A presença e a ausência dos rios de São Paulo: acumulação ......Os rios de São Paulo devem ser...

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A presença e a ausência dos rios de São Paulo: acumulação primitiva e valorização da água

José Paulo Neves Gouvêa

Orientador Angela Maria Rocha

Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Doutor em Arquitetura e Urbanismo

Área de Concentração

Tecnologia da Arquitetura

São Paulo, 2016

Gouvêa,JoséPauloNevesG719p ApresençaeaausênciadosriosdeSãoPaulo:acumulação primitivaevalorizaçãodaágua/JoséPauloNevesGouvêa.-- SãoPaulo,2016.240p.:il.

Tese(Doutorado-ÁreadeConcentração:Tecnologia daArquitetura)–FAUUSP. Orientadora:ÂngelaMariaRocha

1.Produçãodoespaço2.Água(Produção)3.Infraestrutura urbana(Produção)4.Urbanização(Aspectossociopolíticos; Aspectossocioeconômicos)5.Privatizaçãodoespaço 6.RiosurbanosI.TítuloCDU711:330.191.3

AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

e-mail:paulogou@uol.com.br

A presença e a ausência dos rios de São Paulo:

acumulação primitiva e valorização da água

José Paulo Neves Gouvêa

Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Doutor

em Arquitetura e Urbanismo

APROVADO EM:

BANCA ExAMINADORA:

PROF. DR.:INSTITUIÇÃO: ASSINATURA

PROF. DR.:INSTITUIÇÃO: ASSINATURA

PROF. DR.:INSTITUIÇÃO: ASSINATURA

PROF. DR.:INSTITUIÇÃO: ASSINATURA

PROF. DR.:INSTITUIÇÃO: ASSINATURA

parajuntarLelêeSebá

queporpouconãoseconheceram

poiselachegoulogodepoisqueelepartiu

AGRADECIMENTOS

àminhaorientadoraAngelaRochapeladedicaçãodesdeomestradoepelosanosdediálogoatento.àFAUUSP.

àMarisaOhashipeloapoioincondicionalemtodososmomentos.especialmenteàminhamãeVeraporestarsemprepresente.aosmeusirmãosJoão,BelePaula.aosmeussogrosYolandaeLuizAntonio.

àJorgeHajimeOsekipelapresençanaausência.àPauloCesarXavierPereiraeAméliaDamianipelaleituracríticaeatentaepormudarorumodapesquisanomomentocerto.aosamigosJoséEduardoBaravelli,GuilhermePetrellaeCatherineOtondo,pelaajudafundamentalemmomentosimportantesepelaopiniãosincera.aosamigosRafaelUrano,GuilhermePiancaeAlexandreBenoit,avante.aosamigosDanielTrencheCelsoLongo,maisumavez.aosamigosRobertoGuedeseMaíraMartinez.aosamigosdoescritórioDenisFerri,MarceloMadalozzo,MariaWolfeLuizaAndradepeloapoiofundamental.aosamigos,BeatrizTone,LucianaFerrara,RenataMoreiraeTaísTsukumoeViníciusSpira,AndreaFloresUrushima,JoãoSodré,Julia-naBraga,CíceroFerrazCruz,PabloHereñú,SebastianBeck,GiovanniMeirelleseEduardoFerroni.àEscoladaCidade,especialmenteàCiroPirondi,ÁlvaroPuntonieAnáliaAmorim,AndersonFreitaseFábioValentim.aosamigosJorgePessoa,MarinaGrinovereLuisAntonioJorge.aosamigosJoséArmênioBritoCruz,RenataSemin,MarcosAldrighieJoãoPauloBeugger.aosamigoseprofessoresAntonioCarlosBarossi,AlexandreDelijaicov,HelenaAyoubSilvaeMartaBogéa.aosprofessoresZildaIokoi,LuizGuilhermeGaleãoeSérgioBairon.aosfuncionáriosdasecretariaedabibliotecadaFAUUSP.aoMuseuPaulista,aoArquivoPúblicodoEstadodeSãoPaulo,àFun-daçãoBibliotecaNacional.àBilbliotecaVilanovaArtigaseàGráficaFlávioMotta.àBibliotecaFlorestanFernandes,àBibliotecaMáriodeAndrade.

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RESUMO

ApresençaeaausênciadosriosdeSãoPaulo:acumulaçãoprimitivaevalorizaçãodaágua

ApresenteteseanalisaoprocessodeapropriaçãoprivadadosriosdeSãoPauloesuaparticipaçãonaproduçãodoespaçodacidade,aprofundan-doaspectosrelativosaodesenvolvimentosocial,políticoeeconômico,desdesuafundaçãonoséculoXVIatéoiníciodoséculoXX.PartindodasobrasdecanalizaçãodosriosTamanduateí,TietêePinheiros,apesquisarealizaumrecuohistóricoatéomomentoemqueosriosecórregosdeSãoPauloseconstituíamcomoumbem comumesuaprincipalcaracterís-ticaeraousodesuaságuaseterras.Asdiversasatividadesrelacionadasaosriosecórregos,nosprimeirosséculosdaocupação,caracterizam-sepelaconvivênciaentreoconsumoimediato,autilizaçãodemãodeobracativaeaobtençãoderendaatravésdotrabalholivre,emummomentoemqueaeconomiadeSãoPauloeratímidaeapoluiçãodosriosjáerapercebida.DuranteoséculoXIX,apartirdaculturadocaféedaimigra-ção,estabeleceu-seumaeconomiabaseadanotrabalholivreassalariadoe na valorização da propriedade fundiária. Na cidade de São Paulo, ocrescimentopopulacionaleainsuficiênciadadistribuiçãodeáguaees-gotamento,associadosaosignificadoeconômicodapropriedadeeadis-ponibilidadedemãodeobra,passaramarepresentarapossibilidadedevalorizaçãodocapitalapartirdoestabelecimentodecondiçõesgeraisdeprodução.OsriosdeSãoPauloforamentãoincorporadosaoprocessodeprovisãodeinfraestruturaseredesdeserviçosurbanos.Esseproces-sodeacumulaçãoderiqueza,baseadonaexpropriaçãodaterraedaágua,transformouosriosdeSãoPauloemrecursoseconômicoseengendrouumespaçoquesecaracterizapelasobreposiçãododomínioparticularsobreodomíniocomum.

PALAVRAS-CHAVE

produçãodoespaço,água(produção),infraestruturaurbana(produção),urbanização (aspectos sociopolíticos; aspectos socioeconômicos), pri-vatizaçãodoespaço,riosurbanos.

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ABSTRACT

ThepresenceandabsenceoftheriversinSãoPaulo:primitiveaccumula-tionandwaterappreciation

ThepresentthesesanalysestheprocessofprivateappropriationoftheSão Paulo city’s rivers, and its role in the production of space, devel-opingthesocial,politicalandeconomicalaspectssincetheearly16thcenturyuntilthebeginningofthe20th.BeginningbythechannellingworksattheTamanduateí,TietêandPinheirosrivers,thisworkpresentsahistoricalresearchsincethepointintimewhenthecity’sriversandstreamswereconsideredacommongoodanditsmainfeaturewastheuseofitswaterandtheriverbanks.Theseveralactivitiesrelatedtotheuseofriversandstreams,intheearlycenturiesofoccupation,arechar-acterizedbythecoexistenceofimmediateconsumption,theuseofslavelaborandtheworkoffreeman.Atthattime,theSãoPauloeconomywasweakandthepollutionofriversbegantobeanissue.Duringthe19thcentury,coffeeproductionandimmigrationenhanced,andaneconomybasedonwagelabourandappreciationoflandpropertywassettled.InSao Paulo, the population growth, the insufficient water and sewagesupply, associated with the labour supply and the economic value oflandproperty,providedthepossibilityofcapital increasethroughtheestablishmentofproductionconditions.TheriversofSãoPaulowereincorporatedinthisprocessofprovisionofurbaninfrastructure.Thisprocessofwealthaccumulation,basedonlandandwaterexpropriation,turnedtherivers intoeconomicresourcesandgeneratedaspacechar-acterizedbythepredominanceoftheprivateoverthecommondomain.

kEywORDS

productionofspace,water(production),urbaninfrastructure(produc-tion),urbanization(social,politicalandeconomicalaspects),privatiza-tionofspace,urbanrivers.

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íNDICE

INTRODUÇÃO - P. 15

PARTE I - USO DA áGUA, SUBSISTêNCIA E TRABALHO - P.45CAPíTULO 1 - BEM COMUM, áGUA E TRABALHO - P.47CAPíTULO 2 - TRABALHO LIVRE, PRIMEIRA REDE E CHAFARIZES: LUTAS PELO CONTROLE E POSSE INDIVIDUAL DA áGUA - P.71 CAPíTULO 3 - SUBSISTêNCIA PELO RIO: PESCA, AGUADEIROS, LAVADEIRAS E A RENDA DA áGUA - P.95

PARTE II - APROPRIAÇÃO DA TERRA, DO HOMEM E DA áGUA - P.113CAPíTULO 4 - APROPRIAÇÃO DO BEM COMUM - P.115CAPíTULO 5 - APROPRIAÇÃO DA áGUA - P.159

CONCLUSÃO - O RIO TORNADO áGUA - P.211

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS - P.225LISTA DE IMAGENS - P.235

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INTRODUÇÃO

AspreocupaçõesquefundamentaramapresentepesquisatêmorigemnaobservaçãodarelaçãodosriosdeSãoPaulocomaocupaçãodoseuentornoimediato,suasvárzeaseplaníciesaluviaisurbanizadas.NocasodosriosTamanduateí,TietêePinheiros,riosqueestruturamacidade,suacanalizaçãoeasrodoviasinstaladasemsuasmargensgarantemsuaausênciaecompletoisolamentonocontextodacidadesendonotadosapenasemmomentoscríticoscomoemenchentesetransbordamentos.A maior parte dos córregos da cidade foi tampada, permanecendo ig-noradapelamaiorpartedapopulação.Riosqueocupamumaposiçãoimportantenacidadepermanecemcomocanaisdeesgotoacéuaberto,emabsolutocontrastecomaocupaçãodesuasmargens.

Essasobservaçõeslevaramaoquestionamentodequaisseriamosprocessosquelevaramessesriosaestabelecertãodesprivilegiadacon-dição no contexto urbano de São Paulo, permanecendo, atualmente,presentescomorededeesgotosedrenagemeausentescomorecursonatural.

OestudodoprocessodedominaçãodosriosecórregosdeSãoPau-lopermitecolocarque,apartirdeumacondiçãodebem comum,quandosuaprincipalcaracterísticaeraousodesuaáguasesuasterras(várzeas),essesrecursosforamlentamenteincorporadosaoprocessodeobtençãoderendaparasubsistênciae,posteriormente,comodesenvolvimento

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domododeproduçãocapitalista,valorizaçãodocapital.Esseprocessofez com que os rios e córregos, de recursos naturais se tornassem re-cursoseconômicos,implicandoaestruturaçãodoespaçodacidadeeaformacomqueforamurbanizadassuasterraseapreendidassuaságuas.

Atividadesimediatasdesubsistênciarelacionadasaosriospassa-ram,desdeosprimeirosanosdacolonização,aser intermediadasportrabalho escravo negro e indígena, passando também a possibilitar aobtençãoderendaemdinheiro,transformandoarelaçãoentreprodutordiretoemeiosdeprodução.

Apartirdaculturadocaféedoestabelecimentodeumaeconomiabaseada no trabalho livre assalariado e da valorização da propriedadefundiária,osriosdeSãoPauloforamincorporadosaoprocessodepro-visãodeinfraestruturaseredesdeserviçosurbanosquevisavamoesta-belecimentodecondiçõesgeraisdeprodução.

Nocontextodoiníciodaindustrializaçãoeintensaimigração,comconsequentecrescimentodapopulaçãoedaáreaurbanizada,essaspro-visões,alémdenecessáriasaosaneamentoeàdistribuiçãodaágua,visa-vamprincipalmenteavalorizaçãodocapitalinvestidonessasobras,nãosomenteatravésdaexploraçãodamãodeobraevendadosprodutos,mastambémapartirdavalorizaçãodapropriedadeterritorialpropor-cionadaporessasinfraestruturas.Esseprocessodeseparaçãodosriosentreterraeágua,istoé,deconstituiçãodesseselementoscomomer-cadorias,estávinculadoaoprocessodeacumulaçãoprimitivadocapitale baseado na produção do espaço, revelando contradições estruturais daurbanização de São Paulo ao contrapor um recurso essencial à vida ainteresseseconômicos.

Pensar a produção do espaço implica considerar o espaço comoprodutosocial,ouseja,consideraroespaço,assimcomootempo,nãomaiscomofatoda“natureza”ousimplesfatoda“cultura”,mascomoproduto.Entretanto,esseproduto-espaçonãoéumobjeto,umacoisa,masumconjuntoderelações.SegundoJorgeOseki,esseespaço“nãoépas-sivonemvazio,nãotematrocaeoconsumocomoúnicafinalidadeesentido, como se dá com outras mercadorias”.1 Ele não deve ser con-fundidocomasmercadoriascomuns,entendidoapenascomoresultadodotrabalhoabstrato.Esseespaçonãopodeserconcebidocomotendo

1. OSEKI,JorgeH.OÚnicoeoHomogêneonaProduçãodoEspaçoinMAR-TINS,JosédeSouza(org.).HenriLefebvreeoretornoàdialética,SãoPaulo:Hucitec,1996.cit.p.111.

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apenasosentido,comooutros‘produtos’,datroca,doserconsumido,dodesaparecer. (OSEKI, 1996,p. 111)Oespaçocomo produto intervémnaproduçãosocial,naorganizaçãodotrabalho,nofluxoenoestoquedematériasprimaseenergiaenas redes de distribuição.É,portanto,pro-duto-produtor. “O produto torna-se produtivo, passando pela extremaabstração”2.(LEFEBVRE,2007,p.3)Oespaçoparticipa,portanto,tantodasforçasprodutivascomodasrelaçõesdeproduçãoepropriedade,darealizaçãoedarepartiçãodamais-valia.

OsriosdeSãoPaulodevemserentendidoscomoumprodutoso-cial,resultadodaproduçãodoespaço,mastambémagentedessapro-dução.Osriossãoentendidos,portanto,nãomaiscomosomenteumobjetodanaturezaedasociedade,massimcomoumelementogeradordeusos e trocas,desociabilidadesedisputas;deconstruçãoedestruiçãodeespaços;deconflitosedesatisfaçãodasnecessidadesdocorpo;e,so-bretudo,inseridonocontextodaurbanização,geradordevalor.

Nessesentido,ocomeçodoséculoXXfoidecisivoparaaurbani-zaçãodosriosdeSãoPaulo,poisoTamanduateí,oTietêeoPinheirosforamcanalizados,suasmargensforamurbanizadaseincorporadasaotecidourbanoesuaságuaspassaramaintegrarasredesdeesgotoedre-nagem.Grandesplanosurbanísticosnorteavamaproduçãodoespaçodacidadesendoresponsáveisporreafirmaranecessidadedeocupaçãodas várzeas com a promoção de loteamentos e a implantação de ave-nidas3, configurando uma fase de intervenções físicas nos rios de SãoPaulo.Amudançadefocodaeconomiadacafeiculturaparaaindústriaurbana,nofinaldosanos1920,eaconsolidaçãodosistemaferroviárioestimularama tendênciadeseocuparasplaníciesquecircundavamacidadeeasvárzeasdosrioscominstalaçõesindustriais.Esseprocessoconsolidouasupressãodasvárzeaseaimpermeabilizaçãodoentornodiretodosriose,assim,intensificouonúmeroeovolumedeenchentesemSãoPaulo.

