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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Úrsula Passos A possibilidade de aprimoramento do gosto em Clement Greenberg São Paulo 2014

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Úrsula Passos

A possibilidade de aprimoramento do gosto em Clement

Greenberg

São Paulo

2014

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Úrsula Passos

A possibilidade de aprimoramento do gosto em Clement

Greenberg

Dissertação apresentada ao

programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de

Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em

Filosofia sob a orientação do Prof. Dr.

Celso F. Favaretto.

São Paulo

2014

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Folha de Aprovação

PASSOS, U. A possibilidade de aprimoramento do gosto em Clement Greenberg. 2014. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras

e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

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Agradecimentos

Muito especialmente, e sobretudo, agradeço aos meus pais pelo

apoio de todas as formas: financeiro, durante toda minha formação acadêmica, sentimental, moral... enfim, pelo apoio à vida.

A Bruno Machado, por todas as vezes em que terminou o dia me

perguntando: “e aí, estudou hoje?”. Pelo incentivo e pelo amor.

Aos meus amigos Amanda Reginato e Renan Pinheiro, por uma

adolescência curiosa. A Jacy Yang, Lucas Leitão, Fernanda Souza, Paola Ribeiro, Mariana Rosell, Frederico Pellachin, Karina Legrand, Tünde Albert

e Luciana Ramos, pelos momentos de descontração, pelo interesse pelas artes e pelas discussões que me constituem como sujeito crítico e político.

Aos amigos com quem pude dividir por tanto tempo as agruras da

filosofia e da pós-graduação, Lucas Nascimento, Maria Simone, Pedro Faissol, Nicole Fobe, Felipe Biasoli, Jairo Vurobow e Luana Molina.

Aos meus amigos e anjos do português Guilherme Bryan e Flávio

Ponchiarolli.

Aos professores do departamento de Filosofia, por tudo que aprendi,

descobri, e por tudo a que me apresentaram.

Às funcionárias da secretaria do departamento, Geni Ferreira, Maria Helena, Verônica, Luciana Nóbrega e Mariê Pedroso, que por diversas

vezes me ajudaram ao longo da graduação, e deste mestrado, indo muito além do que seria sua obrigação.

Aos membros da banca, pela leitura dedicada que possibilitou

grandes descobertas dentro do projeto do trabalho.

A meu orientador, que muitas vezes foi exatamente isso, e pela enorme paciência que teve comigo, Celso F. Favaretto.

A CAPES, pelo apoio no tempo em que fui bolsista.

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“E os que têm mais contato com a arte,

que mais se esforçam, tendem, de modo geral, a ser pessoas que, saibam ou não,

cultivam seu gosto”. CLEMENT GREENBERG

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RESUMO

PASSOS, U. A possibilidade de aprimoramento do gosto em Clement

Greenberg. 2014. 90 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de

São Paulo, São Paulo, 2014.

O crítico de arte americano Clement Greenberg dedica especial atenção à

teoria estética em seus textos dos anos 1970, sobretudo ao juízo de gosto. Esta pesquisa busca evidenciar um aspecto importante na

discussão estética em Greenberg, qual seja, a possibilidade de aprimoramento do gosto. Para tal, também se faz necessária uma

compreensão de seu sistema crítico, articulando os Seminários por ele ministrados nos anos 70 e seus textos críticos desde os anos 30.

Dentro da teoria estética moderna formulada por Greenberg, os textos reunidos em Estética Doméstica servem de base para a investigação do

ponto central da pesquisa. Apesar disso, não se pode perder de vista o grande espectro coberto pela obra do crítico, uma vez que seus textos

dialogam entre si, retomando e alinhavando os diversos temas abordados.

Palavras-chave: gosto, juízo estético, Clement Greenberg.

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ABSTRACT

PASSOS, U. The taste improvement possibility in Clement Greenberg. 2014. 90 f. Thesis (Master Degree) – Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

The american art critic Clement Greenberg pays special attention to

the aesthetics in his texts of the 1970s, and to the taste judgement most of all. This study try to put light over an important aspect of

Greenberg theory: the taste improvement possibility. To do so, it's imperative to comprehend Greenberg's critical system, considering

his Seminars and also his critics since the 30s.

The essays presented on Homemade Esthetics will base the investigations about the central point of interest in this study, having

in mind the modern theory formulated by Greenberg. But it's necessary, beside this, to consider the great diversity of his work,

once his texts can have a dialogue.

Key Words: taste, aesthetic judgement, Clement Greenberg.

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SUMÁRIO

Introdução …................................................ p. 9

1. A Teoria da Pura Visibilidade ....................... p. 17

2. O juízo de gosto em Greenberg …................. p. 37

3. O aprimoramento do gosto ......................... p. 65

Conclusão ….................................................. p. 82

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Introdução

Clement Greenberg foi um crítico de artes plásticas dos Estados

Unidos do pós-guerra quando o cenário então era marcado pelo

modernismo. Embora sua carreira tenha sido prolífica em ensaios e

artigos para publicações especializadas, nos anos 1970, ele passa a

se dedicar às questões da teoria estética. Suas reflexões sobre o

assunto concentram-se, sobretudo, no juízo estético. Nesse contexto,

o essencial de seu pensamento está reunido nas nove noites dos

Seminários de Bennington, de 1971, e nos artigos que delas se

originaram, publicados entre 1973 e 1979, mais tarde recolhidos no

livro Estética Doméstica, em 1999. É nesses textos que vemos

delinear-se uma teoria greenberguiana do juízo estético e do gosto.

Kant explicava, na Crítica da Faculdade do Juízo, o juízo de

gosto como subjetivo e universal, ao qual toda humanidade deve

aquiescer. Cabe, porém, à crítica de arte, segundo Rochlitz, dar

razões claras aos julgamentos, e dela se exige o engajamento em

clarificar o juízo partilhado por todos, para permitir que sua

universalidade se realize. Assim, o crítico deve “justificar, por uma

interpretação informada e argumentada, sua desaprovação de uma

obra ou sua admiração e seu engajamento em favor dela.”1

Tendo em vista o fato de Greenberg ter sido um crítico antes de

mais nada, é de se esperar que sua incursão pela estética tenha a

crítica não apenas como pano de fundo, mas também como objetivo.

Assim, é possível perceber que ele traz consigo uma bagagem de

atividade crítica acumulada durante anos que o influencia, e também

promove uma compreensão da estética que visa ao trabalho crítico.

1 ROCHLITZ, R. Subversion et Subvention. Paris: Editions Gallimard, 1994,

p. 48. Nossa tradução.

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Estética e crítica de arte

As origens da crítica de arte podem ser traçadas a partir da

obra de Jean-Baptiste Du Bos, do início do século XVIII, Réflexions

critiques sur la poésie et la peinture, que esboça a noção de público

de arte e da possibilidade de um julgamento desinteressado que não

parta de colecionadores nem de artistas. Mas é com Diderot e seus

Salons que nasce a crítica de arte tal como a conhecemos hoje; a

partir desse momento fala-se de artistas contemporâneos, de artistas

vivos. Dessa maneira, o século XVIII inaugura um discurso sobre a

arte do ponto de vista do espectador, que não parte mais de pessoas

diretamente envolvidas com o fazer artístico ou com seu patrocínio.

Antes disso, os textos sobre arte eram, sobretudo, técnicos,

revelando procedimentos de artistas, ou então biografias de artistas

do passado.

À época dos salonniers, a crítica se sentia no dever de “fazer-

ver” aos leitores as obras às quais eles não tinham acesso, daí a

necessidade da descrição, como em Diderot. Porém não se excluía de

todo o julgamento, o “fazer-aparecer”. No caso de Baudelaire, por

exemplo, o critério de qualidade, de valor de uma obra, é sua

capacidade de fazer memória, de gravar-se na memória do

espectador.

A figura do crítico que surge então é diferente da do artista e

também difere da do colecionador, diversa também da do amante das

artes ou de um connaisseur; os críticos são, em sua maioria, homens

das letras. No século XIX, com a expansão da imprensa escrita, à

época de Baudelaire, os críticos passam a ser também jornalistas. A

crítica está, então, desde seu nascimento, ligada à imprensa escrita

que se desenvolvia simultaneamente. Hoje a crítica aparece sob

diferentes formas, seja na grande imprensa, seja em publicações

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especializadas ou ensaios acadêmicos. Contrariamente à História da

Arte e à Estética, porém, a crítica não é uma disciplina, mas um

exercício.

A crítica diz respeito àquilo que é posto em jogo pelas obras de

arte, porém, para chegar a bem compreendê-las, talvez fosse preciso

considerar a necessidade de uma formação específica para o crítico.

Considerando-se que o trabalho crítico lida diretamente com o

julgamento estético e que este pode ser aprimorado, como dá-se em

Greenberg, o melhor crítico seria então aquele que mais aprimorasse

seu juízo. Rochlitz, em seu livro Subversion et Subvention, explica

que “a cada época, para compreender uma obra de arte, é preciso

conhecer certo número de condições históricas da criação artística

para ser mesmo capaz de perceber o que está em jogo na obra”2.

Para Greenberg, a função do crítico é direcionar a atenção do

espectador para pontos que ele pode ter deixado escapar, dando

assim novas chances às obras de arte para que, quem sabe, o

espectador possa mudar seu juízo sobre elas, quando novamente

visitadas.

Com Duchamp e seu urinol3, no começo do século XX, é

colocado em questão não somente a existência de intermediários

entre a arte e o público na figura de instituições como museus e

galerias, mas também, e principalmente, os critérios de julgamento

da arte. Como dizer que uma obra como “Fonte” é arte, e como julgá-

la, já que não é mais possível dizer que um objeto como um urinol dá

prazer estético ou que ele demanda habilidade em sua execução? Os

modernistas das vanguardas buscavam possibilitar que a arte

colocasse a si mesma suas regras, e para tanto eles queriam o fim de

toda heterogeneidade no domínio das artes. Como consequência, a

2 Idem, ibidem, p.97.

3 “Fonte”, ready-made de Duchamp exposto pela primeira vez em 1917, cujas

réplicas autorizadas pelo artista nos anos 60 podem ser encontradas em diversos

museus.

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crítica foi obrigada a encontrar novos critérios de avaliação.

Tal reviravolta permitiu a emergência da impressão segundo a

qual qualquer coisa poderia ser arte, fazendo-se abstração de toda e

qualquer noção de qualidade. Após a radicalização desta ideia, nos

anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, começam a

aparecer teorias do fim da arte, e a crítica passa a ser substituída por

discursos de autoridade, de instituições que escolhem e que expõem

arte, e que parecem, para muitos, se orientar por preferências

subjetivas.

Greenberg e o modernismo

A crítica greenberguiana, contudo, não abandona a ideia de

qualidade nem a de experiência estética. Com Greenberg se consolida

a chamada crítica Modernista, voltada à autonomia da arte e à

especificidade dos meios, e que tem como fundo a História da Arte

Moderna tal como concebida pelo crítico ao longo dos anos 40 e 50:

uma teoria teleológica da arte que parte de Manet e segue seu

caminho até o Expressionismo Abstrato dos Estados Unidos, tendo

por objetivo, no caso da pintura, evidenciar o plano, essência de seu

meio.

Se o modernismo parisiense era a arte hegemônica no período

do Entre-Guerras, nos anos 50, a hegemonia das artes atravessa o

oceano e se estabelece na abstração dos Estados Unidos do Pós-

Guerra, que será eleita pelos críticos como a arte herdeira legítima do

modernismo parisiense.

A arte dos Estados Unidos, no começo do século XX, é marcada

pelo Realismo, que teve seu ápice nos anos 30, fortemente ligado à

política dominante no momento. A arte participava ativamente de um

projeto maior de Estado bancado pelo governo, fazendo parte da

propaganda. Após a Segunda Guerra Mundial, a abstração ganha

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espaço e mercado nas artes visuais, marcando especialmente os anos

50, tanto na pintura quanto na escultura.

A travessia do oceano não acontece apenas no mercado de

arte: durante a guerra, muitos intelectuais e pessoas ligadas às artes

fogem para os Estados Unidos e, após o conflito, com a Europa

devastada e os Estados Unidos como um dos vencedores, o país

passa a ser a grande potência econômica, detendo, também, o

domínio cultural. Nesse contexto, emerge a arte abstrata. E, dentro

dela, o estilo que passa a ser chamado de Expressionismo Abstrato,

cujos grandes expoentes são Jackson Pollock, Mark Rothko, Adolph

Gottlieb, Willem de Kooning, entre outros.

Reunido em Nova York, o grupo, embora heterogêneo,

constituiu o primeiro estilo pictórico dos Estados Unidos a conseguir

reconhecimento internacional. Apesar de apresentarem obras

díspares entre si, é possível reconhecer pontos de encontro entre

esses artistas, como a crítica ao capitalismo e à tecnologia, a recusa

aos modelos e às técnicas artísticas tradicionais, evidenciando, ao

contrário, a espontaneidade e o gesto explosivo do pintor, e a procura

do retorno às emoções primárias e às forças elementares.

É aí que se encontra Clement Greenberg, membro da corrente

crítica Modernista, que “tem suas raízes no trabalho dos escritores

franceses do século XIX que defenderam a obra de Manet e dos

impressionistas”, para a qual contribuíram ingleses e americanos do

início do século XX aos anos 60, dando “uma expressão

especificamente ‘Modernista’ ao pensamento moderno sobre a arte”4.

O primeiro texto de Greenberg de grande importância, que o

lançou na carreira de crítico das artes visuais, “Vanguarda e Kitsch”,

foi publicado em 1939, no jornal Partisan Review. Em seus artigos,

não apenas as obras de arte em discussão eram importantes para

4 HARRISON, C. Modernismo. São Paulo: Cosac Naify Edições, 2004, p.40.

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aquilo que escrevia, mas também o conjunto da cultura e da

sociedade. Sua grande inspiração no trabalho crítico era T.S. Eliot,

dramaturgo, poeta e crítico literário, cujo mérito, para ele, estava em

“levantar os problemas pertinentes e na finura de seu gosto”, e em

cujas críticas Greenberg tinha a certeza de que a pergunta mais

importante seria respondida: “quão bem sucedido como arte é o

trabalho de arte que tenho em mãos?”5. Greenberg não perdia tais

preocupações de vista em suas próprias críticas, que apresentavam

clareza na expressão de seus argumentos, conforme autores, como

Nelson Aguilar, apontaram: “nenhum autor defendeu a arte com tanta

clareza (...) no momento em que ocorreu a transição da escola de

Paris à de Nova York”6.

Em Greenberg, o Modernismo se caracteriza pela autocrítica,

que remonta à filosofia de Kant e ao Iluminismo, buscando

“estabelecer e sustentar as capacidades e limites intrínsecos de cada

prática específica”7. Daí o foco na especificidade do meio de cada

expressão artística, como o espaço na escultura e o plano na pintura.

Em seu artigo de 1960, “Pintura Modernista”, Greenberg

apresenta suas principais teorias sobre o tema e o caminho que a

arte percorreu até chegar ao Expressionismo Abstrato americano. A

pintura dos anos 50 nos Estados Unidos não era uma ruptura com a

história da pintura, e, sim, uma continuidade dela, sendo a História

da Arte, para Greenberg e a crítica modernista, marcada pelo

desenvolvimento e pela coerência, sem saltos. Segundo Greenberg,

“o Modernismo usou a arte para chamar atenção para a arte”, e as

pinturas de Manet tornaram-se as primeiras pinturas Modernistas 5 GREENBERG, “T.S. Eliot: The Criticism, The Poetry”. In: O’BRIAN, J. ed.

Clement Greenberg - The Collected Essays and Criticism. Chicago: University

of Chicago Press, 1988, v.3, p.66. Nossa tradução. 6 AGUILAR, N. “A clareza do olhar”. Jornal de Resenhas. São Paulo:

Discurso Editorial, 2001, v.I, p.639. 7 HARRIS, “Modernismo e Cultura nos Estados Unidos 1930-1960”. In:

WOOD, P. et al (Orgs). Modernismo em disputa: a arte desde os anos

quarenta. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, p. 58.

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pela

franqueza com que declaravam as superfícies planas em que

estavam pintadas. (...) Foi a ênfase conferida à planaridade

inelutável da superfície que permaneceu, porém, mais

fundamental do que qualquer outra coisa para os processos

pelos quais a arte pictórica criticou-se e definiu-se a si

mesma no modernismo8.

Dentro da autocrítica que caracteriza a arte modernista para

Greenberg, e considerando o que há de mais específico na pintura,

faz parte do reconhecimento do que há de essencial em seu meio de

expressão a tendência a eliminar a ilusão de tridimensionalidade. É o

percurso dessa tendência que podemos verificar na história da arte

Moderna tal como concebida por Greenberg – do Modernismo inicial e

ainda figurativo de Manet ao Modernismo tardio e abstrato de Morris

Louis – o reconhecimento da superfície plana resistente da tela como

semelhante ao continuum visual.

Além disso, nos escritos de Greenberg é de extrema

importância a necessidade de encarar a obra de arte em seus

próprios termos. Ele defende, por diversas vezes, o tratamento e a

fruição da arte por aquilo que ela traz nela mesma, sem recorrer ao

que lhe é exterior:

A arte existe para si mesma. Mas a “arte pela arte” é um

conceito que tem sido mal visto nos últimos tempos, e

mesmo assim ele persiste. (...) A tentativa de justificar a

arte pela determinação de uma finalidade que se encontra

fora ou além dela própria é uma das principais causas (...) do

ofuscamento da arte, de todo discurso e ação equivocados e

irrelevantes acerca da arte.9

Os artistas do fim dos anos 60 e começo dos anos 70 – período

marcado pela nova esquerda e pelos movimentos de jovens pelo

8 GREENBERG, “Pintura Modernista”. In: FERREIRA, G. & COTRIM, C. (Orgs.).

Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001,

pp.102-103. 9 GREENBERG, “Primeira Noite”. In: GREENBERG, C. Estética Doméstica –

observações sobre a arte e o gosto. São Paulo: Cosac&Naify, 2002, p.137.

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mundo todo – buscavam fazer oposição à experiência estética do

Modernismo. Contra a fruição desinteressada apregoada por pessoas

como Greenberg e Michael Fried, os artistas defendiam que a arte

demandasse do espectador a sua participação, uma arte

politicamente engajada. Com isso, buscavam também a subversão da

autoridade da arte, dissolvendo o muro que, segundo eles, até então

separava a arte culta da cultura popular, diferença essa acentuada no

texto “Vanguarda e Kitsch”, de Greenberg.

Já se mostrando bastante interessado por conceitos da Estética

ao longo dos anos 60, com os Seminários de Bennington em 1971,

Greenberg assume a tarefa de dedicar-se atentamente a questões da

Teoria da Arte, mais especificamente a conceitos da Estética de fundo

kantiano, como a beleza desinteressada, juízo estético e gosto.

