Imagem: Joshua Reynolds - Autorretrato - 1776
Voltaire Tratado de Metafsica
INTRODUO
Dvidas sobre o Homem
Poucas pessoas se preocupam em ter uma noo do que seja o homem. A
nica ideia que os camponeses de uma parte da Europa tm da nossa
espcie a de um animal de dois ps, de pele trigueira, articulando
algumas palavras, cultivando a terra, pagando, sem saber por que,
tributos a outro animal a que chama rei, vendendo suas colheitas to
caro quanto puder, reunindo-se com outros em certos dias do ano
para entoar preces numa lngua incompreensvel.
Um rei sempre encara toda a espcie humana como seres feitos para
obedecer-lhe e aos seus semelhantes. Uma jovem parisiense ao entrar
no mundo v apenas o que possa servir sua vaidade; a ideia confusa
que tem da felicidade e o estrondo de tudo que a rodeia impedem sua
alma de escutar a voz de todo o resto da natureza. Um jovem turco,
no silncio do serralho, olha os homens como seres superiores,
obrigados por certa lei a dormir todas as sextas-feiras com suas
escravas; e sua imaginao no vai muito alm disso. Um padre divide
todo o universo em eclesisticos e leigos e, sem dificuldade,
considera a parte eclesistica como a mais nobre e feita para
conduzir a outra etc. etc.
Estaramos profundamente enganados se acreditssemos que os filsofos
tm ideias mais completas sobre a natureza humana. Se excetuardes
Hobbes, Locke, Descartes, Bayle e um pequeno nmero de espritos
sbios, todos os outros tm uma opinio particular sobre o homem, to
limitada quanto a do vulgo e somente mais confusa. Perguntai ao
Padre Malebranche o que o homem. Ele vos responder que uma
substncia feita imagem de Deus, muito deturpada depois do pecado
original, e, no entanto, mais unida a Deus do que ao seu prprio
corpo, vendo tudo em Deus, pensando, sentindo tudo em Deus.
Pascal encara o mundo inteiro como uma coleo de malvados e de
infelizes, criados para serem condenados, entre os quais, porm,
algumas almas (isto , uma entre cinco ou seis milhes) foram
escolhidas por Deus desde toda a eternidade para serem
salvas.
Um diz: o homem uma alma unida a um corpo e, quando o corpo est
morto, a alma vive sozinha para sempre.
Outro assegura: o homem um corpo que pensa necessariamente. E nem
um nem outro provam o que afirmam. Na investigao do homem gostaria
de conduzir-me como fao no estudo da astronomia: meu pensamento se
transporta algumas vezes para fora do globo terrestre, acima do
qual todos os movimentos celestes parecem irregulares e confusos. E
aps ter observado o movimento dos planetas como se estivesse no
Sol, comparo os movimentos aparentes que vejo sobre a Terra com os
movimentos verdadeiros que veria se estivesse no Sol. Assim farei
tambm ao estudar o homem: colocar-me-ei primeiramente fora de sua
esfera, fora de compromissos, despojar-me-ei de todos os
preconceitos de educao, de ptria e, sobretudo, dos preconceitos de
filsofo.
Suponho, por exemplo, que, nascido com a faculdade de pensar e de
sentir que tenho presentemente, mas no tendo a forma humana, deso
ao globo vindo de Marte ou de Jpiter. Posso dar uma olhada rpida em
todos os sculos e pases, e, consequentemente, em todas as tolices
desse glbulo.
to fcil supor isso quanto imaginar-me no Sol para dali considerar
os dezessete planetas que giram regularmente no espao em torno
desse astro.
CAPTULO I
As Diferentes Espcies de Homem
Descendo sobre este montculo de lama e no tendo maiores noes a
respeito do homem, como este no tem a respeito dos habitantes de
Marte ou de Jpiter, desembarco s margens do oceano, no pas da
Cafraria, e comeo a procurar um homem. Vejo macacos, elefantes e
negros. Todos parecem ter algum lampejo de uma razo imperfeita. Uns
e outros possuem uma linguagem que no compreendo e todas as suas
aes parecem igualmente relacionar-se com certo fim. Se julgasse as
coisas pelo primeiro efeito que me causam, inclinar-me-ia a crer,
inicialmente, que de todos esses seres o elefante o animal
racional. Contudo, para nada decidir levianamente tomo filhotes
dessas vrias bestas. Examino um filhote de negro de seis meses, um
elefantezinho, um macaquinho, um leozinho, um cachorrinho. Vejo,
sem poder duvidar, que esses jovens animais possuem
incomparavelmente mais fora e destreza, mais ideias, mais paixes,
mais memria do que o negrinho e que exprimem muito mais
sensivelmente todos os seus desejos do que ele. Entretanto, ao cabo
de certo tempo, o negrinho possui tantas ideias quanto todos eles.
Chego mesmo a perceber que os animais negros possuem entre si uma
linguagem bem mais articulada e variada do que a dos outros
animais. Tive tempo de aprender tal linguagem e, enfim, de tanto
observar o pequeno grau de superioridade que a longo prazo
apresentam em relao aos macacos e aos elefantes, arrisco-me a
julgar que efetivamente ali est o homem. E forneo a mim mesmo esta
definio:
O homem um animal preto que possui l sobre a cabea, caminha sobre
duas patas, quase to destro quanto um smio, menos forte do que
outros animais de seu tamanho, provido de um pouco mais de ideias
do que eles e dotado de maior facilidade de expresso. Ademais, est
submetido igualmente s mesmas necessidades que os outros, nascendo,
vivendo e morrendo exatamente como eles.
Aps ter passado certo tempo entre essa espcie, desloco-me rumo s
regies martimas das ndias Orientais. Surpreendo-me com o que vejo:
os elefantes, os lees, os macacos e os papagaios no so exatamente
como eram na Cafraria; mas o homem, esse parece-me absolutamente
diferente. Agora so homens de um belo tom amarelo, no possuem l,
mas tm a cabea coberta de grandes crinas negras. Parecem ter sobre
as coisas ideias totalmente contrrias s dos negros. Sou, portanto,
forado a mudar minha definio e a classificar a natureza humana sob
duas espcies: a negra com l e a amarela com crina.
Mas, na Batvia, em Goa e em Surata, ponto de encontro de todas as
naes, vejo uma grande multido de europeus. So brancos, no possuem l
ou crina, mas cabelos louros bem soltos e barba no queixo.
Mostram-me tambm muitos americanos, que no possuem barba. Eis minha
definio e minhas espcies de homem bastante ampliadas.
Em Goa encontro uma espcie ainda mais singular do que todas essas.
Trata-se de um homem vestido com uma longa batina negra, dizendo-se
feito para instruir os outros. Todos esses homens que vedes, diz-me
ele, nasceram de um mesmo pai. E, ento, conta-me uma longa histria.
No entanto, o que diz esse animal soa-me bastante suspeito.
Informo-me se um negro e uma negra, de l negra e nariz chato,
engendram algumas vezes crianas brancas, de cabelos louros, nariz
aquilino e olhos azuis, se naes imberbes vieram de povos barbados e
se os brancos e as brancas engendraram povos amarelos. Respondem-me
que no, que os negros transplantados, por exemplo, para a Alemanha
continuam produzindo negros, a menos que os alemes se encarreguem
de mudar a espcie, e assim por diante. Acrescentam que um homem
instrudo nunca diria que as espcies no misturadas degeneram, a no
ser o Padre Dubos, que disse tal besteira num livro intitulado
Reflexes sobre a Pintura e sobre a Forma etc.
Quer me parecer que agora estou muito bem fundamentado para crer
que os homens so como as rvores: assim como as pereiras, os
ciprestes, os carvalhos e os abricoteiros no vm de uma mesma rvore,
assim tambm os brancos barbados, os negros de l, os amarelos com
crina e os homens imberbes no vm do mesmo homem (Todas essas
diferentes raas de homens produzem juntas indivduos capazes de se
perpetuar, o que no pode ser dito a respeito das rvores de
diferentes espcies. Mas teria havido um tempo em que s existissem
um ou dois indivduos de cada espcie? Isto ignoramos totalmente.
Nota do Autor)
CAPTULO II
Se Existe um Deus
Devemos examinar o que a faculdade de pensar nessas diferentes
espcies de homem, como lhes vm as ideias, se tm uma alma distinta
do corpo, se essa alma eterna, se livre, se tem virtudes e vcios
etc. Entretanto, a maioria dessas noes dependem da existncia ou da
no existncia de um Deus. preciso, creio, comear sondando o abismo
desse grande princpio. Despojemo-nos, agora mais do que nunca, de
toda paixo e de todo preconceito e vejamos de boa f o que nossa
razo pode ensinar-nos sobre a questo: Existe ou no existe um
Deus?
Noto, inicialmente, a existncia de povos sem nenhum conhecimento de
um Deus criador. Tais povos, na verdade, so brbaros e em pequeno
nmero, mas, enfim, so homens, e se o conhecimento de Deus fosse
necessrio natureza humana, os selvagens hotentotes teriam uma ideia
do Ser Supremo to sublime quanto a nossa. Mais ainda: no h criana
alguma, entre os povos policiados, que tenha em sua cabea a menor
ideia de um Deus. com dificuldade que lhe inculcamos tal ideia e,
frequentemente, pronuncia durante toda sua vida a palavra Deus sem
atribuir-lhe qualquer noo precisa. Vedes, alis, que as ideias de
Deus entre os homens diferem tanto quanto suas religies e suas
leis. A esse respeito no consigo impedir a seguinte reflexo:
possvel que o conhecimento de um Deus, nosso criador, nosso
conservador, nosso tudo, seja menos necessrio ao homem do que um
nariz e cinco dedos? Todos os homens nascem com um nariz e com
cinco dedos e nenhum com o conhecimento de Deus. Que seja ou no
deplorvel, tal , contudo, a condio humana.
Vejamos se com o tempo adquiriremos o conhecimento de um Deus assim
como chegamos s noes matemticas e a algumas ideias metafsicas. Numa
investigao to importante, o melhor que poderemos fazer ser
considerar os prs e os contras, para nos decidirmos por aquilo que
parecer mais conforme nossa razo.
Sumrio das Razes a Favor da Existncia de Deus
Existem duas maneiras de alcanar a noo de um ser que preside o
universo. A mais natural e mais perfeita para as capacidades comuns
a de considerar no somente a ordem que existe no universo, mas
tambm o fim com que cada coisa parece relacionar-se. Muitos e
grossos livros foram compostos centrados nessa nica ideia, e todos
os calhamaos juntos contm apenas este argumento: quando vejo um
relgio cujo ponteiro marca as horas, concluo que um ser inteligente
arranjou as molas dessa mquina para que o ponteiro marcasse as
horas (O universo desconcerta-me e no posso supor. Que esse relgio
exista e no haja relojoeiro. Versos 111-112 da stira intitulada As
Cabalas. Nota do Autor). Assim, quando vejo as molas do corpo
humano, concluo que um ser inteligente arranjou os rgos para serem
recebidos e nutridos por nove meses na matriz; que os olhos so
dados para ver, as mos para pegar etc. Porm, s posso concluir desse
nico argumento que provvel que um ser inteligente e superior tenha
preparado e modelado a matria com habilidade, mas no posso concluir
apenas disso que tal ser tenha feito a matria com nada e que seja
infinito em todos os sentidos. Cansei de procurar em meu esprito a
conexo das seguintes ideias: " provvel que eu seja a obra de um ser
mais potente do que eu", portanto, "esse ser existe desde toda
eternidade", portanto, "criou tudo", portanto, " infinito" etc. No
vejo a cadeia que conduza diretamente a essa concluso. Vejo apenas
que h alguma coisa mais potente do que eu, e nada mais.
