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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM CULTURAL: sobre a leitura de sítios protegidos e áreas de entorno
BERG, ISABELA C. DE A.
Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Arquitetura
Rua Paraíba, 697, Funcionários, Belo Horizonte, CEP: 30130-140 isabela.berg@gmail.com
RESUMO
O trabalho é desenvolvido a partir da problemática da preservação de sítios e paisagens culturais frente a processos de desenvolvimento urbano, os quais tendem a imprimir, a despeito da existência de leis e normas de proteção, mudanças expressivas sobretudo na configuração destas paisagens. As referidas mudanças, em geral representadas por descaracterizações de várias espécies, devem-se, em grande parte, a defasagens nas metodologias utilizadas pelos órgãos de preservação patrimonial que tendem a desconsiderar, seja na definição de perímetros de entorno dos antigos núcleos urbanos e na aprovação de intervenções contemporâneas, a relação destes com a totalidade da paisagem e mesmo com a ambiência do conjunto de bens protegidos. Já a causa destas defasagens, a princípio, encontra-se normalmente associada à análise predominantemente planimétrica das áreas de proteção - influência da cultura moderna do "planejamento de prancheta" -; salvos os casos em que ainda se nota um limitado cuidado com eixos visuais e perspectivas. O objetivo central da pesquisa, assim, consiste na investigação de método para a adequada leitura e interpretação do conjunto patrimônio-paisagem, voltado especialmente para núcleos antigos e suas áreas de entorno. Nestes se amplia consideravelmente a complexidade da questão da preservação, tanto pela dimensão física do espaço de atuação quanto pelo número de variáveis e agentes envolvidos. A metodologia de trabalho proposta consiste na definição de um núcleo protegido e sua paisagem como objeto de estudo; na análise do(s) processo(s) de tombamento do sítio escolhido; na análise da legislação municipal referente às políticas de preservação e planejamento urbano; no levantamento de registros fotográficos do sítio para a realização de análises comparativas das transformações da paisagem ao longo do tempo e no cruzamento dessas análises para a identificação das defasagens existentes e a realização de proposições para a construção do método de leitura almejado. Em relação ao objeto de estudo, a escolha se dá pela cidade setecentista de São João del-Rei, em Minas Gerais, cujos núcleo antigo e paisagem são continuamente afetados pelas condições anteriormente citadas. A escolha deste objeto, cabe ressaltar, ainda se justifica pela singularidade de seu processo de formação em relação a cidades surgidas no mesmo período no Estado. Diferentemente de localidades que sofreram a estagnação da economia em decorrência da cessão da exploração aurífera no terceiro quartel do século XVIII e, portanto, apresentaram uma tendência ao congelamento da paisagem, São João del-Rei manteve, graças à dedicação a outros ramos da economia, seu desenvolvimento e expansão territorial. Em decorrência disso, sua paisagem passou por diversas transformações, o que favorece, no universo deste trabalho, uma análise mais rica das complexas dinâmicas que envolvem a construção da paisagem cultural ao longo do tempo. Entre os referenciais teóricos da pesquisa constam autores e obras especialmente dos campos do restauro e estética urbanos, destacando-se os trabalhos de Gustavo Giovannoni e Camilo Sitte, respectivamente. As contribuições do trabalho, por fim, compreendem, para além da proposição de um método para leitura e interpretação de paisagens culturais, a ampliação da discussão sobre estes bens e reflexões sobre o conceito de genius loci e o papel da preservação na contemporaneidade.
Palavras-chave: Patrimônio urbano; Paisagem Cultural; Preservação; Metodologia.
4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Introdução
Um dos maiores desafios àqueles que lidam com a preservação do patrimônio na atualidade
refere-se aos meios de garantir a salvaguarda de bens em meio a processos de
desenvolvimento urbano. Estes tendem a imprimir mudanças expressivas, em grande parte
descaracterizantes, na configuração de núcleos antigos e paisagens culturais, os quais são
então forçados a exercer seu poder de resistência diante de pressões diversas.
Há leis e normas destinados a garantir a proteção destes bens; contudo, a despeito das
mesmas, surgem conflitos e efeitos indesejados. Algumas das hipóteses para que estes
ocorram estão relacionadas a defasagens nas metodologias utilizadas pelos órgãos de
preservação patrimonial, que tendem a desconsiderar, seja na definição de perímetros de
entorno de antigos núcleos urbanos e na aprovação de intervenções contemporâneas, a
relação com a totalidade da paisagem e a noção de ambiente dos monumentos, geralmente
entendida ainda de modo parcial. A causa destas defasagens, a princípio, associa-se à
análise predominantemente planimétrica dessas áreas, influência da cultura moderna do
“planejamento de prancheta” -, salvos os casos em que se nota um limitado cuidado com
eixos visuais e perspectivas.
