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    TTULO

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    Jlia Figueredo Benzaquen

    UNIVERSIDADES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS:

    apostas em saberes, prticas e sujeitos descoloniais

    Tese de Doutoramento na rea cientfica de Sociologia (Programa de Doutoramento em Ps-

    colonialismos e Cidadania Global), orientada pelo Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos,

    coorientada pela Doutora Maria Paula Meneses e apresentada Faculdade de Economia da

    Universidade de Coimbra.

    Dezembro de 2011

  • Jlia Figueredo Benzaquen

    UNIVERSIDADES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS:

    apostas em saberes, prticas e sujeitos descoloniais

    Tese de Doutoramento na rea cientfica de Sociologia (Programa de Doutoramento em Ps-

    colonialismos e Cidadania Global), orientada pelo Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos,

    coorientada pela Doutora Maria Paula Meneses e apresentada Faculdade de Economia da

    Universidade de Coimbra.

    Dezembro de 2011

  • ii

    Resumo A questo principal desta pesquisa saber se as Universidades dos Movimentos

    Sociais so experincias descolonizadas e de emergncia emancipatria. Para responder

    a essa pergunta, o texto est embasado nas teorias que trabalham com as perspectivas descoloniais e com a ideia de Boventura de Sousa Santos de Sociologia das Ausncias e das Emergncias. Essas teorias so utilizadas como forma de apostar em uma concepo de educao que herda os princpios da educao popular de Paulo Freire, acrescentando as ideias de interculturalidade e de traduo intercultural. A tese uma aposta nas Universidades dos Movimentos Sociais como fomentadoras dessa outra educao. A escolha foi por realizar quatro estudos de casos de Universidades dos Movimentos Sociais bastante distintos, no intuito de verificar as hipteses de pesquisa.

    Os instrumentos metodolgicos utilizados foram: observao participante, entrevistas semiestruturadas e anlises documentais. Os quatro estudos de caso referem-se Escola de Formao de Educadores(as) Sociais no Recife Brasil, Escola Nacional Florestan Fernandes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil, Universidad de la Tierra, ligada ao Movimento Zapatista do estado de Chiapas no Mxico e Universidade Popular dos Movimentos Sociais. Para cada caso discorri a respeito do contexto, da histria e da estrutura e funcionamento da iniciativa em questo. Aps essa contextualizao, os casos foram destrinchados a partir de trs unidades de anlise: saberes, prticas e sujeitos. No final da tese um captulo dedicado para a reflexo integrada dos casos. Nessa reflexo, feita uma comparao entre as experincias estudadas com o intuito de encontrar semelhanas e diferenas e de melhor refletir a

    respeito do conceito de Universidade dos Movimentos Sociais. A tese concluiu que as Universidades dos Movimentos Sociais so experincias bastante plurais e experimentais, ou seja, so iniciativas que trilham o seu percurso ao longo do seu caminhar.

    Palavras-chave: Universidades dos Movimentos Sociais, Universidades, Movimentos Sociais, apostas, descolonizao.

  • iii

    Abstract The main question of this research is to verify whether or not Universities of

    Social Movements stand up to decolonizing and emancipating experiences. To answer

    this question, the text is grounded in theories that work with decolonizing perspectives and with the idea of Boaventura de Sousa Santos Sociology of Absences and Emergences. These theories are used as a way to invest in a concept of education that inherits Paulo Freires popular education principles, adding ideas of interculturality and intercultural translation. The thesis engages with the idea of Universities of Social Movements as promoters of this other education. We chose to perform case studies of four very different Universities of Social Movements in order to verify hypotheses of our research. The methodological instruments used were: participant observation, semi-

    structured interviews and documentary analyses. The four case studies refer to the Escola de Formao de Educadores(as) Sociais in Recife, Brazil, the Escola Nacional Florestan Fernandes of the Brazilian Movement of Landless Rural Workers, the Universidad de la Tierra linked to the Zapatista movement of Chiapas in Mexico, and the Popular University of Social Movements. For each case I discussed the context and

    history; and the structure and functioning of the initiative in question. After this contextualization, the cases became developed from three units of analysis: knowledge, practices and subjects. At the end of the thesis there is a chapter devoted to a reflection which views to integrate the aforementioned scenarios. Within this reflection a

    comparison is made between the experiences studied in order to find similarities and differences, and to better contemplate the University of Social Movements as a concept.

    The thesis concluded that the University of Social Movements experiences are very pluralistic and experimental, that is to say, they are initiatives which are finding their path as the journey continues.

    Key-words: University of Social Movements, Universities, Social Movements, Initiatives, Decolonization.

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    ndice Resumo ......................................................................................................................... ii

    Abstract ....................................................................................................................... iii

    ndice ........................................................................................................................... iv Agradecimentos .......................................................................................................... vii

    Lista de Tabelas e Imagens .......................................................................................... ix

    Lista de Acrnimos ...................................................................................................... xi

    INTRODUO ............................................................................................................ 1 1. PROPOSTAS DESCOLONIAIS: SABERES LOCAIS, ARTICULAES GLOBAIS ..................................................................................................................... 9

    1.1 Colonialidade a outra face da modernidade ....................................................................... 9

    1.1.1 Colonialidade do poder .............................................................................................. 13

    1.1.2 Colonialidade do ser ................................................................................................... 19

    1.1.3 Colonialidade do saber ............................................................................................... 21

    1.2 Cincia descolonial: localizando os saberes ...................................................................... 29

    1.3 Sociologia das Ausncias e das Emergncias .................................................................... 33

    1.3.1 A Traduo Intercultural ............................................................................................ 37

    2. APOSTAR NA EDUCAO .............................................................................. 41 2.1 Um repensar das prticas educacionais ............................................................................ 41

    2.2 Educao Popular .............................................................................................................. 47

    2.3 Pedagogia da aposta ......................................................................................................... 52

    3. METODOLOGIA ................................................................................................... 57

    3.1 Sociologia das Ausncias e das Emergncias de Universidades dos Movimentos Sociais 57

    3.2 As hipteses ...................................................................................................................... 63

    3.3 Instrumentos e percursos metodolgicos......................................................................... 69

    4. UNIVERSIDADES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS ............................................. 77

  • v

    4.1 Universidades: instituies de saberes ............................................................................. 77

    4.2 O conceito de Movimentos Sociais ................................................................................... 85

    4.3 As antigas Universidades Populares .................................................................................. 91

    4.4 As Universidades dos Movimentos Sociais ....................................................................... 98

    5. A ESCOLA DE FORMAO DE EDUCADORES SOCIAIS NO RECIFE ........ 104 5.1 O contexto: ONGs na cidade do Recife ........................................................................... 104

    5.2 Histria da EFESR ............................................................................................................. 109

    5.3 Estrutura e funcionamento ............................................................................................. 118

    5.4 Saberes ............................................................................................................................ 124

    5.5 Prticas ............................................................................................................................ 130

    5.6 Sujeitos ............................................................................................................................ 136

    6. ESCOLA NACIONAL FLORESTAN FERNANDES ........................................... 141

    6.1 O Contexto: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ................................... 141

    6.2 Histria ............................................................................................................................ 153

    6.3 Estrutura e Funcionamento ............................................................................................ 161

    6.4 Saberes ............................................................................................................................ 169

    6.5 Prticas ............................................................................................................................ 176

    6.6 Sujeitos ............................................................................................................................ 183

    7. UNIVERSIDAD DE LA TIERRA ........................................................................ 190

    7.1 O contexto: o Movimento Zapatista ............................................................................... 190

    7.2 Histria da Unitierra ........................................................................................................ 207

    7.3 Estrutura e funcionamento ............................................................................................. 213

    7.4 Saberes ............................................................................................................................ 216

    7.5 Prticas ............................................................................................................................ 221

    7.6 Sujeitos ............................................................................................................................ 226

    8. UNIVERSIDADE POPULAR DOS MOVIMENTOS SOCIAIS ........................... 229

    8.1 O contexto: o Frum Social Mundial ............................................................................... 229

  • vi

    8.2 Histria da UPMS ............................................................................................................ 236

    8.3 Estrutura e Funcionamento ............................................................................................ 243

    8.4 Saberes ............................................................................................................................ 249

    8.5 Prticas ............................................................................................................................ 253

    8.6 Sujeitos ............................................................................................................................ 259

    9. CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 265 9.1 Reflexo integrada dos casos .......................................................................................... 265

    9.2 Reflexes finais ................................................................................................................ 282

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................................... 294 Sites ....................................................................................................................................... 305

    Documentos consultados ...................................................................................................... 306

    Entrevistas ............................................................................................................................. 307

    ANEXOS .................................................................................................................. 309

    Anexo 1: Lista de Universidades dos Movimentos Sociais: ................................................... 309

    Anexo 2: Apndice metodolgico ......................................................................................... 311

    Anexo 3: Parte do folder da ENFF ......................................................................................... 319

    Anexo 4: Carta Campanha da Associao de Amigos da ENFF ............................................. 321

    Anexo 5: Esquema diacrnico da Unitierra ........................................................................... 325

    Anexo 6: Carta de Princpios da UPMS .................................................................................. 326

    Anexo 7: Lista Participantes das oficinas da UPMS ............................................................... 327

  • vii

    Agradecimentos A escrita de uma tese um processo que vai muito alm das leituras feitas, da

    pesquisa de campo e das horas em frente a um computador. So quatro anos de um processo, no qual muitas pessoas participaram diretamente ou indiretamente. Espero, com esses agradecimentos, dar o devido reconhecimento de quo imprescindvel foi a participao de cada um e de todos os mencionados no processo de feitura da tese. A

    essas e a outras pessoas tambm importantes, eu agradeo. Obrigada beb por nos escolher e vir na hora certa, e por colocar a tese em

    perspectiva. Agradeo a Rodrigo, companheiro amado, com quem cotidianamente divido as dificuldades da vida e principalmente multiplico as alegrias. Aos meus pais,

    Abraham e Lcia, que sempre acreditaram em mim e estiverem sempre presentes, mesmo com a distncia fsica. Ao meu irmo querido, Guilherme, amigo de todas as horas e para toda a vida.

    turma de Ps-colonialismos 2007-2008. Carlota, pela sua amizade e pelas observaes sagazes a respeito dos meus escritos, nos seus variados nveis de desenvolvimento. Ao Amigo Marcos, pois alm de um querido Amigo (com a maisculo) ajudou com interessantes reflexes, visto que nossos temas tanto dialogam. Galega, por ser uma super amiga e sempre ter histrias incrveis pra divertir e pra compartilhar. Agradeo tambm a Lucas e a Len, filhos meigos, sbios e lindos da Galega. Ao Paj e a toda a sua famlia iluminada, por transmitir tanta paz e sabedoria.

