MARCELO BRISENO MARQUES DE MELO
ZÉ DO CAIXÃO: PERSONAGEM DE
HORROR
Tese apresentada em cumprimento parcial às exigências
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Social, da UMESP-Universidade Metodista de São
Paulo, para obtenção do grau de Doutor.
Orientadora: Profª Drª Sandra Lucia Amaral Assis
Reimão
Universidade Metodista de São Paulo
Programa de Pós Graduação em Comunicação Social
São Bernardo do Campo, 2010
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FOLHA DE APROVAÇÃO
A tese de doutorado sob o título “Zé do Caixão: personagem de horror”, elaborada
por Marcelo Briseno de Marques de Melo, foi apresentada e aprovada em 15 de
março de 2010, perante banca examinadora composta por Prof (a) Dr(a) Sandra
Lucia Amaral de Assis Reimão (Presidente/UMESP), Prof (a) Dr(a) Fabio Botelho
Josgrilberg (Titular/UMESP), Prof (a) Dr(a) Alfredo Dias D’almeida
(Titular/UMESP), Prof (a) Dr(a) Helena Bonito Couto Pereira
(Titular/MACKENZIE), Prof (a) Dr(a) Edson Roberto Leite (Titular/USP).
______________________________________________
Prof (a) Dr(a) Sandra Lucia Amaral de Assis Reimão
Orientadora e Presidente da Banca Examinadora
______________________________________________
Prof. Dr. Sebastião Squirra
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Programa : Pós-Graduação em Comunicação Social
Área de concentração: Processos Comunicacionais.
Linha de pesquisa: Processos Comunicacionais Midiáticos.
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Agradecimentos
Agradeço em especial meus pais José Marques de Melo e Silvia Marques, pessoas
indispensáveis na minha formação como cidadão, vocês são o início de tudo. Ainda em
especial, Priscila, esposa carinhosa e companheira de tantos anos e aos meus filhos,
Gabriel e Beatriz, sementes do amanhã que me encantam nos seus primeiros livros e
palavrinhas todos os dias e que, mesmo com dificuldade, entenderam minha ausência e
à minha sogra Marisa, sempre presente em momentos decisivos.
Aos meus amigos Danilo Beiruth e Joaquim Ghirotti, agradeço por todas as discussões
acerca do tema que muito me ajudaram.
Meus agradecimentos também a todos os que viabilizaram a conclusão desta obra, cada
um com sua peculiaridade como: a Prof. Drª Sandra Reimão, minha orientadora, que
acreditou no meu projeto desde o início e me apoiou, sendo objetiva no ponto certo e
crítica na medida, o Prof. Dr. Sebastião Squirra, caro coordenador da pós-graduação da
UMESP, o Prof. Ms. Antonio de Andrade, presente na minha graduação em outros
tempos e hoje companheiro de todos os dias na docência à frente da coordenação do
curso de Rádio e TV da UMESP, o Prof. Dr. Fábio Josgrilberg e o Prof. Dr Isaac
Epstein presentes na banca de qualificação com colocações valiosas e oportunas e
enfim, aos demais dirigentes da UMESP, que me permitiram a conclusão deste
Doutorado.
Meus agradecimentos são para todos os que de alguma forma fizeram parte desta nova
conquista em minha vida.
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SUMÁRIO Página
INTRODUÇÃO.........................................................................................08
Capítulo I – CONSTRUINDO UMA TEORIA DO HORROR............18
1. O horror na literatura..........................................................................18
2. O horror no cinema..............................................................................24
3. A teoria do horror..................................................................................36
Capítulo II – A PERSONAGEM DRÁCULA........................................70
1. A evolução da personagem vampiro......................................................71
2. Considerações sobre Drácula como personagem.....................................83
3. A adaptação cinematográfica na construção da imagem pública de
Drácula...............................................................................................91
4. Encaixotando o vampiro – A personagem Drácula inserida na teoria do
horror...............................................................................................103
Capítulo III – A PERSONAGEM ZÉ DO CAIXÃO...........................109
1. A Sedução dos Inocentes.....................................................................110
2. Horror nos quadrinhos brasileiros......................................................115
3. A trajetória de José Mojica Marins e a criação de Zé do
Caixão......................................................................................................124
Capítulo IV – DRÁCULA E ZÉ DO CAIXÃO – O COVEIRO
ENTERRA O VAMPIRO.......................................................................153
1. A personagem Zé do Caixão na teoria do horror....................................158
CONCLUSÃO.................................................................................................167
REFERÊNCIAS......................................................................................172
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Autor: Marcelo Briseno Marques de Melo
Título: Zé do caixão: personagem de horror
Orientadora: Profª Drª Sandra Reimão
Universidade Metodista de São Paulo
Programa de Pós Graduação em Comunicação Social
São Bernardo do Campo, 2010
Resumo:
Esse trabalho busca entender a personagem Zé do Caixão em dois aspectos
correlacionados: 1) enquanto uma personagem passível de ser classificada como
pertencente ao gênero horror e; 2) no enfoque comparativo entre essa personagem e a
personagem Drácula, referência central no gênero horror. Para subsidiar essas
discussões, em primeiro lugar, esboçamos as linhas principais de um quadro teórico
conceitual do gênero horror; e a seguir, nos detivemos na construção da personagem
Drácula. Por fim, nos detemos na personagem Zé do Caixão buscando entender sua
especificidade dentro do gênero.
Palavras-chave : Estudos midiáticos, Cinema, Ficção, Personagem, Horror.
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Resumen:
Plantear la especificidad del personaje Zé do Caixão en el contexto del género
horror es el reto de la presente investigación. Para validar la tesis revisamos
criticamente el marco teórico que legitima el gênero horror en el espacio mediático,
empleando empiricamente una estratégia que mescla dos operaciones metodológicas
secuenciadas: 1) ubicar el personaje en la estructura del género, argumentando sobre la
identidad del horror brasileño; 2) comparar este personaje nacional con Drácula, el
protótipo universal del género horror.
Palabras-clave: Estúdios mediáticos, Cine, Ficción, Personaje, Horror.
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Abstract:
This work attempts to understand the character Zé do Caixão (Coffin Joe) in two
correlated aspects: 1) As a character which can be classified as one that belongs to the
horror genre and; 2) Using a comparative procedure between this character and the
character of Dracula, a central reference in the horror genre. To subsidize this
discussions, firstly, we set up the main lines of a theoretical framework of the concept
of the horror genre; after that, we focus in the construction of Dracula as a character.
Finally, we concern ourselves with the character of Zé do Caixão, attempting to
understand his specificity within the genre.
Keywords: Media Studies, Cinema, Fiction, Character, Horror.
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INTRODUÇÃO
Sob o manto do horror
A personagem de horror tem características paradoxais que a diferenciam das
personagens de outros gêneros ficcionais. Afinal, como algo criado para assustar e
provocar repulsa pode ser atraente? Este é o caso das personagens monstruosas que
habitam as narrativas de horror. Esta questão também pode ser formulada de outra
maneira: por que alguém se interessaria pelo horror já que a experiência de tal sensação
é tão desagradável? O segundo paradoxo relaciona-se com a própria ficcionalidade do
gênero horror, afinal como alguém pode ficar apavorado com o que sabe não existir?
Observar a personagem de horror sob o prisma destes paradoxos e entender os
mecanismos e recursos que estas personagens se utilizam para cumprir sua função
narrativa será de grande valia para compreender Zé do Caixão, objeto deste estudo.
Zé do Caixão, principal personagem do gênero horror no Brasil estaria inserido
nestes paradoxos e se valeria dos mesmos mecanismos que as outras personagens de
horror? Analisar e comparar esta personagem tendo como modelo Drácula, a
personagem do gênero mais estudada no mundo e uma referência completa para compor
um quadro analítico comparativo da criação de José Mojica Marins, irá proporcionar um
entendimento do objeto de estudo. Desta maneira poderemos obter uma visão mais
ampla da personagem no gênero a que ela se vincula, ao contrário da maioria dos textos
sobre Zé do Caixão que costumam observá-lo dentro do cinema em geral ou sob a ótica
de um elemento da cultura brasileira. Também poderemos entender os mecanismos de
que ele se vale para se perpetuar como parte do imaginário cultural brasileiro e ver
como a personagem se relaciona com os modelos tradicionais de horror.
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Partimos de duas hipóteses. A primeira é que a personagem Zé do Caixão
enquadra-se no quadro teórico-conceitual do gênero horror. A segunda é que a
personagem Zé do Caixão tem como referência central a personagem Drácula.
O objetivo geral deste estudo é discutir uma inserção possível da personagem Zé
do Caixão em um quadro teórico-conceitual do horror e assim entender esta personagem
no gênero a que pertence. Para tanto pretende-se inicialmente esboçar um perfil teórico-
conceitual do gênero horror; a seguir analisar a personagem Zé do Caixão tendo como
referência a personagem Drácula. O papel das adaptações, especialmente
cinematográficas, na construção da imagem pública de ambas as personagens é outra
meta a ser atingida; bem como, observar a personagem Zé do Caixão sob o prisma dos
paradoxos próprios das personagens do gênero horror e verificar se esta se vale de
mecanismos e recursos semelhantes para obter o fascínio da audiência.
* * *
Horror hoje
Há pelo menos cinco décadas o horror ganhou visibilidade como fonte
reconhecida de estímulo estético. “De fato, ele pode até ser o gênero de vida mais longa,
o mais amplamente disseminado e o mais persistente da era pós-Vietnã” (CARROLL,
1999, p.12). Os romances de horror, que já conquistaram o mercado literário nos EUA,
ganham cada vez mais espaço nas prateleiras das livrarias brasileiras. Enquanto escrevo
estas linhas, os romances vampíricos Crepúsculo (2005), Eclipse (2006) e Lua Nova
(2007) de Stephenie Meyer figuram nas listas de livros de ficção mais vendidos no
Brasil (http://veja.abril.com.br/livros_mais_vendidos/ acesso em 01/04/2009). Ao
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mesmo tempo a TV Record acaba de exibir a telenovela Os Mutantes (2008) dirigida
por Alexandre Avancini, que também apresenta vampiros, dentre outros monstros, com
êxito de audiência e gerando uma série de produtos inspirados nos personagens
monstruosos, como álbum de figurinhas, material escolar e roupas. Vale lembrar que
Mutantes já deu prosseguimento ao sucesso de outra telenovela produzida na TV
Record, Caminhos do Coração (2007) dirigida por Alexandre Avancini, que também
apresentava personagens vampíricos e já começa a ser reprisada. A Rede Globo de
Televisão também obteve grande aceitação do público em telenovelas que tinham
vampiros como protagonistas em Vamp (1991) e O Beijo do Vampiro (2002) ambas
escritas por Antônio Calmon.
Recordando os primórdios do cinema com a celébre exibição de A chegada do
trem à estação em 1895 pelos irmãos Lumiére, podemos notar o grande potencial deste
suporte material para o gênero horror, já que os relatos deste evento destacam que o
público manifestou medo em relação as imagens projetadas. Ao longo do século XX o
horror foi se perpetuando no cinema geração após geração, ganhando aceitação do
público e gerando cada vez mais produções do gênero. Desde o sucesso de bilheteria de
O Exorcista (1973) houve um imenso crescimento no volume de exibições de filmes de
horror. Nas últimas décadas ao visitar cinemas com multi-salas de exibição no Brasil é
muito raro não encontrar ao menos uma produção de horror. O gênero também floresceu
em outros meios, na música influenciou e se faz presente explicitamente nos vídeos e
shows de rock. “O horror tornou-se um artigo básico em meio às formas artísticas
contemporâneas, populares ou não, gerando quantidade de vampiros, duendes,
diabretes, zumbis, lobisomens, crianças possuidas pelo demônio, monstros espaciais de
todos os tamanhos, fantasmas e outros” (CARROLL, 1999, p.13).
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José Mojica Marins, pioneiro do gênero horror no cinema nacional e um dos
diretores mais perseguidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), deu início a
saga de Zé do Caixão em 1964 com À Meia-Noite Levarei Sua Alma seguido de
Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver em 1967. Porém o terceiro filme que traria
uma conclusão à trajetória de Zé do Caixão nunca havia sido realizado por diversos
motivos, dentre eles a falta de apoio financeiro, o amadorismo de Mojica ao conduzir
sua carreira, problemas pessoais e principalmente a perseguição pela censura.
Em 2008, Mojica voltou às telas de cinema, conseguiu exibir Encarnação do
Demônio no circuito comercial através da distribuidora norte-americana Fox. O longa-
metragem de Mojica encerra a trilogia de Zé do Caixão que levou mais de 30 anos para
se concretizar e traz o maior orçamento de uma produção do gênero no Brasil,
mantendo seu criador como ícone do horror brasileiro. A personagem de Mojica desde
sua criação vem habitando o imaginário nacional graças à habilidade de seu criador em
mantê-la viva por meio de adaptações para outros meios de comunicação de massa
como a televisão e as histórias em quadrinhos. No exterior Zé do Caixão obteve status
cult sendo conhecido como Coffin Joe e Mojica Marins é reconhecido como um dos
pioneiros do gore1 no cinema juntamente com Herschell Gordon Lewis. Mesmo tendo
ficado longe das telas por cerca de trinta anos, Zé do Caixão é provavelmente a
personagem originalmente cinematográfica mais importante do cinema brasileiro.
* * *
1 “Subgênero do cinema de terror que se caracteriza por seqüências de clímax de larga duração e extrema
violência, mutilações, sangue, vísceras e personagens pouco realistas. Costuma manifestar-se em filmes
de baixo orçamento. (...) Existe no audiovisual japonês uma corrente gore que se produz tanto no cinema
de imagens reais como no cinema de desenhos animados.” (RAMOS, 2002, p.285)
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Passo a passo no horror
Esta pesquisa apresenta uma análise comparativa entre duas personagens
expoentes do gênero horror tendo o procedimento analítico exploratório como linha de
raciocínio. Esta análise foi realizada a partir de um perfil teórico-conceitual do gênero
horror construído a partir das obras destacadas na revisão da literatura, e a referência
central para o exame das personagens baseia-se na delimitação das obras
cinematográficas mais relevantes na construção de sua imagem pública. Desta maneira
foi possível observar como se posiciona Zé do Caixão, a principal personagem do
gênero no Brasil, frente a este quadro teórico. A personagem modelo para esta análise
comparativa, Drácula, funciona como referência ideal já que está plenamente encaixada
nos textos que servem de base para a teoria do horror. Além das considerações sobre a
gênese da personagem de ficção, as categorias de análise que utilizamos neste exame
comparativo entre as duas personagens incluem: a presença do elemento fantástico e a
instância em que acontece (puro, estranho e maravilhoso); a intenção de provocar a
emoção do horror na audiência; a ocorrência do horror explícito (refinado, explícito e
repulsa); os arquétipos de personagens de horror; a dicotomia na manifestação do mal; a
presença de subtextos nas narrativas; as condições de produção na indústria
cinematográfica, a manifestação do horror como resposta emocional das personagens
positivas; a categorização dos monstros em relação a suas características impuras
(fusão, fissão, magnificação, massificação, metonímia) e as estruturas de enredo mais
recorrentes no gênero (descobrimento complexo e extrapolador).
* * *
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Dois dos mais relevantes estudos sobre o gênero horror, utilizados neste estudo,
foram realizados por autores que se especializaram na criação de ficção de horror. O
primeiro foi Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) que manteve vivo o horror cósmico
nos Estados Unidos e influenciou uma geração de novos escritores de terror através de
seus trabalhos publicados no periódico Weird Tales. Lovecraft além de produzir
dezenas de histórias e criar uma mitologia do horror cósmico publicou um tratado
intitulado O Horror Sobrenatural na Literatura no qual aborda cronologicamente a
história das publicações de horror e também faz reflexões sobre os mecanismos
engendrados nas narrativas para atingir o clímax do horror. O tratado de Lovecraft
torna-se a referência principal ao tratar da gênese do romance de horror nesta pesquisa.
De certa maneira espelhando-se no trabalho de Lovecraft, Stephen King
escreveu Dança Macabra, em que se dedica a estabelecer sua visão sobre o gênero
horror. King, diferentemente de Lovecraft, que não conheceu o sucesso como escritor
em vida, é provavelmente o autor moderno mais popular e representativo da literatura
de massa de horror norte-americana. Em seu estudo trata principalmente da produção no
gênero nos últimos trinta anos, não se limitando apenas à literatura, mas centrando-se no
cinema e na televisão. King racionaliza a sedução do grotesco (paradoxo relevante neste
estudo), a mecânica das histórias de horror, os sentimentos alegóricos presentes nas
obras do gênero e os sentimentos catárticos experimentados pelo espectador. King
também dedica espaço para discutir a personagem de horror, seja pelo aspecto da
monstruosidade ou pela internalização do horror, dicotomia na qual podemos encaixar
todas as narrativas do gênero. Estas reflexões sobre a personagem são exemplificadas
por meio da análise de três romances imortais, O Médico e o Monstro (1886) de
Robert Louis Stevenson, Dracula (1897) de Bram Stoker e Frankenstein (1818) de
Mary Shelley, e estabelecem os quatro conceitos primordiais da personagem de Horror
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(o vampiro, o lobisomem, a coisa inominável e o fantasma). Tal conceituação tem
grande valor para analisar Zé do Caixão e posicioná-lo diante do quadro teórico-
conceitual exposto neste estudo.
Diferentemente dos textos acima citados, cuja autoria traz a ótica interna
exclusiva daquele que cria dentro do gênero, o trabalho de maior relevância para esta
pesquisa traz a visão externa e o distanciamento afetivo do gênero para construir uma
teoria do horror. Em, A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração, Noel Carroll,
professor do departamento de Filosofia da Universidade de Wisconsin, se propõe a fazer
com o gênero do horror o que Aristóteles fez com a tragédia. Carroll segue a linha de
abordagem do pensamento analítico e da psicologia cognitiva e é reconhecido como
pensador da arte cinematográfica, tendo dedicado parte significativa de sua produção
acadêmica à teoria do cinema. A Filosofia do Horror se aprofunda numa das questões
chave do filme de horror (também suscitada por King em sua pesquisa), o paradoxo
baseado no envolvimento afetivo do espectador neste gênero. Tendo Aristóteles como
paradigma do que pode ser a filosofia de um gênero artístico, Carroll apresenta uma
explicação do horror tendo como foco os efeitos emocionais que o gênero se destina a
causar no público. Partindo da premissa de que o gênero horror é destinado a produzir
um efeito emocional, Carroll tenta isolar esse efeito com um exame e análise das figuras
recorrentes e das estruturas de enredo usadas pelo gênero para mostrar como estas
estruturas características são arranjadas para causar a emoção que ele denomina “horror
artístico”. Este tratado sobre o horror se concentra nos enigmas próprios do gênero,
batizados pelo autor como “Paradoxos do Coração”. “Em relação ao horror, esses
paradoxos podem ser resumidos nas duas perguntas seguintes: 1) como pode alguém
ficar apavorado com o que sabe não existir, e 2) por que alguém se interessaria pelo
horror, uma vez que ficar horrorizado é tão desagradável” (CARROLL, 1999, p.21)?
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A Filosofia do Horror traz uma abordagem da caracterização do gênero horror
diferente daquelas apresentadas por Lovecraft, King e por muitos críticos acadêmicos,
que oferecem reflexões gerais sobre o horror no primeiro capítulo para posteriormente
detalhar historicamente a evolução do gênero se valendo do exame de exemplos. Carroll
propõe uma explicação da natureza do horror sob o ponto de vista do aspecto emocional
que o gênero procura gerar. Além de definir o horror e apresentar o termo “horror
artístico”, mostra as estruturas recorrentes que originam a emoção do “horror artístico”,
juntamente com uma explanação histórica sobre as origens do gênero. Introduz o
paradoxo da ficção que ao ser aplicado ao horror pode ser exemplificado com a questão
de como podemos ficar apavorados com aquilo que sabemos não existir. Faz um
minucioso exame dos enredos mais recorrentes no gênero e coloca uma extensa
discussão entre enredos, suspense e o elemento fantástico.
Introdução à Literatura Fantástica, de Tzvetan Todorov, traz uma
conceituação e uma classificação das narrativas que trazem o elemento fantástico,
característico das narrativas de horror, que serve como referência para a formação do
quadro teórico conceitual do horror neste estudo. Outra obra referencial nesta pesquisa é
A Personagem de Ficção, organizada por Antônio Cândido, que traz textos que
discutem a personagem na literatura, teatro e cinema, fornecendo reflexões valiosas
sobre as relações entre as personagens com os meios de comunicação onde se originam.
As reflexões sobre a personagem na literatura especificamente fornece uma linha
racional para entender a gênese da personagem e assim apreender as origens dos seres
ficcionais analisados neste estudo.
A personagem selecionada como referência para este estudo, Drácula, é a
personagem de horror mais estudada mundialmente, tendo sido alvo de diversas
pesquisas. Vale destacar os textos referenciais para caracterizar Drácula neste projeto. O
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trabalho dos historiadores Raymond T. Mcnaly e Radu Floresco, In search of Dracula,
traça as origens históricas do personagem literário e sua transformação pelas adaptações
para diversos veículos de comunicação. The Vampire Book, de J. Gordon Melton, faz
uma extensa análise do mito do vampiro em relação ao folclore, literatura, televisão,
cinema e história em quadrinhos. Estabelecendo a versão cinematográfica de Drácula
como ícone da cultura pop. Voivode: estudos sobre os vampiros, organizado por Cid
Vale Ferreira, explora as diversas facetas do fenômeno vampírico, destacando o papel
da literatura e do cinema em sua difusão sob uma ampla gama de perspectivas, dentre
elas: antropologia, psicologia e crítica literária. Estudos semelhantes aos citados fazem
parte da bibliografia selecionada juntamente com títulos que tratam especificamente do
cinema de horror.
O tratado de Carroll, juntamente com os trabalhos de King, Lovecraft, Todorov e
Cândido fornecem elementos consistentes para formar um quadro teórico-conceitual
sobre o gênero permitindo analisar a personagem de horror especificamente e assim
observar a personagem Zé do Caixão a partir deste modelo teórico.
* * *
O primeiro capítulo deste estudo aborda a personagem de horror de forma geral,
com um histórico cronológico do gênero na literatura e cinema para depois apresentar o
quadro teórico-conceitual do horror e sua problemática sob a perspectiva emocional da
audiência.
O segundo capítulo se dedica ao personagem referência para está análise,
Drácula. Esta personagem é observada a partir de uma perspectiva histórico cultural,
destacando o processo de adaptação na construção de sua imagem pública, bem como
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sua gênese como ser ficcional. Também são observadas suas adaptações no Brasil.
Depois, examinamos a personagem Drácula partindo do quadro teórico conceitual
apresentado no capítulo anterior.
No terceiro capítulo tratamos da personagem Zé do Caixão. Inicialmente vemos
a evolução do horror no Brasil a partir do meio em que o gênero mais se proliferou, as
histórias em quadrinhos. Depois examinamos a carreira de José Mojica Marins, a
criação e inserção de Zé do Caixão na cena cinematográfica nacional e o fenômeno da
adaptação na perpetuação deste personagem no imaginário do povo brasileiro.
O quarto capítulo dedica-se a inserção da personagem Zé do Caixão no quadro
teórico-conceitual do horror e a análise comparativa entre esta personagem e a
personagem Drácula. Este exame comparativo tem como referências centrais os longas-
metragens Dracula (1931), para Drácula e À Meia Noite Levarei sua Alma (1964) e
Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) para Zé do Caixão.
Na conclusão apresentam-se as últimas reflexões acerca dos paradoxos do horror
e as considerações finais sobre a personagem Zé do Caixão. Também discutimos a
confirmação das hipóteses deste estudo bem como o sucesso de seus objetivos.
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Capítulo I – CONSTRUINDO UMA TEORIA DO HORROR
A primeira parte deste capítulo introdutório tem como objetivo apresentar um
breve histórico do gênero horror na literatura e no cinema para que o leitor possa obter
uma visão ampla da evolução deste tema e observar as origens de um padrão de
personagens em sua constituição. Não se pretende aqui fazer uma longa compilação de
títulos de obras ou realizadores. Mas sim traçar uma linha cronológica que permita ao
leitor, distante do tema aqui tratado, contextualizar o objeto deste estudo e assim
apreender melhor os conceitos desenvolvidos na segunda parte deste capítulo. Dedicada
a formar um quadro teórico-conceitual do horror e compor ferramentas analíticas para
um exame a partir de uma perspectiva interna ao gênero.
1. O horror na literatura
O horror como gênero narrativo se faz presente na história da civilização logo
que o homem passa a compartilhar experiências. Criaturas fantásticas habitam
narrativas religiosas, mitológicas, míticas ou lendárias, impressionando e assombrando
os ouvintes que se reuniam à noite para se emocionar com estes relatos. Histórias que
contavam as aventuras e provações que passavam os heróis dos textos mitológicos,
fossem eles egípcios, gregos, indianos, persas ou romanos. Porém uma das referências a
criaturas monstruosas mais antigas está na bíblia.
O propósito do mais famoso deles Lúcifer ou Satanás, pelo menos, é
assustar aqueles que crêem nas escrituras como obras escritas ou
ditadas por deus. Ao se observar o livro sagrado por esse aspecto,
pode-se compreender melhor como o sobrenatural e o terror se
consolidaram nas mais diversas formas de representação do medo no
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ocidente ao longo de séculos, em narrativas de mitos e lendas até
chegar à idade moderna. (GONÇALO, 2008, p. 40)
Estabelecidas as raízes do gênero horror é necessário restringir o panorama
cronológico e evolutivo do terror que se pretende construir aqui, em relação, somente, à
literatura e cinema ocidentais. Já que expor esta evolução em todas as formas de
manifestação artística ou apresentar o desenvolvimento deste tema no oriente acabaria
por desviar o foco deste estudo.
Outra fonte importante para o florescimento do horror acontece na segunda
metade do segundo milênio da era cristã com o surgimento dos contos de fadas. A
origem destas narrativas “está relacionada à literatura cortesã da idade média, por volta
do século VII e nas novelas de espada” (GONÇALO, 2008, p.59). Traziam seres
bizarros que representavam o mal que eram confrontados pelo herói antes de vencer no
final. “Os primeiros textos eram marcados por situações que iam do adultério e do
incesto ao canibalismo e às mortes hediondas” (GONÇALO, 2008, p. 59). Normalmente
as tramas envolvem magia, metamorfose, encantamentos ou animais falantes. As
versões infantis, suavizadas e amplamente conhecidas na idade moderna, foram
difundidas pelo ocidente a partir dos anos 1800, geralmente transmitindo ensinamentos
morais.
Autores de tendências totalmente opostas ao horror desenvolveram este tema em
contos isolados.
Assim, Dickens escreveu diversas narrativas de pavor; Browning, o
tétrico poema Childe Roland; Henry James, A Volta do Parafuso; Dr
Holmes, o engenhoso romance Elsie Vonner; F. Marion Crawford, O
Leito de Cima e o humorista W. W. Jacobs produziu o excelente
melodrama intitulado A Pata do Macaco. (LOVECRAFT, 1987,
p.04)
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Porém não se deve confundir este tipo de literatura, em que o formalismo ou a ironia do
autor extingue o verdadeiro senso do mórbido e do sobrenatural. Pela concepção de
Lovecraft, o verdadeiro conto de horror exige uma atmosfera e um ambiente de terror
onde agem forças externas, não-naturais, para gerar uma sensação sufocante e
inexplicável de horror.
O critério final de autenticidade não é o recorte de uma trama e sim a
criação de uma determinada sensação. Pode-se afirmar em termos
gerais que uma história fantástica cujo intento seja instruir ou
produzir um efeito social, ou em que no final os horrores se
desfaçam explicados por meios naturais, não é um autêntico conto de
pavor cósmico. (LOVECRAFT, 1987, p.05)
Assim, uma obra de horror não deve ser avaliada somente pela intenção do autor ou pela
mecânica do enredo, mas pelo plano emocional que o leitor atinge ao estabelecer
contato com o gênero.
O único teste para o verdadeiro horror é simplesmente este, se
suscita ou não no leitor um sentimento de profunda apreensão, e de
contato com esferas diferentes e forças desconhecidas: uma atitude
sutil de escuta ofegante, como à espera do ruflar de asas negras ou
do roçar de entidades e formas nebulosas nos confins extremos do
universo conhecido. (LOVECRAFT, 1987, p.06)
A partir desta concepção podemos afirmar que o típico conto de horror da
literatura corrente é fruto do século dezoito. A literatura gótica, cujo apogeu se deu entre
1780 e 1820, pode ser considerada como precursora do terror como gênero. As
narrativas deste movimento literário apresentavam características em comum, o cenário,
geralmente ambientado no castelo gótico, cheio de alas abandonadas ou em ruínas,
corredores úmidos e catacumbas que guardavam fantasmas e lendas tenebrosas.
Também incluía o nobre perverso como vilão, a heroína inocente, vítima dos principais
horrores, e o valente herói de nascimento nobre, mas freqüentemente em disfarce
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humilde, enfim personagens melodramáticos e maniqueístas. Também era recorrente o
uso de nomes italianos para os personagens, bem como temas envolvendo segredos do
passado, manuscritos escondidos, profecias e maldições (GONÇALO, 2008, p.61).
Em 1764, Horace Walpole publica O Castelo de Otranto, considerado o marco
inicial da literatura gótica. Uma narrativa sobrenatural que ganhou ampla e instantânea
popularidade, permitindo o lançamento de diversas edições, adaptações teatrais e
inúmeras imitações na Inglaterra e Alemanha.
Tal era a ânsia da época por esses toques de mistério e antiguidade
fantasmal que ela reflete, que foi recebida a sério pelos seus leitores
mais equilibrados, e elevada, apesar de sua inépcia intrínseca, a um
pedestal de excelsa importância na história literária. O que acima de
tudo ela fez foi criar um novo tipo de cenário, de personagens-títeres
e de incidentes; o que, manipulado com melhores resultados por
autores mais naturalmente adaptados à criação do horrível, estimulou
o desenvolvimento de uma escola gótica imitativa. (LOVECRAFT,
1987, p.15)
Na Inglaterra o gótico confrontava-se com a produção literária científica e
histórica e surpreendentemente se consolidou como um gênero geralmente escrito por
mulheres. Destacam-se no gótico inicialmente os romances Os Mistérios de Udolpho
(1794), de Ann Radcliffe e O Monge (1796), de Matthew Gregory Lewis.
Posteriormente, em 1818, Frankenstein: o moderno prometeu, de Mary Shelley
inovou o gênero e se estabeleceu como um dos clássicos de horror de todos os tempos.
“Os historiadores da literatura gótica apontam Melmoth, the Wanderer (1820), de
Charles Maturin, como o último suspiro do gênero. Tem início, então, o declínio, com
obras previsíveis e apelativas para o sensacionalismo exagerado” (GONÇALO, 2008,
p.63).
Com a publicação dos poemas e contos de Edgar Allan Poe, como aponta
Lovecraft (1987, p.47), o horror no século XIX ganha uma nova dimensão, afetando
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diretamente a história não apenas da narrativa fantástica, mas também a da ficção curta
como um todo. A representativa produção de Poe, marcadamente influenciou escritores
norte-americanos ao longo do século seguinte. Seus textos continuam a ser lidos e
cultuados como pequenas obras primas. Antes de Poe a maioria dos autores de horror
escreveu sem a compreensão da base psicológica da sedução do horror e sujeitos ao
conformismo com certas convenções literárias, como o final feliz, a virtude premiada,
aceitação de padrões e valores populares e o empenho do autor em colocar suas próprias
emoções na narrativa e em se posicionar favoravelmente em relação aos personagens
defensores das idéias da maioria (LOVECRAFT, 1987, p.48). Poe, contrariamente,
traduziu a impessoalidade do verdadeiro artista e procurou com sua ficção expressar
eventos e emoções, sem se importar que sejam bons ou maus, agradáveis ou
repugnantes, felizes ou deprimentes. Tornou-se intérprete de sentimentos poderosos
ligados à dor, morte, decadência e medo.
Na verdade pode-se dizer que Poe inventou o conto em sua forma
presente. Por outro lado, a elevação da morbidez, da perversão e da
degenerescência ao nível de temas artisticamente exprimíveis teve
conseqüências de um alcance imenso; pois, avidamente assimilada,
abonada, intensificada pelo seu eminente admirador francês Charles
Pierre Baudelaire, tornou-se o núcleo dos principais movimentos
estéticos na França, assim fazendo Poe de certo modo o pai dos
decadentes e dos simbolistas. (LOVECRAFT, 1987, p.49)
A segunda metade do século XIX apresentou duas narrativas clássicas para a
ficção de horror, Dracula (1897), de Bram Stoker, cujo personagem central será objeto
de análise no próximo capítulo, e O Médico e o Monstro (1886), de Robert Louis
Stevenson. Ambos os romances, juntamente com Frankenstein, formam a trindade dos
arquétipos do horror (KING, 2003, p.46).
Ainda neste século vale destacar A Volta do Parafuso (1898), de Henry James.
“Mesmo com a reputação de escrever críticas literárias dentre as mais importantes da
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língua inglesa, James se aventurou em fazer uma das histórias mais aterrorizantes já
escritas” (GONÇALO, 2008, p.66).
No século XX a literatura de horror passa a ser influenciada pelo novo veículo
de comunicação que surgiu no final do século anterior, o cinema. A partir da década de
1930 um número maior de pessoas passou a consumir livros de horror. “Ao transpor
para as telas criaturas como Frankenstein, Drácula, Lobisomem e Múmia, os estúdios
Universal, especialmente, deram um novo fôlego ao mercado editorial” (GONÇALO,
2008, p.70). Nesta época surgem várias revistas de ficção, as populares pulp fiction,
com títulos destinados ao horror como Ghost Stories, Weird Tales e Horror. As pulp
fiction ostentavam capas que costumavam apresentar uma criatura monstruosa
ameaçando uma linda jovem. Um padrão de personagens que remete ao melodrama das
narrativas góticas e que foi prontamente assimilado pelo cinema ao abordar o horror.
A partir da segunda metade do século XX, a literatura de horror passa a ocupar
um expressivo filão do mercado editorial norte-americano e conseqüentemente mundial.
Nos anos 1960, surgem autores de best-sellers dedicados exclusivamente ao gênero. Os
mercados editoriais e cinematográficos se alinham cada vez mais ao explorar o horror.
O que pode ser visto por meio de dois sucessos editoriais que também obtiveram êxito
comercial nas telas: O Bebê de Rosemary (1967), de Ira Levin e O Exorcista (1971),
de William Peter Blatty, adaptados para o cinema em 1968 e em 1973 respectivamente.
Nos anos 1970, aparece Stephen King, provavelmente um dos nomes mais
representativos da literatura de massa norte-americana. Autor de sucessos como Carrie
(1974) e o Iluminado (1977), King tem uma vasta produção dentro do gênero horror
que vem sendo, paralelamente, adaptada para o cinema, fazendo com que a
popularidade de suas tramas tenha um alcance ainda maior.
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Vale citar ainda Anne Rice, que ainda na década de 1970 publica Entrevista
com o Vampiro (1976) e inicia uma longa série de romances vampíricos, populares
durante as décadas de 1980 e 1990, e o autor inglês Clive Barker. Os romances de Baker
abordam a idéia da existência de um mundo oculto que convive junto ao nosso. No
cinema a franquia cinematográfica Hellraiser, baseada em um conto seu, fez muito
sucesso nos anos 1980.
Atualmente vemos um uma nova explosão da exploração editorial do
personagem vampiro. A série de livros iniciada em Twilight (2005), de Stephenie
Meyer, vem se tornando cada vez mais consumida por um público jovem, ávido por
experiências emocionais, abrindo caminho para que novos autores explorem o filão.
Apoiada por uma estratégia de lançamentos paralela a série cinematográfica de sucesso,
as narrativas de Meyer vem conseguindo uma popularidade expressivamente maior que
aquela atingida por Anne Rice na década de 1980.
2. O horror no cinema
Como podemos ver as indústrias editorial e cinematográfica geralmente
estiveram aliadas na exploração de narrativas de horror que se tornaram parte do
repertório ficcional coletivo. “O gênero cinematográfico de horror descende diretamente
da literatura de horror do século XIX, esta nascida no seio da chamada literatura
fantástica” (SANTANA et al, 2007, p.219). Assim vamos retroceder até o final do
século XIX para observar o desenvolvimento do horror como gênero narrativo
cinematográfico. Não se pretende aqui listar títulos de obras e diretores, mas traçar uma
breve exposição evolutiva do gênero, afim de, posteriormente, situar e compreender as
personagens de horror a serem examinadas.
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O cinema nasceu com uma cena de medo, pelo menos
oficialmente. A primeira projeção pública feita pelos irmãos
Lumiére, foi em 28 de dezembro de 1895, no Grand Café do
Boulevard des Capucines, com dez pequenos filmes. Um deles tinha
o propósito de assustar a platéia: L’arrivée D’un Train em Gare.
(GONÇALO, 2008, p.162)
De acordo com os relatos deste evento a platéia reagiu temerosa com a imagem do trem
vindo na sua direção, mostrando o potencial para o horror do novo veículo que surgia.
O pai do filme de horror é sem dúvida o francês Georges Mélies
(AYLESWORTH, 1986, p.12). Nascido em 1861, este pioneiro do cinema e mágico
popular, inicialmente tentava utilizar a invenção dos irmãos Lumiére como extensão
para seus números de ilusionismo. Mas começou a produzir filmes experimentando
efeitos fotográficos. Entre 1897 e 1913, realizou mais de uma centena de curtas-
metragens, muitos deles com a intenção de assustar a audiência. Diferentemente das
projeções dos irmãos Lumiére, que obtinham esta resposta emocional da platéia com
imagens realistas, Mélies conseguia assustar com efeitos especiais fantasmagóricos e
criaturas monstruosas. Porém, com o desenvolvimento da narrativa cinematográfica,
Mélies tornou-se obsoleto frente a diretores como F. W. Murnau e David Griffith.
Em 1910, a Edison Company realiza a primeira adaptação de um romance de
horror para o cinema, Frankenstein. O curta-metragem com duração de doze minutos,
escrito e dirigido por J. Searle Dawley, além de ostentar o título de primeiro filme de
horror, também foi o primeiro filme do gênero a ser banido pelos exibidores norte-
americanos, impressionados com o monstro.
(...) e desde então, dado como perdido. Por muitos anos, a única
imagem que restara dele (descoberta em 1963 num libreto da Edison
Company preservado na Biblioteca do Congresso, em Washington)
era a hoje famosa fotografia still do ator Charles Ogle devidamente
caracterizado como monstro, desafiando a lente com um olhar
assustador. (SANTANA et al, 2007, p.217)
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Na década de 1980, o filme perdido foi incluído na lista das dez maiores raridades
desaparecidas da história do cinema pelo American Film Institute. Motivando um
colecionador a doar sua única cópia do filme que foi parcialmente recuperada e exibida
em 1997 na Inglaterra durante os eventos comemorativos dos duzentos anos do
nascimento de Mary Shelley.
Evidentemente, com o banimento do Frankenstein da Edison Company, a
visualização do monstro criado por Shelley ficaria a cargo da versão da Universal
Studios na década de 1930.
Nos Estados Unidos, ainda neste período do cinema mudo, Hollywood tinha
apenas uma única estrela que explorava com sucesso temas ligados ao horror, Lon
Chaney. Filho de pais surdos-mudos, Chaney aprendeu muito cedo a se expressar por
mímica. Seus talentos como maquiador permitiam que interpretasse mais de uma
personagem no mesmo filme e acabaram dando-lhe a alcunha de “o homem das mil
faces” (BADDELEY, 2003, p.47). Suas personagens mais marcantes foram
Quasímodo, em O Corcunda de Notre Dame (1923) e o papel título em O Fantasma
da Ópera (1925).