Diante deste cenário, o presente artigo, derivado de pesquisa de mestrado da autora, visa
discorrer sobre e propor métodos de leitura do conjunto patrimônio-paisagem, voltando-se
especialmente para núcleos antigos e suas áreas de entorno e considerando os preceitos
supracitados de relação com a totalidade da paisagem e com a ambiência do bem protegido.
Como estudo de caso considerou-se o núcleo protegido da cidade setecentista de São João
del-Rei, cuja escolha justifica-se pela singularidade de seu processo de desenvolvimento
frente a outras cidades do mesmo período do Estado, o que possibilita uma análise mais rica
dos processos de transformação da paisagem ao longo do tempo.
Para a construção do arcabouço teórico buscaram-se contribuições dos campos do restauro e
estética urbanos, destacando-se os trabalhos de Gustavo Giovannoni e Camillo Sitte,
respectivamente. A obra de ambos ultimamente vem sendo resgatada dada a atualidade de
suas propostas para as cidades contemporâneas, submetidas à homogeneização, à
indiferença a valores simbólicos e aos indivíduos que as habitam.
Na sequência são apresentadas algumas considerações sobre o conceito de paisagem e os
estudos de Sitte e Giovannoni, os quais fundamentarão a análise crítica das condições do
núcleo tombado e paisagem de São João del-Rei e a proposta de metodologia para a
abordagem destes objetos.
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Relações entre patrimônio cultural, paisagem e estética urbana
A paisagem como patrimônio cultural
O conceito de paisagem compreende basicamente os aspectos perceptíveis do espaço e
pode ou não ser resultado da ação humana sobre um determinado meio. No primeiro caso,
por tratar-se de um efeito da cultura, a paisagem é qualificada como "cultural", cabendo a
denominação "natural" àquela isenta de intervenção antrópica.
Coube à Geografia, no século XIX, a maior parte dos estudos sobre a paisagem. Estes
tiveram origem na Alemanha, sendo atribuído a Humboldt o pioneirismo nas concepções
paisagísticas daquele século (MOURA e SIMÕES, 2010, p.180). A ideia de paisagem cultural
surgiu no mesmo período e dentro do mesmo campo de conhecimento "como fruto do
agenciamento do homem, em diferentes escalas, fazendo com que hoje, na disciplina
geográfica, este termo se confunda com o próprio conceito de paisagem." (WINTER, 2007,
p.10).
Apesar de ser um objeto de estudo relativamente antigo, apenas recentemente deu-se a
inclusão das paisagens no rol de bens patrimoniais; mais precisamente em 1992, quando
houve a criação da categoria "paisagem cultural" pela UNESCO. Esta inclusão representa um
importante incremento no próprio conceito de patrimônio, que tem incorporado, desde
aproximadamente o Quattrocento italiano - quando o termo foi empregado com a qualificação
"histórico" pela primeira vez -, diversas categorias de bens. O reconhecimento das paisagens
representa, por assim dizer, um novo estágio da cultura patrimonial, que também demandou
um largo espaço de tempo até reconhecer os valores históricos, artísticos e simbólicos de
antigos núcleos urbanos.
Em se tratando das paisagens, o seu reconhecimento advém do fato de que:
A paisagem pode ser lida como um documento que expressa a relação do homem com o seu meio natural, mostrando as transformações que ocorrem ao longo do tempo. A paisagem pode ser lida como um testemunho da história dos grupos humanos que ocuparam determinado espaço. Pode ser lida, também, como um produto da sociedade que a produziu ou ainda como a base material para a produção de diferentes simbologias, locus de interação entre a materialidade e as representações simbólicas. (Ibidem, p. 9).
A abordagem das paisagens culturais mostra-se claramente mais complexa que a de
monumentos isolados ou de pequenos conjuntos urbanos; seja pela dimensão física que
geralmente abrangem, seja pelo número de variáveis e agentes envolvidos. Logo, vêm se
ampliando as discussões sobre modos de seleção, chancela e gestão destes bens entre
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pesquisadores e profissionais de diversos órgãos. Contudo, para além da definição de
critérios e políticas para as paisagens culturais "oficiais", alguns pesquisadores têm se
dedicado também a outro viés que o tema oferece: a possibilidade de considerar a paisagem
cultural não somente como uma categoria na qual são incluídos determinados bens notáveis,
mas como um meio de abordagem de outros espaços significativos transformados pela ação
humana. São exemplos os próprios núcleos de cidades antigas, nos quais começa-se a
perceber, sobretudo a partir das ameaças que a produção contemporânea do espaço impõe,
a influência direta das áreas de entorno - e não se trata aqui exclusivamente dos perímetros
de entorno, mas também de áreas mais distantes abarcadas pela visão - sobre sua
ambiência.
Tem-se aí, talvez, uma das razões pelas quais é crescente o interesse pelo estudo da obra de
Gustavo Giovannoni, na qual o conceito de "ambiente" é intensamente explorado e permite a
associação entre patrimônio urbano e paisagem, à medida que contribui para expandir o
entendimento do que consiste o espaço de influência sobre os monumentos. A obra
govannoniana é, pois, uma das principais referências deste trabalho, sendo abordada neste
artigo juntamente com os estudos de Camillo Sitte, que muito a influenciaram.