Reconhece-se, contudo, a dificuldade de uma pesquisa de uma

teoria estética não acabada, apenas esboçada por um crítico de arte;

reconhece-se também as polêmicas envolvendo muitas das

declarações de Greenberg a partir dos anos 60, consideradas elitistas

e ultrapassadas. Acredita-se, porém, que o tema do aprimoramento

do gosto seja frutífero para as reflexões estéticas e discussões sobre

arte, ainda que a crise do Modernismo tenha afetado “a escrita da

história da arte e a confiança em uma continuidade linear da arte,

como proposta por Greenberg”10.

No primeiro momento, buscam-se as origens do formalismo do

crítico americano na teoria da Pura Visibilidade do século XIX, para,

em seguida, se aprofundar em sua noção de juízo estético,

considerando-se suas aproximações e torções dos conceitos

kantianos, e, assim, abrir caminho para o gosto que permite ser

aprimorado.

10 Hans Belting apud COUTO, M. “Novas leituras do modernismo”. In: I

ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE DO IFCH UNICAMP. Revisão historiográfica: o

estado da questão. Campinas: Programa de Pós-graduação em História, v.3, 2004,

pp. 143-152, p.143.

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1. A Teoria da Pura Visibilidade

Clement Greenberg dá especial atenção ao ato de olhar no

julgamento estético, ato que deve ser repetido para que possamos

reavaliar e reconsiderar as obras de arte. Sua leitura formalista do

Modernismo propõe uma tendência evolutiva da forma pictórica à

exacerbação da planaridade, à valorização do meio (a tela), cada vez

mais colocado em evidência. Tal importância do visual desperta o

interesse da busca pela possível filiação do crítico à teoria da Pura

Visibilidade, tentando encontrar quais seriam os pontos de contato e

de distanciamento entre o crítico e a teoria surgida no século XIX.

Ao longo do século XVIII, surge a necessidade de uma ciência

que fosse capaz de reconhecer a autenticidade das obras de arte de

modo a rechaçar cópias falsas. Dessa maneira, “o conceito de

‘qualidade’ que toma o lugar do conceito de ‘belo’ como definição do

valor artístico permanece ainda hoje como o conceito fundamental da

crítica”11. Sendo preciso inserir a obra na coerência de uma

personalidade artística, e de um estilo, atendo-se a aspectos formais,

o que se afirma é que a pesquisa sobre arte se dá na análise direta

da obra de arte em seu contexto estilístico e técnico.

No fim do século XIX e início do XX, o estudo das artes

encontra-se dividido entre duas tendências principais: uma

historicista, que buscava a reconstituição das personalidades

históricas e que prevalecia na Itália e na França; e uma científica, que

considerava a obra de arte como puro fenômeno e documento visual,

prevalecendo na Alemanha, sob forte influência da estética de

Herbart e do positivismo de Semper12.

A principal fonte da “Teoria da Pura Visibilidade”, parte da

11 ARGAN, G. Arte e crítica de arte. Lisboa: Estampa, 1993, p. 134. 12 Cf. Idem, ibidem, p.144.

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tendência científica alemã, é filosófica e remete ao formalismo do

kantiano Herbart, que busca priorizar a atenção sobre os elementos

formais próprios a cada uma das artes – no caso das artes

figurativas, sobre os elementos visuais. Para Herbart, o Belo é

definido como “um sistema de relações de formas, que serão relações

de linhas e de cores” e o que conta do ponto de vista estético “é

exclusivamente a forma, entendida justamente como coerência de

relações formais”13. A teoria de Herbart pode ser considerada como a

manifestação mais distante da atitude que ainda sobrevive na crítica

de caráter visibilista: a busca por uma coerência dos valores

pictóricos.

É justamente a aspiração do século por classificação que leva os

pensadores a se dedicarem à distinção de características formais do

estilo de cada pintor, exercitando o olho para discernir as obras de

um e de outro, e reconhecer as ligações formais que reúnem

determinados artistas em grupos e famílias estilísticas.

É nesse contexto que Konrad Fiedler empreende o retorno às

premissas kantianas com a Teoria da Pura Visibilidade. A arte se

afirma “como contemplação expressiva ou produtiva”, cuja “forma

visual é plenamente reveladora do seu ‘próprio’ conteúdo ou

significado, (...) sua própria estrutura”14. A Teoria da Pura

Visibilidade, estritamente, se refere à filosofia da arte de Fiedler, mas

também pode ser associada a Hildebrand, escultor que compartilhará

das ideias de Fiedler aplicando-as ao campo de sua atividade. Porém,

a obra de Aloïs Riegl, autor de, entre outros, Gramática histórica das

artes plásticas, pode ser considerada como a mais bem sucedida

aplicação dessa teoria na história da arte, embora ela já a ultrapasse,

colocando outras questões.

13 SALVINI, R. (org). Pure visibilité et formalisme dans la critique d'art

au début du XXe siècle. Paris, Klincksieck, 1988, p.11. Nossa tradução. 14 ARGAN, op. cit., p.145.

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Fiedler e o julgamento artístico

Fiedler se distancia dos discípulos estritos de Herbart ao propor

como fundamental a distinção clara entre estética como teoria do

Belo, e teoria da arte como ciência da arte. Enquanto discípulos de

Herbart acreditavam que a essência do Belo estava nas relações

formais, fosse ele o Belo artístico, o moral ou o natural, Fiedler

insistirá, por sua vez, ter sido um erro do pensamento moderno a

identificação entre arte e beleza. Ele substitui o conceito de forma

agradável, até então comum entre os formalistas, pelo de forma

clara, e distingue o julgamento estético, que considera subjetivo e

ligado à beleza, do julgamento artístico, que deve estar submetido a

regras universalmente válidas e determinadas.

Segundo o alemão, o julgamento artístico não é dado pelo

gosto, ligado ao julgamento estético, mas, sim, pelo intelecto.15 O

valor de uma obra de arte não está ligado a sua beleza, que “não

pode ser construída a partir de conceitos”16. O prazer estético, diz ele

no aforismo 10, é só um aspecto secundário da arte e não deve influir

em sua valoração. Sendo assim, uma obra pode não ser bela e,

mesmo assim, ser boa. Não serão princípios estéticos, portanto, que

nortearão o julgamento da arte.

Fiedler altera conceitos kantianos para tornar a crítica de arte

possível, buscando estabelecer princípios intelectuais determinados

para julgar a arte, como clareza, regularidade e unidade. Para o juízo

estético, por sua vez, não há como determinar princípios

fundamentais de validade universal.17

O que resta ao excluirmos o prazer estético produzido sobre

15 Cf. FIEDLER, K. Aforismi sull'arte. Milano, Alessandro Minuziano, 1945,

aforismo 9. Nossa tradução. 16 Idem. 17 Cf. Idem, ibidem, af. 22.

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nossa sensibilidade, no entanto, é “a alegria que provamos quando

temos a consciência de ter chegado a um conhecimento”18. Essa

alegria precede o conhecimento que ela provoca e é própria do

mundo do pensamento, e não da sensação. “A compreensão é a

condição primeira para provar da alegria tão grande que uma obra de

arte pode dar”19.

Portanto, vale lembrar, esse conhecimento, fruto do contato

com a arte, é autônomo. “Na atividade artística se produz uma

apreensão naturalista do mundo que guarda sua autonomia com

relação à apreensão teórica”20, diz Fiedler em um de seus aforismos.

Este conhecimento não se liga ao conhecimento teórico e se

apresenta como conhecimento intuitivo de objetos que só é possível

na imaginação do homem e dos quais não é possível conhecimento

científico.

Fiedler também propõe uma diferenciação entre consciência

discursiva, responsável pela ciência, e consciência intuitiva, escopo da

arte. Arte essa, ele volta ao §43 da Crítica da Faculdade do Juízo (em

que Kant diferencia a arte da natureza, da ciência e do ofício), que

não cabe aos frutos da natureza. A arte, em Fiedler, tem sua

autonomia garantida e o artista, segundo ele, mais do que exprimir o

conteúdo de sua época, dá conteúdo novo a seu tempo e ao futuro,

“graças à originalidade de seu gênio”21.

Embora Greenberg reabilite o julgamento estético e o gosto,

mesmo admitindo que não seja possível estabelecer príncipios

universalmente válidos para julgar a arte, ele continuará entre os que

rejeitam o Belo como critério de qualidade da obra e, como veremos

adiante, falará do “estado de consciência exaltada” que a arte

possibilita, não muito distante da alegria da compreensão descrita

18 Idem, ibidem, af. 29. 19 Idem. 20 Id., ibid., af. 45. 21 Id., ibid., af. 71.

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aqui por Fiedler. Para o crítico americano, o juízo estético é uma

intuição estética. Além disso, ele reafirmará ao longo de toda sua

carreira a autonomia da arte e, em suas análises ao longo dos anos

1940 e 50, se valerá de elementos como unidade e clareza para falar

de trabalhos bem sucedidos na arte moderna.

Baseado novamente em Kant, dessa vez ao de Crítica da Razão

Pura, segundo quem as sensações só entram no espírito na medida

em que este dá forma a elas, Fiedler, em sua obra Sobre a Origem da

Atividade Artística [Über den Ursprung der künstlerischen Tätigkeit],

parte do pressuposto de que todos os elementos que existem no

mundo exterior só têm a existência que nossa consciência lhes

empresta quando deles se apropria e que, assim, “toda nossa

possessão da realidade não somente se funda sobre processos que

nos são interiores, mas é igualmente idêntica às formas nas quais

esses processos se apresentam”22. A linguagem, então, exprime uma

realidade formada pela própria linguagem e não uma realidade já

existente.

Quando se nomeia uma sensação, ela não se transforma na

palavra mas sim se criam, na consciência, duas coisas no lugar de

uma. Salvini dará o exemplo da cor, e falará do vermelho. Então,

quando, por exemplo, se diz vermelho, não é com isso que se

transforma a sensação vermelho na palavra vermelho. A sensação

vermelho continua a existir, inalterada, ainda que tenha aparecido,

como “coisa formada no pensamento e no conhecimento”23, a

denominação vermelho. A realidade se apresenta à consciência numa

profusão de impressões e imagens que o conhecimento discursivo ou

racional não consegue abarcar, mas que não se perde para o homem,

uma vez que ele possui a atividade produtiva do olho. Tal atividade

parte da sensação e da percepção do visível para chegar à

22 Fiedler apud SALVINI, op. cit., p.14. 23 SALVINI, op. cit., p.14.

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representação, fazendo uso do corpo humano. Em outras palavras, “a

representação de uma coisa visível não é a reprodução de um objeto

pré-existente, mas sim uma forma de desenvolvimento da atividade

visual”24.

Fiedler defendia uma educação do olho para o julgamento da

arte. Para ele, distinguir a arte autêntica daquela que não o é

“consiste em saber se a forma artística é o resultado do esforço para

modelar o fenônomeno aos puros fins da visão”. Com um olho

educado é possível

perceber a grande diferença que existe entre trabalhos

artísticos que possam aparecer idênticos ao olho profano.

Uma tal educação do olho abole também a barreira do

tempo, e a compreensão da obra de arte muito antiga torna-

se tão imediata quanto aquela da obra muito moderna25.

No aforismo 106 de Aforismos [Aphorismen], Fiedler diz que o

pensamento enunciado pela linguagem surge apenas na linguagem e

com ela, “está indossoluvelmente ligado a ela e, bem mais, é idêntico

a ela”. Porém, “a vida espiritual do homem produz outras formas de

existência fora da linguagem”26. No aforismo 144, esse fora da

linguagem aparece como o mundo ao qual o artista dá forma, que se

emancipa das leis do conhecimento discursivo para fazer parte da

consciência intuitiva.

A atividade artística é capaz, então, de compreender o que o

pensamento não tem a capacidade de fixar, apreendendo essa parte

do mundo por seus próprios meios e dando à consciência o mundo

como visibilidade. A forma para Fiedler é a "complexidade da

natureza representada segundo as leis de nossa faculdade de

24 Idem, ibidem, p.15. 25 FIEDLER, op. cit., af. 177. 26 Id., ibid., af.106.

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representação visual"27, ou ainda, a “imagem da natureza enunciada

segundo as leis da representação intuitiva”28, e portanto não há

distinção entre forma e conteúdo, pois o conteúdo deve ser a forma

da arte.

Sendo assim, as estéticas de conteúdo não podem mais fazer

exigências à arte, já que os valores do pensamento e do sentimento

não são necessários a ela. A arte tem agora a função de "isolar na

realidade o aspecto visível e levá-lo a uma expressão pura e

autônoma"29; separada do conhecimento conceitual, a arte é

conhecimento intuitivo. A visão tem, então, autonomia em relação a

conceitos abstratos e os produtos da visão bastam por si, não

precisando ser interpretados por meios intelectuais, pois são de

natureza visual e se revelam inteiramente ao olho.

Para Fiedler, o que o artista faz é expressar o mundo de formas

“por meio do e para o olho” e a única regra para o artista é a de que

“em qualquer das suas ações, o olho deve ter sido o ponto de

partida”30. “A arte se converte no idioma do olho. (...) Por meio do

olho como fator formador se engendra um mundo completamente

independente”31. Dado esse quadro de valorização do visual, Fiedler

defenderá como dever da crítica o de “eliminar mentalmente, numa

obra de arte particular, tudo o que não corresponde a esse conceito

de clareza e de coerência visual”, avaliando “a quantidade de energia

artística que ela contém”32.

Em Greenberg, o visual na avaliação da arte, bem como a

educação do olho para tal, voltarão a ter grande relevância, não

apenas em seus escritos tardios de teoria dos anos 1970, mas já em

27 Fiedler apud SALVINI, op. cit., p.15. 28 FIEDLER, op. cit., af. 170. 29 Fiedler apud SALVINI, op. cit., p.15. 30 FIEDLER, K., De la esencia del arte. Buenos Aires, Nueva Vision, 1958,

p.26. Nossa tradução. 31 Idem, ibidem, p.47. 32 SALVINI, op.cit., p.16.

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suas análises e ensaios anteriores. Ele insistirá por diversas vezes em

que é preciso aprender a olhar a arte, e que isso se faz olhando cada

vez mais vezes e mais atentamente as obras, visitando-as repetidas

vezes, sem preconceitos e sem preguiça, insistindo no esforço

necessário no estar diante da obra. Em seu texto de 1948, “A Nova

Escultura”, alterado em 1958 para fazer parte da antologia de Arte e

Cultura, Greenberg fala da escultura pós-cubista, escultura-

construção, que se tornara “quase tão exclusivamente visual em sua

essência quanto a própria pintura”33. Na relação do espectador com

essa escultura, que para ele tem ultrapassado por vezes em

qualidade a pintura que lhe é contemporânea, o corpo humano passa

a ser apenas visão, “e a visão tem mais liberdade de movimento e

invenção em três dimensões do que em duas”34.

Em Fiedler, a arte se distingue da não-arte por expressar algo

que de nenhuma outra maneira pode integrar nosso conhecimento. O

alemão afirma que a arte só se justifica “quando é necessária para

representar algo que não pode ser representado mediante nenhuma

outra forma”, sendo injustificada “quando se presta a representar

algo que pode ser expresso de outra maneira”35. Para ele, a arte é

um meio “de fixar esse conteúdo visível da realidade visível que a

palavra apaga ou trai no esquematismo do conceito”.36

Greenberg, assim como Fiedler, insistirá na autonomia da arte.

O alemão do século XIX considera que a arte faz parte de um mundo

independente e sua especificidade está garantida na medida em que

nenhuma outra forma pode expressar o que ela expressa. Por sua

vez, Greenberg empreende uma busca pela especificidade da pintura, 33 GREENBERG, “A nova escultura”. In: GREENBERG, C., Arte e Cultura –

ensaios críticos. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 168. 34 Idem, ibidem, p. 169. 35 FIEDLER, op.cit. (1958), p.27. 36 SALVINI, op.cit., p. 41.

Esquematismo aqui entendido no sentido kantiano, como a maneira pela qual as

categorias do entendimento são colocadas em relação com os fenômenos

sensíveis para constituírem um conhecimento objetivo.

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e traça uma história teleológica da arte moderna que visa a

valorização e explicitação cada vez maior de seu meio: o plano da

tela.

A teoria de Greenberg presente em Estética Doméstica nos

remete ao neokantismo de Fiedler, com sua rejeição a princípios

determinados na experiência sensitiva da arte, que o alemão defende

ao separar julgamento estético do julgamento artístico, e do belo

como índice de qualidade das obras. Porém, o crítico americano se

vale a todo tempo do nome de Kant, e não do de neokantianos como

Fiedler, que não são mencionados, e talvez isso aconteça para que o

crítico americano não precisasse se valer de categorias sistemáticas,

como modalidades da expressão artística e da poética de gêneros

presentes no pós-kantismo e, mais tarde, no romantismo.

Vemos, contudo, também na crítica de Greenberg aparecerem

elementos valorizados por Fiedler, tais como regularidade, clareza e

unidade. São elementos que Fiedler destaca e dos quais o crítico se

valerá em muitas de suas análises da arte moderna. No texto

“Picasso aos 75 anos”, de 1957, Greenberg faz uso constante da ideia

de unidade para analisar quadros da produção tardia do pintor

espanhol. Ali, ele diz que algumas das telas de Picasso confirmam o

que quadros como “Guernica” já mostraram, que “ele não podia

produzir com sucesso uma tela grande com formas cubisticamente

planas”, e que, mesmo soberba, a pintura “Demoiselles d'Avignon”

“não tem uma unidade conclusiva”37.

A unidade, ainda que se mostre no texto como um elemento de

qualidade, não basta para que uma obra seja bem sucedida. Logo

adiante, ele diz que os quadros “Paisagem de Inverno”, de 1950, e

“Chaminés de Vallauris”, de 1951, são ridículos em seu cubismo

caricatural, apesar e por causa da “nitidez de sua unidade”38. Já

37 GREENBERG, “Picasso aos 75 anos”. In: GREENBERG, op.cit. (2013), p. 85. 38 Idem.

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sobre a pintura “Cozinha”, de 1948, que Greenberg considera o óleo

mais interessante de Picasso desde 1938, ele diz que “as grandes

liberdades que ela toma com a natureza são quase inteiramente no

interesse da livre unidade e ressonância do todo”39. A noção de

regularidade também aparece e, ainda sobre Picasso, Greenberg diz

que antes de “Guernica”, o pintor forçara uma planaridade decorativa

e uma “regularidade de motivo retilíneo ou curvilíneo quase

igualmente decorativo”40.

No ensaio “A nova escultura”, de 1948/1958, o texto gira em

torno dos conceitos de unidade, clareza, pureza e concretude. Ali,

para ele, “as artes devem atingir a concretude, a 'pureza', agindo

exclusivamente nos termos de suas individualidades separadas e

irredutíveis”41. Já no artigo sobre Hans Hofmann, de 1958, Greenberg

fala da trajetória do pintor e sobre a resistência do público em aceitá-

lo, comparando-o a Paul Klee nos anos 1930, que também sofreu

resistência por sua inventividade exacerbada que carecia de unidade

e regularidade na produção42.

