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Hyperapophasis Portal – Lições de Metafísica Especulativa: Curso de Metafísica, Aula 04
Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes –
SEHLA, Departamento de Filosofia – DEFIL. Curso de Filosofia. Prof. Manuel Moreira da Silva. Disciplina:
Metafísica, Aula 04, 20 de março de 2013. Guarapuava: Hyperapophasis, 2013.
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DISCIPLINA DE METAFÍSICA
[20/03/2013] LIÇÃO IV, AULA 04: EXPOSITIVA:
I. Prolegômenos: O que é a Metafísica? 1. A Metafísica enquanto ciência e disposição: Origens, limites e alcances
1.2. A Metafísica enquanto ciência estrita, definição real e problemas correlatos
§1
Vimos na aula anterior que o conceito provisório da Metafísica implica uma definição
nominal e uma definição real da mesma; vimos ainda que enquanto por sua definição
nominal ela se apresenta como a Ciência do Metafísico, por sua definição real, pelo menos
até aqui, ela termina por se tornar inconsistente e ilegítima. Isso porque, enquanto buscam
explicar a essência íntima da coisa, sobretudo ao longo de sua história, as definições reais
que se apresentaram para o caso de uma definição real da Metafísica terminaram por
conflitar entre si dissolvendo-se reciprocamente; isso, não obstante, não implicava um
problema insolúvel para a Metafísica mesma e sim um problema de determinação real do
Metafísico enquanto seu objeto, assim como do método pelo qual aquela determinação
real se processava. O que, via de regra, implica a pressuposição de uma concepção
determinada, aliás, estrita, de ciência (ou de episteme), conforme a qual a Metafísica se
instaura como tal; concepção que de modo algum permanece unívoca no desenvolvimento
histórico da Filosofia e como uma e a mesma nos quadros das diferentes épocas históricas
que tal desenvolvimento perpassara. Em suma, pode-se dizer que as mais diferentes
definições reais da Metafísica podem ser reduzidas a algumas definições fundamentais
que, como tais, concernem a uma concepção determinada de ciência que de certo modo
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abrange toda uma época e neste sentido, nos limites de tal ou tal época, se impõe como
legítima e portanto consistente.
Consideremos a título de exemplo as seguintes definições: (1) A Metafísica é a ciência filosófica do ente real e suprassensível ou da coisa considerada no
terceiro grau de abstração (BARBEDETTE, Philosophia scholástica, II, – 54. Ed. –, 1932, p. 1).
(2) É necessário que haja alguma ciência universal que considere por si os transcendentais.
Chamamos esta ciência de ‘metafísica’, sendo denominada a partir de ‘meta’, isto é, ‘além’, e
‘física’, isto é, ‘ciência da natureza’. Trata-se, podemos dizer, da ciência transcendental, pois tem
por objeto os transcendentais (SCOTUS, Sobre a Metafísica, in: Escritos filosóficos, 1973, p. 333).
(3) A Metafísica é a ciência dos primeiros princípios do conhecimento no conhecimento humano
(BAUMGARTEN, Metaphysik, § 1, 1766).
(4) [A Metafísica é um] conhecimento especulativo da razão completamente à parte e [...] se eleva
inteiramente acima das lições da experiência, mediante simples conceitos (não, como a
matemática, aplicando os conceitos à intuição), devendo, portanto, a razão ser discípula de si
própria (KANT, KrV B, XIV).
Cada uma dessas definições, dentre uma série de outras perfeitamente possíveis e
válidas, se apresenta como exclusiva em relação às demais; cada uma, portanto,
com certos pressupostos e um ponto de partida determinado que, longe de abarcar
o Metafísico mesmo em sua unidade a mais originária, cumprem apenas o papel
formal de uma determinação real entre outras do Metafísico enquanto tal. Para uma
compreensão mais adequada de cada uma das definições reais acima elencadas,
seguem, respectivamente, a título de esclarecimento, as seguintes notas:
(1) A primeira definição refere-se à concepção aristotélico-tomista da Metafísica e à
tradição de scholars [estudiosos] que a assumem como tal. Falamos de concepção
aristotélico-tomista em razão de a mesma tomar como seu cerne a determinação da
abstração metafísica como o terceiro grau de abstração das ciências teoréticas, isto
é, da Física, da Matemática e da Metafísica. Assim, conforme Gardeil (1967, p. 20):
[...] no grau de especulação física, abstrai-se a matéria enquanto ela é princípio de individuação,
materia signata, mas retém-se a matéria que está na raiz das qualidades sensíveis, materia
sensibilis; conservando-se as qualidades, guarda-se por isto mesmo o aspecto de mobilidade das
coisas. No grau matemático, abstrai-se da materia sensibilis, mas retém-se este fundamento
material da quantidade que o peripatetismo denominou materia inteligibilis. Na Metafísica, enfim,
abstrai-se absolutamente toda matéria e todo movimento; está-se no imaterial puro que
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compreende, ao mesmo tempo, as realidades espirituais (Deus, os anjos), e as noções primeiras (o
ser, os transcendentais etc.), estas últimas sendo independentes dos corpos no sentido de que
podem ser realizadas fora deles.
Comentando esse mesmo ponto, em Metafísica husserliana e Metafísica tomista,
Júlio Fragata afirma:
Numa Filosofia em que a determinação cognoscitiva é fundamentalmente explicada pelo influxo
da sensibilidade, e portanto da matéria, compreende-se que a ascensão reflexa seja também
classificada pelo poder abstrativo da mente em relação à mesma matéria. Assim, a Física abstrai da
matéria individual e considera apenas a matéria sensível comum, porque não pretende estabelecer
princípios relativos só a um corpo concreto e individual, mas a uma categoria de corpos que
conservam alguma coisa de comum. A Matemática abstrai mesmo da matéria comum enquanto
sensível para considerar a matéria na sua mesma inteligibilidade, meramente quantitativa. A
Metafísica ultrapassa o âmbito do ser material, da matéria mesmo enquanto inteligível, para entrar
nos domínios do ser como tal, em que tudo se encontra, até o ser quantitativo, mas só na sua razão
intrínseca de ser.
(2) A segunda definição constitui o ponto de partida do chamado segundo começo
da Metafísica1. Explicitando a noção scotiana de ‘os transcendentais’, o tradutor2
assim os apresenta:
Numa primeira aproximação pode-se dizer que os transcendentais são os aspectos da realidade que
transcendem o ser físico. Mais rigorosamente, tudo aquilo que transcende o ser físico, seja como
próprio do infinito ou como comum ao infinito e ao finito. Como as categorias aristotélicas se
referem ao ser finito, pode-se também dizer que é transcendental tudo aquilo que não está incluso
em nenhuma delas. Scot enumera pelo menos quatro classes de transcendentais: 1) o ser, o
primeiro dos transcendentais; 2) os atributos conversíveis com o ser – uno, verdadeiro e bom; 3)
um número ilimitado de atributos disjuntos, tais como ‘infinito ou finito’, ‘necessário ou
contingente’ etc., sendo cada uma destas disjunções coextensiva com o ser; 4) as perfeições puras,
1 Veja-se, a respeito, L. HONNEFELDER, La métaphysique comme science transcendentale. Trad. Isabelle Mandrella. Paris:
PUF, 2002, passim. 2 Infelizmente o tradutor brasileiro de “Sobre a Metafísica”, Carlos Arthur Nascimento, não esclarece se as notas são dele ou
de Allan Wolter, que respondeu pela seleção dos textos de Duns Scot para os Philosophical Writings, publicados pela Nelson
and Sons, Edinburgh, 1962, ou ainda de Raimundo Vier, que, juntamente com ele, se encarregou de algumas seções dos
Escritos filosóficos publicados pela Abril Cultural. Entretanto, conforme a Nota prévia assinada por Carlos Arthur Nascimento,
assim como de acordo com a nota 2, que acompanha a referida Nota prévia, tudo indica que as notas sejam de Raimundo Vier.