Os estudos de Camillo Sitte e Gustavo Giovannoni
Camillo Sitte (1843-1903) foi arquiteto, historiador de arte e atuou na direção da Escola
Imperial e Real de Artes Industriais de Viena, capital de seu país de origem. Considerado o
precursor da defesa da preservação de núcleos urbanos antigos (SITTE, 1992, p.4), ajudou a
construir, ao lado de figuras como Ruskin e William Morris, as bases do chamado “Urbanismo
Culturalista”, do qual também fizeram parte Ebenezer Howard, Raymond Unwin e outros.
Sitte apresentava diversas inquietações em relação à urbanidade de sua época, na qual
criticava a destruição de centros antigos, o desaparecimento da construção urbana pautada
por princípios artísticos e o enfraquecimento da vida pública. O movimento culturalista, por
sua vez, igualmente adotava uma postura crítica em relação às transformações urbanas
realizadas a partir de meados do século XIX na Europa, a exemplo da reforma empreendida
por Haussmann entre as décadas de 1850 e 1870 em Paris, na qual foram privilegiados o
racionalismo e a técnica em detrimento dos aspectos históricos da cidade. Os culturalistas
defendiam, dentre outras questões, que aspectos higiênicos e artísticos deveriam ter a
mesma importância no planejamento urbano e que as cidades, sempre que possível,
deveriam receber traçados ausentes de regularidade geométrica, uma vez que linhas e
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ângulos retos haviam se tornado "características típicas de cidades insensíveis.” (Ibidem,
p.95). Para Sitte, o planejamento urbano moderno ou "de prancheta", no qual os instrumentos
como a régua e o compasso imprimiam rigor aos traçados, era incapaz de considerar as
particularidades dos espaços, a exemplo da possibilidade de criação de perspectivas que
valorizavam o cenário urbano e surpreendiam o transeunte no trajeto pela cidade.
A preocupação com estas questões de desenho urbano em Sitte relacionava-se ao
estabelecimento de uma relação mais próxima da cidade com seus usuários, o que denota em
sua obra a corrente associação do despertar de sentimentos como entusiasmo, civilidade e
orgulho à composição urbana artística. (Ibidem, p. 101). A estética urbana em Sitte
ultrapassava, pois, o mero desejo por deleite visual. Nela estava a fonte do sentimento cívico
dos cidadãos em relação às suas cidades, e torna isso evidente ao ponderar que
Aristóteles [...] resume os princípios da construção urbana ao dizer que uma cidade deve ser construída para tornar o homem ao mesmo tempo seguro e feliz. Para que esta última condição se efetive, a construção urbana não deveria apenas ser uma questão técnica, mas também artística, em seu sentido mais próprio e elevado. (Ibidem, p. 14).
A partir da análise de cidades de períodos passados, sobretudo da antiguidade grega e Idade
Média, Sitte dedicou-se a elaborar os princípios de composição artística urbana que, segundo
sua opinião, conferiam àquelas cidades uma destacada beleza em relação às cidades de seu
tempo. Reunidos em sua obra mais famosa, Der Städtebau, traduzido como "A construção
das cidades segundo seus princípios artísticos", seus estudos rapidamente se difundiram pela
Europa e encontraram solo fértil na Itália, onde desde o princípio suas ideias foram
interpretadas como um gênero próprio nomeado de "arte de construir a cidade". (CABRAL,
2013, p. 26).
Giovannoni (1873-1947), arquiteto e engenheiro nascido em Roma, discípulo de Camilo Boito
e uma das principais figuras do campo patrimonial de seu país, foi um dos que receberam a
influência de Sitte antes mesmo da tradução de suas obras para o italiano, incorporando-a na
construção de uma metodologia para leitura e intervenção em espaços urbanos antigos frente
à urbanização da época. Colhendo também contribuições de outras fontes como Riegl, que
"abriria caminho para a atribuição de historicidade e artisticidade a diversos artefatos até
então considerado 'menores', permitindo a significativa expansão dos bens considerados
como patrimônio" (CABRAL, 2013, p.65), Giovannoni construiu uma
[...] abordagem baseada em duas escalas diversas: por um lado, a visão completiva do organismo urbano, através da qual é possível resolver os problemas do velho núcleo, desviando os fluxos principais de tráfego e afastando as funções mais invasivas; por outro, a intervenção pontual, embasada no "desbastamento" das construções. (Ibidem, p.41).
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Giovannoni compreendia que estava em curso o fim da cidade antiga densa e centralizada e
que era, portanto, necessário promover a articulação desta à "nova cidade". (CHOAY, 2001,
p.200).
