Daniela Rosante Gomes
IAÇÁ: Artes da Cena | Vol. III| n. 1 | ano 2020 ISSN 2595-2781
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VIVÊNCIASECONVIVÊNCIASNOCOLIPETE2018,SÃOLUÍSDOMARANHÃO:Revisitandomemóriasparapensarpedagogiasutópicasemtemposdedistopias
EXPERIENCESANDCONVIVENCESINCOLIPETTE2018,SÃOLUISDOMARANHÃO:
Revisitingmemoriestothinkutopianpedagogiesintimesofdystopias
UDESC,UFT
Resumo:O presente artigo tem suas reflexões tecidas a partir do cruzamento de memórias da autora,tomando como ponto de partida o COLIPETE 2018: II Colóquio Internacional de Pedagogia emTeatro,ocorridoemjunhode2018naUniversidadeFederaldoMaranhão(UFMA)comatemática:“TerritóriosemPedagogiadoTeatro:Discussões teóricasepráticasemdiferentescontextos”.Apartir dememóriasque se ligamà reflexão sobreomomentodopaís, sobreoevento, sobreacidade de São Luís em diferentes tempos e sobre suas próprias vivências, a autora relata suaspráticasdeformaçãoenquantoartistaedocente,noexercíciodeumaescritaquepasseiasobreosensíveleumaeducaçãodossentidos,propostapoeticamenteporRubemAlves.NoscaminhosdeumapedagogiaengajadaFreireanatomadapelaperspectivadofeminismodeBellHooks.Palavras-chave: COLIPETE, Formação Artística, Pedagogia Do Teatro, Pedagogia Engajada,EducaçãoDosSentidos.Abstract:Thisarticlehasitsreflectionswovenfromtheintersectionoftheauthor'smemories,takingasitsstartingpointtheCOLIPETE2018:IIInternationalColloquiumofPedagogyinTheater,heldinJune2018 at the Federal University of Maranhão (UFMA) with the theme: “Territories in TheaterPedagogy: Theoretical andPracticalDiscussions inDifferentContexts”. Frommemories that arelinkedtothereflectionaboutthemomentofthecountry,abouttheevent,aboutthecityofSãoLuísatdifferenttimes,abouttheirownexperiences,theauthorrelateshertrainingpracticesasanartistandteacher, intheexerciseofawritingthatgoesoverthesensibilityandaneducationofthe senses, proposed poetically by Rubem Alves. In the ways of a Freirean engaged pedagogytakenbyBellHooksperspectiveoffeminism.Keywords:COLIPETE,artistictraining,theaterpedagogy,deceivedpedagogy,sensoryeducation.
Nãoaceitomaisascoisasquenãopossomudar,estoumudandoascoisasquenãopossoaceitar!
AngelaYvoneDavis
Esteartigotrabalhasobreossentidose,portanto,sobreosensível.Partedanarrativadas
experiências vivenciadas em São Luís do Maranhão para evocar outras memórias e
VIVÊNCIAS E CONVIVÊNCIAS NO COLIPETE 2018, SÃO LUÍS DO MARANHÃO: Revisitando memórias para pensar pedagogias utópicas em tempos de distopias
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acontecimentos que ajudam a refletir sobre a formação de uma artista-arteira, educadora e
pesquisadoraemdiferentescontextos.Umaeducadoraqueprecisaresistir.Existindo!Aproposta
érefletirdeformalabiríntica,porquesãomuitososcaminhosquelevamaoconhecimento.Eos
conhecimentos,tambémsãomuitos!Tenhovivenciadoevenhorefletindosobreaspossibilidades
deconheceromundo(visíveleinvisível)einteragircomeleesuasperplexidadesatravésdeuma
educaçãodosensível,sobreaqualaprendomuitocomascrianças,comaspoetaseospoetase
comocontatoespontâneoedesinteressado(nãoutilitarista)comasgentes.
Interesso-mepeloencontrocomaspessoasnoquetêmdepoesiaedepossibilidades,de
diferençasepar-essências,debenessesemazelasnessesviveresdavidaque-duravida!-precisa
de invençãoe resiliência.Aprendernãoéapenas verbobitransitivo inscritonopapeldenossas
gramáticas (aprender, aprender a). Aprendemos juntos. Aprendemos com. E aprendemos para
algumacoisa.Aprendemosconectadosaumarealidadequepossaconferirsentidosàprópriavida.
Sentidos que, além de expandir a vida, podem preservá-la!, semente que são daquilo que virá
depois(comosomosnósosfrutosdoquefoisemeadoantes).Então,eapesardostantosnósde
nossaexistênciaedosaidenósdiantedetodaumaestranhaconjuntura,queroacreditarquea
vidaquerviver,eporissoéprecisor(e)existir!
Intuoumapoéticano ver, no viver, no sentir, noexistir nomundoquepareceessencial
investigare incentivarnaspedagogiasdetodaáreadoconhecimentohumano, independentede
estaremfocadasnaáreaartística,masmaisespecialmenteaindaquandoestão,comoéocasoda
PedagogiadoTeatro.DizopoetaMuriloMendes:“Todohomemépoetaentreosquinzeevinte
anos. A nova educação deve fazer do homemumpoeta em todas as idades, semque lhe seja
necessário escrever versos. Viver a poesia é muito mais necessário que escrevê-la” (MENDES,
apud ALVES, 2012, p.32). Na era dos tarja pretas, dos conformismos, das impotências e das
virtualidades,avidapedecadavezmaispor inventividade,presença,poesiaeoutras formasde
olhar, de sentir ede seenvolver e se comprometer comomundo.De formapoética.Artística.
RecordandoNietszsche aodizer queprecisamosdaArtepranãomorrer da verdade.UmaArte
com“A”maiúsculomesmo.