Ver, a respeito, C. A. NASCIMENTO, Nota prévia. In: J. D. SCOT, Escritos filosóficos. Trad. Carlos A. Nascimento e
Raimundo Vier. In: AQUINO, S. T. de, ALIGHIERI, D., SCOT, J. D., OCKHAM, W. of. Seleção de Textos. Trad. Luiz João
Baraúna et al. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 235.
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isto é, aquelas que não incluem em sua noção formal nenhuma imperfeição, tais como ‘sabedoria’,
‘vontade’ etc.3
(3) A terceira definição, de Baumgarten, assim como a quarta (4), de Kant, refere-se
ao processo de sistematização da Metafísica nos quadros da filosofia moderna,
especificamente nos quadros do racionalismo, levado a cabo por Christian Wolff e
sua escola. Comentando a definição baumgartiana, mas já nos quadros de sua
apropriação por Kant, Heidegger (1989, p. 15-18) afirma:
O horizonte no qual Kant via inclusa a metafísica, e no interior do qual devia estabelecer a sua
fundação, corresponde mais ou menos à definição de Baumgarten [...]. O conceito de primeiros
princípios do conhecimento humano implica uma particular ambiguidade, inicialmente necessária.
Ad metaphysicam referuntur ontologia, cosmologia, psychologia et theologia naturalis. Não
exporemos aqui os motivos, nem faremos a história da formação e da consolidação deste conceito
escolástico da metafísica. Somente uma breve indicação dos pontos essenciais bastará para fazer
emergir o conteúdo problemático e predisporá a compreender o significado fundamental do
estabelecimento kantiano de sua fundação.
[...].
[...]. Dois são os motivos proeminentes que determinaram a formação do conceito escolástico de
metafísica supracitado e que tem cada vez mais obstaculizado a retomada da problemática
originária.
O primeiro motivo concerne ao articular-se do conteúdo da metafísica e deriva da concepção de
mundo própria da fé cristã. Segundo esta última, a totalidade do ente não divino é um criado: o
universo. Entre as criaturas, de outra parte, o homem tem uma posição de privilégio enquanto tudo
se subordina à salvação da sua alma e à sua vida eterna. Assim, segundo essa consciência cristã do
mundo e do ser, a totalidade do ente se subdivide em três esferas: Deus, natureza e homem; a tais
esferas seguem os seguintes correlatos, respectivamente, a teologia, que tem por objeto o summum
ens, a cosmologia e a psicologia. Estas constituem a disciplina que recebem a designação de
metaphysica specialis, da qual a metaphysica generalis (ontologia) difere, enquanto tem por
objetoo ente ‘em geral’ (ens commune).
O outro motivo, que tem essencialmente contribuído para a formação do conceito escolástico de
metafísica, refere-se ao tipo de conhecimento e ao método da metafísica mesma. Uma vez que esta
ciência tem por objeto o ente em geral e o ente supremo, objeto ao qual ‘ninguém está interessado’
(Kant), essa é dotada da mais alta dignidade, é a ‘rainha das ciências’. Assim, também o tipo de
conhecimento que lhe é próprio deve ser sumamente rigoroso e absolutamente irrefutável. É
necessário, portanto, que essa se adeque a um ideal cognoscitivo correspondente. Como tal se
assume o conhecimento ‘matemático’. Este último é racional e a priori por excelência, porque não
depende da experiência contingente; é, em outros termos, ciência pura da razão. O conhecimento
do ente em geral (metaphysica generalis), assim como das suas esferas principais (metaphysica
specialis), tornam-se assim uma ciência pura da razão.
3 Nota do tradutor, à J. D. SCOT, Sobre a Metafísica. In: Escritos filosóficos. Trad. Carlos A. Nascimento e Raimundo Vier.
In: AQUINO, S. T. de, ALIGHIERI, D., SCOT, J. D., OCKHAM, W. of. Seleção de Textos. Trad. Luiz João Baraúna et al.
São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 333.
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Kant permanece fiel ao intento dessa metafísica e, mais que isso, o transfere, reforçando-o
ulteriormente, na metaphysica specialis, que chama ‘metafísica autêntica’, ‘metafísica no seu fim
último’. [...].
Tais definições e seus respectivos problemas referem-se à dificuldade de uma
definição real que abarque a essência mesma da Metafísica e a desenvolva de
modo não só consciente, mas antes, autoconsciente. Elas não negam a realidade da
Metafísica, seja como ciência de rigor, seja como disposição natural; mais do que
isso, na medida em que se constituem como certas determinações da Metafísica,
enquanto Ciência do Metafísico, elas apreendem apenas um aspecto deste e assim
dele destacam tal ou tal aspecto, assumindo este como totalidade daquele ou como
o objeto por excelência da Metafísica nos limites da época ou da episteme nas quais
aquelas mesmas definições são formuladas. Apesar disso, tais definições podem ser
assumidas e mantidas enquanto momentos da determinação do Metafísico e, desse
modo, como os graus em que o pensar se eleva na sua meditação deste e este, ele
mesmo, assim se mostra ao pensar como a Coisa mesma que urge e faz com que o
pensar se conduza a ela e, a partir dela, a si mesmo, como bem notara Heidegger4.
§2
Em vista disso, partimos aqui do ponto de vista segundo o qual a Metafísica é, existe. Mais
precisamente, partimos da posição que a concebe como uma ciência ou, antes, uma ciência
rigorosa ou de rigor.
Tal ponto de vista, hoje minoritário, atém-se ao axioma clássico: ab esse ad posse
valet illatio [do ser ao possível, a consequência é válida], esse utilizado entre nós por
Henrique Cláudio de Lima Vaz (1986, p. 7), para o caso da Filosofia Cristã, e
mesmo, pode-se dizer, por Christian Wolff (1679-1754), que inclusive o demonstra,
4 Ver, M. HEIDEGGER, M. A constituição onto-teo-lógica da Metafísica. In: Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo
Stein. Abril Cultural, 1973, 387.
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entre outros lugares, no § 15 de sua Metafísica alemã, isto é, de seus Pensamentos
racionais acerca de Deus, o Mundo e a Alma do Homem, assim como sobre todas
as coisas em geral, os quais foram publicados em 1719 e republicados inúmeras
vezes após. De acordo com Wolff (2000, p. 66):
(§ 15) O que existe realmente é possível.
Posto que não possa chegar a existir mais que o que é possível (§ 14), tudo o que existe é também
possível, e da existência se pode concluir em todo momento a possibilidade sem vacilação alguma.
Se vejo, pois, que algo existe, me é lícito admitir que pode existir e, consequentemente, que não
encerra em si nada contraditório (§ 12).