A dedicação de Chaney à arte era assustadoramente perversa. O
termo “masoquista” surge inúmeras vezes nas descrições dos
figurinos e maquiagem torturantes que ele adotava - muitas vezes
contrariando conselhos médicos – para atingir os desfiguramentos e
deformações requeridas pelos personagens nos quais se especializou.
(BADDELEY, 2003, p.48)
Em 1927, Chaney estrelou a primeira incursão de Hollywood ao tema vampírico,
London After Midnight, dirigido por Tod Browning. Apesar de no final revelar-se que
o vampiro na realidade era um disfarce para prender o verdadeiro criminoso, Chaney
exibiu uma maquiagem extrema, com fileiras de dentes como um tubarão e olhos
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salientes. Browning chegou a discutir com Chaney a realização de Dracula, mas um
câncer de garganta acabou encerrando a carreira do ator em 1930.
Antes de prosseguir com o advento do cinema falado no gênero horror, é
necessário destacar o expressionismo, movimento de vanguarda européia de grande
influência na indústria cinematográfica nas décadas de 1920 e 1930, e
conseqüentemente, também influente no horror. O expressionismo pretendia
“estabelecer uma ligação entre a arte contemporânea e a arte do futuro, com a negação
da arte alemã neo-romântica e a criação de um contato íntimo com a natureza e a
realidade” (GONÇALO, 2008, p.164). O movimento cessa sua existência
aproximadamente em 1913, mas serve de influência no cinema alemão, um dos
segmentos artísticos que tiveram grandes avanços e conseguiu destaque na época e
acabou por assimilar seu clima sombrio.
Nota-se uma tendência em utilizar a nova arte para abordar temas fantásticos
desde o início. Este direcionamento se consolidaria com O Golem (1915) e O Médico e
o Monstro (1915). Posteriormente, O Gabinete do Dr. Caligari (1919) tornou-se o
maior êxito internacional do expressionismo na época e passou a ser aclamado pela
crítica ao longo do século como uma obra-prima da história do cinema (GONÇALO,
2008, p.165).
Porém, Nosferatu (1922), de F. W. Murnau, uma adaptação não autorizada do
romance Dracula, é o mais famoso e polêmico filme de horror deste período e o
primeiro filme de vampiro a ser lançado em grande circuito. O filme de Murnau e a
polêmica sobre os direitos autorais da obra original serão comentados mais adiante,
quando tratarmos da adaptação cinematográfica na construção da imagem pública de
Drácula, no segundo capítulo.
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Durante as décadas de 1930 e 1940, o estúdio norte-americano Universal
Pictures apresentou para as grandes massas o horror no cinema e consagrou uma visão
sobre algumas personagens literárias de horror que perdura até hoje. É claro que outros
estúdios também exploraram o gênero com sucesso, mas durante algum tempo a
Universal não teve concorrentes. Os estúdios de cinema estavam produzindo filmes que
ajudassem o público a esquecer os problemas que passavam decorrentes da crise
econômica de 1929, apresentando tramas de amor e aventura em paisagens exóticas
com lindas mulheres e galantes heróis. Entretanto a Universal seguiu um caminho
contrário, mas que atingiria o mesmo propósito, explorando inicialmente os monstros da
literatura de horror. “Com a preocupação de não afastar o público potencial pelo medo,
estabeleceu-se como estratégia histórias de horror mais leves, de grande apelo ao
público médio e que podiam ser vistas pela tradicional família americana” (GONÇALO,
2008, p. 169). O primeiro sucesso da Universal no horror foi Dracula (1931), dirigido
por Tod Browning, que logo foi seguido por Frankenstein (1931), com direção de
James Whale. Transformando Bela Lugosi e Boris Karloff, respectivamente, em
grandes astros do cinema de horror.
O ciclo de horror da Universal levou às telas diversos monstros como a múmia,
o lobisomem e o monstro da lagoa negra, e realizou muitas seqüências de seus filmes
iniciais, mas na segunda metade da década de 1940 entra em declínio reunindo seus
principais monstros em produções de baixa qualidade ou em comédias com a dupla
cômica Abbott & Costello. A Segunda Guerra Mundial mobilizava a atenção da
indústria cinematográfica e em seu desenvolvimento mostrou horrores que tornaram
obsoletos os monstros da Universal (AYLESWORTH, 1986, p. 76).
Já na era atômica, a década de 1950 marcou o cinema de horror com uma série
de produções com insetos gigantes e invasores alienígenas. Era mais plausível que os
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monstros dos filmes no pós-guerra viessem de outros planetas ou fossem fruto da
mutação radioativa do que provenientes de cemitérios ou castelos em ruínas. Este
desenvolvimento do horror é um reflexo do aumento da sensação de desconforto
causada no público norte-americano pela guerra fria. As ameaças à segurança da nação
não vinham mais da Europa, ambientada em cenários góticos, mas da União Soviética
no oriente, adversária na corrida espacial e numa possível guerra nuclear.
Se os filmes são os sonhos da cultura de massa – um crítico de
cinema chegou a chamar o ato de assistir a um filme de “sonhar com
os olhos abertos” – e se os filmes de horror são os pesadelos da
cultura de massa, então muitos desses horrores dos anos 50
expressam o fato de o americano estar encarando a possibilidade de
aniquilação nuclear em conseqüência de divergências políticas.
(KING, 2003, p. 101)
Os avanços tecnológicos também traziam desenvolvimentos não só para o
conteúdo dos filmes de horror, mas também para seu veículo, o cinema. Assim, em
1953, House Wax, com Vincent Price, estreava inovando com a tecnologia do cinema
em terceira dimensão (3D), que utilizava o uso de três projetores posicionados em
diferentes ângulos na sala de exibição, somados ao uso de óculos bicolores pela platéia.
Proporcionando a sensação de profundidade na tela e aproximando personagens e
objetos dos espectadores.
Outro evento marcante para o cinema de horror na década de 1950 foi o
surgimento de estúdios especializados na exploração de produções de baixo orçamento.
Estes novos estúdios eram amparados por uma lei colocada em vigor pela justiça norte-
americana em 1948, que abria o mercado para a produção e distribuição de filmes, até
então monopólio dos grandes estúdios de Hollywood (BADDELEY, 2002, p. 58).
Dentre os produtores que exploraram o filão dos filmes de horror de baixo orçamento, o
mais inventivo foi sem dúvida William Castle. Como não podia arcar com tecnologias
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de alto custo como a terceira dimensão, Castle utilizou diversos truques para assustar a
platéia, como um esqueleto de plástico, suspenso por ganchos, que voava sobre o
público durante a exibição de A Casa dos Maus Espíritos (1958). Ou mesmo se
valendo de assentos equipados com dispositivos elétricos que causavam choques
brandos em alguns espectadores nas projeções de Força Diabólica (1959). Ambas as
produções traziam Vincent Price como protagonista. Price na década seguinte se
consagrou como ator ícone do horror (ao lado de Lugosi e Karloff) ao estrelar uma série
de adaptações da obra de Edgar Allan Poe produzidas por Roger Corman.
Outro produtor que se beneficiou da abertura do mercado cinematográfico nos
Estados Unidos, não menos criativo que Castle, porém relegado à obscuridade durante
aquele período, é o diretor Edward D. Wood Jr. Realizador de Bride of the Monster
(1956) e Plan 9 From Outer Space (1959). Ed Wood trabalhou com Bela Lugosi no
final de sua carreira, dirigindo seus últimos filmes.
As tramas são incoerentes e os roteiros surreais de tão inaptos, as
atuações são manifestamente inexpressivas e os cenários são
obviamente feitos de papelão. Mas a distinção dúbia de ser rotulado
como “o pior filme de todos os tempos” no bem sucedido livro de
1980 The Golden Turkey, colocou Plan 9 – que já alcançara uma
improvável reputação de filme Cult – sob os refletores.
(BADDELEY, 2002, p. 60)
Com as mudanças de comportamento dos adolescentes no pós-guerra, eles se
tornaram um problema de Estado a partir da segunda metade da década de 1950.
Passaram a fumar, desafiavam os adultos, trocavam carícias no banco traseiro dos
automóveis, se referiam aos mais velhos com termos desrespeitosos e logo passaria a
ouvir o rock’n’roll para aumentar o confronto entre gerações. Os adolescentes viraram
um dos grandes medos da sociedade norte-americana e logo começaram a ser
representados como ameaças, não apenas em filmes de horror, mas também em
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produções fora do gênero. Como em O Selvagem (1953), Juventude Transviada
(1955) e Sementes da Violência (1955), que logo deram lugar a I Was a Teenage
Frankenstein (1957), I Was a Teenage Werewolf (1957) ou Monster on the Campus
(1958) (GONÇALO, 2008, p. 173).
Na Inglaterra, os monstros da Universal receberiam novas versões no final da
década de 1950 pela companhia Hammer Films, que exploraria amplamente o gênero
horror durante as décadas de 1960 e 1970. A companhia inglesa, que antes da segunda
guerra mundial dedicava-se apenas a distribuição de filmes, passou a produzir filmes
ampliando sua participação no mercado nacional. Inicialmente com produções de ação e
espionagem a Hammer migrou para o terror e a ficção-científica afim de preencher um
espaço desocupado no mercado britânico. O primeiro longa-metragem no gênero horror
foi o bem sucedido The Quatermass Xperiment (1955), que obteve uma continuação
no ano seguinte e motivou a Hammer Films a investir no gênero. As criaturas da
Universal foram revitalizadas, agora com cores e um erotismo inaceitável para os
padrões da época em que Lugosi e Karloff brilharam. Primeiramente com The Curse of
Frankenstein (1957), seguido por Horror of Dracula (1958), ambos dirigidos por
Terrence Fisher. “Os dois filmes arrastaram multidões para as salas de cinema no
mundo inteiro e estabeleceram a Hammer como destaque do gênero” (GONÇALO,
2008, p. 174). Tanto Christopher Lee quanto Peter Cushing que protagonizaram ambos
os filmes participaram de dezenas de filmes de horror da Hammer nas décadas seguintes
e alcançaram um lugar entre os grandes astros do gênero. Lee assumiu o manto de
Drácula e enfrentou Cushing, como Van Helsing em algumas das seqüências de Horror
of Dracula.
Apesar de os anos 1960 já mostrarem consideráveis avanços nas técnicas de
maquiagem e efeitos especiais o horror no cinema seguiu uma tendência, que se
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consolidou ao longo da década seguinte, de humanizar seus monstros. Se no início se
valia de criaturas sobrenaturais, neste período as ameaças estavam mais próximas do
espectador, como em Psicose (1960), de Alfred Hitchcock e Repulsa ao Sexo (1965),
de Roman Polanski. Esta tendência se desdobra em um ciclo de filmes de serial-killers
nas décadas de 1970 e 1980, gerando franquias de sucesso como O Massacre da Serra
Elétrica (1974), Halloween (1978) e Sexta-Feira 13 (1980).
Com os avanços nos recursos de maquiagem os anos 1960 também marcam um
aumento na violência exibida nas películas do gênero, notadamente Blood Feast (1963),
dirigido por Herschell Gordon Lewis, é reconhecido como o primeiro filme gore.
“Subgênero do cinema de terror que se caracteriza por seqüencias de clímax de longa
duração e extrema violência, mutilações, sangue, vísceras e personagens pouco realistas.
Costuma manifestar-se em filmes de baixo orçamento” (RAMOS, 2002, p. 285). O
termo gore, proveniente da língua inglesa, “significa o sangue derramado, coagulado ou
nauseabundo, diferenciando-se de blood, o sangue nobre da vida que circula em nosso
corpo” (MATTOS, 2003, p. 62). O filme de horror gore, procura provocar na audiência
uma reação violenta de repulsa ao mostrar a simulação de corpos de seres humanos ou
animais retalhados e grandes quantidades de sangue. “É um tipo de filme que permite
truques espetaculares por um preço muito baixo: bastam espessas camadas de
maquiagem, carniças e vísceras de animais, e uma boa provisão de líquido espesso
simulando o sangue” (MATTOS, 2003, p. 62). O gore também costuma ser chamado de
splatter (no sentido de espirrar ou esparramar sangue) pela crítica norte-americana
principalmente.
Ao mesmo tempo em que Lewis filmava Blood Feast, José Mojica Marins no
Brasil produzia À Meia Noite Levarei Sua Alma (1964). Mojica é reconhecido como
precursor do gore, tão em voga nas produções do gênero atualmente, e também como
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pioneiro na abordagem de tabus e temas extremos. O Estranho Mundo de Zé do
Caixão (1968), dirigido por Mojica, é citado por sua ousadia gráfica e temática na
abertura do livro de Jay Slater (2006, p. 14), Eaten Alive! Italian Cannibal and
Zombie Movies. Neste texto Slater faz um levantamento dos predecessores
cinematográficos que abordaram o canibalismo, explorado exaustivamente pelo ciclo de
filmes de zombies e canibais do terceiro mundo, que ocorreu na Itália na década de 1970
e primeira metade da década de 1980, e cujo mais polêmico expoente é Cannibal
Holocaust (1980), de Ruggero Deodato.
Com o sucesso de O Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polanski, a década
de 1970, paralelamente aos serial-killers, coloca o demônio como uma das grandes
ameaças, como em O Exorcista (1973), de William Friedkin e A Profecia (1976), de
Richard Donner. O filme de Friedkin mostrou que o horror era capaz de atrair o
interesse de um público tão grande quanto o de qualquer outro gênero de sucesso nas
bilheterias.
O Exorcista apareceu e tornou-se um fenômeno social em si mesmo.
As filas davam a volta no quarteirão em todas as grandes cidades
onde foi exibido, e mesmo nas cidades menores onde as ruas
ficavam desertas e a luz dos postes era desligada pontualmente às
19:30, foram realizadas sessões à meia noite. Grupos da igreja
fizeram piquetes; sociólogos com seus cachimbos vaticinaram;
radialistas leram segmentos da contracapa em seus programas de fim
de noite. (KING, 2003, p. 115)
Enquanto isso na Inglaterra a Hammer Films entrava em decadência com os
filmes sobre Drácula, cada vez mais distantes do texto original de Stoker, transportando
o conde vampiro para a atualidade. O estúdio inglês acabou por encerrar suas atividades
em 1976. Porém seu concorrente no Reino Unido, o estúdio Amicus, estava produzindo
bons exemplos de horror, predominante na forma de antologias que apresentavam várias
histórias reunidas num só filme.
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Nos Estados Unidos durante os anos 1980, apesar da crescente evolução em
maquiagem e efeitos especiais, de maneira geral o gênero torna-se menos sombrio,
substituindo o clima transgressivo e doentio por situações cômicas, como em Um
Lobisomem Americano em Londres (1981), dirigido por John Landis, A Hora do
Espanto (1985), de Tom Holland e A Volta dos Mortos Vivos (1985), de Dan
O’Bannon dentre outros. Misturando serial-killers com elementos sobrenaturais Jason
Voorhees e Freddy Krueger de Sexta-Feira 13 (1980) e A Hora do Pesadelo (1984)
tornam-se os monstros mais populares da década através de várias seqüências que
acabaram condenando os filmes de horror a serem vistos pela crítica, e
conseqüentemente pelo público que a tem como referência, como trabalhos sem valor
artístico, inconseqüentes e dispensáveis. O tema do serial-killer, iniciado em Psicose
(1960) e O Massacre da Serra Elétrica (1974), ganhou tal força entre as décadas de
1970 e 1980 que se tornou um subgênero do horror, o Slasher. As características básicas
deste tipo de filme podem se resumidas como “(...) assassinatos em série numa pequena
área do interior e adolescentes que são mortos por um monstro no momento em que
fazem sexo – o que parece reforçar o sentimento de culpa e o moralismo” (GONÇALO,
2008, p. 179). Dois mercados acabaram por impulsionar a produção deste subgênero do
horror, que oferecia grandes margens de lucro para produções realizadas rapidamente e
que requeriam baixíssimos orçamentos. Inicialmente o mercado de cinemas drive-ins
nos Estados Unidos, que ofereciam sessões de exibição com mais de um filme e numa
segunda fase o mercado de videolocadoras que se formava e necessitava de novidades
para preencher suas prateleiras.
A revolução digital transformou o computador num importante recurso para o
terror na década de 1990. Praticamente sobrepondo a computação gráfica às técnicas
tradicionais de maquiagem e efeitos especiais na década seguinte. Contraditoriamente,
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outra característica marcante do cinema de horror nos últimos vinte anos é a releitura de
obras do gênero, nem tão distantes no tempo, e o retorno a tendências das décadas
passadas. Em 1994, Francis Ford Coppola, recria o conde vampiro em Bram’s Stokers
Dracula, e a partir daí, num novo ciclo, os monstros da Universal são mais uma vez
revisitados e atualizados para uma nova geração. Frankenstein, a Múmia e o
Lobisomem vão sendo sucessivamente reinventados e na primeira década do segundo
milênio a indústria cinematográfica investe na atualização de diversos sucessos do
gênero dos últimos trinta anos. Assim, vão sendo lançados uma série de remakes: O
Massacre da Serra Elétrica (2003), A Casa de Cera (2005), A Profecia (2006),
Halloween (2007), Sexta-Feira 13 (2009), numa tentativa de revitalizar as antigas
franquias. Paralelamente, o cinema norte-americano também passa a realizar remakes de
produções de horror européias ou orientais com potencial de sucesso em seu mercado
interno. Como no caso do filme japonês Ringu (1998) e na produção espanhola Rec
(2007) que ao serem refilmados nos Estados Unidos receberam os títulos de O
Chamado (2002) e Quarantine (2008).
Nota-se neste período um receio de investir em novidades no gênero. Uma
exceção que vale ser citada é A Bruxa de Blair (1999), escrito e dirigido por Daniel
Myrick e Eduardo Sánchez. Este filme utiliza uma linguagem narrativa documental, que
numa época em que as pessoas carregam câmeras embutidas em aparelhos celulares o
tempo todo, passa a ser extremamente atual e aponta para uma nova tendência que pode
ser vista em Diary of the Dead (2007), Cloverfield (2008), o já citado Rec (2007) e
Paranormal Activity (2009).
Talvez o pânico mundial provocado pelo terrorismo neste novo milênio tenha
eclipsado o pavor oferecido pelos filmes de horror da mesma maneira que a Segunda
Guerra Mundial influenciou o gênero na década de 1940 e acabou fazendo com que
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houvesse uma renovação no pós-guerra. Esperamos que a indústria cinematográfica
aposte em novas idéias e que esta renovação também aconteça logo. Para nos próximos
anos proporcionar ao público novos “pesadelos da cultura de massa”.
3. A teoria do horror
Antes de prosseguir no exame do horror ficcional é necessário fazer algumas
ponderaçoes sobre o conceito do fantástico, no qual grande parte das obras do gênero
horror se inserem. Para Todorov quando eventos não podem ser explicados pelas leis de
nosso mundo existem duas opções para tentar entende-los.
Ou se tratam de uma ilusão dos sentidos, de um produto da
imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são;
ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da
realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis
desconhecidas para nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginario;
ou então existe realmente. (TODOROV, 1975, p. 30)
O fantástico propriamente dito surge da incerteza entre estas opções, ao escolher
uma das duas soluções estará se incorrendo em uma das instâncias de sua
materialização: o estranho e o maravilhoso. O fantástico estranho ocorre quando se
confirma que o evento inusitado trata-se de um produto da imaginação. Já o fantástico
maravilhoso acontece quando o fato é confirmado e entende-se que a realidade é regida
por leis desconhecidas.
Um esquema classificatório semelhante se refere especificamente ao romance
gótico do século XIX (CARROLL, 1999, p. 17). O gótico histórico narra uma história
ambientada no passado imaginado, não sugerindo qualquer tipo de acontecimento
sobrenatural. O gótico natural ou gótico explicado introduz fenômenos sobrenaturais
que posteriormente terminam por serem racionalmente explicados (fantástico estranho),
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enquanto que no gótico sobrenatural a existência e a ação cruel de forças não-naturais
desafiam as leis de nossa realidade (fantástico maravilhoso). Uma quarta categoria é o
gótico equívoco que torna ambígua a origem sobrenatural dos eventos narrados por
meio de personagens tomadas pela loucura, equivalendo ao fantástico puro.
Todorov aponta outras definições para o conceito de fantástico, formuladas por
teóricos do século XIX, porém todas acabam incorrendo nas instâncias do estranho e do
maravilhoso.
Um ponto de vista teórico diferente é o que situa o fantástico no leitor. Lovecraft
é citado por Todorov (1975, p. 40) como representante desta tendência que vimos no
início deste capítulo quando abordamos o horror na literatura. Assim, para Lovecraft o
elemento real para julgar o conto fantástico ocorre em função da intensidade emocional
provocada no leitor, que deve incorrer num sentimento de temor diante de mundos e
poderes desconhecidos. Todorov se opõe claramente a esta concepção.
É surpreendente, ainda hoje, esses juízos na pena de críticos sérios.
Se tomarmos suas declarações literalmente, e que o sentimento de
medo deva ser encontrado no leitor, seria preciso deduzir daí (e este
é o pensamento de nossos autores?) que o gênero de uma obra
depende do sangue-frio do leitor. Procurar o sentimento de medo nas
personagens não permite delimitar melhor o gênero: em primeiro
lugar, os contos de fada podem ser histórias de medo: como os
contos de Perrault (contrariamente ao que deles diz Penzoldt); por
outro lado, há narrativas fantásticas nas quais todo medo está
ausente: pensemos em textos tão diferentes quanto “A Princesa
Brambilla” de Hoffman e “Véra” de Villiers de I’sle-Adam. O medo
está freqüentemente ligado ao fantástico, mas não como condição
necessária. (TODOROV, 1975, p. 41)
Porém o medo é condição necessária para o horror no cinema. “O filme de
horror é uma caixa fechada, com uma manivela de um lado, e, em última analise, tudo
se reduz à tarefa de girar essa manivela até que o boneco lá dentro pule na nossa cara,
segurando seu machado e arreganhando seu sorriso assassino” (KING, 2003, p. 129). A
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comparação com a caixa de surpresa assustadora também é válida para o conto de
terror, do qual descende o filme de horror. Assim, quando Lovecraft (1987, p. 05) fala
sobre o verdadeiro conto fantástico, devemos entender, de acordo com a distinção
estabelecida por Todorov, como se referindo diretamente ao fantástico maravilhoso e
mais especificamente ao conto de terror.
Ao longo deste trabalho irá se alternar entre as denominações horror e terror para
identificar o gênero aqui tratado. Conceituamos ambos os termos como sinônimos, e
adotaremos tal procedimento visando tornar mais agradável a leitura desta pesquisa.
Tanto o horror está contido na literatura fantástica como o contrário também
pode acontecer, mesmo tendo características distintas. Assim, a observação do elemento
fantástico no cinema de horror passa a ser um recurso de análise a ser explorado neste
estudo, procurando a diferenciação, quando ocorrer o elemento fantástico, entre o
estranho e o maravilhoso.
A condição da existência de medo no plano emocional da audiência para a
concretização do filme de terror se reforça na definição de Ramos (2002, p. 564) que
afirma que o gênero “se caracteriza pela utilização de histórias e personagens que
pretendem provocar o medo e o susto no espectador”. Estes personagens podem estar à
margem das leis naturais (maravilhoso) como mortos-vivos, seres invisíveis ou
monstros diabólicos, mas também podem ser realistas como doentes mentais ou mesmo
seres humanos sádicos. Desta maneira fica estabelecida uma divisão inicial nas
personagens deste gênero, elas podem caracterizar o horror fantástico ou o horror
natural (o horror sem o elemento fantástico).
O medo é uma emoção primária do ser humano que alcança maior intensidade
quando é provocado por algo desconhecido que representa uma ameaça. A função
catártica do filme de horror sobre o espectador é muito elevada, devido a liberação de
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uma das maiores porcentagens de agressividade que pode permitir a realização áudio-
visual.
O espectador somente sente medo se sabe que deve senti-lo.
Geralmente costuma se dar a preparação de uma série de elementos
consistentes em definir um personagem geralmente atraente, cuja
expressão mais caricata é a de uma jovem indefesa; se costuma criar
a existência de um perigo (um monstro, um assassino), recriar o
ambiente (a noite, a escuridão), somar a ameaça sonora (sons de
origem desconhecida, música que manipula a emoção) mais a
iluminação (muitas vezes de baixo, recortada) e a partir daí se pode
disparar o susto. (RAMOS, 2002, p. 564)
Alguns dos elementos dramáticos mais habituais para a concretização do medo
no filme de terror são: o susto por surpresa, o susto com suspense, o assassinato, a
tortura e a deformidade que se relaciona aos personagens e ao ambiente em que agem.
Esta deformidade pode ser uma doença mental da personagem que se converte em
ameaça, como também pode ser a esquizofrenia, a psicose, o delírio, a alucinação, o
sadismo, a necrofilia, a condição de não-morto (vampiro, morto-vivo) ou a
transformação em monstro. Outro elemento dramático comum no gênero é a utilização
freqüente do sexo, muitas vezes na forma de assassinato sexual. “O fato mais simples da
ficção de horror, não importando a mídia que você escolher... o fundamento da ficção de
horror, pode-se dizer, é este: você tem que apavorar a platéia” (KING, 2003, p. 146).
A dança macabra do horror
Estabelecida a essência do filme de horror vamos nos dedicar a observação das
considerações feitas por Stephen King em seu ensaio analítico sobre o gênero, para
obter mais elementos para examinar as personagens Drácula e Zé do Caixão.
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Um apontamento inicial é que as narrativas que lidam com o horror operam em
dois níveis. Primeiramente está o nível do horror explícito: “quando Regan vomita na
cara do padre e se masturba com um crucifixo em O Exorcista ou quando o terrível
monstro, virado do avesso, arranca e mastiga a cabeça do piloto do helicóptero como se
fosse pipoca em a Semente do Diabo, de John Frankenheimer” (KING, 2003, p. 19). O
horror explícito é a concretização do elemento assustador, fantástico ou não, que está
sempre presente no cinema de terror e que pode ocorrer em diferentes graus de
refinamento artístico.
O segundo nível procura atingir temores e suscitar medos mais profundos no
espectador. King chama de pontos de pressão fóbica, que quando o fazem em nível
nacional ou global e acabam por abordar temores políticos, econômicos ou psicológicos,
em vez de sobrenaturais apenas, conferem um sentimento alegórico aos filmes de terror.
O horror profundo, como veremos adiante, se relaciona com o subtexto que pode estar
contido no filme de horror. De maneira cíclica o cinema de horror, a cada dez ou vinte
anos, parece desfrutar de maior interesse ou popularidade, quase sempre coincidindo
com épocas de grande tensão política ou econômica (KING, 2003, p. 33). Desta maneira
refletindo e representando estes pontos de pressão fóbica da sociedade.
Respondendo a questão paradoxal do horror: por que se submeter a experiência
de se horrorizar no cinema se o horror na vida real é uma emoção contra a qual se luta?
Primordialmente é preciso fazer uma distinção (que será reforçada mais adiante com o
conceito do horror artístico) entre a emoção do horror da vida real e a emoção do horror
“de mentira” da ficção, apesar deste tentar em alguns casos reproduzir ou superar o
primeiro. A criação deste horror ficcional tem uma finalidade catártica de nos auxiliar a
suportar os horrores da vida real. “Contando com a infinita criatividade do ser humano,
nos apoderamos dos elementos mais polêmicos e destrutivos e tentamos transformá-los
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em ferramentas para desmantelar esses mesmos elementos” (KING, 2003, p. 24).
Porém, sempre com o momento de reintegração com o mundo real em total segurança.
Um convite para a audiência exercitar emoções que a sociedade exige que se mantenha
o controle.
Se aprofundando na questão do horror explícito, King (2003, p. 29) sugere três
graus para sua ocorrência. Nota-se o caráter valorativo desta classificação, cujo primeiro
grau invoca a emoção do horror da maneira mais apurada, que pode ser exemplificada
pela história do Gancho ou pelo conto A pata do Macaco (1902), que sugerem muito
mais o horror explícito do que realmente mostram. No segundo grau estão as narrativas
de horror que fazem por merecer o termo horror explícito, materializando aos olhos do
espectador seus temores. E no terceiro grau está o horror da repulsa, que provoca o asco
na platéia, como na cena em que explode o peito de uma astronauta em Alien o Oitavo
Passageiro (1979), de Ridley Scott. As películas do subgênero gore costumam operar
quase que totalmente neste nível, enquanto que os filmes de horror geralmente vão
oscilar entre estes graus. “Há o horror mais refinado; o horror que está abaixo deste
primeiro; e a mais baixa forma de horror a golfada de repulsa” (KING, 2003, p. 31).
Em relação à personagem de horror, King (2003, p. 46) define os três arquétipos
essenciais da ficção de horror, que podem ser aplicados quase sempre ao observar os
monstros ou ameaças dos filmes de terror. São eles os monstros dos romances Dracula,
Frankenstein e O Médico e o Monstro, ou, o vampiro, a coisa inominável e o
lobisomem. Apresentados metaforicamente na forma de cartas do baralho de tarô do
horror. Um quarto arquétipo, o fantasma, presente no romance A Volta do Parafuso
(1898), de Henry James, acaba sendo excluído pela pouca influência do romance na
cultura de massa norte-americana e também por ser um arquétipo presente em uma área
ampla demais para que possa ser limitado a uma única obra a ser discutida. King diz que
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o arquétipo do fantasma é o Mississipi da ficção sobrenatural, mas mesmo assim é
abordado a partir da análise de uma série de narrativas com esta temática na parte final
de seu ensaio. Neste estudo o arquétipo do fantasma também será considerado a fim de
aumentar as possibilidades para análise.
Os três romances ocupam uma posição extremamente influente, ao longo do
século XX, na formação da moderna história do horror. “No seio de cada um deles está
prostado (ou cambaleia) um monstro que engrossa e faz parte do (...) “complexo mítico”
– aquele corpo literário de ficção no qual nós, mesmo os que não lêem ou não vão ao
cinema, estamos todos imersos” (KING, 2003, p. 46).
Frankenstein, dentre os três romances é o menos lido. O nome é extremamente
conhecido, mas a grande maioria o confunde ao se referir a criatura sem saber que se
trata na verdade do nome do criador. Tanto a imagem do monstro de Frankenstein,
quanto a imagem do conde Drácula, foram transformadas e popularizadas pelo cinema
como ícones do horror em geral. “Os filmes têm desempenhado muito bem a função de
criar essa câmera de eco cultural. (...) Em lugar das idéias que os livros e romances nos
fornecem, os filmes nos dão em troca boas doses de emoção visceral” (KING, 2003, p.
49). A característica preponderante no arquétipo do monstro de Frankenstein, que no
“baralho do tarô” se torna a coisa inominável, é a dicotomia desenvolvida por Shelley
no romance: por um lado podemos sentir o pavor e sofrimento do Dr. Victor
Frankenstein em relação a sua criação, mas por outro lado nos deparamos com a
inocência da criatura, despertando sentimentos contraditórios de amor e ódio. O leitor
de Frankenstein é submetido a uma divisão em seu próprio espírito: “(...) o leitor que
deseja apedrejar o monstro e o leitor que sente a pedrada e chora a injustiça dela”
(KING, 2003, p. 51). Outra personagem de horror que se encaixa perfeitamente sob a
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efígie da coisa inominável é o gorila gigante de King Kong (1933), numa das grandes
fusões entre horror e amor ou inocência e terror.
Antes de examinar o próximo arquétipo, o vampiro, é importante considerar
mais uma divisão na ficção de terror de um modo geral: a interiorização do mal. “As
histórias de horror de fundo psicológico – aquelas que exploram os caminhos do
coração humano – quase sempre remexem no conceito de vontade própria; “mal
interior”, se assim desejarem, aquele a que não se tem o direito de responsabilizar Deus-
Pai” (KING, 2003, p. 53). Um ótimo exemplo para este tipo de narrativa é o conto O
Coração Denunciador (1843), de Edgar Allan Poe, onde o assassinato é cometido por
pura maldade, sem nenhuma motivação atenuante. Poe ainda sugere a insanidade do
narrador da história, pois uma maldade tão perfeita, sem justificativa, só poderia ser
fruto da loucura.
É verdade! Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente
nervoso! Mas, por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me
aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu. Era
penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as
coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno ouvia. Como
então, sou louco? Prestai atenção! E observai quão lucidamente,
quão calmamente vos posso contar toda a história. (POE, 2001, p.
287-288)
Assim temos as histórias nas quais o horror é resultado de um ato de vontade
própria e consciente, em oposição aquelas narrativas nas quais o horror tem sua origem
de uma fonte externa. Este segundo grupo de histórias que abordam o mal exterior são
freqüentemente mais difíceis de serem levadas em sério, porém ainda assim é um
conceito amplo e pavoroso quando bem executado como na obra de Lovecraft. “Afinal
de contas o que é o ridículo medo interior da bomba H, quando comparado ao
Nyarlathotep, o caos rastejante ou a Yog-Sothoth, o bode com mil filhotes” (KING,
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2003, p. 53)? Todavia, é em Dracula, de Bram Stoker que o arquétipo do vampiro
atinge sua total plenitude, dando ao conceito do mal exterior uma forma humanizada.
O mal que carrega o conde Drácula apresenta-se predestinadamente; sua viagem
para Londres não é originada por nenhum ato de maldade de um mortal; o sofrimento e
castigo sofrido por Jonathan Harker no castelo de Drácula não é fruto de pecado ou
fraqueza íntima da personagem, ele bateu à porta da morada do vampiro porque seu
patrão lhe ordenou que o fizesse. Da mesma maneira a morte de Lucy Westenra, com o
coração trespassado por uma estaca e a cabeça decapitada, não pode ser justificada por
nada que tivesse feito em vida.
A segunda característica marcante do arquétipo do vampiro é o da violação
sexual. O moralismo na Inglaterra na virada para o século XX deve ter sido um fator
influenciador para que a maldade de Drácula viesse de fora, já que se origina de uma
perversão sexual. As impressões de Harker sobre os ataques vampíricos são
apresentadas em seu diário em descrições notadamente de cunho sexual.
A moça estava ajoelhada a meu lado e nesta postura se mantinha
ainda curvada sobre mim, apenas me olhando fixamente, como num
êxtase de enternecimento. Brilhava em seus olhos uma desvairada
voluptuosidade. (...) Sob a claridade do luar pude ainda observar a
farta saliva que inundava sua boca aflorar no friso escarlate dos seus
lábios e intensificar o rubor de sua língua ao se desdobrar sobre as
arcadas dos seus dentes aguçados. E mais e mais foi baixando sua
cabeça. Seus lábios pouco demoraram sobre a minha boca. E
deslizando ainda um pouco mais, acompanharam a curva do meu
queixo e, (...) senti então o trêmulo e macio toque dos lábios
molhados sobre a supersensível pele de minha garganta de mistura
com as cortantes serrilhas de seus fortes dentes, que agora pareciam
repousar ali. Cerrei então meus olhos no excitado e langoroso êxtase
que precedia agora a definitiva espera, enquanto meu coração batia
descontroladamente. (STOKER, 1993, p. 50-51)
De maneira parecida Drácula só ataca as personagens do sexo feminino,
primeiramente Lucy e depois Mina. As reações delas são muito semelhantes às
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sensações experimentadas por Harker com as vampiras no castelo. “De dia, uma Lucy
cada vez mais pálida, porém perfeitamente apolínea, conduz um namoro decoroso e
dentro dos padrões com aquele a quem está prometida, Arthur Holmwood. À noite ela
se embriaga num abandono dionisíaco do seu sedutor sombrio e sanguinário” (KING,
2003, p. 55). Assim o arquétipo do vampiro representa a sexualidade baseando-se na
oralidade e comportando-se de maneira inversa: ele suga um poderoso fluido ao invés
de contribuir numa relação de troca. Grande parte do sexo representado no cinema de
terror está fundamentado neste tipo de relação, geralmente levando a um final infeliz,
em que um parceiro está totalmente sob o controle do outro. Talvez esse seja um dos
motivos para os vampiros se manterem populares entre os adolescentes, “(...) ainda
tentando se entender com sua própria sexualidade. O vampiro parece ter encontrado o
atalho entre todas as máximas culturais a respeito do sexo... e, para completar, ainda é
imortal” (KING, 2003, p. 55).
O terceiro arquétipo é o lobisomem, cuja face original é Edward Hyde, alter ego
do Dr. Jekyll no romance O Médico e o Monstro (1886), de Robert Louis Stevenson.
Um claro exemplo da presença do mal interior, num conflito entre o potencial apolíneo
(a criatura de intelecto, da moralidade, da nobreza, procurando o caminho da conduta
social correta) e os desejos dionisíacos (próprios do deus das festanças e do prazer
físico), que ocorre num grande número de filmes e romances de terror.
Um exemplo cinematográfico que se encaixa perfeitamente na “carta” do
lobisomem é Psicose (1960), de Alfred Hitchcock. Seu conflito central é exatamente o
conflito apolíneo/dionisíaco, que também pode ser visto como o conflito entre o id e o
superego. Norman Bates, proprietário de um motel de beira de estrada em decadência ,
parece ser uma pessoa absolutamente normal sem dar qualquer motivo para que seja
temido.
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Mas Norman é o lobisomem. Só que em vez de ficar com o corpo
cheio de pêlos, ele se transforma vestindo as anáguas, os vestidos e a
combinação de sua mãe – retalhando os hóspedes em vez de mordê-
los. Da mesma maneira que Dr. Jekyll tem aposentos secretos no
Soho e “a porta do Sr. Hyde”, nós descobrimos que Norman tem seu
próprio lugar secreto, onde suas duas personas se encontram: nesse
caso, um buraco na parede por trás de um quadro que ele usa para
ver as garotas se despirem. (KING, 2003, p. 61)
O fantasma, a quarta “carta” que atinge um vasto campo na ficção e dificilmente
pode ser analisada a partir de um único romance, se caracteriza como um espelho de
nossa própria imagem. Intensamente explorado pela literatura gótica, o fantasma acaba
por remeter também ao conflito entre o livre arbítrio de praticar o mal ou negá-lo. Pois
para a ficção em geral os fantasmas não são intrinsecamente malvados, mas para servir
aos propósitos do horror, o fantasma deve ser malvado, assim levantando a
característica central do arquétipo do lobisomem. Capaz de assustar justamente por nos
mostrar nosso eu mais profundo, nossa parte dionisíaca totalmente despida de qualquer
restrição, capaz de atravessar paredes, desaparecer e falar pela voz de estranhos
possuindo seus corpos.
Para concluir este levantamento dos principais arquétipos do horror, King ainda
apresenta outro arquétipo ao qual não confere o status de uma autêntica “carta” de seu
tarô do horror. A casa mal-assombrada, chamada por ele de “lugar ruim”. Este arquétipo
vale ser considerado neste estudo. Apesar de ocorrer genuinamente num pequeno
subgênero do horror está presente parcialmente na ambientação de uma grande
quantidade de obras de terror e também foi amplamente utilizado na literatura gótica.
Este cenário apresenta uma série de elementos dramáticos que reforçam o quanto é um
lugar ruim. “Poderíamos até dizer que a definição mais verdadeira da casa mal-
assombrada seria uma casa com uma história nada agradável” (KING, 2003, p. 172).
Assim o lugar ruim traz um passado marcado pela maldade e irá caracterizar este
arquétipo pela necessidade de uma contextualização histórica para auxiliar em seu
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objetivo de assustar o público. Também atua como um microcosmo onde forças
universais se confrontam.
