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8/3/2019 (2009) DIEHL, Diego a. Metodologia Da AJP. Luta Por DH.
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V Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade
17 a 19 de setembro de 2009, UFPA, Belém (PA)
Grupo de Trabalho 2: Experiências de Educação em Direitos Humanos
METODOLOGIA DA ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR NA LUTA PELA REALIZAÇÃO
HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS
Nome do autor: Diego Augusto Diehl
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Mestrando do Programa dePós-Graduação em Direito da UFPA. Bolsista CAPES.
E-mail: diegoadiehl@yahoo.com.br
RESUMO: O conceito de Assessoria Jurídica Popular (AJP) foi formulado a partir de experiências
pioneiras desenvolvidas a partir do conceito de “serviços legais inovadores”, que contrasta com os
serviços tradicionais pelo seu caráter coletivo pautado pela organização popular e pela ética
comunitária (em contraposição ao caráter individual, burocrático e assistencialista da perspectiva
tradicional). A práxis da AJP é determinada pelas diversas concepções críticas do fenômeno
jurídico, com destaque ao direito alternativo , o pluralismo jurídico , o direito achado na rua e o
direito insurgente . Atualmente, porém, a AJP vive um verdadeiro dilema em face do quadro geral
de inobservância dos direitos humanos, cuja realização plena é o real objetivo desta prática
jurídica insurgente. Urge aprofundar, portanto, a discussão sobre a metodologia da AJP na luta
pela realização histórica dos direitos humanos.
PALAVRAS-CHAVE: Assessoria Jurídica Popular, Direitos Humanos, Direito Insurgente.
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Como se verá ao longo deste artigo, a prática da AJP está intrinsecamente relacionada
com os direitos humanos, na medida em que procura realizá-los integralmente. É por isso que,
entende-se, uma melhor compreensão da metodologia da AJP apenas poderá ser desenvolvida a
partir de um verdadeiro “acerto de contas” que se deve fazer em relação ao tema (repleto de
armadilhas) dos direitos humanos.
2) Situando a Assessoria Jurídica Popular
Um dos precursores teóricos do que veio a ser denominado como Assessoria Jurídica
Popular (AJP) foi CAMPILONGO, ao distinguir a existência dos chamados “serviços legais
tradicionais” dos “serviços legais inovadores”, sendo que estes últimos enfatizariam a organização
popular, a ética comunitária e as ações coletivas, diferentemente da prática tradicional, de caráter
marcadamente individual e burocrático1.
Tal concepção, teoricamente formulada, nada mais foi que a síntese gerada pela prática
jurídica desenvolvida pioneiramente pelo Instituto de Apoio Jurídico Popular (IAJUP), que
funcionou de 1985 a 2002 no estado do Rio de Janeiro, tendo como um de seus principais ícones
o advogado (falecido recentemente) Miguel Pressburguer2. Este grupo promovia apoio jurídico a
movimentos sociais, realizava formação e capacitação de lideranças comunitárias, formação
crítica de estudantes e estagiários de Direito, além de realizar uma série de debates e organizar
algumas publicações, a partir dos quais desenvolveu-se o conceito de direito insurgente 3 .
Além do IAJUP, outros grupos destacaram-se na realização da AJP ao longo do períodode “redemocratização” ocorrido no Brasil durante a década de 1980. Dentre estes grupos, deve-se
citar o GAJOP (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, fundado em 1981,
em Recife-PE), a AATR (Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais, fundada em 1982,
no estado da Bahia), a Acesso (Acesso – Cidadania e Direitos Humanos, fundada em 1985, no
estado do Rio Grande do Sul), e, como não poderia deixar de ser, a SDDH (Sociedade Paraense
de Direitos Humanos, fundada na década ainda de 1970 em Belém-PA), que é a organização
mais antiga que desenvolve a AJP, na sua acepção teórica formulada.
Todas estas experiências, além de muitas outras de que sequer tem-se notícia, estãointrinsecamente relacionadas com a história política brasileira, e, mais especificamente, com os
diversos fragmentos da esquerda brasileira, surgidos em maior número a partir do Golpe Militar de
1964. Naquele momento histórico, os agrupamentos políticos da classe trabalhadora discutiam
1 CAMPILONGO, Celso. Assistência jurídica e realidade social: apontamentos para uma tipologia dos serviços legais . In: CAMPILONGO, Celso; PRESSBURGER, Miguel. Discutindo a assessoria popular.Rio de Janeiro: apoio jurídico popular: FASE, 1991. 2 LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria jurídica popular no Brasil: paradigmas, formação histórica eperspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.3 Para uma abordagem histórica do conceito, vide: RIBAS, Luiz Otávio. Direito insurgente e pluralismojurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Florianópolis, 2009. Monografia para obtenção do grau de mestre em Filosofia e Teoria do Direito –Universidade Federal de Santa Catarina.
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quais seriam as melhores formas de resistir e derrotar o regime político fantoche do imperialismo
norte-americano, sendo que os grupos dividiam-se basicamente entre aqueles que aderiram à luta
armada e aqueles que optaram por uma ação “à beira da legalidade”.
O certo, porém, é que, qualquer das posturas políticas adotadas, todos estes grupos
aderiram, de alguma forma, ao uso de diversos mecanismos de resistência, dentre os quais
também o Direito.