A partir do momento em que a arte se desvincula do prazer

estético, porém, Greenberg parece não acompanhar mais as

produções e passa a se recusar a aceitá-las. Os desdobramentos do

que fez Duchamp com seus ready-mades, na arte conceitual e

minimalista dos anos 60, fogem de uma “consciência exaltada”, ou da

alegria descrita por Fiedler. Ainda que a Teoria da Pura Visibilidade do

alemão tenha uma forte dimensão intelectualizante ao separar-se do

belo, sua insistência no visual, adotada pelo crítico americano, o

impedirá de acompanhar o rumo que a arte toma na segunda metade

do século XX.

39 Idem, ibidem, p. 88. 40 Id., ibid., p. 86. 41 GREENBERG, “A nova escultura”. In: GREENBERG, op.cit. (2013), p. 165. 42 Cf. GREENBERG, “Hans Hofmann”. In: GREENBERG, op.cit. (2013), p. 220.

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Hildebrand e a visão distanciada

As regras de Fiedler para o julgamento artístico, por mais

coerentes que sejam com sua teoria geral da arte, ainda não são

aptas a fornecer normas mais evidentes para a atividade concreta dos

críticos devido a suas indeterminações e aberturas. Essas normas só

surgirão quando Hildebrand e outros leitores de Fiedler definirem as

categorias da visibilidade, em conceitos como os de plasticidade,

linha, cor etc.

O escultor Hildebrand busca em seus escritos aplicar a teoria de

Fiedler à escultura e, por consequência, à pintura e à arquitetura.

Fiedler tinha a regularidade como exigência da representação

artística, assim como a clareza, e também a unidade. Hildebrand, por

sua vez, parte da observação de que um objeto visto muito de perto

perde a unidade, pois obriga o olho a executar ajustes focais um após

o outro, enquanto na visão distanciada tem-se uma melhor percepção

da unidade. À distância do objeto, estando os raios visuais paralelos,

“surgirá uma imagem total de suas dimensões, imediatamente

perceptível, onde tudo o que faz alusão a terceira dimensão será

projetado sobre um plano”43.

Assim, para Hildebrand, a única imagem que atende às

exigências da visibilidade é a imagem obtida no olhar distanciado, e

por isso é a imagem artística por excelência. O objetivo da arte é a

clareza da visão, e, para atingi-la, é preciso que o artista transforme

a forma de existência do objeto numa forma de efeito através de

acentuações, como iluminação, por exemplo.

Tendo por princípio a visão distanciada como a única visão

artística, Hildebrand continua suas deduções e afirma que o único

modo de representação artística é a representação em relevo - não

43 SALVINI, op.cit., p. 18.

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importa se numa escultura de vulto, numa pintura, alto-relevo ou

baixo-relevo - na qual as figuras “aparecem contidas entre dois

planos ideais paralelos, sem ultrapassá-los”44. Segundo ele, essa

representação “nos dá uma impressão de superfície aliada a um forte

estímulo de representações de profundidade que o olho, imóvel,

consegue apreender sem executar movimentos de ajustes”45. Temos,

então, a visão distanciada como única visão artística e dela se deduz

a única representação artística, a representação em relevo, que visa

dar uma forma ao objeto tridimensional capaz de gerar a impressão

visual de unidade.

As coisas visíveis, porém, também têm uma função, a de

exprimir uma ação, e esta não deve ser representada pela pura

imitação de gestos e movimentos tais como estão na natureza, mas

também deve respeitar as leis de unidade da visão. Para tanto, é

preciso que a ação seja representada pelo artista como vista e não

como agida – assim, o artista poderá “traduzi-la numa forma de

maneira a torná-la clara e evidente ao simples olhar”46.

Ainda que os conceitos, ou categorias visuais, utilizadas por

Hildebrand continuem a ser de uso comum, anos mais tarde, por

Greenberg, o crítico americano valoriza justamente o que há na arte

de seu tempo de contrário ao defendido pelo alemão do século XIX.

Se, para Hildebrand, a representação em relevo é a única

representação artística válida, capaz de tridimensionalidade e

unidade, para Greenberg, pelo contrário, é na redução da importância

da noção de profundidade que reside o valor da arte moderna do

século XX. Na escultura, portanto, não são os volumes ou os relevos

das formas que importam, mas o que ele destaca como a grande

qualidade do gênero é o “desenho aéreo”, capaz de se formar, por

44 Idem, ibidem, p. 19. 45 Hildebrand apud SALVINI, op.cit., p. 19. 46 SALVINI, op.cit., p. 20.

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exemplo, por obras de metal como as de David Smith.

No texto “Picasso aos 75 anos”, de 1957, Greenberg indica

como ponto forte do artista espanhol o momento em que, na

escultura, passou a desenhar no ar, “construindo em vez de modelar

ou esculpir”47. No ensaio dedicado ao escultor David Smith, de 1956,

considerado por Greenberg “o melhor escultor de sua geração”, ele

diz que Smith talvez tenha sido o primeiro escultor a levar aos

Estados Unidos “a arte do desenho aéreo em metal”, e o primeiro a

tentar “um tipo de colagem escultural”48 que, embora remetesse à

colagem cubista, usando peças de máquinas, não estava presente em

Picasso nem em Gonzalez.

Há ainda outro ponto em que Greenberg se distancia de

Hildebrand, ligado à maneira de olhar. O alemão, como visto acima,

defende um olho imóvel que, distanciado da obra, é capaz de

apreender seu todo. Greenberg, por sua vez, defende um olhar

móvel, que passeie pela obra.

A doutrina da arte como pura visibilidade está ligada ao

formalismo, e dele faz parte na medida em que concentra seus

esforços sobre a forma, dando menos importância a tudo o que, nas

artes, se liga a objetivo moral ou de prazer e a conteúdos do

pensamento e de sentimento. Apesar disso, a pura visibilidade

também se distancia do formalismo de seu período, por desvincular a

arte do conceito de beleza e por substituir a noção de forma

agradável pelas de unidade e clareza. Por fim, a pura visibilidade

dialoga com o criticismo kantiano e com o positivismo: com o

primeiro, ao afirmar o valor cognitivo, a substância teórica da arte;

com o segundo, ao ligar sua atividade à função de um sentido na

atividade produtiva do olho.

47 GREENBERG, “Picasso aos 75 anos”. In: GREENBERG, op.cit. (2013), p. 91. 48 GREENBERG, “David Smith”. In: GREENBERG, op.cit. (2013), p. 234.

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Riegl e o Kunstwollen

Ainda que Fiedler tenha pensado a visibilidade como critério

para o julgamento artístico, alguns anos depois, com Riegl, a teoria

da pura visibilidade torna-se, pela primeira vez, instrumento para a

história das artes. O conceito mais importante e conhecido da obra de

Riegl é o de Kunstwollen, que poderia ser traduzido como vontade ou

intenção da arte, e que considera que o estilo é determinado por uma

espécie de princípio espiritual, uma intenção determinada, que

poderia ser explicado como um gosto formal que varia em diferentes

povos e épocas. Assim, Riegl se distancia e se opõe ao Können do

positivista Semper, para quem o estilo era determinado pela técnica e

pelo objetivo prático de uma época e um povo.

Para Otto Pächt, em sua apresentação da “Gramática Histórica

das Artes Plásticas”, de Riegl, o senso literal de Kunstwollen seria

“aquilo que determina a arte”, “o fator determinante que condiciona a

aparência específica de uma obra de arte a que chamamos seu

estilo”.49 É com base nesse conceito, e na ideia de evolução, que Riegl

defenderá em sua obra que a arte da antiguidade tardia, ao contrário

do defendido até então, não é fruto da barbarização do gosto, mas,

ao contrário, de uma transformação dos princípios formais e de uma

intenção artística diferente, eliminando assim a ideia de decadência

da arte e colocando o período em posição de igualdade, ao menos no

que diz respeito ao valor artístico, ao da arte clássica.

Para tanto, ele também faz uso das noções apresentadas por

Hildebrand de visão distanciada (óptica) e visão aproximada (tátil).

Esses conceitos servem para que Riegl diferencie a arte clássica, e

até mesmo egípcia (aproximada), da arte do início do cristianismo, na

antiguidade tardia (distanciada). Além disso, a visão aproximada

49 PÄCHT, “Aloïs Riegl”. In: RIEGL, A., Grammaire historique des arts

plastiques. Paris: Klincksieck, 2003, p. XVI. Nossa tradução.

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configura uma visão objetiva, enquanto a visão distanciada é

subjetiva, pois cabe ao espectador completar o conjunto

compreendendo os elementos colocados em evidência, como os

grandes olhos, por exemplo.

O processo pelo qual passa a arte no período romano tardio não

é de um enfeiamento, ou barbarização, mas sim de uma passagem

da visão aproximada para visão distanciada. Tal passagem marca o

fim do politeísmo – e da valorização do orgânico -, e a afirmação do

monoteísmo, e as mudanças trazidas por ela nos valores de culto.

“Quando a nova visão de mundo declara que o corpóreo não é em

nada essencial, ela pronuncia ao mesmo tempo a condenação da

forma”50. Assim, a forma em três dimensões, preferida para

representar as divindades pagãs, perde força para a superfície dos

baixo-relevos. “Se se quer apreciar o verdadeiro valor das estátuas

do último período do Império Romano é preciso contemplá-las de

longe”51.

O que o Kunstwollen afirma é que os modos de visão são,

historicamente relativos. “A individualidade da obra de arte consiste

na particularidade do momento que ela representa no

desenvolvimento histórico das formas”52. Para Riegl, que tem uma

teoria evolucionista da história, a arte seguia uma continuidade

histórica, e os símbolos figurativos são empregados no sentido

histórico. Assim também se manifesta a história da arte em Clement

Greenberg53, para quem não há rupturas entre os períodos e, sim,

uma evolução, que segue como uma estrada ligando os artistas e

suas obras, mesmo sem existir uma ideia de progresso. Porém, ele se 50 RIEGL, op.cit., p. 169. 51 Idem, ibidem, p. 170. 52 SALVINI, op.cit., p. 23. 53 Thierry de Duve em seu livro Clement Greenberg between the lines nos

apresenta três Greenbergs: o doutrinário, o crítico e o teórico. O primeiro é o

responsável por sua visão de história da arte, primeiramente apresentada em

“Vanguarda e Kitsch” e “Rumo a um mais novo Laocoonte”, embora ela também

permeie os outros dois.

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afasta de Riegl ao propor uma evolução teleológica, cujo objetivo, no

caso do Modernismo, é a evidenciação máxima do meio em um

movimento de autocrítica; no caso da pintura, a tendência à

planaridade [flatness], à evidenciação do plano.

Em Riegl, Pächt diz que devemos compreender cada obra do

passado “a partir das condições históricas nas quais ela se

desenvolveu”, abandonando a ideia de estranhamento diante de uma

obra distante de nosso gosto para buscar sua raison d'être histórica

e, assim, poder “descobrir o verdadeiro fator determinante que

tornou-a tal exatamente como nos aparece”54.

Embora Greenberg dedique-se à arte de seu tempo e pouco ou

quase nada fale da arte distante de si no tempo e no espaço, ele

busca compreender o surgimento da vanguarda, e também as raízes

do Modernismo, a partir do contexto social e histórico do período. No

ensaio “Vanguarda e Kitsch”, de 1939, tanto a arte de vanguarda

quanto o kitsch aparecem como frutos de seu tempo e o crítico

americano busca relacionar a experiência estética individual ao

contexto em que está inserido.

O kitsch, arte popular e comercial, assim, aparece como

produto da revolução industrial, da urbanização e da alfabetização

universal. De Duve explica-o:

Um objeto só está pronto para se tornar kitsch se é uma

'commodity', e ele se torna uma 'commodity' entrando

(desde sua concepção) no mundo do valor, no mundo

econômico onde a troca não é da ordem do discurso

endereçado a alguém, mas ao invés disso é uma relação

instrumental55

A vanguarda, ao contrário, procura o absoluto desprendendo-se

da sociedade, tentando se distanciar da burguesia e, ao mesmo

tempo, da revolução socialista. E, embora a vanguarda nunca tenha

54 PÄCHT, “Aloïs Riegl”. In: RIEGL, op.cit., p. XV. 55 DE DUVE, T. Between the lines: including a debate with Clement

Greenberg. Chicago: University of Chicago Press, 2010, pp. 45-6.

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se distanciado totalmente da sociedade justamente por necessidade

de seu dinheiro, ela abandonou o mercado do qual a arte era

dependente desde o fim do mecenato da aristocracia. A função da

vanguarda era, assim, “encontrar um caminho no qual fosse possível

manter a cultura em movimento em meio à violência e confusão

ideológicas”56.

Contudo, o Kunstwollen de Riegl é dual. Ele tem uma dimensão

de intenção deliberada e, ao mesmo tempo, de inevitabilidade, dever

e destino que é cumprido e seguido. Os artistas de uma época se

diferenciam da anterior por trabalharem com um objetivo diferente.

Riegl chega a afirmar, em Spätrömische Kunstindustrie [arte do

período romano tardio], que na antiguidade tardia havia uma

consciência plena do objetivo artístico, um Kunstwollen consciente, e

que uma das provas disso seria as teorias estéticas de Agostinho. Ao

mesmo tempo, porém, o desenvolvimento individual parece estar

subordinado a uma orientação geral da época, civilização ou povo, e

então há um dever, uma necessidade no Kunstwollen. Quando Riegl

se dedica à pintura holandesa, por exemplo, em que, diferentemente

da arte da antiguidade tardia, as obras são assinadas e não mais

anônimas, ele se vê diante do desafio de, justamente, lidar com a

relação entre as intenções do artista indivíduo e as tendências

estilísticas que os ultrapassam. “O grande número de artistas que

produziu esse pequeno país [a Holanda] em tão pouco tempo prova

claramente que todo o povo participou da busca de soluções”57.

Segundo Pächt, a resposta de Riegl é direta: os gênios não

estão fora de suas tradições nacionais mas sim fazem parte dela, ou

seja, o gênio é aquele que, melhor que qualquer outro, consegue

transpor para a arte aquilo que permeia sua sociedade, é aquele que

56 GREENBERG, “Vanguarda e kitsch”. In: GREENBERG, op.cit. (2013), p. 29.

Grifo do autor. 57 RIEGL, op.cit., pp. 111/2.

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realiza o Kunstwollen. “O grande artista, o gênio, não é nada além do

que o executor mais perfeito, o acabamento supremo do Kunstwollen

de seu país e de sua época”58. Usando o exemplo de Rembrant, Riegl

afirma que, além disso, o gênio é aquele que também consegue

assimilar as lições de movimentos artísticos estrangeiros.

Em “Pode o gosto ser objetivo?”, de 1973, Greenberg, ao falar

do consenso que comprova a objetividade do gosto, expõe sua ideia

do melhor gosto, cultivado, que exerce pressão sobre a produção da

melhor arte e que também dela sofre pressão e se modifica. Para ele,

o melhor gosto não pertence a indivíduos isolados, mas funciona num

determinado período e lugar como uma atmosfera, que circula, e que

é possível sentir por vias sutis, “aquele que se faz reconhecer pela

durabilidade de seus vereditos”59. O espectador e o artista

compartilham do melhor gosto, que possibilita o reconhecimento e

consideração das convenções bem como, ao artista, possibilita a

inovação, negando ou descartando uma convenção. “Conhecemos

suficientemente bem o melhor gosto por seus efeitos, possamos ou

não identificar quem o pratica”60, afirma. O melhor gosto, então,

parece se assemelhar ao Kunstwollen de Riegl, na medida em que

determina o estilo na arte, pressionando, por assim dizer, seu

desenvolvimento, suas mudanças ao longo do tempo, e pertence a

um período e um povo determinado.

Uma das objeções feitas a Riegl ao longo dos anos, porém,

versa sobre o fato do estudioso não ter diferenciado, em seus

trabalhos, a arte do artefato, não excluindo, em suas análises (feitas,

vale lembrar, em contato próximo às peças durante seu trabalho em

museus), nem o mais humilde dos objetos de seu complexo estético.

Assim, ele aparentemente está indiferente às questões de valor e

58 PÄCHT, “Aloïs Riegl”. In: RIEGL, op.cit., p. XX. 59 GREENBERG, “Pode o gosto ser objetivo?”. In: GREENBERG, op.cit. (2002),

p. 69. 60 Idem, ibidem, p. 71.

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qualidade na arte. Se todas as criações artísticas são intencionais,

têm um objetivo positivo e seguem um fenômeno estilístico, qual o

lugar do talento? Se consideramos todas as obras bem-sucedidas,

que valor elas têm? Se o gosto é, como creem alguns, um conjunto

de preferências, deve haver alternativas de escolha. Para Gombrich,

por exemplo, que, em “Arte e Ilusão” rejeita o pensamento de Riegl,

“a história do gosto e da moda é a história das preferências, de vários

atos de escolha entre alternativas dadas”61.

Gombrich considera que o vício fatal de Riegl e de seus

seguidores foi ter jogado fora a ideia de habilidade. Logo, se como

Riegl, considera-se que as mudanças e inovações estilísticas são

criadas sob uma espécie de pressão, não há espaço para o que

Gombrich chama de “situação de escolha” e não é possível avaliar o

mérito do artista. Além disso, o historiador recusa a visão riegliana de

que, assim como defende Greenberg, não exista rupturas na história

da arte; para ele, é esse justamente o mérito dos gênios: romper

com o estabelecido.

Em Greenberg, como veremos adiante, o gosto opera por

comparação e não exatamente por escolha ou preferência. Porém, ele

não considera em seu sistema das artes os objetos de decoração e o

artesanato, termos que assumem um tom um tanto pejorativo. O

crítico também separa a arte boa – a Grande Arte, a bem sucedida –

da arte ruim, dando extrema importância à noção de qualidade.

Da Pura Visibilidade em diante

Além de Riegl, também Wölfflin fará uso da pura visibilidade

para a história das artes, que, com ele, se apresentará como a

“história autônoma da visão artística”62. Um dos diversos meios de

61 GOMBRICH, E., Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p.17. 62 Wölfflin apud SALVINI, op.cit., p. 26-7.

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aplicação da teoria à crítica de arte foi o da pintura e crítica militante

francesas da segunda metade do século XIX e início do século XX, nas

quais se desenvolveu não apenas uma teoria, mas também uma

atitude chamada de arte pura, ou arte pela arte, embora alguns deles

retomassem a noção do Belo, como o poeta Théophile Gautier. Entre

eles, o crítico e historiador da arte Paul Mantz se dedicará a traçar a

história das artes francesas baseado em documentos e atento às

obras, com uma visão marcadamente evolucionista.

