XXVII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI PORTO ALEGRE – RS
DIREITO AGRÁRIO E AGROAMBIENTAL
LUIZ ERNANI BONESSO DE ARAUJO
NIVALDO DOS SANTOS
FERNANDO ANTONIO DE CARVALHO DANTAS
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Membro Nato – Presidência anterior Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa - UNICAP – Pernambuco
D597 Direito agrário e agroambiental [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/ UNISINOS Coordenadores: Luiz Ernani Bonesso de Araujo; Nivaldo dos Santos; Fernando Antonio de Carvalho Dantas. –
Florianópolis: CONPEDI, 2018.
Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-692-5 Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações Tema: Tecnologia, Comunicação e Inovação no Direito
1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Encontros Nacionais. 2. Assistência. 3. Isonomia. XXVII Encontro
Nacional do CONPEDI (27 : 2018 : Porto Alegre, Brasil). CDU: 34
Conselho Nacional de Pesquisa Universidade do Vale do Rio dos Sinos e Pós-Graduação em Direito Florianópolis Porto Alegre – Rio Grande do Sul - Brasil Santa Catarina – Brasil http://unisinos.br/novocampuspoa/
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XXVII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI PORTO ALEGRE – RS
DIREITO AGRÁRIO E AGROAMBIENTAL
Apresentação
O Grupo de Trabalho Direito Agrário e Agroambiental, permanente na estrutura
organizacional dos eventos científicos do CONPEDI, propõe reflexões sobre temas
relacionados a propriedade e a posse no uso da terra para a produção da vida em perspectivas
coletiva e individual. Busca, ainda, refletir sobre suas bases teóricas, práticas, normativas e
jurisprudenciais. Assim sendo, dialoga com as espacialidades, subjetividades e
territorialidades modernas e suas configurações jurídicas que, atualmente, enfrentam relações
e processos de transformação. Propõe, na dimensão epistêmica, o diálogo entre o direito
agrário e ambiental.
Os trabalhos apresentados neste volume representaram um conjunto de questões que
abrangeram aspectos teóricos, conceituais, práticos e jurisprudenciais, resultado de pesquisas
realizadas no âmbito da pós-graduação.
Envolveram temáticas como o papel das cédulas de produto rural e de crédito rural e a
limitação dos juros de mora, passando pela autonomia privada; o papel do Cadastro
Ambiental Rural (CAR) como instrumento de Zoneamento Ambiental e Agrícola e outras
reflexões; a Segurança alimentar em suas relações com a agricultura familiar, a
sustentabilidade e a promoção social; as questões da apropriação do conhecimento tradicional
envolvendo estudos comparativos com o milho no México e o arroz na Índia; os sujeitos
Coletivos do campo, sua territorialidade do alimento e a construção social dos direitos; a
permanente luta dos povos tradicionais para assegurar direitos territoriais; o papel do
Supremo Tribunal Federal (STF) no debate acerca das Terras Tradicionalmente Ocupadas na
superação do marco temporal para índios e quilombolas; o debate conceitual e teórico do
papel do Direito Agrário na limitação ou expansão da tutela jurídica; a água, o
agrohidronegócio e a centralidade das disputas territoriais; a regularização fundiária e a
privatização dos bens comuns. A regularização fundiária na Amazônia legal e a
contrarreforma agrária; a retomada das discussões acerca dos agrotóxicos, princípio da
precaução, a fiscalização e o projeto de lei n. 6.299\2002 chamado de Pacote do Veneno.
No conjunto, as discussões do Grupo de Trabalho demonstraram a importância do debate
sobre a questão agrária, sua pertinência e permanência com abordagens necessárias para a
compreensão atual e complexa desse campo, adequada à superação de modelos de produção
agrária que levariam a um futuro incerto em relação a qualidade de vida, ao uso e titularidade
dos bens de uso comum.
Prof. Dr. Nivaldo dos Santos – UFG
Prof. Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araujo - UFSM / UPF
Prof. Dr. Fernando Antonio De Carvalho Dantas – UFG
Nota Técnica: Os artigos que não constam nestes Anais foram selecionados para publicação
na Plataforma Index Law Journals, conforme previsto no artigo 8.1 do edital do evento.
Equipe Editorial Index Law Journal - [email protected].
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu da Universidade de Passo Fundo.
2 Professor do Mestrado em Direito da Universidade de Passo fundo – UPF. Professor Titular aposentado da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.
1
2
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E A PRIVATIZAÇÃO DOS BENS COMUNS
LAND REGULARIZATION AND THE PRIVATIZATION OF COMMON GOODS
Jessica Alflen 1Luiz Ernani Bonesso de Araujo 2
Resumo
Pretende-se desenvolver neste texto, uma proposta de análise sobre a estreita relação entre
propriedade privada e a soberania do Estado, em detrimento dos bens comuns e de outros
seres humanos. Desse modo o roteiro do estudo faz uma breve análise histórica acerca da
questão fundiária no Brasil, bem como examina a necessidade da proteção ao bem comum,
para então propor uma reflexão acerca das modificações introduzidas pela nova legislação de
regularização fundiária (Lei 13.465 de 2017), onde pode-se perceber uma tendência de
desregulamentação legislativa, com foco na privatização dos bens comuns.