Esseprocessofoimarcadopelamaciçapresençadecompanhiasdeurbanização,quese instalavamnoEstadodeSãoPauloe começavam

2. LEFEBVRE,Henri.AProduçãodoEspaço.prefáciodaediçãofrancesade1974,traduçãodeJorgeHajimeOseki,mimeo,2007,p3.

3. SegundoJorgeOsekiaconstruçãodasavenidasdefundodevaleconfigurouumatransformaçãodramáticanaespacialidadedacidade,jáqueuniamlotea-mentosantesseparadosporcórregosepropiciavamumgrandefluxodepes-soasetransportepelosantigosrincõesdosriospaulistanos.(OSEKI,ESTEVAM,2006)

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afornecerserviçosurbanos.EmpresascomoaCompanhia. Cantareira & Exgottos,aCompanhia Água e Luz, Pucci & Minelli,aCity of São Paulo Impro-vements and Freehold Land Company Ltd,aCia de Viação PaulistaeaSão Paulo Tramway Light & Power Co Ltd,entreoutras,introduziramnovoscompo-nentesdeordenaçãodoespaço,semprevisandoareproduçãodocapi-tal.Cadaumdosserviçosdeágua,luz,esgoto,telefoneetransporte,foientãoproduzidoporumaempresaseguindoseusprópriosinteresses,impossibilitandoqualquerhipótesedeaçãoconjunta.4

A CANALIZAÇÃO DO TAMANDUATEí, TIETê E PINHEIROS

Coma intençãodemelhorarascondiçõesdesaneamentodasvárzeasdoTamanduateí,conhecidascomovárzea do Carmo,aprimeirainterven-çãonesserioaconteceuem1841apartirdaconstruçãodeumcanalquemodificavapartedoseucurso5–vermapadaspáginas142-143.Comamesma intenção, em 1848, o trecho do rio conhecido como sete voltasfoiretificadoapartirdeumaencomendadoGovernoProvincial.Essasobras,alémdenãosurtiremoefeitodesejado,inviabilizaramapráticaseculardanavegaçãonesserio.Em1872eanosposteriores,foicanali-zadootrechodorioentreoIpirangaeaPontePequena–vermapadaspáginas34e35.NessamesmaintervençãofoirealizadooaterramentodepartedavárzeadoCarmoondefoi instaladoumjardimconhecidocomo“ilhadosamores”.Entretanto,asinundaçõesetransbordamentosdoTamanduateícontinuaram.(MATTES,2001)

ApartirdofinaldoséculoXIXecomeçodoséculoXX,ointeressedaselitesedopoderpúblicoeraequiparacidade,transformando-aemum centro moderno e civilizado, em oposição ao rural como imagemdoatrasoedoarcaico.Utilizandoalegislaçãocomoinstrumento,foramexpulsas do centro populações indesejadas como negros, prostitutas,“vagabundos”e“desocupados”.IssosealiavaaosinteressesdosagentesimobiliáriosinteressadosnasimensasáreaslivresdavárzeadoCarmo.Ocrescimentopopulacionalagravavaacondiçãodorioeepidemiassetornaram frequentes. Nesse momento, o conhecimento científico se esta-

4. OSEKI,JorgeH.eMAUTNER,YvonneM.M.,‘’OespaçodasredesdeserviçosemSãoPaulo’’p.13-20,inSinopses20,FAUUSP,SãoPaulo1993.

5. EssaobrafoicoordenadapeloengenheiroalemãoKarlAbrahanBresser,sendoquenãoháregistrosdamãodeobrautilizadanessaconstrução.

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beleciacomooresponsávelpelasoluçãodosproblemasdesaúdepúbli-ca.Apesardoavançonasdescobertasdamicrobiologia,autilizaçãodaideiade salubridadetevegrandeutilidadenasintervençõesrealizadasnasvárzeasdosriospaulistanos.Essediscurso,tornadoumaideologia,foimuitobemexplorado6pelomercadoimobiliário.7

Diante da continuidade dos problemas de salubridade nas mar-gensdoTamanduateí,foicriadaaCompanhiaParquedaVárzeadoCar-mo,financiadapeloBancoPortuguêsdoBrasil,comoobjetivodesanearasvárzeas.OcontratodeconcessãodeterminavaqueaCompanhiarece-beriacomopagamentopelasobrasumaparceladosterrenoslocalizadosemsuaredondeza,jádevidamentesaneados.(SANTOS,2011)Aobrafoiinauguradaem1922dandoorigemaoparqueD.PedroIIe,mesmosematingirosobjetivosdoprojeto,aspropriedadesdaregiãopassaramporintensavalorização.Mesmoantesdaconclusãodasobras,aCompanhiatratoudeparcelararegião,colocando-aàdisposiçãodomercado.Nofimdoempreendimento,aCompanhiahaviaobtidoenormecapitalizaçãodemais300%8.

OrioTamanduateíjánãocomportavamaisanavegaçãoeapescaencontrava-se prejudicada nesse rio desde meados do século XIX de-vido à poluição de suas águas. Da mesma forma, atividades como delavadeiras,extraçãodeareias,pedregulhoseargilasparaaconstrução,

6. “Varíola,cólera,febreamarelaetifoideetuberculoseerammoléstiascomumen-teencontradasnosbairrospróximosàsferrovias,noscentraisdeSantaIfigêniaeBelaVista,enosmédioscomoSantaCecília,VilaBuarqueeConsolação.OsrelatóriosdoServiçoSanitáriodeixamclaroqueoEstadoeoMunicípiopro-curavamredistribuiroespaçodacidademediantesuadivisãoemzonasfun-cionais,valendo-sedatopografiaacidentadaedograudesalubridadequeosterrenosproporcionavam.Médicoseengenheirosforneceramodiagnóstico.’’(SANTOS,2011,p.132)

7. SANTOS,FábioAlexandredos.DomandoÁguas,SalubridadeeocupaçãodoespaçonacidadedeSãoPaulo,1875-1930.SãoPaulo:Alameda,2011eROL-NIK,Raquel.ACidadeeaLei:legislação,políticaurbanaeterritóriosnacidadedeSãoPaulo,SãoPaulo:StudioNobel:Fapesp,2003.

8. SegundoFábioAlexandredosSantos,“osloteseramvendidoscomprazode10anosparaopagamento,sendoessencialmentedirecionadoaocomércio.Até19dejaneirode1928,quandoaCompanhiapublicouosvaloresalcançadoscomacomercializaçãodosimóveis,aempresahaviatotalizado7.536:329$000emvendas.Valeatentarparaesteresultado,mesmoqueparcialebruto,emcontra-posiçãoaoorçamentoinicialdaobradoparquedoCarmo,de2.276:705$386,apartirdoqualépermissívelsuporqueoempreendimentoresultounumlucrobrutoCia.ParquedaVárzeadoCarmonaordemde5.259:623$614(5mildu-zentosecinquentaenovecontosderéis)”.(SANTOS,2011,p.166)

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praticadasdesdeséculosanteriores,sofreramgrandediminuiçãocomacontaminação,proibiçãoecontroledousosdaságuasecomaposteriorprivatizaçãodavárzeadoCarmo.

AurbanizaçãodeSãoPaulopassavaaserelacionarmaiscomopro-cessodeproduçãoecirculaçãodemercadoriasecomaindustrialização.Aretificaçãodosriospassouaserumanecessidadehistóricarelacionadaaoprocessodedesenvolvimentoeconômicoesocialdecarátermoderni-zadoreprogressista.9Aatuaçãodopoderpúblicobuscouproveracida-decomascondiçõesnecessáriasaodesenvolvimentoindustrial.

OprojetoderetificaçãodosriosTietêePinheirosfoiempreendi-dopelaPrefeituraMunicipalepelacompanhiacanadenseLight & Power,respectivamente,abrindoumaenormepossibilidadedevalorização,nãosomentedasáreasdiretamenteenvolvidasedasáreasadjacentes,mastambémdavalorizaçãodacidadecomoumtodo.

Odebatequeaconteceunoâmbitopúblicoeprivado,nomomentodaimplantaçãodessasobras,envolveu,basicamente,questõesrelacio-nadasàapropriaçãoprivadadeinvestimentospúblicos,ouseja,comoedequeformaaconteceaincorporaçãodavalorizaçãoimobiliáriageradapelaprovisãopúblicadeinfraestruturas.(SEABRA,1994)

NoTietê,osplanosde intervençãonorioaconteceramnoâmbi-todaComissãodeSaneamentodoEstadodeSãoPaulo,aoestudaroregimedosriosdabaciadoTietê.Apartirdaextinçãodessacomissãoem1898ediantedaameaçadecrisesepidêmicas,diversasobraspon-tuaisforamrealizadasnoriovisandoaresoluçãodeproblemasdeinsa-lubridadeeobstruçãodocursodorio,comoasupressãodeilhasfluviaise alguns meandros a partir da construção de canais fragmentados noAnastácioeemOsasco10–vermapadaspáginas34-3511.

DuranteavigênciadaComissãodeSaneamentodaCapital,jáhaviaapreocupaçãodecomoamunicipalidadeseriaressarcidapelosinvesti-

9. SEABRA,OdetteC.DeL.,OsMeandrosdosRiosnosMeandrosdoPoder:Tie-têePinheiros–valorizaçãodasvárzeasdeSãoPaulo.Tesededoutoramento,FFLCH-DG/USP,SãoPaulo,1994.

10. NessaintervençãoailhadeInhaumasfoiremovidaapartirdaaberturadeumcanalde1.220metros.OcanaldoAnastáciotinha1.260metroseodeOsasco,620.TambémfoirealizadaadesobstruçãodeumacurvadoriopróximaaEs-tradadeFerroSorocabana.(MATTES,2001)

11. Esse mapa de 1926, realizado pelo Serviço Geográfico Militar, não mostraoprojetoderetificaçãoquefoiexecutadonorioTietê.Entretanto,oprojetoquefoiexecutadoémuitosimilaraoqueessemapaapresenta.

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mentospúblicosrealizadosemmelhoriaseproduçãodeinfraestruturas,propondopara issoacobrançade taxasdosproprietáriosde terrenosbeneficiados.NavigênciadaComissãodeMelhoramentosdorioTietê12,sobacoordenaçãodoengenheiroFranciscoSaturninodeBrito,foipro-postaumatributaçãoespecíficachamadaContribuição de Melhoria,comoformadesecobrarproporcionalmentepelavalorizaçãofundiáriacriadapeloinvestimentopúblico.SaturninodeBritopropôsumprojetoparaoTietêque,emtese,resolviaaquestãodascheiasedrenagemnesserio,alémdotratamentodeáguaparafornecimento13.Noentantoessasdis-cussõesnãoevoluírameosprojetosdascomissõesforamengavetados.(SEABRA,1994)

O projeto que foi colocado em prática no Tietê não resolvia porcompletoosproblemasdevazãodorioedrenagemdasvárzeas,aindaque as propostas de Saturnino de Brito indicassem que havia conhe-cimentotécnicopara isso.Aprefeiturarealizouamaiorpartedostra-balhos, desapropriando apenas as terras necessárias para o reposicio-namento do canal e, seguindo o Código de Águas de 1934, tornou-seproprietáriasomentedas terras referentesaoantigo leitodoTietê,ouseja,terrasfragmentadasdemeandrosabandonados.Esseprocessore-sultounanãoaplicaçãodecobrançasreferentesàvalorizaçãodeterraspelasobras,ficandoamunicipalidadesemqualquerressarcimentopelosinvestimentosrealizados.(SEABRA,1994)

AsvárzeasdrenadasdoTietêimplicaramnovasformasdeusodaterraelimitaramosusosdaágua.Esseespaçofoiincorporadoaoteci-dodacidadeapartirdasuaapropriaçãoporproprietáriosdeterrasdasvárzeas,gerandoganhosderivadosdeinvestimentospúblicos(SEABRA,

1994).Conclui-seque,no fenômenourbano,a formacomqueas condi-

ções gerais de produçãosãoimplementadasincluiasocializaçãodoscustosparasuaconstrução,aindaqueasvalorizaçõesprovenientesdesseinves-timentosejamapropriadasprivadamente.14

12. AComissãodeMelhoramentosdoRioTietêfoicriadaem1924.13. Os trabalhos da Comissão de Melhoramentos, coordenada pelo engenheiro

Francisco Saturnino de Brito, reconhecidamente, representou uma substan-cialavançonoconhecimentocientíficodosrios(especialmenteoTietê)edasvárzeas, realizando diversas medições e prospecções, calculando inclusive aquantidadedemetrosquadradosbeneficiadospelasobrasderetificaçãoparaacobrançadacontribuição.(SEABRA,1994)

14. “Nacidadecapitalistamodernacriam-secondiçõesgeraissociaisdeprodução,

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Ocasomaisemblemáticode intervençãoemriosdeSãoPaulotalvezsejaodorioPinheiros.Contandocadavezmaiscomapresençadoca-pitalestrangeiro,atravésdeempresasdeserviçospúblicos,acidadefoiequipadacominfraestruturascomoasredesdedistribuiçãodeenergiaelétrica,água,esgoto,gásetransporteporbondeentreoutras.

AThe São Paulo Tramway Light and Power Co Ltd,companhiadeservi-çosurbanosdecapitalinglêscomsedenoCanadá,começouaoperarnoBrasilnomomentoemqueaenergiaelétricaeotransportedemercado-riasetrabalhadoressetornavamessenciaisparaaproduçãoindustrial.A necessidade de fornecimento de eletricidade no processo de indus-trializaçãofaziacomquefossenecessárioproduzirágua15,ampliandoanecessidadedeapropriaçãoecontrolesobreosrios.Alémdacrescentedemandadacidadeporessesserviços,essasatividadesrepresentavamuma excelente oportunidade para a Companhia aumentar a capacida-dedeproduçãoevendadeenergiaelétricaetransporte.Dessaforma,osistemadaCompanhiacontava,jánoiníciodoséculoXX,comalgumasusinas16.(SEABRA,1994)

Em1907,orioGuarapiranga,formadordorioPinheiros,foirepre-sado,formandoarepresadoGuarapiranga.Ointuitoeraregularizarofornecimento de água para garantir o volume necessário ao funciona-mentodasusinasdosistemanosmesesdeestiagem.Apartirdaí,aLightcomeçaosestudosparaviabilizaraproduçãodeenergiautilizandoaságuasdorioTietêparaacionarumausinaemCubatão,futurausinade

oqueequivaledizerqueacidadetemqueserfuncionalàreproduçãocapita-listadariqueza.Nela,nenhumcapitalistaindividualconstruiráasuaprópriaestrada. A administração pública assumiu historicamente esses encargos deproduçãoedegestãodacidade,osquaisaparecemaoníveldofluxototaldariquezacomoumaracionalidadenecessáriadoprocessodereproduçãosocial.Subtrairdoshabitantesdacidadeorioeasvárzeas,pelacanalizaçãoedrena-gem,parausá-loscomocapitalsocial,comasobrasdeinfraestruturaviáriaquesesucederam,eraocaminhodasocialização.Umasocializaçãoquesedápeloladodaproduçãomaterialdariquezaqueintegraorioeasvárzeasaoscircuitosprodutivosdocapitalgeral,essencialmente,capitalprivado.Oriovaiserapro-priadocomvistasàproduçãodeenergiaeasvárzeascomoespaçodecirculaçãodemercadorias.”(SEABRA,1994,p.150)

15. VICTORINO,ValérioIgor.Luzepodernadramáticaconquistadomeionatural:Aprivatizaçãodosriospaulistanoseareflexividadesócio-ambiental.SãoPau-lo:TesedeDoutoramento,FFLCHUSP,2002-a.

16. OsistemadeproduçãodeenergiadaLightcontavacomausinadeParnaíba,quejáfuncionavadesde1901,alémdasusinasdePortoGóis,RasgãoeItupara-ranga.(SEABRA,1994)

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HenriBorden,aproveitando-sedodesníveldaSerradoMar.Paraisso,orioGrande,atualJurubatuba,outroformadordorioPinheiros,foire-presado, formandoarepresaBillings.SeucursofoidesviadoatéoriodasPedrasparaquedaísuaságuasfossemlançadasnaSerradoMaratéCubatão.AságuasdorioTietê,maiorrioemvolumedaregião,deveriamserconduzidaspelocanaldorioPinheiros,agoracomseusentidoinver-tido,garantindoassimovolumedeáguanausinadeCubatão.(SEABRA,

1994)

A ENCHENTE DE 1929

AformalizaçãodaconcessãoparaaexploraçãodessesistemapelaCom-panhiaLightaconteceuemummomentoemqueasleisqueregulavamautilizaçãodosrecursoshídricosnacidadeaindaerammuitoimprecisos.Aproveitandoumabrechanocontratodeconcessãoeexercendoforteinfluêncianopoderpúblico,aCompanhiaobteveodireitodepromoverasobrasnecessáriasparacolocarempráticaoseuprojeto.Essasobrascontavamcomacanalização,alargamento,retificaçãoeaprofundamentodos leitosdos riosPinheiros,GrandeeGuarapiranga,alémdadrena-gem,saneamentoebeneficiamentodosterrenossujeitosainundações.Emcontrapartida,aempresa,alémdecontarcomomonopóliodapro-dução,distribuiçãoevendadeenergiaelétricaetransporteporbonde,obteve o direito de desapropriar todos os terrenos que gozassem dasmelhoriasempreendidasporela,ouseja,osterrenos sujeitos a inundações,as várzeas.Assim,aempresapodiacobrarocustodobenefícioepartici-pardavalorizaçãodosterrenospromovidapelasobrasqueempreende-ria,feitoqueoGovernoMunicipalnãoconseguiuimplementarnomo-mentodaretificaçãodoTietê.AquestãoéqueessavalorizaçãoeramuitomaiorqueocustointegraldoinvestimentoqueaCompanhiarealizaria.(SEABRA,1994)

Abrechanaleideconcessãoestavajustamentenofatodenãohaverqualquermençãosobrequaisseriamaszonas inundáveis,ficandoindefi-nidasatéqueesseperímetrofosse,posteriormente,identificadocomosendoalinha da máxima enchente.(SEABRA,1994)

SegundoageógrafaOdetteSeabra(1994),aenchentede1929foiumaaçãoestratégicadevalorizaçãorealizadapelaLight.Apartirdeda-dos pluviométricos e de depoimentos e matérias de jornais da época,

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Seabraprovouqueaenchentede1929foiproduzidapelaLightapartirdaaberturadascomportasdesuasrepresascomaintençãodeaumentaroperímetrodasterrasaqueteriaodireitodedesapropriação,causan-doincalculáveisdanosàpopulaçãoribeirinha17.Dessaforma,percebe-sequeesseeventonãofoiprecisamenteumaenchente,massim,umainundação.(SEABRA,1994)

Osmapasdaspáginas40-41e42-43foramproduzidosatravésdasobreposição do arruamento, do curso original dos principais rios deSãoPauloedacota72418,cotadamáximaenchenteregistradaemfeve-reirode1929.Essaimagemnosmostracomoosriosrealmente“desa-pareceram” após sua canalização, sendo suas várzeas incorporadas aotecidodacidade.Apesardearepresentaçãodacota724nãonecessaria-mentecorrespondercomprecisãoaoperímetrodaenchentede192919,essaimagemrevelaabrutalidadedoprocessodeapropriaçãodaterraedaáguaemSãoPaulo.