As labirínticas reflexões do artigo (como labiríntica é a vida), são tecidas a partir do
cruzamento de memórias, e tomam como ponto de partida o COLIPETE 2018: II Colóquio
Internacional de Pedagogia em Teatro, ocorrido em junho de 2018 naUniversidade Federal do
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Maranhão (UFMA) com a temática: “Territórios em Pedagogia do Teatro: Discussões teóricas e
práticas em diferentes contextos” (ocorrido em junho de 2018). Reflexõesmemoriosas tecidas
também em diálogo com a temática do presente dossiê: “Pedagogia das Artes Cênicas: como
ainda(re)existir?1
TomoaobraEnsinandoatransgredir:aeducaçãocomopráticadaliberdadedeBellHooks
(2017)comopremissa-referênciadoartigoedavida,emaranhadaqueestánopensamento-ação
deoutrasmestraseoutrosmestresquemeinspiram.Nasreflexões-memóriasdeHooksvemosa
pedagogia engajada Freireana ampliar-se na vivência de uma educadora estadunidense
consideradaperiférica,mulhernegraemilitantedeumfeminismoquenãosesenterepresentado
pelastradicionaiscorrentesfeministasque,importantesepioneiras,aindaassimnãoconseguiram
abarcararealidadedeHookseoutrastantasmulheresemsuascondições.
Nareferidaobra,éatravésdorelatodesuasvivênciasqueBellHookspropõepensaruma
pedagogia não apenas progressiva e emancipatória, mas holística, de uma ordem
verdadeiramente espiritual e erótica, no que tem de pulsão com o compromisso de uma
constante autoresponsabilização dos sujeitos do processo ensino-aprendizagem (aquilo que ela
chama de autoatualização). Uma forma de interação que gera bem estar, por promover a
interconexãodosconhecimentosdeformacoerentecomavidaemsuarealidadecotidiana.Um
processo em que não se busca “somente o conhecimento que está nos livros,mas também o
conhecimento acerca de como viver no mundo” (2017, p.27), tomando suas condições e
contradiçõesapartirdaquiloqueavidaoraapresenta.
Hooksfalasobaperspectivadeumaeducaçãomulticultural,quealémdeabraçarosseres,
deveabraçartodosossabereshojeexcluídospelossistemasdedominaçãovigentes,refletidosnas
práticas educacionais tradicionais autoritárias assentadas no conteudismo. Uma pedagogia
engajada apoiada em práticas nas quais saberes, vida profissional e pessoal, assim como as
dimensões corpo-mente-espírito, são tomados em conjunto, fortalecendo e capacitando os
envolvidosaviveremmelhoravida, seja individualmente, seja coletivamente, jáqueumacoisa
1Importanteexplicarqueestetextofoiescritoemsuaprimeiraversãoem2018,efoiapresentadoprimeiramenteparapublicaçãonosAnaisdopróprioCOLIPETEem2018.Noentanto,eportersidoenviadoforadoprazo,seguiunagaveta.Retomei-oemsetembrode2019,motivadapelapossibilidadedesuapublicaçãonestedossiêdarevistaIAÇÁ,ArtesdaCena(Dossiên.3publicadoemparceriacomoVIEncontroNacionaldePedagogiadasArtesCênicas,realizadoemmaiode2019naUniversidadeFederaldoAmapá).OperíododeescritaabrangeummomentoderetrocessonalegislaçãoedeumasériedeviolênciasqueficarãomarcadasnahistóriadoBrasiledomundocomoumperíododedistopias,acomeçarpelasquestõesqueenvolvemoprocessoeleitoralde2018.
VIVÊNCIAS E CONVIVÊNCIAS NO COLIPETE 2018, SÃO LUÍS DO MARANHÃO: Revisitando memórias para pensar pedagogias utópicas em tempos de distopias
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não é possível sem a outra. Uma pedagogia portanto, assumidamente iniciada nas práticas
pedagógicasdeseuantigoprofessor,PauloFreire,queincorporatambémafilosofiadobudismo
engajado de Thich Nhat Hanh, focada na prática e na contemplação, posto que considera as
múltiplasdimensõesdoviverhumanodeformaintegrada.SegundoHooks,afilosofiadeTichNhat
Hanh “é semelhante à insistência de Freire na ‘práxis’: agir e refletir sobre omundo a fim de
modificá-lo” (2017,p.26).Buscandobemestarparatodasetodos.Enãosóparaalguns.Sobos
maisdiferentespontosdevista.
AlémdeHooks,tomocomoreferênciaparaavida,eportanto,paraestaescrita,afilosofia
da educação de RubemAlves inscrita na obraA Educação dos Sentidos eMais..., desenvolvida
sobreapremissadeumaeducaçãodosensíveledossentidos.RubemAlveséummestrequehá
muitosanosmeensinoupelaforma-conteúdo-artístico-amorosadeseusescritosque“Ossentidos
seeducamaoseremtocadospelapoesia”(2017,p.43).Ouseja:pelaArteepelavivênciaquese
assumesensíveleengajadacomuma realidade,emconstantemovimentodeatualização. Lição
queBellHooks fortalece retomandoosanseiosmaisprimordiaisdeantigosmestresna lutapor
liberdade,dignidadee justiça,nãoapenascomopalavrasrepetidas jogadasaovento,mascomo
exercíciodeumapráticaquesefaztodososdias, todasashoras,acadaminuto,nosespaçose
temposemque,teimando,insistimosemseguirvivendo,aoexistir.
Nestetexto,comonaslinhaseentrelinhasdavida,procurorealizarumaescritabrincante
queencontraressonância:1)nesseprocessoeducacionalengajadoeeróticocomprometidocomo
bemestar individuale coletivo, aautorealizaçãopropostaporBellHooks;2)nessapropostade
educação do sensível e dos sentidos igualmente engajada e erótica proposta por RubemAlves
atravésdaquiloquemepareceseruma...pedagogiapoética!
Essemestre, velhomenino grande que se sabe pequeno, nos fala que a capacidade de
brincarpodeseraprendida.Equeesseaprendizadotemavercom:“acapacidadedeocorposer
erotizado pelas coisas à sua volta, de sentir prazer nelas” (2012, p.20). Sempre acreditei nessa
visão de mundo do saudoso mestre-poeta ao citar outres2que como ele sentiam, intuíam e
2Outres,todes,colegueseoutrasformasdeescritaquenestetextoseguem,podemparecerestranhasaalgumleitorquenãoestejapordentrodeste,quesetornouumdosrecursosdelutanocampodasquestõesdegênero.Aescritaseamolda,criaumvocabuláriopróprio,produzestranhamentosetodaumapoética(umalinguagem)paraforadoscânonesdalínguaditaoficial.Destaforma,essaeoutrasexpressõesreferem-seaomeurecenteautodesafiodeexercitaraescritaemdiferentesperspectivas.Alémdacolocaçãodo“e”nolugardasvogais“a”e“o”,amesmapropostaocorretambémcomousoletra“x”oupelocaractere“@”(outrxs,outr@s).Esclareçoquemeuentendimentoseformaacadadia,nodevirdecadaencontroeouacontecimento.Assim,sigoaprendendo
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manifestavamomesmoentendimento.ErecordosuaspalavrasaoevocarRolandBarthesquando
sugeria que “a educação dos sentidos fosse semelhante ao Kama Sutra, o ensino das várias
posições possíveis de se fazer amor com o mundo” (ALVES, 2012, p.20). Acredito nesse fazer
Amor.Intuo,penso,sinto,percebo,vivencioque:r(e)existimosfazendoAmorcomomundo.Um
Amorescritocomamesma letramaiúsculacomqueescrevemos,vivemos,sentimos, fazemose
intuímosanossaArte.