O segundo argumento mais metafsico, menos apto para a compreenso
dos espritos rudes e conduz a conhecimentos bem mais vastos. Eis
seu resumo:
Existo, portanto alguma coisa existe. Se algo existe, existiu desde
toda a eternidade, pois aquilo que , ou por si mesmo ou recebeu seu
ser de outro. Se por si mesmo, necessariamente, sempre foi
necessariamente e Deus. Se recebeu seu ser de outro, e este segundo
de um terceiro, aquele de quem este ltimo recebeu seu ser deve ser
necessariamente Deus, pois no podeis conceber um ser que d o ser a
um outro se no tiver o poder de criar. Alm disso, se disserdes que
uma coisa recebe, no digo a forma, mas sua existncia de outra
coisa, e esta de uma terceira, e esta terceira ainda de outra e,
assim, regredindo ao infinito, direis um absurdo, porque nesse caso
tais seres no tero causa alguma de existncia. Tomados todos juntos
no tero nenhuma causa externa de existncia; tomados cada um em
particular, no tero nenhuma causa interna. Ou seja: tomados todos
juntos no devem sua existncia a nada; tomados em particular, nenhum
existe por si mesmo, portanto, nenhum existe necessariamente.
Dessa maneira, sinto-me reduzido a confessar que h um ser que
existe necessariamente por si mesmo desde toda a eternidade, sendo
a origem de todos os outros seres. Disso decorre essencialmente que
esse ser infinito em durao, em imensidade, em potncia, pois o que
poderia limit-lo? Mas, dir-me-eis, o mundo material precisamente
esse ser que procuramos. Examinemos de boa f se tal coisa
provvel.
Se o mundo material existir por si mesmo com uma necessidade
absoluta, ser uma contradio nos termos supor que a menor parte
desse universo possa ser diferente do que nesse momento com uma
necessidade absoluta, excluindo esta nica palavra todo outro modo
de ser. Ora, esta mesa sobre a qual escrevo, esta pena de que me
sirvo, no foram certamente sempre o que so; estes pensamentos que
trao sobre o papel no existiam nem mesmo h um momento, portanto, no
existem necessariamente. Ora, se cada parte no existir com uma
necessidade absoluta, ser impossvel que o todo exista por si mesmo.
Produzo movimento, portanto, o movimento no existia necessariamente
antes, portanto, o movimento no essencial matria, portanto, esta o
recebe de fora, portanto, h um Deus que lho d. Assim tambm, a
inteligncia no essencial matria, pois um rochedo e uma espiga no
pensam. De quem, ento, as partes da matria que pensam e que sentem
tero recebido a sensao e o pensamento? No pode ser delas prprias
porque sentem apesar delas mesmas. No pode ser da matria em geral,
visto que o pensamento e a sensao no pertencem essncia da matria.
Receberam, portanto, esses dons da mo de um ser supremo,
inteligente, infinito e causa originria de todos os seres.
Eis, em poucas palavras, as provas da existncia de um Deus e o
resumo de vrios volumes, volumes que cada um poder esticar como lhe
aprouver.
Eis agora, com a mesma brevidade, as objees que se podem fazer a
esse sistema.
Dificuldades sobre a Existncia de Deus
1 Se Deus no o mundo material, ele o criou (ou ento, se quiserdes,
deu a outro ser o poder de cri-lo, o que vem a dar no mesmo); mas
fazendo esse mundo, ou tirou-o do nada ou tirou-o de seu prprio ser
divino. No pode t-lo tirado do nada porque este no ; no pode t-lo
tirado de si prprio porque, ento, esse mundo faria essencialmente
parte da essncia divina e, assim sendo, eu no poderia ter uma ideia
da criao, donde se segue que no posso admitir a criao.
2 Deus teria feito esse mundo ou necessariamente ou livremente. Se
o fez por necessidade, deve t-lo feito desde sempre, pois tal
necessidade eterna. Neste caso, portanto, o mundo seria eterno e
criado, o que implica uma contradio. Se Deus o fez livremente, por
pura escolha, sem alguma razo antecedente, ainda uma contradio,
pois contraditrio supor o Autor infinitamente Sbio fazendo tudo sem
uma razo que o determina e supor o Ser infinitamente Potente
passando toda a eternidade sem fazer o menor uso de sua
potncia.
3 Se para a maioria dos homens parece que um ser inteligente
imprimiu o selo da sabedoria sobre toda a natureza e que cada coisa
parece estar feita para certo fim, ainda mais verdadeiro, aos olhos
dos filsofos, que tudo se faz na natureza segundo as leis da
matemtica, eternas, independentes e imutveis, e a construo e a
durao do corpo humano, segundo o equilbrio dos licores e da fora
das alavancas. Quanto mais descobrimos sobre a estrutura do
universo, tanto mais o encontramos organizado segundo leis
imutveis, desde as estrelas at o verme do queijo. , portanto,
permitido acreditar que tais leis, tendo operado por sua prpria
natureza, delas resultem efeitos necessrios, tomados, porm, como
determinaes arbitrrias de um poder inteligente. Por exemplo, um
campo produz erva porque tal a natureza de seu terreno, regado
pelas chuvas, e no porque existam cavalos que precisam de feno e de
aveia. E assim com todo o resto.
4 Se o arranjo das partes do mundo e tudo o que se passa entre os
seres que tm vida sensvel e pensante provasse um Criador e um
Senhor, provaria ainda mais um ser brbaro, pois, se admitirmos
causas finais, seremos obrigados a dizer que Deus, infinitamente
sbio e infinitamente bom, deu vida a todas as criaturas para que
entre si se devorassem. Com efeito, se considerarmos todos os
animais, veremos que cada espcie tem um instinto irresistvel
forando-a a destruir outra espcie. Diante das misrias do homem, h o
suficiente para dirigirmos censuras Divindade durante toda nossa
vida. Podem dizer-nos vontade que a sabedoria e a bondade de Deus
no so feitas como as nossas. Tal argumento no ter fora alguma sobre
o esprito de muitas pessoas, que respondero dizendo: s podemos
julgar a justia a partir de sua ideia e esta, supe-se, foi-nos dada
por Deus. S se pode medir com a medida que se tem, e assim sendo,
to impossvel no crermos brbaro um ser que s conduza como um homem
brbaro, quanto impossvel no pensarmos que um ser qualquer tenha
seis ps quando o medimos com uma toesa e parea ter esse
tamanho.
E acrescentaro: se nos replicarem que nossa medida defeituosa,
estaro dizendo algo que implica uma contradio, pois ser o prprio
Deus quem nos ter dado essa ideia falsa, e, portanto, nos ter feito
apenas para nos enganar. Ora, isso equivale a dizer que um ser que
s possui perfeies lana suas criaturas no erro, que , propriamente
falando, a nica imperfeio. contradizer-se visivelmente. Enfim, os
materialistas acabaro dizendo: engoliremos menos absurdos no
sistema do atesmo do que no do desmo, pois, de um lado, preciso na
verdade que concebamos o mundo que vemos como eterno e infinito,
mas, de outro lado, preciso que imaginemos outro ser infinito e
eterno ao qual acrescentaremos a criao, cuja ideia, no entanto, no
podemos conceber. Portanto, concluiro: mais fcil no crer em Deus do
que crer nele.
Resposta a essas Objees
Os argumentos contra a criao se reduzem em mostrar que nos
impossvel conceb-la, isto , no que ela seja impossvel em si, mas
que nos impossvel conceber seu modo. Com efeito, para que a criao
fosse impossvel seria preciso provar primeiro que impossvel que
haja um Deus. Ora, longe de provar tal impossibilidade somos
obrigados a reconhecer a impossibilidade de sua no existncia. O
argumento - preciso que haja fora de ns um ser infinito, eterno,
imenso, todo-poderoso, livre, inteligente - faz com que as trevas
que acompanham essa luz sirvam apenas para mostrar que ela existe,
pois aquilo que nos demonstra a existncia de um ser infinito vem
tambm demonstrar-nos que para um ser finito deve ser impossvel
compreend-lo.
Parece-me que s se pode sofismar e dizer absurdos quando se procura
esforar-se para negar a necessidade de um ser existente por si
mesmo ou quando se quer sustentar que a matria esse ser. Mas a
coisa muito diferente quando se trata de estabelecer e de discutir
os atributos desse ser cuja existncia est demonstrada.
Os mestres na arte de raciocinar, os Locke, os Clarke, nos dizem:
"Tal ser um ser inteligente, pois aquele que produziu tudo deve ter
todas as perfeies que colocou naquilo que produziu, se no o efeito
seria mais perfeito do que a causa ou, ainda de uma outra maneira,
haveria no efeito uma perfeio que no teria sido produzida por nada,
o que visivelmente absurdo. Portanto, j que existem seres
inteligentes e que a matria no pode dar a si mesma a faculdade de
pensar, preciso que o ser existente por si mesmo, Deus, seja um ser
inteligente". No entanto, poderamos retorquir a esse argumento
dizendo: preciso que Deus seja matria, visto que existem seres
materiais, pois sem isso, a matria no teria sido produzida por
nada, e uma causa teria produzido um efeito cujo princpio no estava
nela. Acredita-se contornar tal argumento encaixando-se nele a
palavra perfeio. O Sr. Clarke parece t-lo previsto, porm no ousou
coloc-lo s claras, fazendo unicamente a seguinte objeo: "Dir-se-
que Deus comunicou a divisibilidade e a figura matria, embora no
seja figurado nem divisvel". E d uma resposta muito slida e muito
fcil objeo: a divisibilidade e a figura so qualidades negativas e
limitaes, e embora uma causa no possa comunicar ao seu efeito
qualquer perfeio que ela no possua, o efeito entretanto pode e deve
necessariamente ter limitaes e imperfeies que a causa no tenha.
Mas, que teria respondido o Sr. Clarke quele que lhe tivesse dito:
"A matria no um ser negativo, uma limitao, uma imperfeio. um ser
real, positivo e que. tem seus atributos exatamente como o esprito.
Ora, como Deus ter podido produzir um ser material se no material?"
preciso ento ou que admitais que a causa pode comunicar algo
positivo que ela no possui ou que a matria no possui a causa de sua
existncia ou, enfim, que sustenteis que a matria uma pura negao e
uma limitao. Se essas trs vias forem absurdas, ser preciso que
admitais que a existncia dos seres inteligentes no prova que o ser
existente por si mesmo seja um ser inteligente, assim como a
existncia dos seres materiais no prova que o ser existente por si
mesmo seja matria, pois ambos os casos so absolutamente
semelhantes. O mesmo ser dito do movimento. A respeito da palavra
perfeio, aqui abusa-se visivelmente dela, pois quem ousar dizer que
matria uma imperfeio e o pensamento uma perfeio? No creio que algum
ouse decidir assim sobre a essncia das coisas. E depois, o que quer
dizer perfeio? Seria perfeio em relao a Deus ou em relao a
ns?
Sei que se pode dizer que esta opinio reconduziria ao spinozismo. A
isto responderei que nada posso fazer e que meu raciocnio, se for
bom, no pode tornar-se mau pelas consequncias que dele se possam
tirar. Alm disso, nada seria mais falso do que essa consequncia,
pois provaria somente que nossa inteligncia no se assemelha
inteligncia de Deus, assim como nosso modo de ser extenso no se
assemelha maneira como Deus preenche o espao. Deus no est na situao
das causas que conhecemos; pde criar o esprito e a matria sem ser
matria ou esprito. Nem um nem outro derivam dele, mas so criados
por ele. verdade que no conheo o quomodo; (o como); prefiro
deter-me a perder-me. Sua existncia me demonstrada, mas acredito
que me demonstrado tambm que no sou feito para compreender seus
atributos e sua essncia.
