se cruzam numa problemática. No campo
da ficção, desse mundo criado por García Márquez, o esquecimento é tão desolador
que faz as pessoas perderem tanto sua identidade quanto sua própria consciência. Estas
duas consequências da peste da insônia e da manifestação do esquecimento não estão
lá por um acaso, elas remetem a um momento, como já ressaltado anteriormente, que o
60
“explicou a eles que o mais temível da enfermidade da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o
corpo não sentia cansaço algum, mas sim sua inexorável evolução ruma a uma manifestação mais crítica: o
esquecimento”. id.ibid., p. 56. 61
“queria dizer que quando o enfermo se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a desaparecer de sua
memória as lembranças da infância, depois o nome e a noção das coisas, e por último a identidade das pessoas e
consciência do próprio ser, até afundar numa espécie de idiotice sem passado”. id.ibid., p. 56.
28
próprio escritor estava inserido e escrevia seu romance: a década de 1960. Contudo,
esse trecho abre portas para buscarmos – a partir de um contexto mais amplo, em que a
identidade latino-americano e a Revolução Cubana seguem indissociáveis – uma
análise mais aprofundada.
29
2. MEMÓRIA, IDENTIDADE, ESQUECIMENTO
Neste capítulo explicaremos a importância da Revolução Cubana para a
América Latina e o mundo dos escritores, poetas, críticos literários do continente,
mostrando como a política cultural de Cuba direcionou uma rede de intelectuais latino-
americanos de esquerda que, junto às instituições cubanas, promoveram debates sobre
o papel do intelectual e do literato na revolução, e da literatura na política. Cuba,
como veremos, disponibilizou uma base de apoio, canais de expressão e
reconhecimento aos escritores, que passaram a ser vistos como interlocutores. É o
quadro cultural do continente, moldado pela Revolução Cubana, que propiciou a
García Márquez o levantamento de temas e questões vitais para a época – como as
questões da identidade, da memória e do esquecimento – em sua obra Cien Años de
Soledad, escrita entre 1965 e 1966.
É a partir principalmente da questão da identidade latino-americana debatido
pelos intelectuais que podemos correlaciona-la, junto com o contexto da época, com a
noção de memória e do esquecimento que o escritor elaborou em sua obra.
2.1 A AMÉRICA LATINA NA DÉCADA DE 1960
No fundo, o que restou daquele tempo distante? Hoje, representam
para todo mundo os anos dos processos políticos, das perseguições,
dos livros do índex e dos assassinatos judiciais. Mas nós, que nos
lembramos, devemos trazer o nosso testemunho: não era apenas o
tempo do horror, mas também tempo do lirismo! O poeta reinava
junto com o carrasco.
Milan Kundera
A Revolução Cubana abalou as estruturas socioculturais da América latina,
reativando muito das discussões referentes à identidade latino-americana. Apesar de
García Márquez não participar diretamente e ativamente nos debates sobre a
30
revolução, do socialismo e do papel do intelectual 62
– em que seria mais ativo apenas
nas décadas seguintes –, seria um dos expoentes literários com Cien Años de Soledad.
Na década de 1960 a noção de socialismo era ampla e suas características, em
linhas gerais, foram marcadas pela superação da herança cultural da colonização e pela
criação de uma consciência coletiva propícia para a fomentação de identidades
próprias, que em muitos casos estavam intrinsecamente ligadas ao anti-imperialismo.
A Revolução Cubana, por sua vez, demarcou a direção que a esquerda latino-
americana poderia seguir, inaugurando uma nova época política, social e cultural na
América Latina.63
Como Adriane Vidal Costa esclarece,
muitos intelectuais latino-americanos, nos anos 60, acreditavam que o
socialismo era a única possibilidade de suprimir as diversas formas de
dependência que vinculavam a América Latina aos países centrais do Norte
capitalista, principalmente aos Estados Unidos. 64
Portanto, a Revolução Cubana foi marcada desde o inicio como um
experimento de originalidade social, nacionalista e justo. Cuba apresentou-se como um
lugar onde uma extensa camada da esquerda latino-americana podia repousar seus
ideais. Esses intelectuais de esquerda se organizaram numa corrente de ação política,
pois encontraram na ilha cubana uma base de apoio onde podiam se expressar e serem
reconhecidos por governos e instituições como interlocutores. Essas características da
época vieram muito por conta da política cultural que Cuba elaborou e estabeleceu,
tornando-a uma atração para os literatos, críticos literários, poetas e intelectuais latino-
americanos.65
A partir disso, a nova época política que Cuba inaugurou fez da década de 1960
um período de intenso debate cultural na América Latina. É através da mídia e da
literatura que a Revolução Cubana, com sua política cultural e sua intrínseca ligação
com intelectuais latino-americanos, forneceu cenários políticos e culturais, estabeleceu
62
COSTA, op.cit., p. 47. 63
id.ibid., p. 41-42. 64
id.ibid., p. 43. 65
Cuba acabou ganhando simpatia de escritores cubanos como Alejo Carpentier e José Lezama Lima; apoio de
intelectuais e romancista como o peruano Mario Vargas Llosa, os mexicanos Octavio Paz e Carlos Fuentes, o
crítico literário uruguaio Ángel Rama e o poeta argentino Júlio Cortázar. id.ibid., p. 43-46.
31
eventos históricos, imagens e panoramas para a América Latina, que representam
experiências partilhadas, tanto de triunfos, como a própria revolução; como os
desastres que o imperialismo gerou no continente.
Ela criou um amplo espaço para que muitos intelectuais latino-americanos
pudessem debater, principalmente na década de 1960, temas como o socialismo na
América Latina e o papel do intelectual latino americano na sociedade. Essas duas
questões abriram portas para as discussões sobre a realidade latino-americana, o papel
da literatura, do engajamento político do literato e a forma de representar o sujeito
latino-americano. O que deu caminho para que se identificassem com essa
representação que vinha principalmente da mídia, com a Prensa Latina e a instituição
Casa de las Américas, e a literatura, com seus escritores a serviço da causa cubana. 66
Questões também como a identidade latino-americana foram amplamente
debatidas, representadas e apresentadas através de sistemas culturais como em
discursos, artigos, matérias, instituições e pela literatura da época. E assim, muitos
intelectuais, além de buscarem propor e até representar um sujeito latino-americano,
que era essencialmente anti-imperialista com viés político direcionado à esquerda,
também se identificavam com essas identidades, assumindo suas condições de latino-
americanos.67
A Revolução Cubana estabeleceu sistemas culturais, elaborando, direcionando e
até impondo formas de pensamento. Na década de 1960 ela fez emergir uma rede de
intelectuais latino-americanos de esquerda, que se relacionavam por meio de
congressos e reuniões realizadas ao longo da década.
O repertório discursivo dessa rede intelectual apelava, principalmente, para o
fomento da integração cultural latino-americana, o fortalecimento do
compromisso político-social do escritor, a defesa da causa cubana e do
socialismo e, por fim, a promoção da luta aintiimperialista.68
São justamente esses pontos ressaltados pelos intelectuais em volta de Cuba que
seriam os pressupostos das identidades latino-americanas. Contudo, foi apenas a partir
do espaço comum, dessa rede de intervenção intelectual, que Cuba possibilitou o
66
id.ibid., p. 22. 67
id.ibid., p. 132-133. 68
id.ibid., p. 47.
32
estabelecimento desses discursos. Na década de 1960 ela transformou-se num “lar”
para o mundo letrado, e, como Costa ressalta,
o governo revolucionário passou a vislumbrar a criação de um novo espaço
cultural latino-americano, por meio de suas instituições político-culturais
(como a Casa de las Américas, especializada na promoção das relações
culturais com a América Latina), que possuía um discurso de apelo
identitário e utópico em torno da ideia de desenvolvimento e revolução. 69
O novo espaço cultural que Cuba construiu e promoveu pela América Latina,
junto com os discursos dos intelectuais latino-americanos, criou um quadro
sociocultural em que se buscava, através de discursos, instituições e pela literatura,
fomentar e fortalecer as identidades latino-americanas. Como exemplo temos a
instituição Casa de las Américas – com sua biblioteca, seu centro de pesquisas, suas
premiações e até uma revista com o mesmo nome –, que tinha o intuito de promover a
cultura latino-americana.70
Na primeira metade da década de 1960 a Casa de las Américas direcionou
debates, dentre eles, do papel do intelectual. A instituição seguia as diretrizes que
Cuba havia organizado após a revolução, com o intuito de postular um compromisso
do intelectual com o projeto cubano. Muito dessas diretrizes, além de serem firmadas a
partir de três reuniões (16, 23 e 30 de junho de 1961) com as maiores figuras do
governo e de intelectuais cubanos, teve como guia o discurso de Fidel Castro,
Palabras a los intelectuales. Por fim, a política cultural foi ratificada em agosto de
1961 no Primeiro Congresso Nacional de escritores e artistas. A revista Casa de las
Américas, por sua vez, guiaria os debates da intelectualidade latino-americana a
respeito do papel do intelectual e da literatura. 71
A articulação dessa rede de intervenção intelectual foi assentada por meio de
congressos, simpósios, assembleias e reuniões de escritores. Sendo as revistas
culturais, dentre elas a própria revista Casa de las Américas, grandes componentes
para a consolidação dessa rede. O prestígio dela era tanto, que muitos intelectuais
69
id.ibid., p. 50. 70
id.ibid., p. 50-51. 71
id.ibid., p. 57-62.
33
latino-americanos buscavam estar vinculados à revista, normalmente se pondo a favor
da Revolução Cubana e do anti-imperialismo.72
2.2 A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO
Assim como a morte definitiva é o fruto último da vontade de esquecimento,
assim a vontade de lembrança poderá perpertuar-nos a vida.
José Saramago
Tendo isto em vista, não é difícil de notar o motivo do tom de alerta
desesperador da índia Visitácion. O próprio fato, de tanto a identidade quanto a
consciência do sujeito aparecerem na sentença e na situação que os habitantes de
Macondo passavam naquele período, revela o que mais se sobressaia no cenário
político, social e cultura da década de 1960 na América Latina.