CHEGANÇAS...APRIMEIRACOMUNIDADE:ACASA
NãoexistesalvaçãopraessapobrehumanidadequenãosejaocaminhodessesMestresdaVidaViva3.
CarlosGomide
Na última hora, apenas dois dias antes da viagem, um sábado a tarde, abro um e-mail
dizendoqueminhareservanohostelondeficariaemSãoLuísdoMaranhãohaviasidocancelada.
Tentei organizar outros lugaresmas os valores estavam bemmais altos, de forma que eu não
poderia arcar com os custos. Quase desisti da viagem. Não sou de fazer isso,mas 2018 vinha
sendoumanodifícilemváriossentidos.AmudançadoNorteparao litoraldoSuldopaís,com
todaafamília,incluindoocachorro,parafazerodoutorado.Anegativadoacompanhamentode
cônjugeporumerrojudiciário,ficandosozinhacomascriançasnanovacidadedesdenovembro
de2017.Aadaptaçãodos filhos,montare fazer funcionarumacasa,a (não)rotina,asaulasdo
doutorado, apesquisade camponoNordestee Sudestee... umagravideznadaplanejada,mas
muitobemvinda!Solitáriagravidez.
linguagens,procurandomenosvalorizaragramáticadoslivrosedaacademiadoquevalorizaragramáticadasgentesedeseusmovimentosembuscaderespeitoeembuscadeumespaçoparaexistirem.Literalmente:existirem!,sepensarmosnareferidalutaderespeitoàpreservaçãodavida(permanecerviv@)travadanopaísemquemaismachuca,tortura,violentaematapessoasquenãoseenquadramnatradicionaldivisãodegêneros:(femininoemasculino,homememulher.Umadivisãoquesempreexcluiuasingularidadedemilhõesdepessoasaolongodahistória.Eaquinemestoumereferindoeincluindooscrimesdeviolênciacontraamulher,geradoresdeoutrafábuladeestatísticasquedeveriamfazertodaequalquercriaturahumanasecomprometeradiscutireencamparalutaporcondiçõesdeigualdadeedignidadehumana.3AexpressãoVidaVivatraduzumavisãodemundoassociadaaosmestresemestrasqueinfluenciaramafamíliaCarroçadeMamulengosemsuaspráticaseprincípios,servindodealicerceparatodaumaéticanosmodosdevereviveravidaeproduzirArte.Umaespéciedeutopiaquenosfalasobrerespeito,dignidadehumanaejustiçasocial.Umaespéciedevivênciaemqueafamíliabuscousercoerentecomosprincípiosquepregava,aexemplodaopçãodeseremvegetarianos.Inicialmenteaexpressãofoiusadaparasereferiràsoficinasdeproduçãodealimento(cural,pamonha,pédemoleque,farinha,etc.)realizadasempraçaabertacomopúblicopresentepreparandooalimento,compartilhadoaofinaldaoficina.
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Eu, mulher, 40 anos, artista-arteira, educadora-sonhadora e mamãe de três, como fiz
questãodeatualizarnaassinaturaautomáticademeue-mail,ondeantesseliadois.Meusfilhos
sempreentraramnosmeuscurrículosefazempartedomeulattes,noqualtambémdefendonão
serpossívelsepararvidaprofissionaldepessoal,porqueosfilhosfazempartedavida,assimcomo
otrabalho,apesquisaetudomaisqueseentrelaçanasentranhascotidianasdaexistênciadeuma
mulher.Umagravidezdesejada,então!Cercadadesurpresasinesperadas.Seguidadeumaborto
indesejado.Abortotristeeprolongadonotempopelas incertezasdeserumfetomortoouuma
gravidezmaisrecente:17diasdeespera,ultrassonsrepetidoseincertezasviscerais.Afinal,oque
éumfeto?umfilho?umafilha?bempequenininhadotamanhodeumbotão,queagentenão
sabesenasceounão???!!!
Eu,mulher,40anos,artista-arteira,aprendizdeVidaViva,educadora-sonhadora,mamãe
detrês,professoralicenciada,pesquisadora,doutoranda,militantedeváriasqueconsiderojustas
causas,vivendoasviolênciasdeumacuretagememtardedearco-írisgigantequeficoumarcado
namemória. Paradepois viveroutra sériededesventurasque culminaramemumprocessode
separação muito doloroso. Naquele momento, um processo em pleno movimento. Muitos
processos reunidos e profundos, divisores de água. E senti pela primeira vez as forças queme
eramtãocaracterísticassumiremassim,semmais,nemmenos.Diaapósdia.Enquantoocorpoia
entrando em colapso. A anemia, as taxas hormonais de um hipotireoidismo crônico
descontroladas, a reposição artificial de ferro pela veia, o inchaço do fígado, a gastrite
avassaladoraeosrins.Ai,osrins!Eunãosabiaaocertoondeficavamosrinsemmim.Ondedoíam
meusrins.DuranteoCOLIPETEeudescobri:osrinsdoem.Muito!
