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165O POVO D’AS FARPAS. ÉTICA DEMOCRÁTICA E CÍVICA EM RAMALHO ORTIGÃO

Humanística e Teologia. 38:2 (2017) 165-185

}2.1.

O Povo d’As FarpasÉtica democrática e cívica em Ramalho Ortigão*

PEDRO VILAS BOAS TAVARES**

1. Ramalho faloudaquelesque vãopara as aventurasdaescrita comoos gatos para as aventuras do telhado: «Quando lhes não fareja outro quetivesse passado primeiro, hesitam em suamarcha, tremem-lhes as pernaseacocoram»1.Nestecaso, referia-seespecificamenteàpenadenumerososespíritosdomesticados,propensosarepetiremtudoaquiloqueasconveniên-ciasdoseutempoedoregimeaconselhavam…

*Opresentetextoéumaadaptaçãodaconferênciaproferidapeloautorem10.12.2015,naSaladasSessõesdaIrmandadedaLapa,Porto, integradanociclodeconferênciaspromovidopelaFaculdadedeLetrasdaUniversidadedoPorto, emcolaboraçãocomaCâmaraMunicipaldoPorto,aFundaçãoEng.AntóniodeAlmeidaeaIrmandadedaLapa,dedicadoaRamalhoOrtigão,porocasiãodocentenáriodoseufalecimento.Adverte-separaofactodeestetextoestarescritosemobediênciaaoacordoortográficode1990.**MembrodoGrupodeInvestigaçãoSociabilidades,PráticaseFormasdeSentimentoReligioso,daUnidadedeI&D(FCT)CITCEM–CentrodeInvestigaçãoTransdisciplinarCultura,EspaçoeMemória, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Via Panorâmica s/n 4150-564, Porto,[email protected] As Farpas, VI, p. 99.Não havendo indicação em contrário, citaremos sempre pelasObras Completas de Ramalho Ortigão queaLivrariaClássicaEditora,deLisboa,começouapublicarem1942.

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À primeira vista, alguém mais supina-menteprimárioou refolhudamentesecundá-riopoderiadesconfiardoteoremóbildotítulodestaintervenção.Nadadeequívocos!Sóporpreconceitoeaparênciasfalazesselobrigaránele algo de atrevidamente provocatório. Enemotelhadoédezincotãoescaldantequenão se possa pisar, nem lobrigamos quais-quer razões para que não ensaiemos aquiumamarcharegular,de isenta reflexãopes-soalpartilhada.

É certo que nos falececurriculum pro-porcionado e acaso apetrechamento conve-nienteparaaevocaçãocabalde tãograndemestre da «mentalidade portuguesa do seutempo», transplantadodoensinodoColégiodaLapaparaa«cátedradasFarpas»2.Mas,sobretudo dado tratar-se aqui de Ramalho,ousar é preciso, e o tema é mesmo umainevitabilidade…

«Turistaemviagemnasuaprópriaterra»,oferecendo-nosnasuaobra–en’As Farpasparticularmente–,umaimpressivaeoriginal«revistageraldopaís inteiro», dopaís real, coevo,por si amadoentranhadamente, supomosqueninguémiria–estultamente–questionarqueaobservaçãodasgentes,asinteracçõessociaisdescritas,asteoriaseconceitossociopolíticos,implícitoseexplícitosnaobradeRamalho,sejamalgoessencial,pelasimplesrazãodequenãoháverdade,nempitoresco,nemviagemondenãohápovo,edequenãohápedagogiaondenãoháumpúblicovivoainstruir.Ostiposeambientessociaisehumanos,nascasas,nasruas,nostransportes,noscampos,naslojas,nas fábricas,nossalões,nas igrejas,nas festas,nosespectáculos,pintadosporRamalho«alargostraçosdeimpressionista»3,sãoalgodecentral,enessaextensagaleriaporsiproduzidaoautornãodeixoudepermanentementeinsi-nuarouexprimir–comsuficienteclareza–asconcepçõesteóricasporsiabra-çadassobreadefiniçãohistórico-sociológicatantodePovo,enquantogrupo

2A.deMagalhãesBasto,Figuras Literárias do Porto,Porto,ManuelBarreira,1947,p.65.3Cf.MariaHelenadaRochaPereira,O Porto na Obra de Ramalho Ortigão,Porto,FundaçãoEng.AntóniodeAlmeida,2015[Ed.Maranus,1950],p.21.

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social,comodePovo,enquantouniversodetodososportuguesesunidosporhistóriacomum,língua,raçaeterritório.

Quantoaestaúltimaesfera,adaHistóriadoPovoPortuguês,RamalhoOrtigãotemumavisãomuitocomumaoshomensdaGeração de 70:adeum«Brave petit peuple heroique…queabriuaomundoumhorizonteimenso»4. Surpreendemo-lofrequentementediscreteandosobre«ogénioheroicamenteaventuroso,confiadoeaudazdopovoportuguês»,que «encheudeglóriaomundodurantepertodequatroséculos,desdeafundaçãodanacionalidadepelaaclamaçãodadinastiaafonsina,atéàperdadaindependênciapelader-rotadeAlcácer-Quibir epela subsequentedominaçãocastelhana»5.DepoisdeSousões,Braganções,SenhoresdaMaia,deBaiãoedeRibaDouroterempostoumacoroanacabeçadeAfonsoHenriques6,feitaareconquista,eesta-belecidasnoreino«sobresólidasbasestradicionaiseétnicasasnossaspri-meiras instituiçõesadministrativas:direitopúblicoedireitoconsuetudinário,poder central, nobreza emilícia, forais, inquirições, côrtes, corporações dearteseofícios,regimedetrabalho,regimedepropriedade,admissãodopovonasassembleiasgeraisdoreino,fundaçãodoensino»7,«pelaforçadonossobraçoedanossafé,pelaprogressivaculturadonossoespíritoepelapoderosacoesãodanossadisciplinahierática», teríamos fundado, segundoRamalho,«nocontinenteeuropeueatravésdosmares,umadasmaisvastas,dasmaisfortes,dasmaisricasedasmaiscivilizadasnaçõesdomundo»8.ARestauraçãode1640restituíraaPortugalasuaautonomiapolítica,masnãologrararecons-tituiressaplenitudedevidaanteriormenteexperimentadapelanação,antesselimitandoaprolongarnovostemposdefatal«decadênciadeumagranderaça,delidanaquelaapagada e vil tristeza»emque,alegadamente,Camõesteriaprevisto«ofimdasuapátria»9.Emsuma,naanterianalinhadasCausas da Decadência dos Povos Peninsulares,teriahavidosoluçãodecontinuidadenasmanifestaçõesmórbidasínsitasànossavidacolectiva,doséculoXVIemdiante,porcausado«despotismomonárquico»,do«despotismoteológico»e,finalmente,peloregímenliberal,alegadamentefalhodecritérioscientíficosnavidasocialenavidaprática10.

