A melancolia em Lachrimae Coactae de John Dowland · denominada Lachrimae ou Seven Tears (escrita...

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VASQUES,JulianaLima;LUCAS,MônicaIsabel(2017).AmelancoliaemLachrimaeCoactaedeJohnDowland.PerMusi.Ed.porFaustoBorémetal.BeloHorizonte:UFMG.p.1-15:e201709.Articlecode:PerMusi2017-09.DOI:10.1590/permusi2017-09.

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DOI:10.1590/permusi2017-09Articlecode:PerMusi2017-09

SCIENTIFICARTICLE

AmelancoliaemLachrimaeCoactaedeJohnDowland

MelancholyinLachrimaeCoactaebyJohnDowland

JulianaLimaVasquesUniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,SãoPaulo,Brasilvasques.ju@gmail.comMônicaIsabelLucasUniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,SãoPaulo,Brasilmonicalucas@live.comResumo:OtemperamentomelancólicofoimuitodifundidonaInglaterraapartirdoséculoXVI,destemodo,agrandemaioriadaspeçasmusicaisinglesascontinhafigurasmelancólicas.JohnDowlandéumdosprincipais representantesdamelancolia elisabetana, tendoutilizadodiversos artifícios retóricospara retratá-la em suas obras. Dentre suas peças, algumas das mais representativas destetemperamento são asSevenTearsouLachrimae. O objetivo deste artigo é abordar a quinta pavana,Lachriame Coactae, visando compreender amelancolia elisabetana através de uma análise retórica.Coactae é o ponto culminante do sofrimento da alma, a apostasia. Para esta representação, foramutilizadasalgumasexorbitâncias,comoousomassivodecromatismoedefictae.Alémdisso,nelaestásintetizadocadaumdosafetospropostospelaspavanasanteriores.Palavras-chave:SevenTearsdeJohnDowland;melancolianaEraElisabetana;LachrimaeCoactae;neoplatonismoemelancolia.Abstract: The melancholic mood was widespread in England since the 16th Century. Thus, themajority of Englishmusical pieces containedmelancholic figures. John Dowland is one of themainleaders on the Elizabethan melancholy and he used several rhetoric artifices to represent it in hisworks.OneofhismostrepresentativemelancholicworksinthisrespectisSevenTearsorLachrimae.This article approaches the fifth pavane, Lachrimae Coactae, through rhetoric analysis from theperspectiveoftheElizabethanmelancholyinmusic.Coactaeistheapexpointofsoul’ssuffering,thatis,apostasy. For this representation,we found someexorbitance, like themassiveuseof chromaticismandfictae.Additionally,itsynthesizedeachoneoftheaffectionsproposedbythepreviouspavanes.

Dataderecebimento:05/02/2016Datadeaprovaçãofinal:15/04/2016

VASQUES,JulianaLima;LUCAS,MônicaIsabel(2017).AmelancoliaemLachrimaeCoactaedeJohnDowland.PerMusi.Ed.porFaustoBorémetal.BeloHorizonte:UFMG.p.1-15:e201709.Articlecode:PerMusi2017-09.DOI:10.1590/permusi2017-09.

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1–JohnDowlandeamelancolia

Aquestão damelancolia serviu de assunto para filósofos desde aGrécia antiga até

meadosdoséc.XVIII.Aoretrataro séc.XVIe iníciodoséc.XVII, encontramosduas

vertentessobreoassunto:umafisiológicaeoutrafilosófica1.Aprimeiraébaseadano

corpushippocraticum,teoriaqueabordaasaúdefísicaementaldoshomens.Nela,a

melancolia évista comoum temperamento causadopeloexcessodebilenegra,um

dos quatro fluidos do corpo humano. Já a segunda vertente engloba a filosofia

neoplatônica. Nesta, a melancolia é vista como um estado de alma, que, ao se

encontraraprisionadanocorpohumanoemfunçãodosprazeresmundanos,desejase

libertarevoltarasuaorigem,oUno.