[...] Giovannoni pôde superar a concepção unidimensional de Viollet-le-Duc,substituindo-a por uma concepção dual da mutação imposta ao espaço urbano pela era industrial, e [...] pôde tirar de suas análises morfológicas uma lição de conservação e nunca deixar de tratar a cidade como um "organismo estético". (Idem).
Paralelamente Giovannoni promoveu um avanço na concepção de ambiente, conceito que já
se fazia presente em diversos estudos desde meados do século XIX mas que até princípios do
século XX referia-se ao espaço imediatamente adjacente aos monumentos, "como uma
'moldura' que permitia a manutenção das características de escala e composição de obras
arquitetônicas excepcionais." (CABRAL, 2013, p.64).
Em Giovannoni, porém,
"Ambiente" [...] refere-se àquilo que circunda um monumento. São, em sua materialidade, os edifícios e os espaços abertos, assim como as "condições" em que esses elementos, reunidos, encontram-se, como aquelas de iluminação e também de visadas. Nesse sentido, esse "circundar" não pode ser definido enquanto metragem absoluta, pois depende das relações que potencialmente podem ser estabelecidas entre um observador e esse monumento.
Pode-se dizer que a definição de "ambiente" aproxima-se daquela encontrada no Nòvo Dizionàrio Universale della Lingua Italiana, de 1908, em que "ambiente" aparece, em sentido figurado, como "o lugar e as coisas das quais, vivendo nelas, sentimos a influência". Poderíamos - para aproximar essa definição daquela que entendemos ser a de Giovannoni - substituir alguns termos da sentença: "o lugar e as coisas das quais, estando em meio a elas, os monumentos recebem a influência, interferindo na nossa apreciação sobre eles". Giovannoni parece interessado justamente na "influência" a que o dicionário se refere: os elementos extrínsecos ao monumento influenciam sua apreciação e são, assim, tão importantes quanto este. (Ibidem, p.35).
Sobre o "desbastamento", denominado por Giovannoni de diradamento edilizio e parte de sua
metodologia de intervenção, Andrea Pane considera que esta "nova estratégia de intervenção
na cidade velha"
registra um certo "avanço" das reflexões teóricas de Giovannoni, relativo à aquisição de uma consciência da importância de a cidade ser salvaguardada no seu conjunto. (CABRAL, 2013, p.39).
Giovannoni, assim, buscava responder ao desafio de compreender e organizar as relações
entre a cidade antiga e a nova, tendo publicado suas ideias primeiramente no artigo Vecchie
Città ed Edilizia Nuova de 1913 e posteriormente no livro de mesmo nome datado de 1931, ao
qual foram acrescentados outros artigos avulsos publicados pelo autor desde 1911.
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No ano de 1931 Giovannoni também participou como representante da delegação italiana da
conferência internacional de Atenas, dedicada ao tema da restauração e conservação de
monumentos. Na ocasião abordou-se a questão dos conjuntos urbanos principalmente a partir
das considerações de Giovannoni, recebidas pelos presentes como grande novidade.
"A partir de um discurso centrado em questões conceituais e de método, Giovannoni apresentou o progressivo caminho em direção ao entendimento do valor patrimonial de inteiras zonas urbanas, para as quais seriam aplicadas medidas de conservação e restauro equivalentes àquelas voltadas aos monumentos individuais [...]. (Ibidem, p.81).
Ao tratar da defesa do ambiente dos monumentos e dos agrupamentos urbanos, Giovannoni
considerava-os em sua "dimensão paisagística", referenciando as leis italianas de 1909 e
1912, voltadas para as Antiguidades e Belas Artes, e a lei de 1922, dedicada às belezas
naturais. "Sobre a lei de 1922, sublinha que contempla 'também os agrupamentos
característicos que fazem parte do tema da paisagem'". (Ibidem, p.149).
Não obstante os avanços conceituais apresentados pelo estudioso, ainda prevaleceria, ao
final do evento, a ideia de ambiente como "moldura" dos monumentos. E pode-se dizer que
somente nas últimas décadas, a partir de 1960, quando teve início o resgate de suas obras
após um período de esquecimento ocasionado por suas supostas relações com o movimento
fascista de Mussolini e aversão ao movimento moderno, é que tal conceito vem sendo melhor
pesquisado e compreendido.
Diante do cenário urbano contemporâneo, no qual a "cidade nova" pressiona cada vez mais a
"cidade antiga", revela-se a efetiva necessidade de resgatar e implementar as propostas de
Giovannoni. Os núcleos urbanos antigos, assim como a paisagem cultural que configuram,
são submetidos a intervenções descaracterizantes, pressões por demolição e renovação
oriundas da especulação imobiliária, tendências à estandardização através da ação da
indústria cultural, danos decorrentes da intensificação do tráfego de veículos, entre outros
fatores. Essas ameaças, criadas a partir de uma complexo sistema determinante das
condições de produção e uso do espaço urbano e cuja abordagem aprofundada não é objeto
deste trabalho, materializam-se ao serem favorecidas pela defasagem na atuação dos órgãos
responsáveis pela preservação do patrimônio, que ainda desconsideram na prática as
contribuições do italiano. O caso do núcleo protegido e paisagem da cidade de São João
del-Rei, analisado a seguir, é um bom exemplo.
