WELSON HAVERTON LASSALI RODRIGUES
A GUILHOTINA DE HUME SOB UMA PERSPECTIVA ONTOLGICA DO
FENMENO NORMATIVO. A DECISO COMO VERDADEIRO PODER-SER
DO DIREITO.
Dissertao de Mestrado
Orientador: Professor Associado Ari Marcelo Solon
FACULDADE DE DIREITO
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
SO PAULO-SP
2016
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WELSON HAVERTON LASSALI RODRIGUES
A GUILHOTINA DE HUME SOB UMA PERSPECTIVA ONTOLGICA DO
FENMENO NORMATIVO. A DECISO COMO VERDADEIRO PODER-SER
DO DIREITO.
Dissertao apresentada Banca Examinadora do Programa de Ps-Graduao
em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, como
exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito, na rea de
concentrao de Filosofia e Teoria Geral do Direito, sob a orientao do
Professor Associado Ari Marcelo Solon.
Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo
So Paulo-SP
2016
3
Catalogao da Publicao
Servio de Documentao Jurdica
Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo
RODRIGUES, Welson H. Lassali. A Guilhotina de Hume sob uma perspectiva ontolgica do fenmeno normativo. A deciso como verdadeiro poder-ser do direito. / Welson H. Lassali Rodrigues; Orientador: Professor Ari Marcelo Solon So Paulo, 2016. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, 2016. Palavras-chave: filosofia do direito Guilhotina de Hume fenomenologia - ontologia positivismo jurdico crtica - lgica modal - possibilidade existencial verdade deciso
4
AGRADECIMENTOS
minha querida me que, com todo seu incontrolvel amor e desmedida dedicao, me
ensinou que a superao da existncia sempre possvel.
Ao Professor Ari Marcelo Solon, por todo seu conhecimento, carinho e companheirismo,
fundamentais para a construo desta Dissertao, e cuja sapincia sempre foi e continua
sendo causa de orgulho e admirao a todos os seus alunos e colegas.
Ao Professor Alysson Mascaro, que desde a Graduao me fez timas sugestes e
recomendaes.
Professora Jeannette Maman e ao Professor Celso Lafer, com quem tive o prazer de
estudar durante a Graduao, e a quem devo muito por terem consolidado meu amor
filosofia.
Aos meus amigos, s minhas amigas e aos meus familiares, pelos quais apreendi o que este
ser teimoso, complicado e extremamente encantador chamado ser-com.
5
RESUMO
Pode-se afirmar que a Guilhotina de Hume diz respeito a um conjunto de discusses
filosficas acerca da primazia (enquanto ) do ser (Sein) ou do dever-ser (Sollen)
ao se fundamentar enunciados de carter normativo (e, consequentemente, sua validade e
aplicao).
O foco deste trabalho analisar a Guilhotina de Hume sob a perspectiva da ontologia
fenomenolgica (existencial), em que a dicotomia entre dever-ser e ser ser redirecionada,
em funo especificamente da anlise tica e jurdica que ser concluda, para a dicotomia
necessidade/possibilidade, tal como proposta pela prpria tradio filosfica ao tratar da
anlise das modalidades (ser-real/realidade, ser-possvel/possibilidade e ser-
necessrio/necessidade).
Inicialmente ser mantido que as discusses em torno do dever-ser encontram-se
usualmente imbudas de uma narrativa totalmente dependente do ser-necessrio, que na
verdade no poderia ser usada para aqueles seres que podem ser diferentes do que so (os
). Ao final ser considerado como fundamento originrio (Ur-sprug Ab-
grund) do ser-jurdico o poder-ser existencial (liberdade), revelado que atravs de decises,
dramticas e quotidianas, que no se restringem s decises de carter tcnico-sacerdotais.
6
ABSTRACT
One might put forward that the Humes Guillotine relates to a set of philosophical
discussions about the primacy (as ) either of the being (Sein) or of the ought-to
(Sollen) in order to ground normative propositions (and, eventually, their validity and
enforcement).
This work focuses on the analysis of the Humes Guillotine under the perspective of the
phenomenological (existential) ontology, in which the dichotomy between the ought-to and
the being will be redirected, specifically in light of the ethical and juridical analysis that will
be carried out, to the dichotomy necessity/possibility, such as proposed by the philosophical
tradition on examining the modalities (being-real/reality, being-possible/possibility and
being-necessary/necessity).
At the beginning it will be maintained that the discussions over the ought-to are usually
embedded with a narrative totally dependent on the being-necessary, which in fact could not
be applied to those beings that can be different from what they are (the ). In
the end, the existential may-be (freedom) will be considered as the original ground (Ur-
sprug Ab-grund) of the being-legal, as reveled through dramatic and everyday decisions,
which are not restricted to technical and sacerdotal ones.
7
SUMRIO
Pgina
CAPTULO 1. INTRODUO...................................................................... 09
1.1. Apresentao geral do tema..................................................... 09
1.2. Metodologia............................................................................. 12
CAPTULO 2. NORMATIVISMO JUSPOSITIVISTA.............................. 14
2.1. O fanatismo em torno do juspositivismo................................. 14
2.2. O juspositivismo histrico e seus elementos informadores...... 16
2.3. Rachaduras no edifcio juspositivista....................................... 26
2.4. Elementos (in)formadores bsicos de uma norma (jurdica)... 29
2.5. Apelo juspositivista.................................................................. 35
CAPTULO 3. (DEVER-)SER, NECESSIDADE E POSSIBILIDADE...... 40
3.1. Norma: do dever-ser para o poder-ser....................................... 40
3.2. O ser histrico.......................................................................... 43
3.3. O ser e a necessidade................................................................ 48
3.3.1. Rufar mtico do ser-necessrio................................................. 48
3.3.2. Narrativas e angstias............................................................... 51
3.3.3. O ser-necessrio em Aristteles............................................... 61
3.3.4. O ser-necessrio no mbito do ser-jurdico.............................. 65
3.3.5. O fraco necessitante (prtico) do ser-necessrio....................... 76
CAPTULO 4. O PODER-SER........................................................................ 81
4.1. A volta do ser-efmero ( ).......................................... 81
4.2. A possibilidade enquanto ser-potncia....................................... 90
4.3. Sntese histrica da lgica modal e a possibilidade meramente
modal.........................................................................................
98
4.3.1. A lgica modal de Gerhard Schurz............................................ 110
CAPTULO 5. A POSSIBILIDADE EXISTENCIAL................................... 117
5.1. Confronto entre o ser-possvel e a realidade (ser-real)............... 117
5.1.1. Aristteles e Heidegger (confluncias)....................................... 123
8
5.2. O fundamento do ser-jurdico o poder-ser existencial
(decisional).................................................................................
140
CAPTULO 6. CONSIDERAES FINAIS.................................................. 152
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 158
9
CAPTULO 1. INTRODUO
1.1. Apresentao geral do tema
A presente Dissertao focar sua anlise na resistncia filosfico-existencial que
entendemos existir entre o mundo do ser e o mundo do dever-ser, consubstanciada nas
discusses em torno daquilo que a tradio filosfica cunhou como sendo a Guilhotina de
Hume.
Referida anlise ser inclusive construda mediante uma tentativa de superao da
dicotomia usualmente levada em considerao quando se tenciona discutir a Guilhotina de
Hume (qual seja, ser vs. dever-ser), pela qual apresentaremos uma alternativa lastreada em
uma anlise modal e ontolgica do tema.
Grosso modo, pretendemos empreender uma anlise ontolgico-existencial das
principais discusses jusfilosficas relativas Guilhotina de Hume, que poderamos epilogar
como um confronto narrativo pela primazia seja do dever-ser (Sollen) seja do ser (Sein) como
fundamento ltimo do direito, o qual, como argumentaremos ao longo desta Dissertao, de
fato reside na ideia de possibilidade existencial (poder-ser jurdico), ontologicamente
constitutiva de todo ser-humano.
Muito embora a teoria de David Hume no seja o foco de nossa anlise (uma
ressalva que se faz desde j importante para impedir que o leitor seja encaminhado para uma
leitura distorcida do texto abaixo), a questo-tema desta Dissertao foi por ele
tangencialmente considerada no ltimo pargrafo da seo 1 da parte 1 do livro 3 do seu A
Treatise of Human Nature1.
Com efeito, no referido texto David Hume assevera que:
In every system of morality, which I have hitherto met with, I have always
remarkd, that the author proceeds for some time in the ordinary way of reasoning,
and establishes the being of a God, or makes observations concerning human
1 HUME, David. A Treatise of Human Nature. Oxford: Oxford University Press, 2009.
10
affairs; when of a sudden I am surprizd to find, that instead of the usual
copulations of propositions, is, and is not, I meet with no proposition that is not
connected with an ought, or an ought not. This change is imperceptible; but is,
however, of the last consequence. For as this ought, or ought not, expresses some
new relation or affirmation, tis necessary that it shoud be observd and explaind;
and at the same time that a reason shoud be given, for what seems altogether
inconceivable, how this new relation can be a deduction from others, which are
entirely different from it. But as authors do not commonly use this precaution, I
shall presume to recommend it to the reader; and am perswaded, that this small
attention woud subvert all the vulgar systems of morality, and let us see, that the
distinction of vice and virtue is not founded merely on the relations of objects, nor
is perceivd by reason. (HUME, 2009, p. 302).
Cumpre assinalarmos que outros filsofos que analisaram o fenmeno tico-
jurdico notaram igualmente que h algo de incongruente ou inadequado entre os enunciados
ditos normativos, pelos quais se quer significar que algo deve ser ou acontecer,
especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira2, e os enunciados
descritivos, os quais dialogam com o que . A incongruncia ou inadequao torna-se ainda
mais patente quando se tenciona justificar um tipo de enunciado (normativo ou descritivo)
pelo outro.
Ainda quanto ao dever-ser, ser que sua construo terica no passaria de
uma maneira que os juristas encontraram para salvar os fenmenos3, os quais situam-se
exclusivamente no mundo do ser e que, de fato, no dialogam com a normatividade? Ser
mesmo, portanto, necessrio focarmos no normativo para apreender ontologicamente o
fenmeno jurdico4?