Estas duas vertentes filosóficas são conhecidas na Inglaterra quinhentista, onde

MarsílioFicino,umdosgrandesfilósofosneoplatônicos,émuitodifundido.Segundo

VOSS(2002,p.231-232),amúsicaparaaqueleautorseriaomaiorpodercurativode

toda essa melancolia. Nesse contexto, o compositor que mais se destaca é John

Dowland.

Segundo Pinto, citado por HOLMAN (1999, p.49), ao estudar a obra completa

denominada Lachrimae ou Seven Tears (escrita para cinco violas e um alaúde), é

possível perceber que Dowland retrata o assunto da melancolia, representando o

ciclodequedaeascensãodaalma:aalmaemestadoimaculado,desejandoascoisas

mundanas (Antiquae); a queda da alma aomundomaterial (AntiquaeNovae); seus

desgostos(Gementes);dores(Tristes);eapostasia(Coactae);reconhecimentodesua

origem(Amantis);porúltimo,suaredençãodivina(Verae).

Aslágrimasdecadaumadessaspavanaspodemsimbolizartantoumsoluço,tristeza

oualegria,quantoumestadodealma.Elassãorepresentadasporummotivoformado

1 Esta introdução é baseada em ‘Amelancolia na era elisabetana’ do artigo ‘AsSeven Tears de JohnDowland:LachrimaeAntiquae’deVASQUES(2014,p.225).

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porquatronotasdescendentesemmodofrígio,otetracordefrígio,queestápresente

emcadaumadaspavanas2.

Esteartigoabordaespecificamenteaquintapavana,LachrimaeCoactae,queremete,

dentro do ciclo neoplatônico, à apostasia da alma devido aos seus sofrimentos no

mundo material. Este processo é mostrado através de recursos musicais retóricos

(figuras), muitos dos quais advindos da quarta pavana, Lachrimae Tristes3. Os

materiaisdeTristessofremalgumasmodificaçõesparaespecificaremnovosafetosa

seremdemonstradosemCoactae.

A visão retórica, que se adota nesta análise, é útil por condizer com a época do

humanismo, em que a retórica era um lugar comum presente em todas as artes,

nomeando os recursos para a representação de afetos. Este artigo tomará como

referência a definição de afeto apresentada por Burmeister (1606), citado por

AMBIEL(2010,p.6):

(...)éumperíodoemumamelodiaoupeçaharmônica,finalizadoporuma cadência, que comove e incita os corações dos homens. É ummovimento ou algo que traz alegria ou tristeza para o velho Adão(como Basilius Faber coloca), sendo tanto encantador, agradável ebem-vindo,ouinoportunoedesagradávelaosouvidoseaocoração.

Arespeitodestadefinição,AMBIEL(2010,p.8)comenta:

Cabemencionarqueapalavraaffectiofoitraduzidaparaoportuguêscomo afeto devido ao uso corrente. Entretanto, não seria a melhortradução. A palavra latinaaffectĭōpode ser traduzida por “1. efeito,impressão,influência;2.estado,maneiradeser,disposição(moraloufísica) 3. sentimento, paixão, inclinação, gosto, afeição, ternura...”FazendoumparalelocomaprópriadefiniçãodeBurmeister,dentreas palavras apresentadas, as que mais se aproximam do conceitoobservado são: estado, disposição ou sentimento. Na própria

2OtetracordefrígioéomaterialgeradordasSevenTears.Estetetracordedescendenteéformadodetom-tom-semitom(Lá, Sol, Fá,Mi), tambémconhecidocomo tetracordediatônico, e está inseridonononomodo (oumodo eóleo). Esta figura foi largamente utilizada nesses séculos (XV e XVI) para arepresentaçãodolamentoporoutroscompositores,comoLucaMarenzio,OrlandodiLassuseGiovanniGabrieli.Estetetracordeéumemblema,umlugar-comumdadore,nestecaso,representaaslágrimascaindo(HOLMAN,1999,p.40).3Tristeséaquartapavanaerepresentaumadasdoresdaalmanomundomaterial.Nelasurgemnovoselementos,comoacadenciaemSinasegundaseção,causandoumtrânsitomodalnãoesperado,usoexcessivodedissonâncias, suspensõese cruzamentodevozes,bemcomouma texturamais fechada.Algumasnovasfigurastambémaparecemaqui:MutatioTonieCirculatioquecausamasensaçãodeumdesnorteamentoqueserãotambémtrabalhadasemCoactae.