Ora, se isso é verdadeiro, há que se dizer então que a Metafísica existe, logo pode
existir. Não importa aqui, pelo momento, de que Metafísica em particular se está
falando, mas tão somente que há algo denominado Metafísica, o qual, independente
de suas determinações é pura e simplesmente aí. Mas o que é realmente esse algo
aí denominado Metafísica?
§3
A Metafísica é, mas o que ela é? Concebemo-la como uma ciência, não como uma ciência
entre outras e sim como uma ciência fundamental, absoluta, isto é, como a Ciência sem
mais. Sem mais, aqui, significa que ela não é uma ciência de algo determinado, aí, seja este
objeto de uma ciência filosófica, i.é, de uma ciência universal regional, ou de uma ciência
particular; respectivamente, de um lado, como a Ontologia do Ser social é uma ciência do
ser social e a Filosofia da Mente é uma ciência da mente ou, de outro lado, como a
Sociologia é uma ciência da sociedade e a neurologia uma ciência do sistema nervoso.
Estas consideradas de modo particular e enquanto dadas aí, nos limites do espaço e do
tempo, enquanto elas podem ser empiricamente verificadas; aquelas consideradas de modo
universal nos limites das respectivas regiões do real que para si elas assumem em sua
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totalidade na medida em que elas se voltam para o que é pura e simplesmente racional.
Vale dizer, para a estrutura lógica e ontológica que as perpassam e fazem existir como tais;
essas, enquanto puras, voltam-se por sua vez a um tipo de estrutura que, para além de seu
caráter puro, se mostra absolutamente universal e se faz assim objeto da Metafísica
enquanto a Ciência sem mais.
Discutindo a seu modo acerca desse ponto, Aniceto Molinaro (2002, p. 5) apresenta
assim a Ciência aqui em questão:
Ao partirmos para apresentar a metafísica em uma série de lições, comecemos por algumas
observações. A primeira é que a filosofia em sentido rigoroso é metafísica. A respeito de tudo
aquilo que é, dizemos que é. Se analisamos a “coisa”, criamos uma série de ciências, que podem
ser dispostas de acordo com a seguinte subdivisão:
a) As ciências que se ocupam apenas da dimensão chamada “determinação”;
b) As ciências que estudam a determinação enquanto determinação do ser; temos aí o campo
das filosofias que se articulam com o “de”: filosofias do homem, da natureza, da arte, da
práxis, da história e assim por diante; são chamadas filosofias no genitivo. Estas filosofias
podem ser também chamadas filosofias segundas ou filosofias regionais, por estudarem
uma determinada região do ser;
c) A ciência estuda o “é”, ou seja, o ser da coisa, no sentido de que o ser da coisa não é apenas
aquilo pelo qual aquela coisa é, mas é também aquilo pelo qual aquela coisa é aquela coisa
(árvore, homem, pedra, etc.); este estudo é a filosofia, que, justamente pelo fato de ser o
estudo do ser, identifica-se com a metafísica. Isto significa que as ciências de (a) não se
ocupam do ser, mas também as ciências de (b), ou seja, as filosofias no genitivo, se
pretendem ser filosofias e se manter como tais, devem ancorar essencialmente na
metafísica: à medida que são filosofia, elas identificam-se com a metafísica (=
conhecimento do ser); por serem determinadas filosofias, não podem funcionar a não ser
como determinações da metafísica, quer dizer, como reflexões a respeito do ser numa sua
determinação. Mas por si mesma e na sua estrutura, a filosofia não pode ser outra coisa (e
não poderia ser de outra maneira) senão o ser na sua verdade, o ser que se eleva à
manifestação da verdade, o que é verdade e expressão.
Essa a primeira observação de Molinaro em torno da Metafísica enquanto ciência.
Contudo, apesar de pertinente, na medida em que identifica a Metafísica à chamada
Filosofia do Ser, a qual também poderia ser designada Doutrina, Ciência ou Teoria
do Ser e, igualmente, Ontologia, tal observação traz em si o signo de sua própria
insuficiência; isso, quando não mal-entendidos, confusões e mesmo contradições de
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ordem diversa. Atento a isso Molinaro afirma ser mais adequada a denominação
“metafísica” do que a denominação “filosofia do ser”, com isso querendo desfazer a
possível suspeita de uma distinção entre o ser e o pensamento ou até a de sua
separação, assim como “a confusão que faz o ser parecer ser um dos objetos do
pensamento, um como tantos outros” (MOLINARO, 2002, p. 6). Desse modo, no
dizer de Molinaro (Ibid.), completando sua segunda observação:
[...] a metafísica se atém à identidade, que não exclui a distinção entre o ser e a verdade e o
discurso sobre a verdade do ser: este discurso chama-se pensamento, filosofia. A verdade pertence
por identidade ao ser, e o discurso sobre a verdade do ser lhe pertence justamente com a mesma
identidade. A inseparabilidade entre ser e verdade reflete-se na inseparabilidade entre verdade e
discurso a respeito da verdade do ser. Sendo este último a filosofia, segue-se que existe a
inseparabilidade entre a filosofia e o ser: a filosofia é o ser na expressão da sua verdade. A palavra
‘metafísica’ exprime esta inseparabilidade ou esta identidade. Deste modo é afastado qualquer
equívoco capaz de reduzir o ser a objeto da reflexão pensante e da sua expressão, ou seja, a objeto
da filosofia.
Esta observação deve ser considerada de modo bastante cuidadoso, em vista disso,
parece mais plausível passarmos imediatamente à terceira e última observação
quanto ao conceito da Metafísica, tematizando-a em seguida juntamente com
aquela. Em sua terceira observação, lembrando “as ‘brevíssimas proposições’ nas
quais Platão (Carta VII, 344d, 9) resumia os princípios fundamentais e peremptórios
da sua metafísica”, Molinaro (2002, p. 6) assevera de modo igualmente fundacional,
peremptório e breve que “o discurso metafísico é discurso essencialmente breve”.
Ao que ele justifica conforme o que segue:
Justamente por ser discurso sobre o ser no interior do ser, este discurso não tem outro campo em
que mover-se que não o ser. Desenvolve-se pensando e repensando o ser. Por isso exige o máximo
de intensidade da reflexão, o máximo do pensamento: o máximo esforço e a máxima paciência do
pensamento.