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Transformações no núcleo antigo de São João del-Rei e a paisagem cultural
ameaçada
A cidade de São João del-Rei está localizada na região do Campo das Vertentes do Estado de
Minas Gerais. Suas origens remetem aos primeiros anos do século XVIII, mais
especificamente 1704, quando teve início a ocupação do território a partir da descoberta de
ouro na região por bandeirantes paulistas. Os primeiros assentamentos foram situados na
base da encosta sul da Serra do Lenheiro, à margem esquerda do córrego de mesmo nome,
característica de ocupação que permaneceu até aproximadamente final do século XIX.
Com a rápida prosperidade alcançada através da atividade mineradora, o então Arraial Novo
do Rio das Mortes foi elevado à vila no ano de 1713, quando também recebeu o nome atual
em homenagem ao rei português Dom João V. Foi também devido a essa mesma
prosperidade que anos mais tarde por lá foram construídas as obras mais notáveis do período
colonial, dentre as quais destacam-se as de arquitetura religiosa: Matriz de Nossa Senhora do
Pilar, igrejas de São Francisco de Assis, Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora do
Rosário.
Aproximadamente no terceiro quartel do século XVIII, com o declínio da atividade mineradora,
muitas localidades do Estado ingressaram em um processo de estagnação econômica, o que
favoreceu, durante um bom tempo, o congelamento de suas respectivas paisagens. São João
del-Rei, porém, manteve seu crescimento graças à dedicação a outros ramos da economia,
como a agricultura e a pecuária. No alvorecer do século XIX encontrava bastante-se
desenvolvida, com sobrados e casarões abrigando lojas de diversos tipos de mercadorias, a
exemplo dos chamados "secos e molhados", e poucas décadas mais tarde, em 1838, foi
então elevada a cidade, mostrando progresso em relação a outros municípios mineiros:
Anterior à sua elevação à categoria de cidade, [...] São João já possuía uma população de 5 mil habitantes, abrigados em, aproximadamente, mil edificações. Ao progresso econômico então presenciado correspondiam novas obras públicas, melhoramentos nos serviços e valorização do espaço urbano central. Na segunda metade do século XIX a cidade contava com 24 ruas, dez praças públicas, cemitério público fora do centro urbano, hospital da Santa Casa, banco Almeida Magalhães S.A., biblioteca pública, teatro, escolas, jornais, telégrafo, comando superior da Guarda Nacional, iluminação a querosene e três chafarizes públicos. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1984, p.74).
Nesta época a cidade também passou por transformações nas caraterísticas de seu casario.
Alguns imóveis receberam a inserção de elementos em ferro e vidro característicos do
ecletismo, que chegou à região logo nas primeiras décadas do século XIX. Assim, aos antigos
imóveis coloniais foram se somando outros do "novo estilo", dando origem a conjuntos
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arquitetônicos heterogêneos. Nestes, contudo, o arranjo entre construções preexistentes e
novas era feito de modo harmonioso, partindo do respeito a características de alinhamento,
volume e altimetria.
Em 1881, com a chegada da Estrada de Ferro Oeste de Minas houve um novo impulso para o
ecletismo, de modo que no início do sécuo XX este já se encontrava efetivamente instalado na
cidade. A ferrovia também foi importante para estimular o início da ocupação da outra margem
do córrego (DANGELO et al., 2014, p. 63), o que levou à inversão dos fundos dos lotes da
margem esquerda, que até então voltavam-se para seu leito, gerando novas modificações na
paisagem urbana.
Apesar dessas transformações, àquela altura São João del-Rei ainda preservava uma parte
significativa de suas características coloniais, o que fez com que em 1924 recebesse a visita
de um grupo de intelectuais modernistas dentre os quais constavam figuras como Mário de
Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Imbuído do ideal de reconhecimento e
valorização da identidade nacional, o grupo acabou selecionando a cidade, ao lado de outras
como Ouro Preto e Diamantina, como representativa desta identidade, já que o chamado
"barroco mineiro" era tido à época como uma manifestação genuinamente brasileira. Em 1938,
um ano após a criação do Serviço de Proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), o núcleo são-joanense recebeu então o tombamento através do processo 68-T-38
incluído no volume 1 do Livro de Belas-Artes do referido órgão.
Paradoxalmente, foi após o tombamento que tiveram início as transformações mais
signficativas no cenário da cidade. Uma das causas refere-se à aversão do SPHAN pelo
ecletismo, considerado um estilo de menor valor.
A partir dos anos 1940, quando esse padrão de arquitetura, que tinha sido o cenário da nova riqueza da cidade, foi considerado pelos arquitetos modernos que assumiram o projeto de construção da memória do Brasil, de pouco ou nenhum valor, a situação do conjunto arquitetônico da cidade começou a ficar ameaçada. Isso aconteceu em razão do embate dessa nova geração contra o academicismo, considerado vazio de conteúdo histórico e cultural, para que se pudesse impor a verdadeira identidade brasileira. (Ibidem, p.28).