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definição de Burmeister está implícito um movimento d’alma. Apartir do estudo e compreensão das próprias figuras do teórico,entende-se afeto de uma maneira mais ampla, podendo dirigir-setanto a um sentimento, como a uma qualidade pura, ou mesmo, àrepresentaçãodeumaimagem.

Portanto, o termo afeto será entendido neste texto como uma concepção ampla,

ligadaàalmaesuasafecções.Esteconceitotambémnortearáoencaminhamentoea

construção dessa pavana que tem, pelo seu título, assim como as outras, um afeto

representativoúnico.Valelembrarqueostítulosdaspavanasseencontramemlatim,

que é a línguamater do catolicismo e tambéma língua dos acadêmicos e filósofos.

EstaescolhaparaostítulospodeserdevidoaofatodeDowlandtersidocatólico(ao

menos oficialmente) e dedicado esta peça a uma rainha supostamente católica (a

RainhaAnna,esposadoReiJamesI),fazendoreferênciaaestareligião.

2-LachrimaeCoactae

Tomando por base a visão neoplatônica do ciclo de queda e ascensão da alma, a

quintapavanapode ser entendida comodivisora entre as anteriores e aspróximas

duas últimas. Coactae, em latim, vem do verbo Coago, tendo diversos significados,

entreeles:impor,reunir,misturar,provar.

Segundo HOLMAN (1999, p.57), essa pavana se refere ao descontentamento de

Dowlandemrelaçãoàsua terranatalpornão ter lhedadodevidoreconhecimento.

Sendoassim,Coactaeestarialigadaàvingança:

Otítulo(…)sugereumaconexãocomumadasmaissurpreendentesmelancolias: a vingança ou o descontentamento. (...) Ele [Dowland]repetitivamente reclamava que seu talento não era reconhecido naInglaterra, passou muito tempo de sua carreira no estrangeiro eviajouàItália,e,emcertomomento,foisuspeitopelasautoridadesdesedição(HOLMAN,1999,p.56-57).

Na visão de Pinto, citado por HOLMAN (1999, p.49), Coactae é uma apostasia

relacionada a um estado de arrependimento e penitência que leva o homem a um

mergulhoespiritual,tendoumconflitointernoentreodesejodaalmadeselibertare

osprazeresmundanos.

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No entanto, sob uma perspectiva diversa, esta palavra pode se referir à união de

elementos opostos, segundo HAUGE (2001, p.34). Levando em consideração essas

informações,apresenteanálisefaráumauniãodessesconceitosparaainterpretação

deCoactae.

Logonoinício,percebe-seotetracordefrígioemevidêncianoCantus(emTristes,ele

tinha sido obscurecido), sendo repetido uma oitava abaixo pelo Quintus para

enfatizá-lo, através da figuraAnaphora4 e domotivo das ‘lágrimas renovadas’ feito

peloTenordestavez5.Alémdisso,éaprimeiravezqueoBassusexecutaumalinha

melódica ascendente (isto será mais trabalhado em Amantis, a sexta pavana). Na

Figura1,podemosobservarnoiníciodapeçaascaracterísticasdescritas.

Figura1:IníciodapeçaemqueépossívelobservarotetracordefrígioemevidêncianoCantus.