Embora sábias e relevantes para o que nos interessam, as observações de Molinaro
parecem bastante problemáticas; pois se de fato a designação filosofia do ser não é
adequada, suscitando suspeita e confusão, isso ocorre não devido à designação e
sim devido ao que ela designa – i.é, o Ser de um lado (enquanto sem determinação
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ou indeterminado, mas apresentado como algo determinado: o Ser) e, de outro lado,
o Ente (o algo determinado propriamente dito ou o que contém a determinação
mesma); portanto, não a identidade, mas a diferença dos mesmos entre si – a assim
chamada diferença ontológica –, fato consignado na própria linguagem que a
Metafísica fez como sua em seu itinerário histórico e que muito justamente emergira
precisamente da distinção entre Ser, Pensar e Dizer, lentamente elaborada, desde o
nascimento mesmo da Filosofia e a fundação da Metafísica. Diferença que, para
além da simples identidade imediata, i.é, abstrata ou vazia, mas também obscura de
Ser, Pensar e Dizer, ou de Ser e Essência, de Ente e Essência e de Ser e Ente,
emergiu como tema e problema constitutivos da Metafísica e como tais devem ser
assumidos por esta, sob pena de, tal como já reconhecido por Hegel (1968, p. 27), a
Metafísica mesma desaparecer mais uma vez da lista das ciências e como a Ciência
absoluta que de fato e de direito ela é. Assim, que a Metafísica tenha de pensar a
identidade: isso é certo, tal como também o é que ela não possa excluir a diferença;
mas que se limite à identidade abstrata, imediata, vazia ou obscura de Ser, Pensar e
Dizer, portanto do próprio Ser e do Ente, sem levar em conta o elemento constitutivo
da diferença e assim do esclarecimento da identidade, pensando-a como o outro
desta e, por isso, no horizonte da identidade da identidade e da diferença, isso não é
certo. Da mesma forma, um discurso que não leva em conta seu caráter de discurso
e, com isso, de diferença, somente pode limitar-se a ser breve e portanto obscuro,
limitando-se à intuição do Ser ou à experiência imediata do mesmo (MOLINARO,
2002, p. 155), não avançando nem em seu próprio desenvolvimento especulativo
nem para além do Ser mesmo; o que a diferenciação aludida exige de modo o mais
enérgico desde a sua emergência na Coisa mesma.
Ao fim e ao cabo, a não observância desses aspectos faz com que Molinaro (2002,
p. 6-8) recaia precisamente na suspeita e na confusão as quais ele pretendia evitar,
pois suas definições ou seu conceito preliminar da Metafísica recolocam o problema
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já identificado por Avicenna (1907, p. 14-22) em torno da ambigüidade da expressão
“ente enquanto ente”, interpretada ao modo tradicional, assim como retoma de forma
inadvertida o procedimento ingênuo, em especial aquele de tipo wolffiano, cujo rigor
se apresenta pura e simplesmente verbal. Isso porque, finalmente, os momentos do
conceito preliminar da Metafísica por ele apresentado – a saber, a Metafísica como:
(a) ciência do ente enquanto ente ou do ente enquanto ser, (b) ciência do [do ser
como] fundamento do ente, (c) ciência da totalidade do ente visto a partir do ser –
não fazem mais que reeditar a metafísica tradicional do ser (embora a invertendo), a
qual fora criticada por sua obscuridade e reformulada ou clarificada por Christian
Wolff (2005, p. 7ss), cuja Metafísica geral é por sua vez criticada por Molinaro (2002,
p. 40-41) em razão de aquele desenvolver aí apenas uma metafísica da essência ou
da subjetividade. Molinaro também invalida a distinção wolffiana da Ontologia (ou da
Metafísica geral) e da Teologia racional, assim como a própria metafísica wollfiana
como tal pelo fato desta perder sua unidade devido àquela distinção e por que a
mesma não se constitui como uma ciência do ser. O que implica que a identidade da
filosofia e do ser acima referida permanece em um ponto de vista ainda anterior ao
ponto de vista da própria metafísica wolffiana, permanecendo assim na imediatidade
daquela identidade enquanto ela é ainda pura e simplesmente dentro de si, não
avançando para o seu desdobramento em si e nem para a sua oposição consigo,
estes que seriam os elementos fundamentais para o seu retorno dentro de si e, por
conseguinte, para a unidade comum do conceber (ou da filosofia) e do ser. Algo que,
de um modo ou de outro, nos interpela a precisar em que sentido precisamente a
Metafísica é ou pode ser uma Ciência formal e realmente rigorosa ou de rigor.
§4
Do que foi dito acima há que se reconhecer que não basta à Metafísica apresentar-se como
uma ciência ou como a Ciência se esta não se mostra formal e realmente rigorosa; o que
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significa que ela, além de ciência e da ciência absoluta ou sem mais, tem de se legitimar
enquanto tais.
Essa legitimação, no entanto, não pode consistir em um procedimento meramente
natural ou ingênuo – como ocorre na metafísica antiga e medieval, aqui tomada
enquanto clássica, ou ainda, como é o caso na metafísica propriamente tradicional,
moderna e contemporânea, especificamente a que se forjara entre Duns Scotus e
Christian Wolff e aquelas que de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, nela
se apoiam. Tal legitimação, igualmente, não pode se ater a um procedimento tão só
histórico-sistemático, como por exemplo, de um lado, ocorre com Aniceto Molinaro
(2002) e, de outro, com Vittorio Hösle (1991); assim como em tentativas de cunho
fenomenológico como as levadas a cabo por Johann Gottlieb Fichte a partir de 1794
e por Edmund Husserl em 1911, ou pelo próprio Hegel quando de sua primeira
elaboração madura do Sistema da Ciência, concebido a partir da Fenomenologia do
Espírito de 1807. Essas tentativas, em operando um procedimento supostamente
mais elevado que o natural ou ingênuo e o histórico-sistemático, não se situam
senão entre ambos, logo em um lugar intermediário – denominado transcendental –
que se limita unicamente a indicar a esfera propriamente metafísica sem, contudo,
avançar de modo consequente – não meramente formal ou transcendental – até o
metafísico enquanto tal. Impõe-se assim não a própria Metafísica como ciência
rigorosa, mas o problema da Metafísica enquanto ciência rigorosa, o qual remonta
às concepções e aos paradigmas fundamentais da própria Metafísica assim
concebida.
§5
A legitimação da Metafísica enquanto Ciência e, mais especificamente, enquanto ciência
rigorosa implica determinar em que episteme ela se perfez até aqui ou em que episteme ela
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se perfaz. Isto significa que, embora historicamente a Metafísica não se restrinja a uma
única episteme, se possa ao menos determinar em que tradição ou em que tradições de
pesquisa racional a Metafísica foi ou é assumida como ciência rigorosa.
O uso que aqui se faz do termo ‘episteme’ (assim como de seu plural, ‘epistemes’)
tem como ponto de partida e mesmo de inspiração uma apropriação da concepção
foucaultiana da ’épistémè. Contudo, a concepção aqui desenvolvida nada tem a ver
com a de Foucault na medida em que enquanto esta permanece indeterminada e
assim impossibilitada de uma explicitação adequada, a concepção aqui tematizada
tem por escopo justamente sua determinação e sua explicitação a mais adequada
possível. Segundo Foucault, ele entende por ‘épistémè’:
[...] o conjunto das relações que podem unir, em uma época dada, as práticas discursivas que dão
lugar às figuras epistemológicas, às ciências, eventualmente aos sistemas formalizados; o modo
segundo o qual, em cada uma destas formações discursivas se situam e se operam as passagens à
epistemologização, à cientificidade e à formalização; a repartição desses limiares que podem
coincidir, ser subordinados uns aos outros, ou estarem defasados no tempo; as relações laterais que
podem existir entre figuras epistemológicas ou ciências, na medida em que se prendam a práticas
discursivas vizinhas mas distintas. A épistémè não é uma forma de conhecimento ou um tipo de
racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um
sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas, para
uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas ao nível das regularidades
discursivas. (FOUCAULT, L’Archéologie du Savoir, 1996, p. 249; ed. bras., 1987, p. 217).