Dizer que Deus no pode fazer o mundo nem necessariamente nem
livremente apenas um sofisma que cai por si mesmo, desde que se
tenha provado que h um Deus e que o mundo no Deus. A objeo reduz-se
unicamente a isto: No posso compreender que Deus tenha criado o
universo num tempo mais do que noutro, portanto, no pde cri-lo.
como se se dissesse: No posso compreender por que tal homem ou tal
cavalo no existiu milhares de anos antes, portanto, sua existncia
impossvel: Alm disso, a vontade livre de Deus uma razo suficiente
do tempo em que criou o mundo. Se Deus existir, ser livre, e no o
seria se estivesse sempre determinado por uma razo suficiente e se
sua vontade no lhe servisse. Ademais essa razo suficiente estaria
nele ou fora dele? Se estiver fora dele, no se determina
livremente; se estiver nele, ser justamente sua vontade.
Embora seja verdade que as leis matemticas so imutveis no seria
necessrio que tais leis fossem preferidas a outras. No seria
necessrio que a Terra fosse colocada onde est. Nenhuma lei
matemtica pode agir por si mesma. Nenhuma age sem movimento, o
movimento no existe por si mesmo, portanto, preciso recorrer a um
primeiro motor. Admito que os planetas, situados a tal distncia do
Sol, devem percorrer suas rbitas segundo leis que observam, e que
at mesmo a sua distncia pode ser regulada pela quantidade de matria
que concentram. Mas, poder-se- dizer que seria necessrio que
houvesse tal quantidade de matria em cada planeta, que houvesse um
determinado nmero de estrelas, que esse nmero no possa ser
aumentado nem diminudo, que sobre a Terra haja um determinado nmero
de seres por uma necessidade absoluta e inerente natureza das
coisas?No, sem dvida, uma vez que esse nmero muda todos os dias;
portanto, toda a natureza, desde a estrela mais longnqua at um
pedacinho de erva, deve estar submetida a um primeiro motor.
Quanto ao que se objeta, que um prado no feito essencialmente para
os cavalos, etc., no se pode concluir da que no haja causa final,
mas unicamente que no conhecemos todas as causas finais. Da
preciso, sobretudo, raciocinar com boa f e de forma alguma procurar
enganar-se a si mesmo. Quando se v uma coisa que tem sempre o mesmo
efeito, que tem unicamente esse efeito, que composta de uma
infinidade de rgos nos quais h uma infinidade de movimentos todos
concorrendo para a mesma produo, parece-me que no se pode, sem uma
repugnncia secreta, negar uma causa final. O germe de todos os
vegetais e de todos os animais est nesse caso. No seria preciso ser
um pouco ousado para afirmar que tudo isso no se relaciona a algum
fim?
Concordo que no existe demonstrao propriamente dita que prove que o
estmago seja feito para digerir, como no existe demonstrao de que
dia, mas os materialistas esto bem longe de poder demonstrar tambm
que o estmago no feito para digerir. Que se julgue somente qual a
opinio mais provvel, com a mesma equidade com que se julgam as
coisas em seu curso ordinrio!
Com respeito s crticas de injustia e de crueldade endereadas a
Deus, respondo primeiramente que, supondo-se que haja um mal moral
(o que me parece uma quimera), parece-me to impossvel explic-lo
pelo sistema da matria como por aquele de Deus. Respondo, em
seguida, que os nicos ideais de justia que temos so aqueles tomados
de toda ao til sociedade e conformes s leis estabelecidas por ns
para o bem comum. Ora, a ideia de justia, sendo somente uma ideia
da relao homem a homem, no pode ter analogia alguma com Deus. to
absurdo, nesse sentido, dizer que Deus justo ou injusto quanto
dizer que azul ou quadrado.
, portanto, insensato censurar a Deus porque as moscas so comidas
pelas aranhas e porque os homens s vivem oitenta anos, (porque)
abusam de sua liberdade para se destrurem uns aos outros, (porque)
tm doenas, paixes cruis, etc., pois no temos, certamente, nenhuma
ideia de que os homens e as moscas devessem ser eternos. Para nos
assegurarmos bem de que uma coisa um mal, seria preciso ao mesmo
tempo vermos se poderamos faz-la melhor. Certamente s podemos
julgar uma mquina imperfeita pela ideia da perfeio que lhe falta.
No podemos, por exemplo, julgar que os trs lados de um tringulo
sejam desiguais se no tivermos a ideia de um tringulo equiltero. No
podemos dizer que um relgio mau se no tivermos uma ideia distinta
de um determinado nmero de espaos iguais que o ponteiro desse
relgio deve percorrer igualmente. Mas, quem ter uma ideia em que se
mostre a sabedoria divina derrogada neste mundo?
A opinio de que h um Deus enfrenta dificuldades, mas a opinio
contrria profere absurdos. o que precisamos examinar, fazendo um
pequeno resumo daquilo que o materialista obrigado a crer.
Consequncias Necessrias da Opinio dos Materialistas
preciso que digam que o mundo existe necessariamente e por si
mesmo, de maneira que haveria contradio nos termos se dissessem que
uma parte da matria poderia no existir ou poderia existir
diferentemente do que . preciso que digam que o mundo material tem
em si essencialmente o pensamento e o sentimento, pois no pode
adquiri-los, porque nesse caso viriam do nada. Ora, no pode
receb-lo de alhures porque est suposto que tudo o que . preciso,
portanto, que o pensamento e o sentimento lhe sejam inerentes, como
a extenso, a divisibilidade, a capacidade de movimento so inerentes
matria. E, assim, preciso confessar que h somente um pequeno nmero
de partes que tm esse sentimento e esse pensamento essenciais ao
total do mundo; que esses sentimentos e esses pensamentos, embora
inerentes matria, entretanto, perecem a cada instante; ou ento ser
preciso adiantar que h uma alma do mundo que se propaga nos corpos
organizados. E, ento, ser preciso que esta alma seja diferente do
mundo. Assim, de qualquer lado que nos viremos, s encontraremos
quimeras que se destroem.
Os materialistas devem ainda sustentar que o movimento essencial
matria. So por isso reduzidos a dizer que o movimento nunca pde nem
nunca poder aumentar ou diminuir. Sero forados a adiantar que cem
mil homens marchando juntos e cem tiros de canho que disparam no
produzem nenhum movimento novo na natureza. Ser preciso ainda que
assegurem que no h liberdade alguma, e assim, que destruam todos os
laos da sociedade, crendo numa fatalidade to difcil de compreender
como a liberdade, mas desmentida por eles prprios na prtica. Que um
leitor equnime; tendo maduramente pesado o pr e o contra da
existncia de um Deus criador, veja agora de que lado est a
verossimilhana!
Depois de nos arrastarmos assim, de dvida em dvida, e de concluso
em concluso, at poder encarar a proposio Existe um Deus como a
coisa mais verossmil que os homens possam pensar, e aps ter visto
que a proposio contrria uma das mais absurdas, parece natural
pesquisar qual a relao existente entre Deus e ns; ver se Deus
estabeleceu leis para os seres pensantes, assim como existem leis
mecnicas para os seres materiais; examinar se existe uma moral e o
que pode ser; se h uma religio estabelecida pelo prprio Deus. Estas
questes so, sem dvida, de tal importncia que diante delas tudo cede
o passo, e as pesquisas com que divertimos nossa vida tornam-se bem
frvolas se comparadas a elas. No entanto, essas perguntas s estaro
no devido lugar quando considerarmos q homem como um animal
socivel.
Examinemos, primeiramente, como lhe vm as ideias e como pensa,
antes de vermos que uso faz ou deve fazer dos seus
pensamentos.
CAPTULO III
Que Todas as Ideias Vm pelos Sentidos
Quem quer que submeta tudo o que se passou em seu entendimento a
uma avaliao fiel admitir sem dificuldade que seus sentidos lhe
forneceram todas as ideias. E, no entanto, os filsofos que abusaram
de sua razo pretenderam afirmar que tnhamos ideias inatas. E o
asseguraram usando apenas o mesmo fundamento que lhes servira para
dizer que Deus, tomando cubos de matria e esfregando-os uns contra
os outros, formara o mundo visvel. Formaram sistemas com os quais
se vangloriavam de poder arriscar qualquer explicao aparente dos
fenmenos da natureza. Essa maneira de filosofar ainda mais perigosa
do que o jargo desprezvel da Escola. Pois esse jargo, sendo
absolutamente vazio de sentido, basta um pouco de ateno para que um
esprito reto, num nico lance, aperceba-se do seu ridculo e procure
alhures a verdade. Mas, uma hiptese engenhosa e ousada que tenha de
incio algum iam pejo de verossimilhana estimula o orgulho humano a
cr-la; o esprito se congratula por tais princpios sutis e serve-se
de toda sua sagacidade para defend-los. claro que nunca se deve
levantar hipteses; nunca dizer: Comecemos por inventar princpios
com os quais trataremos de explicar tudo. Mas, preciso dizer:
Faamos a anlise exata das coisas e em seguida trataremos de ver,
com muita desconfiana se se relacionam com alguns princpios. Os que
fizeram o romance das ideias inatas se vangloriaram de dar explicao
das ideias do infinito, da imensido de Deus e de algumas noes
metafsicas que supunham ser comuns a todos os homens. Entretanto,
se antes de se empenhar nesse sistema tivessem querido refletir
sobre o fato de que muitos homens no tm durante toda sua vida a
menor tintura dessas noes; que nenhuma criana as tem sem que se
lhes d; e que, enfim, quando as adquirimos, temos apenas percepes
muito imperfeitas, ideias puramente negativas, tais reflexes os
levariam a envergonharem-se de suas opinies. Se h alguma coisa
demonstrada fora da matemtica que no h ideias inatas no homem. Se
houvesse, todos os homens ao nascer teriam a ideia de Deus e teriam
todos a mesma ideia; teriam todos as mesmas noes metafsicas.
Acrescentais a isso o absurdo ridculo em que nos lanamos quando
sustentamos que Deus nos deu, quando ainda no ventre materno, noes
que precisam ser-nos totalmente ensinadas em nossa juventude.
, portanto, indubitvel que nossas primeiras ideias sejam nossas
sensaes. Pouco a pouco recebemos ideias compostas daquilo que
atinge nossos rgos; nossa memria retm: estas percepes; ns as
classificamos em seguida sob ideias gerais, e todos os vastos
conhecimentos do homem resultam dessa nica faculdade de compor e
arranjar as ideias.
Os que objetam que as noes do infinito em durao, em extenso, em
nmero, no podem vir dos nossos sentidos, s tm que se voltar sobre
si mesmos por um instante. Primeiramente, vero que no tm nenhuma
ideia completa, e nem sequer positiva do infinito, mas que foi
somente acrescentando as coisas materiais umas s outras que
chegaram a compreender que nunca vero o fim de sua conta, e
chamaram infinito essa impotncia, que antes uma confisso da
ignorncia humana do que uma ideia acima de nossos sentidos. Se se
objetar que h infinito real em geometria, respondo: no. Prova-se
somente que a matria ser sempre divisvel; prova-se que todos os
crculos possveis passaro entre duas linhas; prova-se que uma
infinidade de superfcies no possui nada de comum com uma infinidade
de cubos, mas isto nos d tanta ideia do infinito quanto a proposio
Existe um Deus nos d uma ideia do que Deus.