A dor nos rins começou mais ou menos durante a situação em que o hostel havia
canceladoareserva,eeujáestavacertadedesistirdaviagem,sinceramentequaseagradecendo
por isso. Pelo menos até me atentar que as passagens para o Maranhão (que haviam sido
compradaspeloProgramadePós-GraduaçãodaUDESC)nãopoderiamserdevolvidas.Eodinheiro
simplesmente seria perdido se eu não fosse viajar, uma vez que as passagens são nominais e
intrasferíveis.Dinheiropúblicogastoàduraspenas!Desperdíciodeumaverbapreciosa,sempre
usada à conta gotas nos departamentos de Arte das universidades brasileiras. E sim, sou
extremamente zelosa e ciente da responsabilidadedeusodeste dinheiro. E afirmo com toda a
convicção que outres colegues também o são, apesar dos ataques que tentam desacreditar
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funcionários públicos e mais recentemente os professores de instituições públicas de ensino
superior de forma tanto equivocada quanto generalizada. E sim, também afirmo com toda
convicção:hátambémosquenãopossuemomenorcomprometimentocomissotudo,masquero
muitocrereassimpercebo,nãosãoamaioria.
Enfim, jáestávamossofrendoasconsequênciasdoscortesdeverbasdosanospósgolpe
(golpe mesmo!), especialmente após a entrada em vigência da emenda constitucional de
congelamentodosinvestimentosemeducaçãopelospróximos20anos,conhecidacomoaPECda
maldade. E que golpe!!! A Petrobrás já na loteria da imoralidade neoliberal. E isso para citar
apenas o que estava para aquele momento pré-eleitoral, ressaltando a importância de fazer
memóriadestesfatosporqueemtudotêmavercomaPedagogiadaArteedoTeatro,comavida
doeducadorartistaemprocessodeformaçãopereneecomatemáticadesepensarasformasde
ainda(re)existir4.
A situação de perda da passagem envolvia a referida responsabilidade, à qual ainda
acrescentooimensoprivilégiodesereuumaprofessoraefetivalicenciadacomremuneraçãoque
possuicomida,tetoeagasalho,parausaraspalavrasdeCarlosGomide,jácitadocomoautorda
epígrafequeabreestaseção.Paraalémdocolapsodocorpo,tomeiforçaeresolvifazeromelhor
para dar um jeito na situação. Entrei em contato com colegas do curso da pós-graduação que,
residindocomigonoSul,mecolocaramemcontatocomoNordeste,deformaqueemmenosde
quarenta horas eu estava na casa de duas professoras de Teatro da redemunicipal e estadual
formadasnaUFMA (emanifestoaquiminhaprofundagratidãopor isto!).Acolhidanopequeno
quartodapequenacasadapequenavila,numacamaenorme,quedepoisvimadividircomoutra
colegadoprogramadedoutoradonoSul,tambémacolhidapelasprofessorasmaranhenses,que
fizeramdetudoedealgomaisparanosreceberemmuitobem.
Aqui,aprimeiracomunidade.Aconvivênciadacasaondefico,ondedurmo,tomobanho.
Onde sou recebida e também recebo. A casa onde dois dias depois chegammais dois jovens
companheirosbaianos,tambémprofessoresdeTeatronaredepública,quevieramdecarronuma
4Quaseumanoemeiodepoisestáaíodesenvolvimentodosfatosposterioresaoperíodoeleitoralcomprovandoessasinseparáveisconexões.Tenhoevitadoasnotícias.Eprocuradofazeralgumasaçõesdiretasemcomunidadesmaisatingidaspelasviolênciasdodesgovernoqueocupaasinstânciasoficiaisdesdeentão.Açõespontuaisemuitoinsignificantesdopontodevistadetudooqueseriaprecisofazerparasemodificarsubstancialmenteoquadro.Aspossíveisdentrodasdemandasdeumdoutoradocujoprazoderealizaçãoédetrêsanos,dadasasnormativasdauniversidadeondeatuo.Açõesque,apesardenossaspequenezas,talvezpossaalgonessesdelicadosespaçosdeconvivênciaondeavidaefetivamenteacontece.
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longaviagemdequasedoisdiasparaparticipardoCOLIPETEcomoouvintes(seminscriçãoprévia),
pelo interessedaviagem,departicipardoeventoedaconvivênciacomasamigasanfitriãs,que
fazemsuapequenacasarendernotapetedapequenasala.Acasaondefizemosjuntes(com‘e’
mesmo)algumasrefeições,bebemosdovinho,dacervejaedacachaçacompradanatradicional
lojadoantigomercadorecomendadaporseuspoderesmágicos(euaindacomreceiodarecente
gastrite,emdosesbemmoderadas).Asconvivênciasevivênciasnacasaiammeajudandonacura
dasdoresdachegada,aolongodasemana.
DetudoissosefazoIIColóquioInternacionaldePedagogiadoTeatro,oCOLIPETE2018(e
certamenteoutrosencontros):dosencontrosqueacontecemnaslinhasinvisíveisquegeralmente
nãocitamosnosartigos.Sefazdacasaondetrocamossobretudo!Arte,política,metodologiasde
ensinodoteatro.AsdificuldadesdavidadeartistaedeprofessoresdeArte,tempo(muitasvezes
a falta dele!) para criação artística diante das tantas responsabilidades e trabalhos para
compensarapéssimavalorizaçãoeremuneraçãoprofissional(alieueraapessoacomasituação
financeira mais confortável, mas todos nós conhecíamos bem situações ainda bem mais
desfavoráveis5).Asobrevivêncianacordabambadavida,repletadedesejosesonhosquemuitas
vezes vão sendo esquecidos, enquanto outros, se realizam sem que a gente se lembre que
sonhou.