Épossívelnotarnessesmapasqueaurbanizaçãodascotas infe-rioresesuperioresàcotadeinundaçãoapresentamalgumasdiferenças,principalmentequantoaoarruamento,loteamentoetamanhodoslotes.Aindaqueissosejaperceptível,praticamentenãohávestígiosdoespaçoantesdominadopelosriosemeandrosemsuascheiasperiódicas,espa-çosque,noiníciodaocupaçãodeSãoPaulo,eramconsideradosespaçosdeapropriação comum,deuso comum,eondeatualmentenãosepercebequalquerpermanênciadessesentidonosespaçosresultantesdessaur-banização–verfolhadoSaraBrasil,páginas38e39.

17. Nodia19defevereirode1929,diaemqueorioPinheirosatingiuseumaiornívelregistrado,cota724,representantesdaCompanhiaLight,daPrefeituraeengenheirosdaEscolaPolitécnica, trataramdemedireregistraroficialmenteessacota,determinandoassim,operímetrodaenchente.(SEABRA,1994)

18. Paraaconfecçãodessemapa,oarruamentodacidadefoiobtidonoGEOLOG,disponívelnoCESADdaFAUUSP,eocurso“original”dos rios,noMapadasChácarasdeSãoPaulo,partedoacervodoMuseuPaulistadaUSP.SomenteosriosPinheiroseTietêaparecememseuestadooriginaleoTamanduateíjáapresentaalgumasretificações.Acota724nãoaparecenoGEOLOGeassimfoiobtidanoMapaDigitaldaCidade-MDC,disponívelnositedaPrefeituraMunicipaldeSãoPaulo.

19. Issoacontecedevidoamodificaçõeseobrasdeaterramentoquetransformamoperímetrodacota,comoporexemplooaterrodoParqueVillaLobos,nazonaoeste,quenãoexistianaocasiãodaenchente.Acotadaenchentefoiobtidacomreferêncianoníveldomarsendoquenessaépocaosequipamentosdemediçãojáerambastanteprecisos,oquegarantequeacota724aferidaem1929éprati-camenteamesmadoMDC.

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Apartirdaenchente,iniciou-seumabatalhapelodireitodepropriedadedasvárzeasdoPinheiros,comdisputasjudiciaisquedurariamdécadaseterminariamcomatotalidadedosterrenossobapropriedadedaLight.Nemmesmooutrasgrandesempresasdeserviçosurbanos,queopera-vamemSãoPaulonomesmoperíodo,foramcapazesdepararaCompa-nhia.Mesmoamunicipalidadeque,emdiversasocasiões,questionouavalidadedaconcessão,nãoobtevesucesso,sendo,inclusive,processadapelaCompanhiapelocustodobenefícioqueasobrasnoPinheirosoca-sionaramemterrasdepropriedademunicipal.

Já na metade do século, a cidade sofria com o abastecimento deenergia deficitário, sendo necessária a adoção de medidas de raciona-mentonarededaLight.Apósaentregadocanalparaaadministraçãopúblicanadécadade1960,terrenosdaLightnovaledoPinheirosco-meçaramaserdesapropriados20paraainstalaçãodosistemaviáriodeavenidas,alçaseponteshojeexistente.EssesprojetoscomeçaramaserexecutadoscomrecursosdoBancoMundial.

ApósaconclusãodostrabalhosderetificaçãodosriosTietêePi-nheiroseoaumentodaáreaurbanizadanassuasbacias,acidadepas-souaenfrentarfrequentesinundações,passandoaseresseofocodasatençõesnasatuaçõesdopoderpúblico.Diversasobraseprojetosforampostosempráticanasdécadasseguintes,muitasdelasfinanciadosporbancosinternacionaiscomapresençadetécnicosestrangeiros,revelan-doqueacidadeeaproduçãodacidadejáintegravamumaesferainter-nacionaldeinvestimento,produçãoereproduçãodocapitalfinanceiro,játotalmentedescoladasdarealidadedosrios.(SEABRA,1994)

AsobrasrealizadasnosriosTamanduateí,TietêePinheirosforamresponsáveis por suprimir esses rios da cidade, estruturando seus es-paços21 e transformando a relação da população da cidade com essesrecursos.

OprocessodecanalizaçãodosriosdeSãoPaulomostraaimpo-

20. ParaSeabra,“ainvestidadopoderpúblicosobreaspropriedadesdaLight,eassua resposta quase que automática de se desfazer das propriedades, ocorreucomumarapidezassustadoraeissoseexplicaria,aoqueparece,porquenesseperíodofoinotóriaaascensãoeconômicaepolíticadeempresasconstrutorasasquaisimpuseramsualógicaaoprocesso.”(SEABRA,1994,p.254)

21. FRANCO, Fernando de Mello. A Construção do Caminho: A estruturação dametrópole pela conformação técnica das várzeas e planícies da Bacia de SãoPaulo.SãoPaulo:TesedeDoutoramento,FAUUSP,2005.

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siçãodeumalógicaquenãosóbuscavaareproduçãodasempresasca-pitalistas, mas também buscava capitalização através de expropriação.“Aformaçãodecapitalsóserealizapelaexpropriaçãodecondiçõesdeprodução,pelaextorsãodetrabalhosocial“àmargem”dasleisderepro-dução.”(SEABRA,1994,p.259)

“Nãotemvolta.Assimcomootrabalhofoisocializado,produ-ziu-seumadimensãosocialdoespaçoquelheéconsentânea.Oespaçodasociedademodernadocapitalismosintetizaumtempohistóriconoqualháabsolutodomíniodogeralsobreoparticulardoabstratosobreocorpóreo”.(SEABRA,1994,p.268)

Conclui-sequeasobrasnosriosdeSãoPaulosomentepuderamserrea-lizadasnomomentoemqueapropriedadedaterraedaáguaadquiriramumaforma econômicadefinidasemaqualnãopoderiamserinseridosnoprocessodevalorizaçãodoespaçoatravésdaobtençãoderenda.

Entretanto, a história da canalização dos rios Tamanduateí, Tie-têePinheiroseasupressãodassuasvárzeasnãoexplicitaoprocessoquetransformouosriosdeSãoPauloderecursosnaturaisemrecursoseconômicos.Essasobrasaconteceramemummomentoemqueosrios,suasterrasesuaságuasjáestavamdominadosprivadamente.Ousodosriosestavamcomprometidosepraticamentenãoexistiammaisformasde subsistência pelos rios22. A água para ingestão era vendida atravésdo serviço de distribuição encanado, pago em mensalidades, e já nãoeramaispossívelencontraráguagratuitaemchafarizesnemingeriraságuaspoluídasdosriosecórregosdacidade.Aindaqueasvárzeasnãoestivessem ocupadas, esses espaços já possuíam proprietários legal-menteestabelecidos.Dessaforma,naocasiãodarealizaçãodasobrasderetificaçãoecanalizaçãodosriosTamanduateí,TietêePinheiros,terraeáguajáestavamincorporadasaosprocessosprodutivosedeurbaniza-ção.Jáeram,portanto,mercadorias.

22. Ainda que se saiba que durante boa parte do século XX existiram atividadescomoapesca,adragagemdeareiaepedregulhoparaconstruçõeseofuteboldevárzea,elastenderamaacabarcomaurbanizaçãodessasáreas.SEABRA,OdetteC.DeL.,OsMeandrosdosRiosnosMeandrosdoPoder:TietêePinheiros–valorizaçãodasvárzeasdeSãoPaulo.Tesededoutoramento,FFLCH-DG/USP,SãoPaulo,1994.SEABRA,OdetteC.deL..Urbanização:bairroevidadebairro,inTravessiaSãoPaulon.38p.11-17,2000.

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ParaexplicitaroprocessodeincorporaçãodosriosdeSãoPauloaopro-cessodereproduçãocapitalista,estapesquisaseestruturanasseguintespartesecapítulos:

Aprimeiraparte,quecontémostrêsprimeiroscapítulos,caracteri-zaacondiçãodosriosdeSãoPaulodesdeasuafundaçãonoséculoXVIatéoiníciodoséculoXIX,enfatizandoatransformaçãodasatividadesrelativasaosrios,àságuaseàsvárzeaseasuarelaçãocomoestadodaeconomiadeSãoPauloeascondiçõesimpostaspeloprocessodecolo-nização.

O primeiro capítulo apresenta a origem do que se caracterizoucomobem comumesuarelaçãocomodesenvolvimentosocialeeconô-micodeSãoPaulo,envolvendoaapropriaçãoprivadadosentãoespaços de uso comum.Osrioseaágua,contidosnasdatasdeterra,secaracteriza-vamcomopartedessepatrimônio comum,sendo,numprimeiromomen-to,usufruídoscomoriquezaequedepoispassaramaserincorporadosaosprocessosprodutivos.Aprincipalcaracterísticadosriosedaáguanessemomentoéouso,quepassaaserintermediadoportrabalhocativoesubmetidoàterrapelaausênciadequalquerregraparasuautilização.Nomomentoemqueaeconomiapaulistaerapoucodesenvolvida,osriosecórregosdeSãoPauloeramrecursosrelevantesparaasubsistênciadapovoação,sendoapropriadosetransformados.

Osegundocapítulocaracterizaasobrevivênciadotrabalholivredeartesãosnasociedadeescravocratapaulista,comabaixaespecializaçãodeatividadesurbanas.AtransformaçãodessecenárioaconteceapartirdadescobertadeouroemMinasGerais,GoiáseMatoGrosso,quandoSãoPauloapresentaalgumincrementopopulacionalecomercial,favo-recendoapermanênciadeconstrutoresnavilaeumleveincrementonaatividade da construção. Nesse contexto foi instalada a primeira redede condutos de água de São Paulo, um sistema extremamente precá-rioe insuficiente,baseadonainstalaçãodechafarizesebicas.Otextobuscacaracterizarosmateriaiseamãodeobrautilizadanesseprimei-ro sistema e compreender o seu significado dentro da economia e docontextoondeasformasdeapropriaçãodotrabalhosetransformavama partir do avanço na divisão do trabalho. Os despejos de dejetos norioTamanduateíproporcionavamosprimeirossinaisdepoluiçãodesserio,eaprecariedadeeinsuficiênciadosistemadedistribuiçãofaziacomqueaáguanãochegassenosseusdestinos,gerandoumainfinidadedeconflitosentremoradoreseasinstituiçõesmunicipaiseeclesiásticas.A

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inexistênciaderegrasclarassobreousodosriosedaáguapossibilitavaa livre interpretação das formas de sua apropriação, como um reflexodasregrasparaaapropriaçãodaterra.EssaslutaspelocontroleeposseindividualdaáguamarcaramofinaldoséculoXVIIIeocomeçodoXIXemummomentoemqueamunicipalidadeseorganizava.AposiçãodaCâmaradiantedessesconflitososciloudiantedadefesadobem comumeasujeiçãoainteressesparticulares.Apresençadeengenheirosenvol-vidosemobrasdeinfraestruturaemmeadosdaprimeirametadedosé-culoXIXrepresentouoiníciodahegemoniadessadisciplinaemobraspúblicasaindaque,nessemomento,aproduçãodecondiçõesgeraisnãoseviabilizassem.

NoterceirocapítulosãocaracterizadasasatividadesrelativasaosriosdeSãoPaulocomoapesca,acaçaealavagemderoupas,edepe-quenoscomercianteseadistribuiçãodeáguapelosaguadeiros.Apro-fundou-searelaçãodessasatividadescomtransformaçõesnasformasdeapropriaçãodosriosedaságuasatravésdotrabalho.Asatividadesque envolviam os rios e que se caracterizavam pela extração direta eutilizaçãosemmediaçõesdaáguaedosfrutosdoriodeterminavamouso comoaprincipalcaracterísticadosrios.Essasatividadespassaramacomportaratroca,possibilitandoaobtençãoderendaparasubsistên-cia.Emalgumasdessasatividades,asimplestrocadevíveresporvíverespassouaserintermediadapordinheiro,aindaqueafinalidadeúltimadessatrocasejaasubsistênciaenãoageraçãodemaisdinheiro.Nessescasos,osmeiosdeprodução, istoé, terraeágua,aindapertenciamaoprodutordireto,diferentedotrabalhocativoondeoprodutordiretoeraalienadodosmeiosdeprodução.Aindaqueessastransformaçõesnãoimplicassemgrandestransformaçõessociaiseeconômicas,elasconferi-ramàáguaacondiçãodeprodutodotrabalho,ouseja,mercadoria.Issoacontecenomomentoemqueacidadepassavaporproblemasdeabas-tecimentodeáguaedespejosnosrios,comprometendodiversasdessasatividades.

Asegundaparte,apresentadaemdoiscapítulos,caracterizaa re-laçãoentreastransformaçõessociaiseeconômicasocorridasduranteoséculoXIXcomoprocessodeurbanizaçãoeasuarelaçãocomaprodu-çãodoespaçoapartirdavalorizaçãofundiáriaobtidaatravésdaprovi-são de infraestruturas urbanas, modificando profundamente a relaçãodacidadeedeseushabitantescomosrioseaságuasdeSãoPaulo.

O quarto capítulo é dedicado ao aprofundamento das transfor-

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maçõessociaiseeconômicasdecorrentesdaculturadocafé,apartirdaproibiçãodotráficodeescravos,iníciodaimigraçãoedaLeideTerras.Essastransformaçõesmudaramosignificadodaaplicaçãodecapitalnoescravo,implicandoacapitalizaçãodapropriedadeterritorial.Amaciçaimportaçãodemãodeobraeuropeiaparatrabalharnaslavourasdecaféfoiprecedidadaformalizaçãodapropriedadefundiáriaque,apartirdis-so,nãotinhamaisqualquerrelaçãocomaefetivaposseeocupaçãodaterra.Issofezcomqueoprodutordireto,previamenteexpropriadonaEuropa,continuasseexpropriadodosmeiosdeprodução,mantendo,deoutraforma,asrelaçõesdoperíodoescravocrata.NacidadedeSãoPauloessasmudançasimplicaramaalienaçãodasterrasdeusocomum,pri-vatizadasapartirdeinteressesefavorecimentospolíticospelospoderesmunicipal e provincial. As terras de uso comum, que continham os rios,foramprivatizadasoutransformadasempropriedade municipal,passando,terraeágua,aserconsideradasmercadorias.Entretanto,aáguadosrios,mesmoquesemterra,continuavamaserconsideradasumbemcomum.Dainexistênciadequalquermençãoàágua,asleispassamacontrolarosrioseespaçosdaágualimitando,impedindoeinviabilizandooseuuso.Aausênciaderepresentaçõescartográficasqueregistrassemaalienaçãodopatrimôniocomum,reforçaessaargumentaçãoapartirdoredesenhodoMapadasChácaras.

Oquintoeúltimocapítuloaprofundaastransformaçõesfísicaseespaciais da cidade de São Paulo, principalmente os aspectos relacio-nadosàáguaeaosrios,apartirdosdesdobramentosdaculturadocafénointeriordaprovíncia.Nomomentoemqueacidaderecebiaenormesmassasdetrabalhadoreseuropeuseaáreaurbanizadaaumentava,en-saiavam-senovasformasdeapropriaçãodotrabalho,apartirdaaboli-çãodaescravaturaedoestabelecimentodotrabalhoassalariado.Aapli-caçãonaterra,cadavezmaisconsideradaumnegócioseguro,passavaapropiciaraobtençãoderendaemdinheiro, implicandoocrescimentodomercadodeproduçãodemoradiaparaaluguel.