Mas no suficiente estarmos convencidos de que todas as nossas
ideias nos vm pelos sentidos. Nossa curiosidade leva-nos tambm a
querer conhecer como elas nos vm, e, assim, todos os filsofos
escreveram belos romances, o que lhes teria sido poupado se
tivessem examinado com boa f os limites da natureza humana. Quando
no temos o apoio do compasso da matemtica nem do archote da
experincia e da fsica, certo que no podemos dar um s passo. At que
tenhamos os olhos bastante agudos para distinguir as partes
constituintes do ouro das partes constituintes de um gro de
mostarda, certo que no poderemos raciocinar sobre suas essncias. E,
at que o homem seja de outra natureza, e que tenha rgos para
perceber sua prpria substncia e a essncia de suas ideias, como tem
rgos para sentir, indubitvel que lhe ser impossvel conhec-las.
Perguntar como pensamos e como sentimos, como nossos movimentos
obedecem nossa vontade, perguntar sobre segredo do Criador. Nossos
sentidos no nos fornecem vias para chegar a esse conhecimento, como
no nos fornecem asas quando desejamos ter a faculdade de voar. Em
minha opinio, isso prova suficientemente que todas as nossas ideias
nos vm pelos sentidos, j que, quando nossos sentidos nos faltam, as
ideias nos faltam igualmente. Tambm impossvel saber como pensamos
e, pela mesma razo, impossvel ter a ideia de um sexto sentido, pois
faltam-nos rgos que nos ensinem tais ideias. Eis por que aqueles
que tiveram a ousadia de imaginar um sistema sobre a natureza da
alma e de nossas concepes foram obrigados a supor a opinio absurda
das ideias inatas, vangloriando-se de que, entre pretensas ideias
metafsicas vindas do cu ao nosso esprito, encontrar-se-iam algumas
que descobririam esse segredo impenetrvel.
De todos os raciocinadores ousados que se perderam na profundeza
dessas investigaes, o Padre Malebranche o que pareceu extraviar-se
de modo mais sublime.
Eis a que se reduz seu sistema, que provocou tanto
estardalhao.
Nossas percepes, que nos vm por ocasio dos objetos, no podem ser
causadas por esses prprios objetos, e certamente no tm neles mesmos
a potncia de produzir um sentimento; no vm de ns mesmos, pois a
esse respeito somos to impotentes quanto os objetos; preciso, pois,
que seja Deus que no-las d. Ora, Deus vnculo dos espritos, e os
espritos subsistem nele; por- tanto, nele que temos nossas ideias e
que vemos todas as coisas.
Ora, pergunto a todo homem que no tenha a cabea repleta de
entusiasmo: que noo clara nos d este ltimo raciocnio?
O que quer dizer Deus o vnculo dos espritos? E mesmo que as
palavras sentir e ver tudo em Deus formassem em ns uma ideia
distinta, o que ganharamos com isso e em que seramos mais sbios do
que antes?
Certamente, para reduzir o sistema do Padre Malebranche a algo
inteligvel, somos obrigados a recorrer ao spinozismo, imaginando
que o total do universo Deus, que este Deus age em todos os seres,
sente nos animais, pensa nos homens, vegeta nas rvores, pensamento
e pedregulho, tem todas as partes de si mesmo destrudas a todo
momento, e enfim todos os absurdos que decorrem necessariamente de
tal princpio.
Os extravios de todos aqueles que quiseram aprofundar o que
impenetrvel para ns devem ensinar-nos a no querer ultrapassar os
limites de nossa natureza. A verdadeira filosofia saber interromper
onde preciso e jamais caminhar sem um guia seguro.
Resta bastante terreno a percorrer sem viajar nos espaos
imaginrios. Contentemo-nos, portanto, em saber pela experincia
apoiada no raciocnio, nica fonte de nossos conhecimentos, que
nossos sentidos so as portas por onde todas as ideias entram em
nosso entendimento, e relembremos bem que nos absolutamente
impossvel conhecer o segredo dessa mecnica, porque no possumos
instrumentos proporcionais s suas molas.
CAPTULO IV
Que H Efetivamente Objetos Exteriores
No passaria por nossa cabea tratar desta questo se os filsofos no
tivessem procurado duvidar das coisas mais claras, como se
vangloriaram de conhecer as mais duvidosas.
Nossos sentidos nos fazem ter ideias, dizem eles, mas talvez nosso
entendimento receba essas percepes sem que haja algum objeto no
exterior. Sabemos que durante o sono vemos e sentimos coisas que no
existem; talvez nossa vida seja um sonho contnuo e a morte ser o
momento de nosso despertar, ou o fim de um sono que no ser sucedido
por nenhum despertar.
Nossos sentimentos nos enganam mesmo na viglia; a menor alterao em
nossos rgos nos faz ver, algumas vezes, objetos e escutar sons cuja
causa est unicamente no desarranjo do nosso corpo; portanto, bem
possvel que nos acontea sempre o que nos acontece algumas
vezes.
Acrescentam que quando vemos um objeto, percebemos uma cor, uma
figura, escutamos sons, e que nos agradou denominar tudo isto de:
os modos deste objeto; mas, qual a substncia desse objeto? a, com
efeito, que o objeto escapa nossa imaginao. O que to ousadamente
denominamos a substncia somente a reunio desses modos. Despojai
esta rvore desta cor, desta configurao que nos dava a ideia de uma
rvore, que lhe restar? Ora, o que chamei modos so somente as minhas
percepes. Posso muito bem dizer: tenho ideia da cor verde e de um
corpo configurado assim, assim, mas no tenho prova alguma de que
este corpo e esta cor existam: eis o que diz Sexto Emprico, sem
poder encontrar uma resposta.
Concedamos a esses senhores, ainda por um momento, mais do que
pedem. Pretendem que no podemos provar-lhes a existncia dos corpos.
Permitamos-lhes que eles prprios provem que no h corpos. Que
decorrer disso? Conduziremo-nos diferentemente em nossa vida?
Teremos ideias diferentes sobre nada? Bastar mudar somente uma
palavra em seus discursos. Assim, por exemplo, se tiver ocorrido
alguma batalha, ser preciso dizer que dez mil homens pareceram ter
sido mortos, que tal oficial parece ter quebrado a perna e que um
cirurgio parecer cort-la. Assim tambm, quando tivermos fome,
pediremos a aparncia de um pedao de po para fingirmos
digerir.
Mas, eis o que poderemos responder mais seriamente:
1 A rigor no podeis comparar a vida ao estado dos sonhos, porque
dormindo sonhais apenas com as coisas cuja ideia tivestes quando
despertos. Estais seguros de que vossos sonhos so apenas uma fraca
reminiscncia. Ao contrrio, durante a viglia, quando temos uma
sensao, nunca podemos concluir que seja por lembrana. Se, por
exemplo, uma pedra caindo quebrar-nos o ombro, parecer bastante
difcil que isto se d por um esforo de memria.
2 verdade que nossos sentidos frequentemente se enganam, mas que
entendemos por isso? S temos um sentido propriamente dito, o do
tato. A viso, o som, o olfato so o tato dos corpos intermedirios
que partem de um corpo distante. S tenho ideia das estrelas pelo
contato. Como o contato da luz, que atinge meu olho a mil milhes de
lguas, no palpvel como o contato de minhas mos, e depende do meio
que aqueles corpos atravessaram, tal contato chamado,
impropriamente, enganador, pois no me deixa ver os objetos nos seus
verdadeiros lugares, no me d a ideia da sua grandeza. Nenhum desses
contatos no palpveis fornece-me ideia positiva dos corpos. A
primeira vez que sinto um odor sem ver o objeto de onde vem, meu
esprito no encontra relao alguma entre um corpo e esse odor, mas o
contato propriamente dito; a aproximao do meu corpo de outro,
independentemente dos meus outros sentidos, me d a ideia da matria,
pois quando toco uma rocha sinto perfeitamente que no posso
colocar-me em seu lugar, e que, por conseguinte, h qualquer coisa
extensa e impenetrvel, Assim, supondo (pois o que no supomos?) que
um homem tivesse todos os sentidos fora o do tato propriamente
dito, tal homem poderia muito bem duvidar da existncia dos objetos
exteriores e talvez at permanecer muito tempo sem ter a menor ideia
deles. Entretanto, aquele que fosse surdo e cego, mas tivesse o
tato, no poderia duvidar da existncia das coisas cuja dureza
experimentasse, pois no est na essncia da matria que um corpo seja
colorido ou sonoro, mas sim extenso e impenetrvel. Como os cticos
indignados respondero s duas questes seguintes:
1 Se no h objetos exteriores, e se minha imaginao faz tudo, por que
me queimo quando toco o fogo e no me queimo quando, em (um) sonho,
creio tocar o fogo?
2 Quando escrevo minhas ideias sobre este papel e outro homem vem
ler que escrevo, como posso escutar as palavras que escrevi e
pensei se esse outro homem no as ler efetivamente? Como posso
reencontr-las se no estiverem a? Enfim, qualquer que seja o esforo
que faa para duvidar, estou mais convencido da existncia dos corpos
do que de vrias verdades geomtricas. Embora parea espantoso, nada
posso fazer. Podem faltar-me demonstraes geomtricas para provar que
tenho pai e me, e pode ter sido em vo demonstrar-me, ou seja, no se
ter podido responder ao argumento que prova que uma infinidade de
linhas curvas podem passar entre um crculo e sua tangente. No
entanto, sinto perfeitamente que se um ser todo-poderoso viesse
dizer-me que, das duas proposies seguintes, "h corpos" e "uma
infinidade de curvas passam entre o crculo e sua tangente", uma
falsa, acrescentando: adivinhais qual delas? Adivinharia que a
ltima, pois, sabendo que ignorei durante muito tempo esta proposio,
e, que tive necessidade de uma ateno concentrada para compreender
sua demonstrao; que acreditei a encontrar dificuldades; que, enfim,
as verdades geomtricas s tm realidade em meu esprito, poderia
suspeitar que este se enganou.
Seja como for, como aqui minha principal finalidade examinar o
homem socivel, e s podemos ser sociveis se houver uma sociedade, e,
por conseguinte, objetos fora de ns, os pirronianos me permitiro
comear por crer firmemente que h corpos, sem o que seria preciso
que eu recusasse a prpria existncia desses senhores.
CAPTULO V
Se o Homem Tem uma Alma, e o que Pode Ser
Temos certeza de que somos matria, de que sentimos e de que
pensamos. Estamos persuadidos da existncia de um Deus de quem somos
a obra, e as razes que nos levam a tal convico no permitem que
nosso esprito se revolte contra elas. Provamos a ns mesmos que Deus
criou o que existe. Convencemo-nos de que nos impossvel e de que
nos deve ser impossvel saber como Ele nos deu o ser. Entretanto,
podemos saber o que pensa em ns? Qual essa faculdade que Deus nos
deu? a matria que sente e que pensa? uma substncia imaterial? Em
uma palavra, o que uma alma? Aqui, mais do que nunca, necessrio
recolocar-me no estado de um ser pensante vindo de outro globo, no
tendo os preconceitos daqui e possuindo a mesma capacidade que eu,
mas no sendo o que se chama homem, e capaz de julgar o homem de uma
maneira desinteressada.
Se eu fosse um ser superior a quem o Criador tivesse revelado seus
segredos, vendo o homem, logo diria o que esse animal. Definiria
sua alma e todas as suas faculdades com conhecimento de causa, com
tanta ousadia como o definiram tantos filsofos que nada sabiam.