Palavras-chave: Bens comuns, Lei 13.465 de 2017, Privatização, Proteção, Regularização fundiária
Abstract/Resumen/Résumé
It is intended to evolve in this text a proposition of analysis on the narrow relation between
private property and the sovereignty of the State, to the detriment of the common goods and
other human beings. This way the study route makes a succinct historical analysis of the land
issue in Brazil, as well as examines the need to protection of the common good, for then
proposes a reflection about the changes introduced by the new land regularization legislation
(Law 13.465 of 2017), where one can realize a tendency of legislative deregulation, focusing
on the privatization of common goods.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Common goods, Law 13.465 of 2017, Privatization, Protection, Land regularization
1
2
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Introdução
Os problemas fundiários no nosso país são tão antigos quanto a nossa história. As
questões relativas aos problemas da distribuição de terras, iniciaram no Brasil colônia, quando
a Coroa Portuguesa, titular do domínio sobre o território descoberto, outorgou à Martin Afonso
de Souza, a competência de colonizar longas extensões de terras, por meio do regime de
sesmarias.
Contudo o regime de sesmarias não foi suficiente e elas foram extintas pela Coroa
Portuguesa, deixando o país sem legislação acerca do tema, o que gerou a acumulação de
extensas áreas de terras nas mãos de poucos. No ano de 1850, foi editada lei nº 601, apontada
como um marco histórico na legislação agrária do Brasil.
A mencionada lei foi editada para combater a situação desordenada que se verificava
em virtude do sistema anterior e estruturar o espaço territorial, rompendo com o regime de
sesmaria e prevendo a compra como única forma de adquirir terras devolutas, não sendo mais
possível a apropriação por meio gratuito.
A Constituição Federal de 1934, consolidou diversas ideias relativas a questão agrária,
e a partir dela, foram desenvolvidas muitas legislações infraconstitucionais concernentes ao
tema. Mas foi a partir da proclamação da Constituição Federal de 1946 que foram percebidos
grandes avanços relativos a questão agrária no Brasil, culminando na edição do Estatuto da
Terra, no ano de 1964.
O Estatuto da Terra foi um grande marco para o Direito Agrário Brasileiro, que se
mostrou como um instrumento de alteração da injusta estrutura agrária, estabelecendo os
pressupostos para que a propriedade cumprisse a sua função social, requisitos estes que foram
consagrados constitucionalmente em 1988.
A Constituição da República de 1988, por sua vez, além de condicionar a propriedade
ao cumprimento de sua função social, tratou de cuidar da preservação do meio ambiente, dessa
forma, verifica-se que incide também, sobre a propriedade, o instituto da função ambiental.
A despeito de toda evolução legislativa acerca da questão fundiária no Brasil, ainda há
irregularidades na distribuição de terras e conflitos decorrentes dessa má distribuição, o que
vem se verificando ao longo de toda nossa história. Do mesmo modo, o mesmo acontece no
que diz respeito ao meio ambiente, já que a exploração dos recursos naturais é feita ao arrepio
da lei, ocasionando graves consequências como desmatamentos, desertificação dos solos,
poluição dos rios, etc.
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A Medida Provisória nº 759/2016, convertida na Lei 13.465 de 2017, alterou
dispositivos importantes da Lei 11.952/2009 a qual trata da regularização fundiária. As
alterações introduzidas poderão vir a causar prejuízos irremediáveis, já que a aludida norma
não dispõe de instrumentos capazes de proteger os bens comuns, ao contrário, ao permitir a
privatização de grandes quantidades de terras públicas e devolutas, as disposições da lei tornam
mais difícil a criação de áreas de proteção ambiental, bem como não incentiva a adoção de
gestão racional dos recursos naturais. Nesse sentido, o discurso político e jurídico deve visar
outra realidade, a de que a natureza não pode pertencer a alguém, mas deve ser compartilhada
e acessível a todos.
1 Evolução histórica da questão fundiária no Brasil
Os problemas, relativos as questões fundiárias, em nosso país, são tão antigos quanto
a nossa história, e compreender a evolução do instituto é importante para assimilar os problemas
atuais. Segundo Rocha (2015), pode-se subdividir em quatro períodos a história fundiária no
Brasil: o primeiro período foi o regime das sesmarias, que vigorou de 1500 a 1821, o segundo,
o regime de posses do ano de 1821 e 1850, após, o regime da Lei de Terras que compreendeu
o período de 1850 a 1889, e por último, o período republicano, que iniciou no ano de 1889 até
os dias atuais.
A Coroa Portuguesa, como titular do domínio sobre o território brasileiro, seguindo o
estipulado no Tratado de Tordesilhas, com o propósito de garantir a posse e povoar a colônia,
institui o sistema de Capitanias hereditárias, que eram faixas de terras que partiram do litoral
para o interior, cujos receptores eram chamados de donatários. Dentre estes destaca-se Martin
Afonso de Souza, recebendo em caráter irrevogável a “extensão de cem (100) léguas de terras”
(MARQUES, 2015).
A partir da colonização estabelecida por Martin Afonso de Souza, o Brasil, como
colônia de Portugal, sujeitou o seu território a concessões, utilizando o instituto das Sesmarias.
(MARQUES, 2015). O regime de Sesmaria foi inserido no Brasil, a partir da carta Foral datada
de 06 de outubro de 1531, sendo os destinatários das concessões gratuitas, homens que tinham
muitas posses, uma vez que, após a concessão era exigido que se construíssem torres ou
fortalezas para defender essas terras, e ainda, transportar pessoal e navio as suas expensas
(ROCHA, 2015).
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O regime das sesmarias não foi suficiente para colonizar as grandes extensões de terras
no território brasileiro, e até mesmo resultaram-se nocivas para a ocupação. Segundo Edmundo
Zenha (1952, p. 433):
A tal ponto havia chegado a confusão que muitos portadores de títulos perfeitos não
achavam onde se instalar, e outros, sem títulos nenhum, afora a própria audácia,
mantinham em seu poder tratos vastos e dos melhores. Tudo isto resultava da ausência
de demarcação das mesmas sesmarias.