Interpretamos, segundo, que García Márquez não colocou a identidade e a
consciência do individuo em sua ficção por nada, queria mostrar, e fazer sentir, o
quanto era preocupante a manifestação e a predominância do esquecimento do passado
da América Latina. Pois, num cenário político, social e cultural da década de 1960,
com influência direta da Revolução Cubana, do socialismo, do Boom da literatura e
dos debates em torno de organização social, da condição do latino-americano e da
conscientização sobre as situações e problemas do continente, podemos interpretar o
esquecimento, que faria “borrarse de su memoria (...) la identidad de las personas y
aun la conciencia del propio ser, hasta hundirse en una especie de idiotez sin
pasado”,73
como algo negativo. Podemos colocar nesses termos: a identidade e a
consciência do latino-americano foi algo muito relevante para o cenário da época, e o
esquecimento representa uma derrocada daquilo que era visto como umas das coisas
mais importantes para o período.
No momento em que é perdida a própria noção de identidade – de latino-
americanos – e da própria consciência, entramos num estado de “demência”, em que
72
id.ibid., p. 50-55. 73
“a desaparecer de sua memória a identidade das pessoas e consciência do próprio ser, até afundar numa
espécie de idiotice sem passado”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., 2007, p. 56.
34
não há oportunidade de refletirmos nem debatermos o nosso passado, essa matéria tão
importante para consolidar uma identidade e fundamentar nossa realidade – como
vimos no subcapítulo anterior, uma época marcada por debates e representações sobre
as situações e reflexões da época. O esquecimento “leva embora” por completo o
passado dos indivíduos: o passado da América Latina que García Márquez trata em
Cien Años de Soledad.
Dando seguimento a história do romance, foi com muita luta que os habitantes
de Macondo tentaram impedir o esquecimento e as consequências da perda de
identidade e da consciência. Pois logo a enfermidade começou a evoluir e ser sentida
pelos demais moradores do povoado, apesar de não ter ganhado grande importância
num primeiro momento. O próximo estágio começou quando José Arcadio Buendía
deixou de lembrar-se da sua infância, e essa fase da vida do patriarca corresponde ao
período inicial da Colômbia: quando ela deixou de fazer parte da Grã-Colombia74
em
1830. Na sequência, Aureliano começou a esquecer-se do nome dos objetos, revelando
que esse estágio da doença estava intrinsecamente ligado à vida cotidiana.
Tudo indicava que o próximo estágio era a perda da identidade e a consciência
de si, restando um estado de idiotice para a pessoa, cujo passado para ele deixaria de
existir. Aureliano, entretanto, não se deixou vencer pelo esquecimento, concebe então
“la fórmula que había de defenderlos durante varios meses de las evasiones de la
memoria”,75
que simplesmente era a prática de inscrever em papel e em cartazes o
nome, a funcionalidade e a noção das coisas – assim como os significados de cada
sentimento e seus respectivos nomes –, e colar sobre os objetos e os animais. Sua
prática foi imposta em todo o povoado.
Contudo, o esquecimento, uma vez mais, mostra seu abismo desesperador:
Poco a poco, estudiando las infinitas posibilidades del olvido, (José Arcadio
Buendía) se dio cuenta de que podía llegar un día en que se reconocieran las
cosas por sus inscripciones, pero no se recordara su utilidad. Entonces fue
más explícito. El letrero que colgó en la cerviz de la vaca era una muestra
ejemplar de la forma en que los habitantes de Macondo estaban dispuestos a
luchar contra el olvido: Estas es la vaca, hay que ordeñarla todos las
74
A Grã-Colombia foi um país que surgiu após a independência em 1810. Após disputas regionais, ela se
fragmentou em 1830, dando lugar à Venezuela, Panamá, Equador e Colômbia. 75
“a fórmula que havia de defendê-los durante vários meses das evasões da memória”. id.ibid., 2007, p. 59.
35
mañanas para que produzca leche y a la leche hay que hervirla para
mezclarla con el café y hacer café con leche.76
Alguns significados começam a se configurar. O esquecimento é visto como um
inimigo a ser combatido, ele prejudica o funcionamento do cotidiano das pessoas,
principalmente em suas atividades e prazeres mais rotineiros, como é mostrado na
rotina de tirar o leite da vaca, fervê-lo e misturar com o café. Sem a faculdade da
memória e sua capacidade de acessar o passado e trazê-lo ao presente, os habitantes de
Macondo tiveram que improvisar com a “memória escrita”, estabelecendo o cotidiano
com as palavras.
Entretanto, o esquecimento não reduz a sua marcha e continua a prejudicar todo
o povoado, pois suas consequências são mais drásticas. As placas que explicavam todo
o funcionamento das práticas cotidianas não foi o suficiente: “Así continuaron
viviendo en una realidad escurridiza, momentáneamente capturada por las palabras,
pero que había de furgarse sin remedio cuando olvidaran los valores de la letra
escrita”.77
Com isso, alternativas são descobertas para tentar se locomover nesse mar
de incertezas. Pilar Ternera – antiga funcionária da casa dos Buendía – era conhecida
em Macondo por ler o futuro das pessoas no baralho. Foi em meio a essa realidade
incerta que, durante a peste da insônia, ela começou a ler, portanto, o passado.
“Mediante ese recurso, los insomnes empezaron a vivir en un mundo construido por
las alternativas inciertas de los naipes”.78
As pessoas passaram a redescobrir seu
passado; mas esse passado estava dentro do jogo incerto das adivinhações das cartas. E
ele não era um passado por completo, aquele mesmo que a pessoa recordava, pois as
alternativas do passado dela vinham em narrativas simplistas.
Ao que parece, não há outra saída, e assim, o olhar se volta uma vez mais aos
valores da memória. Em Cien Años de Soledad, começamos a compreender a partir da
76
“Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, (José Arcadio Buendía) se deu conta
que podia chegar um dia em que se reconheceriam as coisas por suas inscrições, mas não se lembraria sua
utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que colocou no cachaço da vaca era uma amostra exemplar da
forma que os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, e deve ser
ordenhada todas as manhãs para que produza leite, e o leite deve ser fervido para ser misturado com o café e
fazer café com leite”. A marcação é do próprio escritor. id. ibid., p. 60. 77
“Assim continuaram vivendo numa realidade escorregadiça, momentaneamente capturada pelas palavras, mas
que havia de fugir inevitavelmente quando esquecerem os valores da letra escrita”. id. ibid., p. 60. 78
“Mediante esse recurso, os insones começaram a viver num mundo construído pelas alternativas incertas dos
naipes”. id. ibid., p. 61.
36
falta de memória, que ela é uma “barreira” que protege, dentre outras coisas, a
identidade e a própria consciência do sujeito. Sem a faculdade da memória perdemos o
nosso passado, a noção de nosso lugar no mundo, do nosso pertencimento; por isso
colocam em frente ao povoado um cartaz escrito com o nome da aldeia: Macondo. E
ao lado dela, delimitando a fé, está outra escrita que “Dios existe”.79
A memória, para Gabriel García Márquez, é vista então como uma mediadora
da realidade. A partir dela, é possível organizar, regular, constituir e estabelecer os
parâmetros da realidade. A memória está intrinsecamente ligada à vida rotineira e ao
cotidiano das pessoas. Na sua ausência, na falta de lembranças, ou seja, na
manifestação derradeira do esquecimento, surge uma situação que torna a “realidade
escorregadia”, volúvel, incerta e insustentável, pois os habitantes de Macondo não
conseguem sustentar por muito tempo todas as suas práticas para organizar a aldeia.
Como previsto, até mesmo a exigente escrita sucumbiu ao esquecimento, tanto que
“muchos sucumbieron al hechizo de una realidad imaginaria, inventada por ellos
mismo, que les resultaba menos práctica pero más reconfortante”.80
Mostrando uma
vez mais que a falta de memória é um caminho inexorável à perda da própria
realidade, o que foi relatado nos presságios de Visitácion e que se manifestou em
Macondo e nos seus habitantes que viviam numa realidade escorregadia e incerta.
Desgastado pelas exigentes técnicas da lembrança, José Arcádio Buendía decide
criar então a máquina da memória, que repassaria, todos os dias, todo o conhecimento
adquirido ao longo da vida. No processo de construção, entretanto, um homem de
sombreiro preto aparece com o remédio para a enfermidade, e a aldeia celebra, enfim,
“la reconquista de los recuerdos”81
Presenciamos então uma reviravolta. Seguimos até aqui acreditando que o
esquecimento da peste era irrevogável. Os habitantes de Macondo lutaram
exemplarmente contra a manifestação, do até então, esquecimento definitivo – o que
Paul Ricoeur esclarece ser um esquecimento pelo apagamento dos rastros,82
o mais
79
“Deus existe”. id.ibid., p. 60. 80
“muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que foi menos
prática, contudo mais reconfortante”. id.ibid., p. 61. 81
“a reconquista das lembranças”. id.ibid., p. 62. 82
Sobre o apagamento definitivo dos rastros mnemônicos, Paul Ricoeur dedica uma seção inteira dialogando
com a neurociência. Parte III, “A Condição Histórica”, Capítulo 3, “O Esquecimento”, Seção I, “O esquecimento
e o pagamento dos rastros”. RICOEUR, op.cit., pp. 428-435.
37
profundo dos esquecimentos. Com rastros, nesse momento, o filósofo quer dizer
aqueles resquícios de lembrança que se mantém em nossa memória.83
Mas, como
vimos, Macondo comemora a reconquista das lembranças. Não era o esquecimento
definitivo que se manifestava no povoado, afinal, pelo remédio que o homem de
sombreiro trouxe, eles voltaram a ter suas lembranças que até então achavam estar
apagas de vez.
O que predominou na aldeia é o que Ricoeur denomina de esquecimento de
reserva.84
Um esquecimento reversível, cujos rastros que temíamos ser apagados, na
verdade persistem. É esse esquecimento que permite os habitantes de Macondo
celebrarem a reconquista de suas recordações. Afinal, elas estavam lá, mas por um
agente exterior, que era a peste, elas acabaram por ser obliteradas. Portanto, uma das
preocupações referentes à ideia que García Márquez constrói sobre esquecimento, não
é exatamente do esquecimento definitivo. O romancista parece esclarecer que o
problema está no perigo que o esquecimento pode apresentar aos indivíduos, aos
habitantes de Macondo; servindo também como um aviso, alertando sobre as
consequências de esquecer.