Falamos sobre religiosidades africanas e indígenas, culinária, medicinas tradicionais e
alternativasaositensdaperigosaindústriafarmacêutica,e,sobretudo,sobrenósmesmos,sobre
cadaumdenós.Nós,artistaseeducadoresemcontextosdiversos,emmomentosdiferentesda
vida.Nós,dediferentesculturasecantosdeumBrasil,quetocamosecantamosmúsicascomos
instrumentos que trouxeramos colegas baianos, embora nenhumde nós, a rigor, se considere
músico (somos do Teatro!). Faz parte da pedagogia: o instrumento é de todos! Todos podem
tocar,atéquemachaquenãosabe6.ComodizRubemAlves:
5Porocasiãodonascimentodemeuprimeirofilhoeuemeucompanheirocontávamoscomatéoitoprojetosemandamento(áreaartísticaeeducacional),enãoerararoquenãoconseguíssemosarcarintegralmentecomoscustosdeumavidaextremamentesimplesedesprovidadegastossupérfluos.Passamosporsituaçõesextremamenteconstrangedoras,masaindaassimconscientesdoquantoaindaestávamosbemsepensássemosnamaioriadapessoasquecumpriamseushoráriosbatendoseupontonosquadrosdeumaculturacolonialqueseguia(esegue)escravizandoeassassinandovidasesonhos.6Umadaspráticasquetenhodesenvolvidoemvárioscontextosélevarumcestocheiodediversostiposdeinstrumentosmusicaisconvidandoaspessoasatocarmosjuntes.Procuramosumamúsicacomumousimplesmentecomeçamosapesquisarossonsdosinstrumentosorientadosporumobjetivodeouvirmosatodososoutrosinstrumentosemseuconjunto,paraassimtocarmosJUNTOS,emharmonia.Saemsonoridadesincríveisquedãomuito
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Aeducaçãodenossasensibilidademusicaldeveriaserumdosobjetivosdaeducação.Osconhecimentosda ciência são importantes.Elesnosdãopoder.Maselesnãomudamojeitodeserdaspessoas.Amúsica,aocontrário,nãodápoderalgum.Maselaécapazdepenetrarnaalmaedecomoveromundointeriordasensibilidadeondemoraabondade.Afinal, esta não deveria ser a primeira tarefa da educação, produzir bondade? (ALVES,2012,p.40).
E falamos sobre nossos estudantes, companheiros passageiros de jornada e de vida, e
sobreseuspróprioscontextos,comunidades,sensibilidades,dificuldadesepotencialidades,sobre
quandootrabalhorealmenteacontece,elevandoatodos,ounão,porqueaArteétambémum
grandemistério,paraalémdetodoonossoesforçoedesejo.OTeatronacomunidade.OTeatro
de rua.Político.Questionador.Que faz sonhar...OTeatroparaa sala.O teatrona saladeaula:
maranhense, baiana, paulista,mineira, catarinense... Quantomulticulturalismo cabe na vida de
seis de nós, alguns participantes do COLIPETE 2018? Quantos contextos cabem num evento?
Quantoseventoscabememnós?
Importante falar de nós e de nossos nós, dividindo o teto durante alguns dias para se
pensarapedagogia-pedagogiasdoTeatro.Parasepensaroscontextosemquevivíamos,frisando
as mazelas da política educacional discutida em mesa especial no último dia do COLIPETE,
discutindo a reforma golpista da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), com participação
representativa de várias instâncias e esferas educacionais. Nós, tão pequenos diante de uma
estrutura que parece pulverizar nossos esforços. Nós daquela casa de colegas que se tornam
amigos,irmanadosnavidainvisível,equaseinvisíveis,nestecontexto,felizmentequaseinvisíveis
no meio de tantos e tantos outros participantes do COLIPETE que, quiçá, acredito, também
estavam vivendo suas próprias experiências de vivências e convivências. Suas próprias
experiências em contextos de multiculturalidade, para lembrar as lições de Hooks e Freire já
citados.
As performances, apresentações teatrais, intervenções e oficinas artísticas do COLIPETE
propiciarameincentivarammuitasdessaspráticasdeconvivência,comsentidoscompartilhadose
multiplicados em vivências e encontros que não se tem como abarcar quantitativa ou
prazerealegriaatodesenvolvides,especialmenteaquemnuncateveaoportunidadedepegaretocaruminstrumentocomsuasprópriasmãos.
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qualitativamente(tornamo-nosCardume!7).Encontrosemqueapedagogiateatralnãoseresume
ao debate teórico, nem meramente intelectual, mas se estende pelos poros através de uma
pedagogiaprática,sensível,dinâmica,engajadaecomprometidasocialmente,libertadora,lúdica,
brincanteeerótica,fazendomemórianoscorposenapeledecadaumdenós.NósdoNorte,Sul,
Sudeste,Centro-Oeste,Nordeste.Surdos-mudos,cegos,videntes!NósdoCanadá,nósdaAmérica
Latina,nósdomundo!
O colóquio foi um evento demuitas inscrições emuitas colaborações, a começar pelos
organizadoresesuascamisetasvermelhas,espalhadasportodososcantosparaondeseolhavana
UFMA(tome-seaUFMAagorapelosespaçosdoCentrodeCiênciasHumanaseseuentorno,por
onde circulamos, jáqueaí residiuaexperiência vividadaqual sepode falar).Umaequipebem
jovem e bem coordenada, comprometida em fazer acontecer a sequência interminável de
atividadespela cidadevelha, cidadenova, renovadaem temposdeSão João.CidadedeCôcoe
Cacuriá,sarapatelearrozdecuxá!CidadedeQuadrilhaseBois,brincadeirasematracas!Cidade
ondeconheço,nazonarural,MestraMariadoCôco! -na festadofamosoBoideMaracanã,do
falecidoMestre HumbertoMaracanã, então homenageado. Uma festa que começa no terreiro
sededoBoiedepoissegueitinerandoanoiteinteiraporoutrosrincõesquevamospercorrendo
em romaria alegre e festiva.DonaMariadoCôco,MestradeCôco, que aindaontemme ligou,
dizendo:“agenteprafazeralgumacoisanessavida,temquelutarmuitominhafilha!”.
AmesmaMariaquechorounaNoitedeSãoJoãoquandoeulhedissequeimaginavaque
grandeguerreiraeladeveriaserparaestaralicomoMestradeumatradição,quandooquesevê,
são Mestres (homens): “eu lutei muito, lutei muito mesmo!”. A voz embargou e as lágrimas
desceram. Ela mulher, ela preta, ela pobre, ela analfabeta! Ela mãe, ela líder comunitária, ela
mulher entre mulheres, preta de pretas. Ela que afogava suas dores em repetidos copos de
cerveja.MariadeMarias.ElaqueouviudabocadeMestreHumbertoaoverogrupodeTambor
deCrioulaMantodeSãoBeneditoabrindoterreirada:“DonaMaria,asenhoraéumaMestra!”(a
vozembargadenovo).ElaquedisseafrasequeoantigomestredeBoirepetiacomosefossesua,
tornandocélebreopensamento(queagoranãoconsigomaismelembrarqualera).Elaquenão
reivindicouaautoriada frase,deixando-o repetir (edepoisaopovoqueocitava) comosedele
7EmalusãoàperformanceinterativaCardume,realizadapeloscorredoresdaUFMAduranteoCOLIPETEapartirdapropostadaProfessoraDoutoraCandiceDidonetdaUniversidadeFederaldaParaíba(UFPB).