Os modernos insistiam na valorização da arquitetura essencialmente colonial, o que
[...] salvou cidades como Ouro Preto e sacrificou outras, como São João del-Rei, que, em função de sua modernização nos anos da prosperidade da República Velha, tinha contaminado, tanto no nível urbano quanto no arquitetônico, muito do seu conjunto colonial”. (Ibidem, p. 29).
As outras causas para as perdas que se seguiram ligavam-se à cultura antipreservacionista
da própria cidade e ao surgimento das primeiras ações de especulação imobiliária, as quais
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levaram, por exemplo, à pressão da prefeitura e de empreendedores locais por uma clara
definição do perímetro de proteção do núcleo antigo, o que não havia sido feito no ano do
tombamento. Por esta razão, em 1947 a cidade recebeu a visita de Alcides da Rocha Miranda,
técnico do SPHAN encarregado de traçar os limites da área. Em um trecho do documento no
qual expõe a motivação para a definição adotada, ele avalia que
Tomando como base de estudo a proposta apresentada pela prefeitura local, percorremos a cidade de São João del Rei examinando os diversos logradouros e prédios isolados cujas características tradicionais ainda permanecem intactas.
Assim como as outras cidades coloniais mineiras, São João del Rei interessa muito mais pelo ambiente que decorre da unidade e harmonia dos conjuntos arquitetônicos do que pela elegância ou pitoresco de seus detalhes. O efeito monumental de suas igrejas provém, em grande parte, das perspectivas criadas pelos grupos de casas que as enquadram, realçando suas proporções e a riqueza dos ornatos.
[...] Abandonamos várias construções isoladas que foram substituídas por grupos de casas formando perspectivas características, isto é, especialmente trechos de ruas, abrangendo as duas fases correspondentes. Assim um quarteirão da Avenida Artur Bernardes, embora possuindo vários prédios novos foi incluído no plano de tombamento por constituir um dos melhores pontos de vista da cidade. (IPHAN, processo nº 68-T-38, v.1).
Miranda menciona os termos "ambiente" e "perspectivas" que poderiam remeter a Giovannoni
e Sitte. Contudo, a arquitetura "menor", ou seja, os grupos de casas, ainda é claramente vista
como moldura dos monumentos de maior destaque. O próprio processo de transformação da
paisagem urbana após o tombamento evidencia uma compreensão distinta dos termos, cujo
emprego muito provavelmente não teve nenhum tipo de influência da concepção dos dois
autores. Prevaleceu, como prevalece até os dias atuais, a limitação na leitura do ambiente,
indicando a necessidade de novas formas de abordagem do núcleo protegido, de sua área de
entorno e da paisagem.
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Imagem 1: Ilustração contida no livro "Notices of Brazil in 1828 and 1829", do Rev. R. Walsh, publicado em Londres no ano de 1830 e que consta no Arquivo do Museu Regional de São João del-Rei. Retrata a paisagem da cidade cerca de um século após a fundação, caracterizada pela ocupação da margem
esquerda do córrego do Lenheiro tendo a serra como pano de fundo. Fonte: São João del-Rei Transparente. Disponível em: <http://saojoaodelreitransparente.com.br/images/view/6494>. Acesso
em agosto de 2016.
Imagem 2: Vista parcial da cidade datada de 1913. Fonte: acervo de André Bello.
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Imagem 3: Vista parcial da cidade com data estimada entre as décadas de 1930 e 1940. Fonte: acervo de Antonio Giarola.
Imagem 4: Vista da cidade datada de 1965. Nota-se a expansão do tecido urbano na margem direita do córrego e a presença do edifício São João, que representa uma ruptura traumática na paisagem da
cidade. Fonte: acervo de Guttemberg F Uchóa.
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Imagem 5: Vista panorâmica da cidade feita a partir do Edifício São João em 2013. Fonte: captura do vídeo "Simples cidade - São João del Rei". Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=BdTyl9A7iVA>. Acesso em agosto de 2016.
Imagem 6: Vista datada de 2015 do entorno da Igreja de Nossa Senhora das Mercês. Fonte: acervo da autora.
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Imagem 7: Registro feito em 2016, a partir do adro da Igreja de Nossa Senhora das Mercês, do núcleo antigo e entorno já bastante alterados. Nota-se processo de verticalização nas cumeeiras dos morros
ao fundo. Fonte: acervo da autora.