    Aos grandes amigos feitos em Coimbra: Thaisinha querida, Leo, Juliana, Janana e Marilda. Um agradecimento especial a Oriana, amiga sempre disponvel a ajudar com as impresses dos vrios drafts finais da tese. Agradeo a Caetano, amigo desde Recife, que a vida em Coimbra aproximou, agradeo pela alegria de sempre e pela leitura atenta do captulo sobre a ENFF. Obrigada Pablo, pelas ajudas com o espanhol. Tambm agradeo leitura feita gentilmente pelo Dr. Guillermo, do captulo sobre a Unitierra.

    Agradeo a Lcia pelas dicas experientes a respeito do processo de depsito da tese. Meus sinceros agradecimentos para todos os funcionrios da Universidade de Coimbra envolvidos no processo de depsito e defesa da tese.

    Aos importantes momentos de no pensar na tese: ao grupo das danas circulares; ao forr de toda sexta-feira (um agradecimento especial para o amigo e

  • viii

    sanfoneiro Paulinho); aos camaradas da capoeira (especialmente para Bruno); Maria (professora de yoga); e Cristina (professora de Pilates).

    Agradeo a Maria Jos e a Accio, por estarem sempre disponveis para ajudar e por serem uma excelente companhia nos longos dias de estudo na Biblioteca Norte/Sul do CES. Lassalete, por ser sempre prestativa e eficiente.

    Aos professores do Centro de Estudos Sociais em Coimbra com os quais dialoguei de maneira mais prxima: ao Prof Antonio Sousa Ribeiro, ao Prof Clemens

    Zobel, Prof Margarida Calafate e Prof Silvia Maeso. Agradeo, muito sinceramente, Prof Maria Paula Meneses, que sempre estava disposta a ouvir as

    minhas angstias e a responsvel, no processo de orientao desta tese, para que as angstias se transformassem em respostas e caminhos a seguir. Um agradecimento mais que especial para dedicao do Prof Boaventura de Sousa Santos na orientao da tese, o qual a teoria foi inspiradora e possibilitadora da tese. Muito obrigada Paula,

    muito obrigada Prof Boaventura por acreditarem no meu tema e por me orientarem! Agradeo a todos que fazem ou fizeram parte da Escola de Formao de

    Educadores (as) Sociais no Recife, da Escola Nacional Florestan Fernandes, da Universidade da Terra e da Universidade Popular dos Movimentos Sociais. por ter tido a oportunidade de conhecer experincias como essas que acredito tanto na fora das Universidades dos Movimentos Sociais.

    A CAPES por garantir os subsdios materiais para a realizao desta pesquisa.

  • ix

    Lista de Tabelas e Imagens

    Foto 1: Formatura da primeira turma do Curso de Formao de Educadores Sociais........................................................................................................................... 112

    Foto 2: Fachada da Escola de Formao Profissional Lus Tenderini..................................................................................................................... 117

    Foto 3: Seminrio de Economia Solidria com o formador Euclides Mance........................................................................................................................... 118

    Foto 4: Feitura do po................................................................................................... 129

    Foto 5: Muro da ENFF................................................................................................. 160

    Foto 6: Prdio de alojamentos da ENFF...................................................................... 160 Foto 7: Refeitrio da ENFF.......................................................................................... 161

    Foto 8: Auditrio da ENFF........................................................................................... 162

    Foto 9: Sala de aula da ENFF....................................................................................... 162

    Foto 10: Biblioteca da ENFF........................................................................................ 163

    Foto 11: Ciranda da ENFF............................................................................................ 163

    Foto 12: Escola Autnoma Zapatista............................................................................ 205

    Foto 13: Mural da Unitierra.......................................................................................... 207

    Foto 14: Unitierra......................................................................................................... 213

    Foto 15: Sala de seminrio da Unitierra....................................................................... 222

    Foto 16: Auditrio da Unitierra.................................................................................... 224

    Foto 17: Intervalo oficina UPMS Belo Horizonte..................................................... 247

    Foto 18: Oficina UPMS Belo Horizonte................................................................... 260

    Grfico 1: ndice de Analfabetismo em Chiapas 1990-2007....................................... 190

    Ilustrao 1: Sany em Ouvia (2007: 20) ................................................................. 189 Ilustrao 2: Vos (2001: 42-3) ..................................................................................... 194 Ilustrao 3: Vos (2001: 28-9) ..................................................................................... 194

  • x

    Quadro 1: Analtico das hipteses gerais....................................................................... 63 Quadro 2: Unidades de anlise e perguntas a ser respondidas....................................... 65 Quadro 3: Contexto e histria....................................................................................... 265 Quadro 4: Estrutura e funcionamento I........................................................................ 268 Quadro 5: Estrutura e funcionamento II....................................................................... 273 Quadro 6: Saberes I...................................................................................................... 273 Quadro 7: Saberes II..................................................................................................... 274 Quadro 8: Saberes III.................................................................................................... 276 Quadro 9: Prticas pedaggicas I................................................................................. 276 Quadro 10: Prticas pedaggicas II.............................................................................. 278 Quadro 11: Sujeitos I.................................................................................................... 278 Quadro 12: Sujeitos II................................................................................................... 280 Quadro 13: Sujeitos III........................................................................................................ 281

    Quadro 14: Analtico das hipteses gerais saberes I................................................. 282 Quadro 15: Analtico das hipteses gerais saberes II................................................ 282 Quadro 16: Analtico das hipteses gerais prticas I................................................. 284 Quadro 17: Analtico das hipteses gerais prticas II............................................... 284 Quadro 18: Analtico das hipteses gerais sujeitos I................................................. 286 Quadro 19: Analtico das hipteses gerais sujeitos II................................................ 286 Quadro 20: Algumas concluses.................................................................................. 287

    Tabela 1: Lnguas indgenas mais falados em Chiapas................................................ 193

    Tabela 2: FSM.............................................................................................................. 231

  • xi

    Lista de Acrnimos

    ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas

    CEBIs Centro de Estudos Bblicos

    CEPATEC Centro de Formao e Pesquisa do Contestado

    CLOC Coordenao Latino-Americana de Organizaes do Campo

    CONAI Comisso Nacional de Intermediao

    CPT Comisso Pastoral da Terra

    CTC Centro de Trabalho e Cultura

    CUT Central nica de Trabalhadores EFESR Escola de Formao de Educadores/as Sociais no Recife

    EIV Estgio Interdisciplinar de Vivncia

    ELAA Escola Latino-Americana de Agroecologia

    ENFF Escola Nacional Florestan Fernandes

    CIESAS Centro de Investigaes e Estudos Superiores em Antropologia Social

    EZLN Exrcito Zapatista de Libertao Nacional

    FMI Fundo Monetrio Internacional

    FSM Frum Social Mundial

    G 8 Grupo dos 8 pases mais industrializados e desenvolvidos

    IEJC Instituto de Educao Josu de Castro

    IES Instituies de Ensino Superior

    IFIL Instituto de Filosofia da Libertao

    IFPR Instituto Federal do Paran

    IPSIA Istituto Pace Sviluppo Innovazione ACLI, ou seja, Instituto Paz Desenvolvimento Inovao ACLI onde ACLI significa Associazioni Cristiane Lavoratori Italiani - Associaes Crists de Trabalhadores Italianos.

  • xii

    ITERRA Instituto Tcnico de Capacitao e Pesquisa da Reforma Agrria

    MAB Movimento dos Atingidos por Barragens

    MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    MSU Movimento dos Sem Universidade

    NB Ncleo de Base

    NMSs Novos Movimentos Sociais

    ONG Organizao No Governamental

    PT Partido dos Trabalhadores

    UFPE Universidade Federal de Pernambuco

    UMS Universidades dos Movimentos Sociais

    Unitierra Universidad de la Tierra

    UPMS Universidade Popular dos Movimentos Sociais

  • 1

    INTRODUO Deparei com uma diversidade e recente proliferao de experincias de

    educao popular que adotam para si o nome universidade1. O estudo tem como principal objetivo analisar se as universidades propostas pelos movimentos sociais so experincias descolonizadas e de emergncia emancipatria, atravs da anlise dos saberes, das prticas e dos sujeitos envolvidos de quatro casos concretos dessas universidades.

    Por que estudar as Universidades dos Movimentos Sociais? Porque so apostas

    de vidas melhores. So apostas que no se conformam com o presente de excluso. So apostas que no apenas idealizam um futuro melhor, mas que trazem melhorias prticas

    no aqui e agora dos seus participantes, ou seja, so apostas presentes (ou seriam presentes em forma de apostas?). A maneira que as Universidades dos Movimentos Sociais encontraram de se contrapor excluso no foi exigindo a incluso, mas sim a construo de outras lgicas, nas quais a prpria ideia de excluso no vigora.

    A ideia de universidade popular est no imaginrio dos movimentos sociais. Quando os movimentos sociais fomentam espaos de produo e difuso de saberes, que denominam de universidade, isso indica uma apropriao e uma resignificao do termo universidade. Significa desafiar o conceito de universidade e apostar na ideia de universidade como espao de saberes, prticas e sujeitos descoloniais, ou seja, saberes, prticas e sujeitos que combatem a colonialidade, que se contrapem s variadas formas de opresso. Dessa maneira, a principal pergunta da pesquisa: as universidades dos

    movimentos sociais so experincias descolonizadas e de emergncia emancipatria?