Conforme o nosso ponto de vista, uma episteme pode ser considerada em linhas
gerais como a concepção a mais abrangente que, enquanto tal, determina o modo
próprio da investigação científica em um tempo ou em uma época por seu turno
especificamente determinados. Isso está de acordo com a concepção de Foucault,
mas, à diferença desta, o ponto de vista aqui desenvolvido concebe a episteme
como uma doutrina ou como uma teoria cuja estrutura se forma e se conforma a
posteriori como resultado autorreflexivo e portanto como o fundamento e a verdade
das práticas propriamente epistêmicas por sua vez efetivamente assumidas como
tais em tal ou tal época. Assim, o único elemento capaz de formar e conformar uma
episteme, isto é, de apresentar uma forma ou estrutura perfeitamente determinada e
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suficientemente universal, conseguindo pois abranger todas as formas e estruturas
particulares nas quais ela se manifesta, não é senão o Ser mesmo – o conteúdo em
cada caso em questão –, assim como, de modo mais rigoroso, seu automovimento
interior. Neste caso, pode-se falar nos dias de hoje não só de uma episteme antigo-
medieval e de uma episteme moderno-contemporânea, mas também, ainda que tão
somente em certo sentido, de uma episteme propriamente pós-moderna. Essa, no
presente contexto, nada tem a ver com o chamado pensamento pós-metafísico,
mas, ao contrário, a partir das instâncias consideradas pós-modernas, assume a
própria Metafísica enquanto tal. Consideremos então, ainda que de modo sucinto,
cada uma dessas epistemes.
A episteme antigo-medieval exprime-se naquilo que Vaz (1994, p. 6) designou como
a Teoria da Informação imediata do ato intelectivo pela forma inteligível em ato do
ser ou do objeto, a qual, ainda segundo Vaz (1997, p. 156-157),
levanta necessariamente a questão do modo de presença do noetón (inteligível) no nous (intelecto),
ou seja, postula a existência do modo intencional de ser do objeto conhecido como tal, modo que
será designado mais tarde, na terminologia escolástica, como modus cognoscentis
e, por isso, pode também ser tomada como a teoria da identidade intencional do
nous e do noetón, identidade cujo acesso é possível tão somente por intermédio da
intuição do inteligível pelo intelecto, seja ela uma intuição intelectual propriamente
dita ou direta como em Platão, uma simples apreensão ou uma apreensão imediata
como em Aristóteles ou, enfim, mais especificamente, uma intuição abstrativa como
em Tomas de Aquino. Um exemplo dessa intuição abstrativa nos é dado por
Henrique Cláudio de Lima Vaz, em sua nota bibliográfica sobre Joseph Maréchal, no
que diz respeito à estrutura noética da afirmação metafísica inicial “o ser é”. De
acordo com Vaz (2001, p. 279):
Essa afirmação põe em movimento, ou repõe continuamente na vida da inteligência, seu
dinamismo voltado para uma intuição final e saciante do ser. No entanto, a inteligência é,
essencialmente, faculdade de ver (intellectus, noûs). Com anterioridade de natureza ao ato de
afirmação deve haver uma “intuição abstrativa” da universalidade abstrata do ser (ens commune),
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ou do ser como ser, conforme o ensinamento aviceniano-tomásico: Illud quod intellectus primo
concipit quasi notissimum et in quod omnes conceptiones resolvit est ens (De Verit., I, 1). Mas
essa intuição não visa um absoluto real, mas sim um absoluto lógico. Sem ela, no entanto, o
movimento intelectual para o Absoluto real não teria lugar. O P. Maréchal parece não ter
explicitado esse ponto.
Pode-se dizer que a episteme antigo-medieval consiste basicamente na afirmação
de objetos inteligíveis indivisíveis, portanto em objetos cuja natureza constitutiva é a
rigor a identidade intencional do nous e do noetón ou do Intelecto e do Inteligível
mais acima aludida. Exemplos de tais objetos são o Uno, o Bem e as Ideias em
Platão e nos neoplatônicos; a substância, o ente enquanto ente e o pensamento de
pensamento ou o primeiro motor, assim como todos os outros princípios e elementos
dos divisíveis em Aristóteles e, enfim, a quididade da coisa material que é abstraída
das representações imaginárias e o Esse em Tomás de Aquino. Em certo sentido, a
identidade imediata dentro de si do Intelecto e do Inteligível aí em questão é também
a mesma presente em filosofias do ser desenvolvidas a partir da primeira metade do
século XX, inclusive díspares, como as de Jacques Maritain, Vittorio Possenti e
Aniceto Molinari de um lado e as de Bergson, Heidegger, Lévinas e Marion de outro.
Enquanto as primeiras querem retomar sobretudo a concepção de Tomás de Aquino
e se fixam em um ponto de vista pré-representacionista, as segundas pretendem
romper basicamente com toda a história da Metafísica até então e instaurar uma
perspectiva rigorosamente pós-representacionista. Em todo caso, nenhuma destas
formas contemporâneas de filosofia chegou a desenvolver explicitamente a referida
identidade, algumas nem mesmo parecem haver tomado consciência da mesma; o
que mantém a episteme antigo-medieval praticamente intacta, com a exceção de
alguns estudos de cunho hermenêutico, surgidos nas últimas décadas do século XX,
em torno da substituição da assim chamada Teoria da informação imediata pela
Teoria da representação a partir do século XIII, iniciando assim a constituição da
episteme moderno-contemporânea.
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Neste sentido, por seu turno, a episteme moderno-contemporânea exprime-se por
assim dizer na chamada Teoria da Representação do Ser – agora transformado em
objeto –, mais especificamente, do “ser objetivo” (esse objectivum) ou representado
pelo que se poderia chamar “ser subjetivo” (esse subjectivum) ou representante.
Situação em que, segundo Vaz (1997, p. 160), ao invés da informação imediata do
ato intelectivo pela forma inteligível em ato do ser, ocorre a “mediação da espécie ou
forma abstrata representativa do objeto (também ela integrada no âmbito da causa
formal)”. Caso em que, ainda segundo Vaz (1994, p. 7), “a representação deixa de
ser apenas o sinal formal que reenvia imediatamente ao objeto na sua realidade
extramental, para constituir-se em termo imediato, em id quod da intenção
cognoscitiva”; o que significa que
a representação não é, pois, o que é (id quod) imediatamente conhecido, mas é o meio no qual
(medium in quo) o ato do sujeito cognoscente se identifica intencionalmente com o ato do objeto,
sendo pois o objeto, conhecido pela sua forma real (e não apenas representada), a causa final do
conhecimento (VAZ, 1997, p. 160).