2 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Traduo de Joo Baptista Machado. 6 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 5. 3 Este termo ( ) utilizado (muitas vezes metaforicamente - como no caso presente) para designar as tentativas ps-platnicas de explicar o movimento dos corpos celestes, especificamente no que toca aos planetas que nos so prximos. A explicao salvadora, a qual resultaria do desafio cosmolgico lanado por Plato a explicao matemtica no poderia dar trajetria dos planetas outro formato que no o de uma circunferncia, visto que esta era a forma da perfeio ao invs de tentar observar o que acontecia no mundo real para depois, sim, formular qualquer hiptese de trabalho especulativo, deu por certa a configurao do movimento celestial (em crculos concntricos perfeitos) e tentou coadunar as ulteriores observaes e medies astronmicas a este dogma, ainda que debalde (j que os planetas efetiva e existencialmente movimentam-se em elipses, como matematicamente demonstrado por Johannes Kepler). Para um melhor detalhamento, cf. KOESTLER, Arthur. Os sonmbulos: histria das concepes do homem sobre o universo. Traduo de Alberto Denis. So Paulo: IBRASA, 1961. 4 Nos dizeres do Professor Ari Marcelo Solon, Ser ou Dever-ser, eis a questo. (SOLON, Ari Marcelo. Dever jurdico e teoria realista do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 14).
11
Neste cenrio, o debate jusfilosfico em volta da Guilhotina de Hume tem
especial contorno pois lida com questes deveras seminais e originrias5 decorrentes da
anlise do fenmeno jurdico. Ademais, no se trata de um debate eminentemente
contemporneo, sendo possvel auscult-lo j em Plato que, no famoso dilogo Grgias,
declara por meio de Clicles que:
Convention and nature are generally at variance with one another: (...). When
Polus was speaking of the conventionally dishonourable, you [Scrates] assailed
him from the point of view of nature; for by the rule of nature, to suffer injustice
is the greater disgrace because the greater evil; but conventionally, to do evil is the
more disgraceful. (...) The reason, as I conceive, is that the makers of laws are the
majority who are weak; and they make laws and distribute praises and censures
with a view to themselves and to their own interests; (...) perhaps, according to
that artificial law, which we invent and impose upon our fellows, of whom we take
the best and strongest from their youth upwards, and tame them like young
lions,charming them with the sound of the voice, and saying to them, that with
equality they must be content, and that the equal is the honourable and the just.6
Em suma, como salientado por Gerard Schurz em sua obra acerca da
Guilhotina de Hume7:
5 Sobre o alcance, uso e implicaes da expresso originrio/a ao longo desta, trazemos um sinttico, embora elucidativo, trecho da explicao apresentada pelos tradutores da obra Der Ursprung des Kunstwerks, escrita por Martin Heidegger e usualmente traduzida para nossa lngua como A origem da obra de arte, para sua preferncia em traduzir a palavra alem Ursprung como originrio ao invs de origem (sendo que utilizaremos bastante esta ideia ao longo desta Dissertao): Em portugus temos como possibilidade de traduo as palavras origem e originrio. Ambas vm do verbo latino oriri, que significa levantar. Embora tenham o mesmo radical, seu significado bem diferente. Origem diz uma provenincia marcada por um comeo e uma causa identificvel, inscrevendo-se, portanto no tempo interpretado linear e historiograficamente. Metafisicamente o comeo e a causa foram identificados com a essncia metafsica. J originrio diz algo bem diferente, pois foge a uma interpretao metafsica. No se identifica nem com comeo nem com causa enquanto essncia. Por isso, outra a compreenso do tempo. um tempo potico-ontolgico que consiste em estar sempre principiando e constituindo realidade. Ele no provm de nenhuma essncia essencialista, mas de uma Essncia potico-ontolgica, que consiste em estar sempre principiando (anfangen) enquanto acontecimento apropriante (Ereignis). Ele sem fundamento, Ab-grund, abissal, misterioso. nesse sentido que o alemo diz Ur-sprung: o salto-originrio, primordial. Ele no diz, portanto, nenhuma essncia essencialista (metafsica). puro agir, acontecer. (HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Traduo de Idalina Azevedo e Manuel Antnio de Castro. - So Paulo: Edies 70, 2010, p. 226). 6 PLATO. Grgias. - Traduo de Benjamin Jowett. Disponvel em: . Pgina acessada pela ltima vez em 10/01/2016. 7 SCHURZ, Gehard. The is-ought problem: an investigation in philosophic logic. Dordrecht: Kluwer, 1997.
12
Humes argument has lost nothing of its importance in present time and
probably will never do so. For on the ground of our moral attitudes there is a
thicket of intuitions about what is good and what is bad, intuitions which stem
from what we have learned throughout our childhood and which usually enter our
moral reasoning in an unreflective way. We are easily led to allow certain deep
but nevertheless basically subjective intuitions to turn a seemingly factual claim
into a normative or valuative assertion, without our taking notice of it. Often, this
lack of reflection on their own valuations leads people to a dogmatic attitude,
because they mistakenly think of their own moral position as based on facts and
thus as being unrefutable, and so they rejecting contradicting positions as
obviously irrational. This leads, then, to debates about moral affair which are
driven by blind engagement and fanatism, instead of mutual understanding and
rational discourse. (SCHURZ, 1997, p. 2, grifos nossos).
Afinal:
[], the question whether or not the is-ought-thesis is true is practically as well as
theoretically highly important. The answer one gives to it is decisive for the basic
metaethical question how norms and values can, and how they cannot, be justified.
This, in turn, is a crossroads for the construction of divergent ethical systems, e.g.
for the decision between modern naturalistic and nonnaturalistic positions in
ethics. Moreover, it plays a crucial role in juridical, political and social sciences.
(SCHURZ, 1997, p. 7)
E mais, seria o debate entre ser e dever-ser o nico caminho para de fato
alcanarmos o fundamento originrio do fenmeno jurdico? No poderamos, qui, super-
lo?
1.2. Metodologia
No demais ressaltarmos que durante a pesquisa e elaborao desta Dissertao
utilizamos o mtodo usualmente denominado de fenomenolgico, sob o vis ontolgico-
existencial, construdo por Martin Heidegger a partir de sua idiossincrtica leitura acerca da
sexta investigao lgica feita Edmund Husserl em suas Investigaes Lgicas, como
mtodo de abordagem a ser utilizado durante a anlise que pretendemos dar discusso
sobre a Guilhotina de Hume, tendo em vista sempre o fenmeno jurdico.
13
Heidegger fez questo de assinalar que sua investigao ontolgica seria conduzida
fenomenologicamente: no no sentido de que ele estaria prescrevendo um ponto de vista
ou uma corrente a ser professada, uma vez que enquanto se compreender a si mesma, a
fenomenologia no e no pode ser nem uma coisa nem outra. A expresso fenomenologia
significa, antes de tudo, um conceito de mtodo.8
Mtodo este que, dentro da linha investigativa ora proposta, almeja a estudar os
alicerces jusfilosficos (e, portanto, originrios e abissais) do fenmeno jurdico, aquilo
que o ser-jurdico.
Neste sentido:
[...] a expresso grega , a que remonta o termo fenmeno, deriva do
verbo . significa: mostrar-se e, por isso diz o que se mostra,
o que se revela. (...) , os fenmenos, constituem, pois, a totalidade
do que est luz do dia ou se pode pr luz, o que os gregos identificavam,
algumas vezes, simplesmente com (os entes), a totalidade de tudo que .
(...) [sendo que] o ente pode-se mostrar por si mesmo de vrias maneiras, segundo
sua via e modo de acesso. H at a possibilidade de o ente mostrar-se como aquilo
que, em si mesmo, ele no .9
Com relao obra heideggeriana, salientamos que nossa anlise restou focada em
sua magnum opus (Ser e tempo), sendo que relegamos para um momento posterior a anlise
de seus comentrios feitos posteriormente suposta reviravolta (Kehre).
Por fim, com relao s referncias e citaes feitas ao longo desta Dissertao,
utilizamos a padronizao adotada pela Associao Brasileira de Normas Tcnicas (ABNT),
com especial ateno NBR 6023, NBR 10520 e NBR 1472410.
8 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. - Traduo de Marcia S Cavalcante Schuback. 6 ed. Petrpolis/RJ: Vozes; Bragana Paulista/SP: Editora Universitria So Francisco, 2012, p. 66. 9 HEIDEGGER, 2012, p. 67. 10 Para um melhor detalhamento, cf. CALDAS, Camilo Onoda et al. Manual de metodologia do direito: estudo e pesquisa. So Paulo: Quartier Latin, 2010.
14
CAPTULO 2. NORMATIVISMO JUSPOSITIVISTA
2.1. O fanatismo em torno do juspositivismo
Arthur Koestler, autor e jornalista hngaro-britnico, certa vez escreveu que todos
os mitos costumam crescer tal como ocorre com os cristais (KOESTLER, 1961, p. 9).
Contudo, para que possam crescer, haveria a necessidade de um ncleo adequado (Id.,
Ibid.) para tanto. E este ncleo adequado seria necessrio pois as mediocridades e as manias
no possuem fora geradora de mitos; podem criar uma determinada moda, mas esta no
tarda em sumir-se. (Id., Ibid.).
Se existe um corpo mitolgico que h tempos manifesta-se com recorrncia no
direito ocidental e na sua respectiva jusfilosofia, encontrando at hoje franca aceitao por
parte de muitos de seus tericos (e da ampla maioria de seus prticos) a fbula de que ele,
o direito, em sua essencialidade mais prpria, advm quase que unicamente do estado
contemporneo, enquanto manifestao de poder legtimo, podendo o seu ncleo ser
buscado na ideia mesma de norma jurdica.
O direito enquanto norma (ou at mesmo a Norma11, para os mais idlatras). O que,
at quando e como deve ser, segundo a lei, o judicirio, a moral e os bons costumes. O que
se encontra proibido, conforme as garantias constitucionais que informam o dito estado
democrtico de direito. A hierarquia legal e como superar seus eventuais conflitos
lingusticos (se que conflitos existem, dada a perfeio sistmica do direito, que tantos
veneram).