    Como so apostas, no h certezas, no h receitas a seguir, no h modelos, o que h so experincias. Experincias que, cientes de suas condies de apostas, passam

    a caminhar perguntando, como dizem os zapatistas. Ou seja, so processos em curso, que trilham o seu caminho ao caminhar. Os movimentos sociais esto em movimento, ou seja, os movimentos sociais no so, eles esto sendo, diria Paulo Freire. A educao tambm um processo que exige constante avaliao e reformulao. Assim, no teria como espaos educativos dos movimentos sociais no fossem espaos de constante experimentalismo, de criao constante. Sem um mapa para guiar, as

    1 No anexo 1 est uma lista dessas experincias.

  • 2

    Universidades dos Movimentos Sociais, muitas vezes, se perdem; mas por saberem que

    no h o caminho certo a seguir, estas experincias esto constantemente reajustando as suas rotas.

    Segundo Santos (2009.a: 45): A aposta a metfora da construo precria, mas minimamente credvel, da possibilidade de um mundo melhor, ou seja, a possibilidade de emancipao social [...]. A educao em si prenhe de futuro, de desejos de mundos possveis melhores, pois educar significa formar para a sociedade que queremos. E os movimentos sociais so em si agentes da emancipao social, ou seja, confiam que possvel transformar a realidade opressora. Dessa maneira as Universidades dos Movimentos Sociais apostam duplamente: acreditam na educao como um dos caminhos para a transformao social e confiam nos movimentos sociais como sujeitos desta transformao. Estas universidades so espaos que no apenas pretendem formar para outro mundo, mas so tambm em si prticas de outros mundos

    possveis2.

    As universidades dos movimentos sociais so iniciativas de educao no

    formal, ou seja, no escolar, ou no legitimada pelo Estado, e que em sua maioria adotam a filosofia e a metodologia da educao popular. So espaos de formao que servem aos interesses dos movimentos sociais.

    As universidades dos movimentos sociais so experincias possveis que so

    invisibilizadas ou descartadas por uma razo indolente. A razo indolente, um conceito de Santos (2002), inspirado em Leibniz, descarta a multiplicidade de experincias disponveis e possveis. A razo indolente o saber que indiferente a tudo aquilo que no lhe convm, ou seja, que invisibiliza o que ameaa a manuteno do status quo. O lcus privilegiado da razo indolente a universidade convencional. Nesta tese, universidade convencional se refere ao ensino superior legitimado pelo Estado. No entanto, a razo indolente se estende a muitas outras instituies e, por outro lado, a partir da universidade convencional que muito se produz no sentido de revelar as

    intenes opressoras da razo indolente. Deste modo, a Sociologia das Ausncias e das Emergncias (Santos, 2006), teoria surgida na universidade convencional, possibilita a este estudo analisar as universidades dos movimentos sociais como experincias

    2 Outro mundo possvel um dos motes do Movimento Zapatista Mexicano e do Frum Social

    Mundial. Pluralizar essa idia, ou seja, pensar em outros mundos possveis, visa enfatizar a diversidade de saberes e experincias em dilogo.

  • 3

    possveis que apostam em outras formas de fazer educao, que no seja a que perpetue a razo indolente.

    Por ser uma Sociologia das Ausncias e das Emergncias, este trabalho vai de encontro razo indolente, que se pretende neutra. A premissa que no h epistemologias neutras e as que clamam s-lo so as menos neutras (Santos, 2006:154) exige que nesta introduo eu me posicione3. De onde vim, onde estou e para onde pretendo ir determinam a construo do tema que agora proponho. Venho de um pas, o

    Brasil, onde a desigualdade social gritante. Partindo dessa realidade que clama por transformaes, percorro a minha trajetria acadmica e poltica em busca de caminhos de superao. Desde a graduao que me interesso pela Sociologia da Educao. A educao me fascina por se apresentar como possibilidade de transformao social. Na maioria dos casos, no entanto, a educao serviu e serve muito mais reproduo do que contestao da realidade de injustias sociais, como mostraram os clssicos trabalhos sociolgicos de Althusser (1996) e de Bourdieu e Passeron (1982).

    H casos, porm, de pedagogias emancipadoras e foi por acreditar nesse tipo de

    educao que me engajei profissionalmente e politicamente na construo da Escola de Formao de Educadores(as) Sociais no Recife, uma experincia de educao popular construda com movimentos sociais locais. Foi a militncia nesse espao que me despertou o interesse pelas universidades propostas pelos movimentos sociais. Em

    vrios momentos, nesta iniciativa, foi discutida e pensada a prpria Escola como um embrio de um espao de produo e difuso de conhecimentos, uma universidade que

    correspondesse aos anseios dos movimentos sociais que fizessem parte dela. O programa de doutorado em Ps-colonialismos e cidadania global da

    Universidade de Coimbra me ajudou na construo da temtica. As teorias ps-coloniais discutem e analisam criticamente os sistemas de produo de conhecimentos, procurando estudar os saberes e experincias silenciados pela relao colonial-capitalista. As perspectivas ps-coloniais se caracterizam pela tentativa de valorizao

    de narrativas outras que no a narrativa totalizadora eurocntrica. Nesse sentido, atravs da visibilizao da pluralidade que os estudos ps-coloniais conformam propostas de teorias contra-hegemnicas. Dessa forma, o presente estudo sobre espaos

    3 A ideia de posicionalidade muito importante nas teorias ps-coloniais e se refere explicitao do

    ponto de partida.

  • 4

    de formao e articulao de saberes contra-hegemnicos se enquadra nas teorias ps-

    coloniais.

    O para onde pretendo ir ou quais so os meus principais objetivos com a pesquisa tambm fundamental para a compreenso de como o trabalho foi construdo. O meu objetivo principal com o trabalho perceber se as universidades propostas pelos movimentos sociais so espaos descolonizados e de emergncia emancipatria. O estudo detido de quatro casos permitiu um melhor conhecimento das universidades

    propostas pelos movimentos sociais. Ao tentar perceber quais so os saberes, prticas e sujeitos envolvidos e mobilizados nessas alternativas pretendo colaborar com a consolidao e sucesso das universidades dos movimentos sociais estudadas, com uma anlise que seja original e til no s para a academia, mas tambm para os sujeitos pesquisados.

    Escolhi quatro experincias de universidades dos movimentos sociais para fazer

    a pesquisa de campo: a Escola de Formao de Educadores (as) Sociais na cidade de Recife no Brasil; a Escola Nacional Florestan Fernandes do Movimento dos

    Trabalhadroes Rurais Sem Terra em So Paulo, Brasil; a Universidade da Terra em Chiapas, no Mxico; e a Universidade Popular dos Movimentos Sociais, que est sendo discutida e implementada em diferentes pases. Para estudar as Universidades dos Movimentos Sociais parto de trs perguntas bsicas: o qu, como e quem; as quais

    respectivamente so as unidades de anlise: os saberes, as prticas e os sujeitos. Em cada caso, antes de me dedicar a essas unidades de anlise, fao uma contextualizao

    do caso ao expor a gnese, os objetivos, o desenvolvimento, em que sentido se considera uma universidade, a estrutura fsica, a gesto, a manuteno e as atividades desenvolvidas.

    Para desenvolver os quatro estudos de caso, a tese inicia com uma reflexo a respeito das propostas descoloniais que valorizam os saberes locais e as articulaes globais. Nesse primeiro captulo discuto o conceito de colonialidade, assim cunhado por Quijano (2002). O termo enfatiza a continuidade entre o tempo e os espaos coloniais e o tempo e espaos ps-coloniais. O conceito de colonialidade evidencia que as relaes coloniais no se limitam ao domnio econmico-poltico e jurdico-administrativo dos centros sob as periferias, mas tambm uma dimenso epistmica, cultural e racial desse domnio.

  • 5

    Dessa forma, descolonizar colocar-se contra as diferentes formas de

    dominao que existiram e existem e que nos impem uma lgica de pensar. Descolonizar despojar-nos de tudo isso e construir lgicas diferentes. Com a tese pretendo encher de contedo a palavra descolonizao de ideais contra-hegemnicos.

    Como a palavra diz, contra-hegemnico aquilo contrrio, oposto hegemonia. corriqueiro na academia pensar em hegemonia como a dominao a nvel simblico por consentimento, aquilo que torna o escravo cmplice do senhor. No entanto, o

    conceito gramsciano de hegemonia difere, nos Cadernos do crcere, da ideia de dominao. Na realidade, o que uma hegemonia estabelece um complexo sistema de

    relaes e de mediaes. Nesse sentido, hegemonia aparece como uma reapresentao, como uma forma de ler o mundo.

    Para Gramsci (2001), a hegemonia no homognea e pode ser vista como campo de disputa ideolgica. A hegemonia pode (e deve) ser fomentada pela classe subalterna no sentido de substituir a hegemonia dominante. A modificao da estrutura social deve preceder a uma revoluo cultural que, progressivamente, incorpore

    camadas e grupos ao movimento racional de emancipao. Recorrer a Gramsci para explicar o conceito de hegemonia se justifica por

    muitas de suas ideias ainda fazerem sentido e pelo autor ser referncia no uso desse conceito. Assim os oprimidos buscam substituir a hegemonia corrente pela sua

    hegemonia. Pensar em contra-hegemonia justamente como a hegemonia (forma de reapresentar o mundo) dos grupos subalternos. Falo de grupos subalternos e no classes, por acreditar que os aspectos sociais, culturais e polticos somam-se ao fundamental aspecto econmico de dominao.