A partir da experiência nesses grupos pacíficos, em movimentos clandestinos e até armados, surgiram grupos de advogados articulados com movimentos religiosos, com movimentos de educação popular, com outras entidades não- governamentais, e também ligados a cargos e funções públicas. O período de democratização do país, a partir de 1985, foi fecundo para a organização popular,inclusive dos grupos de apoio jurídico. O surgimento de um movimento sindical atuante, com o apoio de advogados nas oposições sindicais, assim como na construção das centrais sindicais.4
Com a gradual flexibilização política (conservadora) realizada a partir do final da década de
1970 e início da década de 1980, devido à grande pressão popular em prol de eleições diretas e
liberdade de organização política, os sujeitos que desenvolviam práticas jurídicas em favor da
classe trabalhadora e de grupos sociais minoritários ou oprimidos (lembrando que é deste período
o surgimento e a consolidação de movimentos ambientalistas, feministas, indígenas, negros,
GLBTs etc ) passaram a organizar associações e grupos de apoio jurídico. Este foi o momento
decisivo de consolidação prática daquilo que viria a ser chamado de AJP, cujo conceito
reverberou e reverbera até hoje com grande eloqüência, especialmente entre os estudantes.Convém ainda tratar um pouco das concepções do Direito e das práticas desenvolvidas
por estes grupos, que tanto influenciaram/influenciam os estudantes até hoje. Os “serviços legais
alternativos” para uns, ou “serviços inovadores” para outros, ou ainda as “práticas jurídicas
insurgentes” como propõe RIBAS (que demonstra ser o termo mais correto) envolvem diferentes
concepções praxiológicas (que associam teoria e prática) do Direito5: o direito alternativo (cuja
matriz teórica encontra-se no direito europeu, formulado por magistrados para a garantia de
direitos humanos e fundamentais dos cidadãos durante e após os regimes ditatoriais), o
pluralismo jurídico (surgido de pesquisas realizadas em comunidades pobres e que demonstram aexistência de manifestações jurídicas supra-estatais, que emanam da comunidade e de
movimentos sociais), o direito achado na rua (cuja concepção remonta à teoria dialética do Direito
de Roberto Lyra Filho, que entendia que o direito não poderia ser reduzido a “campos de
concentração legislativo”), e o direito insurgente (que propõe, além do “positivismo de combate”, o
reconhecimento de uma cultura que surge dos próprios conflitos sociais, a partir dos sujeitos
sociais organizados).
4 Ibidem, p. 39.5 Ibidem, p. 41-42.
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Com base nas diferentes concepções praxiológicas do Direito, as atividades práticas
desenvolvidas, especialmente na experiência brasileira, podem ser divididas entre a advocacia
militante e a assessoria universitária, conforme a proposta de divisão teórica de LUZ6. Dentro da
assessoria universitária, por sua vez, RIBAS identifica o que denomina de assessoria estudantil 7 ,
marcada pelo protagonismo dos estudantes, organizados em grupos autogestionários de
extensão popular.
O surgimento da maioria dos grupos de assessoria estudantil ou universitária é ainda mais
recente em comparação com os grupos da advocacia militante, mas tiveram importantes
precursores, com especial destaque ao Serviço de Assistência Judiciária Gratuita da Faculdade
de Direito da UFRGS (criado na década de 1950 para oferecer assistência judiciária gratuita à
comunidade) e o Serviço de Assistência Judiciária da UFBA (criado na década de 1960). Ambos
os projetos foram fechados pelo regime militar, apenas retornando com suas atividades a partir da
década de 1980.
Conforme se vê, todas estas experiências inovadoras surgidas no âmbito da prática dos
juristas comprometidos com as causas populares foram interrompidas com o regime político
ditatorial, sendo retomadas a partir da década de 1980 sob novos moldes e novos ares, inspirados
por um novo período de efervescência política e cultural, marcado por um grande teor de
experimentalismo e de crítica ao que se convencionou chamar de “práticas tradicionais”,
desempenhadas inclusive por setores da esquerda brasileira.
É neste contexto que surge o conceito de AJP, como verdadeira novidade na comunidade
jurídica, principalmente por buscar se libertar das “amarras burocráticas” do Direito e propor umaatuação que não se limitasse à “mera assistência” (cunhada inclusive como “assistencialista”8),
mas que se tornasse uma verdadeira “assessoria”, enquanto ação de empoderamento do próprio
povo na sua luta histórica por direitos.
A AJP pode ser concebida, então, “como uma prática jurídica insurgente desenvolvida por
advogados, professores ou estudantes de direito, entre outros, voltada para a realização de ações
de acesso à justiça e/ou educação popular em direitos humanos, organização comunitária e
participação popular de grupos ou movimentos populares” 9 .
Apesar de muitos grupos da chamada “advocacia militante” terem promovido, entre suasformas de atuação, a educação popular, pode-se dizer que o principal precursor da inserção de
práticas pedagógicas na AJP foi o campo da “assessoria universitária”, a partir de experiências
como o Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos da Universidade de Brasília (NEP-
UnB), criado na década de 1990, e também a chamada “assessoria estudantil”, impulsionada a
partir de todas estas experiências, e com especial influência do direito achado na rua , que era a
6 LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria jurídica popular..., op. cit., p. 73.7 RIBAS, Luiz Otávio. Direito insurgente e pluralismo jurídico..., op. cit., p. 52.8 FURMANN, Ivan. Assessoria Jurídica Universitária Popular: da utopia estudantil à ação política.Curitiba, 2003. Monografia para obtenção do grau de bacharel em Direito – Setor de Ciências Jurídicas daUniversidade Federal do Paraná. 9 RIBAS, Luiz Otávio. Direito insurgente e pluralismo jurídico..., op. cit., p. 53.
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experiência de extensão universitária popular de maior impacto dentro do movimento estudantil de
Direito.
Junte-se a estas experiências o início do processo de articulação das mesmas em redes
de advogados populares (com especial destaque à RENAAP10), e a intensificação das críticas à
burocracia no movimento estudantil ao longo da década de 1990, e tem-se todas as condições
objetivas e subjetivas que levaram à criação de diversos grupos de assessoria estudantil, que
passaram a se articular nacionalmente, primeiramente na CONAJU (Coordenação Nacional de
Assessoria Jurídicas Universitárias), que era uma coordenação composta por diretorias de centros
acadêmicos, e, a partir de 1996, na RENAJU (Rede Nacional de Assessoria Jurídica
Universitária), criada para ser um organismo autogestionário de articulação das assessorias
estudantis, e que funciona até hoje.