Esse icônico episódio do romance será o guia para compreendermos os
significados de memória e de esquecimento para Gabriel García Márquez. O
romancista estabelece os valores e as consequências de ambas as concepções,
desenvolvidas em sua narrativa ficcional. A partir das reflexões que o escritor elabora,
sua noção de memória – nesse momento, no romance –, é de que ela é “guardiã” do
passado, a “barricada final” que ajuda as pessoas a impedirem a manifestação
calamitosa do esquecimento e perpetuar a identidade dos indivíduos, a consciência de
si e a realidade cotidiana. A partir disso, da história do livro, o escritor mostra uma
confiança que os personagens podem ter para com as suas memórias, pois eles
percebem que ela é caracterizada pela sua ligação direta com o passado.
O episódio da peste da insônia mostra as consequências de não exercitar a
memória, de não compreender o seu valor e sua importância e, por fim, mostra as
83
Contudo, conforme a necessidade de suas investigações em seu livro, Paul Ricoeur expande a concepção de
rastros: o rastro cortical, que é o visto pela neurociência, é o que está sendo empregado nesse momento; e o
rastro documental já abrange a questão dos documentos e testemunhos do historiador. 84
Sobre a persistência dos rastros, Paul Ricoeur dedica a seção seguinte. Parte III, “A Condição Histórica”,
Capítulo 3, “O Esquecimento”, Seção II, “O esquecimento e a persistência dos rastros”. id.ibid., pp. 436-450.
38
consequências do esquecimento: a realidade do indivíduo é abalada, assim como sua
identidade.
García Márquez começou, portanto a desenvolver o sentido de um dever da
memória. Desde o começo vimos como o sujeito tem acesso ao passado a partir da
memória e que consegue trazer o passado ao presente, reconstruindo-o através de
lembranças. Diante do esquecimento reversível, conseguimos compreender o valor
dessa ideia de memória que o romancista elaborou: a faceta de auxiliar os indivíduos a
estabelecerem os parâmetros da realidade cotidiana e suas próprias identidades. Os
personagens vão lutar contra o esquecimento, utilizando da memória para restabelecer
a realidade, perpetuar a identidade do sujeito. Esse é, no momento, o dever da
memória. Compreendendo o quanto ela significa, enxergamos o seu uso, e por
consequência dessa conscientização sobre a memória, o seu uso de forma abusiva:
quando a memória é manipulada por aqueles que estão no poder.
39
3. MEMÓRIA TRAUMATIZADA
A história não quer se repetir – o amanhã não quer ser outro nome do hoje
–, mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a
aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após
dia.
Eduardo Galeano
Antes de mostrarmos as práticas do abuso da memória, passaremos por uma
memória recalcada e ferida. Aqui vamos por em prática uma análise mais ampla da
história do livro, não nos limitando a apenas um capítulo, mas sim ao conjunto do
romance. Trechos, passagens, símbolos dentro da história e análises gerais da obra vão
aparecer no momento oportuno para apresentar uma das figuras da memória que Paul
Ricoeur chama de memória impedida. A forma de se lidar com o passado e sua
consequência, junto com o “peso” que ele implica no presente, são algumas questões
levantadas neste capítulo.
3.1 LIDANDO COM A MEMÓRIA: O PASSADO VIOLENTO
Contudo, primeiro é necessário, para melhor compreensão da análise, que Cien
Años de Soledad ganhe um panorama geral. A história do livro se inicia em meados
das décadas de 1850 e 1860. Ela segue por cem anos, chegando até o fim da estirpe
dos Buendía em meados da década de 1960 – o que correspondente ao mesmo período
que García Márquez a escrevia. Assim, o romance tem como um dos seus assuntos
principais a questão do passado. O escritor tenta em sua escrita representar parte do
passado da América Latina – como vimos nas características dos escritores do Boom
da literatura latino-americana, esclarecidas no primeiro capitulo. O livro não narra
exatamente a época colonial do continente, mas sim o momento posterior ao auge das
independências dos países latino-americanos: a metade do século XIX, ou seja, o
período de formação das identidades nacionais dos países da América Latina.
O tom da obra é a dos anseios de independência e organização social daquela
nova realidade e um dos temas recorrentes no conjunto das obras de García Márquez é
40
a imagem do patriarca. Em Cien Años de Soledad ele aparece no personagem de José
Arcadio Buendía, que se vê no direito e dever de organizar a sociedade.
No entanto, a referência ao passado não alcança apenas o período posterior das
independências, que é quando a história do livro se passa, mas mostra também indícios
da colonização da América Latina, que aparecem recorrentemente ao longo do
romance. Os personagens notam os indícios da colonização, mas não tem nada a falar
deles além do que vem com os olhos, o que explicaremos no decorrer do capítulo.
Com isso, vamos explorar um pouco da forma com que esse passado se
apresenta, e como ele é visto pelos personagens. Assim, o primeiro indício da
colonização surge durante a época que os ciganos costumavam aparecer com
frequência em Macondo, quando José Arcadio Buendía acreditava que podia encontrar
ouro com imãs. Os ciganos avisaram que o lingote metálico não servia para buscar
ouro, mas não confiando na honradez deles, o patriarca trocou sua mula e um jogo de
cabras por um lingote de imã. Assim, passou os meses seguintes explorando a região
ao redor e o leito dos rios em busca de seu ouro. Mas só encontrou “una armadura del
siglo XV con todas sus partes soldadas por un cascote de óxido, cuyo interior tenía la
resonancia hueca de un enorme calabazo lleno de piedras.”85
Esse elemento do
passado remonta à época da conquista da América, assinalado pelo século que a
armadura de ferro pertence: “siglo XV”. É um período da história da América Latina
cuja violência e opressão de Portugal e da Espanha dizimaram os povos nativos com o
intuito de conquistar o território no qual haviam desembarcado. Por isso uma armadura
simboliza a guerra travada pelos espanhóis contra os ameríndios.
O segundo indício da colonização relevante para a análise aparece quando José
Arcadio Buendía, fascinado pelos inventos que os ciganos traziam e ansioso por
conhecer as maravilhas do mundo (mesmo após o fracasso com os imãs), decidiu
encontrar uma rota que ligaria Macondo à civilização e aos grandes inventos. Juntou
os homens que lhe acompanharam na travessia da serra, que culminou na fundação de
Macondo, parar encontrar a rota. Colocaram em prática uma viagem rumo ao norte,
cujo começo não apresentava obstáculos, mas que depois obrigou que se
85
“uma armadura do século XV com todas as partes soldadas por uma casca de ferrugem, cujo interior tinha a
ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras”. GARCÍA MÁRQUEZ. op.cit., 2007, p. 10.
41
embrenhassem por duas semanas numa mata fechada e muito antiga, onde nenhum
homem havia pisado. Lá, “los hombres de la expedición se sintieron abrumados por
sus recuerdos más antiguos.” Eles não podiam voltar, pois o matagal, ao ser aberto
para dar passagem, logo se fechava atrás deles. Quando conseguiram sair da floresta,
encontraram-se numa noite sem estrelas. Dormiram em redes e ao amanhecer, entre
palmeiras e samambaias, diante de seus olhos, “estaba un enorme galeón español.
Ligeramente volteado a estribor, de su arboladura intacta colgaban las piltrafas
escuálidas del velamen, entre jarcias adornadas de orquídeas.”86
Além da armadura do século XV, nos deparamos agora com um galeão. Ele, por
sua vez, pode ser um símbolo do período colonial da América Latina. Conseguimos
também identificar quem é o agente opressor desse passado violento: ele não é apenas
um galeão, é espanhol. Os personagens não apenas se depararam fascinados com ele,
como notaram que “toda la estructura parecía ocupar un ámbito propio, un espacio de
soledad y de olvido, vedado a los vicios del tiempo y a las costumbres de los pájaros.
En el interior, que los expedicionarios exploraron con un fervor sigiloso, no había nada
más que apretado bosque de flores”.87
O galeão é um espaço da solidão, mas também de esquecimento. Por ser uma
figura esquecida pela América Latina – que é representado pelos personagens do livro
–, ela está vedada pelo tempo. Como vimos no primeiro capítulo, a memória marca a
anterioridade do acontecimento passado, ela distingue o que já passou; então, a
lembrança está sujeita ao tempo. Mas aquele galeão espanhol, por ser um espaço de
esquecimento, não sofre com a ação tempo. Ele não é uma lembrança, é um indício,
um elemento de um passado esquecido.
Agora, o último elemento que estará em análise na verdade já apareceu. É a
índia guajira Visitácion. Junto com o irmão, haviam se abrigado como serviçais na
casa dos Buendía após fugir de sua terra natal, um reino milenar onde eram príncipes e
que havia sido flagelado pela peste da insônia. Como vimos, esta peste haveria de se
86
“os homens da expedição se sentiram sobrecarregados pelas suas lembranças mais antigas”. “Estava um
enorme galeão espanhol. Ligeiramente inclinado para estibordo, de seus mastros intactos pendiam fiapos
esquálidos do velame, entre cordoalhas adornadas por orquídeas”. id.ibid., p. 20-21. 87
“toda a estrutura parecia ocupar um âmbito próprio, um espaço de solidão e de esquecimento, vedado aos
vícios do tempo e aos costumes dos pássaros. No interior, que os expedicionários exploraram com um fervor
sigiloso, não havia nada mais que um apertado bosque de flores”. id.ibid., p. 21.
42
espalhar também em Macondo. Acreditavam, inclusive, que eram justamente eles que
haviam trazido a calamidade do esquecimento consigo, e que “la dolencia letal había
de perseguirla (Vistácion) de todos modos hasta el último rincón de la tierra.”88
É
pertinente ressaltar o quão significativo essa última figura é. Ela simboliza o passado
do continente, a conquista e colonização dele, e o principal: a escravidão dos povos
nativos. É justamente a índia – este elemento do passado do continente – que acredita
trazer consigo o esquecimento. Pois é costume que a história dos povos nativos seja,
em grande parte, omitida; no sentido de não ensinada e menosprezada por instituições.