Houve um tempo em que a casa mal-assombrada era vista pela
crítica como um símbolo sexual primário que talvez tenha permitido
ao gótico transformar-se em uma forma segura de falar sobre os
temores sexuais. (...) O crescimento dos filmes de horror nos anos 70
e começo dos 80, desde O Exorcista ao Calafrios, de Cronemberg, é
um bom exemplo do novo gótico americano, onde temos, em vez de
um útero simbólico, um espelho simbólico. (KING, 2003, p. 180)
Concluída esta caracterização dos principais arquétipos do horror na literatura e
no cinema (a coisa inominável, o vampiro, o lobisomem, o fantasma e o lugar ruim)
vamos direcionar nossa atenção para a discussão do mérito social que os filmes de terror
tem por meio dos subtextos que fornece e que “(...) pelo seu apelo às massas adquirem
uma dimensão cultural” (KING, 2003, p. 93).
É evidente que não é sempre que os filmes de terror mostram elementos,
alegorias, que permitam que sejam identificados como crítica velada à política ou a
sociedade. Em grande parte das vezes eles procuram aqueles pontos de pressão fóbica
mais escondidos com o objetivo único de assustar a audiência, sem se preocupar em
levantar qualquer questão política. “É o filme B enquanto conto de fadas” (KING, 2003,
p. 93) lidando com tabus da sociedade moderna. Muitos dos filmes de horror obtêm a
resposta emocional desejada na platéia confrontando-a com a visão da morte cruel ou da
morte em si seguida pela decomposição do corpo. “Numa sociedade em que se dá tanta
importância às efêmeras comodidades da juventude, saúde e beleza, a morte e a
decomposição tornam-se inevitavelmente horríveis e inevitavelmente um tabu” (KING,
2003, p. 94). Assim, o filme de horror que apenas assusta pode ser válido para a
audiência ao ajudá-la a compreender melhor esses tabus e medos, e o motivo pelo qual
ela se sente incomodada em relação a eles.
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Examinaremos os subtextos dos filmes de horror apontados em Dança Macabra
a fim de somar mais uma ferramenta analítica para o gênero aqui estudado. O primeiro
subtexto é o horror econômico, exemplificado em Horror em Amytiville (1979),
dirigido por Stuart Rosenberg, que narra a história da família Lutz que se muda para
uma casa mal-assombrada, esta uma ilustração perfeita do arquétipo do lugar ruim. O
roteiro do filme carrega simplicidade ao mostrar o desconhecido, característica de
histórias clássicas do gênero como a história do gancho. “A simplicidade pode nem
sempre fazer grande sentido na arte, mas tem geralmente o maior impacto sobre mentes
com pequena capacidade imaginativa, ou ainda sobre as mentes cuja capacidade
imaginativa tenha sido pouco exercitada” (KING, 2003, p. 98). O efeito mais óbvio da
casa é que ela está arruinando financeiramente a família Lutz. Desde o inicio do filme,
ao comprar a casa por uma pechincha, a família vai tendo suas posses desaparecendo e
as dívidas aumentando. A cena em que Lutz grita para a casa onde está o dinheiro
desaparecido para pagar o bufê do irmão mais novo de sua esposa ilustra bem esta
situação. Desta maneira, o subtexto é o das dificuldades econômicas, refletindo a crise
econômica nos Estados Unidos na época, com inflação de 18% e altíssimas taxas
hipotecárias.
Em O monstro do Ártico (1951) vemos o filme de horror como uma polêmica
política. Dirigido por Christian Nyby, mostra o confronto entre uma expedição de
soldados e cientistas com uma criatura alienígena em uma estação experimental no
Ártico.
Ele alcança seus melhores efeitos a partir de sentimentos de
claustrofobia e xenofobia. Mas, como apontamos anteriormente, os
melhores filmes de horror tentarão atingir o expectador em vários
níveis diferentes. O monstro do Ártico também está operando em um
nível político. Tem coisas a dizer sobre os intelectuais (e liberais-
vira-casacas - no princípio dos anos 50 você poderia colocar um
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sinal de igual entre eles) que incorreram em crime de pacificação.
(KING, 2003, p. 102)
É o primeiro filme da década de 1950 a apresentar o cientista no papel do pacificador
em oposição aos “cientistas loucos” da década de 1930, apesar de ambos, no final,
serem os causadores ou libertadores do mal. O cientista pacificador para desfrutar e
compartilhar das descobertas da ciência frente ao desconhecido acaba permitindo que o
mal adentre ou tome forma no nosso mundo.
Talvez o fato de que os cientistas iriam se tornar vilões com tanta
freqüência nos filmes tecno-horror dos anos 50, (...) não seja tão
surpreendente se nos lembrarmos de que foi a própria ciência que
abriu aqueles mesmos portões para que a bomba atômica pudesse
entrar nos jardins do éden – primeiro sozinha, e depois organizada
em fileiras de mísseis. (KING, 2003, p. 103)
Também relacionados com a questão da ciência estão os filmes de terror com
subtexto tecnológico, que mostram a humanidade e a tecnologia criada pelo homem
como causadores do mal, muito populares na década de 1950. Tanto, The Horror
Party Beach (1964), sobre monstros criados pelo vazamento de tambores de lixo
radioativo que atacam jovens numa festa na praia, quanto Síndrome da China (1979)
que trata do vazamento radioativo de uma usina nuclear, como dezenas de outros filmes
podem ilustrar o subtexto tecnológico, tão atual em tempos de aquecimento global.
Estes filmes, cujos subtextos sugerem a traição de nossas máquinas ou processos de
produção em massa, revelam geralmente o arquétipo do lobisomem. A origem do mal é
interior, fruto do próprio homem que interfere na natureza alterando seu curso correto
(apolíneo) para torná-la destrutiva e caótica (dionisíaca).
Os filmes de horror com um subtexto social se caracterizam por apresentar um
retrato lógico ou satírico de hábitos sociais correntes. O Exorcista (1973) ilustra bem o
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subtexto social retratando o conflito entre gerações nos Estados Unidos na segunda
metade da década de 1960 e início de 1970.
Foi um filme para todos aqueles que sentiram, numa espécie de
terror e agonia, que estavam perdendo seus filhos e não conseguiam
entender porque ou como isso estava acontecendo. (...) Uma história
de médico e monstro, na qual a doce, adorável e amável Regan se
transforma num monstro boca-suja. (KING, 2003, p. 116)
O último e conclusivo exemplo neste levantamento de subtextos no filme de
horror pertence a este mesmo período e também apresenta um subtexto social bem
delineado. Trata-se de O Bebê de Rosemary (1969), que aborda principalmente o tema
da paranóia urbana dos habitantes das cidades, mas também traz um subtexto religioso.
O enfraquecimento da convicção religiosa de Rosemary torna-se uma peregrinação até a
volta para a crença como mãe da criança infernal, refletindo também questões de fé pela
qual passava a sociedade norte-americana nos turbulentos anos 1960.
Discutindo a questão do relacionamento masoquista entre os filmes de terror e
seus aficionados, King acaba por levantar um elemento relevante a ser apontado neste
estudo. Diferenças entre os filmes de horror “bons” e “ruins” e a distinção entre a
produção e o resultado final destes ao serem realizados por grandes estúdios ou por
companhias independentes. A relação masoquista se daria pela grande quantidade de
filmes de horror ao qual o fã do gênero se submete que não são capazes de atingir seus
objetivos emocionais e que trazem valores artísticos abaixo da mediocridade ou não
mostram valor artístico algum. Tomaremos o termo “ruim” neste sentido amplo que
acaba por englobar termos mais específicos, que tendem a designar esse mesmo tipo de
produção, como trash, filme B, filme Z, etc. King (2003, p. 142), aponta o oportunismo
para fazer o lucro como motivo principal para a realização de filmes de terror ruins. No
caso dos grandes estúdios, os altos custos de produção tornam maiores os riscos do
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empreendimento, fazendo com que sejam lançados filmes medíocres e não ruins no
sentido que falamos acima. A maior parte dos filmes de horror ruins viria da produção
independente, incluindo inicialmente todo o subgênero exploitation (KING, 2003, p.
142). Mas a produção independente por ser realizada muitas vezes por prazer, ao invés
de somente pela busca incessante por lucros, é capaz de gerar grandes resultados
artísticos. “E se foi à custa dos independentes que nós presenciamos os maiores
fracassos também foi à custa deles que vimos os mais inusitados triunfos” (KING, 2003,
p. 142). Neste claro conceito de valoração, aponta-se a utilidade e o atrativo como
diversão dos filmes ruins como sendo uma base de comparação, mostrando o que buscar
num filme, pois é exatamente o que está faltando neles.
Comparando os grandes estúdios com a produção independente temos dois pólos
distintos na indústria cinematográfica, com instâncias e motivações diferenciadas que
devem ser notadas na produção de horror. Vale então observar como esta indústria
desenvolveu este segmento que acabou se especializando no oportunismo e exploração
gerando tantos filmes de valores tão negativos.
Hollywood desde o início realizou filmes de baixo orçamento, mas a
categorização entre filme A e filme B surge na década de 1930 com o aumento do
programa duplo.
Os filmes A eram realizados com orçamentos de aproximadamente
400 mil dólares ou daí pra cima e astros que atraiam um vasto
público. Duravam 90 minutos ou mais e seus organogramas de
filmagem permitiam a realização de ensaios e retakes. Os filmes B
custavam entre 50 e 200 mil dólares e empregavam artistas com
poder de atração moderado, questionável ou desconhecido. O tempo
de projeção variava normalmente entre 55 e 70 minutos e a
filmagem comumente não ultrapassava três semanas. (MATTOS,
2003, p. 16)
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O programa duplo consistia em um filme A acompanhado por um filme B, ou
em dois filmes de orçamento médio, ou até mesmo em dois filmes classe B juntamente
com um cine-jornal ou um curta-metragem de animação.
Dentro do conceito do filme B existe uma classificação em quatro categorias
(MATTOS, 2003, p. 18) baseada no prestígio e valor de investimento da produção. Em
primeiro lugar os programmers, filmes produzidos pelos grandes estúdios e
ocasionalmente por companhias menores, que traziam características e um orçamento
médio que permitiam que fossem até programados como um filme A. Podiam tratar de
temas respeitáveis ou incomuns dependendo da vontade do estúdio em investir em
assuntos de popularidade incerta. Em segundo estão os filmes B das grandes
companhias que “destinavam-se a suprir as necessidades de exibição de suas cadeias de
cinemas e a amortizar as despesas gerais, mantendo as instalações e o pessoal
contratado constantemente ocupado” (MATTOS, 2003, p. 19). Na terceira categoria
estão inclusos os filmes das companhias independentes mais expressivas da indústria,
que mesmo não correspondendo às produções B dos grandes estúdios eram muito
superiores às realizações das companhias independentes menos expressivas. Estas
formam a quarta categoria, produzindo quickies, filmes feitos em uma semana com
orçamentos abaixo de dez mil dólares, que devido a limitações ao acesso às instalações
e equipamentos necessários e pela falta de recursos financeiros “muitas vezes nem
podiam ser equiparados aos filmes B, mas sim classificados como filmes C ou Z”
(MATTOS, 2003, p. 22). Estas companhias independentes menores não eram capazes
de organizar um sistema próprio de distribuição nacional, tendo que operar por um
sistema de venda dos direitos exclusivos de distribuição de seus filmes por um prazo,
geralmente, de três a cinco anos.
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Dentro da terceira e quarta categorias se inserem os filmes exploitation (que
incluem grande parte da produção de horror nas décadas de 1960 e 1970). Este tipo de
filme surge ainda na década de 1930, se diferenciando dos filmes narrativos clássicos de
Hollywood por mostrarem um espetáculo proibido e de gosto duvidoso. “Uma espécie
particular de filme, que nem sempre tinha uma conotação negativa, (...) com algum
assunto oportuno ou controverso que podiam ser explorados pela publicidade”
(MATTOS, 2003, p. 44). De má reputação os filmes exploitation abordavam temas
proibidos pelos organismos da censura e da própria indústria, como: higiene sexual,
nudismo, prostituição, strip-tease, uso de drogas, atrocidades ou qualquer outro assunto
de mau gosto. As projeções aconteciam em cinemas especializados neste tipo de filme,
restritas ao público adulto e separadas em sessões somente para homens e sessões
somente para mulheres. Quase sempre acompanhadas por palestras relacionadas ao
tema explorado em questão, que duravam entre quinze e trinta minutos, ocorrendo após
o final do filme ou então durante um intervalo durante a exibição. “Os conferencistas
geralmente tinham credenciais falsas ou eram afiliados a organizações de saúde
fictícias” (MATTOS, 2003, p. 45).
Já na década de 1960, qualquer caráter de prestação de serviço, mesmo que
totalmente falso, desaparece do filme exploitation. Com o surgimento do gore em
Blood Feast (1963), o filme exploitation atinge um novo patamar de exploração e
representação da violência, obrigando o espectador a encarar de frente o horrível e o
grotesco. Na mesma década também aparece uma das últimas manifestações do filme
exploitation, que passa a ser conhecido como sexploitation.
Podem ser descritos como filmes de exploração que focalizavam o
nudismo, situações sexuais e atos sexuais simulados tendo como
objetivo o entretenimento. Eles assumiram uma importância especial
ao reconhecerem não somente o desejo sexual masculino, mas
também o das mulheres, dos jovens e daqueles considerados de
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alguma forma como “desviados” dos padrões sexuais. Aceitando a
legítima sexualização do outro, contribuíram para a
“democratização” ou revolução sexual, que estava em curso no
período em que foram feitos. (MATTOS, 2003, p. 64)
Assim categorizamos para análise estes dois pólos da indústria cinematográfica,
aquela realizada com acesso aos recursos materiais e financeiros, próprios dos grandes
estúdios de um lado, e a produção independente, no outro extremo, com parcos recursos
de realização e distribuição, mas potencial para inovações ousadas. No caso do gênero
horror a realização independente não remete a uma produção artística intelectual como
também poderia ser associada, mas sim a uma produção oportuna de caráter
exploratório.
Paradoxos do coração
Elencamos alguns recursos para análise do cinema de terror partindo de uma
ótica interna ao gênero: a presença do elemento fantástico e sua categorização; o medo
como emoção almejada e concretização do horror; os níveis de ocorrência do horror
explícito; os arquétipos do gênero; a interiorização do mal; os subtextos das narrativas
de horror e a distinção entre as condições de produção da indústria. Vamos agora voltar
nossa atenção para o trabalho de Noel Carroll, no qual confirmaremos algumas das
proposições de King e também somaremos novas ferramentas para observar melhor
tanto o filme como a personagem de horror.
Como já vimos anteriormente, a emoção que o gênero horror procura atingir não
é a mesma que aquela causada pelos horrores da vida real. O que ajuda a responder a
questão de por que se submeter ao horror ficcional quando evitamos esta emoção no
cotidiano. Para fazer esta diferenciação, Carroll (1999, p. 27) adota os termos horror
natural para os horrores da vida real e horror artístico para o horror ficcional. Também
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adotaremos esta terminologia, embora com uma conceituação mais ampla, ao longo
deste estudo para se referir a emoção motivada pelo horror na ficção em geral.
A emoção do horror artístico se refere especificamente a um gênero, excluindo
diversas manifestações artísticas que provocam o horror e que não podem ser
classificadas dentro do campo do horror natural, como nas pinturas de Bosch, ou nos
textos de Sade por exemplo.
Horror artístico por convenção, pretende referir-se ao produto de um
gênero que se cristalizou, falando de modo bastante aproximado, por
volta da época da publicação de Frankenstein – ponha ou tire 15
anos – e que persistiu, não raro ciclicamente, através dos romances e
peças do século XIX e da literatura, dos quadrinhos, das revistas e
dos filmes do século XX. (CARROLL, 1999, p. 28)
O horror artístico, mais intenso que apenas o medo, é um estado emocional ocorrente,
como num ataque de raiva, e não um estado emocional de ocorrência contínua como a
inveja. Porém, Carroll vincula a manifestação do horror artístico à necessidade da
presença da criatura monstruosa (fantástico maravilhoso) e da repugnância (que vimos
como o terceiro grau do horror explícito, o horror da repulsão) para sua existência.
Distinguindo o horror artístico da emoção obtida por histórias que não exploram estas
características (como o horror refinado) ao explicitar o horror, que ele chama de
histórias de pavor.
Especificamente a resposta emocional que elas provocam parece ser
completamente diferente da suscitada pelo horror artístico. O
acontecimento misterioso que remata essas histórias causa uma
sensação de incômodo e de assombro, talvez de momentânea
angústia e de pressentimento. (...) O horror artístico tem a
repugnância como característica central, ao passos que o que
poderíamos chamar de pavor artístico não tem. (CARROLL, 1999,
p. 63)
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A necessidade da criatura monstruosa, a partir da concepção de que é um ser que não
existe segundo a norma vigente da ciência contemporânea e capaz de provocar sensação
de perigo e impureza (CARROLL, 1999, p. 61), acaba também excluindo uma grande
quantidade de livros e filmes de horror. Desta maneira, por exemplo, Psicose (1960) ao
apresentar Norman Bates (um serial-killer insano, mas ainda assim um homem) como
ameaça não seria responsável pelo autêntico horror artístico.
Como disse Carroll, a resposta emocional provocada por estas narrativas
excluídas “parece ser” diferente daquela provocada no horror artístico. Assim, não
dispondo de argumentos satisfatórios para fazer a distinção plena da emoção do horror,
que para cada elemento da audiência se dará de maneira diferente e pessoal (como já
vimos através dos pontos de pressão fóbica) vamos ampliar o conceito do horror
artístico, neste estudo, para todo o gênero do horror, como também nosso conceito de
monstro será mais abrangente, não se restringindo apenas a aqueles de origem
sobrenatural ou essencialmente impura. Mesmo assim, ao correlacionar o horror com a
presença de monstros, Carroll acaba fornecendo idéias e ferramentas importantes para a
análise das personagens de horror.
Partindo de que a presença de monstros é um fator preponderante no horror é
preciso diferenciar a narrativa de horror de outras histórias que também tenham
monstros, como os contos de fadas.
O que parece servir de demarcação entre a história de horror e meras
histórias com monstros, tais como os mitos, é a atitude dos
personagens da história em relação aos monstros com que se
deparam. Nas obras de horror os humanos encaram os monstros que
encontram como anormais, como perturbações da ordem natural.
Nos contos de fadas, por outro lado, os monstros fazem parte do
mobiliário cotidiano do universo. (CARROLL, 1999, p. 31)
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Nos filmes e romances de terror fica claro que o monstro é uma personagem incomum
num mundo ordinário e esta relação entre o extraordinário e o mundano fica explicitado
pela maneira como as personagens positivas reagem a ele. Observando este indicador
para a distinção entre os monstros da obra de horror propriamente dita e aqueles das
histórias de monstros em geral, notamos também um indicador da essência do próprio
gênero em si. Pois o horror é um gênero em que as respostas emocionais da audiência
são sugeridas pelas respostas emocionais das personagens positivas. Por este prisma,
somamos mais um elemento para o conceito geral do horror. Além da intenção de
suscitar a emoção do horror artístico no público o filme ou livro de terror deve ter esta
mesma emoção experimentada pelas personagens positivas da história.
Nas ficções de horror, as emoções do público devem espelhar as dos
personagens humanos positivos em certos aspectos, mas não em
todos. (...) Nossas respostas devem convergir, mas não duplicar
exatamente com as dos personagens; como os personagens, julgamos
o monstro como um tipo de ser horripilante (embora ao contrário dos
personagens, não acreditemos na existência dele). Esse efeito de
espelho, além disso, é uma característica chave do gênero de horror,
pois não é o caso para todos os gêneros que a resposta do público
deva repetir certos elementos do estado emocional dos personagens.
(CARROLL, 1999, p. 34)
Existe uma sincronia entre as emoções do público e das personagens, exemplificando a
maneira como devemos reagir ante os monstros do horror, esquivando-se e temendo-os
nas telas de cinema. Permitindo que se possa observar a intenção ou intensidade
emocional que os realizadores do terror pretendem obter da platéia, primeiramente,
através do comportamento emocional das personagens de seus filmes diante dos
monstros.
No contexto da narrativa de horror, os monstros são identificados
como impuros e imundos. São coisas pútridas ou em desintegração,
ou vêm de lugares lamacentos, ou são feitos de carne morta ou
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podre, ou de resíduo químico, ou estão associados com animais
nocivos, doenças ou coisas rastejantes. Não só são muito perigosos
como também provocam arrepios. Os personagens os vêem não só
com medo, mas também com nojo, com um misto de terror e
repulsa. (CARROLL, 1999, p. 39)
Personagens positivas que experimentem a repulsa ante as ameaças ou aos elementos
associados aos monstros numa narrativa de horror, são um indicador claro da ocorrência
do horror explícito pela repulsão, bem como a ausência de tal sentimento pelas
personagens positivas pode apontar para o horror explícito no nível acima da repulsão
ou mesmo para o nível do horror refinado.
Buscando a essência do monstro da ficção de terror em suas características
ameaçadoras e impuras (que geram a repulsa), Carroll (1999, p. 63) introduz uma
categorização para estas criaturas que, paralelamente aos arquétipos do horror, será útil
para entender a personagem monstruosa, objeto do horror artístico.
Partindo de que a impureza é originada de um conflito entre dois ou mais
elementos diferentes, apontamos a fusão como uma das estruturas mais básicas na
representação de criaturas horríveis.
Uma das estruturas da composição de seres horrendos é a fusão. No
nível físico mais simples, isso muitas vezes suscita a construção de
criaturas que transgridem distinções categóricas como dentro/fora,
vivo/morto, inseto/humano, corpo/máquina, e assim por diante.
Múmias, vampiros, fantasmas, zumbis e Freddy, principal pesadelo
de Elm Street, são figuras de fusão nesse aspecto. Cada uma, em
certo sentido, está viva e morta. Uma figura de fusão é um composto
que une atributos considerados categoricamente distintos e/ou
discordantes do esquema cultural das coisas, de modo não ambíguo,
numa entidade espaço-temporal discreta. (CARROLL, 2003, p. 64)
Ficam inclusas nesta categoria as personagens de histórias demoníacas. Ao serem
possuídas por uma ou mais entidades maléficas formam um ser composto,
correspondendo assim à fusão, cuja principal marca é o conflito da mistura de elementos
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normalmente separados num indivíduo singular, na mesma instância quanto ao espaço e
tempo.
Contrastando com a fusão, outra estrutura recorrente nas criações do horror é a
fissão, que também combina elementos distintos, porém distribuídos em identidades
diferentes. Tanto Edward Hyde, de O Médico e o Monstro, quanto o lobisomem são
personagens que se encaixam nesta categoria. Apesar de o lobisomem combinar o ser
humano com o lobo num mesmo corpo, suas identidades permanecem distintas. Ele se
alterna entre homem e lobo sem que haja uma intersecção temporal no corpo que
habitam.
Uma forma de fissão, portanto, divide o ser fantástico em duas ou
mais identidades (categorialmente distintas) que possuem
alternadamente o corpo em questão. Chamemos isso de fissão
temporal. A fissão temporal pode ser distinguida da fusão pelo fato
de as categorias combinadas na figura do ser fantástico não serem
temporalmente simultâneas; pelo contrário são divididas ou partidas
ou distribuídas ao longo do tempo. (CARROLL, 1999, p. 68)
Uma segunda manifestação da fissão se dá quando tratamos da criação de duplos que
existem ao mesmo tempo. Trata-se de um processo de multiplicação da personagem, a
fissão espacial, muitas vezes empregando algum tipo de mecanismo de reflexo, como
espelho, retrato ou sombras, para que aconteça. Esta multiplicação da personagem gera
“clones” que representam novas facetas, trazendo para superfície aspectos da
personagem original, ocultos ou reprimidos inicialmente.
No horror, portanto a fissão ocorre sob duas formas principais – a
fissão espacial e a fissão temporal. A fissão temporal –
exemplificada pela divisão entre Dr. Jekyll e Sr. Hyde – divide os
personagens no tempo – ao passo que a fissão espacial multiplica os
personagens no espaço. (CARROLL, 1999, p. 69)
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A acentuação do potencial para o horror em seres já repugnantes e fóbicos é
outra estrutura comum na geração de monstros, e se dá através de duas instâncias: a
magnificação e a massificação. Na magnificação, muito popular no cinema de horror
nos anos 1950, acontece um aumento no tamanho de um objeto fóbico de nossa cultura,
como uma aranha por exemplo, “o aumento de sua escala faz crescer sua periculosidade
física” (CARROLL, 1999, p. 71) bem como a repugnância que desperta. Na
massificação temos uma ampliação no número de criaturas já repelentes existentes.
Como no caso de filmes que tratam do enxame de abelhas assassinas, ou formigas ou
gafanhotos. “Enormes massas de criaturas já nojentas, unidas e guiadas para objetivos
agressivos, produzem horror artístico por aumentar a ameaça representada por esses
objetos previamente fóbicos” (CARROLL, 1999, p. 73).
A quinta categoria, a metonímia do horror ou metonímia horrífica, acontece pela
associação de objetos de repulsa e/ou fobia que estão à volta de um monstro cuja
aparência não revela sua essência horrenda. “É um meio de ressaltar a natureza impura e
repugnante da criatura – de fora, por assim dizer – associando o dito ser com objetos e
entidades vituperadas: partes do corpo, animais nocivos, esqueletos e toda espécie de
imundície” (CARROLL, 1999, p. 75). A metonímia horrífica não se restringe somente
aos casos em que os monstros não têm aparência horrenda, mas também pode ser
associada a personagens de aparência macabra para destacar ainda mais sua natureza
assustadora e/ou repugnante.
Paradoxo da ficção
Estabelecido que a emoção do horror artístico é um ponto chave do horror em
geral, para compreendê-lo plenamente é preciso ponderar sobre o paradoxo ficcional.
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Como é possível responder com autêntica emoção ao que devemos saber que não é
verdade? No caso do horror perguntamos: como podemos nos horrorizar com monstros
que sabemos não existir? Também já estabelecemos que as emoções da audiência são
guiadas pelas emoções das personagens positivas, assim, pela assimilação das emoções
e situações vividas por estas personagens ficaríamos horrorizados pelos monstros
ficcionais. Entretanto, estas personagens positivas também são seres ficcionais, e muitas
vezes estamos horrorizados sem que estes estejam cientes da situação de perigo em que
se encontram. De modo que somente o mecanismo de identificação com a personagem
não é suficiente para responder ao paradoxo da ficção.
Inicialmente, Carroll aponta a teoria da ficção como ilusão para explicar a
contradição da emoção originada pela ficção.
De acordo com a teoria da ficção como ilusão, quando nos
horrorizamos com a manifestação de Sr. Hyde no palco, acreditamos
estar na presença de um monstro. Técnicas teatrais ou
cinematográficas de verossimilhança nos impressionam tanto que
somos iludidos a ponto de acreditar que um monstro realmente
assoma a nossa frente. (CARROLL, 1999, p. 97)
Porém, esta teoria perde sua validade ao constatarmos que ao remover a contradição da
ficção pela ilusão, tornamos a audiência supersticiosa, crente em monstros, mesmo que
somente durante o tempo da exibição. O que implicaria numa reação diferente da platéia
ao crer que as criaturas sobrenaturais, ou não, realmente existam fora do plano da
ficção, como a resposta do público ao ver o trem projetado nas primeiras exibições do
cinema pelos irmãos Lumiére.
Outra possibilidade para a questão proposta é não se ater a necessidade de
responder à ficção com uma emoção autêntica e sim com uma emoção ficcional ou
fingida, como num jogo de faz de conta. O que não impede a intensidade desta emoção.
A teoria do fingimento responde ao paradoxo da ficção “dizendo que não tememos
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realmente as ficções, fingimos temê-las, e esse fingimento não pressupõe logicamente
que acreditemos estar em perigo ou que o monstro exista” (CARROLL, 1999, p. 109).
Porém se assumirmos a proposição de que o horror artístico não seja uma emoção
genuína e sim uma emoção fingida entendemos que o espectador passa a ter controle
para despertar esta emoção. Podendo ficar impassível diante da obra de horror ao se
recusar a fazer de conta que está horrorizado. O inverso também pode acontecer, ao
assistir um daqueles filmes de horror ruins que citamos anteriormente, onde os monstros
não são particularmente horripilantes (e sim motivo de riso muitas vezes), bastaria ao
espectador fazer de conta que está horrorizado para obter o horror artístico, o que não é
verdade.
Tanto a teoria da ilusão quanto a teoria do fingimento partem da premissa de que
o medo legítimo do monstro ficcional exige uma crença em sua existência. A teoria da
ilusão requer a crença na criatura, ao menos enquanto durar a ficção, enquanto que a
teoria do fingimento afirma que não temos emoções reais em relação a ficções.
Entretanto, se rejeitarmos a presunção de que só somos afetados emocionalmente
quando acreditamos na existência do objeto de nossa emoção temos uma terceira
possibilidade para solucionar a questão paradoxal, a teoria do pensamento. A causa do
estado de horror artístico na audiência é o pensamento do monstro e não a crença de que
o monstro exista.
O horror artístico é aqui uma emoção genuína, não uma emoção
fingida, pois uma emoção real pode ser gerada pelo fato de se
entreter o pensamento de algo horrível. Pensamento, aqui, é um
termo de arte concebido para contrastar com crença. Ter uma crença
é entreter assertivamente uma proposição; ter um pensamento é
entretê-la de modo não assertivo. Tanto as crenças quanto os
pensamentos têm um conteúdo proposicional, mas, no caso dos
pensamentos o conteúdo é meramente entretido, sem vínculo com
sua verdade; ter uma crença é algo vinculado à verdade da
proposição. (CARROLL, 1999, p. 118)
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Sendo a crença e o pensamento separáveis, respondemos satisfatoriamente a pergunta:
como nos horrorizamos com ameaças que sabemos não existir? O público do horror não
acredita que os monstros existam, porém mesmo assim a emoção provocada, e guiada
pelos personagens humanos, é genuína, pois os conteúdos de pensamentos entretidos
pela audiência (sem acreditar neles) são capazes de autenticamente tocá-la
emocionalmente.
Estruturas de enredo recorrentes no horror
Para concluir este capítulo e finalizar o quadro teórico que estamos construindo
vamos observar o desenvolvimento dos enredos mais freqüentemente presentes nas
histórias de horror. Estas estruturas narrativas compõem um repertório limitado de
estratégias, fazendo com que as histórias de horror se diferenciem mais por variações
superficiais do que em suas estruturas narrativas profundas.
Desta maneira, mesmo que cada um dos subgêneros do horror tenha
características e temas narrativos próprios e que costumam se repetir, compartilham
entre si estruturas narrativas muito semelhantes. Que correspondem ao que Carroll
(1999, p. 149) chama de enredo de descobrimento complexo. “Esta estrutura tem quatro
movimentos ou funções essenciais: irrupção, descobrimento, confirmação e confronto”.
O primeiro movimento deste esquema narrativo, a irrupção, é estabelecer para a
audiência a presença do monstro. A irrupção pode acontecer de duas maneiras, podemos
revelar imediatamente ao público a identidade do monstro, como em Tubarão (1975),
de Steven Spielberg, ou a manifestação do monstro pode ocorrer gradualmente. Como
numa história de mistério policial em que vamos juntando pistas e elementos para
solucionar o crime, sendo que no caso do horror acompanhamos os efeitos do monstro,
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que costumam envolver morte, destruição ou um comportamento estranho de alguns
personagens, como em O Exorcista.
Nesse aspecto, muitas histórias de horror empregam o que poderia
ser chamado de defasagem (phasing) do desenvolvimento de seu
movimento de irrupção. Ou seja, o público pode articular o que está
se passando antes dos personagens da história; a identificação dos
monstros por parte das personagens é defasada para depois das
percepções prévias do público. (CARROLL, 1999, p. 150)
O espectador ou leitor geralmente dispõe de um quadro mais completo do que está
acontecendo do que as personagens, e chega antes ao descobrimento do monstro
provocando uma expectativa crescente no público.
O descobrimento é o segundo movimento desta estrutura narrativa. Depois da
chegada do monstro, uma personagem ou mais fica sabendo de sua existência. Esta
descoberta pode ocorrer como uma surpresa para as personagens ou pode ser resultado
de uma investigação. Neste último caso a investigação pode avançar sob a equivocada
presunção de que se trata de um ser natural o autor dos acontecimentos macabros ou
então partindo da hipótese de que alguma força não-natural está agindo. “O
descobrimento propriamente dito ocorre quando um personagem ou grupo de
personagens chega à convicção comprovada de que um monstro está na raiz do
problema” (CARROLL, 1999, p. 151).
Nesta estrutura de enredo costuma haver uma resistência ao descobrimento de
que um ser fantástico seja o motivo dos recentes males por parte do poder estabelecido.
Levando ao terceiro movimento do enredo de descobrimento complexo, a confirmação.
Na confirmação as personagens descobridoras da existência do monstro ou aquelas que
crêem nele devem provar ou convencer outros personagens ou grupo de personagens,
inicialmente céticas, da existência do monstro e da ameaça que representa.
Freqüentemente a personagem ou grupo a ser convencido são necessários para armar
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resistência contra a ameaça e são figuras de autoridade como a polícia, exército,
cientistas, membros do governo ou líderes religiosos.
Boa parte da reação do público aos monstros da ficção não raro
depende das características atribuídas a eles antes de serem
mostrados atacando as pessoas na tela ou antes de serem descritos
numa cena especial de ataque num romance. Falar a respeito do
monstro quando ele não está presente prepara a reação do público.
(...) E boa parte dessa atribuição de propriedades horríficas ao
monstro tem lugar enquanto os descobridores estão provando sua
tese sobre a existência do monstro e seus assombrosos poderes.
(CARROLL, 1999, p. 153)
Em ambos os movimentos, descobrimento e confirmação, tanto as informações quanto o
raciocínio acerca do monstro são explorados, porém é no movimento de confirmação
que os argumentos e explicações realmente ficam em evidência.
O enredo de descobrimento complexo culmina, após as dúvidas e receios da
confirmação, na confrontação, onde as personagens positivas enfrentam o monstro,
derrotando-o na maioria das vezes ou apenas acreditando que o fizeram ou ainda
efetivamente fracassando em seu intento.
O Exorcista é um exemplo de filme que responde a esta estrutura narrativa. Na
irrupção somos logo apresentados ao exorcista Merrin que tem premonições acerca do
demônio Pazuzu, que se manifesta com barulhos estranhos no sótão e no
comportamento estranho da menina Regan, que se intensifica à medida que sua mãe a
submete a diversos exames médicos. O descobrimento acontece na cena em que Chris (a
mãe de Regan) depois de inúmeras evidências de se tratar de um caso de possessão
demoníaca se convence deste fato. Ela vê a cabeça da filha girar, sobrenaturalmente,
180 graus. O enredo segue para a confirmação, Chris precisa convencer o padre Karras
e este, após um longo processo de convencimento onde busca explicações naturalistas
para os fenômenos ocorridos, precisa atender os critérios exigidos pela igreja para
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autorizar o ritual de exorcismo. Ou seja, convencer a igreja, cujas autoridades não são
tão difíceis de convencer quanto o próprio padre Karras. E assim, chega-se a fase de
confronto no exorcismo, que termina com a morte de Merrin e Karras, a purificação de
Regan, liberta da influência de Pazuzu, e a volta à normalidade. Este tipo de enredo
também pode ser exemplificado em inúmeras histórias de horror em diferentes épocas,
mas foi extremamente recorrente no ciclo de filmes de horror da Universal, na década
de 1930 e 1940 e durante o ciclo de tecno-horror nos anos 1950. “Um número
impressionante de filmes usou o enredo de descobrimento complexo na última década e
meia do atual ciclo de horror” (CARROLL, 1999, p. 159).
Importante observar que os movimentos de irrupção, descobrimento,
confirmação e confronto podem acontecer repetidas vezes numa narrativa de horror. A
irrupção e a descoberta do monstro podem ocorrer mais de uma vez por pessoas e
grupos distintos, sua existência pode exigir a confirmação para mais de um grupo, bem
como é possível que a criatura seja enfrentada em mais de uma ocasião, antes do
confronto final.
A partir do esquema narrativo do enredo de descobrimento complexo podemos
obter outros enredos freqüentes de horror apenas subtraindo um de seus movimentos.
Por exemplo, um enredo de descobrimento (eliminamos a confirmação) com somente
três fases, irrupção, descobrimento e confronto. Depois da irrupção de uma criatura
ameaçadora o herói ou heroína podem não ter alternativa e ter de enfrentar o monstro
sem auxílio algum. Seguindo o mesmo princípio podemos observar o enredo de
confirmação (irrupção, descobrimento, confirmação). Um enredo com a seqüência
irrupção, confirmação, confronto pode ser encontrada num contexto narrativo em que já
se sabe da existência do monstro, eliminando a fase de descoberta. A irrupção também
pode ser eliminada, formando uma estrutura de descobrimento, confirmação e
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confronto, que pode ocorrer quando não existir nenhuma evidência da irrupção do
monstro até o instante de seu descobrimento.
Outras subtrações sugerem um grupo de narrativas com duas
funções, que compreendem: irrupção / confronto; irrupção /
descobrimento; irrupção / confirmação; descobrimento / confronto;
descobrimento / confirmação e confirmação / confronto. (...) Assim,
também cada uma das funções pode abranger por si só a matéria de
toda uma história de horror. Ou seja, além dos enredos analisados até
aqui, existem também enredos de pura irrupção, enredos de puro
descobrimento, enredos de pura confirmação e enredos de puro
confronto. (CARROLL, 1999, p. 164-168)
Importante notar que existe uma ordenação linear lógica na composição destas
estruturas. A seqüência dos movimentos prevalece mesmo que algum movimento seja
eliminado. Para que o monstro seja descoberto ele deve existir, e geralmente fica
estabelecido na irrupção; para que uma descoberta seja confirmada é preciso que tenha
ocorrido; e para enfrentar o monstro, a humanidade ou seus representantes precisam
saber da existência da ameaça, que normalmente acontece no descobrimento ou
confirmação.
Para ampliar nossas possibilidades de avaliação da estrutura narrativa no cinema
de terror vale a pena examinar um tipo diferente de enredo recorrente no gênero,
denominado por Carroll (1999, p. 173) como enredo do extrapolador. Intimamente
ligado ao subgênero do cientista louco, esta estrutura narrativa é de menor abrangência
que o enredo de descobrimento complexo, mas compartilha da seqüência lógica na
ordenação em quatro movimentos que podem ser repetidos ou combinados de maneiras
diferentes, oferecendo assim , um amplo leque de variações. O enredo do extrapolador
basicamente trata de conhecimento proibido, seja ele científico ou mágico, que é testado
através de uma experiência ou por meio de um encantamento das forças do mal. Sua
figura central é o cientista louco ou necromante e tem como fonte clássica o romance
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Frankenstein. As histórias costumam criticar a vontade de saber da ciência, ou seja, “o
tema recorrente do enredo do extrapolador é que há certo saber que deveria ser deixado
aos deuses (ou a quem for)” (CARROLL, 1999, p. 173).
O primeiro movimento do enredo do extrapolador trata da preparação para a
experiência. Inicialmente apenas de ordem prática, nesta fase o extrapolador precisa
obter todos os materiais para realizar a experiência. Mas este movimento também
oferecerá tanto uma explicação quanto uma justificação para a experiência.
O extrapolador muitas vezes tem, convenientemente um assistente,
um amigo ou algum outro interlocutor a quem pode explicar como a
experiência deve funcionar e qual deve ser seu significado (moral,
científico, ideológico, metafísico, etc.). A explicação costuma ser
uma mistura de mecânica popular e de mistificações de tipo ficção
científica, ao passo que a justificação pode ser totalmente
megalomaníaca. (CARROLL, 1999, p. 173)
A imagem típica deste personagem interlocutor, difundida pelo ciclo de horror da
Universal na década de 1930, surge a partir de Fritz o ajudante do Dr. Frankenstein no
filme de James Whale. O ajudante vai ficando mais disforme ao longo dos filmes até
chegar ao tradicional corcunda.