4 Kircher (1650), citado por BARTEL (1997, p.188) explica que a Anaphora ocorre quando umapassageméfrequentementerepetidaparaumaênfase.5Estafiguradas ‘lágrimasrenovadas’,Dó-Si-Dó-Ré-Mi,éapresentadanaprimeirapavana,LachrimaeAntique, pelo Cantus e desenvolvida amplamente na segunda, Lachrimae Antiquae Novae. Elarepresentaaantítesequeaalmapassaentrepermaneceremseuestadoimaculadoedesejarascoisasmundanas,alémdesimbolizararenovaçãodaalmaquandoestasofreaquedaaomundomaterial.

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No entanto, o segundo tetracorde (Dó-Si-Lá-Sol#) está omisso neste início,

aparecendonãocomorespostadofrígio,masapenasnacadênciadofinaldaprimeira

seção(comoSimodificadoatravésdeumbemol,fazendoumaalusãoaoscompassos

10e11deTristes),comoépossívelevidenciarnaFigura26.

Figura2:SegundotetracordemodificadonoiníciodoCantusePathopeiacaracterísticadosfinaisdeseções.

Após a apresentação do tetracorde frígio no Cantus e no Quintus, observa-se uma

Exclamatioatravésdeumsaltodeoitavaesextamenorrespectivamente7.Essesdois

saltos reaparecememoutrospontosevidentesdestaprimeiraseçãonoBassus (Lá-

Lá) do c.2, no Quintus (Mi-Dó) do c.3 e no Cantus (Ré-Ré) novamente no c.5. Esta

figura é frequentemente utilizada em todas as pavanas e normalmente destaca os

tetracordesdescendentesimbuídosdecromatismoqueseseguemapósestafigura.

Enquanto isso,oAltus iniciaasbordadurasquesãorepetidaspeloCantuseBassus,

dessa maneira, a cadência é estendida até o c.3 como em Tristes, simbolizando as

lágrimascaindo, comopodemosobservarnaFigura3.OTenor,no c.2, temopapel

6Osegundotetracordetambémnãoéigualaoprimeiro,maspotencializaopoderafetivodesteporsuamaiorocorrênciadesemitonsepelointervalodetrítono.Alémdisso,élargamenteutilizadoemtodasaspavanas.7SegundoWalther(1732),citadoporBARTEL(1997,p.268),significaumaexclamaçãoagitadaepodeserrealizadanamúsicaatravésdeumsaltodesextamenor.

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importantede ressaltar essas bordaduras com semínimaspontuadasdescendentes,

remetendo ao suspiro deGementes, a terceira pavana (esse ritmo é reforçado pelo

Quintusnosc.3-4).

Na figura3, tambémpodemosperceberumdiálogoentreoCantus (c.3-4)eBassus

(c.4)comtetracordesdescendentes.OprimeiroDó-Si-Lá-Sol,tendoumsemitomeo

segundo potencializando o anterior com dois semitons Fá-Mi-Ré-Dó#, cadenciando

emRénoc.5.

Figura3:Diálogosdaprimeiraseçãoecadênciaestendidaatravésdasrepetiçõesdebordaduras.

Em suma, encontramos nesta primeira seção a Pathopeia8 do tetracorde frígio

potencializada pelas bordaduras e seus semitons (ver Figura 2), a Exclamatio por

causadossaltosdescritos,aCatabasis9atravésdasfigurasmelódicasdescendentes,a

Parrhesia10devidoàsdissonâncias,aAnaphoradevidoàsimitaçõeseaSuspiratio11.

8EmrelaçãoàPathopeia, segundoBARTEL (1997,p.359), ela éumapassagemmusicalqueprocuradespertar um afeto apaixonado através de cromatismos, também, é uma representação viva de umafeto intenso ou veemente, tal como angústia, melancolia e tristeza. Burmeister (1606), citado porBARTEL(1997,p.361)explicaqueaPathopeiaocorrequandosemitonssãoadicionadosaomodusdeumacomposiçãodeumamaneiraextraordinária.9ACatabasisdeKircher(1650),citadoporBARTEL(1997,p.215)serveparaexpressaraintençãodeumafetoatravésdepassagensmelódicasdescendentes.10SegundoBurmeister(1606),citadoporBARTEL(1997,p.355),aParrhesiaocorrequandointervalosdissonantes são misturados em uma textura consonantes, tal como uma quinta. Entretanto, é umadissonânciabrevequeocorrenotempofracodeumavoz.