11 Por uma questo at mesmo metodolgica (visando a limitar eventuais processos de sujeiticizao, sacralizao e pessoalizao de nomes, definies, ideais e entes em geral), restringiremos ao mximo o uso de substantivos iniciados com letra maiscula ao longo deste texto, e faremos exceo apenas a: (i) eventuais lexemas substantivados de origem germnica, dada sua prpria gramtica; (ii) nomes prprios de qualquer espcie -- incluindo antroponmicos, topnimos, cognomes, patronmicos, designaes de comunidades religiosas e polticas, entidades mitolgico-narrativas e astronmicas; (iii) nomes de eras histricas e pocas notveis; (iv) nomes dos pontos cardeais, quando designam uma regio; (v) nomes de reparties, agremiaes e estabelecimentos em geral; (vi) nomes de fatos histricos e atos solenes; (vii) nomes de escolas de qualquer espcie ou grau de ensino; (viii) eventuais nomes, pronomes ou expresses de tratamento ou reverncia; e (ix) ttulos de livros, revistas e publicaes em geral. Para um maior detalhamento de todos os possveis usos da letra maiscula em nosso vernculo, cf. BECHARA, Evanildo. Moderna gramtica portuguesa. 37 ed. rev., ampl. e atual. conforme o novo Acordo Ortogrfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 103-104.
15
O que esperar do direito e o que devemos legalmente fazer, sempre segundo a
norma, seja ela legiferada, judiciria, costumeira, imposta, meramente quista pelo soberano,
reconhecida pelo sdito, contratada, magna ou, at mesmo, apenas hipottico-
intuda/pressuposta para tentar validar e legitimar todo o sistema aprioristicamente, como
Kelsen tencionou fazer da sua formalista Grundnorm.
Busca-se, enfim, aquilo que deve ser, necessariamente, seja por imposio do
direito estatal, seja pela existncia de uma justia atemporal e, muitas vezes, sobre-humana,
que funcionaria como um farol objetivador para a conduta humana em qualquer lugar do
mundo (ainda que usualmente limitado ao Ocidente, preferencialmente cristo).
No so poucas as vezes em que os estudiosos do fenmeno jurdico referem-se
(j-dada-como-certa) existncia das normas jurdicas e seus efeitos (sejam sistmicos,
gnosiolgicos, punitivos, valorativos, sociais ou meramente educativos) utilizando um tom
de quase-sacralidade ao mencionarem o normativo legal.
Ao longo desta Dissertao, pretendemos lanar mo e discutir outros elementos,
ainda que provisrios e filosoficamente modestos, para que possamos considerar o direito
alm de um inspido (revolucionrio-reacionrio-neutro-positivo-reativo-etc., a tonalidade
muda de acordo com a narrativa vivida/escolhida) aglomerado de normas jurdicas.
Referidos elementos, de fato, sero buscados mediante uma superao da usual dicotomia
existente ao se tratar da Guilhotina de Hume (ser vs. dever-ser).
Com efeito, sob nosso ponto de vista uma abordagem meramente legalista-
idealizada em contraste a uma viso limitada ao fatual parece-nos que na realidade
empobrece a discusso, correndo-se inclusive o risco de desnatur-la na medida em que
acaba tomando por certo, de um jeito ou de outro, um conceito que, como esperamos
argumentar com persuaso mnima durante o texto, mostra-se de fato um tanto quanto
obscuro: a norma; o dever-ser; o Sollen precipuamente de cunho estatal.
Como pontuado pelo Professor Alysson Mascaro12:
12 MASCARO, Alysson Leandro. Introduo ao estudo do direito. - 4 ed. So Paulo: Atlas, 2013.
16
Pela tradio do pensamento jurdico contemporneo juspositivista, na norma
jurdica se encerra o elemento basilar da cincia do direito. Acostumado frentica
vida prtica nos fruns e na elaborao de negcios jurdicos, o jurista, para tais
afazeres, identifica imediatamente a questo do direito quilo que a norma jurdica
tratar. Para ele, sim, obviamente o direito revela-se pela norma: o direito , na
verdade, um conjunto delas. Diz-se, com orgulho, que a cincia do direito no se
preocupa em querer dizer quais so essas normas, no quer falar dos seus
contedos, mas quer dizer sim que, sempre, o direito ser composto por normas.
Se a mdia dos operadores quase nunca pe em dvida a sua certeza de que o
direito se resume a um conjunto de normas, preciso avanar e compreender
que o direito maior que a sua normatividade. (MASCARO, 2013, p. 65, grifos
nossos)
Todavia, sugerimos de incio que nos embrenhemos, ainda que minimamente, nos
elementos informadores do juspositivismo para que, de seus pontos tradicionalmente mais
idiossincrticos, possamos observar e discutir as razes tericas e prticas de que essa
corrente de pensamento se utilizou para fincar sua verdade na filosofia e na teoria geral do
direito, a fim de verificarmos se haveria outras alternativas para encaminharmos o debate
sobre o fenmeno jurdico.
2.2. O juspositivismo histrico e seus elementos informadores
No h sequer espao nesta Dissertao para elaborarmos uma antologia, seja ela
gentica ou estrutural, dos principais pensadores e teorias juspositivistas, sob pena mesmo
de escaparmos das principais questes que ainda devemos abordar.
De qualquer maneira, entendemos que uma brevssima excurso ao originrio (Ur-
sprung) do juspositivismo histrico merece ser repisada.
Tal como ocorre na grande maioria das vezes em que se arrisca tracejar o iter
historicamente percorrido pelo Ocidente para alcanar determinado arcabouo conceitual,
argumentativamente possvel encontrarmos na Grcia Antiga13 a introduo no discurso
13 [] a nossa histria na sua mais profunda unidade [] comea com a apario dos gregos. [...] Comeo no quer dizer aqui incio temporal apenas, mas ainda , origem ou fonte espiritual, a que sempre, seja qual for o grau de desenvolvimento, se tem de regressar para encontrar orientao. esse o motivo por que, no decurso da histria, voltamos constantemente Grcia. (JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a
17
filosfico acerca dos efeitos e legitimao da lei convencionalmente adotada pelos seres
humanos ()14, o que ela seria e de onde originariamente saltaria sua fora dentro das
narrativas comportamentais que lhe so prprias.
Alm, por exemplo, do discurso j mencionado de Clicles no famoso dilogo
platnico Grgias, em Herclito mesmo tambm j podemos pr-escutar a Hobbes, ainda
que um longnquo farfalhar causado pela mais leve brisa, quando nos fragmentos abaixo o
Efsio declara expressamente que as cidades gregas () so fundadas nas leis humanas,
convencional e arbitrariamente formuladas pelos homens (ainda que hauridas de uma lei
divina), sendo necessrio que o povo fosse arregimentado para lutar pela lei como se luta
para salvaguardar as muralhas de sua prpria cidade.
Tal como transcrita na obra do autor Charles Kahn15:
Fragmento 114 (Diels-Kranz) / 23a (Marcovich)
, .
. . . .
.
Os que falam com inteligncia devem apoiar-se no que comum a todos, assim
como uma cidade se apoia na sua lei, e ainda mais firmemente.
Pois todas as leis humanas nutrem-se de uma s divina. Esta prevalece
segundo a sua vontade e basta para todos e ainda sobra. (KAHN, 2009, p. 70,
grifos nossos).
Fragmento 44 (Diels-Kranz) / 104 (Marcovich)
.
O povo deve lutar pela lei como luta pelas muralhas da cidade. (Ibid., p. 84)
formao do homem grego. Traduo de Artur M. Parreira. 6 ed. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 3) 14 The intrusion of nomos into philosophical discourse in the fifth century followed upon the shift of the notion of nature (physis) from the physical to the ethical realm. This may have been a result of medical influence [], but can be seen as well in the ethical coloring of the concept of kosmos. From the other side there was an increasing understanding of the purely arbitrary and relative nature of nomos []. PETER, Francis Edwards. Greek philosophical terms: a historical lexicon. Nova York, EUA: New York University Press, 1967, p. 131. 15 KAHN, Charles H. A arte e o pensamento de Herclito: uma edio dos fragmentos com traduo e comentrio. Traduo de lcio de Gusmo Verosa Filho. So Paulo: Paulus, 2009.
18
Especificamente no que se refere ao fragmento 44 (DK), acima transcrito, no to
difcil assim ouvir um principiar dos rufos dos tambores juspositivistas, inclusive aqueles de
cunho coacionista. Usando este diapaso como rgua, no soaria de fato muito bizarro se
simultaneamente ao Efsio recitssemos um dos mais famosos juspositivistas, von Ihering,
o qual de pronto inicia uma de suas obras mais famosas16 afirmando, em tom um tanto
wagneriano:
O objetivo do direito a paz, a luta o meio de consegui-la. (...) A vida do direito
a luta, a luta de povos, de governos, de classes, de indivduos.
Todo o direito do mundo foi assim conquistado, todo ordenamento jurdico que se
lhe contraps teve de ser eliminado e todo direito, assim como o direito de um
povo ou o de um indivduo, teve de ser conquistado com luta.
O direito no mero pensamento, mas sim fora viva. Por isso, a Justia segura,
numa das mos, a balana, com a qual pesa o direito, e na outra a espada, com a
qual o defende. A espada sem a balana a fora bruta, a balana sem a espada
a fraqueza do direito. (IHERING, 2001, p. 27)
Dadas as caractersticas que lhe so mais afeitas, entendemos todavia que, em
comunho com outros autores17, em Thomas Hobbes (1588 - 1679) em quem podemos
buscar a fonte mais originria da qual, trs sculos depois, utilizaram-se os autores
juspositivistas para construo de seu arsenal conceitual.
Em sua obra mais famosa (Leviat)18, Hobbes investe diretamente contra
Aristteles e sua teoria de que o homem seria em sua essncia um zoon politikon (HOBBES,
2012, p. 138), declarando que a necessidade social somente teria sido formada com a
estipulao do contrato social inicial em que os sditos teriam transferido ao soberano o
direito de impor leis e demandar obedincia, havendo anteriormente um estado de puro
individualismo, egosmo, angstia, medo e insegurana.
16 IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. Traduo de Jos Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2 ed. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. 17 Cf. COMPARATO, Fbio Konder. tica: direito, moral e religio no mundo moderno. 2 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 203. 18 HOBBES, Thomas. Leviat, ou matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. Traduo de Rosina DAngina. 2 ed. So Paulo: Martin Claret, 2012.
19
Segundo Hobbes, em um dos excertos filosficos e polticos mais famosos de todos
os tempos, no incio haveria uma situao de desconfiana mtua entre os homens, em
que a astcia e a fora seriam usadas para tentar proteger a si mesmo, durante tempo
suficiente para que nenhum outro poder pudesse amea-lo (HOBBES, op. cit., p. 103).