O segundo movimento é a própria experiência. Esta pode precisar ser realizada
mais de uma vez até que o extrapolador obtenha o sucesso, ou aparente ter conseguido,
gerando oportunidade para discussões sobre a justificativa da mesma. O sucesso ou
aparente sucesso da experiência leva ao terceiro movimento que é o resultado da
experiência. O monstro originado pelo experimento é perigoso e é preciso lidar com esta
ameaça que pode estender esta fase ao longo de muitos assassinatos. Invariavelmente
são estas mortes que acabam por atingir amigos e familiares que fazem com que o
cientista tome consciência do mal libertado e se prontifique a destruir sua criação. O que
leva ao último movimento, o confronto. Em alguns enredos os cientistas fazem jus a
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alcunha de cientistas loucos e estão prontos para defender sua experiência e criação até
o final, já que não vêem erros em seus métodos. Neste caso a fase de confronto envolve
a destruição tanto da criatura quanto do criador.
Aqui concluímos este capítulo somando ao nosso quadro teórico-conceitual
(formado pela presença do elemento fantástico e sua categorização; o medo como
emoção almejada e concretização do horror; os níveis de ocorrência do horror explícito;
os arquétipos do gênero; a interiorização do mal; os subtextos das narrativas de horror e
a distinção entre as condições de produção da indústria) novos elementos: a
conceituação do horror artístico, a leitura das respostas emocionais das personagens
positivas, a categorização na formação de monstros e a estruturação de enredos
recorrentes na narrativa de horror. Finalizamos este primeiro capítulo, municiados de
recursos analíticos para examinar personagens e obras de horror a partir de conceitos
próprios do gênero.
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Capítulo II – A PERSONAGEM DRÁCULA
O escopo deste capítulo é inicialmente fazer um breve exame na forma como
têm evoluído culturalmente algumas características da imagem da personagem vampiro
através do tempo, a fim de se obter uma melhor compreensão da percepção atual da
personagem Drácula; em seguida observaremos a formação da imagem desta
personagem através das adaptações sofridas ao longo do século XX, para ao final do
capítulo analisar Drácula a partir das conceituações teóricas próprias do gênero horror,
expostas no primeiro capítulo. Nosso ponto de partida é a pesquisa bibliográfica que se
entende
(...) como um conjunto de procedimentos para identificar, selecionar,
localizar e obter documentos de interesse para a realização de
trabalhos acadêmicos e de pesquisa, bem como técnicas de leitura e
transcrição de dados que permitem recuperá-los quando necessário
(STUMPF, p. 54)
Esta primeira exposição sobre o tema explora publicações que abordam diretamente
vampiros, Drácula e o universo do horror na literatura ou no cinema.
O vampiro é o monstro mais popular da ficção de horror. Imagens do vampiro
saindo do caixão, transformando-se em morcego ou lobo, cravando suas presas no
pescoço da vítima, tremendo diante de uma cruz ou dissolvendo-se na luz do sol são
familiares a todos no mundo moderno. Histórias de vampiros têm sido populares por
séculos e são contadas e recontadas em todo o mundo. A popularidade dessas estórias
inspirou diversos autores “a transformarem o vampiro, de um camponês vestindo trapos
e saindo de sua cova, em um aparato literário para exploração de temas como sangue,
sexo e morte em novas e ousadas maneiras” (GUILEY, 1994, p.54). Sendo a mais
popular e influente destas estórias o romance de Bram Stoker, Dracula. O mito de
Drácula ao lado de Tarzan, Sherlock Holmes e Superman, continua a ocupar a
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imaginação do público. O maligno Conde completa 114 anos desde a sua criação e
aparece em peças de teatro, musicais, histórias em quadrinhos, programas radiofônicos e
televisivos, incontáveis artigos em jornais e revistas e em mais de 200 longas-
metragens. O romance original já foi traduzido para 22 línguas e publicado em pelo
menos 91 edições distintas em 47 países (HAINING, 1987, p.08). Assim um breve
levantamento histórico e cultural da evolução do personagem vampiro será de grande
valia para compreender a personagem Drácula.
1. A evolução da personagem vampiro
A crença em criaturas vampíricas provavelmente remonta às
experiências humanas muito antes do advento da palavra escrita.
Tanto um temor respeitoso em relação aos mortos como uma crença
nas propriedades mágicas do sangue podem ser encontrados em
culturas do mundo todo. (MELTON, 1994, p. IX)
O conceito de mortos que retornam para se alimentarem do sangue dos vivos
especificamente, teve maior destaque na Europa Cristã. O historiador inglês William de
Newburgh, no século XII, fez diversos relatos que correspondem a este conceito, se
valendo do termo latino sanguisuga para identificar o “espírito maligno” (MELTON,
2003, p.X).
Uma epidemia de relatos praticamente idênticos se espalhou por grandes áreas
da Europa Oriental entre os séculos XVI e XVIII. Grande diversidade de termos para
designar estes seres surgiu geralmente variações tanto dos termos sérvios vukodlak e
vampir quanto do termo russo upyr. Nestas regiões o conceito de vampiros se integrou
ao sistema de crenças culturais, incorporando-se ao folclore destes povos (GUILEY,
1994, p.23).
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Em 1732, os relatos sobre vampiros atingiram a Europa Ocidental, um relatório
oficial do governo austríaco apontava Arnold Paul como autor de uma série de mortes
na vila de Meduegna, Sérvia. Arnold já estava morto e certa vez alegara ter sido
mordido por um vampiro. Alguns acreditavam que ele havia retornado do reino dos
mortos, de acordo com o relato seu corpo quando exumado apresentava aparência
extraordinariamente fresca e sangue escorria de sua cabeça. O relatório logo foi
publicado em Belgrado e rapidamente várias versões da história de Arnold Paul foram
publicadas em diversos periódicos europeus. Provavelmente a primeira vez que a
palavra “vampire” ou “vampyre” apareceu na língua inglesa foi em 1732 quando os
periódicos ingleses London Journal e Gentleman’s Magazine publicaram a história
de Arnold Paul (MELTON, 2003, p.618). O relato criou sensação no Ocidente
estimulando ardorosos debates nos círculos intelectuais para tentar descobrir maneiras
racionais para explicar o fenômeno. A tradicional Sorbonne, em Paris, “se posicionou
sobre o assunto, condenando a maneira como os mortos estavam sendo violados”
(MELTON, 1994, p. XI). Em 1746, o renomado estudioso da Bíblia e abade beneditino,
Don Augustin Calmet publicou Dissertations sur les Apparitions des Anges, des
Démons e des Esprits, et sur les revenants, et Vampires de Hungrie, de Bohême, de
Moravie, et de Silésie, um tratado sobre vampiros onde também narrava a história de
Arnold Paul e apresentava várias explicações racionais para o fenômeno.
Em 1765, o naturalista francês Louis Lecrerc de Buffon classificou, num dos
volumes da Histoire Naturelle, com o nome de “vampiro” um morcego que bebia
sangue descoberto no Novo Mundo, fazendo alusão às lendas sobre os vampiros que
circulavam na época.
Possivelmente o jovem escritor e médico John Polidori teve contato e se
familiarizou com as teorias de Dom Augustin Calmet a respeito de vampiros. Em 1816,
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Polidori era companheiro de viagens do respeitado poeta e escritor Lord Byron. Fez
parte do célebre grupo que se hospedou na Villa Diodati, próxima a Genebra e para se
entreterem se dedicaram a criar histórias de fantasmas (GUILEY, 1994, p.56). Dentre os
presentes estava Mary Shelley que na ocasião escreveu uma narrativa que depois se
transformou no clássico romance de horror, Frankenstein. Byron criou uma história
sobre um homem próximo de sua morte que obrigava seu companheiro de viagem a
jurar não revelar sua morte jamais. Alguns anos depois Polidori aproveitou a idéia
básica de Byron combinando com o conceito de vampiro. Tendo a figura de Byron
como modelo, Polidori criou o vampiro Lord Ruthven, um aristocrata que matava belas
e inocentes mulheres para saciar sua sede de sangue e que era capaz de reviver pelo
luar. Publicado em 1819, na edição de abril da revista New Monthly Magazine, o conto
The Vampyre foi a primeira obra completa de ficção sobre vampiros escrita em inglês
e na introdução Polidori se refere especificamente ao caso de Arnold Paul e à pesquisa
sobre vampirismo escrita por Dom Augustin Calmet. Além de inspirar uma grande
variedade de peças de teatro principalmente na França e Inglaterra, o conto de Polidori
pode ser apontado como uma das influências na construção da personagem de Bram
Stoker, Drácula, e influência direta do primeiro romance sobre vampiros em inglês,
Varney the Vampyre, escrito por James Malcolm Rymer e vendido como historietas
em folhetins ingleses em 1840. Como no conto de Polidori, o personagem de Rymer
também buscava mulheres inocentes para alimentar-se e podia ser revivido pelo poder
do luar (MELTON, 2003, p.848).
Em 1872, o escritor irlandês Sheridan Le Fanu lançava uma visão mais
inovadora do personagem vampírico com o conto Carmilla que ambientava as crenças
vampíricas na atmosfera gótica. A narrativa de Le Fanu trata de uma vampira que
desenvolve uma profunda relação com uma vítima do sexo feminino, repleta de
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insinuações eróticas (GUILEY, 1994, p.58). Apesar do século XIX ter produzido uma
variedade de obras sobre o tema sobrenatural somente uma pequena parcela trazia
vampiros como tema.
No final do século XIX, o romance Dracula, do irlandês Bram Stoker, apresenta
o vampiro vilão definitivo. Stoker utiliza elementos dos trabalhos de Polidori e Le Fanu
para criar a ambientação gótica para a história de um aristocrata profano saído do
túmulo que hipnotiza corrompe e se alimenta das lindas jovens que mata. “Stoker
revelou todo o impacto das conotações psicossexuais envolvidas no relacionamento
entre vampiro e vítima, mostrando a notável semelhança entre a ânsia de sangue dos
mortos-vivos e a sensualidade reprimida dos simples mortais” (MELTON, 1994, p.
XII).
O autor de Dracula apresentou no romance um grupo de personagens e tipos
que posteriormente foram utilizados em inúmeras histórias de vampiros. Essas
personagens são o próprio Drácula, o misterioso nobre do Leste da Europa que se revela
como um vampiro demoníaco e assassino; Mina Harker, a linda vítima do vampiro que
se vê dividida entre Drácula e o homem que ela ama; Doutor Van Helsing, cientista e
implacável caçador de vampiros; e Renfield, um desequilibrado mental que se vê
compelido a servir e adorar ao Conde Drácula. Stoker também acrescentou uma série de
características vampíricas no romance que foge da tradição e do folclore que envolve o
tema, mas que se tornaram quase que obrigatórias em trabalhos posteriores. Podemos
citar a necessidade de solo nativo no caixão do vampiro para que ele possa repousar, a
necessidade de um convite para entrar numa casa, a habilidade de se transformar num
morcego ou em outras formas e a incapacidade de se refletir em espelhos (GUILEY,
1994, p.28). A partir de sua publicação a personagem criada por Stoker tornou-se o
padrão com o qual os demais vampiros de ficção são comparados.
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Depois do lançamento de Dracula, em 1897, poucos romances sobre o tema
foram publicados durante mais de cinqüenta anos (MELTON, 2003, p.XII). Somente
em 1954 um romance vampírico teve impacto literário: I am Legend, de Richard
Matheson, narra a tragédia de um homem que descobre ser o único ser humano num
mundo povoado por vampiros. Porém, nenhum livro relacionado ao tema jamais
ultrapassou a popularidade de Dracula, que nunca saiu de catálogo desde que foi
impresso pela primeira vez.
Vale destacar a contribuição de periódicos na primeira metade do século XX
para o gênero. Revistas de produção precária conhecidas pelo teor de ficção
sensacionalista no campo da fantasia, horror e ficção científica como a Weird Tales
apresentaram autores como Clark Ashton Smith, Seabury Quinn e Robert Bloch que
escreveram uma série de contos populares até hoje.
Entretanto, uma grande influência sobre a percepção pública do personagem
vampiro (tema que será tratado com detalhes mais a frente) veio do veículo que nascia
paralelamente ao romance de Stoker, o cinema. Nosferatu, Eine Symphonie des
Garuens, dirigido por F.W. Murnau em 1922, retratou com eficiência um vampiro de
aparência mórbida e revoltante. Mas seu impacto foi limitado durante o lançamento. O
roteiro era baseado no romance de Bram Stoker. O que fez com que Florence Stoker,
viúva do autor, processasse os produtores por violação de copyright, assim fazendo com
que a película fosse recolhida. Na segunda metade do século XX o filme foi
redescoberto e aclamado por aficionados do cinema como grande expoente do
expressionismo alemão. Sua atmosfera sinistra e os notáveis efeitos de sombra, dentre
outras características singulares, influenciaram filmes posteriores sobre vampiros,
dentre estes um remake em 1979 com Klaus Kinsk no papel principal e a adaptação,
dirigida por Francis Ford Coppola em 1992, Bram’s Stoker’s Dracula.
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Em 1927 foi lançado o filme norte-americano London After Midnight que
trazia Lon Chaney como protagonista. Dirigido por Tod Browning, a narrativa
apresentava um vampiro de aparência assustadora, mas que ao final se revelava uma
farsa, apenas um engodo para revelar o verdadeiro assassino. O filme teve um pequeno
impacto na época do lançamento, com o passar dos anos desapareceram todas as suas
cópias fazendo com que esteja perdido até hoje. Recentemente foram encontradas fotos
da produção e o roteiro do filme, permitindo que se realizasse uma montagem que tenta
recriar a narrativa da película original.
Em 1931, a Universal Studios lançou Dracula, estrelado por Bela Lugosi e
também dirigido por Tod Browning, um marco da indústria cinematográfica. O roteiro
era baseado na peça de teatro britânica de Hamilton Deane que na versão para os palcos
norte-americanos foi reescrita por John L. Balderston e fez grande sucesso na Broadway
durante muitos anos. Os atores que fizeram os papéis principais da versão
cinematográfica foram os mesmos que atuaram nos palcos: Lugosi como o conde
Drácula, Edward Van Sloan como Van Helsing e Dwight Frye como Renfield. Tanto o
filme como a peça estabeleceram a imagem visual padrão do vampiro masculino: “uma
figura aristocrática sinistra, de maneiras elegantes, sotaque estrangeiro e que se veste
para a noite de maneira formal, com uma longa capa esvoaçante” (MELTON, 1994, p.
XIII). Uma versão em espanhol foi realizada ao mesmo tempo com equipe e elenco
diferentes, mas utilizando os mesmos cenários e o mesmo roteiro. Muitos críticos
apontam a versão do diretor George Melford como superior em relação à dinâmica e
agilidade do filme, isso se deve provavelmente ao fato de que a equipe que fazia a
versão em língua espanhola filmava durante a noite, assim Melford observava o
trabalho de Browning durante o dia e aperfeiçoava as tomadas e seqüências para a sua
versão. Browning também vinha de uma carreira construída no cinema mudo e ainda
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estava se familiarizando com a experiência do cinema falado, o que talvez explique a
lentidão no desenvolvimento da narrativa do filme. A aparência, as maneiras distintas e
o forte sotaque húngaro de Lugosi fizeram com que seu desempenho marcasse aquela
era e tornasse sua imagem eternamente associada ao personagem, assim estabelecendo a
caricatura definitiva do estereótipo não só de Drácula, mas do vampiro em geral.
A qualidade do filme de Browning ainda é debatida, mas a impressão que deixou
na mente do público é inquestionável. Nos anos 1930 e 1940 a Universal ainda produziu
vários filmes com Drácula ou com personagens relacionadas, mas nenhum deles teve o
impacto do filme original, com Lugosi. Ao contrário, transformaram a maligna
personagem em motivo de riso em produções apelativas que juntavam os principais
monstros da Universal (Drácula, o monstro de Frankenstein, o Lobisomem e a Múmia)
ou até mesmo em comédias como Abbott e Costello meets Frankenstein (1948),
última atuação de Lugosi no papel do Conde.
No final da década de 1950, a Universal vendeu os direitos cinematográficos
tanto de Frankenstein como Dracula para a Hammer Films, estúdio britânico fundado
em 1948 por Will Hammer e Sir John Carreras. Assim em 1958 estreava The Horror of
Dracula, dirigido por Terrence Fisher, outra poderosa influência sobre a construção da
imagem mítica de Drácula na percepção da audiência. O Conde, agora interpretado por
Christopher Lee, é retratado nesta versão de maneira mais violenta, dinâmica e
fisicamente imponente. A capa e a vestimenta formal continuaram, mas a caracterização
da Hammer acrescentou elementos que se tornaram essenciais para todas as
representações do personagem vampírico: caninos alongados ou presas e sangue. Filmes
anteriores de vampiros já haviam utilizado variações de presas, mas o Drácula de Lee
estabeleceu o padrão. Quanto ao sangue, inexistente na versão de 1931, agora era
apresentado em grande quantidade e a cores! Peter Cushing fez o implacável caçador de
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vampiros, Van Helsing, e atuou ao lado de Lee em outros filmes sobre Drácula para a
Hammer. Mas os filmes posteriores realizados pelo estúdio inglês com Lee
interpretando o Conde Drácula contribuíram pouco para a evolução da personagem.
Como Lugosi, Drácula transformara Christopher Lee numa estrela fazendo com que o
ator se tornasse muito caro. A solução encontrada pelo estúdio para reduzir custos foi
limitar ao máximo o tempo e presença do ator na tela. Resultando em breves aparições
da personagem, na maioria das vezes sem falas, nestes filmes.
Enquanto na Inglaterra a Hammer tornava o papel do astro principal cada vez
mais limitado, nos Estados Unidos acontecia o contrário. Os roteiristas da soap opera
Dark Shadows faziam o possível para aumentar a participação do vampiro Barnabas
Collins nos capítulos da telenovela. Dark Shadows, criada e produzida por Dan Curtis,
foi ao ar pela primeira vez em 1966, pela ABC. O enredo girava em torno de uma
governanta que chegava à Mansão Collinswood e se envolvia em intrigas familiares e
sobrenaturais. No ano seguinte foi introduzido na série o personagem do vampiro
Barnabas Collins, representado pelo ator Jonathan Frid, alavancando os índices de
audiência e tornando a série bem sucedida até o seu término em 1971. Depois de
Drácula, Barnabas é o personagem vampiro mais conhecido na América do Norte e
tornou-se o primeiro a ser retratado integralmente como um herói trágico em busca de
uma fuga de sua condição vampírica ou como um anti-herói que poderia ser demoníaco
ou compadecido (GUILEY, 1994, p. 136).
Em 1976, foi publicado o romance Entrevista com o Vampiro, de Anne Rice,
onde a autora retrata o vampiro com uma visão muito semelhante da série Dark
Shadows, tanto como herói trágico como anti-herói. Na década de 1980, Rice retoma os
romances sobre vampiros e publica a série conhecida como Crônicas dos Vampiros,
sempre desenvolvendo o tema de “vampiros sensíveis, bonitos e com tendências
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artísticas, que sentem êxtase e intimidade quando bebem sangue e encontram várias
maneiras de lidar com seu mundo negro e sua natureza assassina” (MELTON, 1994, p.
XV). Apesar de Drácula ainda ser a imagem dominante de vampiro para o grande
público, a visão do vampiro de Rice foi um grande sucesso literário, atingindo milhões
de leitores que se sentiram atraídos por essa nova imagem.
Podemos citar alguns romances influentes sobre o tema lançados nos anos 1970.
The Night Stalker, de Jeff Rice, lançado em 1973 e produzido como um filme de TV
um ano antes de ser publicado, Salem’s Lot, de Stephen King, em 1975 e adaptado para
filme de TV em 1979, e The Space Vampires, de Colin Wilson, em 1976 e transposto
para as telas como Lifeforce em 1985. Vários dos autores de romances sobre vampiros
seguiram a tendência que começava a se tornar popular na década de 70 de escrever
romances seriados. Nas histórias em quadrinhos os personagens vampiros também
ganharam espaço através de personagens regulares como Vampirella, Morbius e a
versão de Drácula publicada pela Marvel Comics. A presença de personagens vampiros
nas histórias em quadrinhos merece atenção já que foi parte do motivo que causou o
período em que o veículo foi alvo de forte censura na década de 50. Com a criação do
código de ética pelas editoras de quadrinhos norte-americanas, os vampiros juntamente
com os outros monstros clássicos do horror foram banidos das publicações de 1954 a
1969.
Em 1972, In Search of Dracula, escrito pelos historiadores Raymond T.
McNally e Radu Florescu, produziu um profundo impacto na imagem da personagem de
Stoker. Nesse livro os autores apresentam sua pesquisa que mostra que a personagem
Drácula era na realidade baseado numa figura histórica que usava esse nome. Também
conhecido como Vlad Tepes, era um príncipe da Wallachia (região da Romênia que faz
fronteira com a Transilvânia) no século XV. Tepes era conhecido por sua ferocidade e
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sadismo como regente. Ordenou a morte de milhares de pessoas, muitas dessas vítimas
eram empaladas em longas estacas. A pesquisa histórica de McNally e Florescu
integrou definitivamente o moderno mito de Drácula repercutindo em inúmeras
histórias, romances e filmes sobre a personagem.
Dentre os diversos filmes realizados sobre vampiros na década de 1970 vale
destacar a produção para televisão dirigida e produzida por Dan Curtis em 1973. Tendo
Jack Palance representando o Conde Drácula neste telefilme que foi muito influenciado
pelo trabalho de Mcnally e Florescu, retratando Drácula como o regente Wallachiano do
século XV ainda vivo no século XIX. Este telefilme trouxe uma contribuição importante
para a construção do mito moderno de Drácula. Na narrativa, Lucy Westenra é
fisicamente igual a uma antiga paixão de Drácula de séculos atrás, como se fosse uma
reencarnação do amor verdadeiro do Conde. Este mesmo enredo pode ser visto no filme
A Múmia, de 1932 com Boris Karloff e se incorporou ao mito do personagem vampiro
sendo encontrado em diversos filmes realizados posteriormente. O mais popular filme
sobre vampiros para a grande tela nos anos 1970 foi Dracula, de 1979, estrelado por
Frank Langella e novamente produzido pela Universal. Assim como Bela Lugosi,
Langella tinha feito grande sucesso numa peça da Broadway intitulada Dracula antes
do filme. Nesta versão a sensualidade do Conde é muito mais explorada distanciando-se
das interpretações assustadoras de Lugosi e Lee. O filme também proporciona uma
destruição final de Drácula diferente do filme original de 1931, o Conde depois de ser
estaqueado num gancho morre queimado pela luz do sol.
A partir dos anos 1980, observamos a realização de vários filmes de vampiros
com grandes verbas e excelente qualidade de produção. A revolução da TV a cabo e a
explosão do videocassete tornam os numerosos filmes sobre o tema acessíveis e
impulsionam a realização de centenas de produções baratas com espaço garantido na
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grade de programação dos novos canais de TV ou nas prateleiras das locadoras de
vídeo. A TV a cabo nos anos 1990 lança diversas séries sobre vampiros, incluindo uma
nova versão de Dark Shadows e Buffy, a Caça-Vampiros que estreou pela rede WB
em 1997 e é a mais bem sucedida série televisiva a ter vampiros como tema no horário
nobre.
O mercado literário recebe uma torrente sem fim de romances vampíricos,
principalmente romances seriados que alcançam números sem precedentes para um
assunto que é apenas uma parcela do universo do horror na literatura. Dentre as muitas
publicações The Book of Vampires, de 1994, merece destaque. Escrito por J. Gordon
Melton, Embaixador Americano da Transylvania Society of Dracula, entidade histórico-
cultural que reúne historiadores, etnógrafos e folcloristas dedicados à preservação e
interpretação da história e do folclore romeno, especialmente relacionado ao regente do
século XV Vlad, o Empalador, o Drácula histórico e ao folclore romeno relativo a
vampiros. O livro de Melton aprofunda-se nas tradições, mitos e relatos sobre os
vampiros e suas lendas no mundo todo, cobrindo também os aspectos históricos,
literários, mitológicos, biográficos e populares. A extensa obra proporciona um exame
exaustivo e deve ser considerada referência padrão sobre o assunto. Diversos livros
semelhantes foram lançados posteriormente, mas o trabalho de Melton é o mais
completo e abrangente de todos.
Em 1997, vários eventos comemoram o ano do centenário do Dracula, de Bram
Stoker, que como foi visto ao longo deste texto é o mais influente romance sobre
vampiros de todos os tempos. Estados Unidos, Canadá, Grã-Bretanha e Irlanda lançam
selos comemorativos estampando Drácula ou outros vampiros. Em agosto desse mesmo
ano ocorre em Los Angeles a Dracula’97, evento que reuniu o maior número de
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escritores, estudiosos, cineastas, celebridades e outros entusiastas destacados e
proeminentes no mundo do vampirismo.
Com a virada do século, a internet multiplica a produção e distribuição, seja de
filmes, livros, revistas, jogos sobre vampiros e une diretamente estudiosos e entusiastas
sobre o assunto.
No final desta década vemos o personagem vampiro continuar a manter sua
popularidade. Além da grande quantidade de filmes lançados com vampiros para o
cinema e diretamente para o mercado de vídeo, na literatura observamos a série de
romances vampíricos Crepúsculo, Lua Nova e Eclipse de Stephenie Meyer figurar nas
listas de livros mais vendidos. Esta série se tornou extremamente popular dentre o
público jovem, reproduzindo o fenômeno desempenhado por Anne Rice nos anos 1980,
e sua adaptação despontando como nova franquia cinematográfica de sucesso. Também
vale destacar a série de TV True Blood, cuja primeira temporada foi exibida pela HBO
em 2008 obtendo bons resultados de audiência.
Esta breve exposição do desenvolvimento histórico da imagem de Drácula e da
personagem vampiro em geral para o grande público somente arranha a superfície da
enorme influência que ela tem provocado. Mas o que está por trás dessa grande
fascinação? Como sabiamente coloca o conferencista e editor do The Journal of
Vampirism, Martin V. Riccardo, na apresentação do livro de Melton, provavelmente
não há uma resposta simples para esta questão já que a personagem vampiro incorpora
diversos aspectos relacionados à condição humana. Incluindo a morte e todas as suas
ramificações psicológicas, a imortalidade, o sexo proibido, o poder e a submissão
sexual, a intimidade, a alienação, a revolta, a violência e um crescente fascínio pelo
misterioso.
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2. Considerações sobre Drácula como personagem
A seguir vamos observar a personagem Drácula um pouco mais detalhadamente,
porém é importante ressaltar que não é nosso objetivo reproduzir tudo o que já foi
publicado acerca do tema, mas sim apontar algumas reflexões que permitam
compreender essa personagem com maior clareza.
Assim, inicialmente vamos nos deter nos ensaios reunidos no livro A
Personagem de Ficção organizado por Antônio Candido e que também apresenta
textos de Anatol Rosenfeld e Paulo Emilio Salles Gomes dentre outros. A partir dos
conceitos teóricos ali comentados poderemos entender melhor Drácula como
personagem literária.
A primeira questão a ser tematizada é a própria noção do que seria literatura. No
texto inicial, Literatura e Personagem, Rosenfeld apresenta delimitações sobre o
conceito de literatura.
Geralmente, quando nos referimos à literatura, pensamos no que
tradicionalmente se costuma chamar “belas letras” ou “beletrística”.
Trata-se, evidentemente, só de uma parcela da literatura. Na acepção
lata, literatura é tudo o que aparece fixado por meio de letras – obras
científicas, reportagens, notícias, textos de propaganda, livros
didáticos, receitas de cozinha etc. Dentro deste vasto campo das
letras, as belas letras representam um setor restrito. Seu traço
distintivo parece ser menos a beleza das letras do que seu caráter
fictício ou imaginário. (ROSENFELD, Anatol. Literatura e
personagem. In CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo:
Perspectiva, 2007, p.11-12)
Porém se valer somente do caráter ficcional não é suficiente para fazer esta
delimitação. Rosenfeld aponta os Sermões do Padre Vieira, os escritos de Pascal e os
diários de Kafka como exemplos de textos que não tem caráter ficcional ou imaginário,
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mas que nenhum pesquisador da literatura hesitaria em inserir dentro deste campo.
Assim:
Os critérios de valorização, principalmente estética, permitem-
nos considerar uma série de obras de caráter não-ficcional como
obras de arte literárias e eliminar, de outro lado, muitas obras de
ficção que não atingem certo nível estético. O uso conjunto de ambos
os critérios recortaria, dentro do próprio campo das belas letras, uma
área de intersecção limitada àquelas obras que ao mesmo tempo
tenham caráter ficcional e alcancem alto nível estético.
(ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In CANDIDO et al.
A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.12)
Ficando desta maneira evidente a posição do romance Dracula dentro do campo
da literatura, já que combina ficção e valor estético. Rosenfeld, também assinala a
personagem como elemento preponderante para a caracterização da ficção.
Como indicadora mais manifesta da ficção é por isso bem mais
marcante a função da personagem na literatura narrativa (épica). Há
numerosos romances que se iniciam com a descrição de um ambiente
ou paisagem. Como tal poderiam possivelmente constar de uma carta,
um diário, uma obra histórica. É geralmente com o surgir de um ser
humano que se declara o caráter fictício (ou não-fictício) do texto,
por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o
acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária.
(ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In CANDIDO et al.
A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.23)
Este poder da personagem em caracterizar o texto fictício reforça a justificativa
para a disposição, no desenvolvimento do presente estudo, em tomar principalmente,
dentre os elementos do romance, a personagem Drácula como objeto de estudo.
O texto de Antonio Candido, A Personagem do Romance, busca a “verdade”
da personagem, que está contida na organização estrutural interna do romance e não na
equivalência da personagem com a realidade.
Portanto, originada ou não da observação, baseada mais ou
menos na realidade, a vida da personagem depende da economia do
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livro, da sua situação em face dos demais elementos que o
constituem: outras personagens, ambiente, duração temporal, idéias.
Daí a caracterização depender de uma escolha e distribuição
conveniente de traços limitados e expressivos, que se entrosem na
composição geral e sugiram a totalidade dum modo-de-ser, duma
existência. (CANDIDO et al, 2007, p.75)
Candido (2007, p.54) enfatiza a importância da personagem, “pode-se dizer que
é o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna”.
Destacando-se dentre os outros elementos centrais do desenvolvimento romanesco, o
enredo e as idéias, pois é na personagem que reside “a possibilidade de adesão afetiva e
intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência etc. A
personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos” (CANDIDO, 2007, p.54). Mas
faz uma ressalva: “Isto nos leva ao erro, frequentemente repetido em crítica, de pensar
que o essencial do romance é a personagem, - como se esta pudesse existir separada das
outras realidades que encarna, que ela vive, que lhe dão vida” (CANDIDO, 2007, p.54).
Aqui podemos observar que Drácula, em relação à capacidade da personagem de
existir fora da realidade interna do romance, foge desta afirmação, pois transcende o
romance. Esta personagem, devido às numerosas adaptações em diferentes meios de
comunicação de massa, principalmente o cinema, se tornou “maior” que o romance,
passando a existir fora de sua realidade interna, de seu enredo e das relações com as
outras personagens presentes na obra de Stoker. Drácula pode ser visto em filmes que o
deslocam totalmente do contexto espacial e temporal apresentado no romance, seja
ambientando o Conde na década de 1970, em meio ao movimento hippie, como na
película da Hammer, Dracula A.D. 1972 (também conhecido como Drácula no mundo
da mini-saia, produção inglesa dirigida por Alan Gibson em 1972), seja levando-o para
o oriente para se defrontar com lutadores de artes marciais, caso de The Legend of the
Seven Golden Vampires (co-produção entre o estúdio inglês Hammer e a produtora de
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filmes de Hong Kong, Shaw Brothers, em 1974), ou então adicionando virtudes e
sentimentos como amor e compaixão a seu caráter maléfico e assim retratá-lo
aproximando-o da figura do anti-herói, como na versão dirigida por Coppola, Bram
Stoker’s Dracula (EUA, 1991). A partir destes exemplos podemos pensar que ao
distanciar a personagem da estrutura interna do romance esta estaria transformando-se e
desvirtualizando-se, o que de fato ocorre, porém devemos notar que a personagem em
questão mantém características básicas que permitem o pleno reconhecimento desta,
ainda se mostra como vilão (na maioria das vezes como a epítome do mal), apesar do
afastamento em relação ao texto original. Assim, a personagem Drácula passa a existir
fora da lógica do romance e vai perpetuando sua existência através da cultura de massa
que o reproduz e recria-o regularmente ao longo do tempo.
Retomando o texto de Candido notemos que o autor enfatiza o processo de
mudança do romance moderno na direção da complexidade da personagem dividindo-a
em dois pólos.
1) como seres íntegros e facilmente delimitáveis, marcados duma vez
por todas com certos traços que os caracterizam; 2) como seres
complicados, que não se esgotam nos traços característicos, mas têm
certos poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante o
desconhecido e o mistério. (CANDIDO et al, 2007, p.60)
Esta divisão quanto à caracterização já estava presente no século XVIII, definida
como “personagens de costumes” e “personagens de natureza”. Esta distinção aparece
nos dias de hoje sob a denominação de “personagens planas” e “personagens esféricas”.
A personagem Drácula, inicialmente, creio que esteja inserido no campo das
“personagens planas”, pois sempre se manifesta através de seus traços mais
característicos que evocam a representação máxima do mal. Por outro lado as várias
adaptações que a personagem sofreu acrescentaram novos traços característicos, como
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por exemplo, a busca pela reencarnação de sua amada, enriquecendo sua mitologia e
aumentando sua complexidade. Assim a personagem Drácula que “vive”
independentemente do romance seria mais complexa que seu equivalente que reside no
texto original, porém, mesmo assim, ainda não teria uma multiplicidade de traços
capazes de nos surpreender e assim ser classificada como autêntica “personagem
esférica”.
Abordando outro tópico de análise do texto literário: o da proximidade ou
fidelidade ao real, Candido (2007, p.70) estabelece sete categorias de personagens que
oscilam “entre dois pólos ideais: ou é uma transposição fiel de modelos, ou é uma
invenção totalmente imaginária”. A primeira categoria é de personagens transpostas
com alguma fidelidade de modelos apresentados ao autor por experiência direta, seja
interior ou exterior. No caso da experiência interior a personagem acaba por incorporar
a vivência e sentimentos do romancista. Já no caso da experiência exterior a
personagem deve incorporar traços de pessoas com as quais o escritor teve contato
direto. A categoria seguinte inclui as personagens baseadas de modelos anteriores,
reconstituídos indiretamente pelo escritor, ou por pesquisa documental ou mesmo por
testemunhos. A terceira categoria abarca as personagens que tomam como referência
um modelo real, mas que serve apenas como ponto de partida para a imaginação do
autor, que acaba por desfigurá-lo. Porém ainda é possível identificar o modelo inicial.
Drácula se encaixa na quarta categoria:
Personagens construídas em torno de um modelo, direta ou
indiretamente conhecido, mas que apenas é um pretexto básico, um
estimulante para o trabalho de caracterização, que explora ao máximo
as suas virtualidades por meio da fantasia, quando não as inventa de
maneira que os traços da personagem resultante não poderiam,
logicamente, convir ao modelo. (CANDIDO et al, 2007, p.72)
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A categoria seguinte apresenta personagens que utilizam um modelo real dominante,
somado a outros modelos secundários na sua construção, todavia o eixo central formado
pelo modelo dominante é plenamente reconhecível. A sexta classificação é uma junção
de fragmentos de diversos modelos vivos, sem predominância de uns sobre outros,
formando uma personalidade nova. A sétima e última categoria trata das personagens
“cujas raízes desaparecem de tal modo na personalidade fictícia resultante, que, ou não
tem qualquer modelo consciente, ou os elementos eventualmente tomados à realidade
não podem ser traçados pelo próprio autor” (CANDIDO, 2007, p. 73).
Stoker teve acesso a documentos e relatos que o municiaram com matéria prima
não apenas para a criação de sua personagem principal, mas também para a localização
da primeira parte do romance na Transilvânia, região em que nunca esteve. Partindo de
informações sobre o Drácula histórico, Vlad Tepes, o escritor desenvolveu, criou e
acentuou características do modelo real para obter o Drácula fictício, explorando os
traços de sadismo e crueldade do príncipe da Wallachia até transfigurá-lo num vampiro,
predador natural (neste caso, sobrenatural seria mais apropriado) do ser humano. Nas
comemorações do centenário da publicação do romance de Stoker foram
disponibilizados para consulta os diários e os textos originais contendo as anotações do
autor. Nestes documentos fica claro que Stoker já tinha consistentemente construído sua
personagem, emprestando do cruel príncipe seu nome e sua trajetória pra construir seu
passado e localizar sua narrativa (MELTOM, 2003, p.226). Entretanto este não é o
único modelo que pode ser identificado na gênese de Drácula. Vale lembrar que Stoker
“tinha lido Carmilla, de Sheridan Le Fanu, publicado pela primeira vez em 1872,
alguns anos antes” (MELTON, 1994, p.754), e que outros dois vampiros literários
antecedem Drácula, Sir Francis Varney, personagem título de Varney the Vampyre,
escrito por James Malcolm Rymer, e Lord Ruthven, criação de John Polidori para o
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conto The Vampyre, publicado em 1819. Ambos podem ser apontados como
influências na criação de Drácula, pois já se apresentavam ao público como aristocratas
modernos e urbanizados em contraposição ao vampiro folclórico que vivia entre
camponeses nas zonas rurais. Outro elemento, apontado por estudiosos, na gênese desta
personagem é o ator britânico Sir Henry Irving, proprietário do Lyceum Theatre que era
gerenciado por Stoker, o qual mantinha enorme admiração pelo ator e teria utilizado
traços de sua personalidade para elaborar Drácula. Assim, somados aos modelos vivos
somam-se os modelos ficcionais e imaginários na gênese desta personagem.
Paulo Emilio Salles Gomes, no texto A Personagem Cinematográfica, no livro
organizado por Candido, parte das considerações em relação à personagem no romance
e no teatro para chegar a uma exposição da personagem no cinema.
A personagem de romance afinal é feita exclusivamente de
palavras escritas, e já vimos que mesmo nos casos minoritários e
extremos em que a palavra falada no cinema tem papel preponderante
na constituição de uma personagem, a cristalização definitiva desta
fica condicionada a um contexto visual. (...) Essa circunstância retira
do cinema, arte de presenças excessivas, a liberdade fluida com que o
romance comunica suas personagens aos leitores. (GOMES, Paulo
Emilio Salles. A personagem cinematográfica. In CANDIDO et al. A
personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.111)
Desta maneira a definição física completa de Drácula apresentada pelo cinema
distancia-se da descrição da personagem romanesca e penetra no imaginário coletivo,
perdurando até hoje. Esta poderosa imagem “recriada” pelo cinema em Dracula (1931),
com Bela Lugosi no papel principal, teve sua origem no teatro. O roteiro do filme não
se trata de uma adaptação direta do romance, mas sim de uma adaptação da peça de
teatro, esta sim, adaptada diretamente da novela de Stoker. Lugosi já interpretava o
Conde nos palcos, assim a caracterização física da personagem já existia, mas é no
cinema que ela se fragmenta e ganha maior poder de identificação com o público.