Pelas fotografias nota-se que tanto a área tombada quanto o entorno e, logo, a paisagem,
sofreram severas modificações ao longo dos anos. Apesar de a gestão do núcleo ter sido
eventualmente prejudicada pela instalação de um escritório técnico do órgão federal de
patrimônio na cidade somente na década de 1980, mesmo após sua instalação, e ainda com a
presença do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural criado em 1998, não cessaram as
perdas e danos ao patrimônio. O conselho, inclusive, no processo de tombamento municipal
que dispõe sobre a delimitação do perímetro da área tombada não apresenta os critérios que
nortearam a definição dos limites, tampouco estudos que contemplem a questão das visadas
e perspectivas ou as condições de manutenção da paisagem.
A legislação municipal relativa à proteção do núcleo é, também por esta razão, frágil e repleta
de lacunas. Ausente de normas claras para a área, mormente baseia-se em diretrizes, a
exemplo do que consta no artigo 42 do Plano Diretor elaborado em 2006:
Art. 42 - São objetivos da Política Municipal de Planejamento Territorial atuar no ordenamento urbano-ambiental do solo municipal de modo a evitar e corrigir as distorções do processo de desenvolvimento urbano e rural e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente e o patrimônio cultural, promovendo o desenvolvimento econômico e social e qualidade de vida da população. (PLANO DIRETOR DE SÃO JOÃO DEL-REI, 2006).
Os modos pelos quais as distorções serão evitadas e corrigidas não é explicitado e
infelizmente constata-se, mediante análise da paisagem cultural de outrora e da
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contemporânea, que as distorções já ocorridas levaram a perdas que suplantam os ganhos
obtidos, por exemplo, com o tombamento federal. A fim de evitar novos danos demanda-se,
com urgência, uma nova postura pela efetiva proteção do patrimônio.
Saber ver, saber preservar
Tanto Siite quanto Giovannoni, ao abordarem a preservação de determinados aspectos das
cidades antigas e da paisagem, serviram-se da observação acurada como instrumento capaz
de reconhecer os elementos representativos de um dado lugar, ou seja, aquilo que participa
da construção da identidade. Porém, em Giovannoni o horizonte de observação se amplia sob
a perspectiva do "ambiente" que, como visto, extrapola as áreas adjacentes a um dado
monumento.
Norberg-Schulz, ao tratar do antigo conceito romano de genius loci, permite considerá-lo
como desdobramento fenomenológico da abordagem giovannoniana, sem que seja, contudo,
reduzido a tal. Faz do referido conceito uma chave para a interpretação dos lugares e daquilo
que os particulariza, tratando também do tema da paisagem cultural:
Os elementos do ambiente criado pelo homem são, em primeiro lugar, todos os "assentamentos" de diferentes escalas, das casas às fazendas, das aldeias às cidades, e, em segundo lugar, os "caminhos" que os conectam, além dos diversos elementos que transformam a natureza em "paisagem cultural". Quando os assentamentos estão organicamente integrados ao seu ambiente, supõe-se que são pontos focais onde a qualidade peculiar do ambiente se condensa e "explica". (NORBERG-SCHULZ, 2006, p.448).
Esses pontos focais capazes de condensar e explicar o ambiente e que constituem, pois, sua
essência, são os elementos no centro da atenção de Giovannoni. Ao definir sua metodologia
de leitura e intervenção na cidade antiga, o arquiteto italiano preocupa-se com a manutenção
de um determinado caráter, que para Norberg-Schulz denota a "'atmosfera' geral que é a
propriedade mais abrangente de um lugar." (Ibidem, p. 449). Esta preocupação se mostra, por
exemplo, quando Giovannoni diz, ao refletir sobre a possibilidade de uma nova postura frente
à gestão das cidades de caráter histórico e artístico:
Esperemos que sim, pela beleza de nossas cidades gloriosas, variadas de aspecto assim como de recordações históricas, que devem manter o seu caráter e a sua poesia, sem que a vulgaridade que tudo iguala as atinja. Muito pode ainda ser salvo. Ainda pode aflorar à mente a ideia que, enquanto novíssimas aglomerações de edifícios se estendem longe pelos doces campos em bonitos bairros alegrados pelo verde e pelo sol, no interior das cidades tão vividas, a ciência e a arte moderna possam unir-se exatamente para despertar, não para violar, a "alma dos séculos". (GIOVANNONI, 2013, p.177).
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A fim de preservar esta "alma dos séculos", ou o "espírito do lugar" para Norberg-Schulz,
negligenciado no caso de São João del-Rei e de tantas outras cidades brasileiras, foi que
Giovannoni definiu princípios amplamente pertinentes a uma nova metodologia de leitura,
intervenção e gestão de sítios e paisagens culturais. Inicialmente ele considera, com clara
influência de Sitte, que
[...] o estudo integral da cidade deve ser tão vasto quanto deve ser minucioso e limitado o estudo da sistematização das zonas internas, feito com enorme cuidado, ponto por ponto (grifo nosso). É necessário, antes de mais nada, determinar, a partir do conhecimento preciso dos elementos mais variados relativos às ruas e às casas, à arte e às vicissitudes históricas, quais são os marcos imutáveis, a saber, os edifícios de caráter histórico e artístico que devem ser conservados, as obras e os grupos para os quais deve ser respeitado o ambiente.