Portanto, Visitácion simboliza tanto a escravidão quanto o esquecimento que recaí
sobre ela.
A armadura enferrujada, o galeão espanhol e a índia são alguns dos elementos
que remetem ao passado e que estão presentes no romance. Por elas o passado se
apresenta aos personagens e juntas elas simbolizam um passado da América Latina
que não está narrado na história principal. Os primeiros séculos, que compõem a
conquista, a colonização e a escravidão, não são narrados no romance. No entanto,
estes indícios do passado estão lá, os personagens vislumbram eles, e os sentem. Eles
são fragmentos e testemunhas do passado, rastros de lembranças dos séculos
anteriores; estão ligados ao passado por pertencerem a ele e, tanto a índia quanto o
galeão, carregam consigo a manifestação do esquecimento.
O esquecimento que os elementos do passado carregam, não é um esquecimento
definitivo pelo apagamento dos rastros. Vimos que as três figuras são justamente
rastros e fragmentos daquele passado da América Latina. São rastros que persistem,
esquecimentos de reserva; ou seja, aquela lembrança que está esquecida justamente
para ser lembrada. Mas na história do livro, os personagens não buscam reconhecer
com a devida importância os indícios da colonização. Eles enxergam, mas veem
apenas uma armadura enferrujada do século XV, um galeão espanhol e uma índia. Isso
porque o ponto de vista da narrativa vem dos habitantes de Macondo, o que pode ser
notado através da história do livro: contada a partir do cotidiano deles. Portanto, esses
indícios da colonização são percebidos segundo as perspectivas dos personagens, que
88
“a doença letal havia de persegui-la (Visitácion) de todo modo até o último canto da terra”. id.ibid., p. 56.
43
tem apenas a consciência da vida cotidiana que vivem, não do passado da América
Latina. Por isso que os habitantes de Macondo não atribuem nenhum significado a
mais aos elementos do passado colonial do continente, do que apenas suas estruturas
físicas e suas funcionalidades.89
Portanto – e lembrando que o período de escrita de
Cien Años de Soledad é uma fase em que se priorizava a consciência do passado da
América Latina e a consciência da condição de latino-americano – podemos interpretar
que se esses indícios da colonização não são lembrados pelos habitantes de Macondo é
por conta da falta de consciência do próprio passado.
Os três elementos desse passado revelam a nós, enfim, indícios de uma
memória impedida.90
São rastros e testemunhos de um passado que está lá, rastros que
persistem. Mas algo impede que eles sejam lembrados, reconhecidos e por fim,
rememorados. A memória impedida é revelada justamente quando a interpretação –
dos fragmentos do passado – encontra o obstáculo da lembrança traumatizada, ferida,
enferma.91
A armadura, o galeão e a índia, como dito, simbolizam o passado da
América Latina. E agora compreendemos que não é apenas um passado: é um passado
violento, opressivo, cheio de atrocidades e de submissão. Enfim, um passado
traumatizado, ferido e enfermo; e justamente por isso o seu impedimento.
A princípio, podemos buscar o agente que inibe o reconhecimento. Contudo,
partindo do contexto da década de 1960 na América Latina, pode-se interpretar que
García Márquez acrescenta uma crítica em seu livro: não é apenas um agente externo
ou a própria violência do passado que impede o reconhecimento dos fragmentos da
colonização em Cien Años de Soledad, pois, o que impossibilita o galeão espanhol, a
armadura enferrujada e a índia Visitácion tornarem-se símbolos da colonização para os
habitantes de Macondo, é a falta de consciência dos personagens pelo passado do
continente.
89
Reflexões sobre a perspectiva dos personagens foram trabalhadas no subcapítulo 2.3.2, “A história pela
perspectiva dos personagens de Macondo”, da tese da crítica literária Michelle Márcia Cobra Torre. TORRES,
Michelle Márcia. Literatura, História e Memória em Gabriel García Márquez: Cem Anos de Solidão, O General
em seu Labirinto e O Outono do Patriarca. 237 f., 2017. Tese (em Letras) Linha Literatura, História e Memória
Cultural, da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2017, p. 92-104. 90
Ricoeur trata da memória impedida na Parte I, “Da Memória e da Reminiscência”, Capítulo 2, “A Memória
Exercitada: Uso e Abuso”, seção II, “Os abusos da memória natural: memória impedida, memória manipulada,
memória comandada de modo abusivo”, no nível 1, “Nível Patológico-terapêutico: a memória impedida”.
RICOEUR, op.cit., pp. 83-92. 91
id.ibid., p. 84.
44
Portanto, os elementos da colonização são lembranças que ainda estão lá, só não
são buscadas nem reconhecidas como símbolos do passado violento da América Latina
pelos personagens do livro.92
E, em vez de rememoradas, os indícios da colonização
são, como Ricoeur esclarece, repetidos.93
Como o filósofo explica, o trauma do
acontecimento (esquecido) não será reproduzido como uma lembrança, e sim como
uma compulsão de repetição, por atos repetitivos – sem o próprio sujeito se dar
conta.94
Na narrativa de Cien Años de Soledad estas repetições aparecem com grande
frequência, permeiam toda a história de Macondo e dos Buendía. Elas são
consequências desse passado traumático e impedido.
As ações repetidas estão em grande parte na estrutura da obra, em que
acontecimentos começam em um capítulo e são concluídos muitos outros depois.
Portanto, a temporalidade da narrativa ficcional não é linear, em que a história se inicia
e progride conforme o tempo passa; ela é de uma temporalidade circular, portanto,
sabemos de um acontecimento muito antes de ele ser narrado na integra, pois o escritor
coloca pistas antes que as situações aconteçam.95
Nessa estrutura circular, os destinos e
as ações dos personagens acabam por se repetir geração após geração, caindo num
círculo vicioso, onde tentam a todo custo se sobrepor e ter controle dos acontecimentos
e do rumo da história que se segue num cenário mais amplo, em que Macondo é
apenas um peão num jogo de poder e opressão. Nessas tentativas – em que geração
após geração a família Buendía repete ações, se não iguais, similares – os personagens
acabam por ter todos os seus anseios, sonhos e desejos fracassados. São todos ilusões.
As consequências são o distanciamento, a solidão e o esquecimento.
As repetições na história que mais sobressaem aos olhos do leitor são, sem
sombra de dúvidas, os nomes, as características e as personalidades dos personagens.
Enunciamos a parte masculina da família, um por um, geração após geração, ao longo
92
Se os símbolos são interpretados de formas diferentes, é por conta da natureza deles, pois eles são
“polissêmicos, fluidos e complexos”. DARNTON, op.cit., p. 345. 93
Paul Ricoeur desenvolve sua teoria de memória impedida dialogando intensamente com o campo da
psicanálise. Utiliza dois textos de Freud: “Rememoração, repetição, perlaboração” e “Luto e Melancolia”. No
caso da concepção dos atos compulsivos de repetição, ele utiliza do primeiro texto de Freud. 94
RICOEUR, op.cit., p. 84. 95
Mario Vargas Llosa produz um belíssimo ensaio sobre a estrutura circular dos episódios do livro no capítulo
VII, “Realidad total, novela total”, subcapítulo II, “Una forma total”, seção B, “El puento de vista temporal: el
tiempo circular, episódios que se muerden la cola”. VARGAS LLOSA, Mario. Gabriel García Márquez:
historia de un deicidio. Barcelona: Barral Editores, 1971, pp. 632-655.
45
de cem anos. Para termos uma noção geral. 1° geração: José Arcadio Buendía. 2°
Geração: José Arcádio e Aureliano (o coronel). 3° geração: Arcadio (que é como o
chamam, seu nome completo é José Arcadio), Aureliano José e os 17 Aurelianos
(todas de mulheres diferentes). 4° geração: Aureliano Segundo e José Arcadio
Segundo. 5° geração: José Arcadio. 6° geração: Aureliano Babilonia.96
Sobre a repetição dos nomes, Úrsula Iguarán – a matriarca da família, casada
com o José Arcadio Buendía, o patriarca – haveria de salientar as especificidades:
Úrsula no pude ocultar un vago sentimiento de zozobra. En la larga historia
de la familia, la tenaz repetición de los nombres le había permitido sacar
conclusiones que le parecían terminantes. Mientras los Aurelianos eran
retraídos, pero de mentalidad lúcida, los José Arcadio eran impulsivos y
emprendedores, pero estaban marcados por un signo trágico.97
Até mesmo os 17 Aurelianos, que foram concebidos pelo coronel Aureliano
Buendía durante os 20 anos de guerras civis entre conservadores e liberais, continham
as mesmas características do seu pai. Enquanto o coronel estava longe de Macondo
fazendo levantamentos armados e declarando guerra total contra o governo
conservador, as mães “llevaran niños de todas las edades, de todos los colores, pero
todos varones, y todos con un aire de soledad que no permitía poner em duda el
parentesco”,98
para que Úrsula batizasse com o nome do pai.
Buscando quebrar o círculo vicioso de seus destinos e fugir da solidão, os
personagens tentaram, cada um ao seu modo, controlar os acontecimentos. Tanto o
coronel, que fez as suas guerras, levantamentos e rebeliões, quanto Arcadio, que se
tornou um caudilho e o governante mais cruel que Macondo viu, estariam igualmente
frente ao pelotão de fuzilamento. Todos os 17 Aurelianos haveriam de ser caçados e
assassinados apenas por serem filho do coronel. Estes são apenas alguns dos exemplos
verificados ao longo da narrativa.
96
Consulte o Anexo A para ver na integra a árvore genealógica da família Buendía. 97
“Úrsula não pode ocultar um vago sentimento de angústia. Na longa história da família, a tenaz repetição dos
nomes havia lhe permitido tirar conclusões que pareciam precisas. Enquanto os Aurelianos eram retraídos, mas
de mentalidade lúcida, os José Arcadio eram impulsivos e empreendedores, mas estavam marcados por um sinal
trágico”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., p. 211. 98
“Levaram filhos de todas as idades, de todas as cores, mas todos meninos, y todos com um ar de solidão que
não permitia colocar em dúvida o parentesco”. id.ibid., p. 177.