Apoluiçãodosrioseaprecariedadedasredesdeáguaeesgotosculminaramnofimdasubsistênciapelosrios,fatoque,nessemomento,auxiliavaoprocessosujeiçãodotrabalholivreaocapital.AfixaçãodocapitalcafeeironacidadefezSãoPauloflorescer.Aschácarasaoredordacidadeeramloteadaseocentrorecebeudiversasmelhoriaseembeleza-mentos.Asdeficiênciasnoabastecimentodeáguaeesgotopassavamaameaçarotrabalhadorapartirdeepidemias.Seafunçãodacidadepas-

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savaserareproduçãodecapital,serianecessárioresolveroproblemadaáguaemSãoPaulo.Aproduçãodeinfraestruturasurbanaspassavaaserumempreendimentorentável.NessecontextosurgeaCompanhiaCan-tareiradeÁguaseEsgotos,responsávelpeloestabelecimentodasredesdeáguaeesgotodeSãoPauloapartirdacaptaçãodaságuasdaserradaCantareira.MuitopoucofoiregistradosobreamãodeobrautilizadanasobrasdecaptaçãodaságuasdaCantareira.Entretanto,essestrabalhostiveramaparticipaçãodiretadeengenheirosingleses,bemcomoautili-zaçãodemateriaisimportadosdaInglaterra.ComofimdaCompanhiaesuaencampação,foicriadaaestatalRepartiçãodeÁguaseEsgotos.AatuaçãodessasduasempresasfoiresponsávelpelofimdaofertadeáguagratuitanacidadedeSãoPaulo.

AsredesdeáguaeesgotodeSãoPauloforamconcluídasem1883,simultaneamenteadiversasoutrascidadesdomundo,oquerevelaqueaproduçãodecondiçõesgeraisfoiumfenômenoqueaconteceuaomes-motempoemtodoomundo.Issomostraqueavalorizaçãofundiáriaatravésdaprovisãodeinfraestruturasurbanassemundializava,jáestan-do,portanto,suaprodução,muitodistantedarealidadedosrios.

32rioTamanduateí,1910,VicenzoPastore(fonte:InstitutoMoreiraSales)

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34

COMMISÃODESANEAMENTODOESTADODESÃOPAULOSECÇÃODOTAMANDUATEHYPLANTAEPERFILDOCANALDOTAMANDUATEHY

1893

ComissãodeSaneamento

EscalaGráfica

36

PLANTADORIOTIETÉENTREOSASCOEPENHAlevandada,desenhadaeimpressapeloSERVIÇOGEOGRAPHICOMILITAR1926PorcontadaPrefeituradeS.PauloESCALA1:10.000

1926

ServiçoGeográficoMilitar

1:10.000

38

MAPPATOPOGRAPHICODOMUNICíPIODESÃOPAULOExecutadopelaemprezaSARABRASILS/A,pelométodoNistrideaerophotogrammetria,deaccordocomocontractolavradoemvirtudedaLeiNo3208de1928,quandoPrefeitooSNR.DR.JOSÉPIRESDORIO.sendoDirectordeObrasoengenheiroARTHURSABOYA.1930ESCALA1:5.000FOLHA37

1930

SãoPaulo-Município-SaraBrasilS/A

1:5.000

40

PLANTADACIDADEDESÃOPAULOrepresentaçãodonívelmáximodaenchentede1929(cota724)sobreaestruturaurbanadacidadede2014

2016

Gouvêa,JoséPaulo

EscalaGráfica

42

PLANTADACIDADEDESÃOPAULOrepresentaçãodonívelmáximodaenchentede1929(cota724)sobreatopografiaeestruturaurbanadacidadede2014

2016

Gouvêa,JoséPaulo

EscalaGráfica

PARTE I - USO DA áGUA, SUBSISTêNCIA E TRABALHO

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CAPíTULO 1 - BEM COMUM, áGUA E TRABALHO

Oprocessoemquefoiconstituídoopovoamentoquedeuorigemàci-dadedeSãoPaulo,nasdescriçõesedocumentoshistóricos,revelacertadespreocupação quanto à definição de espaços que hoje entendemoscomo públicos. De fato, a designação de espaços como terras realengas, áreas de uso comum, patrimônio do Conselho, termoerocio,parecemnãofazerqualquersentidoatualmente.Essaindefiniçãopareceestarrelacionadaaofatodeque,quandosetratadaapropriaçãoedomíniodoespaço,sãoasterrascujaapropriaçãoéprivadaqueimportam,independentementedocaráterjurídicoqueaslegitime.Essadesconsideraçãoquantoàdefi-niçãodeumespaço comum,públicoe,paralelamenteaisso,aclaraneces-sidadedese instituirodomínioprivado,acabaramporengendrarumespaçoemquesevêclaramenteodesenvolvimentodeumprocessodesobreposiçãododomínioparticularsobreodomíniocomum.

Ao definir o que são os domínios privados, o que aparece comopretensa necessidade comum é o acesso e a comunicação entre essesdomínios, instituindo-se assim, o traçado de caminhos e ruas. Dessaforma,adescriçãodapropriedade,expressanadefiniçãodoslimitesdolote,bastavaparagarantir,decertaforma,aorganizaçãodopovoamen-to.23

23. ROCHA,AngelaMaria.Espaçopúblicoeapropriaçãodoespaço:notassobreaevoluçãohistóricadeSãoPaulo.SãoPaulo,:Mimeo,1995.

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Pode-sedizerqueesseprocessodeapropriaçãosemanifestatambémnocaráterdorelacionamentoqueseestabeleceentreosindivíduos,atravésdamediaçãodeacessosedecaminhos,enãodeumespaçoemquesepossaexercerosentidopúblico,espaçodamanifestaçãodasaspirações comuns,quevaimuitoalémdamanifestaçãodasnecessidades comuns.

Osdebatessobrequestõesdeinteressedoconjuntodosmorado-resaconteciam,geralmente,àsaídadamissa,emfrenteàigreja,fundin-dooespaçodedomínioreligiosocomoespaçodosassuntospolíticoseadministrativos.Nosprimeirosanos,nãosecontavacomumlugarade-quadoparaquesereunissemosmembrosdoConselho.AcasaondeaCâmarasereuniaeraprecária.Mesmoaforca,consideradaumelementosimbólicododomíniodacoroa,nãoeramantidaadequadamente.Paraamanutençãodecaminhosepontes,solicitava-seoauxíliodosmorado-res,quecediamescravosparaaexecuçãodetrabalhos.(ROCHA,1995)

Mesmoosserviçosdestinadosaoconjuntodapopulaçãopareciamestar relacionados apenas ao atendimento das necessidades das pro-priedades individuais,nocaso,caminhos,ponteseviasdeacessoaosdomíniosprivados.

Nosprimeiroscemanosdavila,aprópriamanutençãoeordenaçãodoconjuntoedificadoeaedificaraparecemcomodecorrênciadatopo-grafiadavilaedosmurosqueacercavam,denotandoaprevalênciadosentidodedefesasobreosdeorganizaçãosocialeespacial.Eracomumque moradores se aproveitassem dos muros para compor sua própriamoradia, não havendo qualquer questionamento sobre sua implanta-ção.(ROCHA,1995)

Édessaformaqueseentendiaeerapraticadoaquiloque,naépoca,sedesignavacomobem comum,equeseaproxima,masnãoseconfun-decomoquehojeconhecemoscomopúblico.EmSãoPaulo,aideiadaexistênciadeumbem,umpatrimônio queécomum,istoé, de todos,éumconceitoqueexistiumasquepareceterdesaparecidojuntocomessesespaços.Essasáreas“deveriampermanecerlivresdaapropriaçãopriva-da,paraseremusadasporqualquerumquedelasnecessitassem,abertas a todos e a ninguém em especial”24

Emcontraposiçãoaessaformadetratarosespaços,acolonização

24. BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição: urbanização, propriedadedaterraecréditohipotecárioemSãoPaulonasegundametadedoséculoXIX.2007.TesedeDoutoradoapresentadaaoDepartamentodeGeografiadaFFL-CH-USP,2007,p.57.

49

castelhana,porexemplo,fundadanospreceitosdefinidospelasleisdasíndiasquantoaotraçadourbano,compreendia,porsuaprópriaexistên-cia,aconsideraçãodeumpoderquetranscendiaoindivíduonaconsti-tuiçãodosespaços,capazdedelimitarosinteressesparticulares,aindaqueemfavordeinteressesoutros,nãonecessariamenteoscomuns,oupúblicos.(ROCHA,1995)

Osespaçosdestinadosaousocomumtinhamimportâncianaime-diaticidade da vida cotidiana da povoação. Sua denominação variouconformeosperíodoshistóricos:rocio,terrasrealengas,patrimôniodoConselho,entreoutros.Essesespaçosdedomíniocomumincluemterra e água,alémdetodososmeiosdesubsistêncianelesencontrados.

OsapelosdoConselho25,futurasCâmarasMunicipais,quantoàsdemandasdeinteressepretensamentecomumparecemnãoterencon-trado grande respaldo entre os moradores. Visto que não se percebe,nessascondições,aexistênciadeespaçoscomunais,sejamelescamposdepastagem,matas,rios ou várzeas,quepossamterevoluídoparaespa-çosondesemanifestaessacondiçãodebem comum,ouseja,deespaçosquepertencem,aomesmotempoqueservem,atodooconjuntodemo-radoresondeosentidodominanteéodousodessesespaçosedosre-cursosnelesexistentes.Oqueprevaleceu,aparentemente,éumsentidodeindividualismoquetransformouanaturezaeseespacializounoqueentendemos como um processo que, de partida, se mostrou extrema-mentecontraditório.

Esseprocesso,quecorrespondeàapropriaçãoprivadadosespaçosdedomíniocomum,ouseja,suaexpropriação,incluiaprópriadeteriora-çãodessesbens.

ORIGENS DO ROCIO E DA ORGANIZAÇÃO MUNICIPAL

AparceladeterrasquesesubmetiaàadministraçãodaCâmarateve,his-toricamente,umtratamentodiferenciadosecomparadaaotratamento

25. SegundoLúciaSimoni,adesignaçãoConselho,“comotempo,passouadeCâ-maraouSenado da Câmarae,maistarde,Câmara municipal”(SIMONI,LúciaNoe-mia.OarruamentodeterraseoprocessodeformaçãodoespaçourbanonoMunicípiodeSãoPaulo:1840-1930.SãoPaulo,TesedeDoutoradoFAUUSP,2002)

50

dadoàsterrasrurais26.Desdealegislaçãocolonial,essasterrasganha-ram,nodecorrerdosséculos,umcaráterdifuso,deformaque“expres-sõescomobens do Conselho,rocio,termoeárea de uso comumnãotiveramseus conteúdos claramente estabelecidos” (GLEZER, 1992). No Brasil,noperíodocolonial,eracomumatribuiràsvilasecidadesumaporçãodeterrasdenominadatermo.SobreessaáreaaCâmaraexerciasuajurisdi-ção,istoé,essaáreaequivaleriaaoqueatualmentechamamosde“limitedemunicípio”.Alémdotermo,ascidadesevilascontavamcomorocio27.Aorigemdaexpressãorocio,serefereà

“[...] área destinada ao uso comum, e só podia ser doada paramoradiaouaforada,poiseraparteintegrantedosbensdoCon-celho.Nodecorrerdosséculos,de‘terrasdeusocomum’,ros-siosetransformounaáreadecontrolediretodaCâmara,comosefosseotermo,comoaparecenostextosdosanosseiscentos[...]”(GLEZER,1992,p.136)

Aformadeobtençãodeterrasparapropriedaderural(assesmarias) eparaapropriedadeurbana(asdatas de terra)eradistinta.Assesmariaspode-riamserobtidasparaexploraçãoporumatodo rei, feitodiretamenteporeleouporumdonatário,mediantealgunsrequisitosdosolicitante,comosituaçãosocialefinanceira.JáasdatasdeterraeramcedidaspelaCâmara,instânciadepoderlocalquepodiaconcederterrasparamoradiaeexploração.Essaconcessãopoderiaacontecergratuitamenteouatravésdoforo,quesignificavaumpagamentoatravésdepartedeseusrendi-mentos.Oscritériosparaaconcessãodedatasdeterraerabaseadananecessidadeenapobrezadosolicitante,nofatodestemorarnavilaounatrocadefavorescomaCâmara,entreoutros.Oschãos de terra,comotambémeramconhecidasasdatas,eramcedidasaquemassolicitasse(GLEZER,1992).Estandosubmetidasaopoder local,asdatasdeterratambémestiveramsobodomíniodosinteresseslocais,servindocomo

26. GLEZER,Raquel.Chãodeterra:umestudosobreSãoPaulocolonial.SãoPaulo:LivreDocência,FFLCH-USP,1992.

27. SegundoMônicaSilveiraBrito“éimportanteressaltarqueorociodeumavilaoucidadenãodeveserconfundidocomotermo,emgeralcom6léguasderaio(cercade40km),queeraaáreade jurisdiçãodoConselho.Otermo incluía,alémdorocio,propriedadesparticulares(terrasjádoadasemsesmarias)eter-rasdesocupadasoudevolutas,quelegalmenteseconstituíamempropriedadedoGovernoCentralouProvincial”.MARX,Murillo.CidadenoBrasil:Terradequem?SãoPaulo,Edusp/Nobel,1991apud.BRITO,2007,p58.

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umeficiente instrumentodenegociaçãopolíticae influenciandodire-tamente a forma pela qual as áreas de uso comum eram percebidas eutilizadas.

Dessaforma,épossívelentenderqueasdatasdeterraerampor-çõesdeterraurbanaquefaziampartedopatrimôniodoConselho,ouseja,asterras de uso comum,orocio.NocasodacidadedeSãoPaulo,asexpressõesquedesignavamessesespaçosforamsetornandoindistintasequasesinônimas.Nãosomenteasexpressõesforamsefundindomastambémessesespaçosforamseconfundindocomotermo.

Comrelaçãoaessepatrimônio,noqueserefereaospadrõesqueforamadotadosnoBrasil,podemosentendersuasatribuiçõesatravésdacartadeconcessãoedemarcaçãodorociodeSãoPaulo,de1598:

“[...]pararossiodestadittavilaparacazaseparagadoeparatudoaquilloqueopovotivernecessidadedasquaisterrasellesditosofficiaesasdarãodesuamãoparaoquebemlhesparecer[...]”.(GLEZER,1992)

O rocio, portanto, destinava-se ao atendimento das necessidades dosmoradores,sendoelasdeordemurbanaourural,servindoparaconstru-çãodecasas,aberturadechácaras,pastagens,criaçãodeanimais,plan-tações,pomaresetambém,fundamentalmente,paraobtençãodeágua,parapesca,caça,coletaedemaisusosrelacionadosàterraeàágua.

AorganizaçãomunicipalnoBrasil,comounidadeadministrativa,tevesuaorigemnaorganizaçãodoEstadoportuguês,noiníciodoséculoXVII,atravésdasOrdenações Filipinas,aplicadasnametrópoleeemsuascolônias.Essaordenaçãovigorou,defato,noBrasil,atémeadosdapri-meirametadedoséculoXIX.

De acordo com Murillo Marx, as Ordenações Filipinas28 diziamqueaelevaçãodeumapovoaçãoàcategoriadevilaoucidade

“[...] significava atribuir à mesma uma jurisdição, que se es-tendia por um território denominado termo, além de direitose distinções, sempre de acordo com o especificado no foral,

28. SegundoAfonsodeTaunay,oCódigoFilipinoera“olivrobásicoporondeseregiaasociedadepaulistanaquinhentista.Eraemobediênciaàssuasdetermi-naçõesqueaedilidadedaViladePiratiningacompreendiaumjuizordinário,doisvereadoreseumprocuradordeConcelho,assistidosdealmotacelealcai-de.”(TAUNAY,2003,p.32)

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regulamentorégioquedeterminavaacriação/elevaçãodeumavilaoucidadeeregulavatodososassuntosconcernentesasuaadministração,assimcomoaosdireitoseobrigaçõesdeseusmoradores”.(MARX,1991)

Aadministraçãodessesnúcleos,segundoMônicaSilveiraBrito,erares-ponsabilidadedoConselho,queacumulavafunçõeslegislativas,judiciá-rias,militaresetributárias,eera,emsuamaioria, “composta por cidadãos eleitos entre e pelos chamados “homens bons”.”(BRITO,2007,p.56)

OConselhotinhaumpatrimônioquecorrespondiaaumaexten-são territorial, o rocio, que era geralmente determinado por uma áreaderaiodemeia-légua,ou3.300metros29,emtornodaáreacentraldapovoação.Essasterrasdeveriamatender,basicamente,atrêsfunções.