Porm, confessando minha ignorncia e experimentando minha fraca
razo, no posso fazer outra coisa seno servir-me da via da anlise,
basto dado aos cegos pela natureza. Examino tudo parte por parte e
vejo em seguida se posso julgar o todo. Suponho, ento, que cheguei
frica, cercado de negros, de hotentotes e de outros animais. Noto
inicialmente que os rgos da vida so os mesmos em todos eles, todas
as operaes de seus corpos partem dos mesmos princpios de vida;
todos tm, a meu ver, os mesmos desejos, as mesmas paixes, as mesmas
necessidades, exprimindo-os cada um em sua lngua. A primeira lngua
que escuto a dos animais, e no poderia ser de outra forma; os sons
pelos quais se exprimem no parecem arbitrrios, mas caracteres vivos
de suas paixes; os signos trazem a marca do que exprimem: o grito
de um cachorro que reclama comida, reunido a todas as suas
atitudes, tem uma relao sensvel com seu objeto. Distingo
incontinenti os gritos e os movimentos com que adula outro animal
daqueles com que caa, e daqueles com que se queixa. Distingo ainda
se sua queixa exprime a ansiedade da solido, ou a dor de uma
ferida, ou as impacincias do amor. Assim, com um pouco de ateno,
compreendo a linguagem de todos os animais. No h sentimento algum
que no exprimam, embora talvez no acontea o mesmo com suas ideias;
mas como parece que a natureza lhes deu pouqussimas ideias,
parece-me tambm que seria natural que tivesse uma linguagem
limitada, proporcionada s suas percepes.
Que diferena encontro nos animais negros? Que posso ver a, se no
algumas ideias e algumas combinaes a mais na cabea, expressas numa
linguagem articulada diferentemente? Quanto mais examino todos
esses seres, mais devo suspeitar que so espcies diferentes de um
mesmo gnero. A faculdade admirvel de reter ideias comum a todos,
todos tm sonhos e fracas imagens durante o sono, ideias que
receberam na viglia; sua faculdade sensvel e pensante cresce com
seus rgos, como eles se enfraquece e perece. Se vertermos o sangue
de um macaco e de um negro, haver em breve num e noutro um grau de
esgotamento que os tornar incapazes de me reconhecer. Logo depois
seus sentidos exteriores no agem mais e enfim morrem.
Pergunto agora o que lhes dava a vida, a sensao e o pensamento. No
era sua prpria obra, tambm no era a da matria, como j provei.
Portanto, foi Deus quem dera a todos esses corpos a potncia de
sentir e de ter ideias em graus diferentes, proporcionais aos seus
rgos. Eis, seguramente, o que eu suspeitaria de incio.
Enfim, vejo homens que me parecem superiores aos negros, como estes
o so em relao aos smios, e como estes, comparados aos outros
animais dessa espcie.
Os filsofos dizem-me: No vos enganeis, o homem inteiramente
diferente dos outros animais, tem uma alma espiritual e imortal,
pois (notai bem, isto), se o pensamento um composto da matria, deve
ser necessariamente aquilo de que composto, deve ser divisvel,
capaz de movimento, etc. Ora, o pensamento no pode dividir-se,
portanto no um composto da matria, no possui partes, simples,
imortal, a obra e a imagem de um Deus. Escuto esses mestres e lhes
respondo, sempre desconfiando de mim mesmo, mas nem por isso
confiando neles. Se o homem tem uma alma, tal como assegurais, devo
crer que este co e esta toupeira tm uma semelhante. Todos me juram
que no. Pergunto-lhes qual a diferena que existe entre este co e
eles. Uns me respondem: este co uma forma substancial; outros me
dizem: no acrediteis nisso, as formas substanciais so quimeras;
este co uma mquina como uma manivela, e nada mais. Pergunto ainda
aos inventores das formas substanciais o que entendem por essa
expresso, e como s me respondem com galimatias, volto-me para os
inventores das manivelas e lhes digo: se estes animais so puras
mquinas. certamente sereis, em comparao com eles, apenas como um
relgio de repetio em comparao com a manivela de que falais; ou, se
tendes a honra de possuir uma alma espiritual, os animais tero uma
tambm, pois so tudo o que vs sois. Possuem os mesmos rgos com os
quais tendes sensaes, e se no lhes servirem para a mesma
finalidade, dando-lhes tais rgos Deus ter feito uma obra intil. Mas
de acordo com vossa prpria opinio, Deus nada faz em vo. Escolhei,
portanto: ou atribus uma alma espiritual a uma pulga, a um verme, a
um bicho do queijo, ou sois autmatos como eles. Tudo que tais
senhores podem responder-me consiste em dizer que conjecturam a
respeito das molas dos animais, molas que parecem ser os rgos de
seus sentimentos, necessrias s suas vidas, mas que neles so
unicamente molas de vida. Esta resposta apenas uma suposio
irrazovel.
certo que para viver no se precisa nem de nariz, nem de orelhas,
nem de olhos. H animais que no possuem sentidos e vivem. Portanto,
esses rgos dos sentidos so dados apenas para o sentimento, donde se
conclui que os animais sentem como ns e, assim, s um excesso de
vaidade ridcula pode levar os homens a se atriburem uma alma de uma
espcie diferente daquela que anima os brutos. claro, pois, que at
agora nem os filsofos nem eu sabemos o que seja a alma. Est somente
provado ser alguma coisa comum entre o animal chamado homem e
aquele que se denomina besta. Vejamos se essa faculdade comum a
todos os animais matria ou no.
impossvel, dizem-me, que a matria pense. No vejo esta
impossibilidade. Se o pensamento fosse um composto da matria, como
me dizem, admitiria que o pensamento deveria ser extenso e
divisvel; mas se o pensamento um atributo de Deus dado matria, no
vejo por que seja necessrio que tal atributo seja extenso e
divisvel, pois vejo que Deus comunicou matria outras propriedades
que no possuem extenso nem divisibilidade. Assim, por exemplo, a
gravitao, que age sem corpos intermedirios e na razo direta da
massa e no das superfcies, e na razo inversa do quadrado das
distancias, uma qualidade real demonstrada, mas cuja causa est to
escondida como a do pensamento.
Em uma palavra, s posso julgar segundo o que vejo, e segundo o que
me parece mais provvel. Vejo que em toda a natureza os mesmos
efeitos supem uma mesma causa. Assim, julgo que a mesma causa age
nas bestas e nos homens proporcionalmente aos seus rgos, e creio
que este princpio comum aos homens e s bestas um atributo dado por
Deus matria. Pois, se o que se chama alma fosse um ser parte,
qualquer que fosse sua natureza, eu deveria crer que o pensamento
sua essncia, ou, ento, eu no teria ideia alguma dessa substancia.
Mesmo todos os que admitiram uma alma imaterial foram obrigados a
dizer que esta pensa sempre. Fao, ento, apelo conscincia de todos
os homens. Pensam sem cessar? Pensam quando dormem um sono pleno e
profundo? As bestas tm ideias em todos os momentos? Algum que
desmaiou tem muitas ideias nesse estado, que realmente uma morte
passageira? Se a alma no pensa sempre , portanto, absurdo
reconhecer no homem uma substancia cuja essncia seja pensar. Que
poderamos concluir seno que Deus organizou os corpos para pensar
assim como para comer e para digerir? Informando-me sobre a histria
do gnero humano, vejo que durante muito tempo os homens tiveram a
mesma opinio que eu sobre esse assunto. Leio um dos livros mais
antigos do mundo, conservado por um povo que se pretende ser o povo
mais antigo, e tal livro me diz que o prprio Deus parece pensar
como eu. Ensina-me que outrora Deus deu aos judeus leis mais
detalhadas do que quaisquer outras recebidas por uma nao. Digna-se
prescrever-lhes at a maneira como devem ir privada, mas no lhes
disse uma nica palavra sobre a alma, falando-lhes apenas de
castigos e recompensas temporais, o que prova, pelo menos, que o
autor desse livro no vivia numa nao que acreditasse na espiritual
idade e na imortalidade da alma.
Dizem-me que, dois mil anos depois, Deus veio ensinar aos homens
que sua alma imortal, mas eu, que perteno a outra esfera, no posso
deixar de me espantar com esse disparate debitado na conta de Deus.
Parece estranho para minha razo que Deus tenha feito os homens
crerem no pr e no contra, mas tratando-se de um ponto de revelao,
onde minha razo nada v, calo-me e adoro em silncio. No cabe a mim
examinar o que foi revelado. Noto somente que os livros revelados
no dizem que a alma seja espiritual, dizem apenas que imortal. No
tenho dificuldade alguma para acreditar nisso, pois parece to
possvel a Deus t-la formado (seja qual for sua natureza) para
conserv-la como para destru-la. Esse Deus, que pode conservar ou
aniquilar o movimento de um corpo conforme lhe agrade, pode
seguramente fazer durar para sempre a faculdade de pensar numa
parte desse corpo. Com efeito, se ele prprio nos disse que essa
parte imortal, preciso persuadir-se de que assim .
Mas, de que feita a alma? Isto o Ser Supremo no julgou de bom
alvitre ensinar aos homens. Contando apenas com minhas prprias
luzes, com o desejo de conhecer alguma coisa e com a sinceridade do
meu corao para conduzir-me nessas investigaes, procuro sinceramente
o que minha razo pode revelar-me por si mesma. Experimento suas
foras, no por cr-la capaz de carregar todos esses pesos imensos,
mas para fortific-la pelo exerccio, e para saber at onde vai seu
poder. Assim, sempre pronto a ceder desde que a revelao me
apresente suas barreiras, continuo minhas reflexes e minhas
conjecturas unicamente como filsofo, at que minha razo no possa
mais avanar.
CAPTULO VI
Se o que Chamamos Alma Imortal
Este no o lugar adequado para examinar se efetivamente Deus revelou
a imortalidade da alma. Continuo supondo que sou um filsofo de
outro mundo julgando apenas com minha razo. Esta ensinou-me que
todas as ideias dos homens e dos animais lhes vm pelos sentidos e
confesso no poder segurar o riso quando ,me dizem que os homens
ainda tero ideias quando no tiverem mais sentidos. Se um homem
perdeu o nariz, assim perdido, este uma parte dele tanto quanto a
estrela polar. Ao perder todas as suas partes e no ser mais um
homem, no seria estranho dizer, ento, que ainda lhe sobra o
resultado de tudo o que pereceu? Preferiria dizer que come e bebe
aps sua morte a dizer que lhe restam ideias depois dela. Essas duas
suposies so igualmente inconsequentes, mas certamente escoaram-se
muitos sculos antes que se ousasse fazer uma proposta to
surpreendente como a segunda. Bem sei, ainda uma vez, que Deus,
tendo atado a uma parte do crebro a faculdade de ter ideias, pode
conservar essa pequena parte do crebro com sua faculdade, pois
conservar essa faculdade sem a parte seria to impossvel como
conservar o riso de um homem ou o canto de um pssaro aps a morte do
homem e do pssaro. Deus pode tambm ter dado aos homens e aos
animais uma alma simples, imaterial, conservando-a
independentemente de seus corpos. Isso lhe to possvel como criar um
milho de mundos a mais do que criou, bem como dar aos homens dois
narizes e quatro mos, asas e garras. No entanto, para crer que de
fato fez todas essas coisas possveis, parece-me que preciso
v-las.
No vendo, portanto, que o entendimento, a sensao do homem, seja
coisa imortal, quem provar que ela o ? Como? ! Eu, que nem sei qual
a natureza dessa coisa, afirmarei que eterna?! Eu, que sei que o
homem no existia ontem, afirmarei que h nele uma parte eterna por
sua natureza?! E, enquanto recusarei a imortalidade quilo que anima
este co, este papagaio, esta gralha, irei conced-la ao homem s
porque o homem a deseja?
Com efeito, seria bem doce sobreviver a si mesmo, conservar
eternamente a parte mais excelente de seu ser sob a destruio da
outra, viver para sempre com seus amigos, etc.! Esta quimera (ao
encar-la s nesse sentido) seria consoladora para as misrias reais.