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O início da segunda seção, ilustrado na Figura 4, émarcado pelo aparecimento da

cadênciainesperadaemSienãoemDó(comoacontecenastrêsprimeiraspavanas)e

pelodesnorteamento12.Alémdisso,umanovafictaéutilizada:oLásustenidonolugar

doSibemoldeTristes.

Figura4:Iníciodasegundaseção,marcadopelacadênciainesperadaemSi.

Um lugar-comum de Tristes nesta seção é o uso da figura Circulatio13 que agora

aparece invertida nos c.11-12 no Cantus, no Tenor e no Bassus, nos c.12-13 no

Quintus e nos c.13-14 no Bassus, como se percebe na Figura 5. Repara-se que a

Circulatio no Bassus do c.12 é marcada pela presença da Pathopeia dada pelo

cromatismo Lá, Sib, Si, Dó. Esse cromatismo é importante, pois reforça o caráter

lânguidojádoiníciodasegundaseçãoquefazusoconstantedesemitonsentreoRé#

eMi,oLá#eSieoSol#eLá(verFigura4).

11BARTEL(1997,p.392)explicaqueaSuspiratioexpressaumsuspiroatravésdeumapausa.Walther(1732),citadoporBARTEL(1997,p.394)esclarecequeesta figura temumameiapausanaduração,seguidadeumanotadeigualduraçãoaoutrasduasnotas.12 As sete Lachrimae se encontram no nonomodo ou nomodo eóleo. Com isso, é esperado que asseçõesseencontrassemprimeiroemLá,depoisemDóeporúltimoemMi.13Kircher(1650),citadoporBARTEL(1997,p.217)explica:éumapassagemmusicalemqueasvozesparecemmoveremcírculoseserveparaexpressarpalavrascomummovimentocircular.

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Somandoaisso,amelodiadoCantusdescendeapartirdoc.12atéoc.13(Catabasis)e

a Exclamatio dada pelo salto ascendente de 4J no Altus (c.12), proporciona um

cruzamentodevoz(Metabasis)entreCantuseAltusatéoc.13.Percebe-sequeaquia

cadência em Dó foi evitada em todos osmomentos, foram utilizados cromatismos,

melodiasdescendentes,sincopasedissonâncias.

Figura5:Circulatiodasegundaseção.

A terceira seção inicia com o retorno do segundo tetracorde no Quintus e com o

mesmo caráter lânguidoda seção anterior, comopodemos observar na Figura 6.O

afetodo lamentoseencontrapresenteatravésdas figurasdePathopeiaeCatabasis,

resultantes da imitação entre o Tenor e o Cantus, que têm as linhas melódicas

descendentes,formadasporintervalosdissonantesefinalizadasporbordaduras.

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Figura6:Imitaçãodaterceiraseção,tendoimplicadooafetodolamento.

Já a partir do c.19, a Circulatio está implicada novamente no Tenor (c.19-21) e a

melodia é impelida para cima pelo Altus com o ritmo pontuado, formando uma

Hyperbole no c.2214. Existem, também, outros pontos importantes de Exclamatio

impelindoamelodiaparacima,comonoc.19noBassus,noc.21noCantus,noc.22

noAltuseBassusenoc.23noBassus.

Essas Exclamatio preparam para o final da peça, ilustrada na Figura 7, em que

aparecem linhas melódicas ascendentes nos dois últimos compassos, sendo

executadosnoCantus,TenoreQuintus.Diferentementedasoutraspavanasquetêm

como característica a melodia descendente na terceira parte para a finalização da

peça,aquiamaioriadasvozesascendeparaacadência, tendo,apenas,oCantuseo

Bassuscommelodiasdescendentesnoúltimocompasso.Poressemotivo,o finalde

Coactae prepara para atmosfera de Amantis, a próxima pavana, que terá como

principal característica as linhas melódicas ascendentes, tornando o afeto em

exaltação.