Daniela Rosante Gomes
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fosse.Ela,amigadoMestreHumbertoatéofim.Elaque,quandopassamodocumentáriodeleno
telão,virasuacadeiraedizquenãoquerver,porquesentesaudades:“eleerameuamigo”.
Encontrosedesencontroscomacidadeesuasgentes.Gentedetodolugar,dacidadeede
foradela,dedentroedeforadoencontro,dedentroedeforadoBrasil.Genteque-calcule-se-
multiplica ao invisível aquilo que números e cartesianismos acadêmicos jamais serão capazes
contabilizar.ComodisseMárciaPompeuToledo8algunsanosantes,aofinaldesuacomunicação
no II Encontro Internacional de Teatro na Comunidade9, em Florianópolis, falando sobre o
trabalhodesenvolvidoduranteanoscontinuadosdeextensão juntoàumacomunidade local:“o
quepudemosconstatar,alémdaquiloquejácomentamossobreosprocessosdesenvolvidos,eraa
alegriapresenteentreosparticipantes.Masalegrianãosemede.Comomediraalegria?”Ecomo
medirovalordeexperiênciasemumencontrodeeducadoresdeteatroeducandoasimesmos
emumColóquiointernacionaldePedagogiadoTeatro?Quantosequantas,nesteencontro,nunca
tinhamvistoumBoi?Quantaforçaealegriapodemsurgirapartirdocontatocomastradições?
Cheguei doente, dolorida, cansada. Saí alegre, repleta de energia, curada! São assim as
pessoasquevivemsuavidanaarteenaeducaçãocomsededearteedevida,apesardostantos
pesares:gentedecura!Genteque,nãotendotempoparanada,emvezdedividir,multiplica!E
penso,emanalogiadecontextos,naobradeBellHooksaocontarque“AobradeTichNhatHanh
semprecomparaoprofessoraummédicooucurador.Suaabordagem,comoadeFreire,pede
que os alunos sejam participantes ativos, liguem a consciência à prática” numa pedagogia que
“põeemevidênciaaintegridade,umauniãodemente,corpoeespírito”(2017,p.26).
Dizemqueacasadagenteéondeagenteestá.Euacredito!
MEMÓRIASENTRELAÇADASECONTEXTOSDEFORMAÇÃOEINFORMAÇÃODIVERSOS
Mãe,hojeeuaprendiumacoisa:queagenteaprendeolhando.
Eimaginando.Efazendo.
8ProfessoradoutoracujotrabalhopráticonascomunidadesesuasinteraçõescomocontextodauniversidadefezestabelecereconsolidarocampodoTeatroComunitárionoBrasil.9Campoqueestudaevalorizaaspráticasdeteatroquefizerampartedeminhaformação,iniciadaforadosmurosdauniversidadeedeoutrasinstituições(comoaindacomentarei).OTeatroComunitárioserelacionacommuitaintimidadecomocampodaPedagogiaTeatral,interseccionandoboapartedosestudosepesquisascompartilhadosemcontextoseducacionais.MuitosdestescontextosforamobjetodepôsteresecomunicaçõesoraisdoCOLIPETE,nasmesas:1)PedagogiadaCenaeFormaçãodoArtista;2)IdentidadeseGênerosnaPedagogiadoTeatro.
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MariaGomesdosSantos10
Minhas anfitriãs, nascidas e criadas maranhenses, atuantes na luta feminista negra,
professorasdeTeatroemescolaspúblicasdacidade,saíramcedoemedeixaramaschavespara
tirarcópia.ChamoumUber-xesigoparaocredenciamentoeconferênciadeabertura.Acidade
sãocidades.MalentronocarroeconfirmoaidaàUFMAparaomotoristaseguir,ecomeçaum
exercícioafetivodelembraracidadequehaviaconhecido17anosatrás,emjaneirode2001,no
VIEncontroNacionaldeEstudantesdeArte(ENEARTE).Acidadeémemória,emelembrologoda
primeiraoficinacircensequefiz,aos21anos,numginásiodaUFMA,comoprofessorRicardo,da
Escola Nacional de Circo do Rio de Janeiro: malabarismo, acrobacias de solo, aéreas e cuspir
fogo!!!Chegaumahoraqueagentejánãolembraondeaprendeualgumacoisaqueseacostumou
afazer,equetambémpassouaensinarprosoutros.Recordei!
OENEARTEhaviasidoummarcoimportante,emváriossentidos.Haviadeixadoumcurso
deDireito exatos dois anos antes do encontro.Mudei os planos da vida, desviandoo curso da
meninabranca(parda,comoassinalavaminhacornasenquetesestatísticasmaisantigas),classe
média(mãeepaiprimeirosdiplomadosdesuasfamílias),quenãoveiodeumafamíliadeartistas,
nemdeumafamíliarica,paraestudarArtes:ImagemeSomnumacidadedointeriordoSudeste
(SãoCarlos-SP).Porminhacontaerisco,umavezqueafamíliajáhaviaarcadocomsuaobrigação
noprimeirocurso,abandonadoaoquartoano.AviagemdoENEARTEfoibancadapelotrabalhono
Censo2000,eosuadodinheirodospanfletosqueentregueiparaumalojanocalçadãodocentro
dacidade,juntandotrocadosparapoderviajar.Nessaépocajátinhacomeçadoafazerteatronas
ruasdessacidadezinhademuitosmorros:teatropolítico,teatrodeassaltoeintervenções,teatro
na ONG dos ‘pés rachados’, nós que fazíamos também o plantio de mudas no entorno da
nascente,atintadeterra,oteatroambiental,oteatroemespaçosalternativosetambémoteatro
desala,noTeatroMunicipaldeSãoCarlos(emborapreferíssemosaarenadoladodeforadasala
oficial).
Comoo ENEARTE, o trabalho naONG foi ummarco, um importante lugar de formação.
ONGRamudá:Ramosquebrotamem temposdemudança,onde atuei de 2000 a 2006emum
coletivo que reuniu dos graduandos pé rapados e estudantes engajados aos operários e
10Mariaéminhafilha,equandodisseessafrasetinhaentão6anos,emumatardedesetembrode2018,enquantoeuescreviaesteartigoeelaobservavaospequenostecidosquebordoupelamanhãdepoisdeeuterlheensinadoopoucoqueaprendicomminhamãesobreessaArte.