Eis, talvez, por que se inventou outrora o sistema da metem
psicose. Entretanto, seria ele mais verossmil do que as Mil e Uma
Noites? No seria fruto da imaginao viva e absurda da maioria dos
filsofos orientais? Suponho, porm, malgrado todas as
verossimilhanas, que Deus conserva aps a morte do homem o que se
chama sua alma, e que abandona a da fera com o ritmo comum da
destruio de todas as coisas. Pergunto o que o homem ganhar com
isso; pergunto o que o esprito de Tiago ter em comum com Tiago
depois de morto.
O que constitui a pessoa de Tiago, fazendo com que Tiago seja ele
mesmo e o mesmo que era ontem a seus prprios olhos, a lembrana das
ideias que tinha ontem, e que no seu entendimento une sua existncia
de ontem sua existncia de hoje, pois se tivesse perdido
inteiramente a memria, sua existncia passada lhe seria to estranha
quanto a de um outro homem. No seria mais o Tiago de ontem, a mesma
pessoa, como no seria Scrates ou Csar. Ora, suponho que Tiago, em
sua ltima doena, tenha perdido totalmente a memria, morrendo
consequentemente sem ser o mesmo Tiago que viveu. Deus devolver sua
alma essa memria que perdeu? Criar novamente essas ideias que no
mais existem? Neste caso no ser um homem completamente novo, to
diferente do primeiro quanto um hindu de um europeu?
Mas pode-se dizer tambm que, Tiago tendo perdido inteiramente a
memria antes de morrer, sua alma poder recobr-la assim como
recobrada aps um desmaio ou aps uma congesto cerebral, pois um
homem que perdeu inteiramente a memria numa grande doena no deixa
de ser o mesmo homem quando a recupera. Portanto, a alma de Tiago,
se tiver uma, e se for imortal pela vontade do Criador, como se
supe, poder recuperar a memria aps sua morte, exatamente como a
recupera aps um desmaio durante a vida. E assim, Tiago ser o mesmo
homem.
Vale a pena propor tais dificuldades, e aquele que encontrar uma
maneira segura de resolver a equao dessa incgnita ser, penso, um
homem hbil.
No consigo avanar mais nessas trevas. Detenho-me quando me falta a
luz de meu archote. J suficiente que consiga ver at aonde posso ir.
No asseguro que tenha demonstraes contra a espiritualidade e a
imortalidade da alma, mas todas as aparncias so contra elas.
igualmente injusto e desarrazoado querer uma demonstrao numa
pesquisa susceptvel somente de conjecturas.
preciso unicamente prevenir o esprito dos que acreditariam a
mortalidade da alma contrria ao bem da sociedade, e faz-los
relembrar que os antigos judeus, cujas leis admiram, acreditavam a
alma material e mortal, sem contar as grandes seitas de filsofos
que valiam como os judeus e que eram gente muito honesta.
CAPTULO VII
Se o Homem Livre
Talvez no haja questo mais simples do que a da liberdade, mas tambm
no h outra que tenha sido mais emaranhada pelos homens. As
dificuldades com que os filsofos eriaram tal matria, a temeridade
com que se quis arrancar de Deus seu segredo e conciliar a
prescincia com o livre arbtrio, obscureceram a ideia de liberdade
com a pretenso de esclarec-la. Acostumou-se tanto a no mais
pronunciar a palavra liberdade sem acompanh-la com a sequncia de
todas as dificuldades em que se desdobra que hoje em dia ningum se
entende quando se pergunta: o homem livre?
Agora no h mais lugar para fingir um ser dotado de razo sem ser
humano e que examina com indiferena o que o homem. Ao contrrio,
agora preciso que cada homem entre em si mesmo e d testemunho de
seu prprio sentimento.
Iniciemos despojando a questo de todas as quimeras com que se
costumou embara-la, e definamos o que entendemos pela palavra
liberdade.
Liberdade unicamente o poder de agir. Se uma pedra se movesse por
sua escolha, seria livre. Os animais e os homens tm esse poder,
portanto, so livres. Posso com todas as minhas foras contestar essa
faculdade aos animais, posso afigurar-me, se quiser abusar de minha
razo, que as bestas, semelhantes a mim em todo o resto, diferem de
mim nesse nico ponto. Posso conceb-las como mquinas que no tm nem
sensaes, nem desejos, nem vontade, embora aparentem t-los. Forjarei
sistemas, isto , erros, para explicar sua natureza, mas, no momento
de interrogar-me a mim mesmo, ser preciso confessar que tenho uma
vontade e que tenho o poder de agir, de mexer meu corpo, de aplicar
meu pensamento em tal ou qual considerao, etc. Se algum vier me
dizer: acreditais ter essa vontade, mas no a tendes; tendes um
sentimento que vos engana, como acreditais ver o Sol com dois ps de
largura, embora em grandeza esteja para a Terra mais ou menos como
um milho para a unidade; responderei a esse algum: o caso
diferente. Deus no me enganou fazendo-me ver o que est distante de
mim com uma grandeza proporcional sua distncia. As leis matemticas
da ptica provaram que no posso e no devo perceber os objetos seno
na razo direta de seus tamanhos e de seu afastamento, e a natureza
de meus rgos tal que, se minha vista pudesse perceber a grandeza
real de uma estrela, eu no poderia ver nenhum objeto sobre a Terra.
O mesmo acontece com o sentido da audio e com o do olfato. Sendo
todas as coisas iguais, s terei sensaes mais ou menos fortes
conforme os corpos sonoros e odorferos estejam mais ou menos longe
de mim. No h nisso erro algum. Entretanto, se eu no tivesse
vontade, crendo t-la, Deus ter-me-ia criado expressamente para
enganar-me, assim como se me fizesse acreditar que h corpos fora de
mim sem que realmente houvesse. Nada resultaria dessa mentira seno
um absurdo na maneira de agir de um Ser Supremo infinitamente
sbio.
E que no se diga ser indigno de um filsofo recorrer Deus nesse
ponto. Pois, primeiramente, estando provado esse Deus, est
demonstrado que a causa de minha liberdade, caso eu seja livre, e
que o autor absurdo de meu erro, se, tendo-me feito um ser
puramente paciente sem vontade, me fizesse acreditar que sou agente
e que sou livre.
Em segundo lugar, se no houvesse Deus, quem me teria lanado no
erro? Quem me teria dado o sentimento de liberdade, colocando-me na
escravido? Seria uma matria que alcana a inteligncia de si mesma?
No posso ser ensinado nem enganado pela matria, nem receber dela a
faculdade de querer; no posso ter recebido de Deus o sentimento da
minha vontade sem ter uma; tenho realmente uma vontade, portanto
sou um agente.
Querer e agir precisamente o mesmo que ser livre. O prprio Deus s
pode ser livre nesse sentido. Quis e agiu segundo sua vontade. Se
supusssemos sua vontade determinada necessariamente, dizendo que
teve necessidade de querer o que fez, cairamos num absurdo to
grande quanto se dissssemos "h um Deus" e "no h um Deus", pois se
Deus fosse determinado necessariamente no seria mais agente, seria
paciente e no seria mais Deus.
Nunca se deve perder de vista essas verdades fundamentais
encadeadas umas s outras. Algo existe, portanto algum ser existe
eternamente, portanto tal ser existe por si mesmo com uma
necessidade absoluta, portanto infinito, portanto todos os outros
seres vm dele sem que se saiba como, portanto pde comunicar-lhes a
liberdade assim como lhes comunicou o movimento e a vida, portanto
deu-nos esta liberdade que sentimos em ns, assim como nos deu a
vida que sentimos em ns.
Em Deus a liberdade o poder de pensar e de operar sempre tudo o que
quer.
A liberdade dada por Deus ao homem o poder fraco, limitado e
passageiro, de dedicar-se a alguns pensamentos, e de operar certos
movimentos. A liberdade das crianas que ainda no refletem e das
espcies animais, que nunca refletem, consiste somente em querer e
operar movimentos. Sobre qual fundamento podemos imaginar que a
liberdade no existe? Eis as causas desse erro: de incio, notou-se
que temos frequentemente paixes violentas que nos arrastam malgrado
ns mesmos. Um homem quereria no amar uma amante infiel, e, no
entanto, seus desejos, mais fortes que sua razo, o reconduzem para
ela; somos arrebatados por aes violentas, em movimentos colricos
incontrolveis; desejaramos levar uma vida tranquila, e, no entanto,
a ambio nos impele para o tumulto dos negcios.
Tantas cadeias visveis a prostrar-nos durante quase toda nossa vida
fizeram-nos crer que estamos igualmente acorrentados a todo o
resto, e dizemos: ora o homem arrastado com rapidez e violncia por
sacudidas que o agitam, ora conduzido por um movimento tranquilo de
que tambm no senhor; um escravo que nem sempre sente o peso e a
infmia dos seus ferros, mas sempre escravo.
Tal raciocnio, que apenas a lgica da fraqueza humana, em tudo
semelhante a este: os homens ficam doentes algumas vezes, portanto,
nunca tm sade.
Ora, quem no v a impertinncia desta concluso? Quem no v, ao
contrrio, que sentir a doena uma prova indubitvel de que se teve
sade, que sentir a escravido e a impotncia prova invencivelmente
que se teve a potncia e a liberdade?
Quando tivestes uma paixo furiosa, vossa vontade no era mais
obedecida por vossos sentidos; nessa ocasio reis to livres como
numa paralisia que vos impedisse de movimentar o brao que quereis
mexer. Se um homem fosse durante toda sua vida dominado por paixes
violentas ou por imagens que passam incessantemente em seu crebro,
faltar-lhe-ia a parte de humanidade que consiste em poder pensar
algumas vezes naquilo que se quer. Tal a situao de muitos loucos
que trancafiamos e mesmo a de muitos outros que no esto
trancafiados.
O mesmo motivo que faz com que no sejamos todos igualmente
esclarecidos, igualmente robustos, faz com que haja homens mais
livres do que outros. A liberdade a sade da alma e em poucas
pessoas completa e inaltervel. Nossa liberdade fraca e limitada
como todas as nossas outras faculdades. Ns a fortificamos
acostumando-nos a refletir, e este exerccio torna a alma um pouco
mais vigorosa. Mas quaisquer que sejam os esforos que faamos, nunca
podemos chegar a tornar nossa razo soberana de todos os nossos
desejos; haver sempre movimentos involuntrios em nossa alma como em
nosso corpo. Somos livres, sbios, fortes, sos e espirituais num
grau muito reduzido. Se fssemos sempre livres, seramos o que Deus .
Contentemo-nos com uma partilha conveniente ao lugar que ocupamos
na natureza. Mas no imaginemos que nos faltam as coisas que frumos,
nem renunciemos s faculdades de um homem por no termos os atributos
de um Deus.
No meio de um baile ou de uma conversa animada, ou nas dores de uma
doena que me oprima a cabea, em vo poderei querer encontrar quanto
a trigsima quinta parte de noventa e cinco teros e meio
multiplicados por vinte e cinco dcimos nonos e trs quartos; no
terei a liberdade de fazer tal combinao. Mas um pouco de
recolhimento devolver-me- essa capacidade, perdida no tumulto. Os
mais encarniados inimigos da liberdade so, portanto, forados a
admitir que temos uma vontade obedecida algumas vezes por nossos
sentidos. "Mas essa vontade", dizem eles, " necessariamente
determinada, como uma balana sempre inclinada para o lado do peso
maior. O homem s quer o que julga melhor, seu entendimento no
senhor de no julgar bom o que lhe parece bom. O entendimento age
necessariamente. A vontade determinada pelo entendimento; portanto,
a vontade determinada por uma necessidade absoluta,
consequentemente o homem no livre.