Pode-se dizer que as principais referências teóricas que influenciaram a criação e o
desenvolvimento destes grupos de assessoria estudantil foram a pedagogia do oprimido de Paulo
Freire e o direito achado na rua de Roberto Lyra Filho e José Geraldo Sousa Jr. Sua prática pode
ser compreendida como “um método de comunicação entre saberes científico e popular sobre o
direito, que busca a emancipação dos sujeitos e que pressupõe a horizontalidade de tratamento
entre os atores da universidade e da comunidade para uma prática social total e permanente de
educação” 11.
Porém, como se disse, a concepção teórica e prática da AJP não pode ser considerada
estática, mas está em constante movimento, a partir de uma dinâmica crítica que revê e reformula
suas concepções a todo momento. Nesse sentido, é importante fazer um análise crítica daslimitações atuais da AJP, que, pode-se dizer, está constantemente em crise na medida em que
pode ser considerada uma perspectiva praxiológica absolutamente minoritária na cultura jurídica
brasileira, e que nem sempre está adequada a intervir da forma devida nos conflitos
estabelecidos, de forma a garantir a realização dos direitos humanos.
Uma metodologia adequada para a AJP depende, portanto, de um verdadeiro “acerto de
contas” que ainda se está por fazer com todas as diferentes concepções que influenciaram, de
alguma forma, aquilo que representa a sua concepção atual.
3) Análise crítica da Assessoria Jurídica Popular
Conforme foi dito, a sigla AJP consubstancia em uma teoria aquilo que se pode considerar
enquanto uma prática social que se formula e reformula a todo momento. Nesse sentido, pode-se
considerar um verdadeiro avanço a sua definição enquanto “prática jurídica insurgente”, que
10 Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares.11 RIBAS, Luiz Otávio. Assessoria Jurídica Popular Universitária e Direitos Humanos: o diálogoemancipatório entre estudantes e movimentos sociais (1988-2008). Porto Alegre, 2008. Monografiapara obtenção do grau de especialista em Direitos Humanos – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.P. 14.
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descreve como um todo as experiências populares de advogados, estudantes, professores e
outros militantes dos direitos humanos, sem estabelecer maiores cisões entre estes
personagens12.
Ocorre que a definição da AJP enquanto prática jurídica insurgente está longe de ser a
concepção majoritária entre aqueles que teorizam e que praticam a AJP em suas diversas
matizes. Isto se deve propriamente às raízes históricas dos movimentos políticos que edificaram
este conceito, e que chegaram a um estágio limite de seu desenvolvimento, que depende de um
grande acerto de contas teórico para avançar qualitativamente.
É bastante significativo o fato de o movimento da AJP ter sido desenvolvido sob as bases
teóricas, em especial, do “direito alternativo”, do “pluralismo jurídico” e do “direito achado na rua”,
em detrimento de concepções como a do “direito insurgente”. Tais concepções ressaltam a
existência de regulações jurídicas supra-estatais, que emanam da comunidade pobre e dos
movimentos sociais, configurando-se como fontes jurídicas ora complementares ao Direito estatal ,
ora de resistência a este Direito .
A concepção das práticas sociais das comunidades e dos movimentos organizados
enquanto regulações jurídicas complementares ao Direito estatal é típica do chamado “Movimento
do Direito Alternativo”, que sintetiza uma prática de coexistência dos grupos populares com o
Estado, o que traz consigo uma dada concepção do aparelho estatal. Ao se identificar enquanto
um movimento “alternativo”, aquilo que buscava ressaltar sua diferença definiu, na verdade, o seu
isolamento, tornando-se uma concepção que se reconhece como diferente e minoritária, sem
pretensões de tornar-se uma concepção dominante , hegemônica na cultura jurídica.Reflexo de tudo isto é que o acirramento dos conflitos entre os grupos populares e
movimentos sociais com o Estado evidenciaram (e evidenciam) cada vez mais a impossibilidade
de coexistência entre regulações jurídicas que são, na verdade, diametralmente opostas ,
antagônicas . O Direito estatal mostra-se, especialmente nestes momentos de conflito aberto,
enquanto um verdadeiro aparelho classista, ou seja, um “direito” da classe dominante, que é
sobreposto ao direito das classes subalternas e se utiliza do aparato estatal para garantir sua
supremacia.
Pode-se dizer, portanto, que o “direito alternativo” caiu na armadilha ideológica daconcepção hegeliana de Estado , visto como um aparelho ideal construído acima das classes e
alheia aos seus conflitos 13. Justamente por não compreender o caráter classista do Estado, o
“direito alternativo” passou a ser visto cada vez menos pelas classes dominadas e oprimidas como
um caminho eficaz para a realização de seus direitos, pois sequer o Estado, em suas ações
práticas, fornece indícios de uma suposta “convivência pacífica” com os direitos dos pobres e
oprimidos.
12 O termo é cunhado a partir da proposta de resgate do “direito insurgente” de Miguel Pressburguer, quefora deixado de lado em prol de concepções como o “direito alternativo” e o “direito achado na rua”. VideRIBAS, Luiz Otávio. Direito insurgente e pluralismo jurídico..., op. cit., p. 53.13 ENGELS, Friedrich. Anti-dühring. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1990. P. 17.
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A visão das práticas comunitárias e dos movimentos sociais enquanto fontes de produção
do Direito independente e até mesmo em resistência ao Direito estatal pode ser encontrada de
forma eventual (i. é, não sistemática) nas teorias do “pluralismo jurídico” e do “direito achado na
rua”. Tais concepções não caíram no erro do “alternativismo” que levou ao declínio do “direito
alternativo” no Brasil, propondo-se enquanto conceitos que pretendem ser hegemônicos na
cultura jurídica brasileira e latino-americana.
O “pluralismo jurídico” e o “direito achado na rua” podem ser considerados mais críticos
que o “direito alternativo” na medida em que ambos reconhecem o direito das classes subalternas
de resistir contra o “Direito oficial”, utilizado pelas classes dominantes no seu projeto de
hegemonia política. Não à toa que o “pluralismo jurídico” e o “direito achado na rua” são
considerados até hoje como as concepções hegemônicas que norteiam a prática da AJP.