Aprimeiraéqueelasdeveriamserconcedidasaosmoradoresatra-vésdascartasdedata.Atravésdesseinstrumentoeramdistribuídas,me-diantesolicitaçãodosinteressadoseacritériodosoficiaisdoConselho,extensões territoriaisdorocio,dedimensõesvariadas,deacordocomosusosefinalidadesapresentadospelossolicitantes.(BRITO,2007)EmSãoPaulo,emgeral,asdatasparaedificaçãodecasa e quintaltinhamdi-mensõesmenoreseeramconcedidasgratuitamente.Jáasterrasdesti-nadasàlavouraecriaçãoerammaioresegeralmenteeramconcedidas30medianteopagamentodeforosoulaudêmios31.

Asegundaformadeconcessãoera

“[...]adeofereceráreasquedeveriamservircomologradourospúblicos,istoé,camposdeusocomumdosmoradores,queosutilizavamparapastagem,retiradademadeira,abastecimento de água junto a nascentes;serviamtambém,quando à margem de rios

29. Até a adoção do sistema métrico, Brasil e Portugal utilizavam a légua comounidadedemedida.Entretantoessamedidanãoeraamesmanosdoispaísessendoaléguaportuguesaiguala6.179,74menquantoaléguaBrasileiramede6.600m.Assim,segundoIracidelNerodaCosta,noBrasil,1légua=3000braças = 6.000 varas = 30.000 palmos = 240.000 polegadas = 660.000centímetros=6.600metros.(fonte:FEA-USP)

30. SegundoMônicaSilveiraBrito,“avalidaçãodasconcessõesdependiadocum-primentodecertasobrigaçõesemprazopredeterminado,comoadesedaroalinhamentoeconstruiroudeseestabelecerculturaoucriação,ficandosujeitasàpenadecomissoquandonãocumpridasascláusulasimpostasnocontratodeconcessão.”(BRITO,2007,p.57)

31. Olaudêmioéumataxaqueincidesobretransaçõescomescrituradefinitivadecompraevendadeterrenos.

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ou ribeirões, para bebedouro de animais, lavagem de roupa, retirada de barro e areia para edificações;alémdisso,eramtambémconside-radoslogradourospúblicosasestradas,caminhosepassagens.Todasessasáreasdeveriampermanecer livresdaapropriaçãoprivada,paraseremusadasporqualquerumquedelasnecessi-tassem,abertasatodoseaninguémemespecial”(BRITO,2007,p.57).

Portanto,essasáreasnãocorrespondiamexatamenteaoconceitodees-paço públicoqueexisteatualmente.Eramespaços de uso comum.Entretanto,aperenidadeegarantiadeusodessasterrascomoáreasdeusocomumeramestabelecidaspelafrequênciaeintensidadedesuautilização,oqueacabavaporconferiraessasterrasacondiçãojurídicadeservidão.Comogeralmenteáreasdestinadasàservidãonãoeramrespeitadas,tornou-secomumqueessasterrasfossemcercadaspassando,dessaforma,aodo-mínioprivado.(BRITO,2007)

AterceiraéqueoConselhodeveriagarantirquenessasterrasexis-tissemlocaisdestinadosàconstruçãodeedifíciospúblicos32comofor-madegarantiroestabelecimentodapovoação.

Éimportanteperceberqueessasformasdeconcessãoparticularsereferiamunicamenteàterra,permanecendoaáguadestinadaexclusiva-menteaousocomumsempossibilidadedeconcessãoparticularaindaque fossepossívelcercarumafontequeestivessedentrodeumadatade terra.Nãohaviamençãooficial sobrecomoaságuasdoscórregos,fonteseriosdaviladeveriamsertratadas,restandoparaissoainterpre-taçãoindividualdasregrasquedeterminavamaconcessãodeterras.Aáguaestava,portanto,submetidaàterra.Haviaapenasumaconsciênciacomum que determinava que as águas deveriam estar sempre livres edesimpedidasparaservirosmoradoresdavila.

As áreas de uso comum tinham um importante significado eco-nômicoparaoConselho,jáqueaconcessãodoseuusocontribuíapara

32. Como matadouros, hospitais, cemitérios e outros (BRITO, 2007, p.57). AindaconformeMônicaSilveiraBrito“muitasvezesasmunicipalidadesnãoreser-vavamumaparceladeseupatrimônioparataisusos,precisandocomprarter-rasdeterceirospararealizaçãodeobrasdeinteressepúblico,[...]algunscasosocorridosnacidadedeSãoPaulo:oteatroprovincial,osemináriodeeducandoseomatadouro,cujosterrenosparasuaconstruçãoprecisaramserdesapropria-dosouadquiridosporcomprapelaadministraçãopública[...].(BRITO,2007,p.57)

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o incrementodas rendasmunicipaispormeiodacobrançade foroselaudêmios.Oarrendamentodeterrasdorociotambémeraresponsávelporcontribuircomoaumentodaarrecadação.Noperíodocolonial,emqueaeconomiapaulistanãoseviabilizava,essaarrecadação,eportanto,apráticadaconcessãodasáreasdeusocomum,eraconsideradafunda-mentalparaasobrevivênciadaorganizaçãomunicipal.Dessaformaodomínioparticularsesobrepunhaaodomíniocomum.

Éimportanteconsiderarqueasáreasdeusocomumeramrespon-sáveispormanter,mesmoemumasociedadeescravagista,comoeraocasodeSãoPaulo,arelaçãodepropriedadeentretrabalhoeosmeiosdeprodução,istoé,essasterrasgarantiamamanutençãodarelaçãoen-tretrabalhoeapropriedadedaterraedaáguacomomeiodetrabalho.Terraeáguaeramresponsáveispelasubsistênciadosmoradores,aindaquesuaeconomiaestivesseinseridanumalógicadeproduçãodistinta,omercantilismocolonial.

A CONDIÇÃO DA ECONOMIA PAULISTA E A PRESENÇA DOS RIOS

NofimdoséculoXVI,SãoPauloeraumpovoadocomaproximadamente750 habitantes e 150 casas. Do ponto de vista da economia, as ativi-dadesdonúcleoselimitavamàexistênciadealgumcomérciobaseadoemimportaçõeseumaincipienteproduçãoparaexportação.Aproduçãointernaerarestritaaosprodutosquenãoeramimportadosdametrópoleeacabavaporsebasearnaproduçãoparasubsistênciaapartirdatrocadegêneroscomoutrosnúcleosenaexploraçãodascondiçõesnaturaislocais.

No período colonial, a participação de São Paulo na vida econô-micadametrópoleeraconsideradasecundáriadevidoàpredominânciadaproduçãodeaçúcarnonordestebaseadanosistemadeplantaçõesapartirdegrandespropriedadesetrabalhoescravonegro.33Oprocessodecolonizaçãointroduziuumsistemaemqueaproduçãocolonialvisava,predominantemente, a exportação como forma de incrementar a acu-mulaçãoprimitivadecapitalnametrópole34.

33. PEREIRA,PauloCesarXavier.Espaço,técnicaeconstrução.SãoPaulo:Nobel,1988.

34. SegundoPauloCesarXavierPereira,“aorganizaçãodaeconomiacolonialvia-bilizava o desenvolvimento do capitalismo industrial europeu e embotava a

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SãoPaulosofriacompiorescondiçõesdelocalizaçãoecompetitividade,estandomaisdistantedosdestinosfinaisdosprodutoscoloniais.Mes-moascondiçõesdefertilidadedosolonãoeramasideais.Alémdisso,aprópriaSerradoMarapareciacomoumobstáculoconsiderávelparaoacessoàvilaeparaoescoamentodeprodutos.DessaformaaeconomiadeSãoPaulosecaracterizavaporcondiçõesdeproduçãotecnicamenteinferiores,e,poressarazão,praticamentedesprezíveis.Mesmodopon-todevistadaabsorçãodeprodutosvindosdametrópolepelomercadolocal,ascondiçõesnãoerammelhores.Opequenonúmerodehabitan-tesemumasociedadesenhorialeescravagistacomaltaconcentraçãoderendarepresentavaummercadoinsignificante.(PEREIRA,1988)

Em São Paulo, esse cenário também determinava as formas deapropriação do trabalho. A comercialização do escravo negro nessascondiçõestambémnãofaziasentido.Paraospadrõeslocaispaulistas,ocustodonegroafricanoeraconsideradomuitoelevadofazendocomquepredominasseautilizaçãodamãodeobraindígena.(PEREIRA,1988)

SãoPaulopenavacomafaltadeestímuloseasatividadescomer-ciaiseramrestritasaummercadointernoqueapenasgarantiaasobre-vivênciadosmoradoresdavila35.Nessecontextodeestagnaçãoeinérciaeconômica,apovoaçãodeSãoPaulomalserviaparagarantiraocupaçãodoterritório.

EsseisolamentodeSãoPauloemrelaçãoaomovimentocapitalis-tacolonialdeterminouaformaquesedeuodesenvolvimentodassuasinstituiçõessociaisepolíticase tambémcondicionouasuaeconomia

divisãodotrabalhonaColôniaaopermitiraquiumaacumulaçãoderiquezasmasnãodecapital.Elatornavapossíveloincrementodomontantedecapital-dinheirosemqueissosignificasseumaalteraçãonaformabásicadaproduçãocolonial fundadanotrabalhoescravo.Noscentrosmetropolitanos,dopontodevistadocapitalmercantilemexpansão,ocontrolemonopolistadaproduçãocolonialidentificava-secomoprocessodeseparaçãodotrabalhoedaproprie-dadequeláestavaocorrendo,ambosvoltadosparaaacumulaçãoprimitivadecapital.”(PEREIRA,1988,p.18-19)

35. “Desseprocessodecolonizaçãodepreende-sequeaformaçãodasinstituiçõessociais,políticaseeconômicassedáenquantoexpressãododesenvolvimentodocapitalismomercantil,manifestando-seaquisobreaformadegrandespro-priedadesmonocultorasbaseadasnotrabalhoescravo.Poressemotivoéqueoenquadramentopaulistanaordemcapitalistamundialtemraízesprofundasnadivisãointernacionaldotrabalhoenaestruturaçãoregionaldaprodução.Aexploraçãocolonialexigiaumsetordeexportaçãocomgrandesunidadespro-dutivasàbasedotrabalhoescravodirigidasparaomercadoeuropeu.(PEREIRA,1988,p.18)

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a uma produção local, voltada, principalmente, para a manutenção daocupação, ainda que se tenha buscado, em todo o período colonial, ainserçãodaeconomiapaulistanalógicadareproduçãodocapitalquesemundializava.

É nesse contexto que as condições físicas do sítio e os recursosnaturaisdisponíveis,particularmenteosseusrios,temrelevância.Des-saforma,caberelacionaraescolhadolocaldefundaçãodeSãoPauloàexistênciadeumaestruturahídricaaquiexistenteequedevecaracterizarousodosriosedaáguanesseperíodo.

OlocaldeimplantaçãodocolégioquefundouaviladeSãoPaulo,apon-taparaaimportânciadosriosTamanduateíeTietê.Esselocalestápo-sicionadoemumacolinarelativamentealta,naconfluênciadorioTa-manduateíeoseuafluenteAnhangabaú.Elevadacercade25metrosdasplaníciesinferiores,acolinaéjustamenteodivisordeáguasdessesdoisrios,oferecendoumadefesanaturalporescarpasíngremesevárzeaslar-gas,alémdeumavisãoprivilegiadadaregião.Umpoucomaisaosuldacolina,estavamdoisafluentesdoAnhangabaú,oSaracuraeoBexiga.A presença de diversos corpos d’água ofereciam ao colonizador terrasrelativamentemaisférteis36,alémdapescaenavegação.

Aescolhadosítiosedeveu,principalmente,aoTietê,riomaisim-portante da região, acessível pelo Tamanduateí, que era navegável porpequenasembarcações37.AescolhadosítiopróximoaoTietêsejustifica-

36. Afertilidadedasplaníciesaluviaisquecercavamavilaerarelativajáqueosolodaregiãocomoumtodoerapobre.“Explica-seaescolhapelaexistênciaaídeumaimensaclareiranaturalnaflorestaquerevestiaoterritóriopaulista:sãoosCamposdePiratininga.A faltadearborizaçãonestesítioexplica-sepela for-maçãodoterreno,constituídodedepósitosflúvio-lacustresterciáriosargilososquedãoumsolopobre.Nãosedesenvolveuneleporissonenhumtipovege-tativodeporteedenso,eaflorestanaturalquecobriaosterrenosgraníticosecristalinosquesesucedemdesdeaSerradoMarinterrompe-seaíparadarlugaraumvastodescampado.”PRADOJÚNIOR,Caio,AcidadedeSãoPaulo:geografiaehistória/CaioPradoJr.Coleção:TudoéHistória.SãoPaulo:Brasi-liense,1998,p.13.JáAffonsodeTaunay,citandoSimãodeVasconcelosafirmaque“oscamposdaregiãopiratininganaerambastanteférteisemsearasdetrigoegrandesvinhas.[...]Dealgodoais,deculturasdefumoeapesardoclimaatécanaviais”.(TAUNAY,1953,p.185)

37. MesmoanavegabilidadedosriosdeSãoPaulopodeserdiscutidajáque“em-boranãosetratederiosmuitofavoráveisànavegação,aindaassimelesrepre-sentamamelhoremaisutilizadaviadecomunicação.Nãosóparaasgrandesexpediçõesdereconhecimentoeexploraçãodointerior,asentradasebandeiras,mastambém,eéistooprincipal,paraointercâmbiodaspopulaçõesquesees-

RedededrenagemdaregiãodeSãoPaulo(baseadanaFolhadoMunicípiodaCapital

-ComissãoGeográficaeGeológicadeSãoPaulo,s/d)

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vadevidoàsuaextensãodentrodaCapitaniadeSãoPauloepelofatodesuaságuascorreremparadentrodocontinente,conectandooplanaltoaointeriore,eventualmente,aosriosParanáePrata.OTietêeraoeixonaturaldecirculaçãodosistemahidrográficodoplanalto.Poressacarac-terística,orioTietêcontribuiuparaaorigemdeváriosoutrosnúcleosnaregião.PartindodeSãoPaulo,aocupaçãodoplanaltosegueosentidodorio,ondenassuasmargenslogoapareceramasprimeiraspovoações38.

NofimdoséculoXVI,TeodoroSampaioanotaque,“embarcadosemsuacanoa,opadre,onegociante,ofazendeiro,osimpleshomemdopovopodiamatingirqualquerpontodentrodazonapovoadaemtornodeSãoPaulo.”39AindasegundoTeodoroSampaio,

“[...]navegava-sebemsobretudopeloTamanduateí,podendo-seporelealcançaraBordadoCampo,comodesceraoTietê,ao“pôrto”,edaí,rioacimaourioabaixo,chegaraosbairrosouaossítios,quasetodosacessíveisporágua.”(BRUNO,1991,p.211)

OTietê,portanto,foioresponsávelpelaescolhadolocaldefundaçãodaviladevidoaointeressedocolonizadornoseusignificadoeconômico.Apresençaabundantedeáguadentroepróximodavila,alémdosentidodedefesaetransporte,representavaapossibilidadedeseexercerapesca,acaça,acoleta,alémdaingestãodaágua,atividadesquecaracterizavamousodosrios.Essascaracterísticasdosítiopuderamsermelhorexplo-radascomoestabelecimentodapovoação.

A evolução da ocupação do planalto paulista, tendeu a favorecerSãoPaulocomoseucentro,oquepodeserexplicadopeloscaminhoseestradasqueseconsolidaram,noséculoXVIII,comorotascomerciaisquepassavampelonúcleocolonial.Aestruturageográficacombinarede

tabelecemnoplanalto.Eéparagozardasvantagensdestescaminhosnaturaisedefácilacessoqueopovoamentoprocuranoinício,depreferênciaequaseexclusivamente,amargemdosrios.”(PRADOJR,1983,p.21)

38. PovoaçõescomoNossaSenhoradaExpectaçãodoÓ(hojeFreguesiadoÓ)eParnaíbaajusanteeGuarulhos,Itaquaquecetuba,SãoMiguel,MogidasCruzesamontante.Indiretamente,pelorioPinheiros,seuafluenteajusantedonúcleodeSãoPaulo,essacaracterísticasemantém,abrigandoaldeiasindígenasepo-voações jesuíticascomoPinheiros, Itapecerica, Ibirapuera(atualSantoAma-ro).TambémemafluentesdoPinheiros,comooJeribatiba(atualrioGrande),Mbói-MirineCotia.(PRADOJR,1983)

39. BRUNO,ErnaniSilva.HistóriaeTradiçõesdacidadedeSãoPaulo:vol.1ArraialdeSertanistas(1554-1828).SãoPaulo:Hucitec,1991,p.209.

rioTamanduateí

rioAnhangabaú

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hidrográfica e relevo, conferindo a São Paulo a condição de centro dopovoamentodoplanalto,dandosentidoaessescaminhoseestradas40.