Tal argumento deslumbrante , no fundo, apenas um sofisma, seduzindo
muita gente, porque os homens quase sempre s entreveem o que
examinam.
Eis em que consiste o defeito desse raciocnio: certamente o homem s
pode querer coisas cujas ideias lhe estejam presentes. No poderia
ter vontade de ir pera se no tivesse a ideia da pera e no desejaria
ir nem se determinaria a ir, se seu entendimento no lhe
representasse o espetculo como uma coisa agradvel. Ora, sua
liberdade consiste exatamente nisso, ou seja, no poder de se
autodeterminar a fazer o que lhe parece bom. Querer o que no lhe
dar prazer uma contradio formal e uma impossibilidade. incontestvel
que o homem se determina pelo que lhe parece o melhor, mas o n da
questo saber se tem em si esta fora movente, este poder primitivo
de se determinar ou no. Aqueles que dizem que o assentimento do
esprito necessrio e determina necessariamente a vontade supem que o
esprito age fisicamente sobre a vontade. Dizem um absurdo visvel,
pois supem que um pensamento um pequeno ser real que age realmente
sobre outro ser chamado vontade, e no refletem que as palavras
vontade, entendimento, etc. so somente ideias abstratas, inventadas
para clarificar e ordenar nossos discursos, e que significam apenas
o homem pensando e o homem querendo.
O entendimento e a vontade, portanto, no existem realmente como
seres diferentes, e impertinente dizer que um age sobre o
outro.
Se no supuserem que o esprito age fisicamente sobre a vontade,
preciso que digam ou que o homem livre ou que Deus age pelo homem,
determina o homem, est eternamente ocupado a enganar o homem; e
neste caso pelo menos admitem que Deus livre. Se Deus livre, ento a
liberdade possvel e o homem pode t-la. E assim, no tm razo alguma
para dizer que o homem no a tem. Em vo podem dizer: o homem
determinado pelo prazer. Ao diz-lo, admitem, sem pensar, a
liberdade, pois fazer o que d prazer ser livre.
Deus, ainda uma vez, s pode ser livre desse modo: s pode atuar
segundo seu prazer. Todos os sofismas contra a liberdade do homem
atacam igualmente a liberdade de Deus.
O ltimo refgio dos inimigos da liberdade o seguinte argumento:
"Deus sabe certamente que alguma coisa acontecer; no est, portanto,
no poder do homem deixar de faz-la".
Primeiramente, notai que esse argumento atacaria novamente a
liberdade de Deus que, no entanto, somos obrigados a reconhecer.
Pode-se dizer: Deus sabe o que acontecer e no est em seu poder
deixar de fazer aquilo que acontecer. Que prova esse argumento to
banal? Nada, seno que no sabemos e nem podemos saber o que a
prescincia de Deus, e que todos os seus atributos so abismos
impenetrveis para ns.
Sabemos demonstrativamente que, se Deus existe, livre. Sabemos, ao
mesmo tempo, que sabe tudo, mas sua prescincia e sua oniscincia so
to incompreensveis para ns quanto sua imensido, sua durao infinita
j passada, sua durao infinita por vir, a criao, a conservao do
universo e tantas outras coisas que no podemos negar nem
conhecer.
A disputa sobre a prescincia de Deus causou tantas querelas s
porque somos ignorantes e presunosos. Que custaria dizer: no sei o
que so os atributos de Deus e no fui feito para abarcar sua
essncia? Mas um bacharelou um licenciado dificilmente admitiro
isso. Essa atitude tornou-os os mais absurdos dos homens, e fez de
uma cincia sagrada um miservel charlatanismo.
CAPTULO VIII
Do Homem Considerado como um Ser Socivel
O grande desgnio do Autor da natureza parece ser o de conservar
cada indivduo certo tempo e perpetuar sua espcie. Todo animal
arrastado por um instinto invencvel a tudo o que pode tender para
sua conservao e h momentos em que arrebatado ao acasalamento e
propagao por instinto quase to forte como o anterior, sem que
jamais possamos dizer como tudo isso se passa.
Os animais mais selvagens e os mais solitrios saem de suas tocas
quando o amor os chama e sentem-se ligados durante alguns meses por
cadeias invisveis s fmeas e aos filhotes que nascem deles. Depois
esquecem essa famlia passageira e retomam ferocidade de sua solido
at que o aguilho do amor os force de novo a sair dela. Outras
espcies so formadas pela natureza para viverem sempre juntas, umas
numa sociedade realmente policiada, como as abelhas, as formigas,
os castores e algumas espcies de pssaros; outras, esto simplesmente
agrupadas por um instinto mais cego que as une sem objeto e sem
desgnio aparente, como os rebanhos em terra e os arenques no
mar.
O homem, certamente, no levado por seu instinto a formar uma
sociedade policiada tal como as formigas e as abelhas, mas,
considerando suas carncias, suas paixes e sua razo, v-se bem que no
pode permanecer muito tempo num estado completamente
selvagem.
suficiente, para que o universo seja o que hoje, que um homem tenha
estado enamorado de uma mulher. O cuidado mtuo que tero tido um com
o outro e seu amor natural para com seus filhos tero logo
despertado sua engenhosidade e dado nascimento ao comeo grosseiro
das artes. Duas famlias precisaro uma da outra to logo se tiverem
constitudo e dessas carncias nascero novas comodidades.
O homem no como os outros animais, que tm apenas o instinto do
amor-prprio e do acasalamento: no somente possui esse amor-prprio
necessrio sua conservao, como tambm uma benevolncia natural por sua
espcie, o que no se nota nos animais.
Se uma cadela ao passar v um co, nascido da mesma me que ela,
dilacerado em mil pedaos e todo ensanguentado, agarrar um pedao sem
ter a menor piedade, e continuar seu caminho. No entanto, essa
mesma cadela defender seu filho e morrer combatendo antes de deixar
que o levem.
Ao contrrio, se o homem mais selvagem vir uma bela criana quase
sendo devorada por algum animal, sentir, apesar de si mesmo, uma
inquietao, uma ansiedade que a piedade faz nascer e um desejo de ir
em seu socorro. verdade que esses sentimentos de piedade e de
benevolncia so frequentemente asfixiados pelo furor do amor-prprio.
Alis, a natureza sbia no poderia dar-nos mais amor pelos outros do
que por ns mesmos. J muito que tenhamos benevolncia, que nos dispe
unio com os homens.
Mas essa benevolncia seria ainda um fraco socorro para fazer-nos
viver em sociedade; nunca poderia servir de fundamento para os
grandes imprios e as cidades florescentes, sem nossas grandes
paixes.
Estas, cujo abuso faz tanto mal verdade, so a principal causa da
ordem que vemos hoje sobre a terra. O orgulho, sobretudo, o
principal instrumento para a construo do belo edifcio da sociedade.
To logo a necessidade agrupou alguns homens, os mais hbeis
perceberam que todos haviam nascido com um orgulho indomvel e tambm
com uma tendncia invencvel para o bem estar.
No foi difcil persuadi-los para que fizessem qualquer coisa que,
embora lhes custasse um pouco do bem-estar pessoal, revertesse para
o bem comum da sociedade; seu orgulho sentia-se amplamente
gratificado.
Assim, desde cedo os homens se distinguiram em duas classes: a
primeira, dos homens divinos que sacrificam seu amor-prprio ao bem
pblico; a segunda, dos miserveis, que s amam a si mesmos. Todo
mundo quis e ainda quer pertencer primeira classe, embora, no fundo
do corao, todo mundo seja da segunda. Os homens mais covardes e
mais agarrados aos seus prprios desejos gritaram mais alto do que
os outros que era preciso imolar tudo ao bem pblico. O desejo de
comandar, um dos ramos do orgulho, to visvel num professorzinho
pedante e num bailio de aldeia como num papa ou num imperador,
tambm excitou potentemente a engenhosidade humana para levar os
homens a obedecer a outros homens, mostrando-lhes claramente que se
sabia mais do que eles e que lhes seria til.
Foi preciso, sobretudo, servir-se de sua avareza para comprar sua
obedincia. No se podia dar-lhes muito sem ter muito, e o furor de
adquirir os bens da terra acrescentava diariamente novos progressos
s artes.
A mquina da sociedade tambm no teria ido longe sem o apoio da
inveja, paixo muito natural, que os homens disfaram sempre sob o
nome de emulao. A inveja obrigou a preguia a despertar e afiou o
gnio de todo aquele que viu seu vizinho poderoso e feliz. Assim,
pouco a pouco, s as paixes reuniram os homens e tiraram do seio da
terra todas as artes e todos os prazeres. Foi com essa mola que
Deus, chamado por Plato o eterno gemetra, e que chamo aqui o eterno
maquinista, animou e embelezou a natureza: as paixes so as
engrenagens que fazem andar todas as mquinas.
Os raciocinadores de hoje em dia que desejam estabelecer a quimera
do homem nascendo sem paixes e s as tendo por haver desobedecido a
Deus, poderiam ter dito que o homem a bela esttua que Deus formou e
o diabo animou.
O amor-prprio e todos os seus ramos so to necessrios ao homem como
o sangue que corre em suas veias, e os que lhe querem arrancar as
paixes por serem perigosas assemelham-se quele que desejasse
arrancar todo o sangue de um homem porque poderia ficar
apopltico.
Que diramos daquele que pretendesse que os ventos so uma inveno do
diabo porque submergem alguns navios, sem perceberem que so um
benefcio de Deus por cujo intermdio o comrcio rene todos os
recantos da terra separados pelos mares imensos? , portanto, muito
claro que devemos s nossas paixes e s nossas carncias a ordem e as
invenes teis com que enriquecemos o universo e bem verossmil que
Deus s nos tenha dado essas carncias, essas paixes, a fim de que
nossa engenhosidade as usasse em nosso proveito. Se muitos homens
abusaram delas, no nos cabe queixar-nos de um benefcio mal usado.
Deus dignou-se colocar sobre a terra mil alimentos deliciosos para
o homem; a gula dos que transformaram o alimento em veneno mortal
para eles no pode servir de reprimenda contra a Providncia.
CAPTULO IX
Da Virtude e do Vcio
Para que uma sociedade subsista, preciso que haja leis, como
preciso haver regras para cada jogo. A maioria dessas leis parecem
arbitrrias, dependem dos interesses, das paixes, das opinies dos
que as inventaram e da natureza do clima onde os homens se reuniram
em sociedade. Num pas quente, onde o vinho torna o homem furioso,
julgou-se adequado considerar um crime beb-lo. Em outros climas
mais frios uma honra embebedar-se. Aqui, um homem deve contentar-se
com uma mulher, acol, -lhe permitido ter tantas quantas puder
alimentar. Num lugar, os pais e as mes suplicam aos estrangeiros
que aceitem dormir com suas filhas, em todos os outros lugares uma
moa que se entregar a um homem estar desonrada. Em Esparta
encorajava-se o adultrio; em Atenas, era punido com a morte. Entre
os romanos, os pais tinham o direito de vida e de morte sobre seus
filhos. Na Normandia, um pai no pode tirar um bolo sequer dos bens
de um filho, mesmo do mais desobediente. O nome do rei sagrado em
muitas naes e abominado em outras. Mas todos os povos que se
conduzem to diferentemente renem-se sob o mesmo ponto: denominam
VIRTUOSO o que conforme s leis estabelecidas e CRIMINOSO o que lhes
contrrio. Assim, um homem que na Holanda se opuser ao poder
arbitrrio ser um homem muito virtuoso; e aquele que na Frana quiser
estabelecer um governo republicano ser condenado aos piores
suplcios. O mesmo judeu que, em Metz, seria enviado s galeras se
tivesse duas mulheres ter quatro em Constantinopla e ser mais
estimado pelos muulmanos.