Passa-se, então, a ser possível falar da arte pela arte, das leis

da arte e do fato de um quadro ser, antes de tudo, uma tela colorida,

postura que se opõe ao Academicismo e ao Romantismo – que

buscavam conteúdos e fins morais ou culturais na arte – e ganham

destaque, agora, a forma pura e os elementos visuais. É nesse

contexto do formalismo que, a partir dos anos 1930, Clement

Greenberg surge no meio intelectual e artístico dos Estados Unidos

pós-crise de 29 e ganha força ao vincular-se à arte do pós-guerra.

Greenberg dá destaque à separação entre arte e vida, às

categorias visuais desenvolvidas a partir da relevância do olhar;

defende uma arte pura, desvinculada da moral e da vida prática;

insiste no julgamento intuitivo da arte; e traça uma história

teleológica do Modernismo na pintura, que visa a planaridade, de

Manet a Pollock e Morris Louis.

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2. O juízo de gosto em Greenberg

Para compreender como Greenberg conceitua e mobiliza o juízo de

gosto no interior de seus textos os ensaios contidos em Estética

Doméstica são essenciais, visto que configuram o esforço central do crítico

em tratar, na década de 70, da estética. O livro recolhe os Seminários de

Bennington, uma série de nove noites de apresentações, em abril de

1971, na Bennington College nos Estados Unidos, e também os artigos

publicados em diversas revistas, frutos dos seminários. Ainda é possível

mobilizar outros momentos nos quais aparece a questão, embora não de

forma central, como em seus textos de juventude, “Vanguarda e Kitsch” e

“Rumo a um mais novo Laocoonte”, nascedouro de muitas das questões

abordadas por ele na maturidade.

Ao tratar de juízo estético e crítica de arte, não se pode ignorar,

porém, a presença constante de Kant e sua Terceira Crítica. Greenberg

decerto dialoga com o filósofo, e constrói sua teoria tendo o kantismo

presente no horizonte, por vezes transformando-o. Yve-Alain Bois diz que

o modernismo de Greenberg “se baseia abertamente em Kant”, com o

qual concorda em “uma distinção absoluta entre o mundo da arte e o dos

artefatos, o julgamento do belo sem mediação” e a “indiferença à

existência material do objeto”.63 Revelando o que seja o juízo estético em

Greenberg, espera-se perceber qual a singularidade de sua leitura de Kant

e quais torções e infidelidades existem nela.

Em “Vanguarda e Kitsch”, de 1939, Greenberg busca examinar “a

relação entre a experiência estética tal como vivida por um indivíduo

específico (...) e os contextos sociais e históricos em que essa experiência

tem lugar”.64 Nesse texto inaugural de sua carreira crítica, referência nos

estudos das artes do século XX, Greenberg defende que a vanguarda teria

63

BOIS, Y., “A Picturesque Stroll around ‘Clara-Clara’”. October (The MIT Press),

vol.29, Summer, 1984, pp.32-62, p.59. 64

GREENBERG, “Vanguarda e Kitsch”. In: FERREIRA & COTRIM, op.cit., p.27.

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nascido no século XIX como tentativa de manter os padrões elevados nas

artes. Para tanto, ele faz um estudo das condições sociais daquele

momento e da importância do conflito das idéias revolucionárias contra a

burguesia para traçar o caminho que leva ao surgimento da vanguarda,

que intenta contrapor-se ao kitsch, em busca de expressar o absoluto da

arte. Assim, se revela também a origem do abstrato, do não-figurativo, na

arte.

Ali, Greenberg mobiliza noções como valor e gosto sem defini-las,

pois sua atenção concentra-se no enfoque histórico da vanguarda. Tais

noções são usadas em seus sentidos correntes, haja vista o emprego na

frase “as novas massas urbanas tinham perdido o gosto pela cultura

popular”65, ou ainda em “nem todo item do kitsch é completamente

desprovido de valor”66. Vemos, porém, em outro trecho, se esboçarem

sentidos mais específicos para esses termos, sentidos de maior destaque

nos ensaios dedicados exclusivamente à questão do juízo, nos anos 70. A

passagem diz:

Seja na arte ou em qualquer campo, todos os valores são valores

humanos, valores relativos. Parece ter subsistido, contudo, através

dos tempos, uma espécie de acordo geral entre a humanidade

culta no tocante ao que fosse arte de boa ou de má qualidade. O

gosto variou, mas não além de certos limites.67

Nessa “espécie de acordo geral entre a humanidade culta” está o

consenso, como veremos adiante, a prova da objetividade do juízo

estético. Aqui, a noção de valor parece já conter características

semelhantes àquelas que serão apresentadas por Greenberg em seu

ensaio “A intuição e a experiência estética” de 1973, fruto da “Primeira

Noite” dos Seminários, no qual o juízo estético surge como um momento

de valoração, em que se dá um valor ao objeto diante do qual se está. A

65 Idem, ibidem, p.32. 66 Id., ibid., p.33. 67 Id., ibid., p.35.

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mesma semelhança e antecipação ocorrem com o gosto.

Já no artigo “Rumo a um mais novo Laocoonte”, de 1940,

Greenberg defende a valorização das especificidades de cada arte em seu

meio, contra a contaminação de uma arte pela outra. Aqui, o título

remete ao Laocoonte de Lessing, do século XVIII, cujo subtítulo era

“Sobre as fronteiras da pintura e da poesia”. Greenberg colocará acento,

por sua vez, sobre as fronteiras das artes plásticas e da literatura, e sobre

a noção de tema que, emprestada da literatura, contaminou as artes

plásticas. Ele prossegue definindo a vanguarda como um movimento que

visava a auto-proteção da arte e introduz discussões que estarão

presentes em fases seguintes de sua carreira, como a oposição entre

forma e conteúdo, e o conceito de pureza de cada arte. Por fim, o autor

assume ter feito uma “apologia histórica da arte abstrata” e diz que

argumentar a partir de outra base exigiria uma incursão pela “política do

gosto”.68

A estética greenberguiana

Estes dois ensaios aqui mencionados são objeto de análise breve do

filósofo francês Yves Michaud, que dedica algumas páginas a Greenberg

em seu livro L’art à l’état gazeux. Embora sua intenção seja traçar uma

linha da teoria estética que desemboca no mundo contemporâneo – no

qual a arte encontra-se difusa, “em estado gasoso”, como diz o título –

partindo de Walter Benjamim para chegar ao triunfo da estética, passando

pela fase inicial de Greenberg, interessa-nos sua análise das

aproximações e distanciamentos realizados pelo crítico nesses ensaios em

relação à estética kantiana.

Segundo Michaud, o esforço teórico de Greenberg dá-se no sentido

de uma “estética talhada para a modernidade (...), uma teoria de obras-

68 GREENBERG. “Rumo a um mais novo Laocoonte”. In: FERREIRA & COTRIM,

op.cit., p.58.

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primas e de critérios para julgá-las em seu sucesso, ao mesmo tempo em

que é uma explicação da lógica dos avanços artísticos”.69 Sua estética

desenvolve-se, portanto, em duas frentes: uma versando sobre a

evolução das artes desde a metade do século XIX, e a outra que “coloca

em evidência as bases do julgamento estético”.70 A primeira trata da

teoria teleológica greenberguiana do Modernismo, sua contribuição à

história e à teoria das artes do século XX, segundo a qual a pintura

moderna evoluiu com o objetivo final de atingir a máxima evidenciação de

seu meio, o plano da tela. A segunda vai se tornar uma questão para o

próprio Greenberg somente no final dos anos 60, quando busca

problematizá-la, segundo Thierry de Duve, graças às inquietações

provocadas, anos antes, por Duchamp71. Ambas, contudo, são fortemente

devedoras de Kant, sendo a primeira ancorada na Crítica da Razão Pura e

a segunda, principalmente, na Crítica da Faculdade de Julgar.

O que inspira Greenberg a considerar a história da arte moderna

como voltada à valorização e reflexão sobre seu meio, e a ver nela uma

autocrítica, é a postura kantiana de investigação da razão pela própria

razão. No artigo “Pintura modernista”, de 1960, ele afirma identificar o

modernismo com a “intensificação, a quase exacerbação dessa tendência

autocrítica que teve início com o filósofo Kant”72. Assim, ele define o

modernismo como o “uso de métodos característicos de uma disciplina

para criticar essa mesma disciplina, não no intuito de subvertê-la, mas

para entrincheirá-la mais firmemente em sua área de competência”73.

Então, quando o modernismo chega às artes, cada arte passa a se dedicar

àquilo que tem de único, explica Greenberg, em busca de uma pureza que

nada mais é do que uma autodefinição.

Assim, a arte imitativa, que tentava dissimular o que nela era

69 MICHAUD, Y., L’art à l’état gazeux. Paris: Stock, 2003, p. 130. Nossa tradução. 70 Idem, ibidem, p.132. 71 Cf. DE DUVE, “Wavering Reflections”. In: DE DUVE, op.cit., pp. 89-90. 72 GREENBERG, “Pintura modernista”. In: FERREIRA & COTRIM, op.cit., p. 101. 73 Idem.

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artifício para se fingir de realidade, perde espaço para aquela que chama

atenção para o que nela é, justamente, a arte. “As pinturas de Manet

tornaram-se as primeiras pinturas modernistas em virtude da franqueza

com que declaravam as superfícies planas em que estavam pintadas”74,

defende Greenberg. Se o que é exclusivo na arte pictórica é a planaridade

da tela, condição que não é compartilhada com nenhum outro meio, como

a escultura, o teatro ou a arquitetura, o plano será evidenciado, e por isso

“a pintura modernista se voltou para a planaridade e para mais nada”75.

Para Michaud, dentro do que se constitui como uma teoria clássica

da Grande Arte, Greenberg “se articula em torno de três ideias, a de

obra-prima, a de invenção criativa e a de experiência do valor na

percepção estética”76. Essa experiência do valor é o momento do juízo

estético, igual a dar valor àquilo que se vê, e que “é o equivalente do

julgamento kantiano do belo”77. Em Greenberg, a arte mobiliza nosso

juízo, pois causa em nós um efeito estético cuja explicação, como diz

Michaud, se dá nas “qualidades de forma das obras”, para as quais

podemos apenas “apontar correlatos formais, da mesma maneira que em

Kant as produções involuntárias do gênio passam pela expressão de

ideias estéticas”.78 Embora para Kant o juízo estético não esteja apenas

ligado à arte e até mesmo prescinda dela, em Greenberg, o juízo fora da

arte não é colocado em questão. O juízo estético e o gosto são discutidos

apenas dentro do universo da apreciação da arte.

A interpretação de Michaud reforça Greenberg como um formalista,

uma vez que, para ele, a qualidade possui lugar de destaque na escrita do

crítico e está intimamente vinculada à forma. Para Michaud, o formalismo

e o modernismo têm a mesma importância que a estética em Greenberg,

que, através de um viés clássico e conservador, buscará dar continuidade

74 Idem, ibidem, p. 102. 75 Id., ibid., p. 103. 76 MICHAUD, op.cit., p. 131. 77 Id., ibid., p. 134. 78 Id., ibid., p. 135.

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às estéticas de Kant e Hegel. O formalismo não apenas está presente no

Greenberg teórico, como também, e principalmente, no crítico, que, em

suas análises, “privilegia sobretudo o esclarecimento da estrutura das

obras, além de atentar para a relação entre elas e a história da arte e

insistir na pergunta pela sua qualidade”79.

A estética que se encontra nos ensaios “Vanguarda e Kitsch” e

“Rumo a uma mais novo Laocoonte” leva Michaud à conclusão de que

aquilo que, em Kant, era “a pretensão à universalidade do julgamento do

belo” torna-se, em Greenberg, “o fato do consenso, passado ou presente,

sobre as grandes obras: a objetividade do gosto é provada, por assim

dizer, pelo consenso através do tempo”80, ou seja, a posteriori. Consenso

este que, como visto acima, se apresenta, ainda, como “espécie de

acordo geral entre a humanidade culta no tocante ao que fosse arte de

boa ou de má qualidade”.

Já “o caráter desinteressado do julgamento estético kantiano”,

continua Michaud, ganha o sentido de “uma tomada de distância

psicológica largamente sujeita à vontade”81, o que estaria ligado ao “fato

do reconhecimento, mais ou menos implícito, de que muitas das obras

modernas necessitem precisamente de tais mudanças de postura

psicológica para poderem aparecer como arte”82.

A ligação entre valor estético e experiência estética em Greenberg

leva Michaud a questionar: “o que acontece quando se pode haver valor

estético sem experiência estética correlata, mas simplesmente uma

constatação de natureza cognitiva ou conceitual?”83 Uma pergunta não

muito diferente daquelas que Greenberg parece ter se feito mais tarde, no

final dos anos 60, e que motivaram sua incursão atenta à estética, ainda

que as respostas às quais ele chegue ali, nos ensaios dos anos 70, não

79 NAVES, R., “As Duas Vidas de Clement Greenberg”. In: GREENBERG, op.cit.

(2013), p. 16. 80 MICHAUD, op.cit., p. 137. 81 Idem. 82 Idem, ibidem, p. 139. 83 Id., ibid., pp. 140-141.

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permitam vislumbre de desvinculação do valor e da experiência estética.

Glória Ferreira e Cecília Cotrim dizem – na apresentação aos textos

organizados em Clement Greenberg e o Debate Crítico – que mesmo

quando o crítico dá lugar ao teórico, o juízo estético em Greenberg

continua “estreitamente ligado a uma experiência pessoal e cotidiana da

arte”84, ou seja, além do formalismo, outro aspecto importante que

atravessa toda a carreira do americano, e influencia fortemente sua

interpretação de Kant, é seu empirismo.

Embora Michaud afirme considerar apenas os ensaios de início de

carreira de Greenberg, parece evidente que sua leitura está carregada dos

Seminários de Bennington, pois é apenas ali, como veremos a seguir, que

o crítico se detém em conceitos como o de consenso – inclusive ligando-o

a objetividade do gosto -, e explicita a importância do distanciamento de

si para o julgamento estético.

Em 1967, quase três décadas após os ensaios “Vanguarda e Kitsch”

e “Rumo a um mais novo Laocoonte”, a revista americana Artforum

organiza uma série de textos de diversos críticos e teóricos sob o título

Problemas da Crítica, para a qual Greenberg colabora com o ensaio

“Queixas de um crítico de arte”. Ali, ele promove esclarecimentos sobre o

juízo estético já sob os mesmos termos que aparecerão em 1971 nos

Seminários de Bennington.

Como apresentado em “Queixas”, o juízo estético coincide com a

experiência imediata da arte. O juízo está contido na experiência e não

podemos chegar a ele por reflexão, pois é involuntário. Por isso, não se

pode acusar um crítico de arte de usar tais ou tais critérios na avaliação

de uma obra como se o fizesse voluntária e refletidamente. "Por serem

imediatos, intuitivos, não deliberados e involuntários, os juízos estéticos

não dão lugar à aplicação consciente de padrões, critérios ou preceitos"85.

84 FERREIRA & COTRIM, op.cit., p.15. 85 GREENBERG, “Queixas de um crítico de arte”. In: FERREIRA & COTRIM, op.cit.,

p.117.

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Porém, os juízos estéticos não são puramente subjetivos, e a prova de

que há neles algo de objetivo é o consenso no decorrer do tempo entre os

juízos de muitas pessoas sobre uma mesma obra de arte, "os vereditos

daqueles que mais se preocupam com a arte e mais lhe dedicam atenção

acabam por convergir ao longo do tempo, formando um consenso"86, o

que nos remete ao “acordo geral” presente em “Vanguarda e Kitsch”.

Embora os juízos não possam ser definidos nem explicitados de

forma discursiva, princípios ou normas devem estar presentes, o que

garante que eles não sejam puramente subjetivos. Para que um crítico de

arte siga uma determinada linha ou posição, acusação que naquele

momento pesava sobre Greenberg, seria necessário, porém, que seus

juízos estéticos também o fizessem, o que seria possível apenas caso

existissem critérios qualitativos definíveis ou explicáveis. Uma vez que

eles não existem, o que há na experiência estética é a liberdade:

(...) no próprio caráter involuntário do juízo estético reside uma

liberdade preciosa: a liberdade de ser surpreendido, dominado, ter

suas expectativas contrariadas, a liberdade de ser inconsequente e

de gostar de qualquer coisa em arte desde que seja bom – a

liberdade, em suma, de deixar a arte permanecer aberta.87

A razão pela qual há os que acreditem no caráter voluntário do juízo

estético, contudo, é o fato de que, constantemente, as pessoas façam

declarações “desonestas” sobre suas experiências estéticas, pois tê-las e

declará-las são coisas diferentes, em momentos distintos. “A declaração

desonesta da experiência estética é o que mais nos acostuma à noção de

que os juízos estéticos são voluntários.”88

Greenberg voltará dedicadamente ao tema nos ensaios frutos dos

Seminários de Bennington, especialmente em “A intuição e a experiência

86 Idem. 87 Idem, ibidem, p.118. 88 Id., ibid., p.119.

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estética”, “O juízo estético” e “Pode o gosto ser objetivo?”. Em perspectiva

com o conjunto de sua obra, e considerando as colocações presentes em

“Queixas de um crítico de arte”, os seminários se revelam como uma

defesa do crítico americano, uma chance de expor longamente e

detalhadamente as bases das análises críticas ao longo de sua carreira. O

que ele faz, porém, não é apenas defender um juízo kantiano que lhe

garanta a base teórica, mas vai além e esboça uma estética sua, ainda

que seja uma estética doméstica, como o livro que reúne suas falas e

ensaios se intitula, sem grandes pretensões filosóficas. Ainda assim, ele

se revela um crítico cioso de seu trabalho e um esteta a ser considerado,

nem que seja apenas por seu valor para a crítica de arte.

A intuição

O primeiro ensaio, “A intuição e a experiência estética” (fruto do

seminário da primeira noite e publicado na Arts Magazine em 1973)

prepara o terreno para a acepção do juízo estético, enfrentada mais

diretamente nos dois ensaios seguintes. Para tanto, mobiliza conceitos

como intuição e experiência. Ali, a experiência estética depende da

intuição estética, que se diferencia da intuição comum por apontar apenas

a si própria, por jamais ser um meio, “mas sempre um fim em si mesma;

[a intuição estética] abriga seu valor em si mesma e repousa sobre si

mesma”89, escreve. Sendo a intuição estética “exclusivamente uma

questão de valor e de valoração” e, sendo a experiência estética

inseparável desta intuição, a experiência estética será, portanto, uma

experiência de valoração.

Não há separação possível, em Greenberg, entre a intuição estética

e o ato de dar valor àquilo que se experiencia.