46
Até aqui vimos como o passado da América Latina se expressou em três
elementos no decorrer do livro: a armadura enferrujada do século XV, o galeão
espanhol e a índia Visitácion. Por meios deles, percebemos que esse passado do
continente é visto como traumático e violento. Elas eram os indícios de uma memória
impedida, para a qual não havia o reconhecimento, e por sua vez, a rememoração dos
acontecimentos do passado – por conta da falta de consciência dos personagens com o
passado do continente. Ou seja, não era um esquecimento definitivo, pois os rastros, os
fragmentos do passado, persistiam. No entanto, notamos que as consequências desse
impedimento era que os acontecimentos não se reproduziam por meio de lembranças,
mas sim a partir da compulsão de repetição, em atos repetitivos: os nomes, as
características, as personalidades dos personagens, as situações do momento e as
fatalidades de seus destinos.
E essa mesma memória impedida, que notamos dos personagens do livro,
também pode ser vista como insuficiência da memória, que é o esquecimento
propriamente dito. E o contraponto da insuficiência da memória, como esclarece
Ricoeur, é o excesso da memória e a memória-repetição.
Em outras palavras, a memória-repetição, como Ricoeur gosta de chamar, é
quando a “lembrança verdadeira” – aquela lembrança que veem a nós na forma de uma
imagem e cujo passado se vê reconciliado com o presente – é substituída pelo ato de
repetição, como vimos nos nomes e destinos que a família Buendía está fadada a
repetir. Essa mesma memória-repetição é essencialmente uma memória não refletida,
não questionada, não é uma memória crítica, o que corresponde aos personagens que
encontram o galeão espanhol, a armadura enferrujada e convivem com a índia
Visitácion, pois eles não buscam refletir o que cada um simboliza; ou não encontram
na presença de cada um desses indícios da colonização o passado do continente, pois,
não fazem o trabalho de reflexão.
Portanto, insuficiência da memória é equivalente à memória- repetição. Afinal,
aquilo que “uns cultivam com deleito lúgubre (...), outros evitam com consciência
pesada”. Desse modo, “uns gostam de nela se perder, outros temem ser por ela
47
engolidos”.99
E de igual forma, não há o trabalho de reflexão, ou melhor dizendo, o
trabalho de rememoração.
Como Ricoeur salienta:
Aquilo que celebramos como acontecimentos fundadores são essencialmente
atos violentos legitimados posteriormente por um estado de direito precário.
A glória de uns foi humilhação para outros. À celebração, de um lado,
corresponde a execração, do outro. Assim, se armazenam, nos arquivos da
memória coletiva, feridas simbólicas que pedem uma cura”100
Portanto, nos “arquivos” da memória coletiva da América Latina, que Cien
Años de Soledad trata de retratar, estão armazenadas as feridas do passado colonial,
simbolizados pelas três figuras que tanto foram analisadas até aqui. A conquista que os
colonizadores espanhóis tanto glorificavam, era a humilhação para latino-americanos.
Conseguimos perceber também que os personagens do livro não buscam recordar do
passado colonial, não buscam reconhecer as atrocidades que tanto flagelaram seu
território e seus habitantes: a conquista, a colonização e a escravidão, essas feridas não
apenas simbólicas, como reais. Pois no momento que viram aqueles fragmentos e
testemunhos do passado, não haviam a consciências sobre elas, não viam nada além de
suas estruturas físicas.
Contudo, só podemos notar que os personagens não refletem aqueles
fragmentos do passado – que foi violento – através da narrativa, pois em nenhum
ponto da história eles buscam refletir sobre o passado anterior à fundação de Macondo.
Como vimos nos dois capítulos anteriores, García Márquez, vivendo uma época em
que o socialismo na América Latina optava pela superação da herança do passado
colonial,101
de conscientização sobre a história e a condição do latino-americano,102
não podia deixar de fora sua crítica ao passado colonial.
Portanto, sua crítica atrelava o passado ao esquecimento; ou seja, o passado é
relegado pela falta de consciência sobre a colonização. Há falta de uma memória
refletida que Ricoeur chama de memória-lembrança (“lembrança verdadeira”), pois
99
RICOEUR, op.cit., p. 93. 100
id.ibid., p. 92. 101
COSTA, op.cit, 2009, p. 41-42. 102
id.ibid., p. 132-133.
48
esta é essencialmente uma memória crítica, julgada e que vem de um trabalho de
reflexão.103
Os personagens do livro não buscavam fazer o trabalho de reflexão, ou nas
palavras de Paul Ricoeur, o trabalho de lembrança – que é o equivalente ao trabalho de
luto.104
Como o filósofo, apoiando-se na psicanálise de Freud, explica: o luto é quando
você aceita que algo deixou de existir e, ao fazer isso, por mais que seja custoso e
dolorido, você se sente liberto. No panorama da memória impedida, é quando nos
reconciliamos com o passado traumatizado.
Diante dessa comparação, Ricoeur diferencia o trabalho de luto do de
melancolia – o equivalente a compulsão de repetição. Como o filósofo explica, a
melancolia é quando você se culpa pela perda, você se acusa, se desvaloriza. No
panorama da memória impedida, é justamente pela culpabilidade e a sensação de
inferioridade que a rememoração do acontecimento passa ao ato da repetição; como
vimos longamente em Cien Años de Soledad.
Vale reassaltar que tanto o trabalho de lembrança, quanto a compulsão de
repetição lidam com uma coisa em comum: a perda. Mas essa coisa que deixou de
existir não é apenas uma pessoa que se perde, podem ser noções abstratas como um
ideal ou uma pátria.105
E como Ricoeur salienta: “É sempre com perdas que a memória
ferida é obrigada a se confrontar.”106
Para compreendermos qual é a perda que a memória ferida da América Latina
“sofre” (em que García Márquez narra em Cien Años de Soledad), devemos salientar
uma das grandes questões levantadas e já explicitadas anteriormente. Como dito, os
personagens a todo custo e o tempo inteiro, tentam tomar o controle de sua própria
história e dos próprios acontecimentos, mas no final, Macondo continua sendo apenas
uma peça num jogo de poderes. Em outras palavras: Macondo continua sendo
submissa, controlada por agentes estrangeiros, pelo governo central do país e pelos
estadunidenses. Podemos buscar o momento em que o controle sobre o destino e vida
dos personagens foi perdido e encontraremos, uma vez mais, no passado, na conquista,
103
RICOEUR, op.cit., p. 92-93. 104
Aqui Ricoeur utiliza do ensaio de Freud, “Luto e Melancolia” para fazer o paralelo de seu conceito. id.ibid.,
p. 85. 105
id.ibid., p. 85. 106
id.ibid., p. 93.
49
na colonização e na escravidão. Compreendemos no livro que o controle da história e
dos acontecimentos da América Latina nunca esteve com seus habitantes. Então, a
perda que confronta tanto a memória ferida da América Latina é, sem sombra de
dúvidas, a falta de controle de sua história. Essa perda que é representada nas figuras
da armadura, do galeão e da índia.
Percebemos, ao final da trajetória desta análise, sob o olhar da memória
impedida, que o passado, até mesmo quanto é deixado de lado pelos personagens, se
mantém presente.
50
4. MEMÓRIA E ESQUECIMENTO MANIPULADOS
Testemunho não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o
histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunho também seria aquele
que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável de outro e
que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a
história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque
somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do
sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos
ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra
história, a inventar o presente.
Jeanne Marie Gagnebin
Desvendamos anteriormente a natureza da memória e do esquecimento na obra
Cien Años de Soledad, buscando alguns dos seus valores e significados. Em seguida,
refletimos sobre qual foi a noção de memória que García Márquez constrói em seu
romance e a forma de se lidar com ela. Agora vamos explorar o funcionamento
prático dessa ideia de memória, que o romancista elabora em sua obra, por meio da
criação de uma narrativa sobre os acontecimentos do passado: presentes nos capítulos
15, 16 e 17 de Cien Años de Soledad.107
É justamente o episódio em análise – que é mais conhecido pelo nome de o
massacre dos trabalhadores – que mostrará a falta de controle do próprio passado.
Questões referentes à forma com que a história de Macondo e de seus habitantes foi
submetida ao controle de poderes institucionais e exteriores, bem como as
consequências dessa submissão, serão levantadas nesse capítulo. Para auxiliar na
análise serão utilizados os conceitos de memória e esquecimento manipulado, de Paul
Ricoeur.108
107
GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., 2007, pp. 333-402. 108
Ricoeur trata da memória e do esquecimento manipulados em duas partes distintas do seu trabalho. A
memória manipulada se encontra na Parte I, “Da Memória e da Reminiscência”, Capítulo 2, “A Memória
Exercitada: Uso e Abuso”, seção II, “Os abusos da memória natural: memória impedida, memória manipulada,
memória comandada de modo abusivo”, no nível 2, “Nível prático: a memória manipulada”. RICOEUR,
op.cit., pp. 93-98. A parte do esquecimento manipulado se encontra na Parte III, “A Condição Histórica”,
Capítulo 3, “O Esquecimento”, seção III, “O esquecimento de recordação: usos e abusos”, Nível 2, “O
esquecimento e a memória manipulada”. id.ibid., pp. 455-458.