Conforme aponta Marques (2015), foram tantos os problemas causados pelo sistema
de sesmarias, que elas foram extintas pelo governo português em 1822, pouco antes da
proclamação da independência. Contudo esse ato da Coroa deixou o Brasil sem legislação
pertinente ao tema, o que só veio a ocorrer em 1850, com a edição da lei nº 601, apontada como
um marco histórico na legislação agrária do Brasil. Em virtude dessa lacuna legislativa, a
ocupação de terras devolutas se dá simplesmente pela posse, o que foi muito aproveitado pelo
imigrante pobre vindo da Europa, que se embrenhou no sertão em busca de seu quinhão de
terra.
De acordo com Rocha (2015), a Constituição do Brasil Imperial de 1824, absorveu a
ideia da propriedade absoluta no Código de Napoleão, apesar dessa previsão, a Constituição
Imperial não instituiu mecanismos de acesso a propriedade, ficando o período caracterizado
como o Período da Posse, o qual foi marcado por ocupações primárias que garantiam o controle
da terra.
A Lei de Terras de 1850, vem instituir uma nova forma de apropriação da terra: a
mediação pelo mercado. Em vez da posse, a apropriação mediante compra e venda, em hasta
pública e à vista, fixando-se preços mínimos superiores aos vigentes na época, o que restringiu
o acesso somente àqueles tivessem dinheiro imediatamente para comprá-las. De outra parte, o
produto dessas vendas era destinado a financiar a vinda de colonos da Europa.
Para entender sua aprovação, é preciso situá-la num contexto mais amplo, onde deve
ser considerada uma série de elementos. Em primeiro lugar, em meados do século
passado, o café está em pleno desenvolvimento, requisitando uma grande quantidade de trabalhadores. No entanto, nesse momento, a Inglaterra está no auge de sua
campanha contra o tráfico de escravos, o que vai resultar na sua proibição definitiva
em 1851. A alta de preços dos escravos, decorrente das restrições inglesas ao seu
comércio e, posteriormente à abolição do tráfico, a alta decorrente da escassez desse
tipo de trabalhador gera uma séria situação de carência de mão-de-obra. A
contrapartida é uma política de apoio à imigração, que viria prover a lavoura cafeeira
dos braços necessários. Trata-se, pois, de impedir que esses imigrantes se tornassem
proprietários de terra e, em consequência, se desviassem do que seria seu papel: força
de trabalho para a cultura de café. (SILVA et al, 1980)
81
Desse modo, a Lei nº 601/1850, denominada “Lei das Terras”, regulamentada
posteriormente pelo decreto nº 1318 de 1854, foi editada para combater a situação desordenada
que se verificava em virtude do sistema anterior e estruturar o espaço territorial, rompendo com
o regime de sesmaria e prevendo a compra como única forma de adquirir terras devolutas, não
sendo mais possível a apropriação por meio gratuito. Tal diploma legal, instituiu o sistema de
terras devolutas e criou meios para a sua caracterização, distinguindo-as das terras particulares,
sendo que tal procedimento discriminatório é, ainda, na atualidade, adotado no ordenamento
jurídico (ROCHA, 2015).
Examinando os artigos da Lei de Terras, Rocha (2015, p. 70) chega as seguintes
conclusões:
a) para o legislador imperial mais importante que os documentos antigos é a efetiva ocupação do solo, sem ela estes documentos perdem valor; b) as cartas de sesmarias
não revalidadas e as posses não legitimadas na forma desta lei não geravam mais
direito ao reconhecimento de propriedade em favor de seus detentores.
Já se observava, nesse período, a primazia da posse, decorrente da ocupação de terras,
em detrimento dos que possuíam títulos. O decreto nº 1.318/18541 determinava que todos os
possuidores, independentemente a que título possuíam as terras deveriam registrá-las junto aos
vigários.
Contudo, o período mais expressivo para o Direito Agrário Brasileiro, ocorreu após a
proclamação da República, no ano de 1889, tendo em vista o encaminhamento para
institucionalização do instituto. A primeira Constituição da República de 1891, transferiu para
os Estados as “terras devolutas”, permanecendo com a União aquelas destinadas a defesa das
fronteiras e terrenos de marinha (MARQUES, 2015).
Segundo Marques (2015), em 1917 foi concluído e começou a viger o Código Civil
Brasileiro, o qual abrangia o tratamento relativo a posse e propriedade de imóveis, além de
outras questões concernentes a imóveis, como direitos reais sobre coisas alheias. Já no ano de
1934, a Constituição Federal, consolidou diversas ideias relativas a questão agrária, e a partir
dela foram desenvolvidas muitas legislações infraconstitucionais concernentes ao tema.
1 Decreto n. 1.318 de 1954. Art. 91. Todos os possuidores de terras, qualquer que seja o titulo de sua propriedade,
ou possessão, são obrigados a fazer registrar as terras, que possuirem, [...]. Art. 97. Os Vigarios de cada huma das
Freguezias do Imperio são os encarregados de receber as declarações para o registro das terras, e os incumbidos
de proceder á esse registro dentro de suas Freguezias, fazendo-o por si, ou por escreventes, que poderão nomear,
e ter sob sua responsabilidade. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-
1318-30-janeiro-1854-558514-publicacaooriginal-79850-pe.html>. Acesso em 26 jul. 2018.