Ocorre que, de certa forma, o projeto de resistência ao Direito estatal pode ser também
considerado como uma forma de convivência com este “Direito”, na medida em que o “resistir” não
significa “derrubar”, “atacar”, “insurgir-se contra” o (não-)Direito do opressor a manter as amarras
da escravidão (seja ela assalariada, sexista, racista etc ). Em síntese, a resistência contra a
opressão não garante a efetivação dos direitos das classes oprimidas, na medida em que as
condições objetivas e subjetivas que causam a opressão não são eliminadas, o que apenas pode
ocorrer a partir de práticas insurgentes, que se rebelam contra a negação de direitos.
É neste ponto de inflexão que a AJP encontra-se atualmente. O caráter estruturalmente
opressor do Direito estatal, utilizado pela classe dominante contra as classes subalternas, fez com
que as propostas de resistência a este (não-)direito do opressor fossem vistas como insuficientes,instalando-se uma verdadeira crise de sua proposta, seja em termos teóricos, seja em termos
práticos.
O balanço crítico das ações desenvolvidas pela AJP demonstra a limitação que as práticas
atuais de resistência contêm em si para a efetivação dos direitos humanos das classes
subalternas, o que gera um profundo mal-estar e grandes decepções entre profissionais e
estudantes, além dos próprios sujeitos com os quais a AJP procura trabalhar. Os defensores da
ação da AJP como mera prática de resistência (e, afinal de contas, de convivência) ao Direito
estatal geralmente propõem que estes sujeitos “se conformem” com as “limitações do Direito”.Aqueles que defendem uma prática insurgente contra o Direito estatal (ou seja, o direito de
as classes subalternas se rebelarem contra a classe dominante, que instrumentaliza o poder
político) não podem se conformar com tais soluções que não superam o mal-estar atual da AJP.
Devem, pelo contrário, propor novas metodologias de práticas jurídicas insurgentes mais
preparadas à dimensão dos conflitos que ocorrem no contexto da luta de classes, reconhecendo-
se enquanto a contra-hegemonia política da sociedade capitalista atual, mas que intenta tornar-se
a hegemonia em direção à sociedade futura sem classes sociais e sem opressões de qualquer
natureza.
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Segundo Miguel BALDEZ, “o sentido histórico desse direito insurgente ‘não está em ser
alternativo, mas sim na capacidade de seus teóricos de insurgirem-se contra a ordem
estabelecida, e de participarem, ainda que por dentro da ordem jurídica do estado capitalista, da
construção da sociedade socialista e de seu Estado’" 14 .
A metodologia trazida pela proposta do “direito insurgente” não nega, portanto, as
experiências históricas desenvolvidas pelas classes subalternas em termos de resistência ao
Direito estatal, mas procura utilizá-los de maneira tática, sob uma estratégia maior marcada pela
insurgência contra a ordem estabelecida, buscando construir esta nova sociedade. Para isso, faz-
se estritamente necessário, em especial, um acerto de contas do “direito insurgente” com a
temática dos direitos humanos, que nada mais é que o fundamento de ação da AJP.
4) Para uma concepção histórica e dialética dos direitos humanos
Conforme se viu, a AJP foi criada enquanto conceito que sintetiza uma prática social, ora
no âmbito jurídico, ora numa perspectiva pedagógica, porém sempre e assumidamente política .
Justamente por ser uma prática política, a AJP desenvolveu-se a partir da relação intrínseca com
o popular, a partir de um compromisso ético com as populações oprimidas, apoiando-as e
impulsionando-as ao protagonismo histórico na luta pela efetivação de seus direitos.
Estes direitos estão intrinsecamente relacionados com as necessidades dos sujeitos, e
que, em termos da Constituição Federal, podem ser sintetizados a partir da “dignidade da pessoa
humana”, que é considerada o fundamento último de identificação de determinados direitosenquanto “direitos humanos” ou “direitos fundamentais”. Não se trata, porém, de delimitar os
direitos humanos a partir de preceitos constitucionais, e nem mesmo de “naturalizá-los”, mas de
conceber tais direitos a partir do seu conteúdo político e social, que sempre é historicamente
determinado.
Cada concepção praxiológica de AJP carrega consigo uma perspectiva específica no
debate sobre os direitos humanos. Nesse sentido, o “direito insurgente” deve fazer um verdadeiro
“acerto de contas” com a concepção de direitos humanos atualmente vigente, para que a AJP
possa avançar metodologicamente, tornando-se um instrumento capaz de atuar em conjunto comas populações oprimidas na causa da libertação de suas opressões. Este é um debate, porém,
que contém uma série de “arapucas ideológicas”, além de inúmeras dificuldades teóricas que
resultam, na prática, em uma perspectiva ambígua na realização dos direitos humanos: não
apenas os oprimidos, mas muitas vezes também os opressores utilizam-se desta bandeira para
promover suas ações dominadoras, escravizadoras.
Uma destas armadilhas residem precisamente na “naturalização” de determinados direitos
enquanto direitos humanos. Na medida em que se considera a existência de um suposto “direito
natural”, o resultado é a des-historicização não apenas deste direito, mas também dos sujeitos
14 RIBAS, Luiz Otávio. Direito insurgente e pluralismo jurídico..., op. cit., p. 79.
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que seriam seus detentores. Direitos e sujeitos tornam-se, então, abstratos, o que se traduz,
especialmente nas sociedades dividias em classes, na naturalização das desigualdades.
Uma perspectiva crítica dos direitos humanos deve, portanto, em primeiro lugar, considerar
tanto os direitos existentes como os direitos reivindicados (e ainda não aplicados) como
resultantes de um processo histórico. Não pré-existem, pelo simples motivo de que não decorrem
das “idéias” humanas, mas da ação prática, da luta política que define, a partir das correlações de
forças em cada sociedade, o que será considerado como direito e o que não será assim
considerado.
Além de históricos, os direitos humanos são, portanto, construções humanas dialética e
contraditoriamente determinadas. Especialmente em se tratando das sociedades divididas em
classes sociais, os interesses e necessidades jamais podem ser “universais”, mas serão sempre
específicos, determinados. Se “a história da Humanidade é a história da luta de classes” 15 , então
certamente esta luta se dá com ênfase na conquista e na realização de necessidades e interesses
(de classe) enquanto direitos, o que não é diferente quando se trata dos direitos humanos.