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domésticasassalariados,alémdascrianças,queapareciamdeforaededentrodagente.Éramos
idealistas e práticos de carteirinha, artistas em construção, atuando em diversos contextos
culturaiseambientais,incluindoodeacompanharaimplantaçãodacoletaseletivanacidadede
SãoCarlos,cooperativandooscatadoresdolixão.DeONGtínhamosonome,asboasintençõese
umasériedeações,amaioriadelasfeitacomotrabalhovoluntário.Essaremuneração,seexistia,
ficavaparaasdespesasdasedeeparaosadultosjáformados,quejátinhamfilhosparaalimentar.
A manutenção era feita nos mutirões. E esclareço que no início dos anos 2000 ainda não era
possível trabalhar segundo os benefícios que posteriormente se abriram a partir da política
culturaliniciadaporGilbertoGilcomoministrodaCultura,nosanosde2002a200811,quefizeram
floresceraeradeeditaisculturaisqueagoraestamosvendodesaparecer.(Foigolpe!)
Trabalheicomocriadoradeumateliêdeimagens,comofotógrafa,roteiristaeeditorade
vídeos,criadoraerevisoradetextosdemultimídia.Ministreioficinaseparticipeideprojetosna
áreadememóriaenvolvendoteatro,literatura,fotografia.Fizapresentaçõesempraças,creches,
colégios, universidades, pátios, escadarias. Fiz pão com poesia! (me casei no delicioso formato
juntar as escovas de dente. Ele fazia o pão, eu a poesia). Ministrei oficinas em centros
comunitários,projetossociais,fundaçõesculturais,prefeitura,semsermestreemnenhumaArte.
Pelocontrário,aprendendodaArtequandotinhaaoportunidadedeensiná-la.Eassimconhecio
Teatro pobre! Teatro Essencial! Arte relacional! Fiz teatro de fábrica, teatro universitário,
brechtiano, comunitário, teatro de objetos. Teatro de bonecos, de formas animadas. Leituras
dramáticas,performances.Coloconosingularpelanaturezadaescritasolitáriadotextoautoral,
masimportantedizerquesetratavamsempredeexperiênciasessencialmentecoletivas,feitasa
váriasmãos,pernas,braçoseaváriossonhos!
Tudomuitosimples–eboapartedasnomenclaturaseconceitoscorrespondentessóvima
conheceranosdepois,algunsnoperíododomestrado,aísim,emcursonaáreateatral.Tudotão
simplesque sóvimadescobriro real valordessasexperiências como tempo.Experiênciasque
11Gilinstituiuumapolíticaculturalqueprocurourompercomasituaçãodoestadocomocooptadorculturalemeromecenaspatrocinadordeeventos(visãoutilitaristaeoportunistaqueenxergaaculturacomobemsecundário)parainstaurarumavisãomaisestrutural,quetratadaculturacomoumsistemacomplexoqueenvolvetodaumarealidadesocial.DizopróprioGil:“Nestemundoaindamarcadoporinjustiçasedesigualdades,estáprovadotambémqueaculturaqualificaasrelaçõessociaisereduzosfocosdetensãoeviolência,elevandoaautoestimaeosentidodepertencimentodoindivíduo.Elaligaaspessoas,estimulaastrocas,aproxima,identifica,induzàsuperação,fazpensar,enfim,valorizaoqueoserhumanotemdemaishumano,paraobemeparaomal.Fazcomqueagentesejamaiseváalém,experimentandonovosrumos”(GIL,2005,p.105).Umadefiniçãodeculturaque,paraalémdosfolclorismos,qualificasuadimensão,percebendo-a,talcomoé,comoaArtevivaenecessáriaaodesenvolvimentohumano.
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fazíamos semousodeconceitualizações teóricasemetodologiasacadêmicaspré-determinadas
que não as intuídas em campo de trabalho. Éramos essencialmente intuitivas e intuitivos nos
processos,ecadaumdelesnosmuniadeumconhecimentoquesilenciosamentefoicriandoem
nósumrepertóriosingular.Especialmentequandojáestavanosquadrosdedocenteuniversitária,
aomedepararcomcoleguesartistasdecarteirinhaeDRT,graduadosemTeatroeLicenciaturaem
Teatro em instituições consolidadas na área (USP, PUC, UNICAMP, UFOP, UFSC, UFRN, UFMG,
UFU,UFG,etc.),percebioquantoessesconhecimentoseramconsistentesefaziamdiferençaem
minhaformação.
SigodivagandoenquantoomotoristadoUber-xpassaaoladodoCentroHistóricoqueme
faz recordar outras imagens na cidade velha das minhas memórias: os prédios de azulejos
decorados onde passou o cortejo final do ENEARTE, acendendo protestos contra a farsa das
comemoraçõesdos500anosdoBrasil, denunciando:o genocídio indígena, aprecarização total
dosserviçosbásicosdeatendimentoàsaúdedapopulação,oentreguismodosrecursosnaturais
ao capital estrangeiro, os juros extorsivos da então dívida com o FMI (quitada em 2005) e a
implementaçãodemecanismosdeprivatizaçãodoensinopúblicosuperior,me fazendo lembrar
que,qualquersemelhançacomtemposrecentes,nãoémeracoincidência!(Golpe!!!)
ConversocomomotoristadoUber.EleéestudantedocursodeHistóriadaUFMAedirige
todoohorárioemquenãoestánocurso,numa jornadade14horaspordia (estudaquandoo
carroestáparadoesóvêafilhanodomingo,quandofolga).Elemefalasobreavidanacidadeea
festadoSãoJoão.Tentacalcularonúmerodehabitantesdacidade,que,comento,jánãoparece
maistãocoloridacomonosidosdoiníciodosanos2000.Elemecontaquenaquelaépocahouvea
restauração do centro histórico para as comemorações do ‘descobrimento’ (eu me lembro,
fizemosprotestosduranteoENEARTE).Equedepoisdissonuncamaishouvereforma,anãoser
unsretoquesemalgunsgovernosedatasfestivas.Mefalaumpoucodascomezinhasdapolíticae
da coronelança local, das oscilações do preço do combustível e da recente greve dos
caminhoneiros,ocorridaexatamenteummêsantes.Falamossobreopré-sal, fatiadoàpreçode
banana em nome de uma suposta crise (refinarias vendidas pelo valor do lucro auferido no
balançodoanoanteriordeformaarbitráriaecriminosa).Elepossuiumacriticidadelúcidaebem
informadasobreoassunto.