De um lado, a consequência a mais originária de tal processo consiste na completa
ruptura entre a representação e o ser, com o que o ato intelectivo deixa de ser
informado imediatamente pela forma em ato do ser (portanto sem a mediação da
representação) e este, por seu turno, deixe de se manifestar na representação que
então, formalmente, o assinalaria; o que inverte tal relação, fazendo com que, no
dizer de Vaz (Ibid., p. 159), a primazia no regime do conhecimento seja dada à
representação, “a ela submetendo a face objetiva – o ser – do objeto conhecido”. De
outro lado, uma segunda consequência, por seu turno a mais conclusiva,
continuando com Vaz (1994, p. 7-8), consiste em que:
A novidade introduzida pela teoria da representação na concepção clássica da estrutura e da forma
do conhecimento intelectual teve como efeito a supressão, pelo menos virtual, da distinção
aristotélica entre conhecimento teórico, prático e poiético. As formas do conhecimento teórico e
prático, tendo como objeto respectivamente o ser (ousía) e os costumes (ethos), passam a ser
regidos pelo modelo do conhecimento poiético, pois que a representação, constituindo-se em
termo imediato do conhecimento, oferece-se ao sujeito como campo de possibilidades de referir-se
ao objeto pela mediação de um modelo representativo que seja a feitura, o ergon do próprio
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sujeito. Desta sorte, o espaço da representação torna-se o lugar de nascimento de um novo estilo de
trabalho teórico que se caracteriza por um fazer o objeto de acordo com os procedimentos
operacionais que cabe primeiro ao sujeito definir e estabelecer. No domínio dos antigos
conhecimentos teórico e prático, o sujeito passa a estatuir valores e fins de acordo com os critérios
axiológicos por ele estabelecidos, sobretudo no atendimento das suas necessidades subjetivas e da
sua satisfação, ou ainda opera da direção do vetor metafísico do conhecimento, orientando-o para a
imanência do próprio sujeito, ali onde se desenrola a laboriosa produção do objeto, inaugurando
assim o primeiro capítulo da chamada metafísica da subjetividade.
Isto significa que com a introdução da representação no processo de conhecimento
em geral e no processo de conhecimento do ser e dos inteligíveis indivisíveis em
especial a identidade imediata dentro de si do Intelecto e do Inteligível, se não
deixou de existir, foi pelo menos posta de lado. Ora, manifestações históricas desse
novo regime epistêmico já ocorrem em Porfírio e em Avicena, mas só a partir de
Duns Scotus é que tal regime ganha força suficiente para substituir o regime da
Informação imediata do ato intelectivo pela forma inteligível em ato do Ser (que não
é mais que, resumidamente, o regime da Intuição do ser) e assim desenvolver-se na
perspectiva do nominalismo até a sua plena universalização nos século XVII e XVIII.
Neste sentido o novo regime apresenta como seus representantes filósofos como
Duns Scotus, Francisco Suárez, René Descartes, Espinosa e Christian Wolff entre
outros; para os quais, em geral, à exceção de Immanuel Kant, a intuição intelectual
na percepção imediata da representação que em cada caso está em jogo. Assim ela
não é mais a informação imediata do ato intelectivo pela forma inteligível em ato do
Ser ou do objeto inteligível indivisível, que para Aristóteles (De Anima, III, 430b20) é
pensado em um tempo indivisível e em um ato indivisível da alma; mas, ao contrário,
conforme Descartes (1937, p. 11-13, p. 281), ela é a tomada de consciência ou a
percepção imediata, a concepção simples, distinta, evidente e certa da forma [i.é, da
ideia ou da representação] de cada um de nossos pensamentos por cuja percepção
imediata temos conhecimento desses mesmos pensamentos. Esse o ponto exato a
partir do qual o Ser só se mantém enquanto a identidade absoluta do Eu=Eu (ver,
WOLFF, 2000, p. 61; HEGEL, 1995, p. 175-176), consubstanciada na autointuição
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do Eu mesmo ou na proposição Eu penso, logo sou ou existo (DESCARTES, 1937,
p. 266); a qual só poderá se desenvolver segundo suas determinações essenciais,
constituindo assim uma metafísica da subjetividade.
Embora fundada por Descartes em sua necessidade e universalidade mediante a
intuição intelectual que a funda e mantém, sem esta a representação logo se fixa e
se esvazia de conteúdo, mostrando-se insuficiente para a apreensão dos objetos
inteligíveis, a começar pela assim chamada Coisa-em-si. Tal é o que impõe a crítica
à representação desde Kant e as suas tentativas de superação até os dias de hoje,
sobretudo com a emergência disso que se poderia chamar a episteme pós-moderna,
que embora ainda não tenha emergiu por completo, já pode ser considerada como
tendo seu embrião plenamente aí. Isso na medida em que tal episteme destitui a
primazia da representação no regime do conhecimento, substituindo-a ou pelo
menos a contrapondo com a comunicação; essa que passa então paulatinamente a
constituir-se como um novo horizonte de sentido do ser e do pensar, assim como do
agir e do dizer. Tirando as consequências da epísteme moderna e, a um só tempo,
apresentando a seu modo a pós-moderna, Habermas (2004, p. 8-9) resume assim a
novíssima episteme:
Depois que Frege substituiu a via régia mentalista da análise de sensações, representações e juízos
por uma análise semântica das expressões lingüísticas e Wittgenstein radicalizou a virada
lingüística numa mudança de paradigma, as questões epistemológicas de Hume e Kant poderiam
ter assumido um sentido novo, pragmático. (...). Mas a filosofia lingüística também se manteve
fixa à ordem tradicional de explicação. A teoria continua a gozar de um primado sobre a práxis,
enquanto a representação goza de um primado sobre a comunicação. (...).
Seguindo de perto as pegadas do platonismo, a filosofia da consciência privilegiara o interior em
relação ao exterior, o privado em relação ao público, a imediação da vivência subjetiva em relação
à mediação discursiva. A teoria do conhecimento tomara o lugar de uma Filosofia primeira,
enquanto a comunicação e o agir caíram na esfera dos fenômenos, ou seja, ficaram com um status
derivado. Depois da passagem da filosofia da consciência para a da linguagem, era de supor, não
uma reversão dessa hierarquia dos passos da explicação, mas sua nivelação. Pois a linguagem
presta-se tanto à comunicação como à representação; e o proferimento linguístico é, ele mesmo,
uma forma de agir que serve ao estabelecimento de relações interpessoais.
Assim, Charles Sanders Peirce já evitou uma redução semanticista e ampliou a relação de dois
termos entre proposição e fato, sucedânea da relação entre representação e objeto, para uma
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relação de três termos. O sinal que se refere a um objeto e exprime um estado de coisas precisa da
interpretação de um falante e um ouvinte. Mais tarde, a teoria dos atos de fala, inspirada em
Austin, mostrou como, na forma normal do ato de fala (“Mp”), a referência ao mundo e às coisas
do componente proposicional se entrelaça com a referência intersubjetiva do componente
ilocucionário. Ao estabelecer uma relação intersubjetiva entre falante e ouvinte, o ato de fala está
ao mesmo tempo numa relação objetiva com o mundo. Se concebemos “entendimento mútuo”
como o telos inerente à linguagem, impõe-se a co-originalidade de representação, comunicação e
ação. Uma pessoa entende-se com outra sobre alguma coisa no mundo. Como representação e
como ato comunicativo, o proferimento linguístico aponta em duas direções ao mesmo tempo: o
mundo e o destinatário.