Choay resume os três princípios básicos de sua doutrina desta maneira: primeiramente, todo
fragmento urbano antigo deve ser inserido em um plano diretor local, regional e territorial,
simbolizando sua "relação com a vida presente"; em segundo lugar, deve-se ter o
entendimento de que o entorno mantém com o monumento uma relação essencial (a questão
do ambiente); por fim, deve-se adotar procedimentos de preservação e restauração análogos
aos definidos por Boito para os monumentos, aos quais se vincula sua proposta do
"desbastamento". (CHOAY, 2001, p.200-201).
Giovannoni ensina, pois, que é preciso partir da observação feita com atenção. Assim como
Sitte condenava a visão da cidade a partir de mapas e plantas, Giovannoni também o faz
defendendo a necessidade de se conhecer in loco as particularidades locais, tanto do ponto
de vista histórico e arquitetônico quanto paisagístico. Saber ver é, antes de tudo, ser capaz de
reconhecer o que institui a identidade de núcleos antigos, cidades e paisagens. E somente
diante desse reconhecimento é que se pode partir para a efetiva proteção que tais bens
demandam especialmente em nosso tempo.
Considerações finais
Diante das análises empreendidas neste estudo torna-se evidente que a gestão do patrimônio
no Brasil, especialmente de sítios e paisagens culturais, ainda carece de significativos
avanços. É necessário seguir aprimorando discussões e práticas de conservação e gestão
dos bens, tendo sempre em vista a importância destas ações para a valorização da cultura e
identidade nacionais. O culto ao patrimônio também deve ser fortalecido em seu papel de
reafirmar valores em meio a tendências urbanísticas generalizadoras, nas quais
características globais se impõem sobre as locais criando cidades e paisagens homogêneas e
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"insensíveis". Estas tendências afrontam tanto valores de natureza histórica e artística dos
referidos sítios e paisagens quanto aqueles de natureza simbólica, relacionados, por exemplo,
ao uso dos espaços e à atribuição de sentimentos afetivos dos cidadãos ao seu contexto
urbano, como já avaliado por Sitte. Deturpam ainda o genius loci, esse "espírito dos lugares"
que, de modo perceptível ou não, também se relaciona com o nosso próprio espírito, com a
nossa construção interior.
É preciso não ignorar, ao tratar de questões de preservação, que núcleos antigos e paisagens
culturais, ainda que sob proteção, são organismos vivos e dinâmicos e devem ser tratados
como tais. Sua inserção na vida presente e na dinâmica urbana contemporânea não somente
é possível, desde que servindo-se de métodos adequados, como necessária, a fim de que
escapem do congelamento e da degradação. Reafirma-se, assim, a importância e a
necessidade do resgate da obra de Gustavo Giovannoni, cujas contribuições em termos
conceituais e metodológicos são amplamente pertinentes à questão e, portanto, merecedoras
de estudos mais aprofundados com vistas à sua efetiva implementação na atuação de órgãos
responsáveis pelo cuidado com o patrimônio articulada às políticas de planejamento urbano.
É preciso, mais do que nunca, reconhecer e fazer da preservação uma missão coletiva.
REFERÊNCIAS
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______. A noção de “ambiente” em Gustavo Giovannoni e as leis de tutela do patrimônio cultural na Itália. 2013. 198 p. Tese (Doutorado) – Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2013.
CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: UNESP, 2001. Título original: “L'allégorie du patrimoine”.
DANGELO, André G. D.; BRASILEIRO, Vanessa B.; DANGELO, Jota. Memória arquitetônica da cidade de São João del-Rei: 300 anos. Belo Horizonte: e.43, 2014.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Diretoria de Projetos III. Diagnóstico de São João Del-Rei. Diagnóstico. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1984. v. 1, 241 p.. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.mg.gov.br/consulta/verDocumento.php?iCodigo=40074&codUsuario=0>. Acesso em mar. 2016.
GIOVANNONI, Gustavo. Gustavo Giovannoni: Textos escolhidos. Organização de Beatriz Mugayar Kühl. Vários apresentadores. Tradução de Renata Campello Cabral, Carlos Roberto
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M. de Andrade, Beatriz Mugayar Kühl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2013. (Coleção Artes & Ofícios)
MOURA, Danieli Veleda; SIMÕES, Christian da Silva. A evolução histórica do conceito de paisagem. Ambiente & Educação, Rio Grande, v.15, n.1, p.179-186, 2010.
NORBERG-SCHULZ, Christian. O fenômeno do lugar. In: NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN/CEPEDOC, 2007. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/SerPesDoc1_PaisagemCultural_m.pdf>. Acesso em mar. 2016.
SITTE, Camillo. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. Organização e apresentação de Carlos Roberto Monteiro de Andrade. Tradução de Ricardo Ferreira Henrique. São Paulo: Editora Ática, 1992. Título original: “Der Städtebau”.