Daniela Rosante Gomes
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OUberentranaUFMA.Omotoristadizquepensaemdeixarocursonauniversidadepara
poderdirigirperíodointegral(mais?),porque,daformacomoascoisaspioraram,nãoestavamais
dandoparapagarasdívidas.Elenãosereferiaàscontas,porqueascontasnosistemadocapital
financeiro,sãoagoradívidasqueseacumulamnosistemajurossobrejuros,outroraconsiderado
ilegal. Digo a ele que tente segurar as pontas e finalizar o curso. Ele recebe a dica eme deixa
próximo ao Centro de Ciências Humanas onde vai acontecer a abertura do COLIPETE. Vou
caminhandoeaochegarnoprédioreconheçoaescadaria(antescinza,agoracolorida),osarcose
as formas da construção onde fiquei alojada no ENEARTE. Nãome lembrava do nome, mas o
prédioeraomesmo!
A universidade, como a cidade, é memória viva, e me dou conta do quanto também
pertençoaesselugarquetenhocriticadopeloseudistanciamentocomarealidadesocialdopaíse
comasprópriasdisputasem jogona cooptaçãodas instituições. Enquadrandomelhor a crítica:
pelo seu distanciamento do que está para fora das grades e muros institucionais, pelo
distanciamentomesmodoqueestáparaforadaparededasaladeaula,dosespaços,tempose
produtividades insólitas, onde cada pequeno feudo ocupa seu pequeno quadrado. Essa
universidadeonde,viaderegra,eadespeitodasconquistaspelosistemadecotas,quasenãose
vêapopulaçãonegra,senãocomoparcaminoria,assimcomoocorrecomapopulaçãoindígena,
cujarepresentatividadeéaindamenor–enemmencionoadificuldadedepermanência.Depois
dealgunsmesesnasuniversidadesdepelesdetonspasteldaregiãoSul,essencialmentebranca
de olhos claros (emuito respeito à todes instituições e gentes), a primeira diferença salta aos
olhos:ascores!Doscabelos,dasroupas,dasparedes,masprincipalmente,acordapele!AUFMA
éumauniversidadenegra!Percebocommuitaalegria:aUFMAépreta!E,commaisalegriaainda:
incrivelmenteLGBTT,AI+etals!Alegria,Pajubá!Dápraver!
Vejo uma universidade repleta de diversidades, construções físicas e desconstruções
simbólicasqueinterferemnosprédios,noclimadoscorredoresenaprópriacidade,comopude
vernostrabalhosdepesquisaeextensãoapresentadosnospôsteresecomunicaçõesdoCOLIPETE
pelosestudanteseprofessoreslocais,relatandoaçõeseducacionaiseartísticasengendradasnas
comunidades mais longínquas do aglomerado da Grande São Luís12. Cidade onde, apesar dos
tantosavanços,aindasemorreporseserpobre,porseserbicha(lésbicaeoquemaisfordeser),12Conurbaçãode13cidadesquecompõeaRegiãoMetropolitanadeSãoLuís,comcercadeummilhãoemeiodehabitantes.
VIVÊNCIAS E CONVIVÊNCIAS NO COLIPETE 2018, SÃO LUÍS DO MARANHÃO: Revisitando memórias para pensar pedagogias utópicas em tempos de distopias
IAÇÁ: Artes da Cena | Vol. III| n. 1 | ano 2020 ISSN 2595-2781
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porseserpreto,preta,mulher, indigente,criançamalnascida,ou,comoemoutrascidades, só
queemmenornúmero,porsesercriança, jovemouvelhobemnascidooubemnascida,vítima
dasditas(essassimclassificadasnosclassificados)violênciasdacidade.Cidadecomooutrastantas
nesseBrasilcolonial.Cidadedasditasedesditas.Cidadedecidades.Colôniadecolônias.UmBrasil
ameaçado, como em outros lugares do mundo, de retroceder (ainda mais!!!) em incríveis
conquistas históricas que me (e nos) permitiram chegar até aqui: podendo pensar, e dizer, e
escreveroqueestamosapensar,adizereaescrever.Masatéquando???
E sigo a refletir, no exercício do agir-contemplar, pressuposto deste estudo de sentidos
pre(s)sentidos,intuídos,vívidosevividos:Quehistória-históriasestamosconstruindo?Háespaço
para acolhimento de diversidades e divergências? Para ações que coloquem em prática ideias
inteligentes que deem conta de nossos anseios mais profundos? Que pedagogia-pedagogias
estamosengendrando?Quecontexto-contextosestamosfavorecendoemnossaspráticasdevida,
deArteedeeducação?Háespaçoparautopias?Paracultivarosonho?Paraseviverapoesia?
Para se fazer Amor com o mundo? Existem mesmo cidades invisíveis que podemos erigir em
pequenasaçõesarticuladas,apesardospesares,eàcontrapelodasatuaisversõesoficiais?Dessas
pequenas ações seria possível emergir grandes articulações capazes de alterar um fluxo
estrutural?
Entronoprédiovelho,nacidadevelha,nanovauniversidade!Ecomeçaoevento...
Referências:ALVES,Rubem.Educaçãodossentidosemais...8.ed.Campinas:VerusEditora,2018.GIL,Gilberto.UmanovapolíticaculturalparaoBrasil.ConferênciaproferidapeloMinistrodaCulturaem9demaiode2005,naUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro.RevistaRiodeJaneiro,n.15,jan.-abr.2005.p.103-110.Disponívelem:<http://www.forumrio.uerj.br/documentos/revista_15/15_dossie_GilbertoGil.pdf>.HOOKS,Bell.Ensinandoatransgredir:aeducaçãocomopráticadaliberdade.TraduçãodeMarceloBrandãoCipolla.2.ed.SãoPaulo:EditoraWMFMartinsFontes,2017.MENDES,Murilo.In:ALVES,Rubem.Educaçãodossentidosemais...8.ed.Campinas:VerusEditora,2018.Artigosubmetidoem15/09/2019,eaceitoem30/10/2019.
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