Omapadapágina56mostraacondiçãooriginaldosriosdeSãoPaulo,marcadapelaabundânciadecórregoserios,aindaqueovolumedaáguadisponívelvariassecomosperíodosdoano,intercalandocheiaseestiagens.

Utilizandoumaestruturadecaminhosetrilhase,considerandoapresençadosriosedaágua,edificaram,jesuítaseindígenas,asprimeirasconstruçõesdonúcleocomextremasimplicidadematerial,dandomaiorrelevânciaàsuaimplantaçãoemrelaçãoàcolinaeàorganizaçãointernadaocupação.Essescaminhos,queligavamdiversosnúcleosdaregiãoserefletiamnaprópriaestruturaçãodavilaque,limitadaàsescarpasdaco-linaecircundadopeloAnhangabaúeTamanduateí,formouochamadotriângulo41.Aestruturadotriângulopodeserobservadanomapadapá-gina58.Oscaminhoseestradasserefletiamnaprópriaestruturaçãodonúcleoeseconectavamaoarruamentodavilamarcadopelotriângulo.42

40. Parasudoeste,aestradaquelevaaSorocaba,ItapetiningaeGuarapuava.Paraoeste,aestradadovaledorioTietê,nadireçãodeMatoGrosso,comParnaíba,Itu, Porto Feliz, Tietê, Piracicaba e Araraquara. Para o norte, o Caminho dosGuaiases,queporJundiaí,MogiGuaçueMogiMirim,secheganasminasdeGoiáseTrianguloMineiro.Tambémparaonorte,ocaminhoparaosuldeMi-nas, por Atibaia e Bragança. Para nordeste, a estrada que leva ao vale do rioParaíbadoSulporMogidasCruzes,SãoJosédosCampos,Taubaté,Pindamo-nhangaba,Lorena,nadireçãodoRiodeJaneiro.Detodasessasestradas,adeSantos,oCaminhodoMar,semprefoiamaisimportantemesmocomaSerradoMarerguendo-seentreoplanaltoeolitoral.(PRADOJR,1983,p.26-27)

41. ParaNúcleocentralformadopelasruasDireitadeSantoAntônio(hojeDireita),doRosário(alteradaparaImperatrizecomaRepúblicapara15deNovembro)eDireitadeSãoBento(atualSãoBento).Otriangulotambéméorganizadoporseusvértices,ondeestãosituadososedifíciosdosconventosdeSãoFrancisco,SãoBentoeCarmo(TOLEDO,2004,p.9).

42. PelasruasBrigadeiroTobiaseFlorênciodeAbreuchegava-seaoscaminhosnonorte,cruzandooAnhangabaúemaisadianteorioTietê.Paraleste,cruzandooTamanduateí,aestradaquelevavaaosnúcleosdoValedoParaíba.Paraosul,trêscaminhos.PeloeixododivisordeáguasdoAnhangabaúeTamanduateí,apareceriaaruadaLiberdadeesuacontinuação,ruaVergueiro.Outra,apar-tirdofundodovaledoAnhangabaú,nopontoondeencontravaseuafluente,Saracura,surgiriaocaminhoquehojeéaruaSantoAmaroesuacontinuação,avenidaBrigadeiroLuísAntônio.Aindaoutraparaosul,cruzandooribeirãoAnhangabaú, a atual rua da Consolação, por onde se acessava os núcleos dePinheiros, Embu, Itapecerica e Santo Amaro além de Parnaíba, Porto Feliz eSorocabamaisadiante.(PRADOJR,1983,p.65-67)

SãoPaulodePitatiningaem1560(fonte:AffonsodeFreitas)

1.ResidênciadeTebiriça(atuallargodeSãoBento)2.IgrejadoColégio(atualpátiodoColégio)3.IgrejaMatriz(atualpraçadaSé)4.CasadoSenado(atuallargoSãoFrancisco)5.ResidênciadeCaauby(morrocujoarrasta-mentoterminouem1874)6.MorrodaForca(atulalargodaLiberdade)7.PrimitivaAldeiadeTebiriça(Posteriormen-temorrodosLázaros)

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áGUA E TRABALHO

A existência de inúmeras tribos indígenas nessa região43 certamenteconcorreuparaadeterminaçãodolocaldefundação.EmSãoPaulo,oempregodoescravoafricanonãofoisignificativocomoemoutroscen-trosdacolônia,sendomaisutilizadootrabalhodoindígena.

Dessaforma,asprimeirasconstruçõesdeSãoPaulosecaracteriza-rampeloempregodamãodeobraindígenaedeterminaramoaspectodavilanosprimeirosanosdaocupação.OempregodotrabalhoindígenacobriatodososaspectosdocotidianodeSãoPaulo,sendoelesrespon-sáveispelacoletadeáguanosriose fontese tambémnaatividadedeconstrução.Jánasprimeirasedificações,otrabalhoindígenaestavapre-sente,assimcomodescreveuJosédeAnchieta:

“Desdejaneiroatéopresente,estivemosàsvezesmaisdevintenumacasapobrezinha,feitadebarroepaus,ecobertadepalha,de14passosdecomprimentoe10delargura,queéaomesmotempoescola,enfermaria,dormitório,refeitório,cozinhaedes-pensa...Estacasaconstruíram-na os próprios índios para nosso uso,masagorapreparamo-nosparafazeroutraumpoucomaior,dequenósseremosoperárioscomsuordenossorostoeauxíliodosíndios.”44

SegundoAffonsodeTaunay,nofinaldoséculoXVI,oabastecimentodeáguadeSãoPaulosebaseavaem“poçosquintaleiros”e“parafinsdebebida,denascentesbrotandonorecintodavila.”(TAUNAY,1953,p.18)TeodoroSampaio45descreveuapresençadaáguanaSãoPauloseiscen-tistacomo“abundanteesalutífera”.Segundoesseautor,

43. “Concorreoutracircunstância,estadenaturezaeconômica,queimpulsionaopovoamentodoplanalto.Sãoasnumerosastribosindígenasaíestabelecidasequeapresentamaoscolonosumfartoabastecedourodemão-de-obra.Comosesabe,éemlargaescalaaobraçodoíndio,antesdaintroduçãodonegroafricano-eemSãoVicentepormuitotempoainda-querecorreinicialmenteacoloni-zação.(PRADOJR,1983,p.10)

44. Em carta dirigida ao Pe. Inácio de Loyola em 1o de setembro de 1554, citadaporPauloCesarXavierPereira(LEITE,Serafim.CartasdosprimeirosjesuítasnoBrasil.ComissãodoIVCentenáriodeSãoPaulo,SãoPaulo,1956,v.2apudPEREIRA,1988,p.17).

45. SAMPAIO,Teodoro.SãoPaulonotempodeAnchieta,p.34apudBRUNO,1991,p.278.

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“[...]fontesnumerosas,naencostadosmorrosenosdesbar-rancadosparaondedavamosquintais, forneciamosuficien-teparaasobraseosgastosdomésticos.[...]Oacessoparaaságuasdosribeirosnoperímetrodacidadenascenteeradifícil.Mas bem se escusavam águas do rio descendo encostas ín-gremesoutalhadasemdegrausondetãoabundanteseramosolhoseasminasdeágua.”(TAUNAY,1953,p.18)

ErnaniSilvaBrunoalertaparaofatodequeosdocumentos“quinhentis-taseseiscentistas”queregistramoabastecimentodeáguadavilanesseperíodonãodãoaideiadequeessesolhosd’águafossemtãonumero-sosquantonadescriçãoacima.Entretanto,afirmaqueoshabitantesdavilaseabasteciamemalgumasfonteseemum“ribeiro”.(BRUNO,1991,

p.279)

AindasegundoAffonsodeE.Taunay,asAtasdaCâmararegistramqueasfontesquebrotavamnavila,numerosasounão,erammuitouti-lizadaspelosmoradoressendoresponsáveispeloabastecimentoesub-sistênciadopovoado.Sobreasfontes,

“[...]umacorriaparaoTamanduateí,sendoaoutradelocaliza-çãodifícil,poissabe-seapenasquenascia“detrásdascasasdeJoanneAnnes”.Como todos os moradores recorriamaelas, for-mavam-seemseus locaisajuntamentos enormesde índios eíndias,carregandovasilhamedetôdaespécie.”(TAUNAY,1953,

p.18)

Alémdeindicaraamplautilizaçãodaságuasdenascentes,essaobserva-çãodeTaunayevidenciaapresençadoindígenanasatividadesrelacio-nadasàáguaeaoabastecimentodavila.Épossívelsuporque,setodos os moradoresseutilizavamdessasfonteseasaglomeraçõeseramdeíndioseíndias,amãodeobradoschamados“negrosdaterra”eramuitousadaparaessesfins.

SegundoLaimaMesgravis46,oconteúdodasAtasdeCâmaradesseperíododeveserrelevado,principalmentenoquedizrespeitoaotraba-lhoindígena,jáqueeraimportanteparaaCâmara

46. MESGRAVIS, Laima. Afonso de Escragnolle de Taunay, o historiador de SãoPauloinTAUNAY,AfonsodeEscragnolle.SãoPaulonosprimeirosanos:1554-1601.SãoPaulonoséculoXVI.SãoPaulo:PazeTerra,2007.

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“[...]ocultardasautoridadesocaráterilegaleviolentodemui-tasatividadesdosbandeirantes.Daíasinúmerassessõesaber-taseencerradassobaalegaçãodequenadahaviaparadecidir;asreferênciascríticasàausênciadevereadoresàssessõesmen-sais obrigatórias, a pretexto de que estavam “no sertão bus-candoremédioparasuapobreza”.Eraumaformadeocultaroapresamentodosíndios,proibidoapartirde1570amenosquefosseparafazer“guerrajusta”,oqueexigiaacomprovaçãodeataqueinjustificadoaosbrancosatravésdeconsultaàsautori-dadessuperioresdaCapitaniaoudaColônia.”(MESGRAVIS,

2003,p.5)

Emoutradescrição,Taunayafirmaqueumadessasfontespresentesnavilafuncionava“provavelmentepormeiodealgumaquedutotôscoouquiçádeumrêgoabertonosolo”ondesejuntavamescravoscarregado-res.“Esseslocaiseram“centrosdeaglomeraçãodegentedetodaespécie-massobretudodeescravosedeescravas[...]”.(BRUNO,1991,p.279-

280)EssaobservaçãodeTaunaynospermiteafirmarquehátambéma

utilizaçãodemãodeobraescravanegranasatividadesdeabastecimentodeáguaemSãoPaulonesseperíodo.

Dentro da economia colonial, a utilização do trabalho do negroafricanotinhaalgunssignificados.NocasodeSãoPaulo,essessignifica-dosdistinguemdautilizaçãodamãodeobraindígenadanegraafricana.

Aimposiçãodotrabalhoescravoafricanodiziarespeitoàproduçãodasprincipaismercadoriascoloniais.Otrabalhocompulsórioeraumaimposiçãodosistemacomoformadeevitarqueoprodutordiretosim-plesmenteseapropriassedeumaporçãodeterradespovoadaesetor-nasseumprodutorindependentedosmecanismoscoloniais.Damesmaforma,otrabalholivrepoderiarepresentarassalariamentoeobtençãoderendaquetambémsignificariadiminuiçãodalucratividadedoempreen-dimentocolonial.“Numaterralivre,impunha-seotrabalhocativo[...]”.(PEREIRA,1988,p.25).

Paraocomprador,opreçodoescravoeradefinidopeloretornofu-turodoinvestimentodecapitalqueelefazianacompra.Eraumcálculoantecipadocomvistasaumganhofuturo.Paraotraficante,opreçoeraformadopeloscustosdoaprisionamentoedotransporte,sobreosquaiseraacrescidoumlucro.Otraficantesemprebuscavalocalidadesdaco-lôniaondehaviaumamaiorarticulaçãocomomercado,possibilitando

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assimaobtençãodemaiorlucronavenda.

“Oinvestimentonacompradoescravosignificaumcustofixopara seu proprietário. Por outro lado, trabalhasse ou não, oscustos de sua manutenção tinham que ser despendidos. Porisso,nointervalodasatividadesprodutivasligadasdiretamen-teàexportação,otrabalhodoescravoerautilizadoemoutrasatividades,taiscomonaaberturadenovasterrasparaexplora-ção,nasobrasdeconstruçõeseemdiversosmelhoramentosnapropriedade.Essetrabalhoacumuladoàmargemdotrabalhoprodutivoparaeconomiaagroexportadora,emborasignificas-seumaumentodariquezadosenhor,nãoconstituíaumfluxoderendamonetária.”(PEREIRA,1988,p.27)

ApartirdasobservaçõesdeTAUNAY(1953)ePEREIRA(1988)e,com-preendendoocontextoeainserçãodaviladeSãoPaulonosistemaco-lonial,podemosincluirnasatividadesdescritasacima,atividadescomoacoletadeáguaemrios,fontesebicas,assimcomoosdespejosdeáguasservidasnosrios,comoatividadesrealizadasporescravos.

SegundoJosédeSouzaMartins,

“[...]aescravidãocolonialdefinia-se[...]comoumamodalida-dedeexploraçãodaforçadetrabalhobaseadadiretaeprevia-mentenasujeiçãodotrabalho,atravésdotrabalhador,aocapi-talcomercial.[...]oproprietárioesperaextrairdoseuescravoum rendimento econômico que é medido pelo lucro médio,quedeveaomenosequivaleraorendimentoqueseudinheirolhedariasefosseaplicadoemoutronegócio.Aexploraçãodoescravonoprocessoprodutivo jáestá,pois,precedidadepa-râmetroserelaçõescomerciaisqueadeterminam.Essaexplo-raçãonãoabrangeapenasolucromédio,mastambémacon-versãodecapitalemrendacapitalizada,aparceladoexcedentequeoescravopodeproduzirequeéantecipadamentepagaaomercadordeescravos.”47

Dessaforma,tantoovalordoinvestimentofeitonacompradoescra-vocomoovaloraplicadonasuamanutenção,“assumemumaaparência

47. MARTINS,JosédeSouza.Ocativeirodaterra,SãoPaulo:LivrariaEditoraCiên-ciasHumanas,1981.

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quepermiteidentificá-loscomocapital”(PEREIRA,1988,p.28), jáquepodemserconfundidoscomcapitalfixoevariável,assimcomonocustodeaquisiçãoemanutençãodeumamáquina,porexemplo.Entretanto,odinheiroaplicadonacompradoescravonãofuncionacomocapitaleocustodemanutençãosãoapenasgastosnecessáriosà“sobrevivência”docapital-dinheiroinvestidonasuacompra.(PEREIRA,1988)

Mesmoemumsetordaproduçãoconsideradomarginal,éimpor-tanteestabelecerosignificadoeconômicoesocialdoempregodemãodeobranasatividadesqueenvolviamosrioseaságuasdeSãoPaulo48.Trata-sededeterminarcomoaáguaeosriospassaramaintegrarospro-cessosdeproduçãodevalorapartirdotrabalho.

Jánosprimeirosanosdaocupação,essasatividadeseraminterme-diadasportrabalhocativo,aindaqueaáguaestivessepresenteeplena-menteacessívelnavila,podendoserusadalivrementeporqualquerpes-soa,escravaoulivre.Aáguadosrioseraresponsávelpelasubsistênciadetodosqueviviamnapovoação.

Ainda sobre a notação de Taunay a respeito da precariedade doslocaisondeseconseguiaágua,nosinteressapontuarque,aindaquesetivesse,porpartedocolonizador,anítidanoçãodaimportânciadaáguaparaamanutençãodapovoação,essafaltadezelopelaáguaepelosespa-ços da águapareceestarenvolvidacomacaracterísticafundanteemSãoPaulodefavorecerasobreposiçãoeapriorizaçãododomínioparticularsobreocomum.Odesprezopelasatividadeseestruturasqueenvolvemosdomínioscomunsemgeral,easinfraestruturasurbanaseaáguaemparticular,seiniciaapartirdessemomentoemarcarátodaahistóriadeSãoPaulo.