51
4.1 MASSACRANDO E ESQUECENDO OS TRABALHADORES
O poder exterior, que influenciou diretamente no episódio do livro intitulado o
massacre dos trabalhadores é retratado na obra pela companhia bananeira, que
corresponde à Unity Fruit Company (UFC), multinacional estadunidense que esteve
explorando a região bananeira da Colômbia nas três primeiras décadas do século
XX.109
A UFC esteve presente na região vizinha de Aracataca, onde Gabriel García
Márquez nasceu. No início de sua infância, o massacre dos trabalhadores, que ele
relata em Cien Años de Soledad, de fato aconteceu. Ele tinha apenas um ano de idade,
mas cresceu escutando inúmeras vezes a história que seu avô, Nicolás Márquez,
contava: sobre a greve e o horroroso massacre dos trabalhadores em 1928 na região
vizinha à Aracataca.110
García Márquez diria em sua autobiografia, inclusive, que
“conhecia o episódio como se o tivesse vivido, depois de ter ouvido meu avô contá-lo
e repeti-lo mil e uma vezes”.111
Em Cien Años de Soledad, como já foi dito, o episódio da greve dos
trabalhadores da companhia bananeira culminou no massacre deles. Durante esse
período na história do livro, o Partido Conservador – após vinte anos de guerras civis –
conseguiu se estabelecer como soberano no território. Assim, os olhares estrangeiros
se voltaram para a zona bananeira na região em que Macondo se situava. Surgiu então
o personagem de Mr. Herbet, um estadunidense, que após almoçar na casa dos
Buendía, fascinou-se pelo gosto da banana.
Semanas passaram e um personagem chamado Jack Brown, também
estadunidense, apareceu para averiguar aquela fruta tropical. Dali em diante, los
gringos vieram com a companhia bananeira, trazendo transtornos colossais e
modificando a organização de Macondo:
Dotados de recursos que en otra época estuvieron reservados a la Divina
Providencia, modificaron el régimen de lluvias, apresuraron el ciclo de las
cosechas, y quitaron el rio de donde estuvo siempre y los pusieron con sus
109
HYLTON, Forrest. op.cit., p. 69. 110
MARTIN, op.cit., 2010, p. 79. 111
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Record, 2003, p. 18.
52
piedras blancas y sus corrientes heladas en el otro extremo de la población,
detrás del cementerio.112
A aldeia havia se modificado tanto em pouco tempo “que ocho meses después
de la visita de Mr. Herbert los antiguos habitantes de Macondo se levantaban temprano
a conocer su proprio pueblo.”113
Sobre todas as mudanças que ocorreram, o coronel
Aureliano Buendía, já velho, proclamaria: “Miren la vaina que nos hemos buscado
(…), no más por invitar un gringo a comer guineo”114
. Um ano depois, os habitantes de
Macondo sabiam que os gringos pensavam apenas em plantar banana. As mudanças
foram tão intensas que foi feita uma comparação com a peste da insônia, pois aquele
período é chamado de “la peste del banano”.115
O coronel Aureliano Buendía concluiu
que Macondo estava vivendo “un régimen de corrupción y de escándalo sostenido por
el invasor extranjero”116
.
Conseguimos interpretar até agora que o invasor estrangeiro descobriu a banana
e nela enxergou uma forma de exploração e enriquecimento. Contudo, ao se
estabelecerem na região, modificaram quase que completamente Macondo, tanto que
os próprios habitantes já não a conheciam mais. A companhia bananeira, como é
chamada no livro, era uma empresa estadunidense – pois o seu porto situava-se em
New Orleans –; e aqui García Márquez trata de retratar o imperialismo dos Estados
Unidos pela companhia bananeira e por sua exploração, que culminaria depois em
injustiças e mais violências.
Se nos primeiros anos da companhia bananeira Macondo experimentou um
período de prosperidade econômica, logo, no final da década de 1920, a aldeia
conheceu o declínio. Os trabalhadores da companhia bananeira, não aceitando mais o
trabalho injusto, cogitavam uma greve. O agitador da manifestação era José Arcadio
Segundo – neto de José Arcadio, o primogênito de José Arcadio Buendía e Úrsula
112
“Dotados de recursos que em outra época estiveram reservados a Divina Providência, modificaram o regime
das chuvas, apressaram o ciclo das colheitas, e removeram o rio de onde esteve sempre e o transportou com suas
pedras brancas e suas correntes geladas no outro extremo do povoamento, atrás do cemitério”. GARCÍA
MÁRQUEZ, op.cit., 2007, p. 261. 113
“Que oito meses depois da visita de Mr. Herbert os antigos habitantes de Macondo se levantaram cedo para
conhecer sua própria cidade”. id.ibid., p. 262. 114
“Vejam só a confusão que nós procuramos, só porque convidamos um gringo para comer banana”. id.ibid., p.
262. 115
“A peste da banana”. id.ibid., p. 264. 116
“Um regime de corrupção e de escândalo sustentado pelo invasor estrangeiro”. id.ibid., p. 279.
53
Iguarán – que era visto por Fernanda del Carpio, sua cunhada, como um anarquista.117
Logo em seguida, a greve começou. Reivindicavam, no geral, direitos trabalhistas:
“Los obreros aspiraban a que no se les obligara a cortar y embarcar banano los
domingos”.118
Escreveram um documento de petição colocando todas as suas
reivindicações e propondo um acordo, mas de nada adiantou. Eles buscaram a todo
custo que algum dirigente ou representante da companhia bananeira assinasse, mas
eles haviam ido embora, sumido. Cansados daquele jogo, os trabalhadores deixaram de
lado as autoridades de Macondo e buscaram os tribunais superiores.
Foi ai então que a primeira manifestação do esquecimento ocorreu. Foi pelos
meios institucionais que foi declarado a inexistência dos trabalhadores:
Fue allí (nos tribunais superiores) donde los ilusionistas del derecho
demostraron que las reclamaciones carecían de toda validez, simplemente
porque la compañía bananera no tenía, ni había tenido nunca ni tendría jamás
trabajadores a su servicio, sino que los reclutaba ocasionalmente y con
carácter temporal. De modo que se desbarató la patraña del jamón de
Virginia, la píldoras milagrosas y los excusados pascuales, y se estableció
por fallo de tribunal y se proclamó en bandos solemnes la inexistencia de los
trabajadores.119
Retomamos então mais uma questão discutida anteriormente: a relação do
esquecimento com os rastros. O documento dos trabalhadores, que o tribunal alterou e
negou, pode ser considerado como um rastro judicial. Ele estabelece a relação entre a
empresa e seus trabalhadores, como também oficializa esta relação. Uma vez negada,
estes rastros, por não serem oficializados, deixaram de existir. Sendo assim, a relação
que a companhia tinha com seus funcionários também não existia, portanto, as
próprias pessoas como trabalhadoras deixaram de existir. Há, então, o apagamento
definitivo dos rastros, e o esquecimento se manifesta na sua forma mais profunda.
Depois disso, a grande greve explodiu e os trabalhadores sabotaram todo o
processo da companhia bananeira. O exército foi convocado, então, para restabelecer a
117
id.ibid., p. 337. 118
“Os trabalhadores aspiravam que não o obrigassem a cortar embarcar banana aos domingos”. id.ibid., p. 337. 119
“Foi ali (nos tribunais superiores), onde os ilusionistas do direito demonstraram que as reclamações careciam
de toda a validade, simplesmente porque a companhia bananeira não tinha, nem havia tido e nunca nem teria
jamais trabalhadores ao seu serviço, se não que os recrutava ocasionalmente e com caráter temporário. De modo
que se desfez a patranha do presunto da Virginia, das pílulas milagrosas e das retretes natalinas, e estabeleceu-se
por decisão do tribunal, e se proclamou em decretos solenes, a inexistência dos trabalhadores”. id.ibid., p. 343.
Grifo meu
54
ordem pública, e foi determinado três regimentos para a região. Assim: “la ley marcial
facultaba al ejército para asumir funciones de árbitro de la controversia, pero no hizo
ninguna tentativa de conciliación”.120
O clima começou a esquentar, até que o tenente que fora designado à chefe civil
e militar da província cercou a estação onde os trabalhadores se reuniram e, por meio
do Decreto Número 4, abriu fogo contra todos. O número de mortos registrados por
José Arcadio Segundo, um dos poucos sobreviventes, era de 3 mil.
É a partir do testemunho de José Arcadio Segundo que conhecemos o relato da
violência dos militares e dos três mil mortos. Haviam-no confundido com um morto e
assim lhe jogaram num dos duzentos vagões do trem que seguia rumo ao mar
carregando os três mil corpos. José Arcadio Segundo acordou a noite em meio a eles e
conseguiu escapar do trem. Voltando para o povoado, surpreendeu-se, pois foi
confrontado com a versão oficializada pelo governo sobre o acontecimento.
Ninguém no povoado ouvira falar do massacre dos trabalhadores e José Arcadio
Segundo escutava das bocas das pessoas que “aquí (Macondo) no há habido muertos
(...) desde los tiempos de tu tio, el coronel”.121
E quando foi para a estação onde havia
estado todos os trabalhadores, nem rastro do massacre havia. Ninguém acreditou no
relato dele, pois como ficou sabendo, haviam lido em Macondo uma notificação oficial
do governo que dizia o contrário do que ele havia presenciado: os trabalhadores
haviam evacuado a estação e seguiram pacíficos para casa. Dizia também que os
lideres sindicais haviam reduzido sua petição e que o representante da companhia
bananeira, Jack Brown, assinaria apenas quando a chuva passasse – nesse meio tempo
todas as atividades da companhia seriam suspensas.
Todos então passaram a conhecer apenas “la versión oficial, mil veces repetida
y machada en todo el país por cuanto medio de divulgación encontró el gobierno a su
alcance”, que “ terminó por imponerse: no hubo muertos, los trabajadores satisfechos
habían vuelto con sus familias y la compañía bananera suspendía actividades mientras
pasaba la lluvia.”122
120
“A lei marcial deu poder ao exército para assumir funções de árbitro da controvérsia, mas não se fez nenhuma
tentativa de reconciliação”. id.ibid., p. 344. 121
“Aqui (Macondo) não tem havido mortos desde os tempos do teu tio, o coronel”. id.ibid., p. 350. 122
“A versão oficial, mil vezes repetida e reiterada em todo o país e por tudo que era meio de divulgação que o
governo encontrou ao seu alcance”, que ”terminou por impor-se: não houve mortes, os trabalhadores satisfeitos
55
Conhecemos, então, duas versões da narrativa do acontecimento do massacre
dos trabalhadores. Uma é a versão institucional, do governo, a outra vem de um
testemunho. Estas duas narrativas trazem questões que se relacionam com o que Paul
Ricoeur chama de memória e esquecimento manipulados, em que ambos estão sendo
manuseados por aqueles que detêm o poder. No caso do romance, é o Partido
Conservador que detém o poder, fazendo uso da retórica e de sistemas simbólicos para
manipular a memória do acontecimento. Em outras palavras, utilizam da narrativa
histórica para legitimar o próprio regime, pois, como Ricoeur salienta:
É mais precisamente a função seletiva da narrativa que oferece à
manipulação a oportunidade e os meios de uma estratégia engenhosa que
consiste, de saída, numa estratégia do esquecimento tanto quanto da
rememoração.123
Portanto, quando alguém que detém o poder utiliza a narrativa – ou seja,
quando uma pessoa seleciona fatos, sujeitos e perspectivas – está desfrutando de uma
estratégia de manipulação, que faz os acontecimentos do massacre serem distorcidos a
ponto de serem esquecidos. Esse processo é iniciado logo quando, judicialmente, os
trabalhadores deixaram de existir. E uma notificação do governo é publicada
apresentando a “versão oficial” do ocorrido. Este é o primeiro passo para o Partido
Conservador legitimar seu poder utilizando do passado.