Disso se depreende, se não já a substituição da própria modernidade e de sua
episteme, pelo menos o deslocamento de ambas e a perda de uma prioridade
ontológica até então dada à representação e ao sujeito representante. O que, de um
modo ou de outro, não configura necessariamente algo como a emergência de um
pensamento pós-metafísico que substitua sem deixar resto o que então se designa
pensamento metafísico, como pretende, por exemplo, J. Habermas; sendo inclusive
falaciosa certa ligação ou identificação da Metafísica com a Modernidade em geral e
a filosofia da consciência em especial por aquele autor em seu debate com Dieter
Henrich em torno do tema da Metafísica após Kant (ver HABERMAS, 1990, p. 10-61;
HENRICH, 2009, p. 83-117). Em todo caso, pode-se afirmar com alguma segurança
e, assim, de modo rigoroso, a emergência de um pensamento que poderia sim ser
chamado mais propriamente pós-moderno; o qual, por conseguinte, em vista de seu
caráter ainda embrionário, portanto imediato, não apresenta em seu interior – e
como a sua própria condição de ser – nada mais senão a oposição do pensamento
metafísico e de um suposto pensamento pós-metafísico (que se configura tão só em
oposição ao pensamento da representação, tomado muito apressadamente como o
pensamento de toda a Metafísica). Estes naquele convivem, ou podem conviver,
lado a lado – embora como extremos de uma relação – na medida em que ambos se
distinguem ou podem se distinguir do pensamento em jogo na episteme moderno-
contemporânea e na episteme antigo-medieval, essas nas quais, respectivamente,
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se apresentam os dois paradigmas fundamentais da Metafísica até aqui, mas não a
Metafísica mesma enquanto tal.
§6
As epistemes se conformam em cada época a partir de um princípio suficientemente geral
a partir do qual elas identificam-se com um determinado paradigma em especial, este por
seu turno generalizado de tal modo a ponto de sintetizar nele os diversos paradigmas nos
quais uma episteme se constitui. Entre os antigos e os medievais tal princípio apresentou-
se como o Ser (no sentido da equação Ente enquanto Ente), o qual, a partir do Físico, se
desdobrou nos paradigmas do Uno, da Substância e do Ser; no entanto, na medida em que
tal princípio foi identificado sem mais ao Paradigma do Ser, este se apresentou como o
mais abrangente do ponto de vista de sua constituição e de seu desenvolvimento histórico-
sistemático. No entanto, isso teve como consequência o obscurecimento do princípio e do
paradigma geral enquanto tais, cuja identificação fê-los confundir-se com a episteme
antigo-medieval; assim como, já nos limites da episteme moderno-contemporânea, em
sentido ontológico, fez com que a equação Ente enquanto Ente, interpretada a partir do
Paradigma do Sujeito, fosse tomada como o Ente em geral e, em sentido teológico, com o
Ser necessário e absoluto, i.é, como o Deus pessoal da tradição cristã. O que, enfim,
implicou a identificação da Metafísica clássica, antigo medieval, desenvolvida a partir da
relação do Ente e do Ser, ou do Físico e do Metafísico de um lado, e, de outro lado, da
Metafísica tradicional, desenvolvida a partir da identidade das determinações do Ente e do
Ente em geral, neste caso do Lógico e do Metafísico.
Dessa identificação e da confusão daí resultante, infelizmente, resultou a submersão
da Metafísica e de seus paradigmas constitutivos no “véu de maya” da afirmação ou
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da negação pura e simplesmente tradicionais de tradições opostas entre si. O que,
tanto no caso da afirmação quanto no caso da negação, terminou por submeter aos
paradigmas e epistemes atuais em cada época a Metafísica concebida a partir de
paradigmas e epistemes anteriores. Razão pela qual a Metafísica só pode emergir
como Ciência rigorosa, de fato e de direito, para além do conflito das tradições de
pesquisa nas quais ela se perfaz quando tal conflito puder ser superado ou mesmo
suprassumido; algo que, de um lado, exige a distinção das epistemes fundamentais
e dos paradigmas que se apresentam à consideração racional e, de outro, a crítica
dos pressupostos que estão na base de cada uma das epistemes e de cada um dos
paradigmas a elas associados, assim como das tradições de pesquisa racional que
os assumem e mantém, retomam e desenvolvem. Para isso, como afirma MacIntyre
(1991, p. 397), ainda que em outro contexto, é necessário que as tradições em jogo
se compreendam como rivais e conflitantes, compreendendo pois umas às outras
relativamente bem, com o que as mesmas podem se enriquecer significativamente
quando buscam fornecer uma representação das posições características das
outras. Tal exigência encontra lugar fértil, por incrível e mesmo paradoxal que isso
possa parecer, nos quadros da novíssima episteme; o que não era o caso nem na
clássica ou antigo-medieval, nem na tradicional ou moderno-contemporânea.
§7
Em vista disso, como já acentuava Molinaro (2002, p. 8-9), a Metafísica não só deve ou
pode, mas antes tem de se apresentar em sua unidade sistemática e em sua totalidade
enquanto ciência incontrovertível; isso no sentido de que, ao não deixar que nada subsista
além e fora de si, a rigor, nem mesmo o Nada, a Metafísica não pode estar sujeita ao erro,
ao desmentido, à falsificação ou à revisão, mas devendo e mesmo tendo de ser retomada e
desenvolvida, assumida e mantida segundo tais epistemes e tais paradigmas anteriores,
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historicamente datados e sistematicamente insuficientes, nos quadros das epistemes e dos
paradigmas posteriores.
Em relação a isso, vale aqui registrar, a título de conclusão, o dito de Hegel (1995, p.
55), no § 14 de sua Enciclopédia das Ciências Filosofias em Compêndio de 1830,
segundo o qual:
O mesmo desenvolvimento do pensar, que é exposto na História da Filosofia, expõe-se na própria
Filosofia, mas liberto da exterioridade histórica – puramente no elemento do pensar. O
pensamento livre e verdadeiro é dentro de si concreto, e assim é Idéia, e em sua universalidade
total é a Ideia ou o Absoluto. A ciência que [trata] dele é essencialmente sistema, porque o
verdadeiro, enquanto concreto, só é enquanto desdobrando-se em si mesmo, e recolhendo-se e
mantendo-se junto na unidade – isto é, como totalidade; e só pela diferenciação e determinação de
suas diferenças pode existir a necessidade delas e a liberdade do todo.
Comentando seu próprio texto, o então filósofo de Berlim acrescenta:
Um filosofar sem sistema não pode ser algo científico; além de que tal filosofar exprime para si,
antes, uma mentalidade subjetiva: é contingente segundo seu conteúdo. Um conteúdo só tem sua
justificação como momento do todo; mas fora dele, tem uma hipótese não fundada e uma certeza
subjetiva. Muitos escritos filosóficos se limitam a exprimir desse modo somente maneiras de ver e
opiniões. Por sistema entende-se falsamente uma filosofia que tem um princípio limitado, distinto
dos outros: ao contrário, é princípio da verdadeira filosofia conter dentro de si todos os outros
princípios particulares.
Desse modo, sobretudo se, como diz Hegel, “a filosofia é seu tempo apreendido
[erfasst] em pensamentos”5, em estando correto o que aqui foi dito, há que se
reconhecer ao fim e ao cabo que a Metafísica se faz ciência e ciência rigorosa, mais
especificamente, a Ciência e a Ciência a mais rigorosa tão somente quando perfaz
em cada época, segundo cada episteme e cada paradigma constitutivo desta, a
totalidade mesma de suas determinações, situando-se assim, por conseguinte, para
além da própria totalidade então perfeita.
5 Ver, G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie dês Rechts, Werke 7. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, S. 26.