Assim, enquanto no existisse um poder comum capaz de manter os homens numa atitude
de respeito, temos a condio do que denominamos guerra; uma guerra de todos contra
todos (HOBBES, op. cit., p. 104.).
E j perspirando um mnimo juspositivista, Hobbes conclui que:
Sem a espada, os pactos no passam de palavras sem fora, que no do a mnima
segurana a ningum. Assim, apesar das leis naturais (que cada um respeita
quando tem vontade e quando pode faz-lo com segurana), se no for institudo
um poder considervel para garantir sua segurana, o homem, para proteger-se dos
outros, confiar, e poder legitimamente confiar, apenas em sua prpria fora e
capacidade. (HOBBES, op. cit., p. 139-140).
E, para Hobbes, no h dvida de que o absoluto (e absolutista) poder soberano e
estatal do monarca serviria de garantia de segurana, confiana e certeza para a sociedade e
seus afazeres quotidianos.
Quanto ao juspositivismo em si, na realidade um dos filhos mais clebres do sculo
XIX mas cujas bases conceituais alcanaram, e foram abraadas com efuso, pela grande
maioria dos tericos e dos prticos atuantes no sculo XX (e tambm muitos que ainda hoje
o seguem automatamente), de rigor afirmar que tal corrente de pensamento encontra-se
lastreada em todo o jusracionalismo da Idade Moderna e na escola positivista de pensamento
criada por Augusto Comte (1798-1857).
Entretanto, de maneira concisa podemos dizer que o juspositivismo somente veio a
aflorar e prosperar com: (i) a plena consolidao dos estados nacionais na Europa ocidental
(o que facilitou sobremaneira a identificao do que seria o direito vigente, outorgando-lhe
uma estranha sistematicidade que, at hoje, alguns estudiosos do fenmeno jurdico
necessitam acossar a todo custo); (ii) o efetivo fim das guerras religiosas (Paz de
20
Westphalia); e (iii) a eliminao dos principais benefcios que o clero e a nobreza ainda
tinham e que bloqueavam a ascenso da burguesia19.
O Professor Comparato, com seu famoso rigor e poder de sntese, leciona com
muita propriedade ao afirmar que:
A escola positivista, criada no sculo XIX, procurou transportar para o campo da
tica e da vida social o mesmo rigor de anlise e raciocnio, prprio das cincias
exatas. [...]
A partir de Augusto Comte, o pensamento positivista desenvolveu-se
sucessivamente no campo filosfico em empiriocriticismo, positivismo lgico,
empirismo lgico e, finalmente, no sculo XX, em filosofia analtica e lingustica.
Todas essas correntes de pensamento tm em comum os mesmos princpios
metodolgicos, a saber: 1) o conhecimento humano s pode ter por objeto fatos
apreendidos pela experincia sensvel; 2) fora do mundo dos fatos, a razo s pode
ocupar-se, validamente, de lgica e matemtica. O saber fundado nesses dois
princpios o nico que pode ser considerado cientfico foi denominado por
Comte um saber positivo, por oposio ao falso saber, dito metafsico.
(COMPARATO, 2013, p. 350-351)
Para que no haja qualquer dvida acerca da relao de proximidade e mtuo
suporte terico que foram criados entre o direito juspositivista e a tentativa de se fazer uma
anlise a mais prxima possvel dos princpios informadores da lgica e da matemtica, o
Professor Comparato ainda explica que:
Na busca dessa exatido de raciocnio, os positivistas do direito no podiam
considerar objeto da teoria jurdica as aes humanas, em razo de sua
variabilidade imprevisvel e de sua extrema complexidade. Restavam assim, como
objeto prprio de uma anlise que se pretendia cientfica do direito, unicamente os
textos normativos, considerados sob dois aspectos: na preciso semntica de seus
contedos tcnicos e no encadeamento lgico das proposies. O direito reduzir-
19 Nesta linha, salutar relembrarmos que a regra do precedente, no direito ingls, ou seja, o dever, para os juzes, de respeitar as anteriores decises judiciais sobre o mesmo assunto (stare decisis), s se tornou legalmente obrigatria na primeira metade do sculo XIX, coincidindo com o nascimento da analytical jurisprudence. Na mesma poca, a chamada Escola da Exegese, na Frana, passou a propugnar a interpretao literal dos dispositivos da codificao napolenica. Em ambos os sistemas jurdicos, os valores polticos supremos foram a certeza e a segurana jurdicas, com a exata previsibilidade das decises judiciais, como parmetro invarivel para o desenvolvimento da atividade empresarial. (COMPARATO, op. cit., p. 361-362, grifos nossos)
21
se-ia, inelutavelmente, a puras formas normativas. O contedo poltico,
econmico, religioso etc. deveria ser expurgado da teoria jurdica, a fim de que ela
pudesse pretender a algum rigor cientfico. (COMPARATO, op. cit., p. 352-353)
Em discusses imbudas de pressupostos (jus)positivistas, possvel notarmos uma
quase-religiosa necessidade de se praticar (mesmo quando a pesquisa voltada ao social, ao
intersubjetivo humano) um ato de (cri)ao terica em que o estudioso opera uma
transubstanciao do continuum espao-temporal20 em expresses e teorias e, claro,
justificativas que pretensamente se utilizam do rigor matemtico e cientfico para embasar
suas concluses.
Seus praticantes, que operam no apenas dentre os juristas, parecem carregados de
um Romantismo tardio, como afirmado pelo Professor Nicola Abbagnano em uma obra
publicada na Itlia em meados da dcada de 195021, em que haveria uma necessidade por
teorias ditas puras, infinitas (dado o seu pretenso universalismo), objetivas, absolutas.
Neste sentido:
Per un certo tempo, e per effetto di un tardo Romanticismo, si insistito sulla
purezza della filosofia, cio sulla sua assoluta indipendenza da ogni altro dato o
ricerca, e cos parlato di pensiero puro, di logica pura, ecc. Ma ridotta a questo
stato di purezza, la filosofia perde le sue radici umane, cessa di rispondere a
problemi autentici e diventa pura esercititazione retorica. (ABBAGNANO,
1956, p. 2-3)
Em suma: como o Professor Ari Marcelo Solon exemplifica na sua obra Dever
jurdico e teoria realista do direito, na parte em que exatamente o Professor trata das
(juspositivistas) teorias jurdicas de von Ihering (direito enquanto coao) e Bierling (direito
enquanto reconhecimento):
20 Trata-se o continuum espao-temporal daquela massa amorfa, como referida por Umberto Eco, com respaldo na teoria semitica de Hjelmslev, que significaria todo o exequvel, o dizvel, o pensvel. Segundo o professor italiano, ns usamos signos como expresses para exprimir um contedo, e este contedo recortado e organizado em diferentes formas por diferentes culturas (e lnguas). Sobre o que e por que coisa recortado? Por uma massa amorfa, amorfa antes que a linguagem tenha operado as suas dissecaes, que chamaremos o continuum do contedo, todo o exequvel, o dizvel, o pensvel se quisermos, o horizonte infinito daquilo que , foi e ser, quer por necessidade ou por contingncia. (ECO, Umberto. Kant e o ornitorrinco. Traduo de Ana Thereza B. Vieira Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 51, grifos nossos). 21 ABBAGNANO, Nicola. Possibilit e libert. - Torino: Taylor Torino Editore, 1956.
22
O ponto alto desta teoria [de Ihering] o esvaziamento do conceito de dever de
todo o contedo ideal moral. Direito e moral so relativizados e o dever jurdico
equiparado a uma relao ftica determinada pela coao. [...] Ainda neste rico
final de sculo XIX, prope Bierling, [...], uma concepo normativista,
imperativista e psicologizante do dever jurdico. O conceito de dever j dado
com o conceito de norma jurdica. Todo direito constitui-se de normas.
(SOLON, 2000, p. 53, grifos nossos)
Assim, o estudo do direito, e muitas vezes daquilo com o que a prpria filosofia do
direito deveria em tese ocupar-se para se manter til para a nova sociedade contempornea
(tecnolgica, utilitarista e estatal em seu mago), acaba reduzindo-se : (i) aceitao e
discusso dos cdigos normativos emanados da mquina estatal e das suas decises
(administrativas, legislativas e judicirias), como se fossem os nicos elementos de criao
e propagao do direito; (ii) leitura e exegese dos cdigos e decises autnticas (no sentido
de autorizadas pelo prprio direito), seguindo princpios hermenuticos previstos pela
prpria tecnologia jurdica (que pode sim prestar servios sociedade, desde que no para
sempre petrificados, como situaes modelos irredutveis de verdade jurdico-
comportamental); (iii) discusses tecnolgicas sejam elas acadmicas, jurisprudenciais,
administrativas, etc. - acerca exclusivamente dos textos normativos, sua justificativa
(normativa, na macia maioria dos casos), seu processo legislativo imediato, e sua fora
cogente dentro de um determinado sistema jurdico (mesmo quando o autor pretende fazer
uma anlise mais zettica22 do que dogmtica acerca do tema).
Exemplificando esta antiga (embora ainda hoje pujante) cantilena juspositivista,
Lourival Vilanova, em uma obra que trata da pretensa aplicao da lei da causalidade nas
relaes jurdicas23, chegou mesmo a afirmar que:
22 Prestamos aqui nossa homenagem ao Professor Trcio Sampaio Ferraz Jnior, trazendo lume a diferenciao que ele faz (com base em um texto de Theodor Viehweg publicado em 1969), ao analisar o direito e seus elementos, separadamente caracterizando o enfoque zettico (que visa a perquirir, desintegrar e questionar as opinies eventualmente j formadas, com funo precipuamente especulativa) do enfoque dogmtico, pelo qual o jurista analisar a prpria doutrina do direito enquanto tal, com clara funo diretiva, em que certas dvidas so estancadas e na maioria das vezes, proibidas - com a criao de pontos de partida dogmticos e incontestes). Para uma melhor explicao sobre esta diferenciao, cf. FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao. - 2 ed. So Paulo: Atlas, 1994, p. 39 et seq. 23 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relao no direito. - 4. ed. So Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2000.
23
Na lei da causalidade natural, a relao entre hiptese e consequncia
enunciativa, descritiva. [...] Por isso, a lei causal natural verdadeira, se
confirmada; falsa, se infirmada.