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De um certo ângulo, a intimidade que adquirimos com a
personagem é maior no cinema que no teatro. Neste último a relação
se estabelece dentro de um distanciamento que não se altera
fundamentalmente. Temos sempre as personagens da cabeça aos pés,
diferentemente do que ocorre na realidade, onde vemos ora o
conjunto do corpo, ora o busto, ora só a cabeça, a boca, os olhos, ou
um olho só. Como no cinema. Num primeiro exame, as coisas se
passariam na tela de forma menos convencional do que no palco, e
decorreria daí a impregnância maior da personagem cinematográfica,
o desencadeamento mais fácil do mecanismo de identificação.
(GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem cinematográfica. In
CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva,
2007, p.111-112)
Ainda fazendo a comparação entre palco e tela “podemos admitir que no teatro o
ator passa e o personagem permanece, ao passo que no cinema sucede exatamente o
inverso” (GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem cinematográfica. In CANDIDO
et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.114). Entretanto, pela
longevidade de Drácula no cinema e a renovação de atores que o interpretaram,
podemos descartar esta relação. “O que persiste não é propriamente o ator ou a atriz,
mas essa personagem de ficção cujas raízes sociológicas são muito mais poderosas do
que a pura emanação dramática” (GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem
cinematográfica. In CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva,
2007, p.115). Gomes, refletindo sobre a duração da personagem cinematográfica coloca
que: “A perspectiva histórica nos permite assegurar que as personagens de origem
literária e teatral são capazes de viver séculos e de integrar-se definitivamente numa
dada cultura” (GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem cinematográfica. In
CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.117). Porém,
a popularidade e resistência da personagem, neste caso, se devem aos veículos de
massa, principalmente ao cinema, como aponta Gomes.
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A vitalidade da personagem literária, novelística ou teatral,
reside no seu registro em letras, na modernidade constante de
execução garantida por essas partituras tipográficas. A personagem
registrada na película nos impõe até os ínfimos pormenores o gosto
geral do tempo em que foi filmada. (GOMES, Paulo Emilio Salles. A
personagem cinematográfica. In CANDIDO et al. A personagem de
ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.117)
No caso de Drácula, este registro dos gostos e tendências referentes ao tempo da
produção do filme se mantém, mas devido às numerosas versões cinematográficas
realizadas ao longo do tempo, a personagem está sempre renovada dentro do contexto
sócio-cultural refletido em cada uma delas, o que acaba por lhe imprimir um caráter de
atualidade. Drácula se recusa a morrer, ou melhor, (já que nos referimos a um morto-
vivo) desaparecer. Persiste sua existência cinematográfica há 78 anos, sempre
rejuvenescendo e renovando-se, disposto, de acordo com sua natureza vampírica, a se
manter assim ao longo da eternidade.
3. A adaptação cinematográfica na construção da imagem pública de Drácula
Depois de observar a evolução da personagem vampiro, vamos observar a
evolução da personagem Drácula por meio de suas transposições. Vamos nos deter nas
adaptações do romance Dracula mais importantes para a formação da imagem do
personagem homônimo que habitam o imaginário coletivo, ou seja, sua imagem
pública, e também observar estas adaptações inseridas nos graus de adaptação
apresentados por Doc Comparato. Destacar estas adaptações de Dracula será de grande
valia para a delimitação do corpus deste estudo, pois a personagem Drácula é a
referência comparativa para analisar a personagem Zé do Caixão. Drácula, a
personagem, se tornou maior que Dracula, o romance, através das inúmeras
transposições que o texto original sofreu desde sua publicação em 1897, sendo as
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adaptações cinematográficas as mais poderosas na construção da imagem deste
personagem e como vimos anteriormente responsáveis por sua longevidade. Entretanto
existem mais de uma centena de adaptações do romance de Bram Stoker. Drácula é
provavelmente a personagem que tem mais aparições no cinema rivalizando com
Sherlock Holmes. O Internet Movie Database encontra 152 títulos ao buscar a palavra
Dracula (lembrando que ter a palavra Dracula no título não garante que a personagem
esteja realmente presente no filme), porém a personagem está presente em diversos
filmes que não trazem seu nome no título. Se somarmos com filmes que fazem
referência ao personagem, seja com aparições de outros personagens caracterizados
como Drácula ou que apresentam outros vampiros nobres que não passam de cópias do
mesmo, a quantidade de obras que contribuem para a formação ou perpetuação da
imagem da personagem se torna muito grande para uma análise em profundidade.
Assim delimitar as principais transposições cinematográficas na formação da imagem
da personagem também é delimitar o objeto que servirá posteriormente para a análise
comparativa entre Drácula e Zé do Caixão.
Inicialmente é importante definir adaptação, o Dicionário Aurélio atribui ao
verbete adaptar o significado de “Modificar o texto de (obra literária), ou tornando-o
mais acessível ao público a que se destina, ou transformando-o em peça teatral, script
cinematográfico, etc” (FERREIRA, 2000, p.15). Esta definição enfatiza a mudança de
público, já Sandra Reimão (2004, p.107) destaca a mudança de suporte:
Uma adaptação de um texto literário para um programa televisivo é, em
primeira instância, um processo de mudança de suporte físico. Trata-se de
uma passagem de sinais e símbolos gráficos assentados em papel para um
conglomerado de imagens e sons captados e transmitidos eletronicamente.
Comparato (1995, p.330) destaca o processo de recriação numa adaptação:
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Uma transcrição de linguagem que altera o suporte lingüístico utilizado para
contar a história. Isto equivale a transubstanciar, ou seja, transformar a
substância, já que uma obra é a expressão de uma linguagem. Portanto, já
que uma obra é uma unidade de conteúdo e forma, no momento em que
fazemos nosso conteúdo e o exprimimos noutra linguagem, forçosamente
estamos dentro de um processo de recriação, de transubstanciação.
Jesus Ramos (2002, p.16-17) acrescenta a supressão ou acréscimo no processo de
adaptação:
A adaptação para a linguagem audiovisual de obras procedentes do teatro,
romance ou conto se baseia na relação de fidelidade ao original literário. Isso
implica na supressão de tudo que não se pode expressar em imagens e sons e,
geralmente, o demasiado descritivo. Ainda que se mantenha respeito ao
retrato original dos personagens o argumento pode experimentar diversas
reestruturações que o simplifiquem e, se necessário que destaquem uma trama
principal apoiada por tramas secundárias. Os diálogos costumam serem
refeitos. O roteirista deve sintetizá-los para que se adaptem a duração de um
filme ou de uma série televisiva, o que implica, muitas vezes, em se distanciar
da estrutura original da obra.
Como apontado por Ramos a adaptação tem como base uma relação de fidelidade ao
texto original, assim Comparato (1995, p.331) estabelece cinco graus de adaptação
tendo esta relação de fidelidade como conceito, adaptação propriamente dita, baseado
em..., inspirado em..., recriação e adaptação livre, sendo a primeira mais próxima do
original e as outras seqüencialmente cada vez mais distantes, alterando o tempo, espaço,
personagens, final, etc.
Já abordamos os elementos presentes na gênese da personagem Drácula, assim
passaremos a observar os elementos influentes na construção de sua imagem. A
caracterização de Drácula descrita no romance é muito distante daquela que habita o
imaginário coletivo. No livro, Drácula aparece inicialmente aos olhos de Jonathan
Harker como “um ancião de alto talhe, de barba bem escanhoada e um longo bigode
branco, trajado de negro da cabeça aos pés, sem qualquer traço ou vestígio de uma outra
cor” (STOKER, 1993, p.24). Mais tarde, após jantar com o Conde, Harker descreve
(STOKER, 1993, p.27) com mais detalhes seu anfitrião, destacando o rosto forte e
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aquilino, o cabelo ralo em volta das têmporas, mas profuso no resto da cabeça, as longas
sobrancelhas que se encontravam na base do nariz, a boca cheia de dentes afiados e
lábios vermelhos, as orelhas pontiagudas, pêlos nas palmas das mãos, unhas grandes e
finas e o hálito rançoso. Esta caracterização é muito próxima da personagem
apresentada no filme Nosferatu, Eine Symphonie de Garuens (1922), porém como já
foi dito distante da imagem pública de Drácula.
O romance de Stoker rapidamente chegou às telas, alguns pesquisadores do
personagem citam a existência de um obscuro filme russo perdido, que seria a primeira
adaptação de Dracula, também apontam a existência de um filme húngaro de 1919, mas
este traria Drácula apenas no título tendo seu enredo próximo de O Fantasma da
Ópera. Desta maneira tais filmes não trazem relevância para a formação da imagem de
Drácula.
Nosferatu (1922), dirigido por F. W. Murnau, pode ser considerado como a
primeira adaptação de Dracula, ainda que não seja oficial. A Prana Film que produziu
o filme não se preocupou em adquirir os direitos do romance e acabou sendo processada
por Florence Stoker a viúva do autor. Apesar de ter alterado o nome de todos os
personagens principais e deslocado o espaço para Bremen na Alemanha e o tempo para
1838 (no romance a trama se desenvolve entre setembro e outubro de 1887), ano em que
a cidade sofreu uma praga de ratos, a narrativa de Stoker pode ser facilmente
reconhecida. O equivalente de Drácula, o Conde Orlock fisicamente está mais próximo
da descrição da novela e assemelha-se a um roedor, lembrando o vampiro do folclore
que era incapaz de transitar na sociedade. Em 1925, Florence, representada pela
Sociedade Britânica de Autores, vence o processo judicial e as cópias de Murnau são
destruídas (HAINING, 1987, p.58). Podemos notar a contribuição de Florence na
construção da imagem de Drácula por meio de sua ferrenha oposição a maneira como a
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personagem foi retratada em Nosferatu, se opondo até as exibições particulares da
película pela Film Society da Inglaterra. O que acabou ocasionando também na
destruição desta cópia em 1929. Posteriormente na década de 1960 surgiram novas
cópias condensadas do filme de Murnau, e em 1979 Werner Herzog dirigiu uma
refilmagem com Klaus Kinski no papel do Conde. Em 1984, no festival de Cinema de
Berlim foi exibida uma cópia montada como no filme original, o pesquisador do
Munich Film Museum, Enno Patalas, trabalhou durante nove anos sobre seis cópias
encontradas em diferentes países da Europa para chegar a esta montagem que acrescenta
cerca de um quarto de filme tornando a narrativa mais fácil de ser compreendida
(HAINING, 1987, p.59). Patalas em seu trabalho encontrou traços de pigmentos
coloridos nos negativos dos filmes. Estes seriam banhados em química para que
ganhassem cor, azul para as cenas noturnas, amarelo para a luz de velas e marrom para
cenas diurnas, o que faria com que Nosferatu fosse o primeiro filme à cores (HAINING,
1992, p.59). Assim, Nosferatu, deve ser observado como uma referência importante
para a construção da imagem de Drácula, porém uma referência de como a personagem
não deveria ser caracterizada.
Posterior ao filme de Murnau acontece a estréia de Dracula no teatro em junho
de 1924. Anteriormente o próprio Stoker adaptou seu romance para o teatro e realizou
uma leitura dramática em 1897 a fim de assegurar os direitos autorais, principalmente os
diálogos e a trama de sua obra. Intitulada como Dracula: Or the Undead, a peça em
cinco atos nunca foi encenada e somente uma cópia do manuscrito encontra-se no
acervo do British Museum (MELTOM, 2003, p.245). Desta maneira a peça escrita pelo
ator e manager Hamilton Deane é a primeira encenação do romance. Em Dracula: The
Vampire Play In Three acts (1924), notamos novamente a influência de Florence
Stoker na formação da imagem da personagem, já que seria condição para a cessão dos
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direitos teatrais da obra que a personagem se distanciasse da caracterização vista em
Nosferatu. Na peça de Deane, Drácula se veste com roupas de gala, manto formal e
capa com colarinho alto. Vestimenta que ficará sempre associada à personagem e que na
época era o traje convencional dos vilões no palco. A capa aberta criava a ilusão da
transformação em morcego (invenção de Stoker no romance), recurso adotado por outro
mito da cultura de massa, Batman (inspirado no Conde vampiro e no herói de capa e
espada Zorro). Trajado formalmente e de aparência galante, Drácula se opõe aos
modelos anteriores e pode interagir livremente numa sociedade cortês, esta interação
com a sociedade é ampliada já que a peça elimina toda a primeira parte do romance que
se passa na Transilvânia, iniciando-se já em Londres. Deane pretendia representar o
próprio Drácula, mas ao constatar que as melhores falas pertenciam ao Dr. Van Helsing
acabou optando por este personagem e como Van Helsing, ao final da peça, alertava o
público presente para a real existência de vampiros, encerramento que se fez presente na
montagem inicial da subseqüente adaptação cinematográfica realizada pela Universal
(MELTOM, 2003, p.251). A peça de Deane estréia em Londres em 1927 e se torna um
grande sucesso, valendo-se de um ótimo golpe de publicidade: a presença de uma
enfermeira do Queen Alexandra Hospital no teatro para atender ao público que poderia
desmaiar ou se sentir mal durante o espetáculo, reporta-se (MELTON, 2003, p.252) que
39 pessoas na platéia solicitaram sua assistência. No mesmo ano Florence aceita a oferta
de John L. Balderston para montar a peça na Broadway. A versão americana (reescrita
por Balderston) se distancia mais do romance, suprimindo e condensando personagens,
todavia o modelo de Drácula apresentado por Deane é reproduzido fielmente. A peça de
Deane chega a ter três companhias excursionando simultaneamente e realizou 391
apresentações, enquanto que a peça de Barlderston, que estreou em 1927 no Fulton
Theater, em New York, teve duas companhias excursionando e realizou 241
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apresentações (MELTOM, 2003, p.256). A versão de Barlderston trouxe um elemento
influente para a personagem, a interpretação do ator húngaro Bela Lugosi, e acabou
servindo como base para o roteiro do filme da Universal em 1931, da mesma maneira
que a versão da peça na Broadway em 1977 serviu de base para o filme Dracula, que
trazia Frank Langella no papel principal, realizado em 1979, novamente pela Universal.
Bela Lugosi, que Florence achava perfeito para o papel de Drácula, participa das
negociações na compra dos direitos de filmagem do romance e acaba convencendo a
viúva do autor a vendê-los para Universal Pictures por US$ 40 mil. Lugosi acreditava
que tinha a preferência no papel por intermediar as negociações, entretanto seu nome
vinha abaixo de uma longa lista de atores encabeçada por Lon Chaney, o homem das
mil faces, que já havia representado de maneira assustadora um “vampiro” em London
After Midnight (1927), mas Lon Chaney acabou falecendo e ao final o papel ficou com
Lugosi (MELTOM, 2003, p.233). Dracula (1931), dirigido por Tod Browning,
acrescenta a seqüência inicial do romance, suprimida no teatro, ambientada no castelo
do Conde na Transilvânia e foi um grande sucesso, a maior bilheteria do ano salvando a
Universal Pictures da falência, era a primeira vez que Hollywood apresentava um tema
sobrenatural, sem uma explicação lógica para sua existência. A partir de Dracula
(1931) se iniciou o ciclo de filmes de horror realizado pela Universal, que trouxe a
representação cinematográfica de outros monstros, a Múmia, o Lobisomem, o Monstro
de Frankenstein e a Criatura da Lagoa Negra, dentre outros. Browning foi muito
criticado pela sua direção, pela estaticidade da câmera e por sua falta de experiência
com o cinema falado. O filme foi lançado em três versões diferentes, a principal com
Bela Lugosi em inglês, uma versão em espanhol, realizada simultaneamente com outra
equipe e elenco diferentes, porém utilizando o mesmo roteiro e cenários, e uma versão
muda com inter-títulos já que muitos cinemas ainda não estavam equipados com
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sistema de som. Lugosi repetiu o modelo teatral da personagem acrescentando seu
sotaque da Europa Oriental, que se tornava mais acentuado já que aprendia as falas do
filme foneticamente. Também caracterizou a personagem com o penteado empastelado
para trás. Sua imagem até hoje é associada com a personagem, que foi representada por
Lugosi somente mais uma vez no cinema, na comédia de 1948, Abbott and Costello
Meet Frankenstein.
Somente no final da década de 1950 teremos um novo rosto associado
intensamente à personagem com The Horror of Dracula (Inglaterra, 1958), estrelando
Christopher Lee no papel do Conde e Peter Cushing como Van Helsing. O filme
dirigido por Terrence Fisher é a segunda produção do novo ciclo de horror realizado
pelo estúdio britânico Hammer Films, o primeiro foi The Curse of Frankenstein
(1957), também dirigido por Fisher e com Lee e Cushing interpretando o Monstro e
Frankenstein respectivamente. Agora colorido, o Drácula da Hammer mostrava seus
dentes afiados, até então ainda não se vira as presas do vampiro no cinema e estas a
partir de então se tornaram parte de sua imagem juntamente com os olhos vermelhos. O
sangue e a sexualidade foram muito explorados ao longo de oito filmes lançados que
levaram o Conde Drácula para cenários, como já dito anteriormente, totalmente
adversos do texto original. Em Dracula A.D. 1972 (1972) o Conde transitou entre os
hippies na década de 1970 e em The Legend of The Seven Golden Vampires (1974)
se viu lutando Kung-Fu na China. The Horror of Dracula não baseia seu roteiro na
peça teatral retomando o romance, mas se distancia deste, suprimindo personagens,
deslocando o espaço e retratando Drácula quase que como uma vítima dos caçadores de
vampiros que o perseguem desde o início do filme. O Drácula de Lee reproduz o
modelo anterior trazendo algumas contribuições para a imagem da personagem, se
mostra mais sedutor e romântico, cobrindo de beijos os pescoços de suas vítimas que
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agora exibem decotes reveladores, também aparece mais agressivo, cruel e aterrorizador
que a versão de Lugosi. Nota-se a intenção dos produtores em distanciar esta nova
versão daquela apresentada pela Universal anteriormente, a Hammer investe em
cenários e figurinos de época trazendo a ambientação gótica em oposição à
modernidade exibida pelo estúdio americano (MELTOM, 2003, p.404). A personagem
também se torna mais silenciosa, tem pouquíssimos diálogos e nos filmes seguintes fala
cada vez menos. Lee argumenta que os diálogos escritos para sua personagem eram de
extremo mau gosto e ele se recusava a recitá-los, a Hammer por sua vez afirma que Lee
se tornara uma estrela e seu salário crescera proporcionalmente, assim lhe dar poucas
falas garantia sua presença dentro do orçamento apertado do estúdio (MELTOM, 2003,
p.377). A versão Inglesa definitivamente apresenta um Drácula mais cinematográfico do
que o Drácula teatral da Universal, como podemos ver na morte do Conde pela luz do
sol, visualmente muito mais adequada ao cinema, como Murnau já havia apresentado
em Nosferatu.
Em 1972 o livro In Search of Dracula traz uma importante contribuição para a
imagem da personagem, a associação com Vlad o Empalador. Apesar de Stoker já
referenciar o príncipe do séc. XV no romance esta passagem foi suprimida de todas as
adaptações até agora citadas, estando distante do imaginário público da personagem. Os
historiadores romenos Radu Florescu e Raymond T. McNally realizaram uma pesquisa
no final dos anos 1960 à procura de fatos verdadeiros que estivessem presentes na
narrativa de Stoker e se depararam com o Drácula histórico, a pesquisa resultou no livro
que se tornou muito popular unindo o Drácula de Stoker com o Drácula histórico para o
público, influenciando as adaptações realizadas posteriormente.
A influência da obra de Florescu e McNally pode ser vista no filme Dracula
(1973) produzido para TV e exibido em audiência nacional pela ABC nos EUA.
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Dirigido por Dan Curtis, com roteiro de Richard Matheson e Jack Palance no papel
principal, esta versão apresentou pinturas e tapeçarias no castelo de Drácula retratando-
o como Vlad Empalador e tornou a personagem mais romântica (MELTOM, 2003,
p.239). O roteiro de Matheson trouxe ao enredo a trama do amor reencarnado que era
típica dos filmes de múmia, como em The Mummy (EUA,1932).
Esta mesma trama será utilizada no roteiro de Bram’s Stoker’s Dracula (1992),
produzido pela Columbia Pictures, que também reproduz a associação com Vlad Tepes
de maneira explícita no segmento inicial do filme. Dirigido por Francis Ford Coppola e
com Gary Oldman como Drácula, o filme apresenta um grau de fidelidade ao romance
maior, retratando todas as personagens principais do filme. A versão de Coppola, que
recebeu campanha publicitária e distribuição massiva, também faz referências aos
filmes citados anteriormente, explorando a sexualidade e a violência intensamente e
reforçando a imagem da personagem, porém tornando-a ainda mais romântica.
Drácula nas histórias em quadrinhos brasileiras
No Brasil, a personagem Drácula fez inúmeras aparições em programas de TV e
os filmes da Hammer foram reprisados constantemente na televisão nos anos 1970 e
1980. Vale destacar a produção da Rede Bandeirantes, Topo Gigio no Castelo do
Drácula (1987), o média metragem em Super 8, dirigido e produzido por Ivan Cardoso,
Nosferato no Brasil (1971), que traz Torquato Neto como o vampiro que vem tirar
férias no Brasil e a telenovela Drácula, uma história de amor (1980) com Rubens de
Falco no papel principal. A telenovela começou na TV Tupi, que fechou no mesmo ano,
e teve prosseguimento na Rede Bandeirantes com o título de Um Homem Muito
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Especial. Entretanto, foi nas histórias em quadrinhos que a personagem atingiu maior
expressividade.
Nos Estados Unidos a primeira aparição de Drácula em revista em quadrinhos
própria foi em 1962 com uma adaptação do filme de 1931 publicada pela editora Dell.
Quatro anos depois a Dell lançou seis edições da revista mensal Dracula. “Nos mais de
quarenta anos seguintes, cerca de noventa títulos levaram o nome do famoso vampiro
pelas editoras Marvel, Apple, DC, Warner, Millenium, Darkhorse” (GONÇALO, 2008,
p. 131), dentre outras.
Em 1966, durante a explosão dos quadrinhos de horror no Brasil, o editor
Miguel Penteado, dono da editora GEP decidiu adaptar o Conde Drácula para as revistas
em quadrinhos. Assim, no mesmo ano em que a americana Dell colocava sua versão de
Drácula numa revista mensal (porém com características de super-herói para não entrar
em conflito com o Comics Code ainda em vigência) a GEP lançava uma publicação
brasileira com o personagem. A revista Drácula nacional trazia roteiros de Hélio Porto
e depois Helena Fonseca, Gedeone Malagola e Francisco de Assis, e arte de Nico
Rosso, Jorge Scudellari e Juarez Odilon, dentre outros.
O gibi brasileiro foi um dos primeiros títulos regulares
protagonizados pelo conde vampiro. Os roteiros escritos por Helena
Fonseca se destacavam pelo tom de deboche, numa tentativa de
escapar dos clichês góticos ligados ao ser d’além-túmulo. A escritora
jamais havia visto um filme de Drácula e sequer conhecia o livro de
Bram Stoker, e, por causa disso concebeu a personagem com
características próprias. (FERREIRA et al, 2002, p. 273)
Nos anos seguintes Drácula se tornou a principal revista da editora Taika e
estaria presente também em outras publicações da mesma editora. Na nona edição da
revista Clássicos do Terror a origem de Drácula é contada numa história de quase cem
páginas com roteiro de Francisco de Assis e desenhos de Nico Rosso. A Taika também
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publicou em 1968 a adaptação do romance de Stoker, Drácula: a verdadeira história
de uma lenda, roteirizada por Francisco de Assis e ilustrada por Eugênio Colonnese.
Esta adaptação foi republicada em 1999 à cores pela Marfe editora.
Em 1976, a Spell Produções lançou um álbum de luxo com Drácula reunindo
três histórias escritas por Maria Aparecida de Godoy e ilustradas por Nico Rosso. “Os
argumentos misturam satanismo, fantasia e fatos históricos, narrando a origem de
Drácula de maneira bastante original, e seu inusitado envolvimento com Joana D’arc”
(FERREIRA et al, 2002, p. 274).
A partir da década de 1970 as grandes editoras norte-americanas decidiram
revisar a proibição aos temas horríficos nos comics fazendo com que os vampiros
voltassem aos quadrinhos de grande circulação. A Marvel Comics logo lançou a revista
mensal The Tomb of Dracula, ambientando as histórias do conde vampiro nos anos
1970. Este material foi publicado no Brasil pela editora Bloch, não só na revista própria
A tumba de Drácula, como em outras séries como Clássicos do Pavor, que apresentou
uma adaptação do livro de Stoker, e Aventuras Macabras. Este mesmo material em
1979 passou a ser publicado pela editora Abril na revista Terror de Drácula, que teve
onze edições. A Bloch deu prosseguimento por mais quatorze edições, rebatizando a
revista como Conde Drácula e utilizando material de artistas brasileiros.
Na década de 1980 a editora D-Arte estampou Drácula nas capas de quinze
edições da revista Mestres do Terror entre 1981 e 1992. As histórias geralmente
traziam roteiros e arte de Rodolfo Zalla, que se especializou em ilustrar o personagem.
Já no fim da década de 1980 a editora Nova Sampa fez uma abordagem mais
romântica ao personagem, publicando uma série de revistas protagonizadas por Drácula,
com roteiros de Ataíde Braz e arte de Neide Nakazato. Depois disso, com exceção de
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republicações, o conde Drácula (como o quadrinho de horror de maneira geral) não tem
mais circulado pelas bancas brasileiras em revista própria.
Observando as adaptações de Dracula apresentadas inseridas nos graus de
adaptação notamos que estas mantêm um grau de fidelidade à obra original que permite
o reconhecimento desta. Assim, as adaptações mais influentes na construção da imagem
pública da personagem Drácula se inserem como “adaptação propriamente dita” ou
“baseado em...” sendo aquelas adaptações que se distanciam demasiadamente do texto
original, apenas reprodutoras dos modelos apresentados pelas versões destacadas neste
estudo. A adaptação teatral realizada por Hamilton Deane estabeleceu um padrão
extremamente influente na personagem que foi amplamente reproduzido pela versão da
Universal e que recebeu algumas contribuições das versões da Hammer, ABC, e
Columbia, porém se torna impossível tomar a peça teatral como objeto de análise, pois
o teatro só existe realmente no momento de sua execução. Desta maneira delimitamos o
corpus para análise comparativa da personagem em Dracula (1931), com Bela Lugosi,
já que esta versão traz o modelo predominante na imagem da personagem que tem se
perpetuado nas adaptações que se seguiram.
4. Encaixotando o vampiro – A personagem Drácula inserida na teoria do horror
Para finalizar este capítulo centrado na personagem Drácula, vamos examiná-la
a partir dos elementos conceituais próprios do gênero horror, estabelecidos no quadro
teórico apresentado no primeiro capítulo deste estudo. Assim, analisaremos a
personagem Drácula, tomando como referência central a versão fílmica de 1931,
quanto: a presença do elemento fantástico e sua instância; a intenção em buscar o horror
artístico; a materialização do horror explícito e sua classificação; os arquétipos do
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gênero horror; a questão do mal interior; o subtexto da narrativa fílmica; as condições
de produção na indústria cinematográfica; a resposta emocional das personagens
positivas; a classificação como monstro impuro e a estrutura de enredo.
A presença do elemento fantástico em Drácula é intrínseca ao personagem,
acontece na maioria das adaptações do romance de Stoker e evidentemente ocorre na
versão cinematográfica de 1931. Como já foi dito anteriormente o filme estrelado por
Bela Lugosi e dirigido por Tod Browning foi a primeira incursão de Hollywood no
sobrenatural. Caracterizado de acordo com a instância do fantástico maravilhoso, já que
o vampiro se trata de uma força não-natural que desafia o conceito da nossa realidade,
contrastando com o filme de vampiros, anteriormente dirigido por Browning, London
After Midnight, com Lon Chaney. Neste caso o vampiro era na verdade um disfarce
para provocar a confissão do real criminoso, exemplo perfeito do fantástico estranho,
onde o inexplicável se revela como uma ocorrência natural do nosso mundo. Ambas as
instâncias do fantástico, estranho e maravilhoso, são comuns no cinema, em
contrapartida exemplos do fantástico puro (formado pela hesitação entre o estranho e o
maravilhoso) são menos freqüentes. Apenas para ilustrar esta instância, podemos citar a
Bruxa de Blair (1999) como um exemplo contemporâneo do puro fantástico no cinema
de horror.
A intenção dos realizadores de Dracula (1931) em provocar a emoção do horror
artístico na audiência é obviamente constatada pela reação da platéia ao assistir o filme
na época de seu lançamento. Como nas apresentações teatrais desmaios eram freqüentes
nas salas de cinema durante a projeção do filme. Outra consideração relevante é que
Drácula é uma personagem extremamente influente no gênero horror, ao qual
corresponde como um símbolo perfeitamente reconhecível. Outro indício da busca pela
resposta emocional do horror artístico no público, ponto chave para a inclusão do filme
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no gênero, encontra-se na resposta emocional das personagens humanas frente ao conde
Drácula. Apesar de inicialmente seduzidos ou impressionados pela imagem aristocrática
do vampiro, que aparentemente se porta como um cavalheiro, as personagens positivas
manifestam horror e repugnância ao constatarem com quem realmente estão lidando,
não mais conseguindo reagir ao conde com naturalidade.
O horror explícito em Dracula (1931) opera nos três níveis, mas a maior parte
do tempo se alterna entre o horror explícito em si e o horror refinado. A seqüência em
que Harker viaja até o castelo de Drácula e inclusive sua estadia lá sugere muitos
elementos de horror que não vemos. Os ataques de Drácula efetivamente também não
são vistos bem como suas presas, em acordo com os padrões de censura vigentes na
época. Porém temos alguns momentos de repulsa que ocorrem logo no início, como as
tomadas que mostram o ambiente macabro em que repousam Drácula e as outras
vampiras, com caixões, ratazanas, tatus e aranhas. Entretanto, se considerarmos qual o
nível em que a imagem pública da personagem Drácula se encaixa no horror explícito,
definitivamente não se trata do horror explícito refinado. Apesar dos aspectos de
sedução da personagem se intensificar ao longo das diferentes adaptações que ela sofreu
ao longo do século XX, sua ferocidade e características horríficas, como os olhos
vermelhos, as presas afiadas, a metamorfose em morcego, também cresceram
proporcionalmente. Assim podemos dizer que a personagem Drácula opera no nível do
horror explícito em si, já que seus traços sedutores e humanizados acabam por equilibrar
suas características repugnantes.
No quadro teórico proposto no primeiro capítulo, Drácula é propriamente um
arquétipo do gênero horror, juntamente com a coisa inominável, o lobisomem, o
fantasma e o lugar ruim. Não restando dúvidas quanto a sua posição nesta categoria de
análise, o arquétipo do vampiro. Como vimos o mal personificado em Drácula, um
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vampiro não-natural, não se origina de nenhum ato humano, é totalmente exterior às
personagens positivas. Sendo esta uma das características do arquétipo do vampiro, a
exteriorização do mal. A segunda característica relevante e latente, a violação sexual,
simbolizada pelo ato vampírico de chupar o sangue da vítima, também já foi
satisfatoriamente reconhecida quando abordamos especificamente este arquétipo.
O subtexto do romance de Stoker está intrinsecamente ligado ao próprio
arquétipo do vampiro e a época e o local em que foi escrito, a Inglaterra do fim do
século XIX, uma sociedade extremamente moralista, principalmente se tratando de
sexualidade. Porém, um fator importante ao examinar sua primeira adaptação oficial
para o cinema é que os Estados Unidos viviam a grande depressão na época de sua
realização. Além da leitura da sexualidade simbolizada pelo vampirismo, que pode ser
feita em outros ciclos de horror (como relacionada com a AIDS nos anos 1980),
também podemos observar como uma fuga para a situação caótica pela qual passava a
sociedade norte-americana. Principalmente se notarmos que este filme originou todo um
ciclo de filmes de horror nas décadas de 1930 e 1940. Uma espécie de reflexo invertido
para os problemas naturais da sociedade, projetados na tela como uma ameaça exterior
não-natural. Também podemos observar a antecipação de sentimentos xenófobos que
viriam a se evidenciar na década seguinte. Drácula, causador do mal, vem de terras
distantes e a única maneira de lidar com ele é através de sua destruição.
Quanto às condições de realização dentro da indústria cinematográfica
estabelecemos dois pólos distintos, as produções A e B dos grandes estúdios em
oposição às produções independentes de pequenas companhias muitas vezes associadas
ao exploitation. O filme Dracula (1931) se encaixa no primeiro pólo. Apesar da
Universal também ter sido afetada pela crise econômica era um estúdio respeitado, de
prestígio no mercado, e com um sistema de distribuição funcional. A produção de
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Dracula envolveu a compra dos direitos de um romance popular e era apoiada no
sucesso da adaptação teatral. A Universal estava investindo em um produto de provável
sucesso e lançou mão de todos os recursos disponíveis, inclusive a novidade do som,
para realizar o filme, e por fim acabou lançando três versões de Dracula para alcançar
um público maior: a versão tradicional aqui analisada, a versão com o elenco latino e
falada em espanhol e a versão muda com letreiros. Contrariando a postura corrente deste
pólo da indústria, que costuma frear a ousadia frente aos riscos dos altos investimentos
requeridos pelas suas produções, a Universal foi muito ousada ao levar às telas o
elemento sobrenatural e oferecer o horror artístico às massas.
Sendo um vampiro, Drácula automaticamente preenche as qualidades impuras
dos monstros criados pela fusão. Ele é uma criatura que une elementos de duas
categorias diferentes, é um morto-vivo, um ser impuro causador de repulsa. Um
amálgama de duas categorias conflitantes num ser integral num tempo contínuo. A
metonímia horrífica também se aplica neste caso, já que Drácula é associado a objetos
macabros e animais repelentes para acentuar sua impureza e provocar a repulsa
disfarçada pela figura humanizada do cavalheiro.
Do mesmo modo que a personagem Drácula é ela mesma um dos arquétipos dos
monstros de horror, o roteiro do filme dirigido por Browning corresponde perfeitamente
a uma das estruturas de enredo matrizes que examinamos, o enredo de descobrimento
complexo. Logo no início somos apresentados ao conde e a ameaça que representa nas
seqüências no castelo na Transilvânia. A irrupção se dá com os ataques de Drácula a
Lucy e o estranho comportamento dela. Van Helsing encarna a essência da figura do
descobridor. É o antagonista ideal para o vampiro, um homem da ciência capaz de usar
a razão humana para combater forças externas não-naturais. Durante os movimentos de
descobrimento e confirmação (ainda é preciso convencer a família de Lucy de que se
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trata de um vampiro para poder proteger a jovem) Van Helsing discursa sobre a ameaça
do vampiro e os meios para reconhecê-lo e conseqüentemente o destruírem. Ação que
logo se segue no movimento de confronto, restaurando a normalidade. A relação com o
desconhecido neste caso e na maioria dos casos do enredo de descobrimento complexo
está sintetizada na fala de Van Helsing quando alerta para o poder dos vampiros estar no
fato das pessoas não acreditarem neles. As histórias nesta estrutura de enredo
geralmente apresentam uma visão que ataca o pensamento rígido, sugerindo que a
recusa em admitir a existência de elementos desconhecidos para a nossa realidade é um
erro grave.
Concluímos este capítulo com um paradigma sólido da personagem de horror,
correspondendo plenamente aos conceitos aplicados e permitindo a comparação com a
personagem Zé do Caixão a partir de uma ótica apropriada ao gênero narrativo a que
pertencem.
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Capítulo III – A PERSONAGEM ZÉ DO CAIXÃO
Este trabalho tem como escopo final examinar a personagem Zé do Caixão a
partir dos preceitos teóricos próprios do horror que estabelecemos previamente e que
utilizamos para observar a personagem Drácula, modelo ideal para efetuar uma
comparação com a personagem Zé do Caixão. Porém para poder apreender esta análise
plenamente é importante conhecer o desenvolvimento do gênero horror no Brasil, bem
como a história da trajetória da personagem Zé do Caixão e de seu criador José Mojica
Marins, temas aos quais nos dedicaremos neste capítulo.
O Brasil, ao longo do século XX e nesta primeira década do século XXI tem se
mostrado um grande consumidor do gênero horror em diferentes veículos de
comunicação, entretanto a produção nacional do gênero é muito pontual. O folclore
brasileiro é extremamente rico em criaturas fantásticas e monstros, porém são poucas as
obras nacionais, literárias, cinematográficas, teatrais, musicais, televisivas, que buscam
a emoção do horror. Na maioria das vezes o horror é abordado com bom-humor, de
forma satírica, principalmente pela televisão. Os monstros clássicos da Universal são
freqüentemente motivo de riso em programas de humor. Inclusive o humorista Chico
Anysio nos deu uma versão tupiniquim de Drácula: Bento Carneiro o vampiro
brasileiro!
No cinema brasileiro a aproximação com o tema é muito rara, com exceção da
obra de Mojica, não é possível citar outro cineasta de alcance expressivo. É claro que o
cinema de Ivan Cardoso, referência no cinema brasileiro contemporâneo, tem relação
direta com o tema, como se pode ver em filmes como O Segredo da Múmia (1982), As
Sete Vampiras (1986) e Um Lobisomem na Amazônia (2005). Mas o cinema de
Cardoso não busca o horror, mas sim o terrir, onde os monstros são retratados de
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maneira romântica e inocente se comparados à violência urbana das capitais brasileiras
(REMIERS, 2008, p.27). A resposta emocional que se busca neste caso é o riso, a
alegria e até mesmo a excitação sexual.
Podemos citar um movimento underground de realizadores independentes, cujo
maior expoente é o vídeomaker Peter Baiestorf, voltados especificamente para a
produção do subgênero gore em vídeo digital ou VHS, mas o alcance de sua
distribuição é muito pequeno e atinge um público muito reduzido.
Um campo em que o horror floresceu e cresceu no Brasil é o das histórias em
quadrinhos. Assim, examinemos o gênero horror em caráter nacional observando sua
evolução no meio em que mais teve expressividade. O rádio também é um veículo de
comunicação relevante para o desenvolvimento do horror no Brasil, e merecedor de um
olhar mais apurado, mas por enquanto vamos nos deter no universo das histórias em
quadrinhos. Parece adequado que um dos gêneros mais desprezados pela crítica em
geral viesse a se proliferar num meio igualmente desprezado e alvo de preconceitos.
Como num reflexo irônico da máxima de Mcluhan (1969, p. 21) “o meio é a
mensagem”. Esse florescimento do horror nas páginas das revistas em quadrinhos
brasileiras está intimamente ligado ao surgimento do código de ética da indústria de
quadrinhos norte-americana. Desta maneira, antes vamos fazer uma breve exposição da
formação das publicações de quadrinhos de horror nos Estados Unidos.
4. A Sedução dos Inocentes
É somente depois da Segunda Guerra Mundial que os quadrinhos de terror
começaram a efetivamente ganhar espaço. Até a década de 1930 os quadrinhos na
indústria editorial norte-americana eram publicados apenas na forma de tiras de jornal,
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produzidas e distribuídas por agências, syndicates, que exerciam uma rigorosa censura
interna, pois seu público era basicamente familiar. Assim, os quadrinhos eram
essencialmente cômicos e pudicos, o que acabou gerando sua denominação na língua
inglesa, comics. Quando passam a serem publicados no formato de revista começam a
surgir outras possibilidades, e aparecem as primeiras histórias de terror influenciadas
pelo rádio, cinema e revistas policiais e de suspense (pulp magazines). “Mesmo assim,
ainda por causa da censura, os comics levariam quase duas décadas para finalmente
assumir o gênero” (GONÇALO, 2008, p. 108). Até o final da Segunda Guerra Mundial,
os super-heróis constituem o gênero dominante nos comics. A combinação de
agressividade e patriotismo era ideal para uma nação envolvida num conflito bélico de
grandes dimensões e gerou uma demanda destas publicações tão grande que o
crescimento da indústria acabou esbarrando na pouca disponibilidade de papel
decorrente da guerra. Porém com o final da Guerra não apenas terminou a escassez de
papel como também terminou o enorme interesse do público pelas aventuras dos super-
heróis.