Não é apenas o marxismo que traz a tona o caráter de historicidade e conflituosidade na
manifestação e no reconhecimento de direitos. IHERING, por exemplo, considera que o
reconhecimento de direitos apenas ocorre a partir da luta política entre os diversos grupos sociais.
Todas as grandes conquistas da história do direito, como a abolição da escravatura e da servidão, a livre aquisição da propriedade territorial, a liberdade de profissão e de consciência, só puderam ser alcançados através de séculos de lutas intensas e ininterruptas.16
Como esta luta não se dá em termos abstratos, mas entre sujeitos concretos, organizados
em classes sociais historicamente determinadas, é possível perceber que tais conflitos contêm em
si uma lógica, que é a luta de classes, na qual cada classe busca fazer prevalecer suas
necessidades ou seus interesses enquanto direitos.
É sob esta base filosófica construída pelo materialismo histórico que se torna possível a
compreensão do conteúdo destes direitos, que nada mais são que a síntese do processo dialético
inerente às lutas e contradições entre as classes sociais. Isso significa que os direitos não existem
abstratamente, mas foram o resultado de lutas políticas ocorridas em momentos históricos
específicos, levados a cabo por sujeitos concretos e historicamente determinados.
Por que se chama o membro da sociedade burguesa de “homem”, homem por antonomásia, e dá-se a seus direitos o nome de direitos humanos? Como explicar o fato? Pelas relações entre o Estado político e a sociedade burguesa, pela essência da emancipação política.17
15 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista . In: BOGO, Ademar. Teoria da organização
política I. São Paulo: Expressão Popular, 2005. P. 84.16 IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002.P. 31.17 MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Moraes, s.d.
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Os “direitos do homem”, tal como foram inicialmente concebidos (pela classe burguesa) e
posteriormente conquistados politicamente, nada mais são que os direitos do membro da
sociedade burguesa, do “homem egoísta”, separado dos outros homens e da comunidade. Nesse
sentido, a liberdade é o “direito de fazer tudo que não prejudique os outros” (criando-se, assim,
verdadeiras cercas entre os homens), cuja aplicação prática é o “direito humano à propriedade
privada” (direito de desfrutar de seu patrimônio arbitrariamente, sem atender aos demais homens,
à sociedade); a igualdade é o “direito de todos à liberdade” (no exato sentido acima retratado); e a
segurança é o “conceito social supremo da sociedade burguesa”, sendo que “toda sociedade
somente existe para garantir a cada um de seus membros a conservação da sua pessoa, de seus
direitos e de sua propriedade” 18 .
Isto não significa, porém, que a ascensão da sociedade burguesa é vista por MARX sob
um aspecto negativo, mas, isto sim, sob uma perspectiva limitada ao conteúdo político das
revoluções burguesas. Nesse sentido, estabelece-se a diferenciação entre a emancipação política
e a emancipação humana.
A emancipação política promovida pelas revoluções burguesas superou a sociedade
feudal, na qual predominava uma relação umbilical e opressiva entre os indivíduos e o Estado,
cuja diferenciação era um tanto tênue. Libertados do Estado político os fundamentos da
sociedade civil (personalidade, família, propriedade etc), esta se construiu de forma materialista
(da sociedade burguesa e do homem egoísta), enquanto o Estado político foi construído de forma
idealista (formando a idéia do “cidadão ideal” abstrato e do Estado numa perspectiva ideal do
“bem-comum”).Separando-se do Estado político, o homem passa a ver-se como “não-político”, “natural”.
Com isso, os direitos humanos passam a ser vistos como “direitos naturais”, garantidos através do
conceito de “direito subjetivo”, construído pela sociedade burguesa em contraponto à noção de
“privilégio” das relações entre indivíduos da sociedade feudal. O homem passa a ser um sujeito
duplo a partir da emancipação política: um indivíduo egoísta no âmbito da sociedade civil, e uma
pessoa moral, um cidadão do Estado, no âmbito do Estado político.
Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade. Longe de conceber o homem como um ser genérico, estes direitos, pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco exterior dos indivíduos, uma limitação de sua independência primitiva. O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação de suas propriedades e de suas individualidades egoístas.19
Perceba-se, portanto, que o cerne da crítica de MARX aos direitos humanos se dá na
medida em que estes “direitos humanos” conquistados pelas revoluções liberais nada mais são
18 Ibidem , p. 44.19 Ibidem, p. 45.
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que o reconhecimento de direitos civis absolutos aos membros da sociedade burguesa, que
passam a ter o Estado à sua disposição a partir de uma verdadeira muralha que divide o homem
egoísta do cidadão abstrato. Este Estado nada mais é que um aparelho político garantidor da
liberdade privada dos proprietários, que são os únicos e reais sujeitos da sociedade burguesa.
Isso não significa, porém, que a luta pelos direitos humanos seja uma bandeira equivocada
na perspectiva marxista, desde que a estratégia adotada seja a busca do que se denomina como
a emancipação humana, que está muito além da mera emancipação política proporcionada pela
sociedade burguesa.
Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais, somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas “forces propres” [forças próprias] como forças sociais e quando,portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana.20
A emancipação humana é vista, portanto, como a própria abolição do sujeito duplo, a partir
do reencontro do homem individual com o cidadão abstrato, enquanto verdadeiro homem social,
que vive, produz e decide as direções da sociedade em conjunto com esta mesma sociedade.
Não se trata mais do homem egoísta que decide arbitrariamente a utilização da propriedade
privada, mas do homem social concebido como livre produtor associado, que decide juntamente
com a sociedade as formas de utilização da propriedade social.
Segundo MARX, a resolução da uma antítese apenas ocorre tornando-a impossível. Nesse
sentido, sua solução para a antítese religiosa é resolvida pela abolição da religião; da mesma
forma, a resolução da antítese entre o homem egoísta e o cidadão privado, a sociedade civil e o
Estado político, apenas pode se dar a partir da abolição do Estado , que é o momento em que a
verdadeira emancipação humana se torna realidade.