4Cf.Últimas Farpas,XIV,pp.171-172.5Últimas Farpas,II,25.6Últimas Farpas,II,9.7Últimas Farpas,II,26.8 Últimas Farpas,II,26.9Últimas Farpas,II,38.10AntónioManuelBettencourtMachadoPires,A Ideia de Decadência na Geração de 70,PontaDelgada,UniversidadedosAçores,1980,p.329.

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DesurpreenderseriaqueRamalhonãofizesserepercutiravisãodeca-dentista da História de Portugal após Quinhentos na organização social, ecomotal,naidiossincrasiadasclassespopulares,umavezqueamolaque-bradadasrazõesvitaisnecessariamenteatingiriatodaaGrei.Daíqueapreo-cupaçãocomovastogruposocialPovotenhasidotãoobsidiantenoautordeA Holanda,fazendo-oacompanharosavataresdeevoluçãopolíticadopaísnoseutodo,decujosmalescomungariaeseriaexpressão.

Como tal,claroquen’As Farpasé isolávelamatéria referentea “PovoRepublicano”,tentadoraqualificaçãocomcarácterdelocalizaçãoespecífica,numacronologiadeanálisecircunscritaàscondiçõesderupturaevigênciadonovoregímen.MasclarotambémqueaquestãodoregímenedasopçõesdeRamalhoperanteaRepública,apesardelegítimas,racionaisemuitonítidas,talcomonoseutempo,continuamhojeasuscitardapartedealgunssectoresumtratamentode«delitodeopinião»ouquase…

Umapena!Tentandoexplicarestatinetaquaseincompreensível(afinalaRepúblicaéumaSenhoracommaisdecemanos),oprestigiadohistoriadorRuiRamoscrêqueaquedadoMurodeBerlimeaorfandadeideológicamar-xistaterãocontribuídoparaque,entrenós,dahabitualdetracçãodeumarevo-luçãodita«pequeno-burguesa»ecomtiquesanti-sindicais,setenhapassadoàsuadesmedidaexaltaçãohistoriográfica11.EafiguradeRamalho,maisumavez,nãoquadranoscânonesdohagiológiorevolucionário…

Neste caso importa reconhecer o significado do depoimento de ummemorialistarepublicano–JúliodeSousaeCosta–que,visitandoRamalhopouco tempo depois da implantação da República, ficou desarmado pelacompreensão, lisura, isenção e ausência de sectarismodos conselhos queoescritorlhedeu,incentivando-oacolaborar«comasuagente»,tornando-se«útilaopaís»12.

Bastantesanosantes,ojovemJúliodeSousaeCosta,entãocomvinteedoisanoseemquemRamalhoviaambiçõespolíticas, favorecidaspelousodobarretefrígio,confessando-se-lhefanáticodaleiturad’As Farpas,ousaradisparar ao escritor que, avaliando aquele «remar para as esquerdas», vianelas«belasnotasrepublicanas»,equedesejavapoderrotularpoliticamenteoseuadmiradointerlocutor.Instado,oautordeJohn Bull,escarnecendodestapremênciaderotulação,«comonogarrafóriodecategoria», terárespondidomuitosimplesmente:«Independente,comofitodedarlambadaparatodososlados…,emgregosetroianos…àdescrição…»13.

11Cf.Ler, Livros e Leitores,n.º87,Janeirode2010,entrevistaaCarlosVazMarques,pp.33-39.12 Ramalho Ortigão. Memórias do seu Tempo,Lisboa,RomanoTorres,s/d.,p.166.13Cf.Ramalho Ortigão. Memórias do seu Tempo,pp.17-18.

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Narealidade,seodiálogoassimtevelugar,JúlioSousaeCostaparecedemonstrarnãoterlido,ounãoterlidocomatençãoAs opiniões sobre a forma de Governo expressasn’As Farpas, casocontráriosaberiaqueoseuautorafirmarapoucoseimportarcomaformadoregimeedeorganizaçãodopoder,massim–emuito–comoproblemaeconómicoedesaber«comoseha[via]dedistribuirariqueza»14.

Pacientemente, aeste jovem,queentendiaquequem,comoEça, «emCoimbralidaracomAnterodeQuentaleTeófiloBraga»eemLisboa,em1871,comos promotores dasConferências Democráticas, tendo toda a obra deinquérito crítico e sátira à sociedadeportuguesado constitucionalismoqueselheconhecia,deveriaporforçaserrepublicano,Ramalhoteráobservado:«AcercadasuasuspeitasobreorepublicanismodeEçadeQueiroz,direioseguinte,eapontelánoseucartapácioparafuturascrónicas:ummonárquicopodeserdemocrata,istoé,teridealquepropendaàdefensadosinteresseslegítimosdagrei.Eçapairamuitoaltoparadesceraentenderempartidaris-mos.Comigodá-seomesmocaso[…]»15.

Efectivamente,RamalhoOrtigãoescreveuabundantementesobreosseuscritérioseopções,sabendobemdoónusdepensarlivremente,pelaprópriacabeça.Nãooenfatizaraelen’As Farpas,após«noveanosdeironiapersis-tente»iniciadosdesde1871,nessesanosexperimentando«agrandeeamadatristezadesersó»?:

«Nãoserdenenhumaseitaedenenhumpartido,denenhumclube,denenhumgrémio,denenhumbotequimedenenhumestanco,nãoterescola,nem irmandade, nem roda, nem correligionários, nem companheiros, nemmestres,nemdiscípulos,nemaderentes,nemsequazes,nemamigos,épos-suiraliberdade,éterporamantearudemusaaux fortes mamelles et aux durs appas,cujobeijoclandestinoeardentepõenocoraçãoamarcadosfortes,masrequeimanosbeiçosorisodosengraçados»16.

14Cf.As Farpas,IV,pp.111-112.15Cf.Ramalho Ortigão. Memórias do seu Tempo,p.65.Aindanãohámuitosanos,aestepropó-sito,assimseexprimiaBeatrizBerrini:«[…]paramim,nãofoiRamalhonemrepublicanomilitantenocomeço,nemmonárquicoapaixonadoao final:sãorótulosquenão lhecabem.Teve ideiasdemocráticasereformistas,paraafectivamenteseligardepoisàmonarquia,acabandoporperce-berqueoPortugalmelhorquesonharanãonasceriatãosomentedasconvicçõespartidáriasdesteoudaquelegrupooudesistemasdegoverno(Introdução,inRamalhoOrtigão,Cartas a Emília,Lisboa,LisóptimaEdições/BibliotecaNacional,1993,pp.23-24).16As Farpas,VI,p.104.

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E todavia, segundodeclaravaaosmaisnovos, numaFarpa datadadeAbril de 1882, essa solidãoda «arte satírica» tinhaas suascompensações,desde logoadecolocarosseuscultores«aoabrigodabanalidade triunfale domau gosto vitorioso, dois grandes suplícios para a sensibilidade dosartistas»17.