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A partir da criação de novos diplomas legais observava-se a evolução do direito
agrário, contudo, foi com a Constituição Federal de 1946 que foram percebidos grandes avanços
relativos a questão agrária no Brasil, pois a mencionada Lei maior, além de manter as diretrizes
agrárias da Constituição anterior, foi o berço de criação de diversos institutos que são vigentes
até hoje (MARQUES, 2015).
Na década de 1950, muitas organizações de trabalhadores rurais se mobilizaram e
passaram a apresentar projetos efetivos para reformas sociais, dentre elas a reforma agrária.
João Goulart, então presidente, avocou algumas propostas desses trabalhadores, com relação a
reforma agrária, sendo este um dos fatores que culminou no golpe militar de 1964 (ROCHA,
2015).
A despeito de ser o golpe militar reflexo, em grande parte, das medidas adotadas por
Goulart, foi no âmbito do primeiro governo militar (ROCHA, 2015) que houve o maior avanço
em termos de institucionalização do Direito Agrário no Brasil, com a edição da Emenda
Constitucional nº 10, que atribui à União a competência para legislar sobre Direito Agrário. No
dia 30 de novembro, entrou em vigor a Lei 4.504/64, conhecida como Estatuto da Terra.
O Estatuto da Terra foi um grande marco para o Direito Agrário, que se mostrou como
um instrumento de alteração da injusta estrutura agrária que vigorou durante séculos no país,
onde imperavam os latifúndios. O novo diploma, apontou as bases da Reforma Agrária e da
Política Agrícola, além de estabelecer os pressupostos para que a propriedade cumprisse a sua
função social, requisitos estes que foram consagrados constitucionalmente em 1988 (ROCHA,
2015).
A Constituição da República de 1988, além de garantir o direito de propriedade,
esculpido no seu art. 5º, inciso XXII2, condicionou o seu exercício ao cumprimento da função
social, previsto no inciso seguinte.3
A mencionada Lei Maior, é clara no sentido da necessidade de modificação das bases
fundiárias pátrias, quando prevê, expressamente, que imóveis rurais que não cumpram a sua
função social estarão sujeitos a reforma agrária, por meio da desapropriação, dispondo um
Capítulo específico para a Política Agrícola e Fundiária e Reforma Agrária, consolidando o
instituto da Função social da propriedade, nos artigos 184 e 186 da mencionada norma.4
2 CR/1988. Art. 5º, inciso XXII - é garantido o direito de propriedade; 3 CR/1988. Art. 5º, inciso XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; 4 CR/1988. Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel
rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária,
com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua
emissão, e cuja utilização será definida em lei. [...] Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade
rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes
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Conforme se extrai dos artigos citados, a Constituição da República, vinculou o imóvel
rural ao cumprimento da sua função social, combatendo o absenteísmo produtivo, o mau uso
da propriedade e sua manutenção com fim meramente especulativo. No artigo 186 da
Constituição da República, estão enumerados os critérios e graus de exigência para o
cumprimento da função social, o aproveitamento racional e adequado (I), preservação dos
recursos naturais e meio ambiente (II), respeito às disposições das relações de trabalho (III) e
exploração que favoreça ao bem-estar, tanto dos proprietários como dos trabalhadores (IV).
Dessa forma, sendo no imóvel rural desempenhadas as atividades agrárias, não se pode
compreender o direito agrário sem que se atente para o dever do cumprimento do que está
explicitado na Constituição e reafirmado mais tarde na Lei nº 8.629, de 25 e fevereiro de 1993.
Esta Lei insere em seu art. 6º, a definição de propriedade produtiva. “Ao se dar esse tratamento
especial à propriedade produtiva, ela se distingue em dois tipos: as de caráter produtivo (e que,
portanto cumprem a sua função social) aquelas que negam esse caráter (portanto, passíveis de
serem desapropriadas)”. (ARAUJO, 1998, p. 98).
O elevado índice de concentração de terras nas mãos de poucos, sem que estejam
cumprindo a sua função social, explica a necessidade da reforma agrária em nosso país
(MARQUES, 2015). Nesse sentido Rocha (2015, p. 77):
A propriedade sem função social não tem o status que antes se lhe atribuía, criando o
Estado meios de retirar-lhe do meio social quando não cumpra o seu especial caráter,
destinando-a a um fim de utilidade social, criando mecanismos que permitam a
reinserção da propriedade como utilidade social.
Portanto, a propriedade que não esteja cumprindo a sua função social, deve ser
desapropriada e nela implementada a reforma agrária, destinando a gleba a um fim de utilidade
social.
Além de uma função social, a Constituição da República de 1988, tratou de abarcar a
preocupação com a preservação do meio ambiente, na medida em que vincula o cumprimento
da função social a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente, reclamando a manutenção das características naturais do imóvel e da qualidade dos
recursos ambientais, promovendo o equilíbrio ecológico da propriedade (MARQUES, 2015).
requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e
preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV -
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
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Observa-se, portanto, a evolução do direito agrário no Brasil, desde o período colonial,
passando pela Lei de Terras e a edição do Estatuto Terra, cujas bases foram recepcionadas pela
Constituição da República de 1988, e a Lei 8.629/1993, o que sem dúvida foi dotado de grandes
avanços.
A despeito dessa evolução, as irregularidades na distribuição de terras e os conflitos
decorrentes dessa má distribuição, continuam visíveis. O país se estruturou em termos
fundiários, na centralização de muitas terras nas mãos de poucas pessoas ou grupos, e, ainda
hoje, podem ser observados, os mesmos problemas que se sucederam no decorrer de toda a
nossa história.