A proposta marxista da abolição do Estado surpreende ainda muitas pessoas que, ao invés
de reconhecerem o aparato estatal como um instrumento político utilizado pelas classes sociais
em luta, idealizam-no enquanto um “aparelho a parte”, como se estivesse acima e alheio à luta de
classes. Evidentemente, não é como ocorre na realidade: MARX e ENGELS já diziam, desde
1848, que o Estado seria nada menos um “balcão de negócios da burguesia”21, concepção esta
que retrata até hoje com perfeição a relação que este aparelho desempenha no contexto da
sociedade de classes.
Foi ENGELS quem, muitos anos depois, se propôs a explicar a essência e a finalidade do
Estado. Sua obra influenciou decisivamente a concepção que o materialismo histórico carrega
consigo acerca do Estado, tal como expõe LENIN, em sua obra de maior importância histórica:
20 Ibidem, p. 52.21 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista..., op. cit., p. 87.
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O Estado – diz Engels, resumindo sua análise histórica - não é de modo algum um poder imposto de fora à sociedade; nem é “a realidade da Idéia moral”, nem “a imagem e a realidade da Razão”, como afirma Hegel. É mais um produto da sociedade quando chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou em uma contradição irremediável consigo mesma e está dividida por antagonismos inconciliáveis, e que é impotente para resolvê-los. Para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos em confronto não se devorem a si mesmas e não consumam a sociedade em uma luta estéril, faz-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade e chamado para amortecer o choque e mantê-los nos limites da “ordem” . E esse poder, nascido da sociedade, mas que se coloca acima dela e dela se divorcia cada vez mais, é o Estado.22
No mesmo sentido manifesta-se MIAILLE, que sintetiza sua teoria crítica e materialista do
Direito, a partir do qual
(...) a base econômica é a base real e contraditória da vida social. Sobre esta base eleva-se um edifício jurídico-político, em particular o Estado, encarregado não de
reduzir as contradições mas de as perpetuar em proveito da classe dominante.Assim, o Estado é a expressão de um certo estado das forças produtivas e das relações de produção.23
Dessa forma, o “direito insurgente” assimila a perspectiva crítica do materialismo histórico
a respeito do papel desempenhado pelo Estado na sociedade de classes, tomando a luta pelos
direitos humanos numa perspectiva de realização da emancipação humana , e não da mera
emancipação política, que nada mais pretende que inserir os sujeitos concretos no Estado político
enquanto “cidadãos abstratos”, e na sociedade burguesa enquanto “homens egoístas”,
verdadeiros proprietários privados (ainda que sua única propriedade seja sua força de trabalho)cujo único interesse é a produção e a troca de mercadorias.
Não é por “misericórdia” ou por “solidariedade”, portanto, que o direito insurgente defende
a AJP enquanto uma prática jurídica e social realizada junto às classes exploradas e oprimidas da
sociedade capitalista. Na verdade, esta é uma aliança realizada com base na própria estratégia do
direito insurgente, que nada mais é que a verdadeira emancipação humana, a partir da abolição
da propriedade privada e de todas as ideologias conservadoras que direcionem os indivíduos às
práticas de opressão.
Diferentemente das diversas correntes do chamado “socialismo utópico”, o materialismo
histórico, e, por conseguinte, também o direito insurgente não procuram idealizar o sistema
político-jurídico mais perfeito possível para a sociedade, mas “investigar o processo histórico
econômico de que, forçosamente, tinham que resultar essas classes e o seu conflito, descobrindo
os meios para a solução desse conflito na situação econômica assim criada” 24 .
A lógica da sociedade capitalista é definida pela competição desenfreada entre os
proprietários privados para a garantia de seu lucro, que é a única forma de sobreviver na
22 LENIN, V. I. O Estado e a Revolução. Traduzido por Javert Monteiro. São Paulo: Global, 1987. P. 54.23 MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. 2ª ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1989. P. 128.24 ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Moraes, s.d.P. 47.
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verdadeira anarquia de produção e circulação de mercadorias que se consubstancia no Mercado.
Seu funcionamento depende, necessariamente, da exploração do trabalho assalariado e a
subseqüente apropriação da mais-valia produzida, sem o qual o capital não se realiza e não
cumpre com seu real objetivo.
Há, portanto, uma incompatibilidade evidente entre a lógica de funcionamento do modo de
produção capitalista e a realização dos direitos humanos de todos os cidadãos. Primeiramente,
porque a competição desenfreada entre os proprietários privados exige um grau de exploração do
trabalho assalariado cada vez maior; associado a isto, é estritamente necessário ao processo de
acumulação de capital que haja o chamado “exército industrial de reserva”, cuja função é garantir
a disponibilidade de força de trabalho excedente que joga o preço da mão-de-obra (como
mercadoria que é, na sociedade produtora de mercadorias) para um valor que nada mais é que o
estritamente necessário para garantir a existência mínima do trabalhador.
Associe-se a este fato uma outra característica do modo de produção capitalista, que é a
aceleração da acumulação capitalista e a formação de grandes monopólios, e tem-se os
elementos necessários para demonstrar que o crescimento do capital nada mais é que o
crescimento da opressão do trabalho, e também dos grandes exércitos de mão-de-obra reserva.
Não à toa que, após mais uma grave crise cíclica do capitalismo, a própria ONU chegou ao dado
estarrecedor de que 1 bilhão de pessoas no mundo passam fome25. Os dados recolhidos em
diversos âmbitos (social, cultural, ambiental, econômico etc ) evidenciam uma profunda crise
civilizacional, decorrente da generalização do mercado mundial capitalista, que medidas
paliativas, cosméticas e reformistas jamais conseguirão superar.Nesse sentido, portanto, a luta pela afirmação histórica dos direitos humanos configura-se,
na atual sociedade produtora de mercadorias, enquanto uma luta contra a própria lógica que
norteia esta sociedade, na medida em que representam, cada qual parcialmente, uma luta
objetivada à emancipação humana.