    A ideia de contra-hegemonia tambm est muito prxima a ideia de emancipao, que ser recorrente na tese. O conceito de emancipao que defendo o definido por Boaventura de Sousa Santos:

    No h emancipao em si, mas antes relaes emancipatrias. Relaes que criam um nmero cada vez maior de relaes cada vez mais iguais. As relaes emancipatrias desenvolvem-se, portanto, no interior de relaes de poder, no como o resultado automtico de uma qualquer contradio essencial, mas como resultados criados e criativos de contradies criadas e criativas. S atravs do exerccio cumulativo das permisses ou capacitaes tornadas possveis pelas relaes de poder (o mundo abertura de novos caminhos) se torna vivel deslocar as restries e alterar as distribuies, ou seja, transformar as capacidades que reproduzem o poder em capacidades que o destroem. Assim, uma dada relao emancipatria, para ser eficaz e no conduzir frustrao, tem de se integrar numa constelao de prticas e de relaes emancipatrias (Santos, 2002: 250).

  • 6

    As propostas descoloniais exigem a explicitao do lugar de enunciao do pesquisador, busca estar em sintonia com a perspectiva do colonizado, do oprimido na sua diversidade. Assim, pensa em alternativas, naquilo que a modernidade de matriz ocidental excluiu ou colocou como margem ou invisibilizou. Dessa maneira, possvel dar relevo a temticas e sujeitos que foram invisibilizados, por no se encaixarem numa lgica eurocntrica. Assim, alm de descolonial, este um trabalho de Sociologia das Ausncias e das Emergncia que visibiliza as possibilidades de reao colonialidade imperante.

    A Sociologia das Emergncias contrai o futuro ao tornar prticas que, num estudo social guiado por uma razo indolente, seriam imaginveis apenas num futuro longnquo, no entanto, so vividas na atualidade, so possibilidades concretas. A Sociologia das Emergncias substitui o vazio do futuro por um futuro de possibilidades plurais e concretas, utpicas e realistas, que se constroem no presente atravs das

    atividades de cuidado. O trabalho pretende ser uma Sociologia das Emergncias, ou seja, estar atenta s possibilidades de transformao social, concretas e plurais, utpicas e realistas (Santos, 2006). um trabalho sobre como o mundo pode se enriquecer atravs da ampliao de saberes, prticas e agentes.

    O segundo captulo um repensar das prticas educacionais. Primeiro h uma conceitualizao da educao e de como foi definida a diferena entre educao formal,

    no formal e informal, a partir de uma lgica de Estado monocultural. A crtica a essa lgica feita por Illich (2007) que prope a desescolarizao da sociedade, ou seja, o autor defende uma desinstitucionalizao. Ele afirma que a sociedade no tem confiana em algo que no seja escolarizado, ou seja, independente, que no possua um diploma ou um aval do Estado. Muitas das Universidades dos Movimentos Sociais buscam a sua legitimidade no nas instituies estatais, mas nos movimentos sociais. So experincias que adotam a educao popular, e por isso que uma seo do segundo captulo est dedicada para esse tema. A teoria de Paulo Freire foi enriquecida com

    produes de tericos contemporneos e no sentido de complementar a teoria de educao popular de Paulo Freire que Boaventura de Sousa Santos prope conceitos como o de traduo intercultural. A teoria de Boaventura traz importantes contributos

    para o repensar das prticas educacionais e inspirada no autor que desenvolvo a ideia de pedagogia da aposta.

  • 7

    No terceiro captulo discorro a respeito da metodologia da pesquisa. A

    sustentao metodolgica parte da Sociologia das Ausncias e das Emergncias, teoria de Boaventura de Sousa Santos (2006). Essa perspectiva metodolgica o que permite estudar o experimentalismo e a diversidade das Universidades dos Movimentos Sociais, lidando com a dificuldade de conceituar e escolher os casos para melhor abarcar o que a ideia de Universidades dos Movimentos Sociais propem. As tcnicas de pesquisa utilizadas foram a observao participante, a entrevista e a anlise documental. O

    corpus da pesquisa explicitado e as categorias de anlise destrinchadas, ao falar dos instrumentos e percursos metodolgicos.

    Antes de me deter nos estudos de caso, necessrio refletir sobre o conceito de Universidades dos Movimentos Sociais. Como me detenho em uma realidade que adota para si o nome de universidade, foi preciso fazer uma reviso terica a respeito desta instituio moderna no quarto captulo da tese. Na parte emprica descreverei como

    aqueles que no tiveram acesso universidade convencional interpretam e/ou subvertem, atravs de propostas prticas, o termo universidade. Neste sentido

    fundamental fazer uma reflexo a respeito deste conceito e da histria das universidades convencionais modernas. Como o contexto da pesquisa basicamente a Amrica Latina, apresento a histria e a atual configurao das universidades convencionais nessa parte do planeta.

    Para discutir o conceito de movimentos sociais, defino o que entendo por globalizao contra-hegemnica. Na contemporaneidade, por ser grande a diversidade

    dos movimentos sociais, h dvidas de que essa diversidade possa ser conduzida a um conceito ou a uma teoria sociolgica nicos. Assim, ao falar sobre os movimentos sociais, busco no a distino entre velhos e novos movimentos sociais, mas sim um conceito que abarque a pluralidade de protagonistas contra-hegemnicos. Dessa maneira, ao descrever os casos empricos, ser necessrio contextualizar os movimentos sociais, pois partir do contexto espacial e temporal que surgem as suas

    reivindicaes. Depois de definir universidade e movimentos sociais, importante apresentar

    um pouco da histria das Universidades dos Movimentos Sociais. As UMSs so

    herdeiras de experincias no convencionais, como o caso das Universidades Populares dos partidos do incio do sculo XX. Por isso, apresento algumas dessas

  • 8

    Universidades Populares, para ento me deter nas experincias contemporneas de

    Universidades dos Movimentos Sociais. Passo ento a apresentar os estudos de casos. Ao falar de cada caso, primeiro

    preciso contextualiz-lo. Dessa maneira, na primeira parte do captulo cinco, referente a experincia da Escola de Formao de Educadores/as Sociais no Recife (EFESR), descrevo a cidade do Recife e as entidades envolvidas na construo da EFESR. Inicio o captulo sobre a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) falando a respeito do MST. A Universidade da Terra est intimamente vinculada com o Movimento Zapatista e, desta maneira, contextualizo a experincia falando a respeito do EZLN. No captulo

    da Universidade Popular dos Movimentos Sociais, o contexto refere-se ao Frum Social Mundial, onde nasceu a proposta. Em cada caso, depois de contextualizar, passo a descrever a histria e em seguida a estrutura e o funcionamento da universidade em questo. Finalizo cada um dos quatro captulos empricos com uma anlise dos saberes,

    prticas e sujeitos luz da Sociologia das Ausncias e das Emergncias e da teoria descolonial.

    A discusso sobre saberes ressalta a multiplicidade de saberes contra a hegemonia do pensamento moderno ocidental. Interessa discutir o conceito de ecologia dos saberes. Sobre as prticas pedaggicas, importante discutir a educao popular e a ideia de traduo de saberes. E por fim, a categoria sujeitos fornecer elementos para pensar quem so os movimentos sociais, e como estes atores participam e se articulam

    nas Universidades dos Movimentos Sociais atravs da discusso de conceitos como o de

    essencialismo estratgico (Spivak, 1984-5), interculturalidade e rede. Assim, as unidades de anlise foram para onde estava direcionado o meu olhar na pesquisa de campo.

    Na parte final da tese, fao uma reflexo integrada dos casos, ou seja, as quatro experincias so apresentadas de forma conjunta, evidenciando as semelhanas e diferenas em relao a essas questes levantadas. O objetivo desta comparao final enfatizar o carter de experimentalismo das Universidades dos Movimentos Sociais, ao apresentar a diversidade de iniciativas. A concluso da tese revisita os conceitos apresentados no intuito de determinar se os casos apresentados so ou no universidades

    dos movimentos sociais.

  • 9

    1. PROPOSTAS DESCOLONIAIS: SABERES LOCAIS, ARTICULAES GLOBAIS

    1.1 Colonialidade a outra face da modernidade Segundo Santos (2009.c), a modernidade um tempo paradoxal. Um tempo de

    mutaes vertiginosas produzidas pela globalizao, pela sociedade de consumo e pela sociedade de informao. Mas, ao mesmo tempo em que um tempo de grandes

    transformaes tambm um tempo de estagnao, parado na impossibilidade de pensar a transformao social, radical.

    Nunca foi to grande a discrepncia entre a possibilidade tcnica de uma sociedade melhor, mais justa e mais solidria e a sua impossibilidade poltica. Esse tempo paradoxal cria-nos a sensao de estarmos vertiginosamente parados (Santos, 2009.c: 15).

    A suposta perenidade do presente aposta todas as possibilidades de transformao em um futuro longnquo. Nessa perspectiva, a soluo dos problemas se encontra sempre no futuro. Com a valorizao do futuro foi concebida a ideia de progresso como uma das propulsoras do processo de modernizao.

    Santos (2006) afirma que no podemos voltar a pensar a transformao social e a emancipao sem reinventarmos o passado. Atravs da parbola do Angelus Novus feita por Walter Benjamin, a partir de um quadro de Paul Klee, Santos argumenta ser necessria outra teoria da histria que devolva ao passado a sua capacidade de revelao, um passado que se reanime na nossa direo pela imagem desestabilizadora que nos fornece do conflito e do sofrimento humano. Atravs dessas imagens

    desestabilizadoras que ser possvel recuperar a capacidade de espanto e de indignao e de, atravs dela, recuperar o inconformismo e a rebeldia4.

    Os tericos descoloniais fazem uma defesa de uma localizao geopoltica e de um resgate histrico, no sentido dos povos colonizados se libertarem do jugo da modernidade eurocntrica. A modernidade no surge com o Iluminismo, com a Revoluo Industrial e com a Revoluo Francesa, mas sim com as invases das

    Amricas pelos europeus. A modernidade eurocntrica ocultou aquilo que Dussel (2005) chamou de Primeira Modernidade. Nesta perspectiva, a Amrica foi a primeira periferia da Europa e no o Oriente, como sugere o livro Orientalismos de Said (2004). Para os tericos descoloniais no basta uma mudana espacial de perspectiva, 4 O tema do inconformismo e da rebeldia atravs de imagens desestabilizadoras do passado ser retomado

    na tese mais adiante, principalmente na discusso sobre a pedagogia da aposta.