RelativamenteaoPRPédelembrarqueRamalhosaudouoseuapareci-mentoem1876,correspondendoàfundaçãoemLisboadeumcentrorepu-blicano. Era, segundo escrevia, excelente oportunidade de educação do«espírito público» relativamente a valores expressos na experiência demo-cráticaentãoemcursoemFrança,«repúblicaem nome da ordem»,tirandoa formadegoverno «nãodasconvulsõesdeuma revolta,masda reflexão,doraciocínio,doestudo,dadedicaçãopatrióticade todososseushomensmaishonradosemaisilustresnafilosofia,naciênciadahistória,namoralenapolítica»,evotada«pacificamente»em«sufrágionacional»18.MaserabomqueoPRPresolvesse«conservar-seinalteravelmentebomfilósofo»,entregueàsuafunçãopedagógicaedoutrinária.Casocontrário–ironizava–«seemvezdeensinarpuraeunicamente»,ocentrorepublicanopretendesse«fazereleições,fazerpolíticae–oquee[ra]maisquetudolastimável–fazerrepú-blica»,entãoseria«maisútil,maispatrióticoemaissublimedeixar-sedissoeirpassearparaoAterro»19.

JárelativamenteàRepúblicaefectivamenteproclamadaem5deOutubro,àépocadasuainstauração,oGovernoProvisórionãopareciaaRamalho«maisautenticamenteoprefáciodeumaliberalrepúblicaqueodamaisdespóticatirania»;vianomeadamentenaleideimprensaenaleidascongregaçõesreli-giosas,«poratropelamento,adenegaçãodasmaissagradasdasliberdadespúblicas, a liberdadedepalavraea liberdadede reunião»20.Nempor issoessegovernodesmereciaasuaestima,porque–declarava–«molecularmenterebeldeatodoosectarismo»,elenãopodia«sersenãomuitomoderadamenteemuitocondicionalmentemonárquico,enãoeranemnuncaforarepublicano,apesardefrequentementeo«acusaremdeprófugoederenegado»osjornaisdoPRP,«ligandoa tal invectivaumtãograndedesdourodo[s]eucarácter»comosefosseparasi«umopróbioteracamaradocomeles»21.

17As Farpas,IX,p.182.18 As Farpas,VII,p.197.19As Farpas,VII,p.198.20Últimas Farpas,II,p.12.21 Últimas Farpas,II,p.15.Sobreestamatéria vide As Farpas,IV,Cap.X,«AsOpiniõessobreaformadeGoverno».

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Clarificadapelopróprioescritorestaquestãoprévia, aindaassiméderecordarquelogoem1912lhepareciajáapátria«comparávelaumprédiodequesecretamentesetivessemextraídoosalicerces»22.

Asátiraaomomentopolíticovivido(aoTeófilocomasvaretasdeguarda--chuvaamolgadasdascutiladasaplicadasao inimigo,ao«istoagoraé tudonosso!» dos impantes libertadores da “tirania”, aosmilhares demisteriosos“sobrevivos” àsescaramuçasdaRotunda)23 faz-seacompanhardeum juízodevaloredeumaimportanterecordatória:ojuízodequeosnovéispolíticosrepublicanoscomeçavamdaformacomotinhamacabadoaquelesqueeleshaviamsubstituído,ealembrançaaindadeque,nessaaltura,istoé,«quandoemPortugalnãohaviasenãoconservadoresdediversasmarcas»,eletomara«parteconsiderável»,juntamentecomoseuamigoEçadeQueirós,«naobrapreparatóriadarevoluçãoemPortugal».Nempor issoesperavaoagradeci-mentodajovemRepública,achandomesmonatural–semprenasuaexpres-sivafrase–queelanãolheenviasseagoraoseucartãodevisitas,desejando--lhe «Saúde e Fraternidade»24.Explicação?:oparlamentarismodopresenteeraaindamais«oco»queodopassado,e igualmenteexercidopor«ávidospolitiqueiros de ofício, sem nenhumconhecimento dos interesses e aspira-çõesnacionais»;oraseentão,com«algunsdoseutempo»,haviadeliberado«acordardoseuletargoaconsciênciapública,aduches,aventosas,apontasdefogo,abuscapés,aempurrõeseacartoladas»,damesmaforma,«esfre-gasdestas»nãopoderiamdeixarde«exactamente»seaplicaraospolíticosdaRepública25.

De resto, «os revolucionáriosdasFarpas» apenasvisavam«uma remo-delaçãodasociedadeportuguesa»,masnão«umamudançaderegimepolí-tico».Aindaantesdesedeclararsolidáriocomosentidodalutadageraçãonova de 191426, não deixaria Ramalho de proclamar «não ser por meio derevoluções,massimpormeiodesimplesrevulsivos,quesetratamasatoniassociais»,nomeadamentepelo«saneamentodosindivíduos»e«pelotratamentopaciente,pacíficoemelindrosodacélulaFamília».Acreditavajáentão,«uni-camente»,nastransformaçõesrealizadas«pelaacção,lentamasdefinitiva,dainfluênciadasélitessobreaobtusidadedasmassas»27.Falaaquiem«massas»enão,evidentemente,emPovo…

22 Últimas Farpas,II,p.123.23 Últimas Farpas,II,p.121.24Últimas Farpas,II,p.125.25Últimas Farpas,II,p.124.26Cf.Últimas Farpas,II,pp.209-220(Carta de um velho a um novo [dirigidaaJoãodoAmaralepublicadanodiárioA Restauração,deHomemCristo,Filho].27Últimas Farpas,II,p.127.

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2.Abramosporagoraumparêntesis,talvezulteriormenteútilparaoquenospropomostransmitir.Oseuconteúdoparecepacífico.Asaber:sobretudomercêdoinfluxodafilosofiapositivista,orepublicanismo,muitomaisdoqueumaquestãomeramenterelativaàtitularidadedachefiadoEstado,perfilou--se entre nós como mundividência alternativa à da tradição cristã/católicaeuropeia. Era umprojecto visandomudar a ordem cultural existente, daí aimportânciacometidaaosmeioseagentesideológicos,educativosepropa-gandísticos.Assim,aoestudareste«movimento»,da«redeorgânica»inicial,àfundaçãodoPRP(partidopretendendoafirmar-secomodeideologiaedemassas),FernandoCatroganãopôdedeixardereconhecerque«aquedadaMonarquia»constituiuumareivindicação«inicial»e«específica»,umavezqueinscritanumatendênciaapontandoparaobjectivosmaisvastos,como«alaici-zaçãodasinstituiçõesedasconsciências»;ouseja,«àboamaneirailuminista,achamadarevoluçãorepublicanapressupunhaaconsumaçãodeumaverda-deirarevoluçãocultural»28.