Após o massacre dos trabalhadores e sua volta a Macondo, sentindo o quanto o
consideraram louco pela sua versão testemunhal, José Arcádio Segundo fechou-se no
quarto de Melquíades e nunca mais voltou a sair dele. A região ainda estava sob a lei
marcial e durante as noites os militares arrombavam portas e sumiam com os
sobreviventes do massacre. José Arcadio Segundo passou a ser a última testemunha do
acontecimento, pois, quando os militares fiscalizaram a casa dos Buendía e abriram o
quarto em que ele estava, “lo miraron sin verlo”124
. Em outras palavras, foi esquecido.
E quando era lembrado pelos familiares, era como um louco.
haviam voltado às suas famílias e a companhia bananeira suspendeu suas atividades enquanto não passasse a
chuva”. id.ibid., p. 351. 123
RICOEUR, op.cit., p. 98. 124
“Olharam-no sem vê-lo”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., 2007, p. 355.
56
Entretanto, José Arcadio Segundo passou a ensinar o neto de seu irmão gêmeo,
Aureliano Babilônio, a ler, a escrever, contando a história do massacre e passando todo
seu conhecimento e, com ele, seu testemunho. Foi assim que a versão testemunhal do
acontecimento continuou viva, por meio da história oral. Portanto, Aureliano
Babilônio passou a contar para todo mundo a versão testemunhal de seu tio-avô –
“contrario a la interpretación general” – de que “Macondo fue un lugar próspero y bien
encaminado hasta que lo desordenó y lo corrompió y lo exprimió la compañía
bananera, cuyos ingenieros provocaron el diluvio como un pretexto para eludir
compromisos con los trabajadores”.125
Contava, apesar de que a versão predominante e
era a de interpretação geral, a da “verdaded ofical”126
. José Arcadio Segundo
le inculcó(à Aureliano) una interpretación tan personal de lo que significó
para Macondo la compañía bananera, que muchos años después, cuando
Aureliano se incorporara al mundo, había de pensarse que contaba una
versión alucinada, porque era radicalmente contraria a la falsa que los
historiadores habían admitido y consagrado en los textos escolares.127
Mesmo passando anos, a versão testemunhal do acontecimento violento – que
foi o massacre dos trabalhadores – mantinha-se viva através de Aureliano Babilônio.
Ele narrava o acontecimento de uma forma completamente contrária à interpretação
geral e à verdade oficial – que descobrimos agora ser escrita falsamente por
historiadores. Como Ricoeur esclarece, é justamente nesse momento que “a memória
imposta está armada por uma história ela mesma „autorizada‟, a história oficial, a
história aprendida e celebrada publicamente”.128
Seguindo o desenrolar do acontecimento – o massacre dos trabalhadores – até
anos depois, notamos que uma “história oficial” consentida foi imposta em Macondo.
Contudo, a trajetória da memória manipulada não cessa. Pois ela ainda segue até um
último ponto que cria um pacto perigoso, a da “história ensinada, história aprendida,
125
“Contrário a interpretação geral” de que “Macondo foi um lugar próspero e bem encaminho até que foi
desorganizado, corrompido e exprimido pela companhia bananeira, cujos engenheiros provocaram o dilúvio
como pretexto para iludir compromissos com os trabalhadores”. id.ibid., p. 395 126
“Verdade oficial”. id.ibid., p. 396 127
“Inculcou (à Aureliano) uma interpretação tão pessoal do que significou para Macondo a companhia
bananeira, que muitos anos depois, quando Aureliano se incorporou ao mundo, haveria de se pensar que contava
uma versão alucinada, porque era radicalmente contraria a falsa que os historiadores haviam admitido e
consagrado nos textos escolares”. id.ibid., p. 396. 128
RICOEUR, op.cit., p. 98.
57
mas também história celebrada. (...) Um pacto temível se estabelece assim entre
rememoração, memorização e comemoração”129
. Percebemos, então, que a memória
do massacre dos trabalhadores não é apenas falsa e imposta, como ela também é
consagrada pelos livros didáticos. Ela é ensinada nas escolas, os alunos memorizam a
partir dos textos escolares e o povo consagra uma história celebrada, pois as pessoas se
convencem da “verdade oficial”, a partir da qual Macondo prosperou com a
companhia bananeira e decaiu apenas quando ela partiu. Aureliano Babilônio apenas
não sofreu da imposição desse processo porque seus ensinamentos vieram de casa a
partir de uma testemunha do acontecimento.
Essa situação, em que as duas narrativas diferentes se confrontam, é um retrato
da infância e juventude de Gabriel García Márquez. A história oral representada em
Cien Años de Soledad através de José Arcadio Segundo corresponde às histórias que o
avô de García Márquez lhe contava, inclusive do massacre dos trabalhadores, como já
esclarecido anteriormente. E a história oficial que é consagrada nos livros didáticos,
por instituições do governo e aceita pelos habitantes de Macondo, retrata todo o setor
educacional que o romancista vivia, pois ele cresceu fazendo parte de uma geração que
aprendeu a história da Colômbia a partir do manual de Jesús María Henao y Gerardo
Arrubla, um livro didático que se estabeleceu em 1910 e foi considerado até a década
de 1960 como uma “bíblia”. O manual era caracterizado por consagrar epopeias
nacionais, deixando de lado os acontecimentos regionais (como o massacre dos
trabalhadores), e ter uma linha ideológica conservadora a respeito da história da
Colômbia.130
Portanto, interpretamos que ao mesmo tempo em que um acontecimento do
passado é lembrado a partir da narrativa de uma memória manipulada, o esquecimento,
que também passa a ser manipulado pelos detentores do poder, torna-se uma estratégia
para controlar e submeter povos, como acontece em Macondo. Com isso, os 3 mil
mortos do massacre dos trabalhadores foram esquecidos frente a uma falsa história
imposta, ensinada, aprendida e comemorada. Pois, como o episódio do livro mostra, a
129
id.ibid., p. 98. 130
PERNETT, Nicolás. García Márquez y la historia de Colombia. In: El Malpensante, nº152, mayo de 2014.
Disponível em: <http://centrodehistoriahonda.blogspot.com.br/2015/10/garcia-marquez-y-la-historia-de-
colombia.html> Acesso em: 17 mai. 18.
58
dimensão seletiva da narrativa apresenta “uma forma ardilosa de esquecimento,
resultando do desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narrarem a
si mesmos.”131
É com isto que podemos perceber que os habitantes de Macondo não
apenas não controlam seus acontecimentos, como também não controlam nem o poder
de se narrarem. E com isso, estão vulneráveis àqueles que criam a narrativa histórica
de seu passado.
Contudo, “esse desapossamento não existe sem uma cumplicidade secreta”,132
e
vemos justamente isso expresso na “estratégia de evitação motivada por uma obscura
vontade de não se informar”133
, que está presente nos habitantes de Macondo, pois,
mesmo quando uma versão testemunhal do acontecimento ainda vive a partir da
história oral, eles a evitam como sendo uma “alucinação” – assim é entendida a versão
narrada por Aureliano Babilônio.
Podemos por último finalizar esta análise mostrando que a manipulação do
esquecimento não é apenas evidenciada a partir das questões esclarecidas
anteriormente. Os personagens, por sua vez, sentem o esquecimento na chuva e após
ela. A chuva, que havia feito as atividades da companhia bananeira serem suspensas,
durou 4 anos, 11 meses e 2 dias. Ela faria Úrsula Iguarán se recordar da calamidade da
peste da insônia, o que esclarece o caráter de destruição e esquecimento da chuva e
suas consequências mesmo após cessar, pois “todo andaba así (destruído) desde el
diluvio. La desidia de la gente contrastaba con la voracidad del olvido, que poco a
poco iba carcomiendo sin piedad los recuerdos”134
. O esquecimento manipulado é,
portanto, retratado como uma calamidade e, aos poucos, vai “tomando” as lembranças
das pessoas e controlando o passado de Macondo.
Como vimos no primeiro capítulo, a memória está intrinsecamente ligada ao
passado – com as palavras de Paul Ricoeur, a memória tem a ambição de ser fiel ao
passado –, mas como percebemos logo em seguida, ela também pode falhar: “É como
dano a confiabilidade da memória que o esquecimento é sentido”.135
Notamos, então,
131
RICOEUR, op.cit., p. 455. 132
id.ibid., p. 455. 133
id.ibid., p. 455. 134
“Tudo andava assim (destruído) desde o dilúvio. A negligência das pessoas contrastava com a voracidade do
esquecimento, que pouco a pouco ia carcomendo sem piedade as lembranças”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., p.
392. 135
RICOEUR, op.cit., p. 424.
59
que o esquecimento como estratégia de controle, fere profundamente a confiança que
depositamos na memória. Só notamos a manifestação do esquecimento quando as
lembranças faltam, quando é insuficiente; ou seja, já quando não podemos confiar
completamente na memória, pois ela pode ser manipulada. É por isso que os habitantes
de Macondo sentem aquela chuva, que caiu por quase cinco anos, como uma áurea de
decadência e esquecimento.