2 A proteção aos bens comuns
É pacífico entre os juristas, caracterizar os bens comuns como aqueles cujo uso e
desfrute pertencem a todos os homens, sem serem particularmente atribuíveis a qualquer pessoa
(GORDILLO, 2006). Podem ser incluídos nesse rol de bens comuns, as praças, os rios, as
florestas, e por isso, são dignos de proteção.
Historicamente sempre existiu uma tensão entre os bens comuns e privados. A Magna
Carta de 1215, considerado o primeiro documento constitucional do Ocidente, já refletia essa
tensão. Referido documento é muito conhecido por garantir a representação política da nobreza
e da propriedade privada no Parlamento, contudo, poucos sabem que foi acompanhada de um
documento, conhecido como “Chater of the Forest” que garantia ao povo, que não possuía
propriedade privada, o livre acesso aos bosques e o uso dos bens comuns, contra a pretensão
daqueles que pretendiam reserva-los para o uso privado, colocando os bens comuns no mesmo
plano constitucional da propriedade. Mas a garantia dos bens comuns é uma das disposições
constitucionais mais desatendidas da história (MATTEI, 2013).
Os maiores riscos aos bens comuns emanam de assenhoramentos que provém das
privatizações e transformam os bens comuns, coletivos, em propriedade privada, convertendo-
os em mercadorias. Com a privatização, os bens passam a ser regrados de acordo com os
ditames da propriedade privada, e aqueles que detêm a posse sobre tais bens podem, de forma
legal, excluir os outros da sua utilização e disposição. Para Porto-Gonçalves (2017, p. 289):
[...] privar é tornar um bem escasso, e, assim, numa sociedade que tudo mercantiliza,
um bem só tem valor econômico se é escasso. Assim, é o princípio da escassez, assim
como a propriedade privada, que comanda a sociedade capitalista e suas teorias
liberais de apropriação dos recursos naturais. Ocorre que a ideia de riqueza é o
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contrário de escassez, e aqui reside uma das maiores dificuldades da economia
mercantil em incorporar a natureza como riqueza, como algo que é abundante, um
bem comum.
Segundo Mattei (2013) a partir da modernidade, se criou um imaginário fundado na
exploração rápida e eficiente dos bens comuns (carbono, água doce, gás, petróleo), recursos
que necessitam milhões de anos para se reproduzir de modo natural, como forma de viabilizar
o desenvolvimento econômico. Esse imaginário moderno assume como algo natural a
exploração dos bens comuns através de um processo de consumo que comporta sua privatização
a favor de quem é capaz de desfrutar deles de maneira mais eficaz e de retirar deles um
benefício.
As privatizações aliadas a criação de legislações vantajosas às empresas modernas
(corporações) e a mercantilização, interferem desfavoravelmente na administração desses bens
coletivos, ampliando os benefícios e a proteção da propriedade individual.
Na grande maioria dos Estados, os governos, controlados por interesses financeiros
globais, dilapidam sem controle os bens públicos, fomentados pela ideia da necessidade de
pagar as dívidas do Estado. A propriedade privada legitima os comportamentos mais brutais do
empreendimento moderno e a soberania do Estado, que de certa forma incansável colabora com
o primeiro nas constantes mercantilização e privatização de bens comuns. (MATTEI, 2013).
As grandes empresas multinacionais têm crescido de forma desmensurada nas últimas
décadas, concentrando um poder hierárquico muitas vezes superior ao dos Estados modernos.
A concepção idiossincrática de propriedade privada inclui o uso irracional, a dissipação, a
destruição e o abuso dos bens comuns. A estrutura hierárquica da moderna corporação se parece
a de um leviatã muito mais absoluto que qualquer organização política. As corporações
passaram a condicionar as políticas públicas do estado e a determinar sua aliança com a
propriedade privada em prejuízo do comum (MATTEI, 2013).
Essas corporações e o mercado financeiro, têm cada vez mais adentrado na regulação
econômica dos Estados, e tendem a usurpar a própria natureza e seus recursos. A utilização
desses bens por grandes empresas privadas causa uma degradação imensurável a natureza,
eliminando os recursos naturais, e refutando a natureza, tendo em vista que o único objetivo
perseguido é a potencialização de lucros, ameaçando a disponibilização desses recursos às
gerações futuras.
A moderna empresa (corporações), motivada pelos interesses dos acionistas e
executivos, e o Estado soberano, motivado pelos interesses nacionais e dos líderes políticos,
incorrem em condutas míopes e egoístas, com consequências desastrosas para todos. Essas
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condutas devem ser denunciadas e combatidas, visando a conservação de um planeta vivo
(MATTEI, 2013).
Toda essa interferência econômica e apropriação de bens comuns, é praticada em nome
do desenvolvimento do Estado, mas em verdade, buscam transformar a natureza em
mercadoria, subsidiando programas privados que ocasionam a devastação de bens naturais
comuns e o esgotamento de seus recursos. Conforme assevera Porto-Gonçalves (2017, pp. 287-
288):
Falar de recursos naturais é falar de algo que, por sua própria natureza, existe
independentemente da ação humana e, assim, não está disponível de acordo com livre-
arbítrio de quem quer que seja. Logo, não é sem consequências políticas e ambientais
que se aplica o princípio liberal da livre mobilidade dos fatores que está na base das teorias clássicas da economia, no caso do acesso aos recursos naturais. Afinal, a
mobilidade desses recursos quando explorados socialmente obedece às relações
sociais e de poder.
O modelo dominante aparece constantemente presente na retórica sobre o crescimento,
sobre o desenvolvimento e sobre os modelos de sair das crises que os meios capitalistas
continuam propagando, apesar da catastrófica situação ecológica e econômica de nosso planeta.