Os direitos humanos de proteção do trabalhador são, portanto, fundamentalmente anticapitalistas, e, por isso mesmo, só puderam prosperar a partir do momento histórico em que os donos do capital foram obrigados a se compor com os
trabalhadores.
26
5) Para uma metodologia de AJP que busque a emancipação humana
O direito insurgente não carrega consigo uma perspectiva de luta reformista pela
realização de “alguns direitos humanos”, mas entende que a realização total dos direitos humanos
não é factível na sociedade capitalista, ensejando a sua superação em prol da verdadeira
emancipação humana, que representa, na prática, a realização plena dos direitos humanos na
25 “Fome vai atingir recorde de 1 bilhão de pessoas em 2009, diz FAO”. Disponível em:<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2009/06/090619_fome_fao_pu.shtml>. Acesso em 04/09/09.26 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4ª ed. São Paulo: Saraiva,2005. P. 55.
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medida em que permite a toda a humanidade sair do “reino da necessidade” e ingressar no “reino
da liberdade”.
Sua estratégia de ação deve ser crítica a ponto de compreender, porém, que soluções
parciais e intra-sistêmicas podem representar tanto um retrocesso político (na medida em que
legitimam a atual sociedade de classes como uma suposta sociedade “plural” e “democrática”),
como também um avanço em termos da consciência da classe trabalhadora (demonstrando a
impossibilidade da realização plena dos direitos humanos na sociedade capitalista, além da
importância da mobilização, organização etc ).
O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não-filosófico, mas político.27
Sob a perspectiva do direito insurgente, a AJP “se arma” não apenas para proteger, mas
também para conquistar direitos , conforme sua estratégia de emancipação humana, de libertaçãoda lógica do capital. Seu papel é, portanto, colaborar na construção das condições objetivas e
subjetivas deste processo , que é eminentemente político e social, e não apenas econômico.
FREIRE demonstrou com grande talento que o fim das relações de opressão não pode
ocorrer por obra dos opressores, mas apenas pela ação libertadora dos oprimidos28. Da mesma
forma, MARX e ENGELS conclamaram o proletariado, a principal classe social oprimida da
sociedade capitalista, a insurgir-se contra a exploração promovida pela classe proprietária dos
meios de produção.
Se a única forma de liquidar uma contradição é torná-la impossível, o único caminho para
abolir a contradição entre classes sociais é abolir as próprias classes. Como aquilo que define as
classes sociais, na sociedade capitalista, é a propriedade privada dos meios de produção
(convertidos em capital a partir de uma relação social e econômica baseada na opressão e na
exploração), a única forma de realizar a emancipação humana é abolir a propriedade privada.
Dessa forma, por mais que muitos sujeitos sejam oprimidos e se desumanizem na
sociedade burguesa (inclusive o próprio opressor, como muito bem demonstrou FREIRE29), sua
superação apenas pode ser realizada pelos sujeitos que estejam em contradição com a
propriedade privada dos meios de produção. A classe social da chamada “pequena burguesia”,
por exemplo, manifesta uma contradição apenas aparente com o modo de produção capitalista,
pois, ainda que se torne “anticapitalista” diante de sua eventual expropriação pelo grande capital,
na verdade seu intuito não é o de abolir a propriedade privada dos meios de produção, mas sim o
de garantir e até mesmo ampliar sua propriedade.
Este é, certamente, um tema que ainda gera grandes polêmicas, que não podem ser
totalmente dirimidas no presente texto. O que importa ter claro, porém, é que a constatação de
27 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 6ª reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. P. 23.28 Vide FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 42ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. Cap. 1. 29 Idem, especialmente o trecho sobre a contradição opressores-oprimidos.
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que é o proletariado a classe social que alimenta uma real contradição com a propriedade privada
dos meios de produção não significa dizer que sujeitos de outras classes sociais não possam
assimilar o ponto de vista dos trabalhadores assalariados, mas que é a “classe-que-vive-do-
próprio-trabalho” (que é absolutamente numerosa, representando a maioria esmagadora da
sociedade brasileira30) o principal sujeito histórico com condições políticas para cumprir com tal
medida.
Não fosse isso, não apenas os camponeses não realizariam lutas políticas pela efetivação
de seus direitos humanos contra o latifúndio e o agronegócio (motivo pelo qual são criminalizados
incessantemente), mas boa parte dos próprios juristas que realizam a AJP não poderiam ser
considerados integrantes deste grande projeto de emancipação humana, visto que são
provenientes ainda em sua maioria das classes proprietárias31.
A chamada “condição de classe” do sujeito que realiza a AJP exige algumas
considerações especiais, da mesma forma que FREIRE o fez para os educadores das crianças,
jovens e adultos da classe trabalhadora. É que, de fato, se é o meio quem forja o ser e sua
consciência, então o processo de formação das “visões de mundo” variam conforme a posição
(especialmente econômica) de cada sujeito na sociedade. Isto exige, por parte de um sujeito
proveniente de uma classe proprietária, um engajamento verdadeiro em prol das classes
oprimidas, o que representa um compromisso político radical que exige o abandono dos gestos
piegas e sentimentais para se tornar um verdadeiro compromisso de luta com estes sujeitos
históricos , injustiçados e roubados.
A classe trabalhadora não é, porém, homogênea. Pelo contrário, ela desempenhaatividades que são economicamente distintas, conforme a divisão social e internacional do
trabalho, o que geralmente traz como resultado uma fragmentação de suas lutas. Além disso,
apesar de viver grande parte de sua vida no trabalho, suas demandas e direitos humanos violados
não se resumem ao trabalho; pelo contrário, suas condições de moradia, alimentação, saúde,
educação, mobilidade, cultura e lazer são precárias e violadas a todo instante.
Cabe à AJP, portanto, considerando que é o oprimido o verdadeiro sujeito histórico do
processo de libertação, contribuir com os diversos setores da “classe-que-vive-do-próprio-
trabalho” em suas lutas pela realização histórica de seus direitos humanos. Por ser assessoria,não se limita à assistência jurídica e/ou judiciária, mas também não se nega mecanicamente a
esta tarefa, que muitas vezes pode ser um importante recurso tático para mobilizar a comunidade.