Como tal, mudando a face e fundamentos da sociedade, impor-se--iaatarefade«refundarPortugal»29.Umaatitudejáconsagradanopassado:sempre que houve grandes rupturas na tradição histórica portuguesa (nosdomínios ideo-político, institucional e cultural) logo seperfilou, como legiti-maçãodasopçõesdopresente, aatitude refundadora.Conformese vira, ainstauraçãodanovaordempolíticaeeconómicadoliberalismotinhareque-rido«novasformasdeinteriorizaçãoedelegitimação»,e«issopassa[r]apelatomadadeconsciênciadequeurgiacriarumanovaopiniãopúblicaimbuídadevaloresede ideiasquealicerçassemopropósitode“refundar”aNaçãoembasesrepresentativas»30.E,noseutempo,acasoo«terramoto»pombalinonão apresentara os jesuítas e a educação jesuítica comooprincipal obstá-culoà«rementalizaçãopolíticadasociedadeeàreestruturaçãodoestado»31,numalinhadedespotismoesclarecido,comerecçãodaCompanhiano“bodeexpiatório”daconstruçãodonovoPortugal?Comoébemsabido,estarefle-xãosobreascausasdoatrasoedadecadênciadopaísrenovar-se-iadesde

28 FernandoCatroga,O republicanismo em Portugal, da formação ao 5 de Outubro de 1910,Coimbra,Minerva,1991,p.12.29Cf.PedroVilas-BoasTavares,Projectando e justificando a «refundação republicana»: polémi-cas e tensões no “tribunal” da História,in«MVSEV»,IVSérie,n.º18(2010),pp.161-185.30 FernandoCatroga,Alexandre Herculano e o Historicismo Romântico, in LuísReisTorgal,JoséMariaAmadoMendeseFernandoCatroga,História da História em Portugal, Sécs. XIX-XX,VolumeI,Lisboa,TemaseDebates,1998,p.45.31Aludindoàconhecidapersonificaçãomartiniana(História de Portugal,Vol.I,LivroSexto,Cap.V),remetemo-nosaquiàspalavrasesentidogeraldeumimportanteestudodeJoséSebastiãodaSilvaDias,Pombalismo e teoria política,in«Cultura–HistóriaeFilosofia»,Vol.I,Lisboa,1982,pp.45-70.

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iníciosdeoitocentos,eapalavra“mágica”«regeneração»,acadasobressaltodanossavidacolectiva,seriasucessivamenteadoptadaegeneralizada(comusodesignificadoporvezescontraditório),comosímboloesperançosodeumfuturodeprosperidade,harmoniasocial,projecçãoeprestígiointernacionaisdePortugal,resultantedeprofundasreformasintroduzidasouaintroduzirnaadministraçãoegestãodacoisapública32.

Apesardetodasasrealizaçõesdoconstitucionalismoliberal,nocampomaterialenocampodacultura,os «anosdecontestação» (1865-1880)edefimdeséculoencarregar-se-iamdedesmentiroudesfazeralegadas«ilusões».Nobalançodoliberalismo,osprincipaisnomesdaGeração de 70,sobretudoAnteroeOliveiraMartins,nãoalinharamapenascausashistóricas,institucio-naiseculturaisexplicativasdaalegadacaquexiadanação.Fizeramconhe-cido,duroedefinitivo“diagnóstico”.Segundoambos,todososgrupossociaisparticipariamdesse fenómenocolectivode letargia,atoniaoumorte irreme-diável…Etodavia,aseulado,contrastivamente,umTeófiloouumJunqueirodetectavamna“lareiradapátria”,entreasfranjassociaispopulares,esperan-çosaseesquecidas“brasas”de revivescênciamoral33,ocultasporbaixodacinzadedecomposiçãodasinstituiçõesedasclassesdirigentesdopaís34.

EstanosparecesertambémaatitudedeRamalhoOrtigãoperanteaenti-dade«Povo».Umarealidade–aseuver–talvezaindatoscamenteinacabada,porculpaalheia(dasclassesdominantesedasinstituições),masdinâmicaerecheadadepotencialidades…àesperadaoportunidadedepassaremaacto.

3. DezanosvolvidossobreasConferências do Casino,Ramalhofarpeavaousodapalavra«liberdade»como«ograndepratoderesistênciaemtodososjubilososbanquetesdopalavreadonacional», umentusiasmoapenas supe-radopelodainvocaçãodo«povo»,porque–ironizava–«quemdizpovotemdito tudo quanto se pode dizer emdemocracia». Por isso, «os patriotas deambasascasasdoparlamento»,mesmoosdaaristocrática,«batendonopeitoaspunhadasmaisplebeiaseconvictas»,gritavamtambémserpovo!Todoseram«filhosdopovo»,«povoelesmesmos»,nãoquerendo«nadadestemundosenãodopovo,paraopovoepelopovo»35.Asátiraiadirectaparaainautenti-cidadedasalegações,pois«semprequeopovodeixa[va]deserumaimagem

32 Cf. v.g. Maria Cândida Proença, A Primeira Regeneração. O Conceito e a Experiência Nacional (1820-1823),Lisboa,LivrosHorizonte,1990.33Cf.PedroVilasBoasTavares,História da Literatura em Teófilo Braga – Romantismo, gestão de informação e estratégias de luta ideológica,in«BracaraAugusta»,LVIII(2013),p.260.34Cf.José-AugustoFrança,O Romantismo em Portugal,Lisboa,LivrosHorizonte,1993,p.542.35Farpas Esquecidas,XVII,p.82.

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parlamentareumaabstracçãooratória[…],eapareciadejalecaoucamisola,desapatos ferradosedebonésobreoolho,dandovivasoudandomorras,o povo, para todos esses senhores, cessava imediatamentede ser opovo»paraser«algunsmaltrapilhos»ou,paraosburgueses,«garotagemébria»;algosemelhanteàliberdadenalógicadaCarta:«umsagradodireitometidodentrodeumfrasco»,nãoresistindoàretiradadarolha,àprovadoseuusoconcreto,poisemtalcasoasinstituiçõespressurosamenteadvertiamousuáriodadife-rençaentrelicençaeliberdade36…

Estava ainda fresca a memória do encerramento das ConferênciasDemocráticasedarepressãodealgumasoutraslicenciosaspugnasposterio-res,comdestaqueparaosprotestospopularesemLisboacontraotratadodeLourençoMarques…Ramalho limita-seaqui–simplesmente–aconfrontaras «caríciasdaMunicipal» como irrepreensível respeitopela liberdadedeopiniãoeexpressãogozadaspelocidadãonadetestadaInglaterra37.

EmcontrastecomosentidoderacionalidadeemedidadeRamalho,nãofaltamautorescoevos,algunsaliásilustres,empenhadosnarevoluçãoenascartilhasdedoutrinaçãourbanacorrespondentes,comoutraperspectivaçãode«Povo».Estãotodos–naturalmente–emsintoniacomoteordadesconstru-çãorepublicano-positivistadahistóriadoconstitucionalismomonárquicopor-tuguês,apresentadocomomomentointermédioeincoerentedeumaevoluçãonecessariamenteconducenteàrefundaçãorepublicana.Novoregimeenovaleifundamental,novabandeira,novohino,novamoeda,eenfim…novopovo.