Talvez a derrota do eixo tenha lhes privado de ameaças dignas de
sua capacidade ou talvez o interesse coletivo dos leitores seguiu
espontaneamente em outras direções. Em qualquer caso, os
primeiros anos desta pós-guerra foram testemunhas da evidente
decadência dos super-heróis. Em pouco tempo suas numerosas
fileiras viram-se reduzidas aos três grandes arquétipos: Superman,
Batman e Mulher Maravilha. (FERNANDEZ, 2003, p. 54)
O horror se tornava cada vez mais freqüente nas pulp magazines como Terror Tales,
Ghost Stories e Horror Stories. E influenciou o mercado editorial a preencher com
monstros o vazio deixado pelos super-heróis nos quadrinhos.
O primeiro comic book de horror é provavelmente Yellowjacket Comics
(GONÇALO, 2008, p. 110). Durou dez números, de 1944 a 1946, e trazia as aventuras
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de um justiceiro, acompanhadas por uma série de histórias chamadas de Tales of
Terror. Estas histórias muitas vezes eram adaptações de contos de Poe e introduziram
um traço marcante dos quadrinhos de terror: o narrador visualizado, o anfitrião. Neste
caso na forma de uma velha bruxa. Houve outras publicações pioneiras, mas somente
em 1947 que aparece a primeira revista antológica de terror em quadrinhos, a Eerie,
publicada pela Avon Comics Group.
Porém os mais polêmicos e populares comics de horror foram os da editora EC.
A pequena empresa fundada em 1945 por Max Gaines, um dos criadores do formato
comic book, se chamava Educational Comics e se dedicava à publicação de quadrinhos
didáticos para o ensino fundamental. Paralelamente, Gaines lançou uma linha de
publicação de histórias em quadrinhos fantásticas pelo selo Entertaining Comics.
Ambas correspondendo à sigla EC. Com a morte de Gaines num acidente náutico em
1947, seu filho William M. Gaines assume a tarefa de levar adiante a endividada
empresa. Até 1949 a EC tem uma trajetória incerta, seguindo as iniciativas da
concorrência e os modismos. Eis que Albert B. Feldstein, editor associado de Gaines,
propõe uma nova linha editorial voltada para o gênero horror.
Como já foi visto, não foram exatamente os pioneiros do gênero,
mas o que Gaines e Feldstein iniciaram seria distinto dos escassos
comic books de horror que até então haviam existido. Depois de
experimentar com histórias soltas em duas coleções de temática
policial, Crime Patrol e War against Crime, se adotou a decisão de
converte-las ao “novo gênero” e reentitular-las The Crypt of Terror –
depois Tales from the Crypt e The Vault of Horror, a estas se
adicionou a coleção Haunt of Fear. (FERNANDEZ, 2003, p. 59)
As três publicações tinham características semelhantes, traziam histórias curtas de
horror narradas pelo anfitrião, um cadáver de risada histérica e contavam com a mesma
equipe de roteiristas (liderados por Albert Feldstein e Harvey Kurtzman) e desenhistas,
Joe Orlando, Jack Davis, Bernard Krigstein e Frank Frazetta.
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Desta maneira a EC inicia uma explosão dos comic books de terror. Os ótimos
resultados nas vendas das revistas de horror possibilita a EC a tentar outras linhas de
publicação como a ficção-científica (Weird Science e Weird Fantasy) e humor satírico
(Mad e Panic). Logo as editoras concorrentes ao tomarem conhecimento das cifras
relacionadas aos títulos de horror da EC começam a investir no gênero. Muitas das
novas editoras dedicadas ao horror eram companhias pequenas baseadas no amparo da
liberação de papel e na exploração do sensacionalismo. A trajetória ascendente dos
comics de horror dura cinco anos até sua extinção em 1955.
“A audácia de Gaines e Feldstein, entretanto, não sacudiu somente o mercado de
quadrinhos. Abalou alguns sólidos pilares estabelecidos pelas grandes empresas
editoriais” (GONÇALO, 2008, p. 113). O conteúdo macabro e violento das revistas de
horror gerou uma perseguição ao gênero. As grandes editoras e syndicates, prejudicadas
pelas grandes vendas das revistas de horror se juntam à cruzada que culmina na criação
de um código de ética, o Comics Code (código de histórias em quadrinhos).
Na verdade os ataques aos comics de horror começaram na década de 1940 e
levaram diversas editoras, entre elas a EC, a formarem a Association of Comics
Magazine Publishers (ACMP) em 1948, e adotarem um código de normas de auto-
regulamentação. Apesar de o código ser desobedecido e freqüentemente algumas
editoras seguirem estampando o selo de aprovação da ACMP nas capas de sua revista,
mesmo depois de terem se desligado da Associação, já era o suficiente para desviar a
atenção da opinião pública e da imprensa e diminuir os ataques.
O psiquiatra Frederic Wertham era um dos inimigos dos quadrinhos, e acusava o
meio de incentivar os jovens ao crime, à violência e a comportamentos que não cabiam
na sociedade norte-americana.
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Na realidade, um emigrado da Alemanha e participante da Escola de
Frankfurt em Nova York. (...) Paralelamente a sua carreira como
pesquisador havia se envolvido de maneira crescente com projetos
assistenciais às comunidades desfavorecidas e havia servido como
psiquiatra forense para o estado de Nova York em numerosos casos.
Precisamente os resultados de uma pequena seleção de suas
entrevistas com assassinos – entre eles o infanticida canibal Albert
Fish – constituíram o material de seu livro The Show of Violence,
publicado em 1948. Nele Wertham já plantava a base de seu
posterior estudo dos comic books: o reflexo nos meios de massa de
uma fascinação geral pela violência causada por fatores sociais.
(FERNANDEZ, 2003, p. 64)
Wertham foi um dos detratores dos comics que percebeu que o código da ACMP
era ineficaz e continuou a cruzada contra o meio. Com o estouro nas vendas de
quadrinhos de horror no início da década de 1950 os ataques começaram a se
multiplicar. Em 1954, Wertham lança o livro Seduction of the Innocent, onde culpa os
comics em geral de serem uma fonte direta do crescente fenômeno da delinqüência
juvenil. Baseado no fato circunstancial de que os criminosos juvenis que entrevistara
eram leitores de comic books, o que não queria dizer muito já que as histórias em
quadrinhos eram consumidas amplamente pelas crianças norte-americanas naquela
época. Mas o livro de Wertham conseguiu inflamar ainda mais a sociedade contra os
comics.
As editoras novamente se reuniram. Percebendo que a intensidade dos ataques
acabaria fazendo com que ocorresse uma intervenção do governo nos seus negócios,
criaram a Comics Magazine Association of America (CMAA) com uma nova auto-
regulamentação. Em 1954 a CMAA cria o Comics Code que já entra em vigor no
mesmo ano. O código atendia diretamente as críticas abrangendo questões gerais como
a glamourização do crime e a representação gráfica da morte.
Exigia a descontinuação das palavras “horror” e “terror” no título
das revistas e proibia, entre outras coisas, cenas de depravação,
sadismo ou excessiva horribilidade. Um dos parágrafos abordava
fortemente os principais os principais personagens associados com
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histórias de horror: cenas, ou instrumentos, associados aos mortos
ambulantes, tortura, vampiros ou vampirismo, violadores de
túmulos, canibalismo ou lobisomens estão proibidas. (MELTON,
2003, p. 391)
Na Inglaterra uma lei contra publicações danosas a crianças e jovens foi
aprovada, levando ao desaparecimento dos comics de horror das lojas britânicas. Nos
Estados Unidos, imediatamente se reduziu pela metade a quantidade de títulos em
circulação e nos dois anos seguintes o número de editoras de comic books também caiu
drasticamente. Outros fatores sem relação com o Comics Code contribuíram para esta
situação. Dentre elas, a crescente venda de aparelhos televisores, um artigo cada vez
mais freqüente nos lares americanos. Os quadrinhos de terror só vieram a ser retomados
nos Estados Unidos na metade da década de 1960. Na Inglaterra a lei foi renovada em
1965, fazendo com que quase nada ligado ao horror tenha sido produzido no país nesse
período. Mas o banimento dos quadrinhos de horror nos Estados Unidos permitiu o
florescimento deste produto em outros países, como no Brasil.
5. Horror nos quadrinhos brasileiros
A partir de 1934 as histórias em quadrinhos tornaram-se populares no Brasil através
dos suplementos dominicais dos grandes jornais. Estes apresentavam para o público
infanto-juvenil, tiras importadas dos syndicates norte-americanas traduzidas para o
português.
“Em 1937 o suplemento A Gazeta Infantil do jornal A Gazeta de São Paulo
inaugurava o quadrinho nacional de terror com a publicação de O Garra Cinzenta,
escrita pelo jornalista Francisco Armond e ilustrada por Renato Silva” (GONÇALO,
2008, p. 114). A série introduziu na história em quadrinhos nacional elementos de
mistério, suspense, ficção-científica e horror. As aventuras giravam ao redor de um
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criminoso mascarado com as feições de uma caveira e renderam cem capítulos
ininterruptos até 1939. O Garra Cinzenta também foi publicado no México e na França.
Apesar do pioneirismo “logo se tornaria uma relíquia editorial, infelizmente incapaz de
influenciar outros trabalhos ou emplacar o gênero no mercado nacional” (BRAZ J,
2002, p. 61).
Durante a década de 1940, praticamente nada, nacional ou estrangeiro, ligado ao
quadrinho de horror foi publicado no Brasil. Como aconteceu nos Estados Unidos o
quadrinho de horror só ganharia espaço no formato revista. Somente em 1950 é que a
pequena editora de São Paulo, La Selva (fundada pelo italiano Vito Antonio La Selva)
lança O Terror Negro. Neste mesmo ano a editora Abril lançava outra revista
fundamental na história dos quadrinhos nacionais, O Pato Donald, dando início ao
império das revistas Disney publicadas pela editora.
O primeiro número de O Terror Negro não trazia propriamente histórias de
horror, o “terror negro” do título se referia ao herói norte-americano Black Terror,
criado por Richard Hughes e David Gabrielsen, e assim seguiu por oito números. Como
havia acabado o material do herói para publicação a revista foi suspensa por seis meses
e retornou em setembro de 1951, reaproveitando apenas o seu título. Com uma nova
numeração e totalmente dedicada ao horror, apresentava ao leitor material da editora
norte-americana Beyond. O Terror Negro foi a primeira revista em quadrinhos
brasileira dedicada exclusivamente ao gênero horror. Seu sucesso foi estrondoso,
fazendo com que surgissem inúmeras outras revistas entre 1952 e 1955. A própria La
Selva lançou mais dois títulos de terror, as revistas Sobrenatural e Contos de Terror.
Em 1953, a Edições Júpiter lançou Sepulcro e Horror, ambas de
duração efêmera. Em Janeiro de 1954 a Orbis Publicações mandou
para as bancas Sexta-Feira 13. Em 1955, a Companhia Gráfica Novo
Mundo e Editora apostou em nada menos que quatro publicações de
uma só vez: Gato Preto, Medo, Mundo de Sombras e Noites de
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Terror. Até então as revistas traziam somente histórias americanas.
(GONÇALO, 2008, p. 115)
O Terror Negro teve mais de 220 edições e foi publicada pela La Selva até 1968.
Outras 24 revistas de horror surgem entre 1958 e 1965, e em 1966, o ano da explosão
dos quadrinhos de terror nacionais, são lançados mais treze títulos dedicados ao gênero.
Com a criação do Comics Code e conseqüentemente a extinção das revistas de
horror nos Estados Unidos, o quadrinho brasileiro de terror conseguiu se expandir. Aqui
em nosso país, ao longo da década de 1950, os quadrinhos também foram alvo de pais,
educadores, autoridades políticas e religiosas e imprensa. “Ficaram famosos os artigos
de Carlos Lacerda contra os gibis da La Selva” (GONÇALO, 2008, p. 115). Em alguns
movimentos isolados revistas em quadrinhos foram queimadas publicamente, mas a
campanha contra os quadrinhos não abalou o mercado editorial brasileiro. O leitor já
estava habituado às histórias de horror e os editores não podiam deixar de aproveitar um
filão tão rico do mercado por causa de falta de material. Assim, as principais editoras,
forçadamente, passam a dar oportunidades aos escritores e desenhistas brasileiros e
imigrantes italianos e argentinos que acreditavam no mercado brasileiro.
A editora Outubro (inicialmente batizada como Continental) a partir de 1959
abre espaço para o autor nacional, publicando vários títulos de horror feitos
exclusivamente por artistas brasileiros. Liderada por Miguel Penteado e Jayme Cortez, a
Outubro lançou talentos como Julio Shimamoto, Edmundo Rodrigues e Flavio Colin.
Apesar de realizadas por artistas nacionais, as histórias abordavam quase sempre o
horror ambientado em regiões distantes da Europa, assombradas pelos monstros mais
tradicionais como Drácula, Frankenstein, Múmia entre outros. Penteado e Cortez
assumiram o compromisso de editar apenas quadrinhos brasileiros. Em 1966 a Outubro
passou a se chamar Taika e Penteado fundou a Gráfica Editora Penteado (GEP), que já
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começou com quatro títulos nacionais, A Múmia, Lobisomem, Estórias Negras e
Histórias Diabólicas. A GEP publicou material de diversos novos talentos como Maria
A. Godoy, Luis Meri e os ilustradores argentinos Eugênio Colonnese e Rodolfo Zalla. A
Taika prosseguia com sucesso, “a editora contratou os maiores talentos do terror para
cuidar de sua série de revistas. O carro-chefe da Taika era o gibi Drácula, que trazia
argumentos de Hélio Porto, Helena Fonseca, Gedeone Malagola e Francisco de Assis,
além do traço exuberante de Nico Rosso” (BRAZ J, 2002, p. 62).
Em 1967, surge uma das mais populares personagens de horror brasileiras,
Mirza a mulher vampiro. Criação de Eugênio Colonnese e Luis Meri, publicada pela
editora Jotaesse. Mirza é a primeira vampira regular dos quadrinhos, antecipando em
dois anos o lançamento de Vampirella, a vampira alienígena de biquíni vermelho criada
por James Warren e desenhada por Frank Frazetta (COLONNESE, 2002, p. 47).
Seguindo a mesma linha de Mirza, a revista Naiara a Filha de Drácula, esteve entre os
títulos de maior sucesso da Taika entre 1968 e 1970. A editora Jotaesse logo
acrescentaria à sua linha de revistas de terror novas publicações, O vampiro, Coleção
de Terror e As Melhores Histórias de Fantasmas. Grande parte deste material era
realizado pelo estúdio D-Arte, fundado por Zalla e Colonnese. A dupla de argentinos
acabou mudando os rumos do estúdio em 1969 para se dedicarem à ilustração de livros
didáticos, campo mais seguro para trabalhar frente à ditadura militar que tornava a
censura cada vez mais acirrada (ZALLA, 2002, p. 04).
Ainda em 1967, a editora Fase também passou a investir no horror com a revista
Incrível! Fantástico! Extraordinário!, mesmo título do programa de rádio que narrava
histórias de assombração apresentado pelo Almirante (Henrique Foreis Domingues) na
rádio Tupi entre 1947 e 1958 Dois anos depois a editora Prelúdio estreava O Estranho
Mundo de Zé do Caixão. A revista trazia Zé do Caixão (em colagens fotográficas)
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como o anfitrião, apresentando histórias com argumentos originais de José Mojica
Marins roteirizadas por Rubens Francisco Luchetti. A revista se distinguia da produção
em geral, por levar ao leitor narrativas de terror ambientadas em cenários tipicamente
brasileiros, abordando tanto o cotidiano dos grandes centros urbanos quanto as
superstições do campo. “O público aprovou e a revista chegou a vender 35 mil
exemplares num só mês, mesmo custando o dobro do preço de uma publicação
semelhante” (BRAZ J, 2002, p. 63). Porém, a revista sofreu grande pressão da censura e
teve apenas quatro números. A editora Prelúdio, além dos quadrinhos também publicou
fotonovelas de horror. Zé do Caixão retorna aos quadrinhos em 1970 em Zé do Caixão
no Reino de Terror, que teve apenas duas edições pela editora Dorkas.
Em 1969 a Editora Edcel investiu no horror e se diferenciou trazendo histórias
de horror psicológico, sem necessariamente a inclusão de elementos fantásticos, mas
temperadas com bastante erotismo. Lançou diversos títulos como Terror e Guerra,
Terror Especial, Espião de Vênus e Satã: a Alma Penada. As revistas Playcomic e
Estórias Adultas também apresentavam histórias de terror.
A ganância e voracidade comercial das novas editoras que surgiam levaria a uma
saturação do mercado devido ao número elevado de publicações do gênero em
circulação. Assim, se iniciando a decadência do mercado de quadrinhos de horror que
acrescido da instituição da censura oficial no Brasil em 1970, por meio do Decreto Lei
n° 1077, resultou no rápido desaparecimento de mais de 50 revistas dedicadas ao
gênero. Mesmo com o declínio do horror nos quadrinhos algumas editoras pequenas
persistiram publicando revistas do gênero na primeira metade dos anos 1970.
O Livreiro publicou até 1972 as revistas Terror Ilustrado, Fantastic,
Lendas Sinistras, Superficção e A Mão da Múmia. A Taika
sobreviveria até 1977, quando cancelou seu último título, Terror
Nostalgia. As que mais lançaram terror neste período foram a Royal
e a Gorrion. A primeira publicou O Feiticeiro (1972-1973), Lua
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Cheia (1973), Terror Macabro (1973-1975), Caldeirão da Bruxa
(1974), e Eu Sou o Pavor (1974). A Gorrion se destacou com oito
revistas: Doutor Frankenstein (1974-1975), Sobrenatural (1974),
Terror Alucinante (1974-1975), Terror Macabro (1974), Terror
Satânico (1974-1975), Terror Século XX (1974-1975). A Signo
(Maldição, 1976) e a Noblet (Vampirella, 1977) fizeram tentativas
de um título e não foram muito adiante. (GONÇALO, 2008, p. 118)
Em contrapartida à decadência do quadrinho de horror no Brasil, paralelamente
nos Estados Unidos o gênero estava sendo resgatado e se proliferava. Resultando em
material em abundância para abastecer as grandes editoras brasileiras. Estas, no final da
década de 1970, com o abrandamento da censura e o desaparecimento das pequenas
editoras, começavam a descobrir o lucrativo filão do horror.
A Rio Gráfica Editora (RGE), fundada em 1952 por Roberto Marinho, fez sua
primeira investida no horror publicando fotonovelas em 1970. Somente em 1977 a
editora se dedicou aos quadrinhos de horror, publicando a produção moderna da norte-
americana Eerie’s Greatest Hits na revista Kripta. Esta durou cinco anos e teve
sessenta números, mais edições especiais, almanaques e coletâneas. Com a extinção da
Kripta em 1981, a RGE lançou a revista 3ª Geração que durou apenas seis edições. As
tramas de Kripta eram freqüentemente ligadas ao universo da ficção-científica, com
monstros espaciais e muito erotismo.
Em 1977, também entrou no mercado de horror outras duas grandes editoras, a
carioca Bloch, que publicava a revista semanal de informações Manchete, e a editora
Vecchi. A Bloch havia adquirido da Ebal os direitos de publicação dos quadrinhos da
Marvel. Com o retorno dos comics de horror nos Estados Unidos, a Marvel Comics
além de direcionar seus super-heróis para temas sobrenaturais, lançava uma nova linha
dedicada ao gênero em títulos como Tales of Zombie, Marvel Horror e The Tomb of
Dracula. Assim, a Bloch iniciava uma linha de títulos de horror denominada Capitão
Mistério, colocando em circulação oito revistas ao mesmo tempo: Clássicos de Pavor,
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Histórias Fantásticas, A Múmia Viva, Cine-Mistério, Aventuras Macabras, Sexta-
Feira 13, A Tumba de Drácula e Lobisomem. Logo depois também colocou nas
bancas a revista Motoqueiro Fantasma.
A Vecchi diferentemente das concorrentes Bloch e RGE não se limitou a
publicar material estrangeiro e abriu espaço para os artistas nacionais. Estreou em
janeiro de 1977, As Histórias Sobrenaturais do Dr. Spektro (depois somente
Spektro), criada por Otácilio Barros e Lotário Vecchi, estabelecendo um padrão
editorial exigente como nunca fora visto nas revistas de terror nacionais. “Ao mesmo
tempo, o editor incentivou a renovação e deu liberdade a roteiristas e desenhistas para
que substituíssem monstros clássicos por criaturas do folclore e das lendas brasileiras.
Foi assim até o último número regular, o 26, de fevereiro de 1982” (GONÇALO, 2008,
p.122). Spektro revelou uma nova geração de artistas nacionais como Watson Portela,
Ofeliano de Almeida, Mozart Couto e Julio Emilio Braz dentre outros. Com seu sucesso
de vendas a editora Vecchi coloca no mercado novos títulos de horror: Sobrenatural,
Pesadelo, Histórias do Além, Almanaque de Assombrações e Almanaque de
Terror. Este a última publicação do gênero da editora que desapareceu com o falimento
da Vecchi.
No início de 1979 a editora Abril faz sua primeira incursão no campo dos
quadrinhos de horror, ao iniciar a publicação de Terror de Drácula. A editora Abril
havia adquirido os direitos de publicação da americana Marvel Comics de personagens
que a RGE (detentora atual dos direitos) não se interessava em publicar. Dentre super-
heróis como Capitão América, Thor e Surfista Prateado estava o Conde Drácula, cuja
revista em cores durou onze números pela Abril.
Nesse mesmo ano a editora de quadrinhos do Paraná, Grafipar começou a
publicar quadrinhos de terror de artistas brasileiros.
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Fundada em 1958 como Garantia Cultural, quando só publicava
enciclopédias para venda porta a porta. Somente a partir de 1972,
começou a usar o nome Grafipar. Quatro anos depois, ao lançar
Peteca, em outubro de 1976, iniciou a publicação de revistas eróticas
que a tornaria conhecida em todo o Brasil. (GONÇALO, 2008, p.
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Comandada por Claúdio Seto, que trabalhara na Edrel, a Grafipar reuniu artistas
cariocas, paulistas e pernambucanos que formaram um dos mais importantes pólos de
produção de quadrinhos brasileiros. As narrativas no início seguiam a antiga linha de
horror da Edrel, que explorava o horror psicológico, mas aos poucos, elementos
sobrenaturais foram se tornando cada vez mais constantes, bem como o erotismo. A
primeira revista foi Neuros, seguida de Homo Sapiens e As Fêmeas.
Após dez anos afastados dos quadrinhos de terror, o estúdio D-Arte de Rodolfo
Zalla retornava como editora ao gênero. Zalla recebeu de presente do editor Miguel
Penteado o depósito de fotolitos da GEP que fechava as portas. Com o material da GEP,
mais material antigo da D-Arte e novas histórias que produziu, Zalla, em 1981, colocou
no mercado duas revistas em quadrinhos: Calafrio, de horror, e Johnny Pecos, de
faroeste. Calafrio respondeu às expectativas de vendas enquanto que o western em
quadrinhos teve pouca aceitação. Durou apenas quatro edições, sendo substituído por
um novo título de horror em 1982, a revista Mestres do Terror.
A publicação se diferenciava de Calafrio porque trazia sempre como
tema de capa, um personagem famoso de terror, cujo nome se
destacava como se fosse o título da revista. Por exemplo: em letras
menores aparecia “Mestres do Terror apresenta” e logo abaixo em
evidência, o nome da atração principal. Podiam ser clássicos como
Drácula, Lobisomem e Múmia ou figuras famosas do terror nacional
como Mirza, Zora ou Morto do Pântano. A revista pegou de
imediato no gosto do público, mas nem todos os personagens de
capa agradavam ao público, e faziam as vendas caírem. O editor
decidiu, então, publicar só os campeões de vendas como Drácula,
Mirza e Lobisomem, entre outros. (ZALLA, 2002, p. 08)
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Com o fechamento da editora Vecchi em 1983, e da Grafipar em 1984, a D-Arte foi
praticamente a única editora a publicar quadrinhos de terror na década de 1980. A
editora Press, que absorveu a maior parte dos artistas das extintas editoras, lançou as
revistas Medo, Spektros e Mundo do Terror, esta com a maior duração, onze edições.
Assim, Calafrio e Mestres do Terror, contrariando as tendências do mercado,
seguiram dando espaço aos novos artistas nacionais que surgiam. Enfrentando uma
inflação galopante e a instabilidade econômica do país até o fim da existência da D-Arte
em 1992.
Por mais que percebesse que a maioria dos leitores preferia histórias
mais convencionais, com os monstros clássicos Drácula,
Frankenstein, Lobisomem e Múmia, o editor abriu espaço em várias
edições para publicar tramas mais modernas, que envolviam lendas
do folclore brasileiro e criaturas vindas do espaço. (GONÇALO,
2008, p. 125)
Na década de 1990 a editora Nova Sampa, embora com baixa qualidade gráfica
e editorial, aproveitando material da Edrel e Grafipar, publicou alguns títulos de horror
de pouca duração, Sussurro Sinistro, Mistérios das Trevas, Impacto & Ficção e
Fantasia.
Nos últimos anos a publicação de quadrinhos de horror nacionais tem sido muito
pequena. Reduzida, na maioria das vezes, às iniciativas pessoais de artistas no formato
fanzine. Enquanto não acontece uma renovação no mercado a tendência entre os
editores tem sido dar atenção aos maiores artistas do gênero no Brasil, relançando suas
obras mais importantes. Este resgate dos quadrinhos de terror brasileiros começou com
a editora Martins Fontes no álbum Saga de Terror, com trabalhos de Jayme Cortez,
seguido pela Antologia Brasileira de Terror, da Catânia editora, reunindo material de
Eugênio Colonnese. Também de Colonnese foram lançadas reedições de Drácula pela
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editora Ópera Graphica que inaugurou a coleção Ópera Horror, dedicada a
preservação da memória dos quadrinhos de terror brasileiros.
6. A trajetória de José Mojica Marins e a criação de Zé do Caixão
Depois deste panorama sobre o desenvolvimento das publicações de quadrinhos de
horror no Brasil, uma das influências marcantes na construção de Zé do Caixão, vamos
agora nos deter nesta personagem. As histórias de Zé do Caixão e de seu criador e
intérprete José Mojica Marins se confundem, tornando indissolúvel a observação do
início da carreira de Mojica para uma plena leitura da personagem Zé do Caixão. Para
este breve relato da evolução e desenvolvimento do início da carreira de Mojica como
realizador cinematográfico e da trajetória de Zé do Caixão em diferentes meios de
comunicação, além de entrevistas com Mojica e testemunhas de sua história
(disponíveis nos extras da coleção Zé do Caixão, em DVD) e documentários como O
Universo de Mojica Marins (1977), Fogo-Fátuo (1980), Demônios e Maravilhas
(1976-1987) e O Estranho mundo de José Mojica Marins (2000), utilizaremos a
biografia de Mojica, escrita por André Barcinski e Ivan Finotti. Esta será nossa
referência principal, já que se trata da fonte mais rica sobre a vida e obra de Mojica.
Tanto os avós maternos como os avôs paternos de Mojica emigraram da
Espanha para o Brasil no início do século XX. Desembarcaram em Santos e enfrentaram
grandes dificuldades. A Espanha, diferentemente da Itália, não apoiava a emigração
como solução de problemas internos e assim não proporcionava qualquer ajuda para
unir a colônia. Esta se dedicava a ofícios menos qualificados e em São Paulo se reunia
no Brás. Antonio Marins e Carmen Mojica se casaram em 1933 e três anos depois, às
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quatro da manhã do dia 13 de março de 1936, nasceu José Mojica Marins. Era uma
sexta-feira 13 (DVD – À Meia Noite Levarei Sua Alma, anexo biografia de Mojica).
A partir de 1938, Antonio Marins assumiu a zeladoria do Cine Santo Estevão, na
Vila Anastácio, distrito da Lapa, e levou a família para morar numa casa nos fundos do
cinema. A Vila Anastácio era um bairro proletário, com ruas de terra, cortiços e cercada
por fábricas. Lá viviam emigrantes de diferentes origens, húngaros, lituanos, italianos,
portugueses e espanhóis. O Cine Santo Estevão era uma sala de exibição simples, com
capacidade para cerca de seiscentas pessoas (MARINS et al, 1993, p. 09). Só
aconteciam sessões noturnas, exceto nos fins de semana, pois seu público era formado
basicamente pelos operários moradores do bairro. “Naquela época pré-televisão, o
cinema era um dos grandes pontos de encontro da comunidade” (BARCINSKI;
FINOTTI, 1998, p. 35). O que ocorria no Cine Santo Estevão, pois funcionava também
como espaço para eventos e bailes.
Mojica passou boa parte de sua infância no Cine Santo Estevão, onde assistia a
todo tipo de filme da cabine de projeção ou mesmo junto de sua mãe, pois da cozinha de
sua casa podia-se ver a tela do cinema (DOC - O Universo de José Mojica Marins,
1977).
A cultura cinematográfica de Mojica não é tão limitada quanto se
supõe. Na realidade ele assistiu a milhares de filmes, porém nunca se
preocupou em adquirir conhecimento teórico sobre eles. As imagens
ficaram guardadas em sua cabeça, embora sem nenhum tipo de
organização ou referência. (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 121)
Aos oito anos de idade, Mojica também passou a ler e colecionar revistas em
quadrinhos, que, juntamente com as inúmeras sessões de cinema, viria a influenciar
muito a sua obra. Com dez anos, seus maiores interesses eram assistir filmes, ler
revistas em quadrinhos e brincar de teatro com os amigos (MARINS et al, 1993, p. 09).
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No galinheiro, nos fundos da casa de um vizinho, Mojica e os amigos brincavam de faz-
de-conta, encenando aventuras com fantasias criadas por eles mesmos. “Mojica gostava
de se fantasiar de vampiro com longas unhas e dentes de papelão” (BARCINSKI;
FINOTTI, 1998, p. 44). Aos onze anos, com a máquina fotográfica que ganhara do pai, ele
montou um sistema de projeção rudimentar. Utilizando os negativos em preto e branco das fotos
reveladas colados na boca de uma lanterna para obter a projeção de uma imagem esbranquiçada
numa parede. As imagens tinham uma aparência fantasmagórica e já prenunciavam a direção
que seguiria sua carreira artística. Mojica era fascinado pelo sobrenatural, e várias vezes
observava os pais-de-santo e pombas-gira que rodavam nos terreiros de macumba e candomblé
existentes na Vila Anastácio.
O cineminha de terror com a lanterna evoluiu para uma câmera oito milímetros
que ganhou do pai aos doze anos de idade. Mojica e os amigos passaram quase três anos
usando a câmera diariamente, filmando o bairro e o cotidiano de suas famílias e
vizinhos. Faziam as exibições com um projetor emprestado, num lençol estendido em
um varal (DVD – À Meia Noite Levarei Sua Alma, anexo biografia de Mojica). Através
dessa experiência, Mojica descobriu conceitos elementares de montagem e passou a
criar seqüencias de ação na própria câmera, filmando as cenas em ordem e trocando
sempre o enquadramento, pois não tinha um sistema de edição. Em 1948, ele e seus
amigos realizavam o curta-metragem Reino Sangrento. Rodado em apenas um dia,
numa fábrica de cigarros e com uma história que envolvia sultões e odaliscas na
Amazônia. Carmen, mãe de Mojica, inclusive desmaiou ao ver o filho cair e bater a
cabeça numa cena de ação. Depois de finalizado exibiram o filme em cinemas e clubes
do interior de São Paulo, dublando as falas ao vivo (DVD – À Meia Noite Levarei Sua
Alma, anexo Reino Sangrento).
Em 1952, o grupo de amigos comprou uma câmera de 16 milímetros e passou a
usar o galinheiro em que brincavam como estúdio. A experimentação de Mojica levou a
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novas descobertas: possibilidades de planos com a câmera alta ou baixa; aceleração da
imagem filmando em baixa velocidade; câmera lenta filmando em velocidade rápida; e
a técnica de sobreposição de imagens. Esta técnica podia ser utilizada para conseguir
duas imagens distintas no mesmo fotograma. Tapando metade da lente com uma
cartolina para expor apenas parte do filme, bastava retroceder o filme na câmera, trocar
de lado a cartolina e filmar outra imagem para conseguir o efeito.
No ano seguinte, com 17 anos e trabalhando na fábrica de fósforos Fiat Lux,
uma das indústrias que cercavam o bairro, Mojica e seus amigos criaram uma empresa
funcionando em esquema de cooperativa, a Companhia Cinematográfica Atlas. O
primeiro filme da Atlas, o curta-metragem A Mágica do Mágico, era uma comédia
sobre um mendigo interpretado pelo próprio Mojica, que encontra no lixo um livro que
lhe dá poderes mágicos. O filme foi exibido em igrejas, circos e parques de diversão,
com Mojica e o elenco dublando ao vivo, com microfones, as falas dos personagens.
Muitos dos membros da Atlas também trabalhavam na fábrica de fósforos, o que acabou
chamando a atenção da imprensa. O jornal Última Hora publicou uma matéria sobre o
grupo de operários que faziam cinema num galinheiro. Na entrevista, acreditando que
lhe dariam maior credibilidade se fosse mais velho, Mojica aumentou sua idade.
Essa seria a primeira de uma série de pequenas mentiras que ao
longo dos anos, Mojica iria adicionando à sua biografia. O resultado
foi que, nos anos 60, quando ficou famoso e os jornais começaram a
publicar sua história, ele havia criado um passado totalmente
ficcional, que incluía sete casamentos, 24 filhos e filmes rodados
ainda no início dos anos 40. (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 53-
54)
Quatro meses depois da criação da Atlas, Mojica deixa a fábrica de fósforos para
se dedicar integralmente ao estúdio de cinema e realizar um longa-metragem chamado
Geração Maldita. Ao constatar que seria impossível a execução do projeto apenas com
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o dinheiro obtido pela coleta feita entre os membros da equipe, resolve montar uma
escola de cinema. O dinheiro das mensalidades pagas pelos alunos financiaria seus
projetos e ainda poderia eliminar gastos com elenco utilizando os mesmos alunos como
atores. Um método que se mostrou funcional ao longo da carreira de Mojica. Através de
Francisco Neto, jovem de família rica que se juntara à turma ao ler a matéria publicada
no jornal Última Hora, Mojica conseguiu um enorme galpão vazio na Freguesia do Ó,
zona norte de São Paulo, para utilizar como estúdio. Rebatizou a empresa como
Indústria Cinematográfica Apolo Ltda. e publicou anúncios em jornais divulgando seu
novo curso de atores. Mesmo sem formação alguma como professor de teatro, o método
de aulas de interpretação desenvolvido por Mojica parecia agradar aos operários,
motoristas de ônibus, vigias, manicures e outros populares que passaram a freqüentar
suas aulas e que pagavam mensalidades equivalentes a uma semana de trabalho.
O método de aulas procurava incentivar a improvisação. Mojica espalhou pelo
galpão diversas fotos suas interpretando variadas expressões que deveriam ser imitadas
por seus alunos. Também utilizava um exercício em que o aluno era enviado até a
rodoviária para se fingir de retirante perdido.
Isso era fichinha perto dos chamados “testes de extravasamento”
(um nome equivocado, já que seu objetivo principal era avaliar o
autocontrole e a frieza dos alunos): Mojica pedia a um candidato que
vestisse seu melhor terno; assim que o coitado aparecia, levava um
balde de tinta na cabeça. Se reagisse, estaria reprovado. A prova das
meninas era igualmente esdrúxula: alguns “professores” passavam a
mão nas coxas das donzelas, que deveriam permanecer impassíveis.
(BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 55)
O mesmo princípio de testar o autocontrole das pessoas submetendo-as a
situações extremas seria empregado ao longo de sua carreira em seus cursos de
interpretação. Aqui notamos um traço marcante do autor em sua criação. É exatamente
o mesmo método empregado pela personagem Zé do Caixão, em seus filmes, para
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selecionar a mulher perfeita. Este tipo de teste também se tornou um dos traços mais
característicos da personagem Zé do Caixão quando foi adaptada para a televisão.
Neste período Mojica passa a exigir que os alunos o chamem de “mestre”, e
começa a procurar na colônia espanhola investidores para dar início ao primeiro longa-
metragem da Apolo, Sentença de Deus, um drama sobre uma família rica que perdia
suas posses. Conhece Manoel Augusto Sobrado Pereira, também de origem hispânica
que se torna gerente da Apolo. Augusto amplia a divulgação e organiza o caixa da
empresa, o número de alunos aumenta acirrando a concorrência. A idéia do curso de
interpretação para financiamento de filmes não era exclusividade de Mojica, nem
mesmo o sistema de venda de cotas que ele e Augusto iniciaram entre os alunos para a
produção de Sentença de Deus. A principal concorrente da Apolo era a Hércules,
escola comandada pelo ator Renato Ferreira, que usava o mesmo procedimento para a
obtenção de verbas (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 60).
Em 1955, Antonio Marins (pai de Mojica) assume a zeladoria de um novo
cinema e a família se muda para o bairro da Casa Verde. Com o dinheiro arrecadado
pelo sistema de cotas começaram as filmagens de Sentença de Deus, freqüentemente
interrompidas pela falta de verba. Assim que conseguiam mais dinheiro davam
prosseguimento na produção. Com o crescente aumento do número de alunos a escola
se transferiu para um espaço maior no centro de São Paulo.
Para conseguir mais dinheiro, Mojica organizou um espetáculo de danças
espanholas que resultou num fracasso total. “Num ataque de megalomania, resolveu
alugar um estádio de futebol em Sorocaba com capacidade para 7 mil pessoas e agendou
o espetáculo – batizado de “Um Fim de Semana na Espanha” – para os dias 24 e 25 de
dezembro, em pleno natal” (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 63). Com o prejuízo do
espetáculo musical (na segunda noite teve cerca de trinta pagantes), Mojica e seus
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alunos para reverter o caixa da Apolo começaram a vender ingressos antecipados para o
filme que ainda estava em produção, porém o projeto nunca seria finalizado. No começo
de 1956, uma das atrizes, Conchita Espanhol, morre afogada numa piscina na Vera
Cruz. Logo depois, outra atriz, Nancy Montez, se muda para o Rio de Janeiro. Sem as
atrizes não era possível dar continuidade ao material já filmado. Mojica procura a
escritora Aldenoura de Sá Porto para adaptar o roteiro de Sentença de Deus para um
livro de mesmo nome publicado naquele ano (DVD – Esta Noite Encarnarei no teu
Cadáver, anexo entrevista Aldenoura de Sá Porto). Depois de dois anos de namoro,
Mojica se casa com Rosita Soler, moça de uma família abastada da colônia espanhola,
que fazia parte do elenco de Sentença de Deus.
Depois deste fracasso a Apolo começa uma nova empreitada, um western,
Passos da Vingança, depois rebatizado pela atriz Nilza de Lima, namorada de Augusto
e patrocinadora da maior parte da produção, como A Sina do Aventureiro.
Quando Mojica começa a reunir a equipe técnica se depara com o problema de
ter um roteiro que somente ele entendia, com apenas pequenas instruções para cada
cena. Enquadramentos, diálogos, movimentação de atores, ou estavam na sua cabeça ou
seriam improvisados na hora, como sempre havia feito. Os veteranos do cinema
paulista, Honório Marin (diretor de fotografia) e Corintho Giacheri (assistente de
câmera) reclamaram do roteiro (ou da falta dele). Mojica saiu em busca de um roteirista
e conheceu Luis Sergio Person, que já tinha certa experiência em cinema e estava
despontando uma carreira promissora no meio.