É impossível aqui não pensar na finalidade sem fim, princípio a priori

89 GREENBERG. “A intuição e a experiência estética”. In: GREENBERG, op.cit.

(2002), p.38.

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do juízo estético em Kant. Ricardo Terra explica que “na Crítica do Juízo,

Kant afirma a autonomia da terceira faculdade da mente, [que é] o

sentimento de prazer e desprazer, ao lado da faculdade-de-conhecer

[tema da Crítica da Razão Pura] e da faculdade-de-desejar [tema da

Crítica da Razão Prática]; e faz a sua crítica, encontra seu princípio a priori

– a finalidade”.90 Ali, “o belo satisfaz sem conceito, o julgamento do belo

tem por fundamento uma finalidade meramente formal, isto é, uma

finalidade sem fim”.91

Há então uma diferença entre a finalidade em Greenberg e em Kant.

Para o filósofo alemão, o princípio a priori da faculdade de julgar é a

finalidade formal, uma finalidade sem fim. Já Greenberg, fortemente

calcado em Kant, embora não tenha como preocupação central a filosofia,

não busca um princípio a priori para seu juízo, a intuição estética tem a si

mesma como finalidade, o que deixa de ser uma finalidade meramente

formal. Além disso, o crítico americano trabalha com conceitos como valor,

qualidade e forma, mas abandona o belo, como convinha a um intelectual

em sua época.

Greenberg continua seu artigo e explica que a “valoração estética

significa, na grande maioria dos casos, o estabelecimento de distinções de

amplitude ou grau” 92. Feita tal explicação da valoração estética, ele

retoma-a, apenas uma frase depois, com as seguintes palavras: “De modo

geral, o juízo estético significa encontrar matizes e gradações ou mesmo

medidas – no entanto, sem uma precisão quantitativa, e sim com um

sentido de comparação”.93 O termo “valoração estética” transmuta-se em

“juízo estético”, sem grandes explicações, numa frase que reescreve a

anterior usando termos diferentes que permitem um ligeiro

90 TERRA, R., “Entre as poéticas prescritivas e as estéticas filosóficas”. In: TERRA, R.

Passagens: estudos sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003, p.

138. 91 Idem, ibidem, p.139. 92 GREENBERG, “A intuição e a experiência estética”. In: GREENBERG, op.cit.

(2002), p.42. 93 Idem.

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aprofundamento da noção de valoração, agora transformada em juízo

estético. Greenberg, assim, evita se deter numa explicação mais

detalhada de como o juízo pode ser o ato de dar valor a um objeto que

possibilite uma experiência estética.

Assim, o juízo estético é uma e mesma coisa que a valoração

estética. Por isso, também é inseparável da intuição estética, sendo,

então, o juízo estético a capacidade de dar valor.

Sabemos daqui que o juízo estético opera não com precisão

qualitativa, mas por comparação, buscando matizes e gradações.

Em outras palavras, Greenberg afirma ser a intuição do valor

estético “um ato de gostar mais ou menos ou um ato de não gostar mais

ou menos”.94 Em Kant, isso aparece como “faculdade de ajuizamento de

um objeto ou de um modo de representação mediante uma complacência

ou descomplacência independente de todo interesse”.95 Desinteresse este

que, como veremos adiante, aparece em Greenberg como um

afastamento do Eu particular que aproxima o fruidor de ser um

representante da humanidade.

Logo, temos até aqui que o juízo estético, a valoração estética e a

intuição do valor estético são a mesma coisa, que pode ser traduzida

também como o ato de gostar, ou não, mais ou menos (com matizes e

gradações). Já aquilo de que se gosta ou não se gosta é o próprio valor

estético, também chamado de qualidade ou afeto estético.

Aquilo de que se gosta ou não é um afeto ou um conjunto de

afetos. A qualidade ou o valor estético é o afeto. (...) o afeto

estético contém e transcende a emoção, por possuir um valor e

por nos obrigar a gostar mais ou menos dele. (...) Pode-se dizer

que o valor estético, a qualidade estética, evoca satisfação e in-

94 Idem. 95 KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,

2005, §5, p.55.

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satisfação, mas isso não se equipara a uma emoção. A satisfação

ou in-satisfação é um ‘veredito do gosto’96

Toda intuição, seja ela comum ou estética, é involuntária, portanto o

juízo estético também é involuntário. “Não se escolhe gostar ou deixar de

gostar de determinada obra de arte”.97 A valoração estética (ou o juízo

estético) é “reflexiva, automática, e jamais se chega a ela por arbítrio,

deliberação ou raciocínio”.98 É justamente o caráter involuntário do juízo

estético que permite firmar um compromisso com o prazer, é sua

necessidade que nos liberta para o prazer. “O prazer [diz Greenberg] – ou

o desprazer – se encontra no juízo; o juízo propicia o prazer, e o prazer

propicia o juízo”.99

No §45 da “Dedução dos juízos estéticos puros” da “Analítica do

Sublime”, Kant diz que é “sobre este sentimento de liberdade no jogo de

nossas faculdades de conhecimento [...] que assenta aquele prazer que,

unicamente, é universalmente comunicável, sem, contudo, se fundar em

conceitos”.100

Greenberg evoca sua experiência ao explicar o prazer estético, a

partir do fato de que, para Kant, ele é o “livre jogo” e a “harmonia” das

“faculdades do conhecimento”. Para ele, não é preciso aceitar a definição

kantiana das faculdades do conhecimento para perceber em sua própria

experiência estética o papel da atividade cognitiva, embora sua definição

de juízo não abarque a noção kantiana das faculdade e seja um ato de

valoração ao invés de um livre jogo. Ele escreve: “Tal como o sinto, tal

como o percebo em mim mesmo, o afeto, ou o prazer da arte [...]

consiste em uma sensação de cognitividade exaltada – exaltada por

transcender o conhecimento enquanto tal. (...) Eu sei, embora não tenha

96 GREENBERG, “A intuição e a experiência estética”. In: GREENBERG, op.cit.

(2002), p.42. 97 Idem, ibidem, p.43. 98 Idem. 99 Id., ibid., p.44. 100 KANT, op.cit., §45, p.152.

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algo específico para saber”.101

Greenberg busca se aproximar da teoria kantiana não pelo

desenvolvimento da argumentação, mas pela experiência direta com a

arte. O empirismo de Greenberg não explica o que vem a ser o

“conhecimento enquanto tal”, assim como não fornece mais detalhes

sobre o que entende por cognitividade. Entende-se que ele espera que

possamos concordar com a sensação que ele descreve apenas

comparando-a com nossa própria experiência dessa sensação. O que

Greenberg descreve como uma exaltação da cognitividade por transcender

o conhecimento enquanto tal, por tratar-se “de um estado de consciência,

e não de um acréscimo de consciência”102, parece ser, em Kant, o livre

jogo das faculdades do conhecimento.

Greenberg parece glosar a definição kantiana na passagem

Emoção, percepção sensorial, lógica, saber e até mesmo

moralidade tornam-se conhecidos, percebidos e sentidos a partir

de uma perspectiva exterior, de um ponto privilegiado em que são

controlados e manipulados em exclusivo benefício da consciência103

Embora o sublime nunca apareça nos escritos greenberguianos, o

crítico parece se aproximar da noção ao definir, brevemente, uma obra

suprema como aquela que faz com que alguém “não se sinta à altura

dessa exaltação de conhecimento que o invade”104 quando diante dela.

Tudo se passa como se houvesse um limite para a exaltação da

cognitividade e que, para além desse limite, se estaria então diante de

uma obra suprema. Em Kant, o sentimento do sublime nada tem a ver

com sentir-se ou não à altura daquilo que o atinge, e

101 GREENBERG, “A intuição e a experiência estética”. In: GREENBERG, op.cit.

(2002), p.44. 102 Idem. 103 Idem, ibidem, p.45. 104 Id., ibid., p. 44

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é produzido pelo sentimento de uma momentânea inibição das

forças vitais e pela efusão imediatamente consecutiva e tanto mais

forte das mesmas, por conseguinte enquanto comoção não parece

ser nenhum jogo, mas seriedade na ocupação da faculdade da

imaginação.105

Para Greenberg, o “valor ou a qualidade estética” é justamente o

“estado de cognitividade ou consciência exaltada”, e, por isso, a arte

inferior, desprovida de valor, é aquela que não consegue “induzir

suficientemente este estado”106. A arte, boa ou má, promete esse estado,

mas apenas a boa entrega o que promete, enquanto a suprema, o

ultrapassa. “E somente a intuição estética – o gosto – pode afirmar em

que medida a promessa é cumprida”107.

Temos, portanto, que o prazer advindo da experiência estética é o

prazer da consciência, e é esse estado de consciência ou cognitividade

(Greenberg parece não diferenciá-las) exaltada o próprio valor ou a

qualidade estética. A arte inferior, assim, permite apenas uma experiência

estética também inferior, ainda que toda experiência estética anuncie ou

insinue uma promessa do estado de consciência exaltada, seja ela boa ou

má.

O gosto é a intuição estética, a capacidade, então, de gostar ou não,

mais ou menos de determinada coisa, é a intuição do valor estético e o

próprio ato da valoração, ou seja, o juízo estético. Já aquilo de que se

gosta é o valor estético, a qualidade, aquilo que sentimos como

consciência exaltada ou também afeto estético. Temos então definições de

termos que serão importantes na sequência dos artigos derivados dos

seminários.

105 KANT, op.cit., §23, p.90. 106 GREENBERG, “A intuição e a experiência estética”. In: GREENBERG, op.cit.

(2002), p.45. 107 Idem.

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O caráter involuntário do juízo

O seminário da segunda noite, publicado como artigo no verão de

1974, aparece em Estética Doméstica sob o título “O Juízo Estético”.

Greenberg começa com uma advertência: ao se falar de arte corre-se o

risco de se fugir do assunto quando certas “verdades axiomáticas” são

esquecidas. Logo, para não se correr tal risco, elas devem sempre ser

repetidas. Pode-se imaginar a advertência como forma de remeter ao

ensaio anterior que, embora publicado alguns meses depois, teve suas

ideias apresentadas no seminário da noite que precedeu esta em questão

e, ao mesmo tempo, uma forma de introduzir o objetivo deste artigo:

deixar claras as características do juízo estético, sobretudo seu caráter

involuntário, o que parece ser uma dessas verdades axiomáticas das quais

não se deve esquecer.

Os vereditos do gosto, que surgem aqui como sinônimo de juízos

estéticos, fogem ao “campo de ação daquilo que geralmente se toma por

evidência”.108 Os juízos estéticos de valor não são passíveis de prova nem

de demonstração, mas, segundo Greenberg, ainda há aqueles que

insistem na possibilidade da prova. Ele busca demonstrar tal

impossibilidade, então, através de exemplos da experiência. Se os juízos

fossem passíveis de prova, como seria possível que ainda existissem

pessoas sensatas que preferem Beatles à Beethoven? Será que elas assim

preferem porque ninguém ainda se deu ao trabalho de provar que elas

estão erradas, porque Beethoven é melhor ou porque não há como

provar?

Assim como não é possível provar os juízos comparativos, como no

caso apontado de Beatles e Beethoven, também não são passíveis de

prova os juízos absolutos. Ninguém ainda foi capaz de provar, de forma

irrefutável, que é a característica da prova, que existe alguma qualidade

108 GREENBERG, “O juízo estético”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.47.

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que seja em Raphael ou Shakespeare, ou mesmo que exista alguma ou

nenhuma qualidade em qualquer arte.

O autor não se nega à tentativa, e passa a levantar as possibilidades

que pudessem explicar a superioridade, segundo ele, de um trecho de

poema de T.S.Eliot sobre um de Sir William Watson, ambos sobre o mês

de abril. Porém não tem sucesso, uma vez que as possibilidades não

passam de descrições de características do poema que, quando da

tentativa de serem generalizadas, são então refutadas. “Como podemos

chegar a essa suposição [a de que uma visão sombria do mês de abril é

sempre melhor que uma visão afetuosa], garantir a ela um acordo

universal de modo que possa ser empregada com segurança como

premissa maior de um silogismo irrefutável?”109 Os juízos estéticos,

comparativos ou absolutos, que possam ser de alguma forma provados,

também devem poder ser provados isoladamente.

Se fosse possível provar um juízo estético, as mesmas formas de

prová-lo poderiam também ser usadas para chegar a um juízo, bastando

fazer o caminho inverso, o que nos permitiria julgar obras de arte sem

entrar em contato direto com elas, podendo nos basear apenas em

informações transmitidas. Descobertas as formas de provar os juízos, com

elas poderíamos também determinar exatamente as propriedades da arte

superior e, assim, criá-las deliberadamente. “A elaboração da arte, bem

como a sua observação, estariam reduzidas a uma questão de

procedimentos seletivos codificados, que poderiam ser ensinados como os

da contabilidade”110, escreve Greenberg. O passo-a-passo da arte, como

uma receita de bolo, estaria então revelado, tanto para sua execução,

como para sua fruição e crítica.

Contudo, uma vez que os juízos estéticos “não podem ser provados,

demonstrados, apresentados nem sequer questionados”111, mas podem

109 Idem, ibidem, p.50. 110 Id., ibid., p.53. 111 Id., ibid., p.55.

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ser debatidos, o debate vai girar em torno de menções e citações, abrindo

as portas para a crítica de arte e para um espaço de negociação do

sentido. Camillo Osório diz que o fundamental para a crítica de arte é que

“a responsabilidade de julgar em Kant [...] nasce da vivência singular dos

fenômenos e das negociações de sentido que se desdobram

necessariamente daí”112, o que se pode estender a Greenberg.

Numa discussão sobre uma obra de arte, uma pessoa pode citar o

que lhe agrada e o que lhe desagrada naquela obra, enquanto seu

interlocutor pode concordar, genuinamente, apenas quando “sua própria

reação estética intuitiva e espontânea”113 for aproximadamente a mesma.

Não é possível, porém, convencer alguém sobre um juízo, segundo

Greenberg, pois para haver acordo é preciso uma concordância de juízos.

Portanto, considerando-se uma mesma obra, não é a força de um

argumento ou a reflexão que pode levar a alteração de um juízo, mas

somente um novo contato com a obra de arte em questão.

Quando alguém expõe seu juízo, como o faz um crítico, por

exemplo, apontando o que lhe agrada e desagrada numa obra, o intuito

não deve ser o convencimento do outro mas sim tentar influenciar a

atenção do outro para um contato renovado com a obra. Uma vez

influenciada, a atenção “pode expor sua intuição e seu gosto a aspectos

de uma obra de arte para os quais eles não teriam se direcionado, ou sido

direcionados”.114 O que se busca nos debates sobre arte quando se aceita

a impossibilidade de provar os juízos estéticos, ou vereditos do gosto, é

influenciar a atenção do interlocutor, mostrando-lhe os aspectos sobre os

quais recaiu sua intuição, visando uma nova visita à obra para que este

possa submeter tais aspectos a seu próprio juízo, abrindo então a

possibilidade para um novo juízo, que será a revisão ou a confirmação do

anterior.

112 OSORIO, L. Razões da Crítica. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2005, p.19. 113 GREENBERG, “O juízo estético”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.55. 114 Idem.

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O gosto vai assim se desenvolvendo, capaz de ser revisado,

aprimorado, não apenas no embate com e na abertura aos juízos de

outras pessoas, mas também no esforço de um olhar atento e que não se

canse de olhar e reconsiderar as obras, e na comparação entre diferentes

obras, no exercício do juízo comparativo.

O distanciamento do Eu

Embora o juízo estético, por ser uma intuição e por depender apenas

do indivíduo diante da obra de arte, nos coloque em contato íntimo com

ele e com nós mesmos, o indivíduo se distancia do “Eu particular” e passa

a “ser tão objetivo quanto em seu raciocínio”115, pois o juízo é impessoal,

no sentido de uma semelhança entre seres humanos. Quanto mais

impessoal, mais objetivo o juízo, quando o indivíduo “fica mais próximo de

ser um representante da humanidade”.116 Temos aqui o que Michaud,

como visto anteriormente, considera a transmutação do “caráter

desinteressado do julgamento estético kantiano” em “uma tomada de

distância psicológica largamente sujeita à vontade”,117 que poderia,

porém, confundir o caráter involuntário do juízo, tão importante para

Greenberg.

O juízo desinteressado em Kant se dá no não interesse no objeto

que se julga. Considera-se que a obra de arte não serve a nenhuma outra

coisa que não o prazer estético, ela não tem função, o que garante a

autonomia da arte. Esse tipo de desiteresse também existe em

Greenberg, que não aceita que a arte tenha uma função. Porém, o que se

tem no distanciamento do “Eu particular” é um desinteresse do eu, o

espectador abandona sua individualidade e, assim, se aproxima da

humanidade como um todo. Seu juízo não é subjetivo, pois não lhe

115 Idem, ibidem, p.56. 116 Id., ibid., pp.56-57. 117 MICHAUD, op.cit., p. 137.

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pertence, e é objetivo na medida em que, como em Kant, a humanidade

deve aquiescer.

O fato de Michaud nos dizer que esse distanciamento do “Eu

particular” é “largamente sujeito à vontade” nos leva a questionar o

caráter involuntário do juízo. Se a intuição estética, como visto, é

involuntária, como pode o espectador afastar-se por vontade própria de

seu eu e buscar uma posição de julgamento universal voluntariamente?

Haveria então dois momentos distintos no juízo?

Talvez essa objetividade do impessoal e aproximação de uma

humanidade comum aqui descrita por Greenberg se aproxime menos do

caráter desinteressado do juízo, como quer Michaud, e mais de outro

aspecto da teoria kantiana. Como explica Jens Kulenkampff, quem julga

pelo gosto, em Kant, “faz isso guiado pela ideia de uma voz universal ou

pela ideia de um sentido comum. Isso significa que ele faz de conta que

existe uma concordância estética universal e um sentido universalmente

humano”.118 É esse aspecto do juízo de gosto kantiano que parece ter sido

levado em conta por Greenberg ao falar do afastamento daquele que julga

de seu “Eu particular”, que possibilita que ele seja um representante da

humanidade. Pode-se considerar que, diferentemente do que afirma

Michaud, não é uma postura psicológica sujeita à vontade, mas uma

postura que se toma involuntarimente no exato momento do juízo e que

garante sua impessoalidade.

Subjetivo e objetivo fazem parte da antinomia kantiana, que assim

comenta Dominique Chateau

o julgamento estético é desinteressado [não é ligado a interesse

no objeto], portanto subjetivo. Mas ao mesmo tempo, [...] o

julgamento estético é objetivo, no sentido de que aquele que

118

KULENKAMPFF, J., “Do gosto como uma espécie de sensus communis ou sobre as

condições da comunicação estética”. In: ROHDEN, Valério (org.). 200 anos da Crítica

da Faculdade do Juízo de Kant. Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, Instituto

Goethe/IBCA, 1992, p.79.