  • 10

    por exemplo, o olhar do Oriente sob o Ocidente, como o estudo de Said pode sugerir,

    mas preciso tambm uma releitura do tempo passado, para uma melhor compreenso da realidade. Desta forma, a Amrica Latina foi parte da modernidade desde o momento de sua constituio, e mais, a posio perifrica que teve ao incio da conformao do sistema-mundo foi crucial para a emergncia e posterior consolidao da racionalidade moderna.

    Mignolo (2005) argumenta como a Europa Ocidental passa a ocupar o papel de centro (nos mapas e nas configuraes de poder e de saber) com a emergncia das ndias Ocidentais, ou seja, com a invaso das Amricas. Assim, Espanha e Portugal representam o comeo da modernidade dentro da Europa (com a expulso dos mouros) e, ao mesmo tempo, o incio da colonialidade fora da Europa (com o descobrimento da Amrica). Assim, a descoberta das Amricas seria o nascimento do Ocidente5.

    Ao fazer o resgate histrico da modernidade os tericos falam como a partir da

    Amrica um novo espao-tempo se constitui material e subjetivamente: e isso o que fundamenta o conceito de modernidade. No contexto latino americano, esse resgate

    histrico permite-nos perceber que a colonialidade a outra face da modernidade, o que tornou possvel a existncia da modernidade (Quijano, 2002; Dussel, 2001, 2005; Mignolo, 2003.b). A ideia de colonialidade supe a imposio de um sistema de classificao hierrquica de conhecimentos, espaos e pessoas. Quijano (2002) fala em colonialidade do poder que abrangeria os trs mbitos: saberes, prticas e sujeitos. Em seguida, destrincho a ideia de colonialidade em trs dimenses: colonialidade do poder, do saber e do sujeito.

    A colonialidade vai alm dos perodos histricos de colonizao poltica e se refere a situaes de opresso diversas. As experincias coloniais so distintas, mas marcadas por elementos comuns, sendo o principal deles o domnio de uma sociedade metropolitana a uma sociedade colonial. O colonialismo histrico uma experincia totalitria (no sentido de autoritria), e totalizante (abrange toda a sociedade colonial e metropolitana).

    Apesar do colonialismo ser uma experincia totalizante, ele no visto enquanto tal, pela existncia do que Santos (2007.a) chamou de uma linha abissal. A linha abissal uma linha invisvel que distingue as sociedades metropolitanas, caracterizada 5 Coronil (1996) afirma que com a consolidao da hegemonia dos Estados Unidos como poder mundial

    depois de 1945, o Ocidente mudou o seu centro de gravidade da Europa para a Amrica, e os EUA se tornaram a referncia dominante do Ocidente.

  • 11

    como este lado da linha; dos territrios coloniais, representado pelo o outro lado da linha. A diviso tal que o outro lado da linha desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e mesmo produzido como inexistente [...] A caracterstica fundamental do pensamento abissal a impossibilidade da copresena dos dois lados da linha (Santos, 2007.a: 1-2).

    A negao radical da copresena o que sustenta o conceito de colonialidade como uma forma de exterminar ou marginalizar aquilo que considerado diferente e

    consequentemente inferior. Assim, o outro lado da linha, ou seja, as sociedades colonizadas, composto por uma variedade de sujeitos e experincias desperdiadas, tornadas invisveis. At o tempo do outro lado da linha outro, ou seja, o presente do outro lado da linha tornado invisvel ao ser reconceituado como um passado irreversvel. Como o outro lado da linha invisibilizado e descartado pela linha abissal, a universalidade da razo indolente, razo prpria deste lado da linha, no fica comprometida. Assim, a negao de uma parte da humanidade sacrificial, na medida em que constitui a condio para a outra parte da humanidade se afirmar enquanto

    universal (Santos, 2007.a: 9). s atravs da linha abissal que foi possvel a modernidade. Ou seja, a

    modernidade s existe devido s exploraes feitas ao outro lado da linha, que sistematicamente ocultada. Segundo Santos (2007.a: 9), esta realidade to verdadeira hoje como era no perodo colonial. dessa maneira que as sociedades perifricas ou ex-colnias, bem como as reivindicaes e experincias vivenciadas por minorias

    sociais, continuam sendo tratadas a partir de suas relaes de funcionalidade, semelhanas ou divergncias com aquilo que se definiu como centro.

    [...] Eu vejo o domnio ps-colonial, em termos de trajetria histrica das sociedades que foram submetidos a diferentes formas de dominao tanto colonial e neocolonial. Se as sociedades ps-coloniais surgiram recentemente a partir da experincia de colonizao ou no [...], , na minha opinio, menos relevante do que a sua sujeio continuada a foras metropolitanas. Assim, embora a maioria da Amrica Latina atingiu sua independncia poltica no incio do sculo XIX, manteve-se no que muitos analistas consideram ser uma condio neocolonial; sua transformao recria relaes coloniais e de dependncia. Eu entendo as relaes coloniais e neocoloniais como um articulao orgnica das relaes internacionais e domsticos, e no como uma imposio externa. [...] Ps-colonialismo aparece como uma espcie de eufemismo, que ao mesmo tempo revela e disfara as formas contemporneas do imperialismo6 (Coronil, 1992, 101-2).

    6 Eu traduzi todas as citaes de textos em ingls e em espanhol que aparecem na tese. Desta forma, as

    tradues so de minha responsabilidade e no sero indicadas no decorrer do texto. Assim, toda a citao de referncias bibliogrficas que esto em ingls e em espanhol foram traduzidas por mim.

  • 12

    Desta forma, os estudos ps-coloniais esto interessados em compreender tanto

    o passado colonial como o presente neocolonial. Buscam ultrapassar a negligncia do pensamento moderno perante a heterogeneidade de relaes, povos e crenas que vivem no interior, seja das grandes metrpoles globais, seja em pases e cidades perifricas. Portanto, os estudos ps-coloniais objetivam visibilizar o que foi periferizado pelas referncias centrais epistmicas da modernidade eurocntrica. Dessa forma, o pensamento ps-colonial pretende ser um pensamento ps-abissal, consciente da existncia das linhas abissais e que procura valorizar os saberes, os sujeitos e as prticas que esto do outro lado da linha.

    A linha abissal no divide apenas as antigas metrpoles das antigas colnias. No interior das sociedades existem linhas abissais. O colonialismo interno, conceito destrinchado por Pablo Gonzlez Casanova (2006), uma forma de manifestao da linha abissal no interior de um Estado-Nao. Mesmo as antigas colnias que passaram por guerras de independncia de suas metrpoles, mantm com as antigas populaes nativas as mesmas ou parecidas relaes de explorao dos antigos colonizadores.

    A verso conservadora do colonialismo interno nega ou oculta a luta de classes e a luta anti-imperialista, isolando cada etnia e exaltando a sua identidade como forma de aumentar o seu isolamento. Outra forma conservadora de entender o colonialismo interno sustenta que, de uma maneira ou de outra, o colonialismo interno, em caso de existir, chegar ao fim mediante o progresso, o desenvolvimento, a modernidade, pois os que sofrem com o colonialismo interno se encontram em etapas anteriores da

    humanidade (primitivas ou atrasadas) (Casanova, 2006). Ao aprofundar o conceito de colonialidade do poder retomarei essas ideias.

    Segundo a perspectiva de Casanova (2006) o colonialismo interno deve ser entendido como profundamente ligado s classes sociais, ou seja, aqueles que sofrem com o colonialismo interno so, na sua maioria, das classes sociais menos abastadas. Outro ponto que o autor defende que a luta contra o colonialismo interno coincide com a luta por um Estado-nao multitnico, pelo poder de um Estado de todo o povo ou de todos os povos, ou por um poder alternativo socialista que se construa desde os movimentos de trabalhadores, de campesinos, de populaes urbanas (Casanova, 2006: 416).

  • 13

    1.1.1 Colonialidade do poder

    Restrinjo a ideia de colonialidade do poder dominao de uma lgica hierrquica, excludente e opressora no padro das relaes sociais institucionalizadas. a vertente que mais se aproxima com as prticas de dominao econmicas capitalista. Assim, a colonialidade do poder se concretiza de diferentes formas, por exemplo: colonialismo interno, governos indiretos7, prticas autoritrias e discriminadoras.

    A colonialidade do poder a responsvel pela pobreza material das populaes postas margem.

    A palavra pobreza , sem dvida, uma palavra-chave do nosso tempo, extensivamente usada e abusada por todo mundo. Grandes quantias de dinheiro so gastas em nome dos pobres. Vrios livros e conselhos de especialistas continuam a oferecer solues para os problemas dos pobres. Bastante estranhamente, no entanto, ningum, incluindo os beneficirios propostos dessas atividades, parecem ter uma clara, e partilhada, viso da pobreza. Por alguma razo, quase todas as definies dadas palavra so construdas em torno do conceito de falta ou deficincia. Essa noo reflete apenas a relatividade bsica do conceito. O que necessrio e para quem? E quem qualificado para definir tudo isso? (Majid Rahnema apud Escobar, 1995: 21).

    Esta citao aparece no interessante livro de Arturo Escobar (1995) que desconstri o conceito de desenvolvimento. Segundo o autor, o desenvolvimento atingiu um status de certeza no imaginrio social e passou a ser defendido pelas mais variadas correntes polticas. De acordo com Sachs (2001) os pases do Sul proclamaram o desenvolvimento como sua aspirao primeira, depois de haverem sido liberados de sua

    subordinao colonial. Todo esforo se justifica para alcanar o desenvolvimento. Os EUA aparecem como um farol, iluminado o que deve ser o desenvolvimento.