Mojica contou seu problema e Person concordou em ajudá-lo. Este
chamou então seu colaborador Glauco Mirko Laurelli e juntos
escreveram o roteiro de A Sina do Aventureiro, dando forma aos
confusos manuscritos de Mojica. Person só exigiu que seu nome não
aparecesse nos créditos. Disse que estava envolvido em outro projeto
e que não queria irritar seu produtor. Na verdade, achava que o filme
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seria um desastre e temia ver seu nome associado à Sina.
(BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 75)
Honório Marin convenceu Mojica a utilizar uma câmera nova que filmava em
Cinemascope, batizada no Brasil de Gigantela. A novidade resultava em imagens
projetadas maiores que as das câmeras convencionais da época. Assim, A Sina do
Aventureiro foi o primeiro filme nacional filmado em Cinemascope. Rodado em uma
fazenda perto de São José da Boa Vista no Estado de São Paulo, contando com uma
equipe muito pequena, o que obrigava a todos exercerem diversas funções. Mojica,
além de trabalhar em todos os setores da produção, interpretou dois papéis, um coveiro
e um bandoleiro (DVD – À Meia Noite Levarei Sua Alma, anexo entrevista com José
Mojica Marins). O filme estreou no final de 1958 no Cine Tangará em Santo André,
depois foi exibido em algumas cidades do interior paulista até chegar ao Cine Coral no
centro de São Paulo, em agosto de 1959. Com cenas de ação realistas e violentas,
antecipando o estilo que se tornaria a marca dos filmes de Zé do Caixão, A sina do
Aventureiro foi classificado pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas como
proibido para menores de 18 anos. O que atrapalhou a venda de ingressos, mas mesmo
assim teve um relativo sucesso no circuito de salas de exibição suburbanas no começo
de 1960.
O lançamento do western trouxe mais alunos para a escola de atores, e a Apolo
se lançou em um novo empreendimento, uma revista de cinema. Em abril de 1961 saia a
primeira de quatro edições da revista A Voz do Cinema.
Trazendo uma fotonovela com cenas de A Sina do Aventureiro e
diversos artigos sobre a escola. (...) Um deslavado veículo de
autopromoção, onde todos eram tratados como astros. Mojica
assumiu o cargo de editor e passou a escrever todos os artigos da
revista, além de poemas, contos e ensaios, cada um pior que o outro.
(BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 83)
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A Voz do Cinema foi um fracasso de vendas, encalhando a tiragem de dez mil
exemplares que era distribuída nas bancas pelos alunos da escola, e levando ao seu
cancelamento.
O filme seguinte da Apolo foi Meu Destino em Tuas Mãos, um dramalhão com
o cantor mirim Franquito que vinha fazendo sucesso no rádio. Mojica havia pedido
conselhos ao padre Lopes, fundador de uma das primeiras escolas de cinema do Brasil,
a Escola Superior de Cinema São Luiz. Lopes lhe recomendou que produzisse um filme
familiar com crianças no elenco. Mojica seguiu o conselho e para conseguir o restante
da verba, já que Augusto Pereira e Nilza de Lima estavam financiando metade do
projeto, gravou um LP com as músicas do filme cantadas por Franquito. As vendas do
LP, prensado pela gravadora Copacabana em 1962, eram revertidas para a verba de
produção, fazendo com que a trilha sonora fosse lançada antes do filme. (DVD – À
Meia Noite Levarei Sua Alma, anexo entrevista com José Mojica Marins). Ruy Santos
fotografou o filme, o roteiro como acontecera antes necessitava de um tratamento
profissional para que fosse entendido pela equipe técnica. Desta vez quem reescreveu o
roteiro de Mojica foi Ozualdo Candeias. Finalizado em 1963, Meu Destino em tuas
Mãos desagradou os exibidores que achavam o filme muito fraco e se recusavam a
lançar-lo. A censura proibiu o filme para menores de 14 anos, dificultando ainda mais as
chances de obter algum sucesso. Mojica alugou por duas semanas o Cine Europa, na
Praça da República, para chamar a atenção do público. “Não deu certo: as crianças
estavam proibidas de entrar e os adultos não se empolgaram com a história piegas e a
voz chorosa de Franquito” (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 88).
Para recuperar o dinheiro perdido no musical, Mojica conseguiu colocar uma
versão erótica de A Sina do Aventureiro em três salas de exibição especializadas em
filmes eróticos do centro de São Paulo. Era o mesmo western acrescido de cenas
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adicionais de mulheres nuas. Estas cenas foram fotografadas pelo veterano da Vera
Cruz, o italiano Giorgio Attili, que seria o fotógrafo dos filmes de Zé do Caixão.
Durante a pré-produção do novo projeto da Apolo, o filme policial Geração
Maldita, surge a personagem Zé do Caixão. Mojica tem um pesadelo em que vê a si
mesmo, vestido de negro, levando-o para sua própria sepultura.
O sonho foi como uma fagulha que incendiou sua imaginação:
começou a lembrar dos filmes de Boris Karloff e Bela Lugosi que
assistira no Santo Estevão. Como gostava de Drácula! E
Frankenstein! Ninguém conseguia tirar os olhos da tela! Lembrou-se
de Torre de Londres, com Karloff, e do Drácula de Lugosi... É isso!
Um filme de terror! (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 99)
Na mesma noite, Mojica ditou o roteiro de À Meia Noite Levarei Sua Alma para a
secretária da Apolo que datilografou em uma máquina de escrever. Ele cancelou a
produção de Geração Maldita alegando que era um projeto muito caro e que seriam os
primeiros a fazer um filme de horror no Brasil. A trama era sobre um coveiro, Zé do
Caixão, que aterroriza uma pequena cidade e no fim é morto pelos espíritos de suas
vítimas. Começaram a vender cotas do filme entre os alunos, parentes e amigos e
arrecadaram cerca de oito mil dólares, o equivalente na época a oito milhões de
cruzeiros. Para completar a verba, Mojica pediu dinheiro emprestado, seus pais
venderam o carro e ele acabou por vender toda a mobília de seu apartamento, incluindo
suas roupas (DVD – À Meia Noite Levarei Sua Alma, anexo entrevista com José
Mojica Marins).
O casamento com Rosita não ia bem, a esperada gravidez não chegava nunca,
ocasionando brigas entre o casal. Rosita foi para a casa dos pais e Mojica foi morar com
a amante Maria José do Prado, com quem já tinha um filho, Crounel. Era uma separação
provisória até terminar o filme, mas Mojica e Rosita nunca mais viveram juntos. Na
trama de À Meia Noite Levarei Sua Alma, Zé do Caixão procura a mulher perfeita
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para lhe dar um filho e assim decide matar Lenita, sua esposa, já que ela não consegue
engravidar. “A mulher que não consegue ter filhos não precisa de cuidados” diz Zé do
Caixão no filme, refletindo a postura de Mojica em relação à esposa que durante anos
não conseguira engravidar no casamento. Aqui notamos mais um traço da vida pessoal
do autor numa das características marcantes da personagem Zé do Caixão, a busca por
um filho para dar continuidade à sua linhagem.
À Meia Noite Levarei Sua Alma se passa numa pequena cidade do interior não
identificada. Josefel Zanatas, apelidado de Zé do Caixão, é o coveiro e agente funerário
da cidade. Zomba das superstições, blasfema e desafia a religião católica
principalmente. Come carne de carneiro em plena sexta-feira santa na frente da
procissão religiosa que passa. Depois de matar sua esposa Lenita com uma aranha
caranguejeira, Zé do Caixão passa a cobiçar Terezinha, noiva de seu melhor amigo
Antônio. O coveiro mata Antônio afogado na banheira e estupra Terezinha. Esta,
humilhada, joga uma praga em Zé do Caixão e se suicida se enforcando. Quando Dr.
Rodolfo começa a suspeitar que o coveiro seja o autor das mortes, Zé do Caixão fura
seus olhos e o queima vivo. Zé do Caixão ignora as previsões trágicas que uma bruxa
cigana faz para ele, e no dia dos mortos ao atravessar o cemitério se depara com
espíritos do além que o perseguem até aparentemente morrer na câmera mortuária onde
estão os corpos de Antônio e Terezinha.
Para as filmagens Mojica alugou um estúdio vazio, onde funcionara a Rádio
Nacional, e decidiu, para economizar com o transporte nas cenas externas, construir
todos os cenários no local. “O cenógrafo José Vedovato fez verdadeiros milagres com o
pouco dinheiro de que dispunha para a cenografia: construiu túmulos de papelão e
cartolina, usou serragem para fazer a terra do cemitério e pintou paredes de madeira
para que parecessem de pedra” (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 104). Os alunos de
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Mojica cortaram as árvores e arbustos do Largo do Arouche para construir uma floresta
no estúdio. No elenco principal estaria o ator Drausio de Oliveira como Zé do Caixão; a
secretária da Apolo, Magda Mei como Terezinha e Nivaldo Lima e Valéria Vasques
fariam Antônio e Lenita respectivamente. Dr. Rodolfo seria interpretado por Ilídio
Simões Martins, corretor de imóveis que comprara dez cotas do filme. O restante do
elenco era composto por alunos da Apolo, até os pais de Mojica atuaram no filme,
Antonio Marins faz o dono do bar e Carmen a mãe de uma das vítimas do Zé.
A equipe técnica do filme tinha Giorgio Attili como fotográfo e Oswaldo de
Oliveira como seu assistente, Mojica como diretor e Luis Elias faria a montagem. A
maquiagem seria feita pelo argentino Gilberto Marques. A verba para a compra de
negativos era muito reduzida, suficiente apenas para quinze latas, equivalente a 150
minutos. Para um filme de 80 minutos de duração era muito pouco, não poderiam errar
durante as filmagens (DVD – À Meia Noite Levarei Sua Alma, anexo entrevista com
José Mojica Marins).
Dois dias antes de iniciar as filmagens o ator Drausio de Oliveira, ao saber que
teria que lidar com uma aranha caranguejeira desistiu do papel de Zé do Caixão. Depois
de testar vários candidatos, Mojica decide ele mesmo interpretar o personagem.
Mojica decidiu também incrementar o visual de Zé do Caixão: achou
que o personagem ficaria bem usando uma capa preta, como
Drácula. (...) Depois, inspirado pelo logotipo do cigarro que fumava,
o Clássico, que tinha duas bengalas cruzadas sobre uma cartola,
mandou comprar uma cartola preta. Para finalizar, pediu ao
maquiador Gilberto Marques que conseguisse longas unhas postiças
para suas mãos. (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 107)
A primeira aparição pública da personagem Zé do Caixão não foi no cinema,
mas sim na televisão. Já demonstrando o caráter multimídia da personagem. O trabalho
com as unhas postiças ficara tão bom que Mojica foi exibi-las no programa Clube do
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Lar, apresentado por Walter Foster no canal 5 de São Paulo. O programa era
patrocinado pelo salão de beleza onde foram feitas as unhas postiças do Zé do Caixão.
Mojica aproveitou para fazer publicidade do filme e no encerramento do programa Zé
do Caixão, a pedidos do apresentador rogou sua primeira praga. As pragas rogadas por
Zé do Caixão tornaram-se uma marca da versão televisiva da personagem.
Como não usavam som direto nas filmagens todos os atores seriam dublados por
dubladores contratados da Odil Fono Brasil, inclusive Mojica que tinha dificuldades na
pronúncia do português. “Mojica travava duras batalhas com o plural e desde pequeno
sofria para pronunciar o “L”. “Problema” virava “pobrema”; “alvará” era “arvarau”
(BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 107). Laercio Laurelli, diretor de dublagem da Odil
Fono Brasil, acabou se tornando a voz de Zé do Caixão no cinema.
As filmagens de À Meia Noite Levarei Sua Alma se iniciaram em 17 de
outubro de 1963 e duraram até seis de novembro do mesmo ano. Mojica e a equipe
trabalhavam em ritmo acelerado. Muitos dormiam ali mesmo no estúdio. Giorgio Attili
experimentava possibilidades que não eram possíveis nos filmes de estilo conservador
que fazia na Vera Cruz. O estilo de produzir de Mojica também era bem diferente do
que os técnicos estavam acostumados na Vera Cruz, com regras de trabalho em cenários
bem iluminados e sets de filmagem limpos. “Mojica fazia coisas que, naquela época
eram consideradas heresias: atuava olhando para a câmera, rodava cenas
propositalmente escuras e filmava com a câmera na mão, em contraposição à imagem
estática das produções nacionais” (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 109).
Depois de montado por Luis Elias, Mojica enfrentava dificuldades para distribuir
o filme. Seu filho com Rosita havia nascido e as dívidas aumentavam. Milton Silva,
proprietário de uma distribuidora que controlava parte das salas de cinema no Nordeste,
assistiu ao filme e ficou impressionado. Ao saber do ocorrido, Ilídio Martins, que
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interpretou o Dr. Rodolfo no filme e possuidor de dez cotas, percebeu o potencial da
produção e comprou as cotas de Mojica e de outros alunos. Passou a ter mais de 70% do
filme e logo revendeu, pelo triplo do preço que havia pago, para Nelson Teixeira
Mendes, produtor de O Cabeleira. Mendes apostou e decidiu obter os direitos de
exibição de À Meia Noite Levarei Sua Alma.
Só havia um problema: o sistema de cotas inventado por Mojica era
uma bagunça tão grande que ninguém sabia quem era dono do que.
Mendes fez os cálculos e concluiu que Mojica havia vendido 300%
do filme. Ele pagou todos os cotistas e ficou sendo o único dono da
fita. (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 115)
À Meia Noite Levarei Sua Alma estreou em São Paulo em novembro de 1964 e
no Rio de Janeiro em junho de 1966. Ao ver as filas enormes dando a volta no
quarteirão do cine Art-Palácio Mojica percebeu seu erro ao vender sua parte. O filme foi
amplamente discutido pela crítica que se dividiu ao meio. Mojica era odiado pela
maioria dos críticos que viram apenas um filme primário sem notar o estilo próprio do
diretor, entretanto o público se divertia com o horror rústico, fazendo do filme um
sucesso (DVD – A Encarnação do Demônio – anexo entrevista com José Mojica
Marins).
O êxito de À Meia Noite Levarei Sua Alma, atrai mais alunos para escola. Em
1965, Mojica aluga uma sinagoga abandonada no bairro do Brás. Com mais espaço, lá
passa a funcionar a escola e o estúdio para o novo projeto, a continuação da saga de Zé
do Caixão, Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver. Neste filme Mojica inclui uma
câmara de torturas, muitas aranhas e cobras, uma seqüência de ação num pântano e a
visita de Zé do Caixão ao inferno.
Augusto Pereira, arrependido de não ter produzido o sucesso À Meia Noite
Levarei Sua Alma, financia o novo projeto. Oferecendo os negativos necessários para
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filmar sem preocupação e um orçamento três vezes maior que o filme anterior. Augusto,
percebendo o potencial da personagem Zé do Caixão, assina com Mojica um contrato
para a produção de cinco filmes protagonizados por Zé do Caixão em cinco anos, a
começar por Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver.
O filme começa exatamente onde parou À Meia Noite Levarei Sua Alma. Um
texto em legendas informa o espectador deste fato e afirma que os encontros
sobrenaturais de Zé do Caixão com os espíritos de suas vítimas não passavam de
alucinações sofridas pelo coveiro. Ele é encontrado pelos moradores e se recupera num
hospital, dos tormentos que sofreu. Logo se junta a Bruno (um ajudante corcunda) e
seqüestra várias moças da cidade a fim de continuar sua busca pela mulher perfeita. Zé
do Caixão submete as moças a um teste de coragem onde aranhas caranguejeiras
passeiam pelo corpo delas. Somente Márcia é aprovada neste teste, mas falha na prova
seguinte, namorar na cama com Zé do Caixão enquanto assistem as moças, que
falharam no teste das aranhas, serem mortas por cobras num poço. Jandira, uma das
moças, roga uma praga em Zé do Caixão antes de morrer. Márcia pede clemência pelas
moças, decepcionando o coveiro, que mesmo assim acaba libertando-a. Zé do Caixão
conhece Laura, filha do coronel Almendes. Ele seduz a moça e a engravida. O irmão
dela, Cláudio, enfrenta o coveiro e acaba morto na câmara de torturas. Laura passa mal
e morre com o filho no ventre, terminando o sonho de Zé do Caixão de ter um filho para
dar continuidade à sua linhagem. O coronel Almendes, para se vingar das mortes de
Laura e Cláudio, envia um grupo de capangas para matar Zé do Caixão, mas são
derrotados pelo coveiro. Márcia denuncia à polícia Zé do Caixão pelo seqüestro e
assassinato das moças, fazendo com que os moradores saiam em perseguição ao
criminoso. Zé do Caixão é baleado e encurralado no lago onde Bruno dispensara os
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cadáveres das moças. Ele desafia a população e a existência de deus, nesse momento os
esqueletos das moças bóiam no lago e Zé do Caixão afunda no lago.
A equipe técnica é praticamente a mesma do último filme, Oswaldo de Oliveira
(assistente de câmera) é substituído pelo lituano Eugênio Franchencko. Antonio Fracari,
conhecido playboy de São Paulo na época, financia metade do orçamento e torna-se
produtor e ator, interpretando Cláudio, o irmão de Laura que tem a cabeça esmagada na
câmara de torturas do Zé do Caixão.
Mojica se sentia mais a vontade e seguro trabalhando no interior do estúdio.
Assim com havia sido em À Meia Noite Levarei Sua Alma, José Vedovato, agora
auxiliado por Fernando Rosa, construiu praticamente todos os cenários do filme no
estúdio. Inclusive produziu no quintal um buraco de cerca de três metros de diâmetro e
dois de profundidade que cheio de água tornou-se o pântano. De um total de 107
minutos de duração, pouco menos de cinco minutos foram filmados fora da sinagoga.
Augusto Pereira e Fracari trouxeram de Cosmópolis sessenta aranhas
caranguejeiras. A cena com as aranhas andando sobre as moças seqüestradas teve
diversos contratempos. Ou eram as atrizes que tentavam fugir do set, enojadas com as
caranguejeiras, ou eram as próprias aranhas que não se moviam. Para fazer as aranhas se
movimentarem era preciso vento, porém ao tentar usar ventiladores as aranhas se
espalharam em disparada pela sinagoga, causando grande confusão entre a equipe.
Levou quatro dias para filmar todas as seqüências com os animais. Em vez dos
ventiladores, os técnicos usaram longos tubos de papelão que sopravam para controlar o
movimento das caranguejeiras, além de fios de náilon amarrados nas patas delas (DVD
– A Encarnação do Demônio – anexo making of).
Como na cena com as caranguejeiras, na seqüência das cobras as atrizes também
não precisaram fingir pânico, já que estavam realmente apavoradas. As cobras foram
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emprestadas pelo Instituto Butantan, que dois anos antes emprestara a aranha
caranguejeira utilizada na morte de Lenita em À Meia Noite Levarei Sua Alma.
No terceiro mês de filmagem, iniciaram-se as seqüências onde Zé do Caixão
vaga pelo inferno, construído ali mesmo na sinagoga. Nesta cena o filme em preto e
branco se tornava à cores. O inferno, neste caso gelado, foi feito com madeira e gesso,
lembrando o interior de uma caverna. O gelo no chão era feito de pipocas e o sangue
que escorre pelas paredes com uma mistura de sal de fruta e tinta vermelha. Uma
seqüência de alucinação surreal com cabeças, braços e pernas saindo das paredes,
diabos de tridente, mulheres crucificadas e um encontro de Zé do Caixão com o
imperador romano Nero, interpretado pelo próprio Mojica. Um efeito especial
surpreendentemente simples, descoberto por Mojica na infância, permitiu que as duas
personagens aparecessem na tela ao mesmo tempo. Colando um pedaço de cartolina
preta para tapar metade da lente na câmera rodaram a cana com Nero cercado de
escravos, retrocederam o filme na câmera, taparam a outra metade da lente e filmaram
Zé do Caixão ao seu lado. Em perfeita sincronia sem nenhum sinal de que as duas
imagens fossem gravadas separadamente.
Diferentemente do filme anterior, se bebia muito durante as gravações. “A turma
chegava ao requinte de deixar uma garrafa de Cinzano pendurada no tripé da câmera,
para quem quisesse molhar o bico durante as filmagens. Mojica só trabalhava com um
copo de vinho na mão” (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 145).
Logo depois gravaram as cenas da perseguição na floresta, que graças ao talento
de Mojica, Attili e do montador Luis Elias pareciam ter sido filmadas numa floresta
verdadeira. Attili iluminou o cenário destacando o primeiro plano e escurecendo o
fundo, e filmou trocando sempre o ângulo de visão, dando a impressão de que se tratava
de uma floresta bem maior do que era na verdade.
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A criatividade e as invenções de Mojica e sua equipe se espalharam entre os
estudantes e realizadores de cinema de São Paulo que iam para a sinagoga para aprender
como aproveitar ao máximo os recursos disponíveis e superar a pobreza técnica com
soluções criativas.
Cineastas como Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, Andrea
Tonacci e Jairo Ferreira começaram a freqüentar o estúdio do Brás, e
ficavam embasbacados com a criatividade de Mojica. Ninguém
acreditou quando viram um de seus assistentes em cima do telhado
da sinagoga, usando luvas de borracha e encostando dois cabos de
alta tensão para criar relâmpagos. (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p.
150)
Para economizar, Mojica reaproveitou algumas cenas de À Meia Noite Levarei
Sua Alma, como os planos dos olhos de Zé do Caixão injetados de sangue. Também
lançou mão de um recurso efetivo para evitar o custo da saída da equipe para filmar uma
externa de uma mansão. Enviou Ozualdo Candeias para tirar uma foto da casa e depois
filmou no estúdio a própria fotografia.
Mantendo as qualidades que tornaram o primeiro filme de Zé do Caixão
especial, como a fotografia expressionista recortada em fundos escuros, as cenas
extremas e chocantes, e temas que tocavam a religiosidade do povo brasileiro, agora
somadas com melhores condições de produção e uma complexidade técnica maior,
fizeram de Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver, o filme mais popular de Mojica.
Ao mesmo tempo em que finalizava a produção no Brás, À Meia Noite Levarei
Sua Alma estreava no Rio de Janeiro, na época o principal centro da imprensa
brasileira. No Rio de Janeiro Mojica viria a ser conhecido pelos cineastas do Cinema
Novo. Glauber Rocha se tornou um de seus maiores admiradores e defensores no Rio,
organizando sessões especiais de exibição de À Meia Noite Levarei Sua Alma para os
cineastas e atores do Cinema Novo. Em São Paulo, Luis Sérgio Person era o maior
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incentivador do trabalho de Mojica. Mas a grande maioria da classe intelectual
desprezou o filme. Contraditoriamente esta elite intelectual defendia um cinema
relacionado a temas populares, mas ao mesmo tempo rejeitava qualquer não intelectual
que viesse a fazer um cinema verdadeiramente popular. “Os únicos cineastas famosos
que vieram a público elogiar Mojica foram Glauber Rocha, Person e Roberto Santos
(diretor de A Hora e a Vez de Augusto Matraga) (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p.
157). Em São Paulo, na Escola de Cinema do São Luiz, Carlos Reichenbach, João
Callegaro e Carlos Alberto Ebert, juntamente com Jairo Ferreira e Rogério Sganzerla,
todos leitores da revista francesa Cahiers Du Cinema e que cultuavam a Nouvelle
Vague, também apreciavam e aprendiam com o cinema de Mojica (ABREU, 2006, p.
37).
Durante a produção de Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver, Mojica
conheceu o escritor Rubens Francisco Luchetti, iniciando uma grande parceria entre os
dois. Luchetti já era um escritor conhecido entre os fãs de horror e policial. Quando
assistiu À Meia Noite Levarei Sua Alma, se impressionou com o estilo único do filme
e do singular personagem Zé do Caixão, tão brasileiro (MARINS, 1993, p. 09). Mojica
logo encomendou um roteiro para Luchetti, um filme com três episódios de terror
chamado O Estranho Mundo de Zé do Caixão.
O segundo filme de Zé do Caixão terminou de ser montado em setembro de
1966 e foi interditado pela censura. Iniciou-se um longo processo de negociação entre o
produtor Augusto Pereira e o órgão responsável pela censura. Foram exigidos cortes nas
cenas com as cobras e aranhas, toda uma seqüência em que Zé do Caixão queima uma
mulher viva foi excluída. Porém o filme só seria liberado se fosse alterada a cena final
em que Zé do Caixão afunda no lago gritando sua descrença em deus (DVD – A
Encarnação do Demônio – anexo entrevista com José Mojica Marins). Augusto Pereira
143
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foi notificado de que a cena tinha que ser alterada, procurou um dos chefes da secretaria
de censura, Augusto Costa que exigiu uma redublagem da cena onde Zé do Caixão faria
uma declaração de arrependimento e de fé em deus. Augusto concordou para finalmente
obter a liberação do filme.
Além de exigir a redublagem da cena, o censor vascaíno, teve o
descaramento de escrever o texto que deveria ser dito por Zé do
Caixão. Ele chamou outro censor, Coriolano de Loyola Fagundes
(que anos depois se tornaria chefe da censura) e juntos bolaram a
seguinte pérola: deus, deus... Sim, deus é a verdade! Eu creio em tua
força! Salvai-me! A cruz, padre! A cruz, o símbolo do filho...
(BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 166)
Laercio Laurelli (a voz de Zé do Caixão) regravou a fala que foi inserida na
versão final do filme. Transformando Zé do Caixão numa personagem arrependida e
crédula, justamente o oposto de seu caráter. Também dando ao filme um final “feliz”,
onde a ordem é plenamente restabelecida, denotando um caráter conservador à obra de
Mojica.
Em 13 de março de 1967, Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver estreou em
quatorze cinemas de São Paulo. Atraindo grande atenção da imprensa e do público.
Mojica passou a usar a imprensa para obter publicidade gratuitamente, visitava as
redações e enviava notas informando o sucesso de bilheteria de seus filmes. Marcou
uma sessão de pré-estréia de Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver numa sexta-feira
à meia-noite e enviou convites em forma de caixão para os jornalistas. Entretanto como
acontecera antes a crítica se dividiu. Mojica foi muito atacado, até mesmo a busca pelo
filho perfeito de Zé do Caixão foi associada ao nazismo (DVD – À Meia Noite Levarei
Sua Alma, anexo entrevista com José Mojica Marins). Em resposta, Sganzerla,
Salvyano Cavalcanti de Paiva e Paulo Ramos publicaram artigos defendendo Mojica.
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Augusto Pereira aproveitou o sucesso do filme, fez vinte e cinco cópias e iniciou
a distribuição na grande São Paulo, lotando cinemas tanto no subúrbio como no centro.
No dia 24 de abril foi lançado em doze salas de cinema do Rio de Janeiro. “Pode-se
calcular – de forma aproximada, claro – que Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver
foi assistido por um público de cinco a seis milhões de brasileiros” (BARCINSKI;
FINOTTI, 1998, p. 177). Colocando-o entre os cinco primeiros do ranking de público
de filmes brasileiros divulgado pela Embrafilme em 1984, que leva em conta os filmes
lançados desde 1970. Na lista aparecem Dona Flor e seus Dois Maridos (10,7
milhões), A dama da Lotação (6,5 milhões) e Os Trapalhões nas Minas do Rei
Salomão (5,7 milhões) nos três primeiros lugares. Augusto Pereira comprou a parte de
Fracari no filme, bem como a de Mojica, que novamente estava com dívidas. Mojica
não ganhou nada pela bilheteria do filme, continuava pobre mesmo depois de dirigir
dois filmes de sucesso, e Augusto Pereira, único dono da produção, fez fortuna.
No início de abril de 1967, Mojica passou a fazer aparições públicas vestido
como Zé do Caixão, sempre com ampla cobertura da imprensa. Convidou jornalistas à
sinagoga e realizou uma série de testes de coragem e autocontrole com candidatos a
atores. Houve tapas na cara, strip-teases, jibóias, baratas foram comidas, até mesmo
Mojica recebeu chicotadas na face. A imprensa deu grande destaque para o espetáculo
de horror. Os testes de coragem (humilhação?) e autocontrole (constrangimento?)
seriam freqüentes nas performances de Mojica como Zé do Caixão, que passou a se
aproveitar de qualquer possibilidade para chamar a atenção da imprensa e obter
publicidade para seus projetos. Ao longo de sua carreira se valeu de recursos de
divulgação semelhantes aos utilizados pelo cinema exploitation norte-americano. “A
imagem pública de Mojica era a de um louco varrido, mas por trás de toda sua
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esquisitice havia o tino publicitário de um grande showman” (BARCINSKI; FINOTTI,
1998, p. 183).
As apresentações na sinagoga se tornaram cada vez mais grotescas, com artistas
de circo, faquires e aberrações, um autêntico freak-show brasileiro. A sinagoga acabou
sendo interditada pela Divisão de Diversões Públicas (DDP) de São Paulo, o que trouxe
mais reportagens em jornais e revistas que forneceram grande publicidade gratuita para
o programa de televisão que estrearia na TV Bandeirantes. Além, Muito Além do
Além, foi ao ar às onze horas da noite de 15 de setembro de 1967, e trazia histórias de
horror encenadas por alunos de Mojica e escritas por Luchetti. As histórias de uma hora
de duração eram apresentadas por Zé do Caixão que no primeiro programa realizou seus
testes. Colocou moças num viveiro de jibóias e enterrou vivo um de seus alunos. No
final, Zé do Caixão rogava uma praga para o telespectador. A novata Bandeirantes logo
passou a líder de audiência nas noites de sexta-feira em São Paulo. O programa era
barato e popular atraindo o interesse de jovens e crianças, os roteiros de Luchetti
traziam elementos e personagens facilmente reconhecíveis pela população.
No final de 1967, Zé do Caixão passou a ser incorporado ao vocabulário
nacional como sinônimo de algo bizarro ou macabro, e Mojica era um dos artistas mais
populares do Brasil. Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver continuava enchendo as
salas de cinema, o programa de televisão quebrava recordes de audiência e os jornais
não paravam de explorar os testes macabros. Mojica se tornou muito famoso, atraindo
multidões nas ruas. O público, contrariando a essência do personagem, passava a
atribuir uma aura mística à Zé do Caixão. Muitos doentes procuravam Mojica para
serem “benzidos” pelas unhas do Zé do Caixão. Porém, Mojica continuava com uma
situação financeira precária. A TV Bandeirantes não lhe pagava um salário proporcional
aos números de audiência que atingia. Mojica também sustentava vários de seus
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colaboradores que comiam e bebiam em restaurantes do Brás, pendurando a conta em
seu nome.
A fama atraiu uma série de empreendimentos utilizando o nome e a personagem
Zé do Caixão, dentre estes, as velas para macumba Zé do Caixão, pinga Zé do Caixão e
uma linha de produtos de beleza chamada Mistério, contando com vitalizante de unhas
(feito com lama radioativa de Serra Negra?!?), sabonete, xampu, desodorante, creme
para a pele e tônico capilar. O amadorismo em administrar sua carreira profissional fez
com que Mojica, na maioria das vezes, se envolvesse com pessoas não confiáveis, que,
ou não cumpriam os acordos ou fabricavam produtos de péssima qualidade.
Inspirado pelos contos de horror de Luchetti para o programa na TV
Bandeirantes, Mojica se associou ao produtor Antonio Polo Galante para realizar um
filme com histórias curtas de horror, Trilogia de Terror. O produtor Renato Grecchi
conseguiu o co-financiamento do Instituto Nacional de Cinema (INC) para o projeto,
dividindo os episódios entre três diretores: Mojica, Ozualdo Candeias e Luis Sergio
Person.
Candeias e Person eram nomes bem cotados pela intelligentsia
brasileira da época e haviam recebido prêmios do INC para A
Margem e O Caso dos irmãos Naves. A presença dos dois
certamente garantiria a benção do INC. Já Mojica asseguraria o
sucesso de público, uma vez que nem Person e muito menos
Candeias eram grandes atrações de bilheteria. (BARCINSKI;
FINOTTI, 1998, p. 205)
Candeias realizou O Acordo, Person, Procissão dos Mortos e Mojica adaptou o
primeiro episódio de Além, Muito Além do Além, Pesadelo Macabro, sobre um
homem que sofre de catalepsia e é enterrado vivo. Assim que terminou seu episódio,
Mojica começou as filmagens de O Estranho Mundo de Zé do Caixão, também com
três histórias roteirizadas por Luchetti.
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Financiado pelo egípcio George Michel Serkeis, dono de uma confecção no
Brás, O Estranho Mundo de Zé do Caixão foi rodado em 17 dias com elencos e
cenários diferentes construídos na sinagoga. No último episódio, Ideologia, Mojica
superou a violência de seus filmes anteriores e apresentou um espetáculo gore. Por
motivos contratuais não podia usar a personagem Zé do Caixão em uma produção que
não fosse de Augusto Pereira, portanto teve que criar uma nova personagem. O
professor Oaxiac Odez (Zé do Caixão ao contrário) interpretado por Mojica usando
peruca e brincos na orelha. Oaxiac Odez para provar sua teoria de que o instinto é mais
forte que a razão, submete um casal a toda sorte de torturas e privações. Culminando
num banquete antropofágico ao som de Aleluia de Handel. Ideologia não tem
comparação, em termos de sadismo e crueldade com nada que se fazia no cinema em
1967, mesmo os filmes de Herschell Gordon Lewis do mesmo período não chegam
perto da violência gráfica apresentada no episódio. Já as outras duas histórias,
Fabricante de Bonecas e Tara traziam um horror menos explícito.
Trilogia de Terror teve cortes exigidos pela censura nos três episódios, foi
lançado no Rio de Janeiro em 22 de abril de 1968 e em São Paulo no dia 10 de junho. Já
O Estranho Mundo de Zé do Caixão, como acontecera antes, precisava de um final
diferente. A censura exigia uma punição para o personagem Oxiac Odez. George
Michel, o egípcio que financiava o filme, havia trabalhado como figurante no filme Um
Homem Em Nossa Casa (1961) com Omar Sharif, e adquirira uma cópia do filme na
cinemateca do Cairo. Mojica cortou a cena final do filme egípcio, uma explosão num
depósito de armas, e montou no final de O Estranho Mundo de Zé do Caixão,
intencionando dar o sentido de que Oxiac Odez explodiu por justiça divina.
O resultado não foi muito convincente. Como a palavra “fim” já
aparecia sobreposta à imagem de Odez e seus asseclas se esbaldando
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no banquete canibal, outro “fim” foi colocado após as explosões
(deve ser o único filme do mundo que termina duas vezes). E Omar
Sharif, sem saber, tornou-se estrela do Zé do Caixão. (BARCINSKI;
FINOTTI, 1998, p. 221)
Por fim, O Estranho Mundo de Zé do Caixão estreou em nove de setembro de
1968, com 17 minutos de filme censurados. Novamente a censura mudava o sentido de
um filme de Mojica e alterava mais uma vez a trajetória da personagem Zé do Caixão,
desta vez causando a destruição até de um reflexo seu, a personagem Oxiac Odez.
Com exceção de A Encarnação do Demônio em 2008, a personagem Zé do
Caixão só apareceria no cinema como fruto de alucinações ou pesadelos de outros
personagens: Ritual dos Sádicos (1970), Exorcismo Negro (1974) e Delírios de um
Anormal (1978). Confundindo ainda mais criador e criação, já que quase sempre José
Mojica Marins aparece como personagem e antagonista de Zé do Caixão. Nestas
aparições cinematográficas, Zé do Caixão ganha um caráter não-natural contrariando
totalmente a essência da personagem nos seus dois primeiros filmes, que desafia a
existência de qualquer força não-natural. Fora do cinema as aparições de Zé do Caixão
(ou José Mojica Marins vestido como Zé do Caixão), em programas de televisão e
rádio, dando entrevistas ou mesmo cantando marchinhas de carnaval, também se
distanciam da personagem cinematográfica original. A busca pela mulher e filho
perfeitos foi substituída pelo sadismo dos testes sensacionalistas e o mau agouro das
pragas rogadas (um paradoxo já que Zé do Caixão não crê em maldições ou outras
superstições). Entretanto a personagem Zé do Caixão, fora do cinema, ainda reproduz
elementos deste modelo original, sua aparência continua a mesmo, bem como a
predisposição para testes sádicos. As pragas também são elementos marcantes nos dois
primeiros filmes, apesar de não serem rogadas por Zé do Caixão, e sim por outras
personagens.
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Na televisão, Zé do Caixão também apresentou o programa O Estranho Mundo
de Zé do Caixão (1968) na TV Tupi e Um Show do Outro Mundo (1981) na TV
Record. Mais tarde voltaria à Bandeirantes em 1996 para apresentar o Cine Trash,
sempre apenas como um anfitrião para histórias de horror, fossem elas nacionais ou
importadas. O mesmo papel desempenhado nas histórias em quadrinhos. Zé do Caixão
também participou de incontáveis programas na televisão brasileira, como atração,
entrevistado, jurado, etc. Portanto, devido ao poder de alcance que a televisão tem no
Brasil, muito maior que o do cinema, a pronúncia “errada” da língua portuguesa de José
Mojica Marins acabou sendo associada à personagem. Assim, efetivamente, a
personagem Zé do Caixão, como foi concebida originalmente no cinema, só viria a
retornar em A Encarnação do Demônio, cerca de quarenta anos depois de Esta Noite
Encarnarei no teu Cadáver.
Até a realização de A Encarnação do Demônio em 2008, a extensa carreira de
Mojica passou por altos e baixos, ao mesmo tempo em que entrou em decadência depois
de Ritual dos Sádicos (interditado pela censura), indo da pornochanchada ao sexo
explícito, seus primeiros trabalhos com Zé do Caixão passaram a ser reconhecidos no
exterior a partir da década de 1970. O Estranho Mundo de Zé do Caixão foi premiado
no Festival Internacional de Cinema Fantástico e de Horror em Sitges na Espanha em
1973. No ano seguinte Mojica foi a Paris e recebeu o troféu Lécran Fantastique, pelo
conjunto de sua obra, na 3º Convenção de Cinema Fantástico. Neste evento Mojica
encontrou-se com o ator Christopher Lee, depois de Lugosi o mais tradicional intérprete
de Drácula no cinema. Mojica e a personagem Zé do Caixão foram alvo de diversas
matérias em revistas especializadas em horror e foram homenageados em muitas outras
ocasiões. A distribuidora norte-americana Something Weird, especializada em
produções B dos anos 1950 e 1960, a partir de 1993, por intermédio de André
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Barcinski, lança os filmes de Mojica em VHS nos Estados Unidos. Chamando a atenção
do público consumidor do gênero horror e também da crítica internacional. Em outubro
de 1997, Mojica é novamente homenageado internacionalmente, com retrospectivas de
sua obra em três festivais de cinema: Rimini, na Itália; Sitges, na Espanha e no Festival
Latino-Americano de Cinema e Literatura em Roterdã.
Assim, para não desviarmos nossa atenção da personagem Zé do Caixão, objeto
de análise neste estudo, cuja verdadeira essência como vimos está contida nos filmes À
Meia Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver, deixaremos
de lado a rica e criativa carreira de José Mojica Marins, merecedora de atenção,
inclusive de novas pesquisas acadêmicas, e nos deteremos no filme que encerra a
trilogia de Zé do Caixão, A Encarnação do Demônio.