O abandono do modelo comunitário no Ocidente tem sido o resultado gradual das exigências
dos mercados de dispor de instituições políticas estatais, com o objetivo de se servir delas em
suas empresas para reforçar a concentração de capital (MATTEI, 2013).
A propriedade privada e a soberania estatal são originárias de uma lógica econômica
que, ao marginalizar o comum, cancela a lógica ecológica, humilha a inteligência coletiva e
somente produz um único pensamento: a lógica implacável da acumulação de capital
(MATTEI, 2013). De acordo com Porto-Gonçalves (2017, p. 288):
O fundamento da relação da sociedade com a natureza sob o capitalismo está baseada
na separação, a mais radical possível, entre os homens e mulheres, de um lado, e a
natureza de outro. A generalização do instituto da propriedade privada, ao privar a
maior parte dos homens e das mulheres ao acesso aos recursos naturais, cumpre um
papel fundamental na constituição do capitalismo.
Historicamente os bens comuns sempre foram objetos de conflitos sociais, econômicos
e políticos, e é sobre eles que se travam as maiores lutas fundamentadas no desenvolvimento
econômico e as políticas de livre mercado. Se caracterizando como bens fora do comércio se
tornam um obstáculo ao capitalismo.
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Assim, o Estado soberano, que deveria embargar a destruição do meio ambiente e dos
bens comuns, por meio de fiscalização e punições mais severas aos invasores, financia
normativamente tais condutas, em nome do desenvolvimento econômico. Conforme aduzido
por Mattei (2013), o inimigo dos bens comuns é sempre o mesmo: a relação entre Estado e as
grandes empresas.
Os Estados têm uma predisposição em aderir a políticas e regimes de administração
que beneficiam as corporações internacionais e o mercado, com foco nos investimentos
externos, em detrimento da sua população e dos bens comuns do seu território.
Essa desregulamentação e debilidade da legislação, sobretudo de proteção ao meio
ambiente, é uma tendência dos países subsedenvolvidos, inclusive o Brasil, que, por meio de
legislações ambientais frágeis, que incentivam a privatização de bens comuns e regularizam
ocupações ilegais, pretendem atrair o investimento de capital estrangeiro.
Referida fragilidade na legilação ambiental, parece ter sido consubstanciada por meio
da nova lei de regularização fundiária, se caracterizando como uma forma de permitir a
“regularização” de áreas invadidas ilegalmente, por meio velado de privatização de bens
comuns, sob o argumento do desenvolvimento econômico da região e proteção ao meio
ambiente.
3 A regularização fundiária prevista na Lei 13.465/2017 e a proteção aos bens comuns
Como já referido, o Brasil se estruturou fundiariamente, na concentração de muitas
terras nas mãos de poucas pessoas, e, ainda hoje, as irregularidades na distribuição de terras, e
os conflitos decorrentes desta má distribuição, podem ser observados. A questão da
regularização fundiária de imóveis rurais, em todas as regiões do país, ainda hoje, continua
sendo um tema sem solução.
O art. 46 da Lei 11.977 de 20095, revogado pela Lei 13.465/2017, previa que a
regularização fundiária deveria respeitar o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado. Essa previsão, contudo, não se repetiu na lei sucessora.
A nova lei 13.465, de 11 de julho de 2017, de constitucionalidade contestável, “dispõe
sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos
5 Lei 11.977/2009. Art. 46. A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas,
ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de
modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e
o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
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assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal;
institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da
União”.
O novo diploma legal já citado, alterou disposições importantes da Lei 11.952/2009,
que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas
da União, no âmbito da Amazônia Legal, mediante alienação e concessão de direito real de uso
de imóveis. Apesar da lei fazer menção expressa a regularização fundiária no âmbito da
Amazônia Legal, suas disposições são estendidas às ocupações fora dela, conforme previsão do
artigo 40-A da mencionada lei.
Como alhures mencionado, a nova legislação modificou diversos artigos da lei
11.952/2009, contudo, serão tratadas apenas as modificações mais relevantes para o
desenvolvimento do presente estudo.
A nova norma alterou o artigo 5º, inciso IV, da Lei 11.952/2009, o qual mencionava
que para regularização era necessário comprovar o exercício de ocupação e exploração direta,
mansa e pacífica, por si ou seus antecessores, anterior a 1º de dezembro de 2004, agora, com
edição da nova lei, este período passou a abranger período anterior a 22 de julho de 2008.
Dessa forma, a nova legislação estendeu o período anteriormente previsto, concedido
àqueles que de forma ilegal, ocuparam e desmataram áreas que deveriam ser preservadas, como
uma forma de anistia.
O atual regulamento alteou, também, substancialmente, o artigo 6º, § 1º, da Lei
11.952/2009, o qual previa que a regularização de ocupações podia ocorrer em áreas de até 15
(quinze) módulos fiscais e não superiores a 1.500ha (mil e quinhentos hectares). Com a nova
regra, a área passível de regularização passou para 2.500ha (dois mil e quinhentos hectares),
inclusive dispensada de licitação, conforme artigo 12 da Lei.
Além disso, o § 1º do art. 12, da Lei 11.952/2009, foi alterado, prevendo anteriormente
que o preço do imóvel teria como base o valor mínimo da terra nua da Planilha de Preços
Referenciais, elaborada pelo Incra, e o seu cálculo consideraria o tamanho da área. Com a atual
legislação, o preço do imóvel continua a considerar o tamanho da área, porém, será estabelecido
entre 10% (dez por cento) e 50% (cinquenta por cento) do valor mínimo da pauta de valores da
terra nua para fins de titulação e regularização fundiária elaborada pelo Incra, com base nos
valores de imóveis avaliados para a reforma agrária.