Sampaio Bruno advertia do alto da sua cátedra informal da Rua doBonjardim: «Queopartido republicanonãopercadevistaqueemPortugalnãobastaaniquilarogoverno,éprecisoaindacriaropovo»38.

FalandodamortedeD.Carlos,comahabitualcruezaepreconceitointe-lectualistadasclassesletradasrelativamenteàsplebes“incivilizadas”,idênti-costermosusavaFialhodeAlmeida:«Povo?Nãohápovo.Aturbaacéfalaesentimental(taradaemtodoocaso),queemPortugalfazasvezesdepovo,éumaforçadeinérciasemamenorconsciênciadesiprópria,equenoestadodebestialidadeafricanaemquejaz,tãocedo[não]podeterpapelnamarchadopaiz,restando-lhecontinuaraserexploradaporcaciques,oulevadaparaomalporpapagaiosdecomício,nosentidodassuastarashomicidas»39.

36Farpas Esquecidas,XVII,p.84.37Farpas Esquecidas,XVII,p.86.VidetambémXVIIIeXIX.38«Incivismo»,art.publicadoemA Discussão – Diário Democrático da Manhã,1.ºAno,n.º158(Porto,10.6.1884),inDispersos II (organizaçãodeAfonsoRocha,recolhadeJoaquimDomingueseJoséCardosoMarques),Lisboa,INCM,2011,p.523.39Saibam quantos… (Cartas e artigos políticos),Lisboa,A.M.Teixeira,1912,p.97.

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João Chagas, por seu turno, por detrás do parapeito da máquina deguerrasubversivaconstituídapelassuasCartas Políticas,seporumladonãohesitavaemjustificaropapeldassociedadessecretasnaeclosãodasrevo-luçõeseemdeclararqueBuiça,comoseugestoassassino, «reabilitara»e«dignificara»oPovo(!),poroutrolado,contraditoriamente,declaravatambémque,poisoPovo«nuncaexistira»(!),eranecessáriocomarevolução«dar-lhenascimentoemostrá-loàpróprianaçãoassombrada,comoumhomemnovoesemprecedentes»40…Pelosvistosnãoherdeirodessapeonagemqueoutroraacorriaaochamamentonaépocaincertadasalgaradasedareconquista,doscolonosesesmeirosquefertilizavamasglebas,dosmesteiraiseburguesesqueanimavamaeconomiadevilasecidades,dosgrumetes,pilotosesolda-dosdaexpansão…

MasoPovoexistia,claro–«eeramuitobemconhecidodanação,nomea-damentedassuas“apariçõessalvíficas”notabladodosacontecimentosdasgrandescrisespolíticascolectivas,daspatrióticasjacqueriesde1383-85,oudos«levantamentos»da«Restauração»,àresistênciaàstropasfrancesasinva-soras».Sabia-omuitíssimobemChagas,mastratava-seentão,nalógicadele,demerapropagandasubversiva,«de fazerumapersonagemnova,ajustadaaosdesígniosdarevolução»41…

Aestes“arquitectos”,autoproclamadosconstrutoresdeumhomemedeummundonovos,tudoparecialícitoepossível,ereeditandoatitudesdavelhamatriz iluminista, em nomede intocáveis princípios abstractos, «não escru-pulizavamemanatematizarsumariamente,semremissão,ouemfazer“tábuarasa”detodoumvastoericopecúliocolectivodeexperiênciassociaiseinsti-tucionais,afinal“segregadas”,adaptadaseconsagradaspelapróprianação,aolongodoseuconcretoemultisseculartrajectodevida»42…

Oautord’As Farpas,pelocontrário,viaumaespéciedeinsanoefunestomessianismo (ou simplesmente uma cínica fraude) nessa singular crença,segundoaqualbastariamudaroregime(o«rótulopolítico»eaconstituição)«pararenovarumpovo»43.Aoreformismofundomasgradualista,práticoecon-cretodeRamalhoOrtigão,bastavaareivindicação(enãoeracoisadepoucamonta!)dequeopovofosserealmentetratadopelos«públicospoderes»comadignidadedepovoe«povosoberano»,ascendendodamenoridadecívicaa

40 Carta [n.º 19] ao Congresso de Setúbal, ao reunir-se para eleger o Ultimo Directório do Partido Republicano Portuguez,p.291.41PedroVilas-BoasTavares,Projectando e justificando a «refundação republicana…,art.cit.,p.181.42PedroVilas-BoasTavares,Projectando e justificando a «refundação republicana…,art.cit.,ibid.43Últimas Farpas,VI,p.83.

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agenteesenhordoseudestino.Ramalho, talcomoOliveiraMartins44,aindaque demarcando-se da iconoclastia jacobina e do republicanismo, sintoni-zava, tal comonãopodiadeixardeser, comadoutrinaçãodemocráticadohistoriador,vendonademocraciaoderradeiromomentoevolutivodassocie-dadesocidentais,correspondendoaonexoagregadordopatriotismocívico,aumsistemadeleisabstractaseuniversaiseaumfundamentodaautoridadeassentenavontadecolectiva.Aumeaoutroimportavatodaviaumademocra-cianãoapenas formal,mas tambémsocial,culturaleeconómica,naqualoEstadoexerceriavocaçãointerventoraecorrectiva.

4. Nãoédifícilperceberesta lógicaemRamalho,nomeadamentenumtextonotável,desátira,pordemaisconhecido,eque,noÁlbum das Glórias45,acompanhaacélebrecaricaturadoZé Povinho,deRafaelBordaloPinheiro,

44Cf.Quadro das Instituições Primitivas,Lisboa,Bertrand,1883,p.300.45Cf.EdiçãoFac-similadadoOriginal,comPrefáciodeJosé-AugustoFrança,Lisboa,MoraesEd.,1969,n.º32.

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umestereótipocolectivoluso46,porsiinventado,aprimeiravezapresentadoempúbliconoperiódico«ALanternaMágica»,de12deJunhode1875.

Vale a pena recordar essaparceria satíricaBordalo/RamalhodoÁlbum,queconstitui, independentementedetodasasoutrasconsiderações,umarei-vindicaçãodetransformaçãoda«caranguejolatãoengenhosamenteconcebida»combasenaCarta Constitucional, ou seja, o incoerente sistema representa-tivodoliberalismo,numagenuínademocracia.Esta,segundoamanifestaechãdoutrinaçãodotextocríticodeRamalho,eraevidentementeincompatívelcomamenoridadedoPovinho… peloquesetratavadepugnarpelaefectivasobera-nia,participaçãoematuridadecívicadoPovo,soberanonãoapenas“denome”,deacordocomasconvençõesteóricasdaleifundamental,A Carta…

POVO SOBERANO

Filiação• filhodeestremosamãe,aCarta[Constitucional,1826]• edegalhofeiropai,oParlamentarismo.