14 AHyperbole ocorre quando amelodia excede seu limite (Burmeister (1606), citado por BARTEL,1997,p.307).

VASQUES,JulianaLima;LUCAS,MônicaIsabel(2017).AmelancoliaemLachrimaeCoactaedeJohnDowland.PerMusi.Ed.porFaustoBorémetal.BeloHorizonte:UFMG.p.1-15:e201709.Articlecode:PerMusi2017-09.DOI:10.1590/permusi2017-09.

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Figura7:FinaldaterceiraseçãoemquetemoslinhasascendentespreparandoparaAmantis.

Portanto, no trecho acima descrito encontra-se aAnaphora dada pelas imitações, a

Syncopatio15dasmelodiaseaAnabasisnosdoisúltimoscompassos16.

3 -ConsideraçõesFinais

PodemosperceberemCoactaequerecursosmusicaiseafetivosutilizadosemTristes

foram ligeiramente modificados para enfatizar e exagerar o afeto proposto. Além

disso,estaéapavanaemqueDowlandutilizaomaiornúmerode fictas(Sol#,Fá#,

Dó#,Ré#,SibeLá#).

Aprimeira seçãoémarcadapelo retornodo tetracorde frígio eda figuraAnthitesis

(lágrimas renovadas)17. Com isso, os afetos aqui propostos são o do lamento e do

suspiro.OsrecursosutilizadosparaissosãoquaseosmesmosdeTristes:Pathopeia,15SegundoBurmeister(1606),citadoporBARTEL(1997,p.400),aSyncopacausaumadissonâncianocomeço do tactus minoris ou majoris. Essa dissonância é relativa, visto que ela é ligada a umaconsonânciapuraatravésdasyncopa.16AAnabasis(Kircher(1650),citadoporBARTEL,1997,p.180)éumapassagemmusicalascendentequeexpressaexaltação,elevaçãoepensamentoseminentes.17Kircher(1650),citadoporBARTEL(1997,p.199)mencionadaseguintemaneiraafiguraAntithesis:“éumapassagemmusicalnaqualnósexpressamosafetoscontrários”.

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Parrhesia eCatabasis.Mesmoassim,a figuraExclamatio sobressainomeiode linha

melódicasdescendentesesaltamaosouvidos.Dowland,assim,fazumopostoentreas

figuraseosafetos.

AsegundaseçãotemamesmasensaçãodeincertezadeTristes,pelodesnorteamento

epelafiguraCirculatio.Somadoaissotemaideiadoconflitofeitopelasdissonâncias,

suspensões e pela melodia descendente grave do Cantus. Também, não há o

aparecimentodoterceirograudononomodo(Dó)quetrazaoouvinteumsommais

luminoso.

Aterceiraseçãonãoapresentaotommaisharmonioso,comodecostumenasoutras

pavanas, mas inicia com o mesmo caráter lânguido dado pelas dissonâncias, pela

voltadotetracordefrígionoBassusepelosmotivosemritmopontuado.Mas,aofinal,

aocontráriodasoutraspavanas,apresentaamelodiaascendendoparaafinalização

dapeça.

As características descritas acima condizem com a ideia de ‘descontentamento’ ou

‘raiva’propostaporHolman.Também,sãocompatíveiscomaapostasiadePintopelo

fato de ser a pavana em que mais fictas são utilizadas, por ter a partitura mais

complexa de todas e por sintetizar um pouco de cada um dos afetos e recursos

musicais propostos pelas outras pavanas. Além disso, temos elementos materiais

opostos sendo utilizados, como o tetracorde frígio versus a figura das lágrimas

renovadas,easmelodiasdescendentesdoiníciodaterceiraseçãoopostasàAnabasis

eàExclamatiodofinaldapeça,oquecondizemcomaideiadeHauge.