Outra questão intrigante é que a lei prevê, nos incisos do artigo 15, que o título de
domínio ou o termo de concessão de direito real de uso deverá conter cláusulas sob condição
resolutiva, dentre as quais consta o respeito a legislação ambiental, contudo conforme o § 2º
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essas cláusulas ficam extintas se o beneficiário optar por pagar integralmente o preço do imóvel,
equivalente a cem por cento do valor médio da terra nua.
Em razão das mencionadas alterações, a nova lei vem recebendo críticas de entidades,
sobretudo às ligadas a área ambiental. É também alvo de diversas Ações Diretas de
Constitucionalidade, já que a nova norma representa um grande retrocesso em termos legais
acerca da proteção do meio ambiente e reservas naturais, quando facilita a regularização
fundiária para esses espaços.
A questão ambiental está profundamente ligada a questão da regularização fundiária e
segundo argumentos previsto na “Carta ao Brasil” [2016], subscrita por diversas entidades
ligadas a movimentos sociais e ambientais, a MP 759/2016, posteriormente convertida na Lei
13.465/2017 acaba com diversos regimes jurídicos implementados com a participação popular,
promovendo uma verdadeira liquidação do patrimônio da União. Quanto a privatização em
massa do Patrimônio da União a Carta ao Brasil [2016], adverte:
A doação e venda dos imóveis da União dependem de critérios legais para que o
interesse público e social seja atendido com o rompimento do domínio público. A MP
pelo instrumento da “legitimação fundiária” permite a privatização sem nenhum
critério legal, por mero ato discricionário do Poder Executivo. Possibilitam-se a
regularização de condomínios de alto-padrão, loteamentos fechados em áreas federais,
sem a devida exigência de contrapartidas ambientais. Um dos grandes negócios da
MP 759 é promover a liquidação do patrimônio da União (terras e águas federais) em
prejuízo de sua função socioambiental, ou seja, a MP 759 entrega o patrimônio
público nacional ao mercado imobiliário e aos grandes empreendedores público-privados.
Sobram críticas a nova legislação, que já é objeto de diversas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade no Supremo, como já mencionado, tendo como parâmetro diversos
dispositivos da Constituição da República.
Além disso, conforme se depreende da legislação civilista no nosso país6, as áreas
pertencentes à União, são consideradas como um bem público, de uso comum do povo. Sendo
um bem de uso comum do povo, deveriam ser inalienáveis e insuscetíveis de usucapião.
O artigo 188 da Constituição da República prevê que “a destinação de terras públicas
e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma
6 Código Civil. Art. 99. São bens públicos: I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e
praças; [...]. Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto
conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar. Art. 102. Os bens públicos não estão sujeitos a
usucapião.
90
agrária”. Sobre mencionado dispositivo, Janot (2017, p. 25), na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 5771, esclarece:
O dispositivo busca assegurar que: (i) a destinação de terras públicas e devolutas não
se faça em prejuízo da população do campo que aguarda a concretização do direito à moradia; (ii) haja democratização do acesso à terra, desconcentrando a estrutura
fundiária brasileira; e (iii) a produção agrícola se diversifique, como garantia de
alimentação adequada para todas as brasileiras e brasileiros.
O que se observa, portanto, a partir do tratamento de foi dispensado a preservação dos
bens comuns, com a edição da nova legislação, é que houve uma verdadeira desregulamentação
legislativa, a além disso, os fins a que se deve destinar as terras públicas de devolutas não foram
atendidos, o que novamente, como ao longo da história brasileira, vem para beneficiar alguns
poucos. Nesse sentido Janot (2017, pp. 25-26):
A Lei 13.465/2017 distancia-se do cumprimento dessas metas. Ela autoriza
transferência em massa de bens públicos para pessoas de média e alta renda, visando
a satisfação de interesses particulares, em claro prejuízo à população mais necessitada,
o que causará grave e irreversível impacto na estrutura fundiária em todo território
nacional, seja por incentivar a ocupação irregular de terras (a “grilagem”) e o aumento
de conflitos agrários, seja por suprimir as condições mínimas para continuidade daquelas políticas constitucionais. A aplicação da lei impugnada resultará em um dos
maiores processos de perda de patrimônio público da história do Brasil, além de
promover sensível aumento do quadro de concentração de terras nas mãos de poucos.
A legislação em questão, gera uma verdadeira desregulamentação da questão
ambiental e proteção ao patrimônio público, comum de todos, e poderá resultar, como
reiteradamente na história do Brasil, concentração de riquezas nas mãos de pouco, em
detrimento da população em geral. Como se observa, há uma tendência de privatização de bens
comuns, adotada pela nova legislação de regularização fundiária.
Apesar da justificativa do Presidente da República, na exposição de motivos da
Medida Provisória 759 de 2016, convertida na Lei 13.465 de 2017, sobre a importância da
privatização de terras pública como formas de garantir a preservação ambiental “já que o
resultado da não ocupação destas terras revelou-se catastrófico, com a proliferação de
desmatamentos, queimadas, extração ilegal de madeira, dentre outras mazelas”, a privatização
dos bens comuns, sobretudo realizada a partir de um ato do Poder Executivo, sem a ampla
participação e discussão da sociedade, não pode revelar-se em um mecanismo de manutenção
e preservação do meio ambiente, ao contrário, destina bens comuns ao livre controle da esfera
privada, sem a comprovação prática de eficiência desse meio.