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experimenta essa espécie de satisfação deve considerar que ela

'está fundamentada em alguma coisa' que ele pode também supor

em todas as outras' [pessoas]119

Essa “alguma coisa” é a voz universal, o sentido comum, que

aparece em Kant como sensus communis, que garante a objetividade do

juízo. Em Greenberg, será o consenso que desempenhará esse papel.

No artigo que se segue em Estética Doméstica, “Pode o gosto ser

objetivo?”, Greenberg começa traçando as origens do uso da palavra

“gosto”. Segundo ele, o termo teria entrado nas discussões sobre arte no

século XVII, e no século seguinte “passou a ser o termo consagrado para

a faculdade do juízo estético”120. Todos os problemas que existem na

experiência com a arte podem ser resumidos, segundo ele, em problemas

do gosto, o que essencialmente são um problema só: “se os vereditos de

gosto são subjetivos ou objetivos”. Essa é a questão para Kant na Terceira

Crítica, porém Greenberg diz que ele não resolveu de modo satisfatório o

problema, uma vez que “postula uma solução sem prová-la, sem aduzir

algo que a comprove”121.

O que se segue é uma explicação de Kant feita por Greenberg e que

leva Thierry de Duve, no artigo “Wavering Reflections”, a dar ao crítico

uma “lição de filosofia”, na qual dedica alguns parágrafos para explicar, ele

mesmo, o que Kant de fato faz em sua Terceira Crítica, desmentindo o

ataque de Greenberg. Aqui basta dizer que, para De Duve, o crítico

americano refuta Kant tendo por base a experiência, e que sua leitura do

filósofo é uma leitura empirista, esclarecendo que Kant teria sido o

primeiro a levar a sério a antinomia do gosto (subjetivo e objetivo), “o

que significa que os dois lados estão certos”.122 Seria válido, porém,

119

CHATEAU, D., “O objetivismo de Kant”. In: CÉRON, Ileana Pradilla & REIS, Paulo

(org). Kant: crítica e estética na modernidade. São Paulo: Editora SENAC, 1999,

p.69. 120 GREENBERG, “Pode o gosto ser objetivo?”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.65. 121 Idem. 122 DE DUVE. “Wavering Reflections”. In: DE DUVE, op.cit., p.109.

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desconsiderar o que escreve Greenberg sobre estética porque ele não

soube interpretar Kant corretamente? Nem De Duve, assumindo os erros

do crítico, o desconsiderou de seus escritos. Greenberg tem uma leitura

particular de Kant, uma leitura empirista que, embora contenha erros

filosóficos, como aponta De Duve – pois ele, apesar de autodidata, não

era um especialista – contém também torções e interpretações de Kant

que o forçam na direção daquilo que interessava a ele como crítico e que,

também por isso, ampliam a compreensão sobre a relação

espectador/obra de arte.

O descontentamento de Greenberg

Para Greenberg, ainda que a questão do gosto seja essencial para

avaliação e criação da arte, a relutância dos outros em abordá-la persiste.

Tratar do gosto é evitado nos círculos da arte, mesmo que os argumentos

frutos de operações de gosto existam no discurso formal, e na escrita a

respeito da arte, e que esses mesmos discursos não sejam possíveis sem

se presumir vereditos de gosto. O fracasso em lidar de forma conclusiva

com essa questão é considerado pelo crítico como uma das causas de

alguns dos traços mais importantes da arte dos anos 60 e 70, e das

discussões sobre arte de então. Porém, tendo em vista o

descontentamento de Greenberg com aquilo que estava sendo produzido

em arte desde o final dos anos 60, pode-se imaginar que os traços aos

quais ele se refere são aqueles encontrados na arte conceitual e pop, e as

discussões que se desenrolaram em torno delas, inclusive com as críticas

negativas do próprio Greenberg.

O crítico parece não ver nessa arte a qualidade que via em artistas

como Pollock, Morris Louis e outros que entraram em seu “corpus” do

modernismo. Na oitava noite dos Seminários, Greenberg diz acreditar que

nem toda arte pop é ruim mas sim “agradável e pequena”, ou seja, não

boa o suficiente para “manter em movimento a arte elevada”. “Não é uma

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iniciativa realmente corajosa e, em seu mecanismo, as mais elevadas

expectativas do gosto para um determinado meio ficam, na verdade,

desequilibradas”123. Sabemos, desde “Vanguarda e Kitsch”, o quanto o

esforço para manter as exigências do gosto elevadas é importante para o

crítico, assim como sabemos que, para ele, experiência estética não se

desvincula de valor estético, por isso a resistência em aceitar uma arte

que proponha uma experiência que derive mais de conceitos e raciocínio

do que da percepção.

Parte dos artistas do fim dos anos 60 e começo dos anos 70 –

período marcado pela nova esquerda e pelas manifestações dos jovens

pelo mundo – buscavam fazer oposição à experiência estética do

Modernismo. Contra a fruição desinteressada apregoada por Greenberg e

Michael Fried, defendia-se uma arte que demandava do espectador a sua

participação, uma arte “engajada” politicamente. Com isso, buscavam

também a subversão da autoridade da arte, dissolvendo o muro que

separa arte erudita e cultura popular, diferença essa, como vimos,

acentuada no texto “Vanguarda e Kitsch”.

A arte pós-modernista empreende o retorno à figura humana –

apesar de esta nunca ter desaparecido por completo, estando sempre à

margem da “linha da evolução” delineada pela crítica Modernista, como

com De Chirico e Dalí – e rejeita a ideia de evolução sem rupturas na arte

(ideia fundante da teoria Modernista greenberguiana), buscando anular o

mito da vanguarda. A crítica e teórica americana Rosalind Krauss vê o

Pós-Modernismo como o momento do fim das vanguardas124, durante uma

era pós-liberal e pós-progresso. Também são características a presença do

mito, seja ele de que origem for, e o retorno aos antigos, principalmente

às estéticas romana e grega.

Embora a representação Modernista da arte moderna, tal como feita

123 GREENBERG, “Oitava Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 246. 124 Cf. KRAUSS, Rosalind. The Originality of the Avant-Garde and other

Modernist Myths. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1985.

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por Greenberg, seja altamente seletiva, excluindo artistas como De Chirico

e os surrealistas, não se pode negar a relevância das questões deixadas

pela primeira geração da Escola de Nova York, da qual ele faz parte, e que

foram abandonadas pela arte pós-modernista, preocupações quanto à

natureza da expressão e do significado da arte. Greenberg apelida a arte

que está sendo feita no fim dos anos 60, principalmente a arte pop, de

arte “novidadeira”, cujo efeito “é apenas momentâneo, uma vez que

novidade, diferente de originalidade, não é durável.”125 Por esses motivos

talvez é que Greenberg vai ainda promover um debate de suas ideias nos

Seminários.

O grande cisma pelo qual estava passando o debate crítico

americano de arte no final dos anos 60 ficou evidente com o número do

verão de 1967 da revista Artforum, especial sobre a escultura americana,

que trazia artigos de defensores e contrários ao abstracionismo, como

Fried, pelo lado dos Modernistas, e Robert Morris, pelo lado dos

Minimalistas, anti-Modernistas. Estes acusavam aqueles de elitismo, ao

separar radicalmente a arte culta da cultura popular. Porém, os

Minimalistas, atacavam os Modernistas, não pareciam capazes de

apresentar opções ao público leigo ao frustrar suas expectativas em

relação à arte com objetos que no primeiro momento não possuíam nada

de artístico. Para os Modernistas, incluindo Greenberg, a qualidade de

uma obra é medida pelo efeito que gera sobre o espectador, o que

contrariaria as acusações à arte abstrata como sendo hermética e

inacessível.

Quando se afirma que a arte pode viver sem o gosto, escreve

Greenberg no ensaio de Estética Doméstica sobre a objetividade, o que se

está dizendo “sem saber, é que a arte pode sobreviver sem a arte, ou

seja, que a arte pode sobreviver sem oferecer as satisfações que somente

125 GREENBERG, “After Abstract Expressionism”. In: O’BRIAN, op.cit., v.4, p. 134.

Nossa tradução.

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ela oferece”.126 Em um artigo posterior aos Seminários, de 1980, intitulado

“Modern and Postmodern”, Greenberg deixa claro que o Pós-Modernismo

representa uma retração na qualidade da arte, da maior qualidade que se

encontrava no Modernismo, para uma menor qualidade. “A noção de pós-

moderno nasceu e se espalhou no mesmo clima relaxado de gosto e

opinião em que a arte Pop e seus sucessores prosperaram”127, diz ele.

Ali ele define o modernismo menos pela autocrítica e mais,

voltando-se a “Vanguarda e Kitsch”, como resposta a uma crise, à

confusão dos padrões trazida pelo romantismo, que academizou e

embaçou os padrões artísticos, para manter os padrões estéticos

elevados. Assim, o modernismo surge como um esforço que se

desvencilhava das novas demandas do mercado, marcadas pelo gosto

inculto e conservador da burguesia, ao qual, segundo Greenberg, a arte

pós-modernista se dobrou. Se a arte Modernista demanda grande

empenho do espectador para sua fruição, o que pode levar muitos a

acusá-la de hermetismo, o Pós-Modernismo é uma forma de

entretenimento, uma expressão do desejo de relaxar que sempre existiu

na humanidade, uma maneira de “justificar a preferência por uma arte

menos exigente sem ser chamado de reacionário ou retardado”128.

O texto de 1980 ajuda a entender o contexto no qual os Seminários

foram proferidos. Desde meados dos anos 60, Greenberg havia se

afastado do debate público sobre os novos artistas que surgiam e, quando

se manifestava sobre eles, era rechaçado. Nos anos 70, ele já era

ignorado por grande parte do círculo de arte e, por isso, é importante

entender o que pensava sobre a arte do momento, que, para ele,

desprezava o gosto. Apesar de toda relutância em enfrentar o gosto e

apesar de ele ter sido preterido das discussões sobre arte, Greenberg

defende, em “Pode o gosto ser objetivo?”, a importância do retorno à

126 GREENBERG, “Pode o gosto ser objetivo?”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.74. 127 GREENBERG, “Modern and Postmodern”. Arts 54, No.6, New York, february

1980. Nossa tradução. 128 Idem.

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questão, já que o gosto continua a ser decisivo, provavelmente de forma

mais óbvia do que nunca.

A objetividade do gosto

Os acordos de gosto passaram a ser mais importantes e patentes do

que os desacordos com a perda da influência sobre o público, mais

fortemente a partir do século XIX, do significado não-estético de uma

obra, desacreditado em favor do puro valor estético. Como significados

não-estéticos, podemos considerar razões religiosas, políticas,

nacionalistas, morais etc. A partir do momento em que esses significados

perdem força como motivos para desacordo e a arte passa a valer mais

por si mesma, quando sua autonomia é cada vez mais aceita e garantida,

a questão do consenso ganha maior espaço.

Uma vez que o acordo vem superando o desacordo, “a resolução do

problema da objetividade do gosto salta aos nossos olhos”129, segundo

Greenberg, pois, como vimos, a objetividade está intimamente ligada ao

consenso que se evidencia e se confirma no decorrer do tempo. As obras

que se destacaram em seu tempo ou na posteridade por sua excelência

continuam a impor-se àqueles que as observam, escutam ou leem com

profundidade e interesse. As novas gerações confirmam o valor de

Beethoven, por exemplo, ou de Raphael, em contato com suas obras e

não apenas pela transmissão do que os outros falam. A única explicação

possível para a durabilidade que cria e mantém o consenso é o fato de o

gosto ser objetivo; na durabilidade do consenso do gosto reside a prova

de sua objetividade.

A cada geração, com o passar do tempo, os juízos não são recebidos

pura e simplesmente para que o consenso se mantenha mas sim

confirmados em relação a artistas e obras antes exaltadas a partir de sua

129 GREENBERG, “Pode o gosto ser objetivo?”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.68.

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própria experiência, com base no exercício do gosto de cada geração em

contato renovado com as obras. O gosto praticado - “o gosto das pessoas

suficientemente atentas, suficientemente concentradas, ou que se

dedicam o máximo possível à arte” – fala como que em uníssono.

Greenberg pergunta: “e de que outra forma seria possível explicar a

unanimidade senão pela objetividade máxima do gosto?”130

Os desacordos existem – não se pode negar – e surgem

majoritariamente às margens do consenso, sobretudo ao se tratar de arte

contemporânea e recente, uma vez que o tempo nivela de maneira

contínua os desacordos, e os que permanecem versam sobre classificação,

como, por exemplo, a pergunta por qual é melhor: Mozart ou Beethoven?

Assim, os testes objetivos de gosto “são intrinsecamente empíricos e não

podem ser aplicados com o auxílio de regras nem de princípios”131. Para

Greenberg, o que forma o consenso do gosto ao longo do tempo é o

melhor gosto, aquele que “se desenvolve sob a pressão da melhor arte e é

o gosto que melhor se sujeita a essa pressão”132, sendo ele e a melhor

arte indissolúveis. Mas quem detém o melhor gosto? Como visto

anteriormente sobre o Kunstwöllen de Riegl, Greenberg responde que o

melhor gosto não pode ser vinculado a indivíduos isolados, mas apenas a

um grupo, já que funciona num determinado período e espaço como o ar,

“que circula e se faz sentir pelas vias sutis e impenetráveis próprias a uma

atmosfera”133.

Para o crítico, o cânone dos grandes nomes das artes, “espécie de

panteão”, se forma graças ao consenso. “Ali estão os mestres, e estão ali

em virtude daquilo que deve necessariamente ser um consenso do gosto,

e nada mais”134.

O consenso que se forma ao longo tempo não apenas confirma as

130 Idem, ibidem, p.70. 131 Idem. 132 Idem. 133 Idem, ibidem, p. 71. 134 Id., ibid., p. 73.

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obras de qualidade e os nomes dos grandes mestres das artes, como

também confirma o caráter objetivo do gosto, demonstrando que ele é

partilhado pelos demais e não subjetivo. Segundo Greenberg, insistir na

subjetividade do juízo seria aceitar que “a permanência de Homero,

Ticiano ou Bach pudesse ser o resultado do que teria sido a convergência

acidental de uma profusão de experiências estritamente privadas e

solipsistas”135.

Seria o consenso capaz de dar valor a uma obra? Se o indivíduo em

sua experiência estética não gosta do que tem diante de si, porém o

consenso determina que aquilo é bom, o que fazer? O aprimoramento do

juízo aparece, como se verá adiante, como uma forma de acertar os

ponteiros de seu juízo com o consenso, ou seja, objetivando-o cada vez

mais. Mas, se a arte é autônoma, qual a relevância do consenso?

Greenberg morreu em 1994. Após os Seminários de Bennington, nos

anos 70, ele parou pouco a pouco de escrever críticas a uma arte que não

via mais com tanto interesse e se afastou do debate público. Mas por

vezes ministrava palestras e participava de debates em universidades,

como o promovido por Thierry de Duve em março de 1987136 e registrado

no livro Clement Greenberg between the Lines. Em maio de 1993, por

conta do Colóquio Greenberg, organizado pelo Musée d’Art Moderne de

Paris, que contou com a presença de diversos críticos e teóricos

comentando sua obra, como Rosalind Krauss e Jean-Pierre Criqui,

Greenberg foi entrevistado por Ann Hindry em Nova York, e demonstrou

estar profundamente ligado às suas teorias dos anos 70.

Durante a entrevista, Greenberg diz que o juízo estético acontece

“quando se faz o ligeiro esforço de centrar a própria atenção no que se

tem diante de si, então se gosta ou não se gosta (...) não decidimos se

vamos gostar ou deixar de gostar... Não temos poder de decisão”137. A

135 Id., ibid., p. 71. 136 Cf. DE DUVE, op.cit., pp. 121-158. 137 GREENBERG, “Entrevista com Clement Greenberg por Ann Hindry”. In: FERREIRA

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experiência estética, portanto, não tem relação com a lógica e, sim, com a

percepção e a intuição. Não se pode negar que existam fatores externos,

não estéticos, que estão em jogo quando da experiência estética, como a

pressão do mercado e dos formadores de opinião, mas é preciso tentar

ignorá-los. Assim, “trata-se então de trabalhar sobre si, e não é tão difícil

assim”138, diz Greenberg. Trabalhar sobre si, aqui, como visto, buscando

livrar-se do “Eu particular” para estar em consonância com a humanidade.

Tendo avaliado diversos textos da carreira de Clement Greenberg,

em especial aqueles nos quais ele se dedica mais apuradamente à questão

do juízo estético, fica claro o caráter involuntário do gosto que emite

juízos estéticos, ainda que apareça uma possibilidade de seu

aprimoramento. Como um juízo involuntário pode ser aprimorado?

Com o esclarecimento do que seja o juízo para Greenberg, sem

deixar de lado as particularidades de sua leitura de Kant, podemos, então,

avançar em busca de compreender a possibilidade de aprimoramento do

juízo estético que se delineia em sua teoria, e a importância deste para o

trabalho do crítico de arte. “O bom crítico [diz Greenberg na Segunda

Noite de Seminários] chama a sua atenção para algo em sua própria

experiência que você apagou, e o remete novamente à obra com a

atenção aguçada".139

& COTRIM, op.cit., p.144. 138 Idem, ibidem, p.145 139 GREENBERG, “Segunda Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 157.

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3. O Aprimoramento do Gosto

O juízo estético é, como visto até aqui, intuitivo e objetivo, fruto do

contato direto com a obra de arte, não podendo ser alterado através da

reflexão, mas apenas através da revisitação da obra, criando-se, assim,

uma nova intuição. “Um juízo estético pode ser alterado, ou confirmado,

apenas por meio do contato renovado com a obra de arte em questão, e

não através da reflexão nem sob a pressão do argumento.”140

Se existe uma arte boa, a Grande Arte segundo Greenberg, aquela

que tem qualidade, e essa arte é confirmada como superior ao longo do

tempo através do consenso de juízos que se cria em torno dela, o que um

indivíduo pode fazer para que seu juízo seja igual ao consenso? Como seu

juízo pode valorar uma obra que o consenso garante que seja arte boa? O

gosto pode ser aprimorado para que emita juízos acertados? E, ainda,

como ser capaz de separar o bom do ruim em arte? Essas perguntas

rondam o leitor de Greenberg desde seus primeiros artigos, porém ele

apenas responderá a essas questões em seus escritos tardios.

Em debate na Universidade de Ottawa em 1987, Thierry de Duve

pergunta a Greenberg qual seria seu conselho aos jovens que queiram

cultivar seu gosto e habilidades estéticas, ao que ele responde: “Vejam o

máximo de arte que puderem”141.

Ainda em “Vanguarda e Kitsch”, há apenas uma breve menção ao

que poderia ser o aprimoramento do gosto, apresentado ali como uma

educação do gosto, como, nas palavras do Greenberg de 1939, um

“aprender a apreciar”, que demanda condicionamento, que, mais tarde,

aparecerá como empenho.