SeguindoalinhadeinterpretaçãodasseteLachrimaepropostanesteartigo,Coactaeé

opontoculminantedosofrimentodaalma,aapostasiaeoiníciodeseuprocessode

redenção. É interessante notar que isto é desempenhado justo na quinta pavana, e

queonúmerocincorepresenta,segundoCIRLOT(2001,p.233),aomesmotempo,a

queda e a regeneração do homem, ou seja, é o momento em que este consegue

dominarsuapróprianatureza.

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Estaapostasiaédemonstradaatravésdealgunsexageroscomo,porexemplo,ouso

deseisfictae(éapavanaquetemmaisfictae),aHyperboledoCantus,oscromatismos

ecruzamentodevozesdasegundaseção.Elatambémérepresentadapelauniãode

elementos citados. Além disso, em Coactae, Dowland criou uma atmosfera mais

conflituosa por causa daMutatioToni deTristes e seu desnorteamento somados à

figuraCirculatio.

ValenotarqueaúltimaseçãodeCoactaeretomaoafetolânguidodastrêsprimeiras

pavanas, mas já prepara para o afeto de exaltação de Amantis (próxima pavana)

através da linha ascendente dos dois últimos compassos, dando por finalizada a

apostasiaecomeçandoaredenção.

Referências1.AMBIEL,Áurea.(2010)“LamentationesJeremiaeProphetae”deorlandodilasso:aaplicaçãodaquintacategoriaanalíticadeJoachimBurmeister.UNICAMP/FAPESP(TesedeDoutorado).

2.ARISTÓTELES.(1998)ProblemaXXX,1.SãoPaulo:Lacerda.

3.BARTEL,Dietrich.(1997)MusicaPoetica.Nebraska:UniversityofNebraskaPress.

4.BURMEISTER, J. (1993)MusicalPoetics [Musicapoetica.Rostock,1606].London:YaleUniversityPress(tradução,introduçãoenotasdeBenitoV.Rivera;versãobilíngue).

5.BURTON,Robert.(1998)AnathomyofMelancholy[1605].London:OxfordUniverstyPress.

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ReferênciasdePartituras

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Leiturarecomendada1.ALCADE,AntonioCorona.(2010)Tearsof JoyorTearsofWoe?ElEmblemade laLachrimaeenlaobra de John Dowland: Un ensayo de interpretación. Revista del Instituto de InvestigaciónMusicológica“CarlosVeja”.BuenosAires:PontificiaUniversidadCatólicaArgentina.n.24,v.24,p.203-253.

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Notasobreasautoras

Juliana Lima Vasques é Bacharel em Música com habilitação em instrumento(violão) em 2015 pela Universidade de São Paulo. Mestranda emmusicologia pelaEscola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Suapesquisa é voltada para o estudo da melancolia nos séc. XVI e XVII nas obras docompositor John Dowland, através de uma abordagem retórica-musical. Comoviolonista, vinculado aUniversidade, em2011/2013, participoudo3º e 4º FestivalLeoBrouwercomointegrantedoensembledeviolão.

Mônica Isabel Lucas graduou-se em música na Universidade de São Paulo eespecializou-se na interpretação da música antiga no Real Conservatório de Haia(Holanda), obtendo diplomas em flauta-doce e em clarinetes históricos. Coordenadesde 2001 o Conjunto de MúsicaAntigana ECA-USP. Seu trabalho comopesquisadora, financiado desde 2002 pela FAPESP (doutorado, pós-doutorado eauxílio à pesquisa), envolve o estudo da instituição daMusica Poetica. É autora de"HumoreAgudezaemHaydn:osQuartetosdeCordasop.33"(AnnaBlume/FAPESP,2008).Desde2013,éChefedoDepartamentodeMúsicadaECA-USP,ondetambématua como docente, sendo responsável pelas disciplinas “História da Música”,"HistóriadaÓpera"e“IntroduçãoàRetóricadaMúsicaSetecentista”.