91
A normatização da nova Lei 13.465/2017 não dispõe de instrumentos capazes de
conter o desmatamento, de forma oposta, torna frágil a proteção ao meio ambiente. Ao
privatizar grandes quantidades de terras públicas e devolutas as disposições da lei tornam mais
difícil a criação de áreas de proteção ambiental (JANOT, 2017). Sobre as fragilidades
ambientais, da Lei 11.952/2019, Janot (2017, pp. 44-45), ainda assevera:
(i) não condicionava a regularização fundiária à recuperação das áreas degradadas no
passado, pelo próprio ocupante ou por seus antecessores; (ii) previu que apenas o
desmatamento irregular realizado em área de preservação permanente ou de reserva
legal daria ensejo a reversão da área em favor da União, mas não desmatamento
irregular em outros trechos das terras regularizadas. O dano ambiental decorrente
dessas disposições foi potencializado pela lei impugnada, dada a capilaridade da
política para todo o território nacional.
Dessa forma, a lei esbarra com as previsões de proteção ao meio ambiente, prevista da
Constituição da República, conforme explica Janot (2017, p. 47):
Ela desconsidera o direito de todos a ambiente ecologicamente equilibrado, que é bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Desobedece o dever do
poder público de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Ignora
a preservação dos processos ecológicos essenciais, contribui para degradar a
diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e se afasta do dever de
definir, em toda a federação, espaços territoriais e componentes a serem especialmente
protegidos. Desprotege a fauna e a flora e contribui para práticas que colocam em
risco sua função ecológica e provocam extinção de espécies. Faz periclitar ainda mais
áreas como a Floresta Amazônica brasileira, que é patrimônio nacional e cuja
utilização somente pode ocorrer em condições que assegurem preservação do
ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
Enfim, o que se denota a partir da nova norma, é uma tendência de privatização de
bens públicos, e uma desregulamentação das legislações que visam a proteção do meio
ambiente e dos recursos naturais.
A teoria política da modernidade, de fato, confirma a estreita relação estrutural entre a
propriedade privada e a soberania do Estado em prejuízo dos bens comuns. A modernidade e o
constitucionalismo liberal estruturam nossa maneira de pensar, construindo a nossa realidade
em torno da categoria do possível que excluem os bens comuns precisamente porque sua
privatização contínua e progressiva, em detrimento da natureza e de outros seres humanos, e
em nome dos objetivos e crescimento e desenvolvimento econômico, se considera um dado
fático, que além de certos e irreversíveis, são inclusive desejáveis. (MATTEI, 2013)
Dessa forma, a fragilização da legislação ambiental, que permite a “regularização” de
áreas, invadidas ilegalmente, sob o argumento de regularização fundiária, introduzido pela
92
nova lei 13.465/2017, revela-se, em verdade, como um instrumento de privatização de bens
comuns, através de um procedimento mais simplificado e que, poderá gerar uma verdadeira
dilapidação do patrimônio da União, os quais caracterizam-se por comuns.
Esse cenário, privilegia alguns poucos, em detrimento dos bens comuns da nação
brasileira, e de outros seres humanos. Restituir a dignidade política e cultural dos bens comuns,
supõe embasar o discurso político e jurídico em outra realidade: a de um mundo e uma natureza
que não podem pertencer apenas a alguém, mas devem ser compartilhadas e acessíveis a todos
(MATTEI, 2013).
Conclusão
Do que foi disposto no texto, examinando-se a realidade da questão fundiária no Brasil
ao longo da história, observa-se que os problemas relativos a esta questão, basicamente são os
mesmos desde a época do Brasil colônia, ou seja, a concentração de grandes extensões de terras
nas mãos de poucas pessoas e, em alguns casos, desordenamento das ocupações. Esse
desordenamento gerou uma demanda por legislações, visando a regularização fundiária.
O presente estudo pretendeu desenvolver uma análise sobre a questão da proteção dos
bens comuns, tendo em vista a tendência de privatização desses bens, por meio do instituto da
regularização fundiária, prevista na Medida Provisória nº 759/2016, convertida na Lei 13.465
de 2017.
Vislumbou-se, contudo, a fragilidade na legilação ambiental, consubstanciada por
meio da nova lei de regularização fundiária, como uma forma de permitir a “regularização” de
áreas invadidas ilegalmente, por meio velado de privatização de bens comuns, sob o argumento
do desenvolvimento econômico da região e proteção ao meio ambiente.
Se observa que há uma tendência de desregulamentação e debilidade da legislação,
sobretudo de proteção ao meio ambiente, tendo em vista a necessidade de atrair inventimento
estrangeiro, por meio de legislações ambientais frágeis, que incentivam a privatização de bens
comuns.
Contudo, nesse contexto, pelo exame criterioso da Lei 13.465 de 2017, se conclui que
ela traz benefício apenas ao grupo de pessoas que se apresentam como investidores, como os
madereiros e os grandes produtores agrícolas, cuja ação destrutiva constante nas áreas de
floresta vem em detrimento dos bens comuns da nação brasileira, atingindo em especial aquela
parcela de população que ali vivem em harmonia com a natureza, tirando seu sustento da pesca
e do extrativismo. Para haver uma adequada gestão dos bens comuns, portanto, é preciso
93
fundamentar o discurso em uma realidade em que o mundo e a natureza não podem pertencer
a alguém, mas devem ser acessíveis a todas as pessoas.
Há, portanto, um extenso caminho a percorrer com vistas a se encontrar uma solução
definitiva para os problemas fundiários do nosso país, sem deixar, porém, de proteger os bens
comuns. Contudo, atualmente, parece que estamos cada vez mais longe desse objetivo.
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