    Desde 1950, o discurso e a estratgia desenvolvimentista s produziu o seu oposto: mais pobreza. As estratgias para superarem a pobreza so, na sua grande maioria, mecanismos e procedimentos que visam a adequao das populaes pobres a um modelo preexistente que abarca os padres da modernidade. A agenda secreta do desenvolvimento, no outra coisa que no a ocidentalizao do mundo. Por isso, no o fracasso do desenvolvimento que se tem que temer, mas o seu xito (Sachs, 2001).

    A pobreza em escala global foi uma descoberta ps Segunda Guerra Mundial. A pobreza macia, no senso moderno, s apareceu quando o mercado econmico quebrou

    os laos comunitrios e privou milhes de pessoas do acesso terra, gua e a outros recursos. Com a consolidao do capitalismo, a pauperizao sistemtica se tornou 7 Um exemplo de governo indireto so as exigncias que organismos multilaterais impem a Estados

    perifricos. As exigncias do FMI para reduzir os gastos em polticas sociais nos pases da Amrica Latina, nos princpios da dcada de 90, atravs de uma lgica neoliberal, um exemplo concreto.

  • 14

    inevitvel. A pobreza tambm resultado de uma homogeneizao discursiva, que faz

    com que uma pluralidade de realidades seja empacotada na categoria: Terceiro Mundo. como se o Terceiro Mundo e as suas pessoas existissem para serem entendidos atravs de teorias e intervenes vindas de fora. Isso no uma verdade sobre o Terceiro Mundo, mas sim uma forma de exercer o poder que tem consequncias polticas, econmicas e culturais. A colonizao e a dominao das ecologias naturais e humanas do dito Terceiro Mundo leva a uma pauperizao (Escobar, 1995).

    Escobar (1995), no entanto, no nega que existe uma situao de explorao econmica. Tem uma certa materialidade das condies de vida que extremamente

    preocupante e requer um grande esforo e ateno (Escobar, 1995: 53). Para ele, o conceito de desenvolvimento infrutfero para sanar esta situao. O melhor seria olhar pelas formas de conhecimento e de poder que o Ocidente investiu no Terceiro Mundo, esta seria uma maneira de mudar a forma de ver as evidncias materiais da pobreza.

    Desta forma, a lgica desenvolvimentista gerou muita pobreza no mundo e principalmente em suas periferias. Um exemplo concreto da forma que a colonialidade do poder assume na Amrica Latina a questo da terra. Este tema importante pois, pelo menos, duas das experincias de Universidades dos Movimentos Sociais, que estudei, possuem como foco a questo da terra.

    Na Amrica Latina, o perodo do governo colonial at os processos de

    independncia nacional no sculo XIX, tem sido uma histria de expropriao de terras. Atualmente a construo de um sistema agroalimentcio global, caracterizado por uma

    alta concentrao corporativa e uma diviso internacional altamente estratificada do trabalho favoreceu o capital transnacional. A tecnologia de sementes hbridas, os chamados transgnicos, sob a tutela de grandes corporaes, corroborou para a acentuao das desigualdades no campo em favor das grandes multinacionais. A Revoluo Verde8 serviu para uma maior subordinao da periferia com as empresas dos EUA em sementes de alta tecnologia, produtos qumicos e equipes de agricultura.

    Isso tudo gerou pobreza massiva e m-nutrio crnica (Moyo e Yeros, 2008.b). Esse processo teve outra cara, que foram as resistncias. Assim, uma diversidade

    de movimentos rurais, que vo do mais organizado ao mais espontneo, se fortalecem

    na Amrica Latina. So movimentos com a base social no campesinato 8 um amplo programa idealizado para aumentar a produo agrcola no mundo por meio do melhoramento gentico de sementes, uso intensivo de insumos industriais, mecanizao e reduo do custo de manejo.

  • 15

    semiproletarizado, no proletariado sem terra e nos desempregados urbanos. So

    militantes da terra e da reforma agrria, que na maioria dos casos, utilizam da ttica de ocupao de terra. De acordo com Moyo e Yeros (2008.a), apesar dos problemas de mobilizao e articulao poltica, os movimentos rurais constituem, hoje em dia, o ncleo fundamental de oposio ao neoliberalismo e a fonte mais importante de transformao democrtica na poltica nacional e internacional A concluso que chegamos que o ncleo das polticas anti-imperialistas atuais e, por conseguinte do

    internacionalismo laboral genuno se encontra nos campos das periferias, (Moyo e Yeros, 2008.b: 21).

    A este exemplo de colonialidade do poder, a concentrao do uso e da posse de terra, se somam outras desigualdades, que a nvel mundial, vm se acentuando nas ltimas dcadas, aumentando os periferizados ou subalternizados9. O aumento das desigualdades fruto de uma lgica hegemnica, estabelecida em linhas gerais no

    Consenso de Washington. O Consenso de Washington um conjunto de medidas formulado em novembro de 1989 por economistas de instituies financeiras baseadas em Washington, como o Fundo Monetrio Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. O Consenso de Washington se tornou a poltica oficial do FMI em 1990, quando passou a ser receitado para promover o ajustamento macroeconmico dos pases em desenvolvimento. Esse consenso dita regras sociais, culturais, econmicas e polticas. Santos (2001) enumera alguns desses consensos: o estado fraco, a democracia liberal, o primado do direito e do sistema

    judicial. Essas ideias consensuais provm de uma lgica colonial, que homogeneza o

    globo e invisibiliza outras lgicas e outras realidades. Desde o sculo XVI, a hegemonia ideolgica da cincia, da economia, da poltica e da religio do Norte vem sendo disseminada e muitas vezes imposta em todo o globo. Ainda hoje quando pensamos nas homogeneizaes trazidas pela globalizao, os padres partem do mundo ocidental, a

    globalizao aparece como ocidentalizao ou americanizao. Assim o consenso parte de um local dominante e se mascara de consenso global. Dessa maneira, a globalizao hegemnica se caracteriza pelo localismo globalizado e o globalismo localizado:

    9 O termo subalterno pode adquirir um carter pejorativo quando no se enfatiza o carter histrico e no

    natural desta situao, por isso que prefiro o termo subalternizado. Subalternizado aparece aqui como um conceito situacional de sujeitos que esto em posio de sujeio e dominao.

  • 16

    O localismo globalizado implica a converso da diferena vitoriosa em condio universal e a consequente excluso ou incluso subalterna de diferenas alternativas (...) o globalismo localizado consiste no impacto especfico das condies locais produzido pelas prticas e imperativos transnacionais que decorrem dos localismos globalizados (Santos, 2001:71).

    Essa globalizao um processo dirigido no por consenso, mas por coero. Dessa maneira, os aspectos negativos da expanso econmica esto aumentado, gerando um crescimento dramtico da desigualdade social e um igualmente dramtico

    crescimento nas destruies ambientais. Assim, o modelo de globalizao pautado pelo Consenso de Washington passa a ser questionado. Devidos a esses questionamento e

    principalmente depois da crise financeira, que surgiu com mais fora a partir do ano de 2007, o FMI passa a defender a indispensabilidade da capacidade do Estado, nem mesmo que seja para este aguentar possveis crises do sistema. Ou seja, as economias nacionais precisam ser seguras para o investimento do capital financeiro

    internacional.

    O extremismo que as relaes de mercado se impuseram em todos os mbitos da

    vida, fez emergir, de vrios lugares, uma variedade de inconformidades, resistncias rebeldias que foram se reconhecendo entre si e estabelecendo espaos comuns. O fato de compartilhar situaes similares de opresso, suscita uma cumplicidade natural, da diversidade de situaes, de perspectivas de luta, de percepes da realidade e de histrias. No entanto, h tambm uma grande quantidade de divergncias entre os atores neste processo. As diferenas entre eles so enormes, muito mais do que as

    semelhanas, mas esto comeando a se entender como fragmentos de uma grande histria e uma utopia cheia de sentidos, e esto comeando a medir as suas

    possibilidades e a construir sua prpria ideia de futuro (Cecea, 2005: 90). Houve uma variedade e riqueza de manifestaes e processos organizativos que

    permitem comear a falar de um movimento mundial de resistncias (Cecea, 2005). Em julho de 1996, o Exrcito Zapatista de Libertao Nacional (EZLN) convocou o Primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e Contra o Neoliberalismo; as manifestaes de novembro de 1999 contra a Organizao Mundial do Comrcio em Seattle; as manifestaes em Praga contra a reunio do Fundo Monetrio Internacional e do Banco Mundial em setembro de 2000; e as manifestaes contra a reunio do G810

    10

    O G8 ou Grupo dos 8, um grupo internacional que rene os pases mais industrializados e desenvolvidos economicamente do mundo, os pases so: Estados Unidos, Japo, Alemanha, Reino Unido, Frana, Itlia, Canad e Rssia.

  • 17

    em Gnova de julho de 200111; tambm em 2001 o primeiro Frum Social Mundial (FSM)12 em Porto Alegre. E tambm insurreies populares como a de Cochabamba, na Bolvia, em 2000, contra a privatizao da gua; o Movimento dos trabalhadores Sem Terra no Brasil (MST); organizaes pan-amaznicas; luta dos povos afegos e palestinos; revoltas do povo argentino.

    Mais recentemente, finais de 2010 e em 2011, assistimos aos protestos no mundo rabe, que ficaram conhecidos como Primavera rabe. Aconteceram revolues na Tunsia e no Egito, uma guerra civil na Lbia, grandes protestos na Arglia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordnia, Sria, Om e Imen e protestos menores no Kuwait, Lbano, Mauritnia, Marrocos, Arbia Saudita, Sudo e Saara Ocidental. Os protestos tm compartilhado tcnicas de resistncia civil fazendo greves, manifestaes, passeatas e comcios, e tambm fazendo o uso das mdias sociais, como Facebook, Twitter e Youtube, para organizar, comunicar e sensibilizar a populao e a comunidade

    internacional.