AsdescriçõesdeTaunayapontamaindaparaaconvivênciasimul-tâneadautilizaçãodamãodeobralivre,escravanegraeindígena.Nessesentido,segundoXavierPereira:

48. “Antesdetudo,otrabalhoé,fundamentalmente,umprocessoentrehomemeNatureza.AaçãodohomeméumamediaçãodasuarelaçãocomaNatureza.Eleseapropriadamatérianaturalcolocandoemmovimentosuasprópriasfor-çasnaturaispertencentesàsuacorporalidade.OhomemdespertaaspotênciasadormecidasdaNaturezasujeitando-aaoseudomínio.Oprodutodessaaçãoéumamatérianaturaladaptadaàsnecessidadeshumanasmediantemodificaçãodaforma.Portanto,otrabalhofunde-seaoobjetodetrabalho.Aterraéomeiouniversaldetrabalho,elaéolugarondeohomemfica,ondeeleestá,elaofereceasmatériasnaturaisesimultaneamenteéoseucampodeação.”(MARX,1985a,p.149)

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“A verdade é que o índio, oscilando entre a condição de “ad-ministrado” e a de liberto, era colocado numa situação quepossibilitavamaioresganhosaosqueseapropriassemdeseutrabalho. [...] O índio podia ser um trabalhador liberto, masnuncaumhomemlivre.Otrabalhodohomemlivreconvivia,necessariamente,comotrabalhoescravo.Ofuncionamentodaeconomia colonial assentada na escravidão não dispensava otrabalholivre.Assingularidadesdessasduascategoriasdetra-balhotornaram-semaisclarasquandoasexigênciasimpostaspelodesenvolvimentodadivisãodotrabalhoexpandiuasativi-dadeslivres,semsignificar,contudo,incompatibilidadecomamanutençãodaordemescravocrata.”(PEREIRA,1988,p.39-40)

Portanto, as atividades relacionadas ao abastecimento da vila erammarcadospelapresençatantodoescravonegroquantodoíndio,assimcomodetrabalholivre,semhaverincompatibilidade.Asparticularida-desdoempregodecadaumadessascategoriasficariammaisclarascomoavançoedesenvolvimentodadivisãodotrabalho.

Emboratantoamãodeobraescravaquantoaindígenaestivessemsujeitasaocolonizador,asuaintegraçãoaconteceudeformadistinta:

“Enquanto os ganhos com o apresamento dos indígenas fi-cavamnaColônia,osreferentesaotráficodosnegrosconsti-tuíam-senumimportantesetordocomérciocolonial,apontan-doaintegraçãodiferenciadadocomérciocolonialeadiferençafundamentalentreutilizaçãodotrabalhocompulsóriodoín-dioedonegro.EstadiferençaparticularizaaregiãopaulistanocontextodaColônia.”(PEREIRA,1988,p.19)

Oapresamentodoindígena,portanto,seconfiguravacomoumnegóciodacolônia,fazendocomqueosrendimentosobtidoscomasuautiliza-çãopermanecessemnacolônia,porassimdizer,nobolsodocolonoemSãoPaulo.Poroutrolado,osrendimentosobtidoscomacomercializa-çãodonegroafricanoeramdestinadosàmetrópole.

EmSãoPaulo,assimcomofoiobservado,nãohaviadificuldadespara se apropriar de terras. Para isso era apenas necessário pagamen-todeforoàCâmara.Comoaterrasemtrabalhadornadasignificava,amaiordificuldadeestavaemconseguirotrabalhador.Éporissoque,emSãoPaulo,“oindígenaadministradosignificavamaisqueapropriedade

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imóvel”.(PEREIRA,1988,p.23)

Portanto, é a partir da apropriação da terra, simultaneamente àapropriaçãodotrabalho,queosentidodaexploraçãocolonialseimpu-nhaaosmoradoresdeSãoPaulo.Essaéalógicaquelevaocolonizadoràsubmeteroindígenaeseapropriardesuasterras.

“É através desta disputa pela propriedade do trabalho que omorador de São Paulo, como agente colonizador, submete oíndioetomasuasterras.Osentidodaexploraçãocolonialim-punhaasimultaneidadedaapropriaçãodaterraeautilizaçãodotrabalhocativo. [...]Esta imposiçãonaeconomiapaulistacaracterizava-se pela importância primordial que assumia aapropriaçãodotrabalhoindígenaemrelaçãoàapropriaçãodaterra. [...] Essas terras, para terem algum significado, tinhamque,alémseserférteis,estarnumalocalizaçãofavorávelàco-mercializaçãodosseusprodutose,principalmente,ser trabalha-das.Apropriedadedaterracomopropriedadeimóvel,ouseja,comocondiçãopréviadeprodução,nãotinhasignificadoeco-nômico[...]”(PEREIRA,1988,p.26)

Aterrasemtrabalhadores,sejamíndiosouescravos,nãotinhaqualquersignificadoeconômico.EmSãoPaulo,essacondiçãodaeconomiaga-rantia,decertaforma,apreservaçãodopatrimônio do Conselhoeasterras de uso comum.

Dessaforma,asatividadesdecoletaedespejoconfiguravamfor-masdeapropriaçãodosriosedaságuasemSãoPaulo.Aintermediaçãodotrabalhonessasatividadesconferiaaessesrecursosumvalor de usoe não somente o uso. Ainda que a água não tivesse propriamente umvalor de troca,poiseraabundante,éalógicadaexploraçãoeconômicadascoisasquepassavaasesobreporaouso dosrecursos,daáguaedorio,motivandoaapropriaçãoprivadadessesrecursoseaampliaçãodosdo-míniosparticulares.Aáguaextraídadafonte,transportadaedistribuídapelotrabalhodoindígenaoudonegro,transformava-seemmeiodetra-balho.SegundoKarlMarx,

“[...]aterra(quedopontodevistaeconômicoincluitambémaágua),comofonteoriginaldevíveresemeiosjáprontosdesubsistência para o homem, é encontrada sem contribuiçãodele,comoobjetogeraldotrabalhohumano.Todasascoisas

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queotrabalhosódesprendedesuaconexãodiretacomocon-juntodaterra,sãoobjetosdetrabalhopreexistentespornatu-reza.Assimopeixequesepescaaosepará-lodeseuelementodevida,aágua,amadeiraqueseabatenaflorestavirgem,ominérioqueéarrancadodeseufilão.Se,aocontrário,opróprioobjetodetrabalhojáé,porassimdizer,filtradopormeiodetra-balho anterior, denominamo-lo matéria-prima. Por exemplo,ominériojáarrancadoqueagoravaiserlavado.Todamatéria-primaéobjetodetrabalho,masnemtodoobjetodetrabalhoématéria-prima.Oobjetodetrabalhoapenasématéria-primadepoisdejáterexperimentadoumamodificaçãomediadaportrabalho.”49

Aindaqueacaracterísticadousodaáguaedosrioscontinuassepredo-minante,acondiçãodesserecursolentamentesetransformava,subme-tidaàterraeapartirdaintermediaçãodotrabalho.Aáguadosrioscomoumbem comumpassavaaintegrarosdomíniosdeapropriaçãoprivada.

Aopçãopelautilizaçãodasnascentesefontespelamaiorpartedosmoradoresdavilatambémaconteciapelasuaproximidade,oquegaran-tiaumconsiderávelconfortoaosmoradores.Essaságuasvertiamdentrodaprópriacolina,nãosendonecessáriosedeslocaratéosrios,nascotasmaisbaixas,paraaobtençãodeágua.Assim,desdemuitocedo,esseslo-caissetornarampontosdeaglomeraçãoe,segundoErnaniSilvaBruno,“logosetornaramlocaisimundos”(BRUNO,1991,p.278).

Issofezcomqueamunicipalidadepassasseaolharasfontesebi-cas,comolocaispassíveisdeaplicaçãoderegrasecontrole,colaborandoparadeterminaraformadeatuaçãodasinstituiçõesmunicipais,deter-minando como esses espaços eram percebidos. A forma de resolver aquestãodaimundície,físicaemoral,nasfonteseraaproibiçãodeacesso.

Logoem1576aCâmaraaplicavamedidascontraqualquer“rapaz”que estivesse na fonte “pegando em alguma negra”50. Em 1590 seriamultada“qualquerpessoa,brancoounegro,macho,encontradanasfon-tesoulavadouros”ou“qualquerpessoaquefosseàfontenãotendoláoquefazer”51eem1613aCâmaradeterminavaque“nenhumhomemnem

49. MARX,Karl.OCapital:CríticadaEconomiaPolítica,vol.1LivroPrimeiro:OProcesso de Produção do Capital, Tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1985a,p.150.

50. AtasdaCâmaradaViladeSãoPaulo,I,p.95apudBRUNO,1919,p.280.51. TAUNAY, Afonso de E. São Paulo nos Primeiros Anos, p. 116 apud BRUNO,

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mancebo,dequinzeanosparacima,fosseàsaguadasefontesdavila”52.Alémderevelarapreocupaçãoemmanterlivresdesujeiraecon-

taminação as águas que serviam os moradores, essas determinaçõesdaCâmaratambémrevelamanecessidadedecontrolaressesespaços,ondea“imoralidade”semanifestava.Assimcomoorocio,umaárea de uso comum,setornavaumaáreadecontrolediretodaCâmara,omesmoaconteciacomosrios,comaáguaeosespaçosdaágua.

OsdejetoscoletadosnascasaseramdespejadosdiretamentenasmargensdosriosAnhangabaúeTamanduateí,atividaderealizadapelosprópriosmoradores,porescravosnegroseíndios53.Desdemuitocedotambém, foi registrado a presença de dejetos que se acumulavam nasmargensdessesrios,principalmentenasdoTamanduateí,oquerepre-sentavaumnívelpequeno,porémperceptíveldepoluição.

Dessaforma,nosprimeirosséculosdapovoação,asatividadesrela-cionadasàágua,sejaabastecimentooudespejo,estavamcaracterizadaspeloempregodemãodeobracativa,predominantementenegraeindí-gena.

Portanto,apartirdasuacondiçãodebem comum,ondeousodaáguaeraasuaprincipalcaracterística,osriosdeSãoPaulopassaramacom-portaraintermediaçãodetrabalhoematividadesdesubsistência,con-tribuindoparaatransformaçãodosignificadodessesrecursos.

1919,p.280.52. TAUNAY,AfonsodeE.HistóriaSeiscentistadaViladeSãoPaulo,IV,p.198apud

BRUNO,1919,p.280.53. SegundoSant’Anna,acoletadeáguaeodespejodaságuasservidasnosriosera

umatarefadesempenhadaporescravos, trabalhadorespobresecrianças.Poressarazãoerampersonagenscomunsemrios,reservatórios,bicasechafarizes.(SANT’ANNA,2007,p.71)

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CAPíTULO 2 - TRABALHO LIVRE, PRIMEIRA REDE DE áGUA E CHAFARIZES: LUTAS PELO CONTROLE E POSSE INDIVIDUAL DA áGUA

NofinaldoséculoXVI,naocasiãodaoutorgadorocioàvila,oGoverna-dorGeral,D.LuizdeSousatransferiu-separaSãoPauloacompanhadodeumaequipedeprofissionais–doismineradores,umcirurgiãoeumoudoisengenheirosflorentinos–paracolocarempráticaumprojetopolíticoeeconômicoquevisavaamelhoriadascondiçõeseconômicasdessaregiãodacolôniaapartirdamineração,incentivandoapopulaçãodosertãoàbuscadoouro.

Nesse momento, São Paulo contava com apenas 300 habitantesdistribuídosemcercade4hectares.Umavilamodestaepoucodensasecomparadaaos5hectaresconstruídosdeSalvador,ocupadosporumapopulaçãode2.000habitantes.Osmurosquecercavamavilaacaba-vamdeserampliados, e confinavam onúcleoarruado dentrodeumapequenaporçãodacolina54,otriângulo,fazendocomqueaáreadentrodoraiode3.300metrosdorocioseconfigurassecomoumavastaporção

deterrasemtornodapovoação.(BRITO,2007)

54. Segundo Mônica Silveira Brito, “a área murada corresponderia aproximada-menteàquelacircunscritaaoperímetrocriadopelasatuaisruasdoTesouro,XVdeNovembro,ÁlvaresPenteado,LargodaMisericórdia,Direita,QuintinoBo-caiúva,cruzandoaJoséBonifácio,seguindopeloeixodaruaDireitadetrásdaSécomadeSantaTeresa,atéoPátiodoColégio.”(BRITO,2007,p.75,nota25)

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Durantequasetodooperíodocolonial,osarredoresdavilaedificadadeSãoPauloabrigavamaspropriedadesruraisquenãoocupavamumperí-metromuitoextenso.Eramcompostosporpequenasemédiasproprie-dadesformadasapartirdeconcessõesreaisouaforamentos.OslimitesdaspropriedadesemSãoPauloficaramindefinidosdurantequasetodoesseperíodo,quandoerapossívelseapropriardeterrasaqualquermo-mento.Essasituaçãosedevia,basicamente,aofatodeavilanãoseen-volvercomagrandeproduçãocolonial.Assim,suasterraspermaneciamcompoucovaloresendodistribuídasaquemassolicitasseàCâmara.

A estrutura social e econômica da colônia se organizava visandoamanutençãodarelaçãodedominaçãocolonial.Asgrandesinversõesexigidaspelacolonizaçãosóencontravamumaefetivarentabilidadenaorganizaçãodegrandesempresasprodutoras.Essaproduçãosefunda-mentavaemgrandespropriedadesmonocultorasbaseadasemtrabalhoescravo,visandoaexportaçãoparaomercadoeuropeu.55

Ofatodeotrabalhoescravodominaraestruturaprodutivadaco-lônianãofoiumimpedimentoparaqueotrabalhocorporativotrazidoda metrópole se organizasse. Essas formas de trabalho puderam con-viversimultaneamente,aindaqueasorganizaçõesdeofícios tivessemseudesenvolvimentoconstantementeimpedidopelapredominânciadotrabalhoescravo.EmSãoPaulo,essequadroseagravavadevidoaoseuisolamentodaestruturaprodutivacolonial.Issosignificaqueotrabalholivre,aindaquemuitoincipiente,estavapresentenoesquemaprodutivo,ligadoapequenasestruturasnageraçãoderendaparasubsistência.Opreçodoescravo impediaousodotrabalhodocativonaestruturadeproduçãopaulista,quadroquesomenteseriamodificado,noséculoXIX,comoingressodocultivodocafécomoformadeproduçãoderiqueza.Dessa forma, o estado da economia de São Paulo não permitia que ocolonizadorabrissemãodoempregodotrabalhoindígena,quepredo-minava.EssequadronãosealterounosséculosXVIeXVII,atémeadosdoséculoXVIII.(PEREIRA,1988)

ACâmaraMunicipaltentavaregulamentaralgunsofíciosparaga-rantirasobrevivênciadaocupação.Entretanto,osesforçospararegularpreçosegarantiraqualidadedotrabalhonãoforamsuficientesparaodesenvolvimento de organizações artesanais de trabalho que perma-neceramextremamentemodestasdurantetodooperíodocolonial,nos

55. PEREIRA,PauloCesarXavier.Espaço,técnicaeconstrução.SãoPaulo:Nobel,1988.

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primeirosséculosdeexistênciadavila.(PEREIRA,1988)

OsdadosestatísticosdosprimeirosséculosdeSãoPaulo,apesardemuitorestritos,permitemdescreveravilanoséculoXVIcompou-quíssimaatividadecomercialligadaàatividadedeartesãos:carpintaria,sapataria,ferraria,alfaiataria,olariaetecelagem.Nessemomentoessasatividades, pouco desenvolvidas, eram exercidas de forma irregular,sendo que esses artesãos, provavelmente exerciam outras atividadesconcomitantemente.Adivisãodotrabalho,aindapoucodesenvolvida,acarretavaemumabaixaespecializaçãodasatividadesquetambémserefletianospróprioslocaisdetrabalhoquecoincidiamcomoslocaisdemoradia.(PEREIRA,1988)

Osresultadosdaimplementaçãodapolíticadeincentivoàativida-demineradoratornaram-seperceptíveisapartirdadescobertadeouroemMinasGeraisem1693.AviladeSãoPaulo foielevadaàcondiçãodesededoGovernodaCapitaniaem1765,sendoque,umpoucoantesdisso,em1711, foraelevadaàcondiçãodecidade.Essefatos,alémdasdescobertasdeouroemGoiás,em1725,enoMatoGrosso,em1734,implicaramcertocrescimentopopulacionaldacidade.56

Abuscapeloenriquecimentoatravésdamineraçãoimpôsdificul-dadesaodesenvolvimentodaproduçãolocal,quedificilmentepassavada produção para subsistência. A atividade mineradora em Minas es-timulou,emSãoPaulo,aatividadedefornecimentodemuaresparaoserviçodetransportenasregiõesmineradoras.

NoiníciodoséculoXVIIIapopulaçãochegavaa1.000habitantesqueocupavacercade210edifícios.Essemodestoincrementodapopu-laçãoeamaiormovimentaçãodaeconomiadevidoaoiníciodociclodoouropossibilitaramumincremento,aindaquemínimo,nonúmerodeartesãoseumamaiordiversidadedeatividadesnacidade.

Foinesseperíodoque,apartirdainiciativadoGovernoProvincial,aatividadeagrícolapaulistapassouareceberalgumestímulo,aindaquemodesto,desenvolvendocommaioreficáciaocultivodacana-de-açúcarnointerior.

Dessaforma,apartirdametadedoséculoXVIII,SãoPauloganharelativaautonomiaeimportânciadentrodacolônia.Issocoincidecom

56. BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição: urbanização, propriedadedaterraecréditohipotecárioemSãoPaulonasegundametadedoséculoXIX.2007.TesedeDoutoradoapresentadaaoDepartamentodeGeografiadaFFL-CH-USP,2007,p.76.