(...)o camponês logo descobre que a necessidade de trabalhar

arduamente o dia inteiro para seu sustento, e as circunstâncias

140 GREENBERG, “O Juízo Estético”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.55. 141 GREENBERG, “Debate with Clement Greenberg”. In: DE DUVE, op.cit., p. 156.

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rudes e desconfortáveis em que vive não lhe proporcionam

suficiente tempo livre, energia e tranqüilidade para aprender a

apreciar Picasso. Afinal, isso exige uma dose considerável de

‘condicionamento’.142

Mas é só quando Greenberg assume a tarefa de discutir estética, e

dedica os seminários de Bennington a isso, que se pode vê-lo desenvolver

tais questões e apresentar seu posicionamento sobre a possibilidade de

aprimoramento do gosto.

Em sua introdução a Estética Doméstica, Harrison afirma que a

única maneira apropriada pela “qual se pode adquirir uma noção do valor

da arte é a reação pessoal na ocasião do contato direto”. E acrescenta:

“Ele [Greenberg] manifestava impaciência diante dos que não se

empenhavam o bastante por esse contato”143. Visto que não é possível

controlar o juízo estético, é possível, porém, aprimorar o gosto para que a

cada nova intuição, ele, cada vez mais refinado, seja capaz de distinguir

cada vez melhor entre o bom e o ruim. A noção de empenho do

espectador no contato com a arte aparecerá como elemento central nesse

desenvolvimento.

O gosto pode ser aprimorado através da frequente exposição à arte,

seja por uma “ampliação do campo da experiência”, ou seja, visitando

obras distintas, seja por “repetidos contatos com as mesmas obras”144.

Além disso, é importante o empenho, necessário para discernir o bom do

ruim, um empenho na comparação. Mas como operar por comparação se

não há critérios definidos? Parece-nos que a comparação de que fala

Greenberg aqui não é uma comparação entre as obras, e, sim, a

comparação entre juízos. Compara-se, portanto, o gostar mais ou menos

e como se gosta. Por isso, a importância, também, de não se negar o

142 GREENBERG, “Vanguarda e Kitsch”. In: FERREIRA & COTRIM, op.cit., p.39. aspas

do autor. 143 HARRISON, C., “Introdução: O Juízo na Arte”. In: GREENBERG, op.cit. (2002),

p.14. 144 Idem, ibidem, p.16.

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esforço de descrever, pelo menos para si mesmo, com a maior fidelidade

possível, o que se sente diante da obra.

O momento da enunciação

Como visto anteriormente, os juízos estéticos têm um caráter

involuntário e, assim sendo, através deles seria possível saber o quão

cultivado é o gosto. Mas, apesar de a intuição do juízo estético ser

involuntária, a sua enunciação é passível de controle pelo espectador. Por

vezes, o juízo intuído não é o mesmo que o enunciado e os obstáculos

para que o espectador possa se exprimir honestamente são diversos: de

vergonha e insegurança num meio que lhe parece hostil a pressão de

autoridades ligadas ao sistema das artes. Assim, muitas vezes, o

espectador busca se encaixar em um consenso que ele imagina existir

entre as pessoas ao seu redor e acaba por mentir sobre sua avaliação de

uma obra de arte.

Para Greenberg, o momento da expressão do juízo, assim como ter

sua intuição, porém, só cabe ao indivíduo e a ele apenas, em completa

liberdade, mesmo que por vezes sinta-se constrangido a ser desonesto na

hora de expressá-lo, até para si mesmo. É preciso, antes de tudo, assumir

seus juízos, ainda que apenas para si, para ser capaz de revê-los num

novo contato com a obra, ou no contato com obras nunca antes vistas.

O veredito de uma pessoa sobre uma obra de arte só pode ser

alterado num novo contato com a obra. Essa “não é apenas a única

alternativa legítima, é a única alternativa honesta.”145 Um juízo estético só

pode ser deslocado, modificado ou testado por outro juízo de valor

estético da mesma pessoa, porque “a experiência de um juízo de valor

não pode ser comunicada nem transferida de uma pessoa para outra”146,

145 GREENBERG, “Segunda Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.149. 146 GREENBERG, “A Linguagem do Discurso Estético”. In: GREENBERG, op.cit.

(2002), p.125.

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lembra o crítico no ensaio “A Linguagem do Discurso Estético”, fruto da

oitava noite dos Seminários e publicado em 1979, na Arts Magazine.

Pode acontecer em discussões sobre arte, porém, que o juízo de

uma pessoa conduza outra a revisitar a obra de arte com atenção

redirecionada.

Quando, ao sustentar seu juízo acerca de uma obra de arte, uma

pessoa aponta aspectos que lhe agradam ou desagradam, ela

tenta (sabendo ou não) influenciar a sua atenção. (...) E sua

atenção influenciada pode expor sua intuição ou seu gosto a

aspectos de uma obra de arte para os quais eles não teriam se

direcionado, ou sido direcionados, naquele momento particular.147

Assim, o que é possível que uma pessoa faça não é influenciar o

juízo de outra, que continua o mesmo até que ela revisite a obra mas sim

influenciar a atenção da outra, para que, no novo contato direto com a

obra, a atenção da percepção desse interlocutor esteja direcionada a

determinados aspectos para os quais não estava antes e, dessa forma,

seu novo juízo pode diferenciar-se do anterior, ou, quem sabe, mesmo

assim, continuar o mesmo.

Portanto, faz parte do trabalho de um crítico de arte influenciar a

atenção do espectador e não seu juízo, apontando caracteres de uma obra

que possam passar despercebidos por ele, para que, no contato com a

obra, e apenas diante dela, sua intuição possa emitir um juízo a partir de

uma atenção influenciada.

O fato de uma pessoa alterar seus vereditos de gosto sem que

repita o contato com a obra em questão, sem que revise seu juízo anterior

diante da obra através de um novo juízo que seja completamente seu,

gera uma mentira capaz de ferir mais do que qualquer outra em longo

prazo, segundo Greenberg, já que o espectador se deixa convencer a

passar a não gostar de uma coisa da qual gostava, ou a gostar do que não

147 GREENBERG, “O Juízo Estético”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.55.

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gostava.

Em um meio social fortemente ligado às artes, por exemplo, entre

curadores e críticos de arte, não se espera das pessoas que elas digam

gostar mais de, por exemplo, Norman Rockwell que de Rembrandt (para

ficar nos artistas sempre mencionados por Greenberg) e, assim, inserido

nesse contexto, por vezes a pessoa se recusa a aceitar seu veredito.

Porém, ao não confessarem suas preferências sequer para si mesmas, as

pessoas deixam de revisitar a obra buscando reconhecer o que falta na

maneira como observam, no exemplo, Rembrandt; elas perdem, assim, a

oportunidade de mudar alguma coisa e acabam não fazendo nada,

conformando-se a um veredito desonesto.

Dito isso, Greenberg não quer dizer que após olhar muitas vezes

uma obra passa-se simplesmente a gostar dela mas sim que “uma das

coisas que impedem que as pessoas aprendam a ver, e talvez a ler e

escutar, é essa vergonha cultural”148.

Em uma fala sobre o gosto na Universidade de Western Michigan em

1983, Greenberg dá o exemplo de alguém que vê um Raphael e diz a si

mesmo que aquilo tem de ser bom porque as autoridades149 –

conservadores de museus, marchands, colecionadores, críticos de arte –

dizem ser bom, e porque Raphael é muito famoso, apesar desse alguém

não poder ver a qualidade por si mesmo. Essa seria, para o crítico, uma

das piores maneiras de começar e continuar a olhar a arte, simplesmente

seguindo um cânone pré-estabelecido, porque, dessa forma, não se está

dando atenção àquilo que se vê, e, sim, dando maior relevância ao que os

outros dizem.

Porém, como se sabe do que foi visto anteriormente, na estética

greenberguiana, o consenso tem uma importância crucial, talvez seja por

148 GREENBERG, “Segunda Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.149. 149 Para uma discussão sobre o Sistema da Arte e suas autoridades. Cf. CAUQUELIN,

A. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005;

ARANTES, O. B. F. . “A virada cultural do sistema das artes”. Margem Esquerda, São

Paulo, v. 6, p. 62-75, 2005.

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isso que ele não deixe de lembrar que, quando as “autoridades dizem que

alguém é bom e você não consegue vê-lo por si mesmo, ajuda, é quase

essencial, que você volte e olhe de novo, e de novo”150. Mesmo que após

esses retornos se decida que esse Raphael não é mesmo bom, “ao menos,

você tentou e você foi honesto, e com você mesmo acima de tudo”151.

Vê-se aqui a relevância da experiência pessoal na teoria de

Greenberg, marcada pelo empirismo. Ainda que o consenso seja a prova

da objetividade do juízo, é o veredito individual no momento da

experiência do espectador diante da obra, mesmo que essa visita se repita

diversas vezes, que reina soberano. Para o crítico, o essencial para

aqueles que verdadeiramente se interessam pela arte é que relatem para

si mesmos, com a maior precisão possível, sua vivência da arte, como

vemos Greenberg fazer em suas críticas. Ele diz ser preciso prestar

atenção ao que ocorre consigo ao passar por essa vivência, o que

“qualquer um pode aprender a fazer”, sem esquecer que a “experiência é

a única e exclusiva fonte da verdade acerca da arte qua arte.”152

O crítico conta como desenvolveu seu gosto ao falar de sua

experiência na terceira noite dos Seminários. Ele diz que o expôs à

correção ao voltar para rever obras sobre as quais havia desacordo entre

ele e outras pessoas, e através de novas experiências. “Meu gosto ficou

exposto à correção por novas experiências e pelo desacordo com outras

pessoas que diziam: olha eu discordo de você, e então eu voltava para a

obra de arte que era objeto do desacordo”153. O que ele frisa ali é que o

gosto não se aprende com outra pessoa, não se aprende pela

comunicação, mas sim que a única maneira de se desenvolver o gosto é

por si mesmo, através de sua própria experiência, com o empenho e

150 GREENBERG, “Taste”. Transcrição de palestra na Universidade de Western

Michigan em 18 de janeiro de 1983. Disponível em:

http://www.sharecom.ca/greenberg/taste.html. Acesso em: 27 nov. 2012. Nossa

tradução. 151 Idem. 152 GREENBERG, “Segunda Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.150. 153 GREENBERG, “Terceira Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 172.

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disposição para reconsiderar seus vereditos.

Em entrevista concedida em 1993, às vésperas do Colóquio

Greenberg realizado no Museu de Arte Moderna de Paris, ele fala do

trabalho do crítico, que deve desenvolver seu gosto como qualquer outra

pessoa interessada em arte, já que as qualificações de um crítico estão

diretamente ligadas ao gosto; sua vocação “é mostrar, tanto na arte

contemporânea como na arte do passado, o que ele prefere, contrapondo-

o ao que não prefere e, de certo modo, convidar o leitor a ver se está de

acordo com ele.”154 Esse convite do crítico a seu leitor é um convite à

revisitação da obra, para que seja emitido um novo juízo; mas, sabe-se

que, na prática, o espectador pode ir já para o primeiro contato com a

obra com sua atenção influenciada ou, na impossibilidade de uma segunda

visita, ele pode avaliar seu juízo e perceber em que medida e porque seu

juízo se afasta ou se aproxima do juízo exposto pelo crítico, ainda que

nessa avaliação não possa modificá-lo.

Considerando-se isso, até que ponto o consenso não opera da

mesma maneira que um crítico ou um colega de debate, influenciando a

atenção do espectador? Em outras palavras, o consenso se manteria

indefinidamente porque ele, na forma de cânone, funciona como uma

manipulação da atenção dos espectadores ao longo do tempo.

Empenho e paciência

Além do relato sincero da experiência diante da arte, é necessário

empenho em buscar discernir o bom do ruim, o empenho na comparação.

No ensaio “A identidade da arte”, de 1961, Greenberg fala do empenho na

humildade e na paciência requeridos no aprendizado necessário para

vivenciar ou avaliar a arte. Portanto avaliar arte é, embora feito através

de um juízo estético intuitivo, como ficou claro anos mais tarde, um

154 GREENBERG, “Entrevista com Clement Greenberg por Ann Hindry”. In: FERREIRA

& COTRIM, op.cit., p. 144.

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aprendizado.

Na sexta noite nos Seminários de Bennington, ele afirmará, em

outras palavras, que “gosto é algo que se cultiva, que não é inato.”155

Ainda no ensaio de 1961, que trata dos juízos precipitados sobre arte

abstrata, Greenberg diz que ninguém tem o direito de ser ouvido quando

o assunto é arte abstrata, “sem experiência o suficiente para ser capaz de

diferenciar o bom do ruim” nessa arte, deixando claro que experiência ali

quer dizer “experiência que envolve certo esforço”156.

Ele prossegue descrevendo pessoas que conhece que, embora

frequentem museus e galerias, nunca são capazes de expandir seu gosto

“além de certos limites” por preguiça, “porque eles se tornaram muito

preguiçosos para tentar discriminar o bom do ruim em tipos de arte com

os quais não estão familiarizados”157; ou seja, ao se deparar com uma

arte com a qual não se está acostumado é preciso esforço para distinguir

o bom do ruim, e esse esforço é tal que há pessoas que são preguiçosas

demais para fazê-lo. A essas pessoas que não fazem o esforço necessário

para aprimorar seu gosto resta apenas a opinião, que, como afirma o

crítico na nona noite dos Seminários, “ocorre a pessoas que pararam de

aprimorar [developing] o seu gosto”158.

Assim, a opinião surge como o resultado de um juízo sem esforço,

de um gosto preguiçoso que não se desenvolve. Pode-se dizer que, ao

contrário do juízo de um gosto que busca o aprimoramento constante pelo

esforço da comparação, pela dedicação e não apenas pela visitação de

obras, a opinião é fruto de um gosto acomodado, que se recusa a novos

desafios.

O gosto não oscila, embora os juízos possam mudar após uma

revisitação e reconsideração de determinada obra. O gosto, ao contrário,

155 GREENBERG, “Sexta Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.219. 156 GREENBERG, “The Identity of Art”. In: O’BRIAN, op.cit., v.4, p. 119. 157 Idem. 158 GREENBERG, “Nona Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.272. Original:

GREENBERG, Homemade esthetics : observations on art and taste. New York:

Oxford University Press, 1999, p.192.

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se desenvolve, expande e cresce. Ele muda apenas no sentido em que se

corrige durante o processo de seu crescimento. O gosto se refina e se

abre, à medida que se envelhece e se olha para mais e mais obras de

arte, assim, mais se gosta de arte, sem ter de baixar seus padrões, mais

capaz o gosto se torna de discriminar à medida que se desenvolve. Porém,

discriminar não deve ser entendido aqui num sentido exclusivo, que

elimina mas sim inclusivo. Ao ser capaz de distinguir o bom do ruim, ao

desenvolver o gosto, abre-se o gosto para o novo, com honestidade para

se olhar uma escultura ou pintura, ou qualquer outro formato, de uma

cultura diferente, da mesma forma como se olha arte contemporânea ou

os grandes mestres da pintura ocidental.

O gosto cultivado não rejeita uma obra antes de lhe dar atenção e

olha para uma coisa de cada vez. Não se deve, portanto, considerar toda a

obra de um artista como boa sem olhar cada uma de suas obras, e

mesmo que se tenha visto todas, quando há uma nova, ou quando resta

uma nova a ser vista, não se pode considerá-la boa pelo retrospecto do

artista mas sim considerá-la como uma obra individual, e julgá-la por si

apenas. Assim, busca-se, parece-nos, eliminar ou diminuir o poder de

influência das autoridades do sistema das artes e, ao mesmo tempo,

pode-se dizer, da força do consenso.

Greenberg sugere que o leitor não-familiarizado com a arte abstrata,

por exemplo, aprenda a separar o bom do ruim nessa arte, ou em

qualquer outra com a qual não esteja familiarizado, o que, considera, é

edificante e particularmente prazeroso.

Deixemos o leitor para quem a arte abstrata ainda é um mistério

tentar isso por si mesmo. Deixemo-lo praticar “no” gosto fazendo

o esforço de decidir, onde quer que ele veja mais de uma obra de

arte abstrata, qual ele gosta mais. E então deixemos que ele volte

depois para ver se ele vai mudar de ideia. É um jogo que demanda

tempo e paciência, mas eu não conheço nenhum outro que seja

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mais proveitoso159

Proveitoso porque, ao praticar o olhar, ao “olhar de novo, olhar

sempre... tantas coisas quanto possível”160, aprimora-se o juízo, e o “olho

praticado tende sempre ao bom definitivo e certo em arte”161. Portanto, ao

escolher de qual obra se gosta mais, ao decidir o que é bom e o que é

ruim em arte, pratica-se a comparação. Aqui vale lembrar que, como já

visto, “o juízo estético significa encontrar matizes e gradações (...) com

um sentido de comparação (e não há refinamento da sensibilidade

estética sem a prática da comparação)”162, o que Greenberg repete no

ensaio “O Juízo Estético” ao dizer acreditar “que o gosto só pode ser

desenvolvido [developed] por meio da formulação de juízos

comparativos”163.

O que se compara quando se faz o esforço de distinguir o bom do

ruim em arte é a qualidade, e é justamente ela que confere valor único à

arte e por meio da qual o consenso determina, através do tempo, o que é,

nas palavras de Greenberg, “bom definitivo e certo em arte”. Na terceira

noite dos Seminários de 1971, Greenberg caracteriza a qualidade como

sendo “constituída por prazer, alegria, entusiasmo, encanto, elevação,

afeto, pela satisfação extraída da arte”164.

O empenho em buscar tais sensações faz parte do empenho em

diferenciar o bom do ruim e que aprimora o gosto; assim, “quanto mais

gosto você tiver, mais qualidade você reconhecerá, e mais satisfação você

irá encontrar na arte”, como uma cadeia de coisas interdependentes que,

ao serem aprimoradas, levam ao apimoramento das outras, e, prossegue,

“quanto mais clara e agudamente você for capaz de distinguir a qualidade,

159 GREENBERG, “The Identity of Art”. In: O’BRIAN, op.cit., v.4, p. 119. 160 GREENBERG, “Entrevista com Clement Greenberg por Ann Hindry”. In: FERREIRA

& COTRIM, op.cit., p. 145. 161 GREENBERG, “The Identity of Art”. In: O’BRIAN, op.cit., v.4, p. 120. 162 GREENBERG, “A intuição e a experiência estética”. In: GREENBERG, op.cit.

(2002), p.42. 163 GREENBERG, “O juízo estético”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.50. 164 GREENBERG, “Terceira Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 169.

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mais irá encontrar”165.