    O uso das redes sociais na internet tambm foi o que divulgou o Movimento

    12M em Portugal. 12M porque o manifesto publicado no Facebook incitava participao numa manifestao em Lisboa no dia 12 de Maro de 2011. O Movimento 12M, autointitulado apartidrio, laico e pacfico, reivindica melhorias nas condies de trabalho, principalmente para os jovens. Nesta mesma linha, a Espanha vivenciou protestos que ficaram conhecidos por Movimento 15-M, Indignados e Revoluo Espanhola. Esse movimento, tambm catalizado pelas redes sociais, comeou em 15 de Maio de 2011 e se caracterizou por uma sria de protestos, tambm apartidrio, laico e pacfico, que exigiam Democracia Real J!. As aes extrapolaram a Espanha e

    muitos outros pases organizaram protestos inspirados pelo Movimento 15M, que evidenciavam as dificuldades locais. Seguindo a mesma linha desses protestos em setembro surge em Nova York o movimento Ocupe Wall Street, que vem protestando contra a crise financeira e o poder econmico norte-americano.

    O que Cecea (2005) chamou de movimento mundial de rebeldias, faz coro ao que Boaventura de Sousa Santos, chamou de globalizao contra-hegemnica. Desta forma, tem-se assistido a articulaes diversas dos movimentos sociais e das

    11

    Para mais informaes sobre as manifestaes em Seatle, Praga e Gnova ver a dissertao de Di Giovanni (2007). 12

    O FSM ser discutido como contexto da UPMS, no entanto os princpios do Frum Social Mundial so os da ecologia de saberes e o da traduo intercultural, que j foram discutidos.

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    organizaes da sociedade civil, naquilo que Santos (2001) chamou de globalizao contra-hegemnica. A globalizao contra-hegemnica uma outra forma de globalizao, que fomenta uma luta global contra todas as formas de opresso geradas ou intensificadas pela globalizao hegemnica.

    Segundo, Santos (2009.a), as relaes desiguais de poder atuam sempre em rede e, por isso, raramente um cidado, classe ou grupo vtima de uma delas apenas. Do mesmo modo, a luta contra elas tem de ser em rede, assente em amplas alianas onde

    no possvel identificar um sujeito histrico privilegiado, homogneo, definido a priori em termos de classe social. Dentre as muitas definies para o conceito de rede,

    trago a de Mance (2000.b), terico brasileiro ligado ao movimento de Filosofia da Libertao:

    Trata-se de uma articulao entre diversas unidades que, atravs de certas ligaes, trocam elementos entre si, fortalecendo-se reciprocamente, e que podem se multiplicar em novas unidades, as quais, por sua vez, fortalecem todo o conjunto na medida em que so fortalecidas por ele, permitindo-lhe expandir-se em novas unidades ou manter-se em equilbrio sustentvel. Cada ndulo da rede representa uma unidade e cada fio um canal por onde essas unidades se articulam atravs de diversos fluxos (Mance, 2000.b: 57).

    atravs da fomentao de diversas redes que a globalizao contra-hegemnica no possui uma lgica consensual como a pretendida pela globalizao hegemnica.

    [...] a globalizao contra-hegemnica [...] internamente muito fragmentada na medida em que assume predominantemente a forma de iniciativas locais de resistncia globalizao hegemnica. Tais iniciativas esto enraizadas no esprito do lugar, na especificidade dos contextos, dos atores e dos horizontes de vida localmente constitudos. No falam a linguagem da globalizao e nem sequer linguagens globalmente inteligveis. O que faz delas globalizaes contra-hegemnicas , por um lado, a sua proliferao um pouco por toda a parte enquanto respostas locais a presses globais - o local produzido globalmente e, por outro lado, as articulaes translocais que possvel estabelecer entre elas ou entre elas e organizaes e movimentos transnacionais que partilham pelo menos parte dos seus objetivos (Santos, 2001: 80-81).

    Hoje existem diversas prticas polticas que em geral se reconhecem como de esquerda, mas que no seu conjunto no foram previstas pelas principais tradies tericas da esquerda latino-americana, inspiradas pela teoria marxista, ou inclusive se

    contradiz com elas. que enquanto a teoria de esquerda crtica (de que o marxismo herdeiro) foi desenvolvida a partir de meados do sculo XIX em cinco pases do Norte global (Alemanha, Inglaterra, Itlia, Frana e EUA), e tendo em vista particularmente as realidades das sociedades dos pases capitalistas desenvolvidos, a verdade que as prticas de esquerda mais criativas ocorreram no Sul global e foram protagonizadas por classes ou grupos sociais invisveis, ou semi-invisveis, para a teoria crtica e at mesmo para o marxismo, tais como povos colonizados, povos indgenas, camponeses, mulheres, afrodescendentes, etc (Santos, 2009.b: 8).

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    A diferena do que a teoria de esquerda diz e as prticas de esquerda na Amrica

    Latina fazem aparece no mbito dos sujeitos de esquerda. A teoria crtica marxista pensava que os sujeitos da transformao social seriam uma subjetividade histrica bem delimitada, uma classe operria e seus aliados. Na atualidade, os sujeitos que defendem a transformao social so subjetividades variadas. Para aprofundar esse tema, na seo seguinte, discuto a colonialidade do ser.

    1.1.2 Colonialidade do ser

    A colonialidade do ser um conceito desenvolvido por Maldonado-Torres (2008) a partir de Quijano, Levinas, Fanon e outros filsofos. Quijano (2002) discute como atravs do exerccio do poder surgem categorias que identificam os sujeitos como, por exemplo, as categorias de europeus, ndios e negros. O autor demonstra como o

    poder, naturaliza essas categorias, tornando algumas superiores e outras inferiores. Maldonado-Torres (2008) diz que um ser colonizado foi violentamente separado do ser pensado na Europa, um ser colonizado que visto como inferior. Em

    consequncia, tempo de aprender a liberar-nos do espelho eurocntrico onde a nossa imagem sempre, necessariamente, destorcida. tempo, enfim, de deixar de ser o que no somos (Quijano, 2002: 242).

    Os grandes invisveis ou esquecidos da teoria crtica moderna, os povos indgenas da Amrica Latina ou, quando muito, visveis enquanto camponeses tm sido um dos grandes protagonistas das lutas progressistas das ltimas dcadas no

    continente. As resistncias indgenas sempre existiram, mas num marco que no era o estatal. Na dcada de 1970 e 1980, quando comeam a se organizar em associaes, ONGs, sociedades, etc e reivindicar direitos ao Estado, com o boom de mobilizaes indgenas na Amrica Latina, os tericos vo dizer que surge o movimento indgena e vai caracteriz-lo como um Novo Movimento Social13. No entanto, desde quando os colonizadores chegaram em territrios americanos que os indgenas se mobilizam,

    talvez no to articulados uns com os outros principalmente a nvel nacional e de Amrica Latina, mas se relacionavam com as proximidades e resistiam a sua maneira

    (Santos, 2009.b). A respeito da resistncia dos movimentos indgenas, Santos (2010) afirma que

    comea com a resistncia conquista e s vai terminar com a autodeterminao. So 13

    Discordo da ideia de Novos Movimentos Sociais. Este tema ser aprofundado, mais a frente.

  • 20

    demandas de futuro atravs de demandas de memria. Movimentos indgenas,

    afrodescendentes e campesinos esto do outro lado da linha abissal e subvertem o paradigma moderno-colonial, justamente por no fazer parte desse paradigma. So civilizaes distintas, universos culturais com cosmovises prprias, cujo o dilogo, apesar de tanta violncia e tanto silenciamento, somente possvel atravs da traduo intercultural e sempre com o risco de que as ideias mais fundamentais, os mitos mais sagrados, as emoes mais vitais se perdem no trnsito entre universos lingusticos,

    semnticos e culturais distintos (Santos, 2010). Os povos indgenas, tambm denominados de povos originrios, so os povos

    que habitavam a Amrica antes da colonizao, ou seja, que existem em uma lgica que no condiz com a lgica do Estado moderno-colonial. com a colonizao moderna que surge o conceito de raa, conceito que permite a colonialidade do ser, que vai distinguir o povo europeu dos outros povos de uma forma a inferioriz-los. De acordo

    com Goldberg (1993) a ideia de raa era irrelevante moralmente, normativamente e empiricamente na Grcia. A discriminao na Grcia antiga e na sociedade medieval

    no era racializada. S em 1508 ocorre o primeiro uso da palavra raa e foi a partir desse ponto que a diferena social comea a aumentar para o ponto de ser especificamente racial. Raa o que permite pensar em um no humano ou num

    determinismo biolgico e no cultural e poltico. O autor explica como se passa de um

    discurso sobre a identidade humana e pessoalidade definido religiosamente na Idade Mdia para um racialmente definido (Goldberg, 1993).

    Desta forma, foi o sculo 16 que viu a ascenso do discurso racial. Em 1550, aconteceu o famoso debate de Valladolid entre Sepulveda e Las Casas.

    Sepulveda, um estudioso Aristotlico que traduziu o livro Poltica para o latim, representava os interesses do comrcio e dos conquistadores. Os ndios do Novo Mundo foram amplamente retratados, at mesmo por renomados humanistas espanhis da poca, como uma raa estpida, sem cultura, sem bondade, e acima de tudo incapaz de Cristianismo (Goldberg, 1993: 204).

    Para um aristotlico do sculo 16, a hierarquia, que algo superior domine algo inferior considerada a condio natural. J o missionrio Bartolomeu de Las Casas

    []pelo contrrio e talvez ironicamente sinaliza o incio de uma mudana de discurso que parte da insistncia do princpio religioso e segue para o valor modernista da igualdade individual ... Esta igualdade , em ltima instncia, a capacidade de todos

    indivduos se tornarem cristos (Goldberg, 1993: 205).

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    O conceito de raa serviu e silenciosamente continua a servir, como fronteira

    que constrange a aplicao de princpios morais. Quando o extico da ordem medieval foi colocado em tempos passados ou futuros, o extico no Iluminismo ocupou outra geografia, nomeadamente o Oriente ou o Sul, lugares indicativos de passado. A questo racial est relacionada a outras dimenses como a econmica, cultural, poltica, legal e cultural, mas tambm com preocupaes, projetos e objetivos prprios (Goldberg, 1993).