Idade• brincabrincandoestacriançatemhojepertodecincoenta

anosdeidade[1882-50=1832/34]

Estadoactual• correspondendoàsesperançasneledepositadas.• comodesenvolvimentodecabeça…estápoucomaisou

menoscomoseotivessemdesmamadoontem• apenascumpresatisfatoriamenteamissãodesuarepagar

Presente• sistemavigente,produzindoZéPovinho(estereótipocaricatu-

raldanão-integraçãoeparticipaçãocidadãnares publica)

Futuro• «tempestuoso»,«umdiavirá»,trazendomudançadefigura

edenome:POVO!

TermocorrelatoàconstruçãodegenuínaDemocracia(política,socialeeconómica),naqualoPOVOérealmenteSOBERANO

46Sobreestamatériacf.JoãoMedina,O Zé Povinho, caricatura do «homo lusitanus»,inEstudos de Homenagem a Jorge Borges de Macedo,Lisboa,INIC,1992,pp.445-472.

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A Carta, n’As Farpas tratada como«documento palenteológico», é aqui noÁlbum apresentadacomoumavelha feia,de chinelos, gato aos pés, fogareiro eguarda-sol,usando«chinópretocheirandoa rato com banha», em contraste com aeducação «delambida», «para meninafina»,umavezqueseupai,o Romantismo,esuamãe,a Monarquia Constitucional,adestinavama«casarcomo Povo».

Segundo a “diegese” biográfica dapersonagem Carta, então contando cin-quenta anos, houve uma infeliz evoluçãodesdeaassolapada«lamechice»doPovo(«bom homem ingénuo, mas bronco elabrego»)por ela, «desdeaprimeira vezque a viu», até aos desenganos do con-vívio conjugal, sua expulsão de casa,“divórcio”,“aventuras”clandestinas«comváriossujeitosdaburguesia»,eamisériapresente.

Em suma, de acordo com esta metáfora: desajustada à realidade, aCartanãoseadequavaàslegítimasaspiraçõesdoPovo,chamadoporelaàsoberania.

Em registo bem humorado, ligeiro e algo impiedoso, aqui colocavaRamalhogravesquestõesde fundoede filosofiapolítica,que, emanosdecontestação,andavamnaordemdodia,eaqueoregime,deresto,nãodeixoudetentardarresposta.

Assim,comoésabido,em1878,oalargamentodosufrágiopela leide18deMarçodesse ano, atribuindoo voto aosportuguesesdemaior idadequesoubessemlereescreverou fossemchefesdefamília,chegaraa levaroPRPa elogiar essepasso, apelidando-ode «sufrágiouniversal comoutronome».Nova leide1884manteveessasdisposições47,eem1885,umnovoactoadicionalàCartaiatambémemsentidodemocratizante,comareduçãoda legislaturapara trêsanos, restriçõesaopodermoderador,supressãodopariatohereditário,combinaçãodaprerrogativarealdenomeaçãodospares

47 FernandoFareloLopes,Poder Político e Caciquismo na 1.ª República Portuguesa,Lisboa,Estampa,1994,pp.73e74.

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(100membrosvitalícios)comoprincípioelectivo(50membros),eaindacomadeclaraçãodequeospareseramrepresentantesdanação48.

Éporventuraparaadmirarquenosdoistextoscontundentementecríticosqueacabamosdeevocar,ambosarquivadosnoÁlbum comadatade1882,apreocupaçãocomademocratizaçãodoregimeecomanecessidadedoajus-tamentodaleifundamentalaosseusfinspróprioseàrealidadesociopolíticaportuguesasejamvectorescentrais?

5.Nessemesmo ano de 82 o autor deAs Praias de Portugal admitiahonestamenteque,nousodafiguradoZé Povinho,RafaelBordaloPinheiroalgumavezsefizesseecodefrases tribunícias«deumoudeoutroclube».Masteriadesereconhecerqueessagenialcriaçãonãorepresentavaapenas«umaespéciedePolichinelodaantigacomédiade títeres,encarregadodearrecadarassovasdePierroteArlequim»;representavatambém,noapren-dizadodoaindarecenteregimedediscussãoeliberdade,osoleneprotestopelaausênciaentrenósdeumagenuína«opiniãopopular»,porestaseacharainda«porconstituir»49.OPovo,àluzdodesenhodocaricaturistaesegundoRamalho,deixaradeser«exclusivamente»oqueservia;eraentãotambémoquepagava;«masnãoe[ra]aindaoquepensa[va],oquedecid[ia]eoqueresolv[ia] […]asquestões relativas àmarcha social. Já nãoe[ra] amassainerte,passivaeamorfa».Era–concediamesmo–«uminstrumentoconside-ravelmenteaperfeiçoadoeenobrecidonaproduçãodotrabalho»,masestava«aindalongedeserumfactornaequaçãoespeculativa»,no«problemainte-lectual»coevo50.

Diferentementedebastantesdosseuscontemporâneos, sobretudodosqueseinseriamnasestratégiasdepropagandaeconquistadopoderdoPRP,claudicandoàvelha tentação jacobina,RamalhoOrtigão tinha,dopaísedoPovo, não umanoção abstracta,mas uma visão concreta, real, compassivatambém,talcomooeramoseusentidodedignidadepessoaledejustiça.

OPovo,nomeadamenteo«homemdocampo»eooperárioestãomesmonocentrodaspreocupaçõesdeRamalho,aindaqueouniversodasclassescultas urbanas e omundanismo social da cidade condicionem a obra docronista.

48Cf.J.JoaquimGomesCanotilho,As Constituições,inHistória de Portugal(dir.deJoséMattoso),5.ºVol.O Liberalismo(coord.LuísReisTorgaleJoãoRoque),Lisboa,Estampa,pp.164-165.49As Farpas,IX,p.152.50As Farpas,IX,p.153.

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Assim,olavradordoMinho(caseirosecabaneirosvivendonassuassecu-lareseprimitivascasascolmaças)eratipoegruposocialdemasiadopode-rosonahistóriaenavidadopaísparaqueRamalhonãoofizessecomparecernassuaspáginas.ÉumavariedadedoZé:

«Elepagaparatudo–paraodistrito,paraacidade,eparaacôrte;pagaasestradas,inúteisàbárbaracarretademontanha[carrointeiriçodemodelocelta,emquetransportaosseusprodutos];alémdomestrequeonãoensinaedopadrequeonãoabençoa,pagaoslegisladores,ministrosedeputados,quenãolegislamparaele;pagaogásqueonãoalumia,aáguaquenãobebe,ocaminhode ferroemquenãoviaja,oexércitoquesenãobateporele,apolíciaqueonãodefende,ojuizquelhenãofazjustiça,ogovernadorcivilquenemogovernanemociviliza,oregedorqueonãorege,eomédicoqueonãocura./EmcompensaçãodamaçadadedaraoEstadotudoquantoganha,oEstado,porumaequitativatrocadeobséquios,poupaolavradoràmaçadadereceberoquequerqueseja»51.