Greenberg enfatiza que o aprimoramento do gosto deve ser um

esforço contínuo, sem interrupção, pois os desafios são inesgotáveis, e

tais desafios que se colocam ao gosto – tanto na arte do presente quanto

na arte do passado – quando superados, proporcionam grande parte da

satisfação que se pode ter da arte, e, assim, “a experiência assimilada de

uma arte pode informar [inform] decisivamente um juízo estético.”166

Embora para manter o gosto afiado para o presente seja preciso

também olhar o passado, conhecer as obras de artes de outros tempos,

ampliando sua experiência, o gosto cultivado não é capaz de fazer

previsões; o gosto pode apenas reconhecer a melhor arte quando a vê,

ele não “antevê a nova experiência nem controla a experiência

presente”167. Pelo contrário, o que o “gosto na sua forma mais plena, em

seu grau mais elevado, quando é atualizado em seu sentido mais pleno”168

normalmente espera é, justamente, a surpresa.

A vida fora da arte

Para que o aprimoramento seja contínuo, é preciso, além do que foi

visto, que o indivíduo também aprimore e amplie “seu sentimento pela

vida de modo geral”, que continue “aprendendo também com a vida fora

da arte”169. A sabedoria que advém da assimilação da experiência geral,

vale lembrar, não basta sozinha no terreno da arte, mas ela colabora,

ainda que seja necessária “certa quantidade de gosto além de sua

sabedoria – do gosto que revela a arte”.

Para Greenberg, “‘logicamente’, o gosto surge primeiro; a sabedoria

165 Idem. 166 GREENBERG, “O juízo estético”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.59. 167 GREENBERG, “O fator surpresa”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 85. 168 GREENBERG, “Oitava Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 251. 169 GREENBERG, “O juízo estético”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.59.

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o informa e o amplia.”170 Portanto, além da frequentação das obras e do

empenho na comparação, em separar o bom do ruim, a sabedoria que

advém da vida cotidiana nos espaços não necessariamente permeados

pela arte também colabora no aperfeiçoamento do gosto, como

complemento.

A experiência estética tem, porém, não se pode esquecer, a si

mesma como finalidade, e o único proveito que se pode tirar dela é

aprimorar o gosto, o que simplesmente serve à própria experiência

estética, na qual “tudo o que precisamos fazer é passar por ela e nada

mais”171.

Se é verdade que a experiência estética está ao alcance de todos e

que o gosto não é inato, podendo ser cultivado, também é verdade que

não são todos os seres humanos que desenvolvem seu gosto para além de

determinado ponto. Os motivos pelos quais isso ocorre podem ir da falta

de interesse pelas artes a poucas oportunidades de contato com elas. No

artigo “Pode o gosto ser objetivo?”, Greenberg afirma que “o gosto

cultivado não é algo ao alcance das pessoas comuns e despossuídas

[ordinary poor] nem de pessoas sem um mínimo confortável de

ociosidade”172.

Apesar de tal afirmação poder entrar na lista daquelas que

motivaram e motivam muitos a tacharem Greenberg de elitista, há de se

considerar que, se para o aprimoramento do gosto é essencial, segundo

ele, o contato constante com obras de arte, paciência, tempo e empenho

na comparação, tal aprimoramento será de difícil acesso aos que

trabalham em horário sobrecarregado e aos que têm seu acesso

170 Idem, ibidem, p.62. 171 Idem. 172 GREENBERG, “Pode o gosto ser objetivo?” In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 71.

No original (GREENBERG, 1999, p. 28), o que na trad. brasileira aparece como “pessoas

comuns e despossuídas” está como “ordinary poor”, ou seja, pobres comuns, comuns

qualificando pobres e não pessoas. Se fosse “pessoas comuns” haveria um problema com

a ideia do gosto não ser inato, pois se não está ao alcance de pessoas comuns, o

aprimoramento só estaria ao alcance de pessoas especiais; porém a questão aqui é

econômica.

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dificultado, muitas vezes vetado, a museus, galerias e bens culturais.

Posto isso, o autor poderia ter matizado mais a questão, pois,

embora as classes sociais mais baixas e trabalhadoras tenham seu acesso

a cultura dificultado, como se sabe, esse acesso também não é impossível,

principalmente em grandes centros urbanos. O aprimoramento pode estar

ao alcance de todos, mesmo que alguns esbarrem em mais obstáculos do

que outros.

Como é necessária ao gosto cultivado a visita constante a obras de

arte do presente e do passado para a formação de um repertório

individual capaz de auxiliar na busca pela qualidade em arte, também está

claro haver dificuldades no aprimoramento do gosto para aqueles que

estão distantes dos grandes centros, impedidos de terem contato

frequente e direto com as obras em museus e galerias.

No debate de 1987, em Ottawa, Greenberg diz, que desde o início

da formação organizada dos humanos e, principalmente, com o início das

cidades, há uma esmagadora maioria que precisa trabalhar muito para

sobreviver, enquanto uma minoria vive bem e confortavelmente; como

para desenvolver o gosto em arte é preciso um pouco de ócio e tempo

livre, tal desenvolvimento acaba sendo elitista, o que ele lamenta e,

concordando com seu interlocutor da plateia, diz ser triste173.

Sabe-se, contudo, que o acesso a arte e a bens culturais não se dá

apenas em visitas a museus e galerias, e que a cultura de massa, bem

como o mercado, absorve e utiliza, a sua maneira, a dita alta cultura e até

mesmo a vanguarda. Obras de arte, ou reprodução delas, estão presentes

em aberturas de novelas, ilustrando bens de consumo, adornando centros

comerciais. Sem esquecer daquelas artes cujo acesso é mais fácil, como é

o caso do cinema e da música. Sendo assim, a questão do alcance e da

formação de repertório nas classes baixas se torna mais complexa do que

parece ver Greenberg.

173 Cf. discussão sobre elitismo em DE DUVE. “Debate with Clement Greenberg”. In:

DE DUVE, op.cit., pp.151-152.

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Embora os impedimentos ao aprimoramento em sua maior parte

sejam de ordem social, com frequência “se devem a questões de

temperamento ou a circunstâncias de formação que em nada se vinculam

a fatores sociais ou econômicos”174. Os impedimentos,

independentemente de sua origem, se fazem sentir como alguma coisa de

natureza pessoal, como uma parte da subjetividade, e é precisamente isso

que impede, “mais do que qualquer outro aspecto imediato, (...) o

distanciamento essencial à experiência estética”175. As questões práticas,

psicológicas, individualizantes e que envolvem interesses afetam o Eu

como indivíduo particularizado, porém, como visto, a experiência estética

requer distanciamento do Eu particular e demanda do indivíduo que ele

passe a ser objetivo; o “grau de objetividade depende da amplitude do

distanciamento. Quanto maior – ou mais ‘puro’ – o distanciamento, mais

estrito (ou seja, mais apurado) passa a ser o gosto”176.

Para experimentar a arte sem vinculá-la a si mesmo como sujeito

particular que tem medos, preocupações, esperanças e interesses, o

distanciamento estético é essencial177. As pessoas que cultivam seu gosto

não se deixam distrair por aquilo que é irrelevante para arte quando se

concentram em olhar, ouvir ou ler. Assim, “quanto mais você desenvolve o

gosto, mais impessoal você se torna.”178

Não se pode negar que muitos fatores externos influenciem a

experiência estética, mas trata-se então do esforço de se desprender

daquilo que não é pertinente do ponto de vista da arte. “Em resumo: a

experiência estética requer, por sua amplitude e intensidade, que você se

torne um receptor distanciado e, portanto, objetivo, cada vez mais

objetivo”179, escreve Greenberg no ensaio “O Juízo Estético”. Entre os

174 GREENBERG, “O Juízo Estético”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 56. 175 Idem. 176 Idem. 177 Cf. GREENBERG, “Observações sobre o Distanciamento Estético”. In:

GREENBERG, op.cit. (2002), pp. 127-131. 178 GREENBERG, “Terceira Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 175. 179 GREENBERG, “O Juízo Estético”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 57.

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fatores externos que devem ser deixados de lado na experiência estética,

também está, é claro, a preocupação com o que os demais pensarão de

seu juízo, como visto anteriormente, e a pressão do mercado da arte e

suas autoridades, por mais difícil que possa ser se desvencilhar deles.

Além disso, como Greenberg liga-se à tradição formalista da

Doutrina da Pura Visibilidade, não pode deixar de notar que o processo de

aprendizado para ver pintura e escultura “consiste no desenvolvimento de

certa inocência do olhar”180para que elas sejam vistas por si mesmas e

não pelo que representam. Este aprendizado faz parte do aprimoramento

do gosto, uma vez que é o olhar que procura pela qualidade na obra de

arte. Para o crítico, a arte abstrata de seu tempo, por não ser figurativa e

não representar algo a que se possa remeter diretamente, havia ensinado

“as pessoas – algumas pessoas, mais pessoas – a ver a pintura por ela

mesma e por nenhuma outra coisa”181.

Gosto se discute

Nas discussões sobre arte, constantemente há aqueles que afirmam

ser o aprimoramento do juízo através de sua prática uma resposta óbvia

para a questão de como melhorar a valoração na arte. Mas essas mesmas

pessoas que consideram essa uma resposta clara e evidente, por vezes

não se preocupam em se desdizer ao afirmar o gosto como subjetivo, e ao

se afastar de discussões sobre obras com a desculpa de não ser possível

discutir a avaliação individual.

Se “gosto não se discute”, como afirma o clichê, e se cada um pode

sentir a arte a sua maneira, como quiser e achar melhor, então por que se

preocupar em aprimorar seu juízo? De que serveria então a crítica de

arte? Qual interesse em saber o veredito de gosto do outro? O que

perdemos, afinal, ao afirmar que não há objetividade no gosto? Se não

180 GREENBERG, “Sexta Noite”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 223. 181 Idem, ibidem, p. 224.

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há, como defendem alguns, um juízo correto e desejável, o que visa o

refinamento do gosto?

Toda obra de Greenberg se preocupa com o aprimoramento do gosto

para se ter uma melhor experiência da arte, extraindo dela o máximo que

se pode ter, e ser capaz de juízos estéticos que se provarão corretos na

objetivação do gosto no consenso que se forma ao longo do tempo

através de gerações da humanidade. Portanto, a meta no aprimoramento

do gosto é a de acertar cada vez mais os ponteiros de seus juízos com os

dos juízos transformados no consenso, aproximando-se cada vez mais de

um representante da humanidade e distanciando-se do Eu particular. O

“gosto praticado – o gosto das pessoas suficientemente atentas,

suficientemente concentradas, ou que se dedicam o máximo possível à

arte – esse gosto fala como que em uníssono.”182

A crise do Modernismo nos anos 70 – quando a crítica ao

modernismo parecia mais promissora para o progresso intelectual do que

continuar na autocrítica modernista – e o revisionismo no estudo da

história da arte fizeram com que “a crítica filosófica da originalidade e da

autonomia e a crítica histórico-social dos valores” ganhassem “uma visível

prioridade sobre a celebração das realizações artísticas individuais e a

análise formal dos efeitos estéticos”183. Assim, termos como gosto e juízo

estético foram cada vez mais rechaçados.

Greenberg menciona, em um artigo para a Partisan Review em 1981

sobre o estado da crítica de arte, o fato de Harold Rosenberg, crítico de

arte que foi seu contemporâneo, ter dito que o gosto era um conceito

obsoleto, e que um famoso crítico havia se referido “à relevância da

qualidade de específicas obras de arte como ‘misticismo da arte’”184. Além

disso, como visto, a noção do aprimoramento do gosto através da

182 GREENBERG, “Pode o gosto ser objetivo?” In: GREENBERG, op.cit. (2002), pp.69-

70. 183 HARRISON, “Introdução: O Juízo na Arte”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.20. 184 GREENBERG, “States of Criticism”. Partisan Review, v.48, n.I, 1981. Disponível

em: http://www.sharecom.ca/greenberg/criticism.html. Acesso em: 27 nov. 2012. Nossa

tradução

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frequentação dedicada e esforçada das obras de arte rendeu a Greenberg

por diversas vezes a acusação de defensor de um gosto elitista.

Nesse contexto de “proibição virtual a expressões de interesse

estético”185, os artigos e seminários reunidos em Estética Doméstica

aparecem como “o trabalho de um escritor que rema obstinadamente

contra a corrente da opinião”186.

185 HARRISON, “Introdução: O Juízo na Arte”. In: GREENBERG, op.cit. (2002), p.20. 186 Idem, ibidem, p.24.

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Conclusão

Acreditamos que a noção de que o gosto possa ser aprimorado por

meio da formação de um repertório e pela frequentação dedicada das

artes colabore para compreensão da crítica de arte e de sua relevância na

sociedade. Além disso, uma defesa, como a de Greenberg, da sinceridade

no relato e do esforço na descrição do que se sente diante de uma obra

colabora também para inserção do público como espectador, diminuindo a

força dos discursos de autoridade que permeiam o sistema das artes.

Considerando-se a teoria de Greenberg, a formação de um crítico se

dá no aprimoramento do gosto, e sua função na sociedade é a de ajudar

os que se interessam pela arte a olhá-la, influenciando sua atenção e

direcionando-a a aspectos específicos para os quais, sem essa influência,

talvez não tivessem se direcionado. O crítico não é o portador da verdade

absoluta sobre a arte, e o espectador não deve assim considerá-lo, pois,

como já visto, ele não pode fazer com que seu interlocutor mude seu juízo

sem que haja uma reconsideração deste em uma nova visita. O crítico é,

assim, pelo contrário, um estimulador, um atiçador do espectador, que

pode concordar com ele, ou discordar.

O consenso, porém, tem um papel central no esquema

greenberguiano como aquilo que prova a objetividade do juízo. Mas será

que o consenso é capaz de determinar o valor de uma obra? Parece-nos

claro que dar valor é ajuizar, momento este sobre o qual, como visto, não

há algo semelhante a uma escolha racional mas sim uma intuição. Sendo

assim, o valor determina o consenso e não o contrário. A série de juízos

concordantes ao longo do tempo formam um consenso e, a partir daí, e

apenas assim, é que se pode considerar que ele influencie, de alguma

forma, a maneira como olhamos uma obra e, assim, influencie nosso

juízo. Claro que, diante de uma obra consagrada pelo consenso ao longo

do tempo, como a de Raphael (para ficar no exemplo dado por

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Greenberg), existe uma maior boa vontade, por assim dizer, do

espectador, do que diante de uma obra sobre a qual nunca se ouviu falar

coisa alguma. Apesar de o juízo se dar de maneira intuitiva, um gosto

aprimorado, capaz de se distanciar do Eu individual, é capaz de um juízo

que seja mais próximo do de um representante da humanidade e,

portanto, mais próximo de ser como os que formam o consenso.

Assim como o crítico, o consenso também influencia a atenção do

espectador, mas, como frisou Greenberg, não deve obrigá-lo por isso a um

determinado juízo. Em condições ideais, segundo o crítico americano, o

esforço na descrição, a paciência e o empenho no olhar e na comparação,

devem ser o mesmo diante de qualquer obra.

Os diversos aspectos tratados ao longo da carreira de Greenberg,

como a história da arte, a crítica de obras e a estética, podem ser

relacionados por meio de uma questão onipresente: a defesa da

autonomia da arte. A busca pela reafirmação da autonomia da arte é o fio

que interliga toda a obra de Greenberg, da juventude à maturidade. Ele

defende uma arte autônoma, que não esteja ligada a ou dependa de

conteúdos morais, religiosos etc., e que não sirva como portadora de um

ideologia. Em um universo como esse, em que a arte é totalmente

autônoma, o consenso importa como algo que liga os homens uns aos

outros, de geração a geração, e como ponte capaz de ligar o humano à

arte, tanto em sua produção quanto em sua apreciação.

Porém, a estética de Greenberg, uma estética doméstica, tem seus

limites, suas fragilidades, e, talvez por isso não tenha sobrevivido a seu

criador com tamanha importância e relevância como suas considerações

como crítico. A fragilidade maior de sua teoria, e também sua maior

limitação, é não ter conseguido abarcar uma arte que possa ter valor

estético sem experiência estética correspondente. Greenberg não pôde

considerar, talvez pela tamanha relevância de seu empirismo e da

importância que dava ao visual, que obras que mexem menos com a

percepção e mais com o intelecto possam também ser arte de qualidade.

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De uma certa maneira, pode-se dizer que ele opera a qualidade ligada ao

afeto como um dia o belo operou, restringindo assim o que é e o que não

é arte. A despeito disso, sua tese do aprimoramento do gosto, com acento

sobre o esforço da comparação e a visitação para formação de um

repertório, espécie de “museu imaginário” de Malraux, possibilita ainda

que o gosto como descrito por ele ultrapasse suas limitações, continuando

a se expandir e incluindo o que Greenberg desprezava, como a arte pop e

a conceitual.

Mas também na importância dada a ele ao contato direto com a arte

reside uma outra limitação de seu pensamento, ou da aplicação de seu

pensamento. Ao não considerar, como fez, ao contrário, Malraux, todo tipo

de imagem que recebemos de fontes outras que não a obra presente,

como as reproduções e as apropriações da arte feitas pela publicidade e

pelo universo da cultura de massa como um todo, além de restringir as

maneiras como o espectador lida com a arte, e ter excluído do gosto

aqueles que não têm acesso a museus e galerias, Greenberg ignora que,

mais do que o poder da obra em sua presença, a imagem que formamos

dela tem um papel essencial na maneira como lidamos com a arte como

um todo, e, à sua maneira, Greenberg reforça a aura da arte.

Bem como seus ensaios críticos – atentos, claros e descritíveis –

outro aspecto ainda bastante estudado de Greenberg é sua interpretação

do Modernismo na arte, relacionando-o ao modernismo no pensamento

iluminista, voltado à autocrítica e evidenciação do meio como aquilo que

lhe é essencial. Por analogia, podemos entender a maneira como ele

considera o aprimoramento do gosto como sendo um movimento do juízo

que tende cada vez mais à linha do consenso; sua prova de objetividade

sendo cada vez mais evidenciada assim como a arte moderna tende cada

vez mais à evidenciação de seu meio, de maneira autocrítica, usando seu

meio para criticar a si mesma.

Balanceando-se as limitações e as fragilidades, e a importância e

relevância, da teoria greenberguiana, o que fica é o olhar atento e

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dedicado à arte, elevando seu papel na vida e na sociedade, sobretudo o

papel do gosto e do juízo sincero e livre em relação a arte, capaz de dar

um prazer e satisfação únicos, que não se pode encontrar em outro lugar

e do qual não se pode fugir. Na sétima noite dos Seminários de

Bennington, Greenberg reafirma do que se trata, afinal, essa série de

encontros e, por extensão, sua estética. “O refrão que tenho repetido ao

longo desses seminários é mais ou menos o seguinte: o gosto importuna,

é inexorável e implacável”187

187 GREENBERG, “Sétima Noite” In: GREENBERG, op.cit. (2002), p. 228.

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