Na lei de causalidade jurdica h sequncias regulares iterativas, cuja expresso
lgica a implicao formal [...]. Mas o sistema jurdico positivo que estatui,
preceitua, preestabelece dentre as possveis hipteses e as possveis
consequncias as relaes que devem ser. O minimum genrico que h nas
espcies obrigatoriedade, proibitividade, permissividade, que tais
modos so modos de dever-ser. So modais especificados de um modal
genrico, o dever-ser. (VILANOVA, 2000, p. 94, grifos nossos)
Para reforar quo presente e arraigado no debate acadmico encontra-se o discurso
juspositivista acerca do fenmeno jurdico (calcado na ideia de norma), no pouco
salientarmos que o grande pensador e jurista italiano Norberto Bobbio enfaticamente
sustenta, j no incio de uma de suas obras mais famosas24, que:
[...] o melhor modo para aproximar-se da experincia jurdica e apreender seus
traos caractersticos considerar o direito como um conjunto de normas, ou
regras de conduta. [...]: a experincia jurdica uma experincia normativa.
(BOBBIO, 2001, p. 23)
Novamente: para o juspositivismo, a ideia de norma, de dever-ser (Sollen), sua
origem estatal e toda sua exegese tecnologicamente construda acabam por dominar, em sua
quase integralidade, o debate sobre o direito.
E quo distante este posicionamento encontra-se dos dizeres de Celso que,
conforme apontado por Ulpiano no Digesto (1, 1, 1, pr.), teria elegantemente (ou com
exatido, diriam os mais rgidos) definido o direito como ars boni et aequi25!
E tal distanciamento no ocorre apenas na jusfilosofia continental europeia.
24 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurdica. Traduo de Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. Bauru, SP: EDIPRO, 2001. 25 Sobre os conceitos de direito objetivo, direito subjetivo, bem comum, equidade e justia no direito romano, cf. ALVES, Jos Carlos Moreira. Direito romano. - 5 ed., vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 91 et seq.
24
A fim de no nos prolongarmos demasiadamente sobre o tema, podemos citar Hart
apenas como um exemplo anglo-saxo de como a ligao entre direito e norma encontra-se
com-sagrada (sic et simpliciter).
Aps iniciar uma de suas obras mais famosas (The concept of law26) atacando o que
ele via como falhas nas teorias juspositivistas de carter coacionista-punitivo (como ocorre
em Austin), Hart afirma que a raiz e origem de tais falhas, em sntese, decorreria do fato de
que:
[...] the elements out of which the theory was constructed, viz., the idea of orders,
obedience, habits, and threats, do not include, and cannot by their combination
yield, the idea of a rule, without which we cannot hope to elucidate even the most
elementary forms of law. (HART, 1998, p. 80, grifos nossos)
E em um post scriptum feito por Hart em 1993, e publicado no ano seguinte, em
que o autor basicamente tencionou rebater as crticas que lhe houveram sido feitas por
Dworkin, ele expressamente afirma que seu intuito ao escrever The concept of law:
[...] was to provide a theory of what law is which is both general and descriptive.
It is general in the sense that it is not tied to any particular legal system or legal
culture, but seeks to give an explanatory and clarifying account of law as a
complex social and political institution with rule-governed (and in that sense
normative) aspect. []. My account is descriptive in that it is morally neutral
and has not justificatory aims: it does not seek to justify or commend on moral or
other grounds the forms and structures which appear in my general account of law,
[]. (HART, 1998, p. 239 et seq., grifos nossos).
quase impossvel no cogitar uma analogia direta com o primeiro captulo da
Reine Rechtslehre kelseniana, em que o autor (j classicamente) afirma que:
A Teoria Pura do Direito uma teoria do Direito positivo do Direito positivo em
geral, no de uma ordem jurdica especial. teoria geral do Direito, no
interpretao de particulares normas jurdicas, nacionais ou internacionais. [...].
26 HART, Herbert Lionel Adolphus. The concept of law. - 3 ed. New York: Oxford University Press, 1998 (reimpresso).
25
De um modo inteiramente acrtico, a jurisprudncia tem-se confundido com a
psicologia e a sociologia, com a tica e a teoria poltica. Esta confuso pode
porventura explicar-se pelo fato de que estas cincias se referirem a objetos que
indubitavelmente tm uma estreita conexo com o Direito. Quando a Teoria Pura
empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, f-lo
no por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexo, mas porque intenta
evitar um sincretismo metodolgico que obscurece a essncia da cincia jurdica
e dilui os limites que lhe so impostos pela natureza do seu objeto.
[...].
Ora, o conhecimento jurdico dirige-se a estas normas que possuem o carter
de normas jurdicas e conferem a determinados fatos o carter de atos
jurdicos (ou antijurdicos). Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste
conhecimento, uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um
sistema de normas que regulam o comportamento humano. (KELSEN, 1998,
p. 1 et seq., grifos nossos).
Enfim, tal como sumarizado pelo Professor Alysson Mascaro em sua obra Filosofia
do direito27, ao tratar das vertentes juspositivistas do pensamento jurdico contemporneo:
A norma, a sentena, o processo legislativo, o ordenamento, a isso se reduzir a
preocupao do pensamento jurdico.
por isso que a filosofia do direito de tipo normativo estatal converte o
pensamento jurdico numa espcie de teoria geral do direito. Tudo o que maior,
mais abrangente e mais amplo do que essa teoria geral das tcnicas do direito
abominado como no jurdico. H uma ojeriza quanto ao pensamento jurdico
que dialogue ou se relacione com a verdade social. Para os pensadores dessa
grande corrente de pensamento, o fenmeno jurdico se limita, por excelncia,
apenas tcnica jurdica. (MASCARO, 2012, p. 320, grifos nossos).
Mas ser mesmo que a anlise da referida normatividade estatal per se capaz de
nos fazer captar o contedo, abrangncia e possibilidades do dito sistema normativo, a ponto
de termos convico de seus limites e em suas ferramentas confiarmos? Ser mesmo que o
conhecimento normativo deste pretenso objeto, o direito, seria capaz de auxiliar a sociedade
como um todo, e no apenas os iniciados, a tomar suas decises em seu dia-a-dia?
27 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. - 2 ed. So Paulo: Atlas, 2012.
26
Seria, enfim, o direito posto o verdadeiro fundamento existencial e comportamental
do fenmeno jurdico?
E mesmo aos iniciados, s novas sacerdotisas e sacerdotes tecnolgicos, ser a
normatividade realmente clara e objetiva, como apregoa a dogmtica, cabendo, quando
muito, uma interpretao de seus termos e abrangncia? E se esta realidade objetiva e
alcanvel no o for, o que nos restaria? O caos?
2.3. Rachaduras no edifcio juspositivista
Parece-nos que muito da fora argumentativa e da intercorrente presena histrica
do juspositivismo vm do aparente sentimento de segurana e certeza que ele arrasta
consigo.
Esta fidcia no normativo inclusive vista como meio de facilitao do processo
decisrio em si (seja no mbito judicial, arbitral, familiar, individual, etc.) pois, a partir de
sua pretensa objetividade e igualdade, as regras estariam claramente mo de qualquer um
que delas dependesse para decidir, em sua quotidianidade, e que delas certamente lanaria
mo inclusive para fazer valer seus direitos, se necessrio.
A dogmtica jurdica, frequentemente entendida como a manjedoura, guardi e
(mormente) atade dos conceitos normativos, que em sua pureza metodolgica tenta
alcanar e professar o correto, o vlido, o jurdico do mundo atravs da anlise das
objetivas e formalmente igualitrias normas estatais, individual ou sistemicamente
consideradas, seria mesmo capaz de individualizar objetivamente o seu objeto? E como ela
auxiliaria os indivduos a tomarem suas decises?
Com base em uma objetiva anlise normativa do fenmeno jurdico, os agentes
econmicos podem, com segurana, tomar suas decises quotidianas? Em outras palavras:
os agentes econmicos tm mesmo acesso e confiam, seja no direito ou em sua
interpretao autntica, termo muitas vezes usado pelos adeptos tradio juspositivista28?
28 Pois, mesmo para o normativista mais ferrenho, no possvel deixar de perceber que h muito mais do que uma nica interpretao que pode ser atribuda a determinada norma, seja l o que isso signifique, em funo mesmo da plurivocidade dos seus termos, do seu alcance prtico e da complexidade das situaes
27
E j a teramos muitas dificuldades para apreenso e soluo do problema, dada a
pletora de foras socioeconmicas e a exuberncia das narrativas
existenciais/comportamentais envolvidas.
Para comear, poderamos perguntar: quem ou o que verdadeiramente a fonte de
onde emana este conjunto de normas (pois, pressupondo que tais normas foram criadas pela
humanidade, e no por uma fora superiora a extramundana, aparentemente no deveria ser
difcil localizar sua nascente)? Qual o seu efetivo fundamento originrio e abissal (Ur-
sprung Ab-grund)29?