A maioria das leis contrariam-se to visivelmente que aquelas que
governam um Estado importam muito pouco: o que importa que, uma vez
estabelecidas, sejam executadas. Assim, no h maiores consequncias
em que as regras para os jogos de dados ou de cartas sejam estas ou
aquelas, mas ningum poder julgar um s momento se no seguir
rigorosamente as regras arbitrrias convencionadas.
(Cremos, ao contrrio, que no deve haver quase nada arbitrrio nas
leis. 1 A razo suficiente para nos fazer conhecer os direitos dos
homens, direitos que derivam todos desta mxima simples: entre dois
seres sensveis, iguais por natureza, contra a ordem que um faa sua
felicidade custa do outro. 2 A razo mostra igualmente que, em
geral, til para o bem de muitas sociedades que os direitos de cada
um sejam respeitados. Assegurando tais direitos de uma maneira
inviolvel, pode-se conseguir ou proporcionar espcie humana toda a
felicidade de que seja suscetvel, ou dividi-la entre os indivduos
com a maior equidade possvel. Se examinarmos, em seguida, as
diferentes leis veremos que umas tendem a manter esses direitos e
que outras atentam contra eles, que umas so conformes ao interesse
geral e que outras so contrrias a ele. So, portanto, justas ou
injustas por si mesmas. Assim, no suficiente que a sociedade seja
regida por leis, preciso que estas sejam justas. No suficiente que
os indivduos se conformem s leis estabelecidas, preciso que as
prprias leis sejam conformes ao que exige a manuteno do direito de
cada um.
Dizer que arbitrrio fazer tal lei ou uma contrria, ou nenhuma
unicamente confessar que se ignora se tal lei conforme ou contrria
justia. Um mdico pode dizer: indiferente dar a este doente um
emtico ou uma ipecacuanha; mas isto significa que preciso dar-lhe
um vomitrio e ignoro qual dos dois remdios h de convir mais a seu
estado. N a legislao, como na medicina, como nos trabalhos das
artes fsicas, o arbitrrio s existe porque ignoramos as consequncias
de dois meios que de imediato nos parecem diferentes. O arbitrrio
nasce da nossa ignorncia e no da natureza das coisas. Nota do
Autor)
A virtude e o vcio, o bem e o mal moral so, portanto, em todos os
pases aquilo que til ou daninho sociedade; e, em todos os lugares e
em todos os tempos, aquele que mais se sacrificar ao pblico ser
considerado o mais virtuoso.
Parece, portanto, que as boas aes so apenas aquelas de que
retiramos alguma vantagem, e os crimes, as aes que nos so
contrrias. A virtude o hbito de fazer coisas que agradam aos
homens, e o vcio as que lhes desagradam.
Embora o que chamamos virtude em um clima seja precisamente o que
chamamos vcio em outro, e a maior parte das regras do bem e do mal
difiram como as lnguas e o vesturio, entretanto, parece-me certo
que h leis naturais que, os homens so obrigados a respeitar em todo
o universo, malgrado as demais leis que possuam. Na verdade, Deus
no disse aos homens: "Eis as leis que de minha boca vos dou, para
que vos governeis por elas." Mas, fez no homem o que fez em muitos
outros animais: deu s abelhas um instinto poderoso graas ao qual
trabalham e alimentam-se juntas, e deu ao homem certos sentimentos
dos quais jamais poder desfazer-se, vnculos eternos e primeiras
leis da sociedade, prevista por Ele como forma da convivncia
humana.
A benevolncia por nossa espcie, por exemplo, nasceu conosco e age
sempre em ns, a menos que seja combatida pelo amor-prprio, que deve
sempre venc-la. Assim, um homem sempre levado a auxiliar outro
quando nada lhe custa faz-lo. O selvagem mais brbaro, voltando da
carnificina e saboreando o sangue do inimigo que comeu, se
enternecer vendo os sofrimentos de um seu companheiro, dando-lhe
todos os socorros que dele dependerem.
O adultrio e a pederastia sero permitidos a muitos em muitas naes,
mas no encontrareis nenhuma onde seja permitido faltar palavra,
pois a sociedade pode subsistir entre adultrios e rapazes que se
amam, mas no entre pessoas glorificadas por enganarem umas s
outras.
O latrocnio era honrado em Esparta porque todos os bens eram
comuns; mas desde que tenhais estabelecido o teu e o meu, ser-vos-,
ento, impossvel no encarar o roubo como contrrio sociedade e, por
conseguinte, como injusto.
to verdadeiro que o bem da sociedade a nica medida do bem e do mal
moral que somos forados a modificar, conforme a necessidade, todas
as ideias do justo e do injusto que formramos.
Temos horror do pai que dorme com sua filha, e consideramos infame,
com o nome de incestuoso, o irmo que abusa da irm. Mas numa colnia
nascente, onde somente sobrasse um pai com o filho e duas filhas, o
cuidado tomado por esta famlia para no deixar perecer a espcie
seria encarado por ns como uma tima ao.
Um irmo que mata seu irmo um monstro, mas um irmo cujo nico meio
para salvar sua ptria fosse sacrificar seu irmo seria um homem
divino.
Todos amamos a verdade e dela fazemos uma virtude, porque de nosso
interesse no sermos enganados. Atribumos mais infmia mentira do que
a todas as outras ms aes, porque a mais fcil de esconder e a que
menos custa cometer. Porm, em quantas ocasies a mentira no se toma
uma ao heroica! Quando se trata, por exemplo, de salvar um amigo,
aquele que dissesse a verdade seria coberto de oprbrio; e no se faa
diferena entre um homem que caluniasse um inocente e um irmo que,
podendo conservar a vida de seu irmo por uma mentira, preferisse
abandon-lo, dizendo a verdade. A memria do Sr. de Thou, cujo pescoo
foi cortado por no ter revelado a conspirao de Cinq-Mars, uma bno
para os franceses. Se no tivesse mentido, seria abominado por
eles.
Mas, dir-me-o, no ser, portanto, com relao a ns mesmos que haver
crime e virtude, bem e mal moral, de sorte que no haver bem em si,
independente do homem? Perguntarei aos que me propem tal questo se
h quente ou frio, doce ou amargo, bom ou mau odor, a no ser com
relao a ns. Um homem que pretendesse que o calor existe sozinho no
seria um raciocinadar muito ridculo? Por que, ento, aquele que
pretende que o bem moral existe independente de ns raciocinaria
melhor? Nosso bem e nosso mal fsico s tm existncia com relao a ns;
por que nosso bem moral e nosso mal moral estariam em outro
caso?
As intenes do Criador, que desejou os homens vivendo em sociedade
no foram suficientemente cumpridas? Se houvesse alguma lei, cada do
cu, que tivesse ensinado aos seres humanos bem claramente a vontade
de Deus, ento o bem moral seria apenas a conformidade a essa lei.
Se Deus tivesse dito aos homens: "Quero que haja muitos reinos
sobre a terra e nenhuma repblica; quero que os caulas tenham todos
os bens dos pais e que se puna com a morte qualquer um que coma
perus ou porcos", ento, essas leis se tornariam certamente a regra
imutvel do bem e do mal. Mas como Deus no se dignou, que eu saiba,
imiscuir-se assim em nossa conduta, preciso que nos atenhamos s
ddivas que nos deu: a razo, o amor-prprio, a benevolncia para com a
nossa espcie, as carncias, as paixes, todos os meios pelos quais
estabelecemos a sociedade.
Muita gente estar prestes a dizer-me: "Caso meu bem-estar esteja em
desorganizar vossa sociedade, em matar, roubar, caluniar, acaso no
deveria eu ser detido? Acaso poderia abandonar-me sem escrpulos a
todas as minhas paixes?" Nada tenho a dizer a essa gente seno que
provavelmente ser enforcada, assim como mandarei matar os lobos que
quiserem roubar minhas ovelhas. As leis foram feitas precisamente
para tal gente, como as telhas foram inventadas contra o granizo e
a chuva.
No tocante aos prncipes, que tm a fora nas mos e que abusam dela
para desolar o mundo; que enviam uma parte dos homens morte e
reduzem a outra misria, o defeito est nos homens que sofrem esses
estragos abominveis, frequentem ente chegando mesmo a honr-los com
o nome de virtude. S devem culpar a si mesmos pelas ms leis que
fizeram, ou pela pouca coragem para exigir a execuo das boas.
Todos os prncipes que tanto mal fizeram aos homens so os primeiros
a gritar que Deus deu as regras do bem e do mal. No h um desses
flagelos da terra que no faa atos solenes de religio, mas no vejo
que se ganhe muito tendo tais regras. uma infelicidade ligada
condio humana que, malgrado todo nosso desejo de autoconservao, nos
destruamos mutuamente com furor e com loucura. Quase todos os
animais comem-se uns aos outros, e na espcie humana os machos se
exterminam pela guerra. Parece que Deus previu essa calamidade,
fazendo nascer entre ns mais machos do que fmeas. Com efeito, os
povos que parecem ter chegado mais perto dos interesses da
humanidade e que tm registros exatos dos nascimentos e das mortes,
aperceberam-se de que, um pelo outro, nascem todos os anos um doze
avos de machos mais do que de fmeas.
Ser muito razovel notar como todos esses assassinatos e banditismos
so funestos sociedade e sem nenhum interesse para a Divindade. Deus
colocou os homens e os animais sobre a terra, deixando-lhes a
tarefa de conduzirem-se o melhor possvel. Infeliz a mosca que cair
na teia da aranha; infeliz o touro que for atacado por um leo, e
infelizes os carneiros que forem encontrados pelos lobos! Porm, se
um carneiro dissesse a um lobo: "Faltas ao bem moral, Deus te
punir", o lobo lhe responderia: "Fao meu bem fsico, e parece que
Deus no se preocupa muito de que eu te coma ou no". O melhor que o
carneiro poderia fazer seria no se afastar do pastor e do co,
capazes de defend-lo.
Prouvera aos cus, que um Ser Supremo nos tivesse dado leis e
proposto penas e recompensas! Que nos tivesse dito: "Isto vcio em
si, isto virtude em si". Mas estamos to longe de possuir as regras
do bem e do mal que, de todos aqueles que ousaram dar leis aos
homens da parte de Deus, no houve um que tenha dado a dcima milsima
parte das regras de que precisamos na conduta da vida.
Se algum inferir disso tudo que s resta abandonar-se sem reservas a
todos os furores dos seus desejos desenfreados, e que, no havendo
nem vcio nem virtude em si, possa fazer tudo impunemente, primeiro
esse homem precisar verificar se possui um exrcito de cem mil
soldados bem afeioados ao seu servio; ainda assim arriscar-se-
muito declarando-se inimigo do gnero humano. Mas se tal homem for
somente um simples particular, por pouca razo que tenha, ver que
escolheu um partido mau e que ser punido infalivelmente, seja por
meio dos castigos, to sabiamente inventados pelos homens contra os
inimigos da sociedade, seja to somente pelo temor do castigo,
suplcio bastante cruel em si mesmo. Ver que a vida daqueles que
desafiam as leis geralmente a mais miservel. Moralmente impossvel
que um homem perverso no seja reconhecido, e to logo seja somente
suspeitado, perceber que objeto de desprezo e de horror. Ora, Deus
dotou-nos sabiamente de um orgulho incapaz de suportar que os
outros homens nos odeiem e nos desprezem. Ser desprezado por
aqueles com quem se vive coisa que ningum pde e jamais poder
suportar. Talvez seja esse o maior freio que a natureza tenha posto
nas injustias dos homens. Foi pelo temor mtuo que Deus julgou de
bom alvitre vincul-los, Assim, tod
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