Neste caso, sucintamente, epigraficamente, lembra os «males» desta«prolíficaraça»,partedelaexportadaparaoBrasilcomsortediversa,fazendoaidentificaçãodolavradorcomaprópriaimagemdoboidasuaregião,queoserveecujasorteparecedecalcar,aténaalimentação:«Aervadoboiécruaechama-sepenso,adeleécozidaechama-secaldo».

Estaatençãoàsortedavetusta«raça»doslavradorescaseirosdeEntre--Douro-e-Minho merece ser tanto mais relevada quanto, depois do 5 deOutubro,comrarasehonrosasexcepções(comoasexcruciantespalavrasepropostasconcretasdoSenhordePascoaes,feitascomoCódigodeProcessoCivilnamão)52,elacontinuaráesquecidados«pátriospoderes»…

Amesmasolicitudepelasortedasclassespopularesseverificarelativa-menteàfamíliaoperáriaeàcondiçãofeminina.

Assim,asimpatiadeRamalhopelagrevedascostureirasdemodistas,declaradaemNovembrode1872,tinhaboasesimplesrazões,pormenoriza-damentedescritasn’As Farpas:péssimascondiçõeslaboraisnasoficinasdecostura,excessodehorasdetrabalhosemdescansoemiserávelremuneraçãodiária,mesmodepoisderedobradoempenhonaentregaaprazadadosves-tidosasenhorasricaseimpacientes,paraaópera,bailes,visitas,passeiosejantarespróximos…Efindaasofridaeexigentelabutadetodoumdia,para

51Cf.Costumes e Perfis,p.23.52Cf.MariadasGraçasMoreiradeSá,Estética da Saudade em Teixeira de Pascoaes,Lisboa,INCM,1992,p.202.

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receber–acrescentaocronista–,«portudoisto,àsnovehorasdanoite,umtostão.Umtostão,meussenhores,opreçodestemaucharutoqueeuvouacen-der!», realidadedramáticaquepodia fazer um vestido significar «o luxodeumagrandedamaeadesonradeumamiserávelrapariga»53.

Nesta matéria, o pedagogo d’As Farpas não poderia sequer deixarescamoteado o tratamento que frequentemente, por crassa deseducação eegoísmo,sepercebiaosoperáriosdispensaremnafamíliaàssuasmulheres,«tratadascomoentesubalternoepassivo[…],coisaquesepossuicomojus utendi et abutendi – aominosa propriedade enfim», emgeral tão «cordial-mente» detestada dos «senhores proletários». Amulher operária – escreviaentão–,excepçãofeitaaotempopassadonaigreja,«ninguémadistrai,nin-guémprocuratornar-lheaexistênciadoceerisonha,dar-lheonobreorgulhodesesentiramada,querida,necessáriaaomundoparamaisalgumacoisadoqueparalavaracasa,coseraroupaecozinharacomida»54.Panoramaqueoescritordesejavavermudarrapidamente.

Efectivamente,tantoassimeraque,porcoetaneamenteanovapastoraldocatolicismosocialterpassadoapugnarporaquiloqueoinsuspeitoSampaioBrunodesignavacomo«independencia sexual»e «dignidade feminina»,umnovo tipo de invectivas anticlericais surgira, como no seio da propagandarepublicanaapenadoprópriofilósofoportuensebemopatenteia55.

Comosinaldeumaculturasocialurgindorevisão,viaRamalhoqueemLisboa,aodomingo,aocontráriodasmulheresdoslojistas,queiampassearcom os seus maridos, as mulheres operárias dos bairros de Alcântara ouMouraria,ficavamàsportasoujanelasdassuaspequenascasas,numa«inac-çãodesconsoladaeabatida»,enquantooshomenssaíamparaos«divertimen-tospopulares»56.Oranestaenoutrasmatériasentendiaoautord’As Farpas essencialqueaos«senhoresoperários»fossemditasalgumasverdadessim-ples,semtabusneminibições,nomeadamenteque,ocupando-seelesexclu-sivamente«daquestãodosinteressesenãoseocupandonuncadaquestãodosprincípios,questionandoconstantementeosalárioenãotratandonuncadainterpretaçãododeveredaleimoral»,destemodocontribuíamparaimobi-lizaremeperderem«asuacausa»,materializando-a57.

53As Farpas,XIII,p.191.54As Farpas,XIII,p.193.55Cf.SampaioBruno,A Questão Religiosa,Porto,LivrariaChardron,1907,p.150.56As Farpas,XIII,p.194.57As Farpas,XIII,p.195.

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6.RamalhoOrtigãotevesemprea“obsessão”daescoladosaberandar,doandardireito,denunciandoohábitoportuguêsdecorcovaredesearrastarnamarcha,deseducandoaespinhaeosrins,compotenciaçãode«defeitosdeconsciênciaedecorpo»58.Depoisdoseudesaparecimento,nasruasdoPorto,continuaráaressoaramemória«doandarforteesonorodeRamalho»,comoquandodesciaaRuadeSantoAntónio«comumbengalãodejunco,ocordãodaslunetasàSegundoImpérioeoseujaquetãoinglês,àsriscas»,parafazerpequenapausaàportadoCamanho,antesdepartirparaCarreiros«res-piraromar»59.Dir-se-iaquenaquelasrecomendaçõesaosmaisnovosdasuaconvivênciasobreacorrectaposturafísicaeformadeandar,estavatodoummagistériomoraldevida.Almarecta,andavadireitoeapreciavarectamente,enas suasobservaçõesdecríticocortavaadireito, aindaquecombinandoumaalegriaeumaindulgênciaquerecomendavaaosescritoressatíricosmaisjovens60.

Destemodo, Ramalho tanto arrasava a oratória dos «nossos primeirosestadistas»naCâmaradosPares, forrageandonoDiário da Câmara, tropose afirmações controversas e de gosto politicamente duvidoso (extraídas deumagaleriade«glórias»ondeperpassamoViscondedeChanceleiros,JoséLucianodeCastro,VazPreto,AntóniodeSerpa,BarrosGomes,FontesPereiradeMelo, SaraivadeCarvalho, Pires deLima, os bisposdeBragança edeViseu,Carlos Bento)61, como criticava o carácter excessivo da propagandarepublicana,afirmandosemrodeiosque«opoderpopularnãoperiga[va]nacoexistênciadosreis»eque,«comrelaçãoàliberdade»,nãohaviadiferençaentremonarquiaconstitucionale república, lembrandoaoSenhordeputadoRodriguesdeFreitasque«amaisperfeitasoberaniarepresentativanagerên-ciadetodososnegóciosdoEstadoexist[ia]efectivamente,desassombradaelivre,sobamonarquiaportuguesa»,parecendo-lheoutrossim«queagranderesponsabilidadeeleitoraldadelegaçãodopodere[ra]exactamenteamesmana repúblicaenamonarquiaparlamentar»62.Tanto castigavao alegadoafãreformadordoregímen,quenuncaanunciavamelhoramentosquenãoimpli-cassemaumentodedespesaecrescimentodonúmerodosfuncionáriospúbli-cos63,comocriticavaamanipulaçãodemagógicaqueoPRPfaziadascama-das populares em comícios suburbanos de «propaganda revolucionária».