Em uma repblica federativa como a nossa, tradicionalmente a dogmtica tenderia
a tratar o Congresso Nacional, rgo editor de atos normativos que em tese atuaria como a
voz majoritria do povo brasileiro, indiretamente reunido em assembleia, como a fonte
ltima do direito, e local em que o caminho que se deve necessariamente seguir traado
por meio das prprias normas que de l emanam.
existencialmente envolvidas. Assim, aceita-se que no apenas o legislativo, mas tambm os tribunais judicirios, administrativos ou arbitrais so fontes de direito medida que criam as tais normas jurdicas. Neste diapaso, Kelsen afirma que a interpretao feita pelo rgo aplicadora do Direito sempre autntica. Ela cria Direito e continua mais a frente, afirmando que [...] autntica, isto , criadora de Direito -o a interpretao feita atravs de um rgo aplicador do Direito ainda quando cria Direito apenas para um caso concreto, quer dizer, quando esse rgo apenas crie uma norma individual ou execute uma sano. (KELSEN, 1998, p. 394). 29 A ttulo de chave de interpretao, sugerimos desde j acomodar o conceito de fundamento (e mais ainda, o fundamento dito abissal) no a partir da ideia de razo suficiente como sustentada por Leibniz (nihil est sine ratione; nada existe sem razo, ou, de outra forma, tudo tem uma razo), mas a partir do conceito helnico (e mais originrio) de (causa, princpio). Tal como afirmado por Heidegger em seu Prefcio 3 edio da obra A essncia do fundamento (Von Wesen des Grudes) (HEIDEGGER, Martin. A essncia do fundamento. Traduo de Artur Moro. Lisboa: Edies 70, 1988), Aristteles resume a sua exposio dos mltiplos significados da palavra comeo [] deste modo: , pois, comum [] a todos os comeos [ ] ser o primeiro a partir do qual [ ] algo ou [ ], ou se torna [ ], ou se conhece [ ]. Assim se realam as variaes do que costumamos chamar fundamento: o fundamento da quididade [Was-seins], do facto-de-ser [Da-seins] e do ser-verdade [Wahr-seins]. Mas, alm disso, procura tambm determinar-se em que que estes fundamentos enquanto tais se acordam. O seu elemento comum [] reside em serem o primeiro a partir donde [ ]... [...] embora haja que duvidar de se a essncia do fundamento se poder encontrar mediante uma caracterizao do que comum s espcies de fundamentos, no deve, no entanto, desconhecer-se a o impulso para um originria clarificao [ursprnglichen Erhellung] do fundamento em geral. (HEIDEGGER, 1988, p. 8-11). E conclui que o verbo [...] no deve aqui tomar-se no sentido estreito e derivado da prova de proposies ntico-teorricas, mas numa simplificao basicamente originria. Por conseguinte, fundamentao significa o mesmo que possibilitao da questo do porqu em geral. Clarificar o carter peculiar, originalmente fundador, do fundamentar significa, pois, elucidar a origem transcendental do porqu como tal. (HEIDEGGER, 1988, p. 95).
28
Com o tempo, entretanto, os prprios juspositivistas admitiram a possibilidade de
uma interpretao autntica, j referida acima, em que se consentiu que o direito fosse
tambm formado a partir das decises tomadas pelos tribunais, atualmente entendidos como
abarcando no apenas os judicirios, mas ainda tambm os arbitrais e os administrativos.
Mas quo discrepantes e contraditrias as decises e, por conseguinte, as normas se
nos apresentam! As mudanas jurisprudenciais, que em tese poderiam ser compreendidas
como fundamentais para superar a prpria rigidez e frieza da norma (dura lex, sed lex), por
vezes acabam prestando desservios dada a mudana imoderada (e muitas vezes
injustificada) do paradigma em uso pelos sacerdotes (ou operadores, como queiram) do
direito.
Imaginemos um exemplo em que um determinado agente econmico tencionava
adquirir certa empresa no Brasil, e que seus consultores verificaram, no curso da due
diligence jurdico-contbil por eles conduzida, que referida empresa poderia ou no ter a
obrigao de contingenciar contabilmente um gigantesco passivo tributrio a depender
exclusivamente do efetivo prazo de decadncia e prescrio da obrigao de pagamento de
Imposto de Renda e Contribuio Social sobre o Lucro Lquido a ser adotado (o que, no
frigir dos ovos, imporia uma queda brutal no preo de aquisio em negociao).
Ainda dentro deste exerccio de conjecturas, podemos imaginar que a referida
empresa no fez, poca competente, o contingenciamento contbil que os consultores do
agente econmico veem agora como necessrio, sendo que a ausncia de tal contingncia no
passivo contbil da empresa por eles vista como a grande red flag para a pretendida
operao de compra da empresa (a depender, ad argumentandum tantum, exclusivamente
do efetivo prazo de decadncia e prescrio do crdito tributrio envolvido). E o
contingenciamento no foi feito exatamente porque, poca da ocorrncia do fato gerador,
foi instruda por seu corpo de advogados para tanto (e pressupomos que havia de fato
fundamento argumentativo para suas concluses).
Ocorre que a opinio dos advogados, passados alguns anos, pode eventualmente
deixar de ser verdadeira em funo de mudanas na jurisprudncia administrativa aplicada
pela Receita Federal, muitas vezes usadas como base exclusiva para os pareceres das
29
empresas focadas em auditoria jurdico-contbil, sem que tenha ocorrido qualquer
modificao legislativa ou mesmo econmica que justificasse a alterao de curso.
Sem contar que cada Delegacia Regional da Receita Federal, em funo at mesmo
das idiossincrasias de cada regio do Brasil, pode inclusive possuir uma interpretao
diferente sobre a matria em questo, tornando mais difcil ainda o aconselhamento jurdico
a ser dado aos agentes econmicos em geral para fundamentar suas decises empresariais,
dada a bvia e patente instabilidade hermenutica vigente.
O exemplo acima visou apenas a ilustrar as dificuldades prticas que podemos
enfrentar ao lidarmos com a pretensa estabilidade que seria prpria e inerente norma
jurdica, mas que aparentemente pode ser alterada de maneira muito mais instvel ao
considerarmos a multiplicidade interpretativa e decisionria mo. Isso se aplicada for!
De qualquer maneira, entendemos que para prosseguirmos precisamos ainda
aprofundar um pouco mais o debate sobre o que seria esta norma jurdica, visto que nos
parece evidente que todo o edifcio juspositivista sobre ela foi erigido, com todos os seus
aclitos e pressupostos.
2.4. Elementos (in)formadores bsicos de uma norma (jurdica)
Todavia, nos parece que sequer temos um mnimo de resposta para uma questo
anterior que vinha inicialmente permeando esta Dissertao: como se definiria uma norma
jurdica, a mnada do juspositivismo, que a este parece conferir sustentculo, propriedade e
estabilidade? Como discriminar seus elementos de maneira clara? O que distingue uma
norma tica de uma religiosa, ou uma norma tica daquelas ditas jurdicas?
Em outras palavras: o que uma norma?
Obviamente seria possvel enumerarmos e discutirmos vrios outros elementos
lingusticos/comunicacionais que frequentemente repetem-se muitas vezes de maneira
maante - ao longo de todos os discursos e narrativas juspositivistas para o fim de tentar
aprofundar o que seria uma norma jurdica. Dentre estes elementos, podemos usar,
novamente a ttulo de simples exemplos:
30
(i) o debate entre validade (em tese, ideal) versus eficcia (em tese, real) da norma,
e como a norma, enquanto esquema de interpretao jurdica (conforme lecionado
por Kelsen30) alcanaria e modificaria o mundo real por ser o que, em tese,
efetivamente faz impor/autorizar/proibir condutas em geral;
(ii) a conceituao do que seria uma obrigao jurdica, e de onde adviria o dever
de cumprimento (seara prpria daqueles que buscam uma justificao para o
jurdico e para a sua normatividade, seja esta esttica quando se tenta dar coeso
interna na aplicao de uma norma isolada -- seja dinmica quando se tenta dar
coeso externa, sistmica, ao panteo jurdico);
(iii) as diferenciaes feitas entre autorizaes/permisses/concesses jurdicas,
recomendaes, proibies de todo gnero, presunes (absolutas e relativas;
processuais ou materiais), etc., que servem basicamente para determinar o que
podemos e o que no podemos fazer, ao serem pretensamente entendidas como o
contedo material das ditas normas jurdicas, o qual determinaria no final das contas
qual caminho prtico a sociedade deveria perseguir;
(iv) at mesmo os discursos envolvendo as prprias ideias de justia e de equidade,
as quais apesar de serem normalmente analisadas como acima ou alm do direito
positivo, constituindo muitas vezes uma verdade ou ajuste, naturais e imutveis,
para contrabalancear o peso da dura lex, acabam muitas vezes sendo analisadas e
debatidas utilizando como elementos informadores aqueles abiscoitados da mesma
sopa juspositivista que a tudo alimenta (e limita) dentro deste tipo de debate, como
o excerto kelseniano a seguir, retirado de sua obra acerca do problema da justia31,
capaz de demonstrar:
O conceito de justia deve ser distinguido do conceito de direito. A norma da
justia indica como deve ser elaborado o direito quanto ao seu contedo, isto ,
30 A norma funciona como esquema de interpretao. Por outras palavras: o juzo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurdico (ou antijurdico) o resultado de uma interpretao especfica, a saber, de uma interpretao normativa. (KELSEN, 1998, p. 4). 31 KELSEN, Hans. O problema da justia. - Traduo de Joo Baptista Machado. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1996.
31
como deve ser elaborado um sistema de norma que regulam a conduta humana,
normas essas postas por atos humanos e que so global e regularmente eficazes
ou seja, o direito positivo. Visto a norma da justia prescrever um determinado
tratamento dos homens, ela visa como j se mostrou ao ato por meio do qual o
direito posto. A justia no pode, portanto, ser identificada com o direito.
(KELSEN, 1996, p. 65, grifos nossos)
Claramente a norma jurdica (ou dever-ser jurdico32) um dos elementos
lingusticos (proposicionais) que sempre acaba por manifestar-se com maior frequncia nos
debates acerca do direito, ainda que sub-repticiamente, pois, como dissemos, aparentemente
ela o que daria o verdadeiro sustentculo abissal e originrio a todo o edifcio conceitual
juspositivista.
Nesta linha, h algumas ilaes que podem ser feitas:
a) pela teoria juspositivista de pensamento, o direito passa a ser encarado como um
conjunto de normas coativas vlidas, havendo uma identificao estrita entre direito
e produo estatal - legislativa/judiciria/administrativa;
b) por outro lado, a norma jurdica seria composta de pelo menos 2 (dois) elementos,
quais sejam:
(i) uma proposio de natureza prtica (no sentido de, a princpio,
estar de algum modo visando a impor/sugerir/chantagear uma
determinada ao para a conduta humana, diferentemente de uma
proposio de cunho descritivo);
(ii) uma sano, isto , uma atividade heteronmica visando a
acoimar aqueles que ousarem no seguir o
comando/imperativo/sugesto/proibio/recomendao embutido
na norma (no caso das sanes punitivas), ou laurear aqueles que
32 Para os fins a que se destina esta Dissertao, de ora em diante usaremos o termo norma como sinnimo de dever-ser (Sollen), ressaltando-se que o conceito de norma no se restringe apenas norma jurdica (h ainda as normas ticas/morais, as religiosas, as costumeiras, e por a vai).
32
satisfizerem os preceitos correspondentes (no caso das sanes
premiais).