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§8
O que foi dito no parágrafo anterior vale sem mais para a metafísica antigo-medieval,
fundada na Teoria informação imediata do ato intelectivo pela forma inteligível em ato do
ser, até a substituição desta pela Teoria da Representação; assim como para a metafísica
moderno-contemporânea até o limite em que esta se mantém incólume às críticas a ela
dirigidas em geral ou ao seu fundamento na representação em especial. Críticas essas
concomitantes ao nascimento da própria metafísica moderno-contemporânea, as quais até
aqui tiveram por resultado parcial a negação do título de ciência à Metafísica devido
sobretudo à constatação heideggeriana de que a essência ou a realidade da Metafísica
nunca é alcançada pela mesma; isso pelo menos enquanto as representações metafísicas da
Metafísica permanecem necessariamente por trás dessa essência (ver HEIDEGGER, 2000,
p. 232). Tal essência é de um lado pura e simplesmente o niilismo, do qual a Metafísica é
inconsciente pelo fato de o mesmo ser para ela velado na medida em que ela pensa o ente
sem o ser, despercebendo que o ente enquanto ente é assim graças ao ser, limitando-se a
indagar o ser do ente [no qual o ente é] pelo ente enquanto o que é pensado em relação ao
ente (ibid., p. 233). No entanto, de outro lado, tal essência continua sendo pura e
simplesmente o niilismo, do qual a Metafísica é agora consciente enquanto Metafísica do
niilismo ou enquanto se reconhece como o próprio niilismo na medida em que este a ela se
desvela por completo enquanto tal. O que implica pensar o próprio nada enquanto a
essência do niilismo ou aquilo que neste se exprime enquanto “o encobrimento do ser
mesmo oriundo do ser do ente sob o modo do esquecimento do ser em sua verdade” (ibid.,
p. 292); encobrimento inconsciente que só poderá ser superado quando da superação do
próprio nada enquanto o abismo em que o ser mesmo é ou se mostra enquanto o nada e o
fundamento, i.é, como o ab-ismo no qual o nada é o seu diverso ab-issal (HEIDEGGER,
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Metafísica, Aula 04, 20 de março de 2013. Guarapuava: Hyperapophasis, 2013.
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2010, p. 94ss). Enfim, nesse abismo ou como esse abismo mesmo o Ser se mostra, no
entanto, como liberdade; a qual é visada de maneira mais originária que a liberdade
metafísica (ibid., p. 97) – em sentido tradicional – justamente porque é o ser, a liberdade
ou o fundamento do metafísico propriamente dito.
No que concerne ao niilismo, para além do que foi tomado como tal a partir de
Nietzsche, até Vattimo, pode-se dizer a filosofia, e mais propriamente a Metafísica,
não só o aprendeu e dele se conscientizou como sua essência, mas também o
suspendeu ou superou como tal, assumindo-o e mantendo-o como um de seus
momentos. O problema aí em jogo é saber em cada filosofia determinada de que
niilismo e, por conseguinte, de qual nada se está falando; sobre isso Hegel (2007, p.
150-151) nos forneceu uma orientação deveras importante, com a qual finalizamos
esta seção:
Foi mostrado anteriormente por que a filosofia jacobiana tanto abomina o niilismo
que ela encontra na filosofia fichteana; mas no que diz respeito ao sistema fichteano ele mesmo
nesse respeito, certamente a tarefa do niilismo se encontra no puro pensamento, mas ele não é
capaz de chegar ao niilismo, porque esse puro pensamento permanece pura e simplesmente apenas
de um lado e, portanto, essa possibilidade infinita tem diante de si uma efetividade infinita e, ao
mesmo tempo, consigo mesma. E assim o Eu é afetado pura e simplesmente na infinitude por um
não-Eu, tal como deve ser, já que a infinitude, o pensamento, que é apenas um lado da oposição,
deve ser posto como sendo em si, mas por isso o seu correlatum não pode ser pura e simplesmente
aniquilado, porém destaca-se com elasticidade insuperável, pois ambos são fundidos
conjuntamente com cadeias diamantinas pelo destino supremo. O primado da filosofia é, contudo,
conhecer o nada absoluto, ao qual conduz tão pouco a filosofia fichteana quanto mais a jacobiana a
abomina por isso. Contra isso, ambos estão no nada contraposto à filosofia, o finito, a aparição,
têm para ambos realidade absoluta; o absoluto e o eterno são para ambos o nada para o conhecer.
Jacobi censura o sistema o sistema kantiano de ser uma mescla de idealismo e empirismo, destes
dois ingredientes, a sua censura não atinge o empirismo, mas o idealismo ou o lado da infinitude.
Embora ela não possa ganhar a completude do verdadeiro nada, ela é, desse modo, também já o
insuperável para ele, porque ela ameaça colocar em perigo a absolutidade do empírico e nela se
encontra a exigência do aniquilamento da oposição.
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§9
Aqui finalmente se encontram os neoplatônicos, Tomás de Aquino, Heidegger, Schelling e
Hegel; cada um com seus recursos e suas habilidades, com suas insuficiências e suas
debilidades no que tange à concepção do ser mesmo no sentido do ser enquanto ser para
além de toda representação e de toda informação imediata pura e simples. Concepção que
nos quadros da novíssima episteme se apresenta não só como possível, mas também se
mostra como plenamente praticável; o que, no entanto, exige um restabelecimento da
Metafísica como ciência rigorosa fundada pura e simplesmente na liberdade, essa que
enquanto ser é e tem que ser também conceber, i.é, seu próprio conceber enquanto ser.
Caso em que, por fim, agora nos quadros da episteme pós-moderna, fundada na Teoria da
Comunicação, a Metafísica mais uma vez se legitima enquanto ciência, enquanto ciência
rigorosa, apresentando assim uma definição real que abarca conscientemente sua essência
para além do niilismo e da representação. Por conseguinte, se mostrando como a Ciência
do Metafísico ou do Ser enquanto Ser que, como unidade originária do conceber e do Ser,
não é senão liberdade; não liberdade metafísica, mas liberdade do Metafísico. Assim,
como unidade de sua definição nominal [Ciência do Metafísico] e de sua definição real
[Ciência da Liberdade], um conceito provisório da Metafísica se mesma apresenta-la como
Ciência da unidade comum ou da comunidade do conceber e do ser. Essa a ciência do
fundamento do fundamento, i.é, do próprio Metafísico enquanto Metafísico; a qual, porém,
ainda exige ser desenvolvida.
A perspectiva assim aberta de a Metafísica ser entendida a um tempo como Ciência
do Metafísico e como Ciência da Liberdade [do Metafísico] torna possível uma dupla
retomada e desenvolvimento da Metafísica como ciência rigorosa nos dias atuais, de
um lado como uma Normativa do Ser e de outro como uma Ontologia do Agir (para
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se utilizar aqui duas expressões caras a Vaz (2011, p. 106) em suas releituras de
Platão), esses os dois modos a partir dos quais, ainda nos quadros da contribuição
vaziana para a filosofia atual (VAZ, 2002, p. 286), se torna efetivamente praticável:
Retomar, em novo estilo teórico, o exercício de uma memória metafísica que reencontre o ser
através da densa rede dos objetos científico-técnicos que nos envolve sempre mais, essa a tarefa
maior que se apresentará à filosofia se ela, como acreditamos, sobreviver na nova civilização que
se anuncia.
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Referências:
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FIM DO RESUMO!