    Desta forma, na Amrica Latina as questes raciais, no s do indgena, mas tambm do negro, so questes onde a colonialidade est muito presente. As populaes fenotipicamente diferentes da raa branca sofrem fortes processos de excluso e de opresso. Essas populaes, no entanto, resistem a colonialidade de maneira prpria e por isso trazem grandes inovaes nas prticas dos movimentos sociais, se comparado com os movimentos sociais que partem de uma lgica prpria da

    modernidade (os partidos e os sindicatos, por exemplo). O potencial destes movimentos est na possibilidade de renomear os novos

    problemas que se superpe a velhas discriminaes. Ou seja, reinventam as tradies (pr-modernas) e as reinscrevem a luz dos dias atuais. Tal estratgia poderia ser entendida como arcaica, mas tambm podem ser consideradas como um obstculo a formas de dominao modernas. Um exemplo seria quando uma populao indgena

    define a floresta como um ser vivo em relao ntima com os seres humanos que ali habitam e, dessa forma, lutam contra a definio moderna de que a floresta no passaria

    de um recurso explorvel: um territrio divisvel, segundo os parmetros neoliberais de benefcio econmico (Flrez, 2007). Esse tipo de atuao reivindicatria das populaes originrias exige um enfrentamento no s da colonialidade do ser, mas tambm da colonialidade do saber, tema que ser discutido na prxima seo do texto.

    1.1.3 Colonialidade do saber

    A colonialidade do saber o que permite deslegitimar uns saberes e legitimar a suposta supremacia e superioridade de outros. So superiores os saberes de quem est

    em um lugar mais alto na escala hierrquica da colonialidade. um conceito que est muito prximo do conceito de eurocentrismo. A arrogncia de ignorar outros saberes, prpria da razo indolente, pode ser caracterizada como colonialidade do saber. Ou

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    seja, por se considerar numa posio superior e privilegiada em relao aos outros saberes, a razo indolente elimina ou marginaliza os outros saberes.

    Muitas saberes foram abafados por uma epistemologia da cegueira (Santos, 2002). A epistemologia da cegueira feita de um macroparadigma que critica o antigo dentro do mesmo paradigma (a ideia de superao de paradigmas de Kuhn, parte dessa ideia) e nega o que lhe estranho no espao, edificando uma ideia de modernidade no espao e no tempo (Mignolo, 2003.a). A epistemologia da cegueira se relaciona diretamente com o conceito de colonialidade do saber.

    A epistemologia da cegueira considera os outros saberes, que no o da razo indolente, carentes de legitimidade por serem locais. J a cincia seria universal, portanto legtima. O local visto como limitado, monoltico, cristalizado, circunscrito. Assim um no-saber, por no ser til em outros contextos. Na verdade, o que a cincia tradicional hegemnica oculta que a sua pretensa universalidade local. A

    cincia possui um local de enunciao (parte na sua maioria de homens, ricos, brancos, europeus e cristos14). Esse local de enunciao determina a audio e ouve-se s aquilo que conveniente, tornando as outras vozes-saberes irracionais. Ou seja, um contexto especfico que vai definir o que ou no legtimo de ser chamado de saber. [] Os padres epistmicos estabelecidos em nome da teologia, da filosofia e da cincia [eurocntricas] tornaram possvel que fosse negada racionalidade a todas as outras formas de conhecimento (Mignolo, 2003.b: 631).

    A dicotomia saber local e saber universal se repete nos termos tradicional e

    moderno: [] a dicotomia saber moderno/ saber tradicional assenta na ideia de que o conhecimento tradicional prtico, coletivo, fortemente implantado no local, refletindo experincias exticas (Santos, Meneses e Nunes, 2004: 45). Tradio pode ser entendida como sinnimo de razes e de passado. A cincia quando denomina os outros saberes de tradicionais tambm os associam com o passado. Essa associao pode ser perigosa ao produzir a no-contemporaneidade do contemporneo (Santos, 2006: 103), e dar origem a termos pejorativos como o primitivo, o selvagem, o obsoleto, o subdesenvolvido e o pr-moderno.

    O que Santos (1987) chamou de paradigma dominante da cincia, se reveste de uma suposta neutralidade e verdade absoluta, ou seja, da razo indolente. o que 14

    Grosfoguel (2008) define o sujeito colonizador como o homem heterossexual/branco/patriarcal/militar/ capitalista/europeu. Todas so caractersticas que localizam o sujeito promotor de uma suposta cincia universal.

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    Castro-Gmez (2005) designa por ponto zero, onde existe uma pretensa neutralidade, na qual o sujeito que conhece est supostamente livre dos preconceitos. O paradigma dominante da cincia se define pela distino bsica entre conhecimento cientfico e conhecimento do senso comum. A racionalidade cientfica nega o carter racional a todas as formas de conhecimento que no se pautarem pelos seus princpios epistemolgicos e pelas suas regras metodolgicas (Santos, 1987: 10-11). O paradigma emergente, que se identifica com uma cincia contra-hegemnica, tenta dialogar com

    outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas. O paradigma emergente considera fundamental o dilogo com o senso comum, com o saber vulgar e prtico com

    que no cotidiano orientamos nossas aes e damos sentido nossa vida. O paradigma dominante da cincia moderna constitui-se contra o senso comum que considerou superficial, ilusrio e falso. O paradigma emergente procura reabilitar o senso comum por reconhecer nesta forma de saber algumas virtualidades para enriquecer a nossa

    relao com o mundo (Santos, 1987: 55). O paradigma dominante se define em contraposio ao senso comum e para isso

    conta com instituies prprias. Santos e Meneses (2009) afirmam que A epistemologia que conferiu cincia a exclusividade do conhecimento vlido traduziu-se num vasto aparato institucional universidades, centros de investigao, sistema de peritos, pareceres tcnicos e foi ele que tornou mais difcil ou mesmo impossvel o

    dilogo entre a cincia e os outros saberes (p. 11). De tal modo que se torna interessante pensar em como outras instituies, as Universidades dos Movimentos

    Sociais, no caso aqui estudado, podem contribuir com o paradigma emergente; em contraposio com o aparato institucional moderno colonial das universidades convencionais, que em sua maioria, legitimam o paradigma dominante.

    A cincia moderna conquistou o privilgio de definir, no s o que cincia, mas o que conhecimento vlido (Santos, Meneses e Nunes, 2004: 19). No entanto, a vitalidade cognitiva dos outros saberes foi notada pelo paradigma dominante da cincia.

    Os saberes locais foram tratados como matria prima para o avano do conhecimento cientfico. Em uma ordem onde o ns o ocidental [...] a crena que cientificamente no h nada a ser aprendido que venha deles ao menos que j seja nosso ou que venha de ns (Mudimbe,1988: 15), fez com que a diversidade de saberes fosse desperdiada, em sua grande parte.

  • 24

    As Universidades dos Movimentos Sociais no pretendem desconsiderar o

    conhecimento ocidental, mas usar os potenciais que esse tipo especfico de conhecimento apresenta, em conjugao com outros saberes, na consolidao de conhecimentos-emancipaes. Nas universidades que surgem das demandas dos movimentos sociais, est muito presente o ideal do conhecimento como instrumento de emancipao social. Santos (2002) discorre sobre a diferena entre conhecimento-emancipao e conhecimento-regulao. O autor diz que todo conhecimento implica uma progresso entre a ignorncia e o saber.

    O conhecimento-emancipao uma trajetria entre um estado de ignorncia que designo por colonialismo e um estado de saber que designo por solidariedade. O conhecimento-regulao uma trajetria entre um estado de ignorncia que designo por caos e um estado de saber que designo por ordem (Santos, 2002: 74).

    O colonialismo define o Outro como um objeto e o naturaliza como inferior. Para se chegar solidariedade preciso reconhecer o Outro como sujeito, o que possvel ser feito atravs de uma Sociologia das Emergncias que descoloniza o Outro. Com a modernidade-colonialidade a forma de ignorncia no conhecimento-emancipao, o colonialismo, foi recodificado como forma de saber no conhecimento-

    regulao, ou seja, o colonialismo como ordem (Santos, 2006: 32). O conhecimento metropolitano foi sendo implementado progressivamente nas colnias atravs da recusa dos conhecimentos e das lnguas locais. Foi assim que, paulatinamente, o colonialismo se converteu numa forma de conhecimento, na forma do conhecimento-regulao. Assim, a colonialidade do saber caracterstica do conhecimento-regulao. E os saberes locais foram caracterizados como caos, ou seja, a forma de ignorncia do conhecimento-regulao. [...] O conhecimento-regulao veio a dominar totalmente o conhecimento-emancipao. Isto deveu-se ao modo como a cincia moderna se

    converteu em conhecimento hegemnico e se institucionalizou como tal (Santos, 2002: 29). assim que as instituies hegemnicas se constituem a partir do conhecimento-regulao e para criar mais conhecimento-regulao. s atravs do conhecimento-emancipao que possvel superar a colonialidade do saber. A cincia pode se caracterizar enquanto conhecimento-regulao ou conhecimento-emancipao dependendo da perspectiva que adota.

    A cincia um discurso e uma prtica de conhecimento que pretende descrever, compreender e interferir na realidade. A cincia, muitas vezes, se define como neutra e procura ter um carter universal. Ao fazer isso, a cincia legitima a forma colonial-

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    capitalista de domnio econmico, poltico e cognitivo sobre o mundo. Porm, h

    muitos que fazem cincia denunciando este tipo de domnio, assim como a cincia foi e continua a ser muitas vezes apropriada por grupos sociais oprimidos para legitimar suas causas e fortalecer suas lutas. Dessa forma [...] a cincia moderna no foi, nos dois ltimos sculos, nem um mal incondicional nem um bem incondicional (Santos e Meneses, 2009: 11).

    A cincia moderna , muitas vezes, um conhecimento-regulao, que exerce a colonialidade do saber por ser uma razo indolente. Mas no sempre assim. As Universidades dos Movimentos Sociais como instituies que buscam legitimar