O leque de instrumentos à disposição da AJP é imenso (educação popular, teatro do oprimido,
agitação e propaganda, cursos de formação, atos e mobilizações políticas, intervenção junto aos
Poderes Públicos etc ), e deve ser utilizado taticamente conforme a estratégia política, que, por ser
30 Pesquisa recente do IPEA especifica que apenas 6% da população brasileira é considerada proprietária.Vide “Livro mostra que meios de produção do país pertencem a 6% da população”. Disponível em: <
http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/04/02/materia.2009-04-02.0921959486/view>. Acesso em04/09/09.31 Fato que não é nem um pouco incomum, devido ao próprio perfil social das pessoas que conseguemchegar ao ensino universitário e tornarem-se profissionais do Direito no Brasil.
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tão ambiciosa, não pode se limitar a demandas localizadas, economicistas ou reformistas, mas
deve articular as reivindicações de cada setor do proletariado numa luta conjunta cada vez mais
organizada, massiva e consciente.
Neste ponto há que se fazer uma importante advertência. É que, comumente, os trabalhos
e projetos de AJP, especialmente no campo das assessorias universitárias e estudantis, toma
para si a tarefa de realizar atividades com proletários dos setores e camadas mais
vulnerabilizados pelo capitalismo, tratando-os como “excluídos”, “famintos”, geralmente dotados
do prefixo “sem”, que condiciona termos como “sem-terra”, “sem-teto”, “sem-trabalho”, “sem-
creche”, “sem-escola”, “sem-saúde”, enfim, sem “cidadania”. Nada mais perigoso que tal
concepção de trabalho.
É que, em primeiro lugar, o que geralmente move projetos nessa perspectiva a atuar em
comunidades e organizações de trabalhadores pobres e em situação extrema de vulnerabilidade
social não é necessariamente um compromisso político-ideológico com o referido projeto de
emancipação humana, mas, pelo contrário, um sentimento ético e humano que, apesar de ser
absolutamente louvável e compreensível, não representa ainda um compromisso radical de
libertação das classes oprimidas.
Em segundo lugar, não há “soluções” para os trabalhadores pobres destas comunidades
numa perspectiva intra-sistêmica (ou seja, por dentro do capitalismo) que não sejam de caráter
assistencialista ou pela própria aplicação da lógica capitalista (leia-se: a partir de políticas de
emprego que intensificam a lógica do trabalho assalariado, ou de “associativismo” que geralmente
representa pura e simples precarização). Na verdade, a emancipação humana não é possívelsenão como emancipação de toda a humanidade, e não apenas de comunidades específicas, o
que apenas pode ocorrer a partir de um processo político que sequer é nacional, mas tem caráter
internacional.
Em terceiro lugar, ao se tomar isoladamente trabalhadores pobres, geralmente
desempregados ou subempregados que vivem em comunidades e bairros em condições precárias
de vida, comumente surge o rótulo destes sujeitos enquanto “sem-algo”, como “excluídos”,
quando na verdade esta “exclusão” nada mais é que a inclusão perversa que o capitalismo
proporciona, pois tais sujeitos nada mais são que mão-de-obra barata ou exército industrial dereserva que permite o rebaixamento dos salários da classe trabalhadora como um todo. Pior que
isso: o rótulo do “sem-“ lança as bases para uma política de contraposição baseada no “com-”, a
ser conferido por “políticas públicas” a serem implementadas pelo Estado a partir da reivindicação
destes trabalhadores. Ocorre que, como o Estado não funciona na realidade como mecanismo de
realização do “bem comum” ou de “políticas públicas” “para toda a população”, tais demandas
apenas serão atendidas na medida em que haja uma intensa luta política, a ponto de o aparato
estatal realizar concessões que funcionam como verdadeira “revolução passiva”, que funcionam
mais como um mecanismo de encobrimento ideológico do caráter de classe do Estado.
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Um quarto ponto a ser destacado é que, apesar de o sujeito histórico com o qual a AJP
busca trabalhar seja o proletário, nem todas as situações de sua vida podem ser consideradas
estrategicamente interessantes no processo da formação da sua consciência que passe de uma
consciência de “classe em si” para a de “classe para si”. É preciso reconhecer que vários são os
momentos de contradição do “sujeito-que-vive-do-próprio-trabalho” com os fundamentos do modo
de produção capitalista e seu Estado político garantidor, mas nem todos o são no papel
essencialmente pedagógico que pode (e deve) ser desempenhado pela AJP.
Um dos principais momentos nos quais ocorre a contradição direta entre os trabalhadores
assalariados e os proprietários dos meios de produção ocorre no processo do trabalho, momento
no qual o potencial de produção de “temas geradores”32 cresce na exata medida da contradição
entre o capitalista e o trabalhador. A “limitação ao ser” do trabalhador pelo proprietário para
garantir o “ter” deste último cria uma contradição tão evidente que só pode ser sustentada pelo
capital a partir da desmobilização do trabalhador, seja com a repressão, seja com os aparelhos
ideológicos. É papel da AJP enfrentar tais instrumentos para trazer à tona esta contradição, não
simplesmente para desenvolvê-la, mas para superá-la.
Assim como o educador popular, portanto, os sujeitos que realizam a AJP jamais podem
ser dóceis. Suas tarefas são radicais, revolucionárias, indóceis. Não recaem na sectarização
acrítica, pois são radicalização crítica, que não pode ser nem de direita, e nem de centro33. Sua
tarefa é, acima de tudo, transformar a realidade. Sua ação é um que-fazer contínuo, cuja
conclusão jamais é definitiva, pois enseja novos processos e novas conclusões.
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32 Para um aprofundamento da concepção freireana de tema gerador, vide GOUVEA DA SILVA, AntônioFernando. A busca do tema gerador na práxis da educação popular. Curitiba: Gráfica Popular, 2005.33 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 19ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. P. 50-52.
8/3/2019 (2009) DIEHL, Diego a. Metodologia Da AJP. Luta Por DH.
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