58 Cf.AugustodeCastro,Uma Recordação de Ramalho, inO Fumo do Meu Cigarro,Lisboa,SantoseVieira,1916,pp.180-181.59AugustodeCastro,Viagem no meu Jardim,Lisboa,ClássicaEd.,p.128.60Cf.As Farpas,IX,p.182.61Cf.As Farpas,IV,pp.299-309.62As Farpas,IV,pp.117-118.63As Farpas,IV,p.312.

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Ostermosdestametáforasãoconhecidos:«Comooboipuro,opovonãosedesilud[ia]nunca,nuncasedesengana[va]dalide»,eoslidadores,acenando--lhe«comotrapoencarnado»,iam-noexplorando,«comootouroemtardedecorridanomeiodoredondel»64.Paraoautord’As Farpaseraafinal,sobretudo,o operário politizado «por confusas e contraditórias teorias de jacobinismosocialistaeateu»,quenasruasdacapital,exercia,semprequechamado,asfunçõesdepovo»65…

Em todasasposiçõesdeRamalhoOrtigão,emmanifestozelodobemcomum,duasnotassãopordemaisevidentes:asuafirmeoposiçãoatodasasformasdeembaimento,eporissoàsdiferentesmodalidadesdedemagogia(doladodegovernanteseoposições),easuaênfasenaideiadequenãoháboaspolíticassemaprobidadepessoaldosseusagentes.A«virtudepública»,arectidão,a justiça(do ladodopoder,omeiodemanteraordempassariamuitosimplesmentepordeixardemanterosabusos)seriam«molaindispensá-veldetodooestadopopular»,consistindoresumidamente«empreferirodeveràconveniência,odireitoàforça,ajustiçaàpopularidadeeaoêxito»66.Eaosadeptosdassoluçõesradicais,àquelesqueexploravamasliberdadespúbli-casparatentarsubverteraordemvigente,comamesmaousadiae irritantesimplicidadeperguntava,doaltodoseupúlpitocívicod’As Farpas: «Quempoderácalcularonúmerodeliberdadesquenóssacrificaremosàordemnomomentoemqueadesordemcomeçara facultar-nosodireitoaogoverno,comasupressãododireitoaojantar?»…Paraconcluir:«Édasprofundidadesdemagógicasquesaemsempreàperiferiasocialostiranos»67.

Deplorandoaquioperigosocaminhodeinsegurançaeinstabilidadeemqueopaísforacolocadopelabacharelicedominante68,Ramalhorevelaperma-nentecepticismorelativamenteaqualquerpropostadesalvíficaregeneraçãodopaísquenãoviesseassentenumareformaéticapessoal.NãoporacasoevocaaexemplaridadedeMontesquieu,deWashingtonedeLincoln,nesteúltimoenfatizandoasconsequênciasfelizesdasuafénaimortalidadedasuaalma,emDeusenajustiça.Eao«Leitoramigo»,desejosode«fortalecer»asuapátria,recomendasumariamente:

«dá-lhemodestamente,napequenaórbitadatuainfluência,entreparen-teseamigos,aquiloqueelamaisprecisadeterparasuadefesadentroda

64Últimas Farpas,III,p.44.65Últimas Farpas,III,p.87.66As Farpas,X,p.130.67As Farpas,X,p.131.68Cf.As Farpas,X,p.124.

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casadecadacidadão:nãosetratadaforçadoteubraço,trata-sedarectidãodoteujuízo:sêprudenteejusto»69.

Seriaamelhorformadeevitargrandesmales.Ramalhoestámuitoperto

doregistodeEçanopequenocontoA Catástrofe.Ambosinsistemnainacti-vidadedissolventedeumajuventudedoseutempo,quecriticavaa«choldra»,masnãoseesforçavapor«salvaristo»,falavaaltissonantemente«naorganiza-çãosistemáticadotrabalhoenosdestinosdasclasseslaboriosas»,masnãodavaoexemplodeproveràssuasprópriasnecessidadesesustento70.

SegundoescreviaEça,haviaagoraumaoutrageração,nova,de«outragente»,quesepreparava,caladaeesperandoconcentrada.Tinhaaprendidocomosmalescolectivos,e,por seu turno,apontavaaosseus filhosoutroesegurocaminho,acostumando-osaamaraPátria,«emvezdeadesprezarem»:

«trabalhar, crer, e sendo pequenos pelo território, sermos grandespela actividade, pela liberdade, pela sciencia, pela coragem, pela forçad’alma…»71.

Comosabemose foi já referido,em1914,naCarta de um Velho a um novo,Ramalhodeclarava-se«confrade»e«companheirodeluta»dasgrandescausasdesta últimageração,marcadapelo lábaro integralista, equeera ageraçãodosseusnetos.

Até nesse generoso desassombro de final de percurso, declarando-secompletamente reconciliado com as grandes certezas da vida72, às quaistinhaacedidopela razão,pelaexperiênciaepelosafectos,semedeaesta-turadeRamalhoOrtigão,semprepletóricode juventudeedesaudávelale-gria,amando,e,porrazõesdebemcomum,sentindoapermanenteobrigaçãomoraldedeclararosseussentimentoseofundamentodosmesmos.

Mas, infelizmente, nomeio das ondas dematerialismo cínico e como-dismoavassaladorque nopresentedevoramas nossas sociedades, quem,comoemMaiode1871,estaráhojereceptivoàdenúnciade«consciênciasemdebandada»e«caracterescorrompidos»?…

69As Farpas,X,pp.130-131.70Cf.As Farpas,X,p.124;EçadeQueiroz,O Conde d’Abranhos e A Catastrophe,Porto,Lello&Irmão,1926,p.289.71EçadeQueiroz,A Catastrophe,ed.cit.,p.288.72Cf.MoreiradasNeves,A Última Lição de Ramalho,PosfácioaRamalhoOrtigão,As Farpas,TomoV,pp.311-316.

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185O POVO D’AS FARPAS. ÉTICA DEMOCRÁTICA E CÍVICA EM RAMALHO ORTIGÃO

Éverdadeiramentedetemerque,talcomosucedecomoutros“obsoletoscatões”dasnossasglóriasliteráriasdeoitocentos,politicamenteincorrectoseinconvenientesacertasintelligentziascoevasdominantes,seadensepesada-menteemtornodograndeRamalhonãoapenasosilênciocomemorativo,masoconhecimentointernodasuaobraeactualíssimolegadoéticoecívico,feitodereflexãocríticaecoerenteexemplodevida.

Outrossãoos“ídolos”donovo“panteãocívico”,masomaistemíveléque,segundohojeexperimentamos,asnovascrençasprimampelaiconoclastia!…

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