O filme que dá continuidade a trajetória da personagem Zé do Caixão é o ápice
de um processo de resgate cultural da obra de José Mojica Marins, iniciada nos anos
1990. Este resgate se deve muito ao empenho do jornalista e pesquisador Carlos Primati
em fazer um levantamento do trabalho de Mojica que durou mais de cinco anos e levou
à publicação em DVD da Coleção Zé do Caixão em 2002. Retirando do limbo o
cinema de Mojica, desde filmes rodados no galinheiro na juventude até as produções
censuradas. O lançamento em DVD apresentou a personagem Zé do Caixão para toda
uma nova geração de brasileiros e gerou o interesse de novos realizadores de cinema
interessados em horror, como Dennison Ramalho e Paulo Sacramento, que acabaram
por se associar com Mojica para corrigir os erros cometidos pela censura com a
personagem Zé do Caixão.
Portanto, a equipe técnica de A Encarnação do Demônio é totalmente diferente
daquela que realizou os dois primeiros filmes do Zé do Caixão. Em vez da experiência
dos técnicos da Vera Cruz, a vontade e o vigor de uma nova geração. A direção do filme
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é de Mojica com a assistência de Dennison Ramalho, a montagem e produção de Paulo
Sacramento, fotografia de José Roberto Eliezer, roteiro de Mojica e Ramalho,
cenografia de Fabio Goldfarb, efeitos especiais Kapel Furman, música de André
Abujanra e figurinos de Alexandre Hercovitch. No elenco estão Mojica, Jece Valadão,
em seu último filme, Adriano Stuart e Milhem Cortez. O orçamento do filme, cerca de
um milhão e meio de reais, foi superior a qualquer produção feita por Mojica, que
enfrentou grandes dificuldades para atuar como Zé do Caixão. Em A Encarnação do
Demônio Zé do Caixão não foi dublado, ele usa a voz de Mojica, que foi popularizada
junto com a personagem na televisão. Entretanto, a pronúncia incorreta da língua
portuguesa, sem concordância com o plural, habitualmente falada por Mojica (também
associada à personagem Zé do Caixão e talvez um dos motivos de sua penetração nas
camadas mais populares, ao se expressar semelhantemente a grande parte da população
brasileira) foi eliminada nas filmagens para manter a coerência com os filmes
anteriores. Como foi utilizado som direto para a captação do áudio, Mojica foi obrigado
a repetir as cenas do Zé do Caixão dezenas de vazes até acertar suas falas.
A história se passa quarenta anos depois de Esta Noite Encarnarei no teu
Cadáver. Diferente dos primeiros filmes que não tinham um espaço definido, se
passavam numa cidade qualquer do interior do Brasil (denotando universalidade às
narrativas), neste filme o espaço é a cidade de São Paulo. Descobrimos que Josefel
Zanatas não havia morrido no lago e que estivera preso todo esse tempo. Libertado, Zé
do Caixão, agora apoiado por novos ajudantes, dá prosseguimento a sua busca por uma
mulher perfeita para gerar seu filho. Enfrenta policiais e padres vingativos enquanto
alucina com os espíritos de suas vítimas. Zé do Caixão, também passeia pelo purgatório
em seus delírios. Acaba morrendo, mas cumpre seu objetivo deixando várias moças
grávidas.
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O grande mérito do filme e interesse para este estudo é justamente a cena em que
descobrimos que Zé do Caixão não morreu afogado no lago. É exatamente a
continuidade da cena que teve que ser redublada por exigência da censura e que alterou
radicalmente a personagem, tornando Zé do Caixão crédulo e arrependido pedindo a
cruz para o padre antes de desaparecer nas águas. De maneira extremamente fiel, a cena
foi recriada para que tivesse continuidade. Depois de afundar no lago, Zé do Caixão se
ergue nas águas, pega a cruz do padre e proferindo blasfêmias golpeia o padre com a
cruz. Retomando seu caráter herege e cruel e corrigindo cinematograficamente uma
injustiça da censura. Zé do Caixão enfrenta os moradores da cidade, fura o olho de um
policial durante a luta, mas acaba sendo preso.
Para interpretar o Zé do Caixão jovem era preciso alguém que fosse muito
parecido com a personagem que aparece em Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver
para que houvesse continuidade. O norte-americano, Raymond Castille em 2004, no
halloween, havia se fantasiado como Coffin Joe e colocou uma série de fotos em um
website. A semelhança era incrível, o que fez com que o rapaz fosse escolhido e viesse
dos Estados Unidos para dar vida ao jovem Zé do Caixão, resultando numa seqüência
de grande fidelidade à cena original.
Finalizamos este capítulo com elementos consistentes para proceder a análise
comparativa entre as personagens Drácula e Zé do Caixão. Esta breve exposição do
início da carreira de José Mojica Marins no cinema e a criação da personagem Zé do
Caixão nos permitiu determinar os filmes mais relevantes na construção de sua imagem
pública, bem como elucidar questões relacionadas à gênese da personagem e as
condições de produção de seus filmes.
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Capítulo IV – DRÁCULA E ZÉ DO CAIXÃO – O COVEIRO
ENTERRA O VAMPIRO
Neste capítulo abordaremos a personagem Zé do Caixão em consonância com
pressupostos teóricos do horror discutidos no início deste estudo. Também faremos uma
comparação desta personagem com Drácula, paradigma da personagem de horror.
Como vimos criador e criação se misturam na trajetória de Zé do Caixão, assim, a fim
de garantir objetividade, fundamentaremos esta análise na personagem Zé do Caixão
cinematográfica original, que aparece como uma personagem real dentro de seu mundo
ficcional. Desta maneira nos limitamos a examinar a personagem Zé do Caixão cuja
história se desenvolve nos filmes À Meia Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite
Encarnarei no teu Cadáver.
Antes de partir para os tópicos próprios do gênero horror, observamos alguns
elementos presentes na gênese da personagem Zé do Caixão e algumas influências na
produção de seus filmes. A primeira e mais óbvia influência na personagem Zé do
Caixão é a dos filmes do ciclo de horror da Universal Studios nos anos 1930 e 1940.
Visualmente Zé do Caixão apresenta semelhanças com Drácula: o traje formal, preto da
cabeça aos pés, incluindo a capa, as unhas compridas como as garras do Conde Orlock
no filme de Murnau, ou mesmo os longos dedos de Lugosi, e o ar de superioridade em
relação aos supersticiosos moradores da vila, muito parecido com o comportamento do
conde vampiro frente aos mortais que o rodeiam. A casa de Zé do Caixão é um castelo
gótico brasileiro, com esculturas bizarras de mãos e braços saindo das paredes, animais
empalhados, ventos que sopram cortinas esvoaçantes, vozes fantasmagóricas que ecoam
pelos corredores, quadros com pinturas cujos olhos falsos permitem a observação,
habitações que escondem passagens secretas e até mesmo uma mistura de laboratório
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com masmorra. É no castelo de Drácula que Harker sofre os horrores das noivas
vampiras, enquanto que no “castelo” de Zé do Caixão é ele o causador do horror em
suas “noivas”, as candidatas involuntárias a mulher perfeita.
Os closes2 nos olhos de Zé do Caixão, injetados de sangue, com a sobrancelha
arqueada, antecedendo seus ataques de fúria, foram realizados por meio de uma
trucagem, sobrepondo uma foto dos olhos de Mojica com os globos oculares pintados
com listras. Estes planos remetem aos closes nos olhos de Lugosi, destacados pela
iluminação recortada sobre eles, ressaltando os poderes hipnóticos do vampiro antes de
seus ataques. Também se relacionam com planos semelhantes de Drácula que aparecem
na versão da Hammer Films, Horror of Dracula (1958), com os olhos de Christopher
Lee injetados de sangue, efeito obtido por meio da utilização de lentes de contato.
A cena do ataque de Zé do Caixão à Terezinha em À Meia Noite Levarei Sua
Alma, também lembra muito a sensualidade e as carícias nas vítimas durante os ataques
do Drácula de Christopher Lee. Porém diferente do conde vampiro, efetivamente morto
da cintura para baixo, e que somente é capaz de se satisfazer oralmente, Zé do Caixão
não tem limitações para satisfazer seu apetite sexual e estupra sua vítima. O breve
confronto de Dr. Rodolfo e Zé do Caixão, neste mesmo filme, também refere-se ao
conflito entre Van Helsing e Drácula, a ciência contra o sobrenatural. Da mesma
maneira que Van Helsing descobre que um vampiro é a causa dos males que se abatem
sobre as jovens, é o Dr. Rodolfo que confirma por meio de exames que as mortes não
foram acidentais e que Zé do Caixão é o provável autor dos assassinatos que estão
ocorrendo na vila. Neste caso, a ciência de Dr. Rodolfo contra a razão (ou falta desta) de
Zé do Caixão.
2 “Plano que compreende o rosto e permite captar a expressão mais íntima da personagem. Seu uso é
emotivo, dramático e psicológico” (RAMOS, 2002, p.469).
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Também é notável a influência de Frankenstein (1931), com Boris Karloff. A
câmara de torturas onde Zé do Caixão realiza suas experiências testando a coragem e o
autocontrole de suas vítimas em Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver, é o típico
laboratório do cientista louco. Semelhante ao que o Dr. Frankenstein usa para dar vida
ao ser composto de partes de cadáveres, porém utilizado por Zé do Caixão
contrariamente. Ao invés de usar o espaço para criar vida, Zé do Caixão usa para
extinguir a vida, seja com cobras ou mesmo com aparatos mecânicos, como a prensa de
pedra que usa para esmagar a cabeça de Cláudio. Também, a personagem Bruno, o
horroroso corcunda ajudante de Zé do Caixão é claramente inspirado em Fritz, o
ajudante do Dr. Frankenstein que costuma atormentar com fogo o monstro. As
seqüências em que o coronel Almendes na praça conclama os moradores da pequena
cidade a atacarem Zé do Caixão em Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver, e dos
moradores com tochas nas mãos adentrando o cemitério em À Meia Noite Levarei Sua
Alma, também são visivelmente inspiradas no filme de James Whale. Remetem as
cenas de Frankenstein em que o burgo-mestre reúne os aldeões para atacarem o
monstro, e o posterior confronto no moinho de vento, onde os aldeões com tochas
aparentemente destroem a criação do Dr. Frankenstein.
Um dos méritos dos filmes de Zé do Caixão é conseguir adaptar os clichês do
cinema de horror para a realidade brasileira sem tentar imitar modelos anglo-saxões. A
taberna em que Zé do Caixão joga cartas e bebe, assim como a floresta, a casa da bruxa
e o cemitério são autenticamente brasileiros. Na frente do cemitério existe até um
despacho de macumba que Zé do Caixão não hesita em profanar bebendo sua cachaça.
Também na casa da bruxa, o sincretismo religioso brasileiro é evidente na composição
de objetos que ornam as paredes. Esta adaptação de elementos dos filmes de terror à
cultura brasileira distingue os filmes de Zé do Caixão de outros filmes de horror
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produzidos fora dos Estados Unidos na época. Como o ciclo de horror italiano, que
apenas reproduzia estes elementos do gênero horror acrescentando pouco da marca
cultural própria.
Outra influência marcante que devemos notar nos filmes de Zé do Caixão vem
das histórias em quadrinhos. Como vimos, Mojica consumiu vorazmente revistas em
quadrinhos em sua juventude. Também observamos que no início dos anos 1960 o
gênero horror ocupava um espaço cada vez maior no mercado de quadrinhos brasileiros,
porém ainda reproduzindo modelos e ambientes dos quadrinhos de horror importados.
Logo no início de À Meia Noite Levarei Sua Alma esta influência do
quadrinho de horror fica evidente. A bruxa-cigana interpretada por Eucaris de Morais
faz a cena de introdução falando diretamente ao espectador, captando sua atenção para a
história que será contada. Um recurso característico dos quadrinhos de horror,
amplamente utilizado nas revistas da EC, a abertura da história por um anfitrião. Porém
a bruxa-cigana está inserida no contexto da cultura nacional, sua casa traz elementos
muito brasileiros misturando a religião católica com o candomblé e a macumba,
diferente dos anfitriões que apareciam nos quadrinhos de terror que circulavam no
Brasil naquela época. Quando a personagem Zé do Caixão foi adaptada para os
quadrinhos ele próprio se tornou um anfitrião, mudança marcante que também vimos na
adaptação da personagem para a televisão. Porém nestas adaptações, Zé do Caixão
manteve sua identidade brasileira, fazendo com que as primeiras histórias de horror com
temas e ambientes brasileiros nos quadrinhos nacionais fossem aquelas introduzidas por
ele como anfitrião.
O trabalho de iluminação feito por Attili nos dois filmes, contrastando o claro e
o escuro, lembra muito a fotografia dos filmes expressionistas. Esse contraste, com os
fundos realmente muito escuros e os elementos em primeiro plano bem iluminados
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também são característicos dos quadrinhos de horror, e muito utilizado por Nico Rosso
nas revistas em quadrinhos do Zé do Caixão.
Outro recurso marcante dos quadrinhos é o uso freqüente de closes para contar a
história e Mojica ao longo dos dois filmes abusa de detalhes para conduzir a narrativa e
explicitar o horror. A narração em off de Zé do Caixão enquanto caminha pela cidade
planejando matar Lenita, e depois quando a aranha caranguejeira passeia pelo corpo de
sua esposa é outro recurso típico da linguagem dos quadrinhos de horror.
Conhecendo as origens de Mojica, a influência de meios de comunicação e
gêneros populares como histórias em quadrinhos e filmes de horror parece natural em
seus trabalhos. Já que ele é um dos poucos diretores de cinema do Brasil que não veio
da classe média ou da elite intelectual do país. Um autodidata que não teve contato com
a teoria cinematográfica e que juntamente com as massas cresceu consumindo produtos
culturais populares.
Em relação à gênese da personagem e a classificação estabelecida por Candido que
observamos no capítulo anterior, Zé do Caixão está situado numa categoria diferente de
Drácula. Como já visto, o conde Drácula se encaixa na categoria em que as personagens
são construídas tendo modelos conhecidos, ficcionais ou reais, mas que servem de
estímulo para uma caracterização nova. A personagem Zé do Caixão, como acabamos
de ver, também se vale de modelos ficcionais na sua gênese, Drácula e o Dr.
Frankenstein. Porém a marca maior na personagem Zé do Caixão é a do próprio autor
José Mojica Marins. Na exposição sobre o início da carreira de Mojica vimos que
criador e criação se misturam na trajetória desta personagem e que na sua gênese a
vivência e sentimentos do autor foram marcantes. Assim, a personagem Zé do Caixão
está na primeira categoria da classificação apresentada em A Personagem de Ficção,
acrescida da influência de modelos indiretos ficcionais.
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Personagens transpostas com relativa fidelidade de modelos dados
ao romancista por experiência direta, seja interior, seja exterior. O
caso da experiência interior é o da personagem projetada, em que o
escritor incorpora a sua vivência, os seus sentimentos, (...) o caso da
experiência exterior é o da transposição de pessoas com as quais o
romancista teve contato direto. (CANDIDO, 2007, p. 71)
Concluídos estes primeiros apontamentos sobre a gênese da personagem Zé do
Caixão e as influências do cinema de horror e das histórias em quadrinhos, vamos agora
para o exame desta personagem por meio dos pressupostos teóricos selecionados e
pertinentes ao gênero do horror cinematográfico.
1. A personagem Zé do Caixão na teoria do horror
A questão da presença do elemento fantástico na narrativa também é intrínseco à
personagem Zé do Caixão. Ele se aproveita de todas as chances que tem para desafiar
principalmente os dogmas e rituais da religião católica, mas também questiona qualquer
outra crença ou superstição. Zé do Caixão em monólogos costuma gritar sua descrença
em qualquer força não natural, contraditoriamente, ao mesmo tempo em que pede a
estas mesmas forças não naturais provas de sua existência. Esta descrença no não
natural impulsiona sua crueldade, pois não acreditando em qualquer tipo de punição
divina, sua única preocupação é com a justiça dos homens. Por isso ou tenta disfarçar
seus assassinatos, a morte de Lenita com uma picada de aranha e a morte de Antonio
como se tivesse caído e batido a cabeça na banheira e se afogado em À Meia Noite
Levarei Sua Alma. Ou oculta os corpos de suas vítimas, como as moças mortas pelas
cobras e escondidas no lago em Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver.
O elemento fantástico em Drácula, como já visto, se manifesta pela própria
personagem, um vampiro, um ser sobrenatural, caracterizando a instância do fantástico
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maravilhoso. Já a personagem Zé do Caixão difere, não só de Drácula, como da maioria
dos monstros ficcionais, por não ser ele a materialização do elemento fantástico na
narrativa, mas por ser um monstro que sofre a ação de forças não naturais. Zé do Caixão
é um homem que entra em confronto com o sobrenatural, enquanto que Drácula é o
próprio sobrenatural (humanizado) que se confronta com o homem. Quanto a instância
em que o fantástico se manifesta veremos que ele passa pelas três possibilidades, puro,
estranho e maravilhoso, ao longo da história de Zé do Caixão, enquanto que Drácula
sempre está inserido na categoria do fantástico maravilhoso.
Em À Meia Noite Levarei Sua Alma a primeira manifestação do fantástico
acontece na seqüência em que Zé do Caixão, em sua casa, ouve as vozes de Antônio e
Terezinha. Nesta cena temos uma hesitação sobre a procedência do fenômeno. São
realmente vozes que vem do além ou alucinações de Josefel Zanatas? O que denota o
fantástico puro, mas nas seqüências finais vemos o fantasma de Antônio oferecendo
fogo para Zé do Caixão acender seu cachimbo e logo em seguida a procissão de
espíritos. Apesar de Zé do Caixão fugir de maneira delirante, fica instaurado o
fantástico maravilhoso. Logo nas primeiras cenas de Esta Noite Encarnarei no teu
Cadáver esta situação se desfaz. O texto em forma de legendas no início é bastante
claro. “Zé do Caixão obsecado pelo nascimento de um filho perfeito não exitou em
matar. E os seus próprios nervos lhe deram o martírio da alucinação” (DVD – Esta
Noite Encarnarei no teu Cadáver). Instaura-se então o fantástico estranho que
acompanha Zé do Caixão em suas alucinações e pesadelos. Porém no final voltamos ao
fantástico maravilhoso, já que ao desafiar a existência de deus um raio cai perto do
coveiro e ao clamar por mais uma prova os cadáveres de suas vítimas escondidas no
lago bóiam, revelando sua culpa perante os moradores da cidade. Em A Encarnação do
Demônio o fantástico maravilhoso é reforçado no final, já que outros personagens
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humanos também sofrem a ação de espíritos que até então aparentavam ser delírios de
Zé do Caixão. O policial Oswaldo é assombrado pelos espíritos das crianças que matou
e o padre Eugênio também é perseguido pelo espírito de Zé do Caixão.
A intenção de causar a emoção do horror no público é evidente, tanto para
Drácula quanto para Zé do Caixão. A escolha de profanar religiões e crenças consegue
impressionar o público brasileiro, católico e supersticioso. A presença de animais
peçonhentos e a violência gráfica também reforçam o objetivo de horrorizar e causar
repugnância no espectador.
Também é evidente o horror que as personagens positivas manifestam frente à
Zé do Caixão. Suas aparições nos funerais claramente atemorizam os moradores da
cidade que se sentem impotentes frente a ele. Esta posição de inferioridade fica muito
clara pelo enquadramento da câmera. Nas cenas em que Zé do Caixão aparece junto aos
moradores da cidade, ele sempre é focalizado com uma câmera baixa, dando a sensação
de superioridade. Suas vítimas reagem com grande pavor a seus ataques, bem como as
vítimas de Drácula. Porém, algumas das vítimas de Zé do Caixão parecem de algum
modo justificar a crueldade e o mal que sofrem, em contraponto às vítimas de Drácula,
que nada fizeram para merecer o mal que se abate sobre elas na forma do vampiro.
Laura e Márcia sabem dos sádicos crimes cometidos por Zé do Caixão e assim se
tornam cúmplices de sua maldade. As moças seqüestradas em Esta Noite Encarnarei
no teu Cadáver foram selecionadas por serem descrentes de deus, o que também acaba
justificando as torturas sofridas por elas.
Esta propensão de algumas personagens reforça a idéia do mal interior que se
manifesta na personagem Zé do Caixão. Todo o mal que surge vem do homem, Zé do
Caixão (que goza de livre arbítrio para tomar suas decisões), e algumas de suas vítimas
até mesmo colaboram para que este mal aconteça. O oposto de Drácula que é a
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exteriorização do mal, um vampiro, um ser sobrenatural. Ainda que apareça de forma
humanizada ele é completamente exterior ao homem.
Ao posicionarmos Zé do Caixão do lado oposto a Drácula na dicotomia da
exteriorização do mal, já evidenciamos que ele não corresponde ao arquétipo do
vampiro, pois o mal exterior é um de seus atributos principais. A carta do tarô do horror
que cabe para a personagem Zé do Caixão é a carta do lobisomem. Tal qual Jekyll e
Hyde, Josefel Zanatas alterna momentos de exagerada polidez (apolíneo) com
rompantes de fúria e crueldade (dionisíaco). Ele transita normalmente pela sociedade
como um cavalheiro, mas quando pode dá vazão aos seus desejos sádicos. Em À Meia
Noite Levarei Sua Alma, durante o jogo de cartas no bar, Zé do Caixão cruelmente
decepa um dedo da mão de seu adversário, mas logo em seguida manda chamar um
médico e se prontifica a pagar o tratamento. Tenta conquistar Terezinha presenteando-a
com um passarinho numa gaiola para em seguida estuprá-la. Em Esta Noite
Encarnarei no teu Cadáver salva uma criança de um atropelamento para depois
torturar mulheres em sua câmara de horror. Apesar de Zé do Caixão ser temido
constantemente pelos moradores da cidade, seu lado maléfico fica contido para ser
liberado nas ocasiões adequadas.
Na classificação dos monstros a personagem Zé do Caixão se encaixa na
categoria de monstros originados pela metonímia do horror. Embora as longas unhas lhe
dêem um caráter animalesco, Zé do Caixão é um homem de aparência normal. Porém,
está associado a uma série de elementos macabros que causam repulsa: caixões,
cemitérios, aranhas, cobras, o ajudante deformado, animais empalhados, heresias, o
inferno, etc. O sentimento de repulsa não se origina exatamente da personagem Zé do
Caixão, mas sim dos elementos impuros que o cercam. Desta maneira, distingui-se de
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Drácula que causa a repulsa por si próprio devido a sua origem na fusão de elementos
de categorias distintas, assim tornando-o impuro.
Apesar do horror se manifestar explicitamente em relação a ambas as
personagens, Drácula, como vimos, opera entre o horror explícito e o horror refinado.
Enquanto que Zé do Caixão trabalha sempre o horror explícito no nível da repulsa em
seus filmes. A grande quantidade de closes nas aranhas e cobras e o gore nas cenas de
tortura ressaltam a intenção de chocar e causar repugnância.
Em relação às condições de produção para a realização cinematográfica, Drácula
e Zé do Caixão também se encontram de lados opostos. Enquanto Dracula foi feito
como uma grande produção de um conceituado estúdio de Hollywood, os filmes de
Mojica são produções independentes de um estúdio brasileiro precário com orçamentos
muito reduzidos. Apesar de Dracula ter ousado ao tratar de um tema sobrenatural,
contrariando as expectativas das grandes produções que tendem a se arriscar menos, não
podemos comparar com a ousadia e a criatividade dos filmes de Zé do Caixão, seja na
superação das adversidades técnicas como pela abordagem do gênero horror.
Quanto a questão da existência do subtexto na narrativa de horror vimos que esta
não é uma prerrogativa para o gênero do horror. Em muitos casos não existe um
subtexto ou uma mensagem que se intenciona transmitir nas entrelinhas, o que se
pretende é provocar apenas o horror artístico através do filme de horror. Creio que este
seja o caso dos filmes de Zé do Caixão que usamos como referência neste estudo. É
claro que se pode fazer uma leitura diferente destes filmes como a que Sganzerla
(BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 11) faz, enxergando nas narrativas de Zé do Caixão
uma contestação à ditadura e na sua busca pelo filho perfeito alusões a Nietzsche.
Também poderíamos apontar um subtexto religioso, moralizante e conservador que
pune aqueles que duvidam da religião católica. Porém não me parece crível que Mojica
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objetivasse algo nestes filmes que não fosse o horror artístico. Também não me sinto
seguro para concordar que tais leituras sejam realmente um subtexto presente nestas
narrativas.
Examinando as estruturas de enredo dos filmes de Zé do Caixão, a partir dos
enredos mais recorrentes do gênero, notamos que eles se encaixam nestes modelos,
embora não com a perfeição de Dracula. Observamos que o filme com Lugosi
corresponde plenamente ao enredo de descobrimento complexo (com quatro
movimentos, irrupção, descobrimento, confirmação e confronto), mas que esta estrutura
pode acontecer em três, dois, ou até mesmo um único movimento. Diferentemente de
Drácula, que depois de sair de seu castelo na Transilvânia passa a agir às escondidas,
deixando o desenvolvimento das personagens positivas em primeiro plano, Zé do
Caixão é o centro das atenções durante todo o tempo, sobrando pouco espaço para as
personagens positivas. O que faz com que os movimentos de descobrimento e
confirmação aconteçam muito brevemente em À Meia Noite Levarei Sua Alma, mas
ainda assim o enredo do filme corresponde a esta estrutura. Logo no início do filme
somos apresentados ao monstro, Zé do Caixão, que come carne de carneiro na sexta-
feira santa. No desenrolar da trama fica claro que os moradores da cidade sabem que o
coveiro é o culpado das mortes que acontecem, apesar de não terem provas não hesitam
em acusá-lo. Assim, não há exatamente a fase de descobrimento. A confirmação
acontece rapidamente na cena em que Dr. Rodolfo, ao analisar os laudos das mortes de
Antônio e Lenita, constata que não foram acidentes. Mas esta confirmação se restringe
apenas à personagem Dr. Rodolfo, pois logo em seguida Zé do Caixão fura seus olhos e
o mata queimando-o vivo. Também podemos notar estes movimentos num segundo
momento já no final do filme quando Zé do Caixão se confronta com os espíritos. Ele
descobre forças não naturais quando ouve as vozes de suas vítimas em sua casa e
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confirma a existência destas forças juntamente com o movimento de confronto, ao ver o
fantasma de Antônio no cemitério e a procissão de espíritos em seguida.
Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver mistura as duas estruturas, o enredo de
descobrimento complexo e o enredo do extrapolador, que também conta com quatro
movimentos: a preparação, a experiência, o resultado da experiência e o confronto, e
cujo melhor exemplo é Frankenstein (1931). O primeiro movimento acontece quando
Zé do Caixão seqüestra as moças para sua experiência, depois passamos para a
experiência propriamente dita, testar a reação das moças até identificar uma delas que
não tenha medo. Primeiramente um teste de coragem soltando as aranhas caranguejeiras
sobre as moças, neste primeiro teste somente Márcia é selecionada, mas falha na
segunda prova ao não suportar ver as outras moças serem mortas pelas jibóias. Assim a
experiência aparentemente deu certo, Zé do Caixão testou as moças e constatou que
nenhuma das candidatas era a mulher perfeita, seu método parece eficaz. Porém, ele
descobre que Jandira, uma das moças mortas pelas jibóias, estava grávida. Fazendo com
ele tivesse destruído a vida inocente de uma criança. A experiência deu errado e Zé do
Caixão passa a lidar com seu resultado, alucinações e pesadelos. Também podemos
notar os movimentos de descobrimento e confirmação que ocorrem juntamente quando
os moradores da cidade encontram a carta que Márcia escreveu antes de se matar,
revelando que o coveiro é o autor dos crimes. Posteriormente temos mais uma vez a
confirmação, junto com a fase de confronto, quando os moradores da cidade cercam Zé
do Caixão no lago e os corpos das moças flutuam na água à sua volta.
Por meio do quadro comparativo entre as personagens Drácula e Zé do Caixão,
constatamos que apesar da influência na gênese de Zé do Caixão, que resulta na
semelhança visual entre as duas personagens (capa e roupas pretas), tratam-se de
personagens, e monstros, completamente distintos dentro do gênero horror.
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Num extremo temos Drácula, uma personagem sobrenatural que é a
exteriorização do mal e uma metáfora para a sexualidade, encarnando o arquétipo do
vampiro. Uma personagem essencialmente impura, um monstro de fusão. Que explícita
o horror muitas vezes de maneira refinada, apenas sugerindo-o. Numa produção ousada
ao tratar o tema sobrenatural apesar de ser realizada por um grande estúdio de
Hollywood.
No outro extremo está Zé do Caixão, uma personagem natural. Um homem que
sofre a ação do sobrenatural, que dá vazão a todo o mal que existe em seu interior e que
não necessita de metáforas para abordar a sexualidade, fazendo-o abertamente. A
alternância entre seus rompantes de maldade (dionisíacos) e momentos de tranqüilidade
e razão (apolíneos) apontam para o arquétipo do lobisomem. Zé do Caixão é um
monstro em que a impureza não está na sua figura, mas sim na associação aos elementos
macabros que o cercam, metonímia do horror, e que são explicitados graficamente a fim
de horrorizar pela repulsão. Em produções independentes realizadas precariamente, mas
ousadas e criativas, e de maneira artesanal, já que a referência comparativa é a indústria
cinematográfica de Hollywood.
Em comum entre Drácula e Zé do Caixão notamos apenas as características
inerentes à personagens de terror: a reação emotiva de horror nas personagens positivas
e os enredos de seus filmes que correspondem as estruturas mais recorrentes no gênero.
Concluindo, a personagem Zé do Caixão não é uma cópia abrasileirada de
nenhum dos monstros tradicionais do cinema de horror, mas sim uma autêntica
personagem de horror brasileira, cuja originalidade fica evidente quando colocada frente
à outras personagens de horror. Notam-se as influências dos modelos ficcionais
tradicionais do cinema de horror, mas a marca maior em Zé do Caixão, definitivamente
é a de seu criador José Mojica Marins, o que lhe dá uma singularidade ímpar, presente
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na verdadeira manifestação artística. A personagem Zé do Caixão não representa apenas
o horror brasileiro. Ele próprio é um símbolo do Brasil.
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CONCLUSÃO
Antes de adentrar propriamente nas conclusões desta pesquisa, aproveito para
fazer algumas considerações finais sobre uma questão que discutimos brevemente, o
paradoxo do horror. No primeiro capítulo examinamos o paradoxo da ficção: como as
pessoas podem ser tocadas emocionalmente por aquilo que sabem não existir. Porém
quanto ao paradoxo do horror, que equivale a perguntar como as pessoas podem ser
atraídas pelo que é repulsivo, apenas apontamos os sentimentos catárticos como um
indício desta atração.
Carroll ressalta que o gênero horror floresce, sobretudo como uma forma
narrativa. Como vimos, as estruturas narrativas mais comuns do gênero, o enredo de
descobrimento complexo e o enredo do extrapolador, lidam diretamente com a
curiosidade do espectador ou leitor. De modo que o atraente na ficção de horror, de
acordo com a proposição de Carroll (1999, p. 258), não é a personagem monstruosa,
mas sim a estrutura narrativa em que ela é inserida. O prazer na ficção de horror e o
motivo do interesse do público está nos processos de descoberta, prova e confirmação
freqüentemente empregados nestas narrativas. “Somos atraídos pela maioria das ficções
de horror por causa da maneira como os enredos de descoberta e os dramas de prova
excitam nossa curiosidade e provocam nosso interesse, satisfazendo-os idealmente de
maneira agradável” (CARROLL, 1999, p. 263).
Esta teoria esbarra em duas observações. Ao limitar o horror como forma
narrativa ficam excluídas diversas outras manifestações artísticas em que ocorre o
horror, como a fotografia e a pintura, que não contém, pelo menos de maneira explícita
uma narrativa com estes movimentos de descoberta. Da mesma forma vimos que
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existem várias narrativas de horror que também não oferecem estes recursos, podendo
ser pura irrupção ou puro confronto.
Portanto, somente o prazer proporcionado pelos enredos de descoberta não é
suficiente para resolver o paradoxo do horror. Creio que aliando a teoria de Carroll com
os sentimentos catárticos e a psicanálise teremos uma resposta mais satisfatória para a
questão da atração pelo repulsivo. Na verdade, a visão da psicanálise é o mesmo
princípio que estabelecemos no arquétipo do vampiro, sendo ele uma representação de
desejos sexuais reprimidos satisfeitos oralmente pelo ato de chupar sangue. Observando
o gênero horror por esta visão, podemos entender que os monstros e seus atos
destrutivos atraem porque manifestam desejos sexuais do público. Entretanto, estes
desejos sexuais são proibidos ou reprimidos, e não podem ser reconhecidos
abertamente, necessitando das imagens horríveis e repugnantes para disfarçá-los. De
modo que a repulsão do horror é na verdade uma máscara para desejos sexuais que não
podem ser reconhecidos.
Somos atraídos pelas imagens de horror porque, apesar das
aparências, tais imagens permitem a satisfação de desejos
psicossexuais profundos. Esses desejos só poderiam ser satisfeitos de
modo aceitável se se desse ao censor a sua parte. Ou seja, a
repugnância pelas criaturas de horror é, na verdade, o meio pelo qual
– dada uma visão freudiana da maneira como a economia do
indivíduo é explicada – se pode obter prazer. (CARROLL, 1999, p.
246)
Acredito que a combinação destas respostas conseguem abranger mais do gênero
horror e resolver melhor o complexo paradoxo do horror, do qual partiu esta pesquisa.
Passemos agora para a conclusão relativa às hipóteses e objetivos pretendidos neste
estudo.
A primeira hipótese, que dizia que a personagem Zé do Caixão se encaixa no
quadro teórico-conceitual do gênero horror, foi confirmada. A personagem Zé do
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Caixão preencheu plenamente todos os tópicos da teoria do horror no que tange à
configuração das personagens. Somente a questão do subtexto no filme de horror não
ficou muito clara nos filmes de Zé do Caixão, talvez por este tópico permitir uma leitura
muito subjetiva. Ainda assim apontamos algumas possibilidades para esta questão. A
confirmação desta hipótese afirma Zé do Caixão como uma autêntica personagem do
gênero horror.
A segunda hipótese, que apontava a personagem Drácula como referência
central da personagem Zé do Caixão não se confirmou. É possível notar semelhanças
entre as duas personagens. Ambas usam capa, se vestem de preto e estão cercadas por
elementos macabros como caixões e cemitérios. Também é possível fazer uma analogia
entre as duas personagens pela busca da imortalidade, que em Drácula se dá pelo sangue
e em Zé do Caixão pela continuidade de sua linhagem. Porém, quando comparados no
quadro teórico-conceitual do horror que construímos, as duas personagens se distanciam
completamente. Em quase todas as categorias de análise, as personagens se
posicionaram opostamente. Examinando a gênese da personagem Zé do Caixão,
notamos influências de Drácula, mas constatamos que a referência principal para esta
personagem é seu próprio criador José Mojica Marins. Distanciando ainda mais as duas
personagens, já que observamos que Bram Stoker não é a referência central na
construção de Drácula, mas sim modelos reais e ficcionais. Desta maneira, a
personagem Drácula não é a referência central da personagem Zé do Caixão. Não
confirmando esta hipótese, afirma-se a originalidade da personagem Zé do Caixão
perante Drácula ou qualquer outro dos monstros clássicos do cinema de horror,
adequando-se perfeitamente à cultura brasileira.
Por meio destas duas hipóteses atingimos o objetivo geral deste estudo. Ao
inserir a personagem Zé do Caixão no quadro teórico-conceitual do horror foi possível
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observá-lo por uma perspectiva pertinente ao gênero horror e assim poder compará-lo
com um modelo ideal dentro deste gênero. A partir dessa análise comparativa foi
possível compreender como a personagem Zé do Caixão se relaciona com outras
personagens de terror, destacando a distinção entre as criações de Stoker e Mojica.
O objetivo específico de esboçar um perfil teórico-conceitual do gênero horror a
partir das referências bibliográficas selecionadas também foi atingido, já que as
categorias de análise estabelecidas permitiram uma compreensão maior das personagens
examinadas e se mostraram funcionais para aplicação em outras personagens do gênero
horror.
Outro objetivo neste estudo era fazer a análise das duas personagens destacando
o papel da adaptação na construção da sua imagem pública. Este processo foi
extremamente importante já que tanto a personagem Drácula quanto a personagem Zé
do Caixão foram adaptadas para diferentes meios de comunicação, sofrendo
transformações nestas mudanças de veículos. Assim, a delimitação das obras, com estas
personagens, que seriam analisadas acabou por dar visibilidade ao processo de
adaptação, cumprindo mais este objetivo específico.
Dentro do quadro teórico-conceitual do horror levantamos as questões
paradoxais do gênero e observamos elementos, mecanismos e estruturas narrativas
próprios do horror. Constatamos a singularidade da personagem Zé do Caixão, mas
também notamos o uso de elementos e estruturas narrativas comuns ao gênero. Ao
mesmo tempo em que se distingue de outras personagens de horror, Zé do Caixão se
vale de recursos semelhantes para fascinar o público, embora também seja inovador em
alguns aspectos. Desta maneira, também alcançamos o objetivo específico proposto,
observar a personagem Zé do Caixão sob o prisma dos paradoxos próprios das
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personagens do gênero horror e verificar se este se vale de mecanismos e recursos
semelhantes para obter o fascínio da audiência.
Concluindo este estudo, também se concretiza a intenção de dar visibilidade e
discutir no âmbito acadêmico a criação de José Mojica Marins e conseqüentemente a
sua obra também. A personagem Zé do Caixão é um símbolo da cultura nacional cuja
originalidade no interior do gênero horror fica comprovada aqui. Parafraseando Rogério
Sganzerla faço as palavras finais desta pesquisa.
“De boa fé, troco vinte anos de cinema brasileiro pelos vinte segundos em que
Zé do Caixão, fugindo na floresta de papelão, abre os braços, a capa e grita: A quem
pertence a terra? A Deus? Ao Demônio? Ou aos espíritos desencarnados?”
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Filmes consultados:
À Meia Noite Levarei Sua Alma. Direção José Mojica Marins. Brasil. 1964.
Bebê de Rosemary, O. Direção Roman Polanski. EUA. 1968.
Delirios de um Anormal. Direção José Mojica Marins. Brasil. 1978.
Demônios e Maravilhas. Documentário. Direção José Mojica Marins. Brasil. 1976 –
1987.
Dracula. Direção Tod Browning. EUA. 1931.
Encarnação do Demônio, A. Direção José Mojica Marins. Brasil. 2008.
Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver. Direção José Mojica Marins. Brasil. 1967.
Estranho mundo de José Mojica Marins, O. Documentário. Direção Andre Barcinski;
Ivan Finotti. Brasil, 2000.
Estranho Mundo de Zé do Caixão, O. Direção José Mojica Marins. Brasil. 1968.
Exorcista, O. Direção William Friedkin. EUA. 1973.
Fogo-Fátuo. Documentário. Direção Goffredo Telles Neto. Brasil. 1980.
Frankenstein. Direção James Whales. EUA. 1931.
Horror of Dracula. Direção Terence Fisher. UK. 1958.
Ritual dos Sádicos. Direção José Mojica Marins. Brasil. 1970.
Universo de Mojica Marins, O. Documentário. Direção Ivan Cardoso. Brasil. 1977.
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DVD’s:
À Meia Noite Levarei Sua Alma. Direção José Mojica Marins. Brasil. 1964. Anexos -
biografia e entrevistas com José Mojica Marins; Reino Sangrento.
Encarnação do Demônio, A. Direção José Mojica Marins. Brasil. 2008. Anexos -
biografia e entrevistas com José Mojica Marins; Making off.
Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver. Direção José Mojica Marins. Brasil. 1967.
Anexos - biografia e entrevistas com José Mojica Marins e Aldenoura de Sá Porto.
Websites:
http://veja.abril.com.br/livros_mais_vendidos/ acesso em 01/04/2009.
http://www.imdb.com/ acessos entre 2009 e fevereiro de 2010.
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