Desta feita, entendemos que para o juspositivismo o fenmeno jurdico, em sua
essencialidade, possui de alguma forma um papel lingustico-comunicacional com o fim de
impor/alterar/coordenar a ao humana, e ele encontrar-se-ia em estreita e inexorvel ligao
com a prpria possibilidade de imposio estatal de uma sano em caso de descumprimento
da norma na medida em que a conduta seria juridicamente inadequada. Para tanto, existiria
a norma criada exatamente pela prpria mquina estatal, que a tudo vigiaria, instruiria,
conduziria e, se contestada, puniria (ou premiaria se incentivadora for).
Como afirmado por Kelsen:
O Direito s pode ser distinguido essencialmente da Moral quando [...] se concebe
como uma ordem de coao, isto , como uma ordem normativa que procura obter
uma determinada conduta humana ligando conduta oposta um ato de coero
socialmente organizado, enquanto que a Moral uma ordem social que no estatui
quaisquer sanes desse tipo, [...]. (KELSEN, 1998, p. 71).
Assim, a hiptese tradicionalmente aceita pelo juspositivismo a de que o direito
encontra-se apartado da moral, da religio e da tica no apenas por ser um conjunto de
normas (em tese, a moral, a religio e a tica tambm o seriam), mas dada a heteronomia da
coao/sano, que se torna inclusive parte integrante do prprio conceito de direito (pelo o
que se diz, desde Kant, que a norma jurdica uma esfera exterior do dever, e no interior
como no caso da moral e da tica33, enquanto relao entre a vontade que institui a norma e
o alvo de sua instituio/conduta esperada).
Como possvel notar das discusses acima, sempre h uma estreita ligao nas
anlises juspositivistas entre o ser-jurdico, identificado aprioristicamente em suas normas
(dever-ser), e a linguagem. Mas que tipo de proposio lingustica seria essa sugerida por
von Ihering que, conforme excerto acima, seria um simples pensamento visando ao
prtica, e que nos parece funcionaria como ncleo do fenmeno jurdico? E mais: seria de
33 MASCARO, 2012, p. 223.
33
fato possvel alcanar o efetivo carter ontolgico e constitutivo do direito (ser-jurdico)
mediante proposies lingusticas?
Ademais, linguisticamente, o que distinguiriam as proposies normativas das
proposies no normativas? Haveria dilogo entre elas? Funcionariam as proposies
normativas como esquemas de interpretao acerca do mundo do ser, como gostaria o
primeiro Kelsen (da Reine Rechtslehre), emprestando a qualquer ato humano
individualmente considerado o significado de um ato jurdico (ou antijurdico). (KELSEN,
1998, p. 4)?
Alm do mais, h alguma correspondncia (considerada como referncia
comunicacional, e no como verdade correspondencial) entre as proposies normativas e o
mundo factual? Como se relacionam as proposies normativas com a realidade, aquilo que
se nos apresenta desde-sempre-e-agora em sua instintividade e obviedade imediatas,
desvelando e sendo desvelada em um eterno movimento de (des)cobrimento?
Partamos novamente do genial Kelsen, mas agora a partir do estudioso j
expatriado, que em um livro34 inicialmente publicado em solo norte-americano traz a lume,
com sua consagrada capacidade de sntese, outros elementos que podem auxiliar nossa
construo argumentativa:
Denominamos norma uma regra que determina ou probe certa conduta. O
significado especfico de uma norma expresso pelo conceito de dever-ser. Uma
norma implica que um indivduo deve fazer ou abster-se de fazer algo. Enunciados
que expressam normas so enunciados de dever-ser. Uma conduta ilcita se
corresponde a uma norma jurdica; ilcita se contradiz uma norma jurdica;
ela contradiz uma norma jurdica se est em relao de oposio polar a essa
conduta que lcita. Tambm podemos dizer: um indivduo conduz-se licitamente
se conduzir-se como deve conduzir-se segundo a norma jurdica; ele se conduz
ilicitamente se no se conduzir como deve. O juzo jurdico de valor de que uma
conduta lcita ou ilcita uma assero de uma relao afirmativa ou negativa
entre a conduta e uma norma cuja existncia pressuposta pela pessoa que faz o
juzo. Assim, um juzo jurdico de valor pressupe a existncia de uma norma,
de um dever-ser. O significado desse juzo de valor, consequentemente,
34 KELSEN, Hans. O que justia?: a justia, o direito e a poltica no espelho da cincia. Traduo de Lus Carlos Borges. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2001.
34
depende do significado da assero de que uma norma existe. (KELSEN,
2001, p. 204-205, grifos nossos)
Em um primeiro esforo na linha de tentarmos facilitar o processo de
(des)construo do dever-ser, propomos que do excerto supra transcrito ressaltemos os
seguintes pontos, em apertadssima sntese:
a) primeiro: uma norma seria uma regra, que obrigaria ou proibiria determinada
conduta humana;
b) segundo: normas existem/so/ocorrem/esto no mundo;
c) terceiro: os juzos jurdicos de valor pressuporiam que normas
existem/so/ocorrem/esto no mundo, como se entes ou seres patentemente fossem;
d) quarto: os juzos jurdicos de valor so asseres de uma relao afirmativa ou
negativa entre a conduta humana e uma norma, cuja existncia pressuposta pela
pessoa que faz o juzo;
e) quinto: a mencionada relao afirmativa ou negativa entre conduta humana e
norma jurdica tambm pode ser tratada dentro do binmio correspondncia-
contradio.
Novamente, contudo, temos a impresso de que permanecemos a correr atrs de
nosso prprio encalo, pois, para fins de elucidao teortica, afirmar que uma norma uma
regra o mesmo que declarar que metade de doze equivale a meia dzia.
H outro elemento que Kelsen menciona em sua tentativa de definir uma norma
jurdica que entendemos pode trazer mais luz, cor e tragicidade s discusses nesta
Dissertao travadas: a norma uma regra que ou obriga ou probe determinada conduta.
Seriam ento somente a obrigao e a proibio os elementos formadores do cerne
daquilo que estamos chamando de norma? Obrigar e proibir so assim os nicos meios pelos
quais a (bem-, mal-) dita norma jurdica atua no agir humano? Se normas so regras, parece-
35
nos que normas jurdicas so regras jurdicas. J nos antecipando, os funtores denticos
(ser-obrigado, ser-proibido, ser-autorizado, etc.) seriam, desta maneira, a essncia do
fenmeno conhecido como direito?
2.5. Apelo juspositivista
Esquecendo momentaneamente o fato de o juspositivismo viver de modo
dependente e vinculado a uma mnada mal definida (a norma jurdica), h crticas de cunho
prtico que merecem realce imediatamente, antes de prosseguirmos.
Alm das dificuldades e anfibologias existenciais que muitas vezes so verificadas
quando da pretensa aplicao de uma norma a um caso concreto (que, em tese, apenas criaria
outra norma, de cunho mais individual, por meio de uma interpretao autntica), durante
o sculo XX ficou claro como os sistemas polticos podem redundar em monstros histricos
ao utilizarem um conceito vazio (e, pela sua prpria generalidade, facilmente manipulvel)
como a norma (ou outros de seus aclitos, tambm similarmente vagos e perigosos se usados
como fundamento, como a soberania, a cidadania, o estado, o bem-comum, o absoluto, o
povo, a raa perfeita, etc.) para justificar atos que causaram, e ainda causam, repugnncia
extrema.
Como muito bem admoestado pelo Professor Fbio Konder Comparato, parece-nos
claro que a consolidao e quase-indiscutibilidade da verdade juspositivista, acompanhada
que foi da elevao da norma e do legalismo a objeto de quase adorao religiosa, auxiliou
sobremaneira a criao dos estados totalitrios e fascistas que proliferaram como a Peste
Negra no incio do sculo XX.
Conforme o magistrio sempre preciso do Professor Comparato:
[...], com a afirmao da simples legalidade formal como fator de legitimidade
poltica, e pela reduo da Constituio ao nvel de mero ordenamento dos rgos
estatais, qualquer que seja a finalidade ltima perseguida pelos governantes,
inegvel que os positivistas do direito contriburam, decisivamente, para o
surgimento, no sculo XX, de um dos piores monstros que a humanidade jamais
conheceu em toda a sua longa histria: o Estado totalitrio. (COMPARATO,
2013, p. 363, grifos nossos).
36
Trata-se ento o positivismo de um simples erro de clculo, capaz de abusos
imensurveis, e que deve ser abolido de qualquer maneira para se evitar o retorno do homem
sua poca precultural?
Servir o juspositivismo to somente para ser maleficamente usado para legitimar
o contedo de qualquer direito e sistema poltico, desde que tais normas sejam validamente
produzidas pelo estado (soberano), competente para tanto? Ou, quando bem-intencionado,
acaba por somente criar dificuldades para se entender o que de fato o fenmeno jurdico teria
a nos dizer?
Parece-nos essencial que reconheamos desde j que o juspositivismo no foi, e
continua no sendo, uma simples modinha teortica que surgiu do lugar-algum, fadada a
desaparecer muito em breve, e no toa que suas bases conceituais sirvam at hoje,
sobremaneira, como suporte terico para que muitos expliquem o fenmeno jurdico e
justifiquem sua fora dita normativa (a qual tende a ser encarada como supostamente
objetiva, impessoal e, antes de mais nada, vlida erga omnes segundo os procedimentos para
tanto previstos pela prpria normatividade).
Com efeito, podemos dizer que h um apelo, um furor mesmo, no bojo da teoria e
prtica juspositivistas que faz com que haja tantos e to fiis propugnadores, h tanto tempo.
De onde advm este apelo, esse chamamento, causa juspositivista?
Somos deste modo tentados a questionar (na linha utilizada por Koestler no excerto
que fizemos constar no incio deste Captulo): seria mesmo a norma jurdica efetivamente o
ncleo adequado, a fora geradora do mito juspositivista, em volta do qual os seus
cristais agregaram-se de forma a dar sustentculo ainda hoje grande parte do debate que
argumenta ser o direito um mero conjunto sistemtico de normas?
Ademais, e sendo mais pontual, conseguiria o juspositivismo apreender todas as
acepes, discusses e resultados sociais decorrentes do fenmeno jurdico?
37
Como j deixamos entrever, entendemos que a verdadeira fora originria e
fundante (Ur-sprung Ab-grund) do fenmeno jurdico no advm de sua pretensa mnada,
a norma, em qualquer de suas vestes.