60
EPÍLOGO: A CONSCIÊNCIA LATINO-AMERICANA EM EVIDÊNCIA
A trajetória da análise até aqui teve como foco as ideias de memória e de
esquecimento que García Márquez elaborou em Cien Años de Soledad. Contudo,
quando nos aprofundamos no contexto histórico e literário do romance, conseguimos
compreender como os debates a respeito da realidade latino-americana e da
consciência histórica da América Latina estiveram intrinsecamente ligados às noções
de memória e de esquecimento que o romancista tratou de narrar em sua obra.
É apenas nas últimas páginas, quando os personagens já viviam na década de
1960 – a mesma que García Márquez escrevia seu livro, que o processo revolucionário
cubana estava em seu auge, assim como a literatura era disseminada num período
conhecido como o Boom da literatura latino-americana – que conseguimos perceber a
relevância da consciência para a época presente no livro, pois ela seria a chave para
uma maior compreensão da condição do latino-americano e sua história. Foi nesse
cenário que o último personagem da família Buendía, Aureliano Babilônio, ganhou o
protagonismo dentro da história do livro.
Aureliano Babilônio é a representação do intelectual e literato latino-americano
típico da década de 1960 na América Latina. Portanto, ele tem todas as características
esclarecidas anteriormente no capítulo um e dois, a respeito do contexto literário e
histórico de Cien Años de Soledad. Aureliano Babilônio é um personagem solitário
que tem curiosidade e prazer em conhecer Macondo (América Latina), e busca
conhecer o mundo através dos livros. Além de fazer parte de um grupo literário, ele
também mantêm a história oral viva, pois sabe da narrativa testemunhal do massacre
dos trabalhadores.
Contudo, ele só se torna a peça chave da história no final, quando se mostra
diferente de todos os outros Buendía.
O cigano Melquíades – que desde o começo do livro vira um grande amigo de
José Arcádio Buendía, o patriarca da aldeia – escreve pergaminhos indecifráveis.
Quase todos os personagens masculinos da estirpe dos Buendía tentam, à sua maneira,
decifrar o que está escrito naqueles manuscritos. Pois, como aconteceu com os irmãos
gêmeos, José Arcadio Segundo e Aureliano Segundo, “renunciaban a descifrar los
61
pergaminos, no solo por incapacidad e inconstancia, sino porque sus tentativas eran
prematuras.” 136
Visto que, como o cigano esclarece, “nadie deve conocer su sentido
mientras no hayan cumplido cien años”.137
O único personagem que conseguiria ler os manuscritos era Aureliano
Babilônio, pois depois de descobrir qual era a linguagem dos pergaminhos (sânscrito),
ele “tenía tiempo de aprender el sánscrito en los años que faltaban para que los
pergaminos cumplieran un siglo e pudieran ser descifrados” 138
Muitos Buendía
tiveram que tentar e amadureceram, geração após geração, até que surgisse uma
oportunidade verdadeira de decifrar os pergaminhos de Melquíades, pois Aureliano
Babilônio de fato era o intelectual latino-americano.
E é no final do livro, numa virada catártica, que Aureliano Babilônio enfim
vislumbra o que está escrito nos pergaminhos. Quando seu bebê morreu pelas mesmas
formigas que há tempos estavam carcomendo as fundações da casa dos Buendía, foi
que ficou espantado, não por ver seu filho morto a mordidas de formiga, mas sim
porque en aquel instante prodigioso se le revelaron las claves definitivas de
Melquíades, y vio el epígrafe de los pergaminos perfectamente ordenado en
el tiempo y el espacio de los hombres: El primero de la estirpe está
amarrado en un árbol y a último se lo están comiendo las hormigas. 139
Foi então que correu para o quarto e encontrou os pergaminhos intactos. Só que
dessa vez ele conseguia ver claramente como se tivesse sido escrito em sua língua (o
castelhano) e começou a decifrá-lo em voz alta. Os pergaminhos contavam “la historia
de la familia, escrita por Melquíades hasta en sus detalles más triviales, con cien años
de anticipación.” 140
Aureliano Babilônio percebeu então que a chave final para
compreender o que estava escrito nos pergaminhos era relacionado ao tempo, pois
“Melquíades no había ordenado los hechos en el tiempo convencional de los hombres,
136
“Renunciou a decifrar os pergaminhos, não só por incapacidade e inconstância, mas porque suas tentativas
eram prematuras”. GARCÍA MÁRQUEZ, op.cit., 2007, p. 470. 137
“Ninguém deve conhecer seu sentido enquanto não cumprirem cem anos”. id.ibid., p. 214. 138
“Teria tempo de aprender o sânscrito nos anos que faltava para que os pergaminhos cumprissem um século e
pudessem ser decifrados”. id.ibid., p. 404. 139
“Porque naquele instante prodigioso se revelaram as chaves definitivas de Melquíades, e viu a epígrafe dos
pergaminhos perfeitamente ordenada no tempo e no espaço dos homens: O primeiro da estirpe está amarrado a
uma árvore e o último está sendo comido por formigas”. id.ibid., p. 468-469. Grifo do autor. 140
“A história da família, escrita por Melquíades, até em seus detalhes mais triviais, com cem anos de
antecipação”. id.ibid., p. 469.
62
sino que concentró un siglo de episodios cotidianos, de modo que todos coexistieran
en un instante.” 141
Entusiasmado para chegar ao fim, começou a pular as páginas, buscando suas
origens, lendo toda a história de sua família e do seu passado. E enquanto o
personagem lia, Macondo começou a enfrentar ventos do passado, pois eles
carregavam os murmúrios das gerações antigas. Conforme ia decifrando a sua própria
história, os ventos se tornaram violentos e começaram a destelhar a arrancar a
fundação da própria casa. Até que decidiu pular mais onze páginas e
empezó a descifrar el instante que estaba viviendo, descifrándolo a medida
que lo vivía, profetizándose a sí mismo en el acto de descifrar la última
página de los pergaminos, como si se estuviera viendo en un espejo
hablado.142
Em outras palavras, começou a decifrando o tempo presente que ele vivia. Foi
quando compreendeu toda a situação. Lendo sobre sua história, sobre o passado dos
Buendía e de Macondo, percebeu que não havia saída, a cidade iria ser apagada da
memória dos indivíduos e que “las estirpes condenadas a cien años de soledad (a
familia Buendía) no tenían una segunda oportunidad sobre la tierra”. 143
A reviravolta no final do livro revela uma interpretação de que Aureliano
Babilônio, o típico intelectual latino-americano, consciente do passado do continente e
da condição de seus habitantes, é o único capaz de decifrar a própria história. Os
pergaminhos de Melquíades, percebemos com o final, é o próprio livro de Gabriel
García Márquez, Cien Años de Soledad. É como se aquele leitor da década de 1960 e
posterior a ela, estivesse na experiência do Aureliano Babilônio, pois havia adquirido a
consciência de suas situações histórias e conseguiria enfim a ler sobre o próprio
passado.
Os outros personagens do livro tentaram desvendar o que estava escrito nos
manuscritos de Melquíades. Não era apenas por incapacidade que não conseguiram,
141
“Melquíades não havia ordenado os fatos no tempo convencional dos homens, mas concentro um século de
episódios cotidianos, de modo que todos coexistiram num instante”. id.ibid., p. 469. 142
“Começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando-se a medida que vivia, profetizando a si
mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo-se num espelho falado”.
id.ibid., p. 470-471. 143
“As estirpes condenadas a cem anos de solidão (a família Buendía) não teriam uma segunda oportunidade
sobre a terra”. id.ibid., p. 471.
63
mas era pelo estado de prematuridade. Todas as calamidades do esquecimento que
vimos durante os capítulos anteriores e a submissão de Macondo à agente exteriores
tinham que acontecer, pois a estirpe dos Buendía já estava condenada. Mas era
necessário, pois seria a partir disso que “nasceria” alguém capaz de quebrar todos os
círculos viciosos com os quais os habitantes de Macondo estavam acostumados a
viver, geração após geração.
Aureliano Babilônio, o intelectual e literato da década de 1960, conseguiu
quebrar o círculo vicioso do “pasado cuyo aniquilamiento no se consumaba, porque
seguía aniquilándose indefinidamente, consumiéndose dentro de sí mesmo,
acabándose a cada minuto pero sin acabar de acabarse jamás”. 144
Agora o passado da
América Latino foi dialeticamente rompido, deixado de lado, para esse novo sujeito
latino-americano que tinha consciência sobre o passado da América Latina, da sua
condição, dos problemas sociais que vivia e de suas situações históricas.
Como Geral Martin esclarece:
García Márquez nos mostra que a verdadeira história da Colômbia e da
América Latina deve ser contada, não pelos grandes patriarcas, mas pelos
membros da nova geração, a do próprio escritor (...), que finalmente
conseguem ler e escrever a história autêntica do continente. (...) Assim
Aureliano [Babilônio] rompe com as falsas circularidades, com as repetições
sem sentido, com a pré-história da verdadeira consciência histórica. Sua
leitura põe fim literalmente a cem anos de solidão, a Cien Años de Soledad, e
encaminha o leitor que está lendo sobre ele à história fora do livro.145
Portanto, podemos interpretar com esse final, que é apenas com a tomada de
consciência da América Latina, que podemos romper não apenas com os círculos
viciosos, mas com todo o tipo de manipulação da memória e do esquecimento por
detentores do poder, como vimos no capítulo quatro, e que será possível ler sobre o
passado da América Latina e compreender o quanto violento foi o período colonial do
continente, enxergando o galeão espanhol, a armadura enferrujada e a índia Visitácion
como indicadores da colonização. García Márquez conclui que a possível solução para
os problemas da memória manipulada e do esquecimento para América Latina é a
consciência histórica e social do latino-americano.
144
“Passado cujo aniquilamento não se consumava, porque seguia aniquilando-se indefinidamente, consumindo-
se dentro de si mesmo, acabando-se a cada minuto, mas sem acabar jamais”. id.ibid, p. 456. 145
MARTIN, op.cit., 2011, p. 388-389.
64
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ANEXO A – ÁRVORE GENEALÓGICA DA FAMÍLIA BUENDÍA