As peculiaridades e notas prprias do mito continuam at hoje a ressoar e
aparentemente mostrarem-se adequadas para justificar o fenmeno normativo em vista
mesmo da fora narrativa (sempre pragmtica e comportamental) decorrente do vetor
mmesis-mythos que a fbula composta pela trade segurana (fim das guerras de religio-
privilgios feudais)/certeza (unificao do que considerado direito)/coerncia (o direito
enquanto sistema) trouxe (ou jura possuir)35.
Mas para que possamos tentar retirar a norma do pedestal de infalibilidade a que foi
elevada a partir da consolidao do normativismo e do juspositivismo no sculo XIX,
entendemos que ainda precisamos buscar outros elementos na tradio filosfica, no
bastando uma mera crtica genrica aos seus elementos informadores bsicos.
Ademais, considerando o tema desta Dissertao, pretendemos buscar estes
elementos adicionais na literatura filosfica para o fim mesmo de averiguarmos se a alegada
separao entre ser e dever-ser (a Guilhotina de Hume), bem como a separao entre todas
as esferas normativistas (tica, moral, direito, religio, etc.)36, teria de fato sustentculo na
existncia, seja do indivduo seja da sociedade em que ele encontra-se alojado.
Partindo novamente da viso hegemnica, advinda do e mantida pelo
juspositivismo, parece-nos que o pensamento jurdico usualmente tende a transpirar uma
certeza quando utiliza a norma como fundamento para si e para suas construes conceituais,
uma garantia mesmo para o funcionamento harmnico do sistema construdo pelo prprio
35 As qualificaes ticas vm do real. O que depende da imitao ou da representao a exigncia lgica de coerncia. [...] Portanto, que os caracteres possam ser melhorados ou deteriorados pela ao algo que o poeta sabe e pressupe. [...] Em suma, para que se possa falar de deslocamento mimtico, de transposio quase metafrica da tica para a potica, preciso conceber uma atividade mimtica como ligao e no apenas como corte. [...] Se no resta dvida de que o termo mthos marca a descontinuidade, a prpria palavra prxis, por sua dupla filiao, garante a continuidade entre os dois regimes, tico e potico, da ao. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Traduo de Claudia Berliner. - vol. I. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 84 et seq. 36 Sob nossa perspectiva, esta linguagem da separao objetivadora caracterstica do movimento juspositivista, dada sua sanha de analisar, sob pretensas vestes neutras, o fenmeno jurdico sempre fazendo o corte epistemolgico proposto por Kelsen.
38
pensamento jurdico: a norma tem sua existncia pressuposta pela pessoa que faz qualquer
tipo de juzo jurdico, no importando o fim a que se presta este juzo (na elaborao das
leis, no julgamento de um caso criminal, na hora de exarar uma deciso administrativa, o
memorando emitido por um parecerista, etc.).
E esta certeza adviria do fato de que, para se fazer qualquer tipo de juzo jurdico,
seria necessrio, inexoravelmente, pensar e pressupor que a norma . A norma (o dever-ser),
de alguma forma, est ligada ao ser, sendo inclusive considerada (pelo menos no quotidiano
jurdico, quase que incontestavelmente) como um existente (ente, ens).
E assim, inicia-se um relacionamento entre o mundo do dever-ser, aquele comando
emanado (e justificado) na ideia de norma estatal (ou da comunidade de estados), e o mundo
do ser, aquilo que , que existe, que se nos presentifica diuturnamente.
Relacionamento este que o foco principal do debate que usualmente travado ao
se discutir a Guilhotina de Hume: o dilogo entre o dever-ser (a norma, o Sollen) e o ser (o
mundo ftico-fenomnico, o Sein), com ardorosos partidrios que argumentam (muitas vezes
sob as vestes inadequadas da demonstrao cientfica) sob as vantagens e desvantagens
de um e de outro, como fundamento originrio para o direito.
Entretanto, e como intencionamos melhor construir ao longo desta Dissertao,
propomos que o referido relacionamento de fato transcenda sua usual dicotomia entre
aqueles que defendem a norma (idealizada, cultural, gnosiolgica, tridimensional, etc.) como
base principiolgica e fundadora do direito (para fins de simplificao, os
normativistas/juspositivistas) e aqueles que defendem que tal base, no final das contas, seria
encontrada no ser, independentemente deste manifestar-se sob a forma de voluntariosos
imperia emanados do soberano em si, individualmente considerado (will theory), ou de
ideolgicos subprodutos da estrutura capitalista de alienao do homem (Marx), ou de atos
comunais de carter anti-estatal (tal como exemplificaria a Freetown Christiania, localizada
em Copenhagen), estados psicolgico-lingusticos de imposio-aceitao visando ao
controle/manuteno da ordem social (Olivecrona, Petrazycki) ou, at mesmo, simples
frmulas mgicas (Hgerstrm).
39
Nossa proposta, ao contrrio, a de realar o lado da possibilidade da existncia,
em toda a sua tragicidade, quotidianidade e complexidade. Para tanto, nos parece que a
dicotomia entre ser e dever-ser, no fundo, tambm pode ser superada pois, como
argumentaremos no prximo Captulo, entendemos haver uma dicotomia muito mais
relevante que subjaz discusso acerca do dever-ser (norma) e do ser (fato), com grande
relevncia na filosofia prtica: dicotomia esta consubstanciada no dilogo entre o ser-
necessrio e o ser-possvel.
40
CAPTULO 3. (DEVER-)SER, NECESSIDADE E POSSIBILIDADE37
3.1. Norma: do dever-ser para o poder-ser
Em que pesem os argumentos dos defensores do juspositivismo, somos da opinio
que, no conjunto das decises humanas, diria e ininterruptamente tomadas, consideradas
em sua individualidade mais prpria, no a lei38 aquilo que efetivamente, per se, traa o
conduzir humano, muito menos serve como chave de interpretao nica para se decifrar o
que jurdico.
Muitas vezes, com efeito, o indivduo que no tenha sido treinado em nossas escolas
jurdicas, ao tomar suas decises quotidianas, acaba por no ter a mais plida ideia do que
de fato est proposicionalmente disposto na lei estatal, ou mesmo nas clusulas de simples
contratos de locao que tenha de celebrar ou, ainda, na deciso do magistrado que deferiu
seu despejo (tecnicistas e esotricos que soam e so para os leigos).
Entendemos, ao contrrio, que o discurso jusfilosfico poderia tentar sobrepujar
essa religiosidade normativa, a qual trata a norma jurdica sempre a partir e no mbito de sua
necessidade e de sua pretensa quase-infalibilidade, como se a conduta humana dela
dependesse, e no o contrrio.
Como visto, sequer podemos afirmar que a norma jurdica, em tese a chave da boa
conduta, sempre linguisticamente inteligvel a todos aqueles que fazem parte de uma
comunidade estatal, em vista do esoterismo e do tecnicismo que lhe so intrinsicamente
afeitos.
Muito menos acaba tal norma por ser sempre existencialmente sentida39, o que se
torna tanto mais um ataque pretensa necessidade normativa como pode inclusive fazer com
37 Em primeiro lugar, uma ressalva terminolgica: para que no haja qualquer dvida, ao longo desta Dissertao consideramos os termos possibilidade, poder-ser e ser-possvel como sinnimos, sendo que a sinonmia no se aplica aos termos potencialidade (virtualidade) ou ser-potncia. 38 Denominao empregada visando a abarcar a norma estatal em si constituies, leis, decretos, instrues normativas, decises judicirias, etc. e aquelas dela obviamente resultantes sentenas arbitrais, contratos, acordos de lenincia, termos de ajuste de conduta, editais para concesses administrativas, etc. 39 Quantas pessoas, alm de uma pequena parcela dos iniciados, conhece de fato como se efetua (qual a norma para) um clculo trabalhista em caso de demisso sem justa causa?
41
que a anlise se choque frontalmente com um dos cnones em tese inatacveis do direito: a
impossibilidade, em quase todas as situaes, de se alegar ignorncia da lei para o fim de
no ver aplicada a sano eventualmente prevista contra si por sua conduta (ainda nos casos
em que a ignorncia seja bvia e comprovada).
Assim sendo, fica difcil aceitarmos como adequadas discusses jusfilosficas que
usam um conceito tal qual o de norma jurdica (cuja existncia ou contedo, reiteramos,
tendem a no ser compartilhados com boa parte do auditrio que compe aquela referida
comunidade estatal, da qual em tese igualmente se demanda obedincia) como chave de
interpretao e de anlise para suas concluses.
Sob nossa perspectiva, estar-se-ia tentando justificar a frceps o dito sistema
jurdico pois sua mnada, aquilo que usado como seu fundamento originrio, nem ao
menos seria inteligvel para todos aqueles que no fazem parte do crculo dos iniciados, seus
quase-sacerdotes-tecnocratas (tecnossacerdotisas e tecnossacerdotes). E pior: muitas vezes
referida mnada inteligvel nem ao menos aos iniciados pois, frequentemente, dependem
de serem eles tambm ungidos pela interpretao autntica da norma.
Parece-nos assim que tais teorias tendem a enxergar na ideia da norma jurdica o
fundamento de facetas especficas do direito (como sua validade, sua eficcia, sua
autoridade, sua tcnica, etc.), do direito em si e at mesmo como fundamento das condutas
humanas.
A conduta humana, de fato, repetidamente passa a ser pensada apenas no espao,
momentos e movimentos permitidos dentro do binmio (des)obedincia-(i)legalidade, em
que somente tem valor, i.e., somente adquire sentido (muitas vezes at existencialmente
falando) se lastreada no fenmeno jurdico.
H, assim, um claro esvaziamento do humano em prol da tcnica.
42
Em vista de todas as dificuldades e anfibologias existenciais, entendemos que o
conceito de dever-ser/norma, embora um dos (topoi)40 mais utilizados na jusfilosofia,
no o mais apropriado lugar-comum para (des)construirmos o fenmeno jurdico.
Nossa proposta a de buscarmos referida (des)construo no conceito de
possibilidade, mais especificamente no conceito de possibilidade existencial resultado de
uma anlise ontolgica e fenomenolgica do poder-ser.
Tal se d pois, como j afirmado pelo Professor Nicola Abbagnano, as normas, as
regras, sejam jurdicas ou no, podem sim ser consideradas como possibilidades narrativas
e, por tanto (sic), existenciais/comportamentais. Normas, ne
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