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o momento em que se passa a investir na construção de edificaçõescomoformadefortaleceraimagemdacidade57.AsconstruçõesfaziampresenteoGovernoMetropolitanoejustificavamacobrançadeforais,rendimentoquetinhaimportâncianocontextodacolonização.Atravésderegulaçõesparaedificaçõesemanutençãodeviasepontes,onúcleoedificadodeSãoPauloauxiliavaaconstituiçãoda“ordem”.(PEREIRA,

1988)Issofavoreceuodesenvolvimentodamãodeobravoltadaparaaconstrução,fazendocomqueseestabelecessemnacidadealgunsmes-tresdeobra,pedreiros,carpinteiros,entreoutrasprofissõesrelacionadasàconstrução.

A Câmara procurava estabelecer critérios para a construção demoradiaseformaçãodearruamentos,assimcomoparaaincorporaçãodasterrasdeusocomum.OrociocontinuavaaterimportânciaparaosmoradoreseespecialmenteparaaCâmarapoisneleserapossível,porexemplo,promoveraengordadogado,atividadepassíveldefiscalizaçãoetaxação,representandoumaimportantefontederendaparaaorgani-zaçãomunicipal.

O aumento da população registrado nos censos que seriam rea-lizadosapartirde 1765,aliadoao incrementonadivisãodo trabalho,representou alguma mudança na fisionomia das construções da vila.Apesardisso,aindaquefossepossívelseencontrartijolosemalgumasolariasnavila,atécnicaconstrutivaquepredominava–equecontinua-riapredominandoemSãoPaulo–eraataipadepilão,havendoapenasalgumasconstruçõesemtijolooupedra.Geralmenteosedifícioscons-truídoscomessesmateriaismaisduráveiseramos“maissumptuososemelhores”dacidade:osedifíciosreligiosos.

O desenvolvimento de atividades relacionadas à construção e aoavançodastécnicasconstrutivas,quepassavadataipaaotijolo,aindaquemuitolentamente,incluíacadavezmaisosriosdeSãoPaulo,so-bretudooTamanduateí,devidoàextraçãodeareias,cascalhoseargilasdasmargensevárzeas.Ataipadepilão,queerafeitabasicamentecomrecursos da terra, dava espaço a técnicas construtivas que exploravammaisascondiçõesdorio.

57. SãoPaulofoielevadaàcondiçãodecidadeem1711.

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PRIMEIROS CONDUTOS DE DISTRIBUIÇÃO DE áGUA E CHAFARIZES

Em1775,onúcleourbanodeSãoPauloabrigava1.722habitantes,queocupavam460casas58.Apesardeessesnúmerosnãoconsideraremosescravos,quenãoeramrecenseados,elesapontamparaumcrescimentoconsiderávelnonúmerodehabitantesdacidade.

A maior preocupação continuava sendo a sobrevivência da vila,queresistiacomosrecursosquetinha.Essesrecursossedividiamen-treprodutosimportados,deacessolimitadodevidoaosaltospreçosdetransporte;produtosmanufaturadosnaprópriavilaouemlocalidadespróximas;erecursosnaturais,os“bensdaterra”,originários,também,dasterrasdedomíniocomum,incluindoosrios.

Acidadecontinuavaaserabastecidapelaságuasdosriosecórregospróximos,alémdasfontesdedentrodavila,enquantoosdejetoseramdespejadosdiretamentenessesmesmosriosecórregos.Noquedizres-peitoaoabastecimentodeágua,asituaçãodavilaparecenãotersealte-radoatémeadosdoséculoXVIIIquandoforaminstaladososprimeirosdutosdederivaçãodeáguaparaabastecimentodeSãoPaulo,sendoqueoprimitivosistemadeabastecimentodeáguaemfontes,quejávinhasendousadoporcercade200anos,continuariafornecendoáguaparaavila.

Foinessecontexto,ouseja,apartirdamaiordiversificaçãodasati-vidadesurbanas, impulsionadaspelaatividadedaconstruçãoeconse-quentemaiordisponibilidadedemãodeobracomoartesãoseconstru-tores,edoaumentopopulacional,quefoiinstaladoemSãoPaulooseuprimeirosistemadedistribuiçãodeágua59.

Esses primeiros condutos ainda não eram suficientes para servirtodososmoradoresdacidade.Aocontrário,grandepartedapopulação

58. PORTA,Paula.HistóriadaCidadedeSãoPaulo,vol.1:AcidadeColonial.SãoPaulo:PazeTerra,2004.

59. ParaMarx,segundoJorgeOseki,nomododeproduçãoasiático,auniãopeloEstadodascomunidadescamponesas,sedáatravésdaredehidráulica.“OEs-tadoseencarregadosproblemascolocadospelodomíniosobreaágua:diques,drenagens,irrigações[...]Estaexecuçãodeumaredehidráulicaéacompanhadaconstrução de estradas, colocando em relação as unidades produtivas, estra-dasdeusocivil,militarereligioso”.AindasegundoOseki,empaísesasiáticos,comoíndiaeChina,enessaregião,aáguatemmaiorimportânciaqueaterra,onde a renda é extraídadaágua e dousodaágua,maisdoque dosolo.LE-FEBVRE,Henri.Del’Etat,tomoII,10/18-UnionGéneraled’Éditions,1976,p.226-227apudOSEKI,1992,p.114.

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aindaseabastecianosriosouemfontesnaturais,ondeforamedificadasbicasechafarizes,ouemcórregosenosriosTamanduateíeAnhanga-baú.Emqualquerdessescasos,aáguajápareciaimpura,umavezqueos despejos de águas servidas continuavam a acontecer nos mesmosriosqueabasteciamacidade.EssefatonãoimpediuquediversasfontesfossemabastecidascomáguadoTamanduateíeoutroscórregoscujaságuaseramconsideradasimpróprias.

ArespeitodequandoteriaseiniciadooprocessodepoluiçãodorioTamanduateí,émuitodifícildeterminarumadata,jáqueapreocupa-çãocomesseriosópassouasermanifestadaquandoasujeiraapareceuvisualmente ou através do seu cheiro. O fato é que desde muito cedoesseriorecebeudespejos.Oseuleitofavoreciaaestagnaçãodaságuasformandobrejoseatoleiros.Sua inclinaçãoémínimaeosoloésedi-mentareargiloso,dificultandoadrenagem,principalmentenosmessesdecheia.SegundoMariaVicentinadoAmaralDick60,onomeTaman-duateínalínguatupisignificario dos tamanduás verdadeiros,aparentemen-te,devidoàpresençadesseanimalnasmargensdesserio,interessadosnas formigas que se acumulavam sobre peixes que eram ali deixadosapodrecendoapósosperíodosdecheia.Pode-sesuporqueessespeixespodresjárepresentassemalgumapoluiçãomesmoantesdapresençadocolonizador,aindaquenãoexistamregistrosnessesentido.Entretanto,comoseverámaisadiante,eracostumeindígenaapráticadapescacomvenenosmuitofortes,mostrandoqueadepredaçãodanaturezanãoeraumacaracterísticasomentedocolonizador.

A estrutura do primeiro sistema de distribuição de água de SãoPauloeraprecária:umarededevalasabertasdiretamentenaterra,porondeaáguacorriapelasruasacéuaberto,estandomuitosuscetívelacontaminações, desvios e apropriações indevidas. Era comum que al-gumproprietáriodeterra,motivadopelagrandecomodidadequeaáguatrazia,seapropriassedaágua,fazendoparaissodesviosnocursoparadentrodesuapropriedade.

Aprecariedadedosistemaeessasapropriaçõesfaziamcomqueaáguafrequentementenãochegasseatéasfontesechafarizesdacidade,causandoenormetranstornojáqueamaiorpartedapopulaçãoseabas-teciadessaságuas.Evidentemente, issonãoaconteciasemconflitoseprotestospois,aindaquenãoexistisseumaregraclaraquegarantisse

60. DICK,MariaVicentinadePauladoAmaral,ADinâmicadosNomesnaCidadedeSãoPaulo1554-1897.SãoPaulo,Annablume,1996.

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olivreacessoaesserecurso,sabia-se,comovimosnocapítuloanterior,quenãosepodianegaracessoàságuaseterrasdeusocomum.

“[...]paraqueaáguachegasseaoschafarizes,eraprecisoper-correr um trajeto diversificado a céu aberto: em geral, a águacorriapormeioderegos;esses,porsuavez,atravessavambe-cos,ruase,àsvezes,quintaisdealgunsmoradores.Nadaga-rantia, portanto, que a água chegasse aos chafarizes sem tersido,pelocaminho,utilizadaporváriaspessoasedesviadaporfamíliaspoderosas.”61

Aindaqueexistisseumaformaoficialdeseapropriardaterra,aapro-priaçãodaáguapermaneciasendofeitacomoumreflexodasapropria-çõesdeterra.Aindefiniçãodasregrasdeapropriaçãodaáguadavaespa-çoparadiferentesinterpretaçõeseconcepçõessobreoseuuso.

Asituaçãodasbicasechafarizesondeseconsumiaecoletavaáguatambémnãoeraaideal.ErnaniSilvaBruno,sobreumabicaqueexistianoribeirãoAcu,relataquemesmocomalgumasmelhorias,

“[...]elacontinuou[...]recebendociscoseestercos,atravésdaumidadedosquintaisdealgunsmoradoresdesuasvizinhan-ças.Cheiravammalassuaságuasetinhamsaborhorrendo,di-ziaumaatadaCâmara.NãoerammelhoresporémaságuasdoTamanduateíedoAnhangabaú,emqueseservia“a maior parte dos povos”escrevia-senoanode1787.”(BRUNO,1991,p.284)

Essaredeabasteceu,em1744,oconventodolargodeSãoFranciscoquepassouacontarcomfornecimentodeáguapotávelcanalizadacaptadanorioAnhangabaú.62NosanosseguintesosconventosdeSantaTeresaedaLuztambémcontariamcomessefornecimentoapartirdecanaliza-çõesdosriosAnhangabaúeSaracurarespectivamente.

UmabrevecomparaçãoentreofornecimentodeáguadascidadesdoRiodeJaneiroeSãoPaulonesseperíodoéreveladora.NoRio,asten-

61. SANT’ANNA,DeniseBernuzzi.CidadedasÁguas:usosderios,córregos,bicasechafarizesemSãoPaulo(1822-1901).SãoPaulo:EditoraSenac,2007,p.91.

62. FREITAS,AfonsoA.de.DicionárioHistórico,Topográfico,Etnográfico,Ilustra-dodoMunicípiodeSãoPaulo,I,p.72apudBRUNO,ErnaniSilva.HistóriaeTradiçõesdacidadedeSãoPaulo:vol.1ArraialdeSertanistas(1554-1828).SãoPaulo:Hucitec,1991,p.282.

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tativasgovernamentaisdesolucionaroproblemadoabastecimentodeáguadatamde156163.Em1673,foiiniciadaaobradoprimeiroaquedutodopaís,que,inauguradoem1723,transportavaaságuasdorioCariocaemdireçãoaocentrodacidade,ondeeramdistribuídasemchafarizes.Atualmenteconhecidocomo“arcosdaLapa”,oaquedutodaCariocaéumaestruturadecercade270metrosdecomprimentoe17metrosdealtura,construídaempedraassentadacomargamassa.Paraaconstruçãodoaquedutofoiutilizadaamãodeobraescrava,indígenaenegraafrica-na,jásobacoordenaçãodaengenhariacarioca.Essadiferençanasredesdeabastecimento,dosmateriaisaplicadosedosprofissionaisenvolvi-dos,nomesmoperíododahistóriadasduascidades,refleteasuainser-çãonocontextodaproduçãocolonialeodesenvolvimentodesigualpeloqualpassavaacolônia.

SobreamãodeobraeosmateriaisutilizadosnaprimeiraredeemSãoPaulo,pouco foi registrado.Entretanto,sabe-sequesuaprincipalcaracterística era a precariedade e vulnerabilidade a contaminações, oquenosfazpensarqueosmateriaisaplicadosnãoeramosmaisapro-priados.Osdocumentosexistentesnãoregistraramamãodeobrauti-lizadanaexecuçãodasvalasdarede.Comovimos,escravosnegrosnãoentravamnemmesmonoscensosrealizadosnoperíodo,eo trabalhoindígena,proibidodesdeoséculoXVI, continuavasendoomitidodosregistrosoficiais.Entretanto,épossívelsuporqueessasobrastenhamsidorealizadasporessasduasmodalidadesdetrabalho.

Sabe-seaindaque,paraaconstruçãodasfontesdepedradolargoSão Francisco, foi contratado um mestre pedreiro chamado CiprianoFuntan,sendoexecutadasempedradecantariaecanosdebronze,con-tandocomduasbicaseduaspias64.

Apesardeaindapoucos,algunsmestresconstrutoressefaziampre-sentesemSãoPaulo,entrebrancos,escravosnegrosenegrosforros,oquerepresentavacertadiversidadenadisponibilidadedetrabalhadores,aindaqueasAtasdaCâmararegistremcomfrequênciaafaltademãodeobraqualificadaparaconstrução(PEREIRA,1988).Anotaçãoquesegue,deCarlosGutierrezCerqueira,confirmaessainformação.Segundoesseautor,nacidadedeSãoPauloem1765,havia

63. OprimeiroindíciodesaneamentonoBrasiléde1561,quandoEstáciodeSárealizouaescavaçãodeumpoçoparaabasteceracidadedoRiodeJaneiro.

64. CERQUEIRA,CarlosGutierrez.Tebas-VidaeAtuaçãonaSãoPauloColonial.IPHAN/SP,2011.

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“[...] apenas três Pedreiros: Antonio do Rozario (preto forro,casado,45anosdeidade,comrendade100milréisanuais);EstevãodaSilva(branco,casado,54anos,rendanãomencio-nada)eoBentodeOliveiraLima(branco,casado,56anosecomrendade500milréis).EsseBentoeraSenhordequatroescravosOficiaisdePedreiroe,entreeles,opardoTebas.(CER-

QUEIRA,2011)

Istoevidenciaocontextodasatividadesdeconstruçãodesseperíodo.Alémdaatividade individual independentedeumbrancoeumnegroforro,existenessemomentoumproprietáriodeescravos,umaespéciedeempreiteiro,quemantinhaumaequipedeoficiaisdepedreirocom-postaporescravosnegros.

Aobradochafarizdo largodaMisericórdia,umadasmaisutili-zadaseduradourasfontesdacidade, foiconstruídaem1792,graçasacontribuiçõesdapopulaçãoedoaçõesdealgumasfamílias65.Realizadocom“pedrasdaregiãodeSantoAmarotransportadasemcanôasede-sembarcadasnopôrtodaTabatingüera”(BRUNO,1991,p.285),possuíaquatrotorneirasdebronzeeeraabastecidocomaságuasdoAnhanga-baú,captadasnasproximidadesdoantigoTanqueMunicipal.

EssechafarizfoiconstruídoporJoaquimPintodeOliveira,conhe-cidocomoTebas.EscravonascidoemSantos,esseconstrutorsetornounotório pela qualidade do seu trabalho e pela frequência com que foicontratado em obras importantes da cidade. A maior parte das obrasrealizadasporTebasaconteceramquandoeleaindaeraescravo,proprie-dadedeBentodeOliveiraLima66.Mesmodepoisdofalecimentodoseu

65. SegundoErnaniSilvaBruno,“asuaconstruçãopareceterexigidoesforçoenor-medasautoridades,poisdesde1784recebiaaCâmararecursosparasuaedifi-caçãoeesbarravacomdificuldadesinclusiveparaaescolhadaságuascomquedeviaserabastecido”.(BRUNO,1991,p.285)

66. Segundo Carlos Gutierrez Cerqueira, Bento de Oliveira Lima “desfrutava deumacondiçãobastanterazoávelparaospadrõesvigentesàépocaemS.Paulo.Seupatrimônioconsistiaemumapequenacasa,delançoemeiodetaipadepilão,localizadanolargodoColégio;numsítionobairrodoCaaguaçú,ondetinha40cabeçasdegadoealgumasplantações,eoutrosbensquetotalizavam,juntamentecomosdezescravosquepossuía,1:572$880réis.Dentreosescra-vos,umeraOficialdeSapateiroeoutrosquatroOficiaisdePedreiro,figuran-doaíomulatoJoaquim,comidadede36anospoucomaisoumenosquefoiavaliadoem400milréis–quantiaaliásmuitosuperioraosdemaisOficiaisPedreiros,porquantoosoutrostrês,juntosalcançavamapenas319milréis.OvalorindicadopelosavaliadoresaoescravoJoaquim,noinventárioqueentão

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proprietário,continuoutrabalhandocomopropriedadedaviúva,donaAntôniaMariaPinta,sendoresponsávelporpartesignificativadosren-dimentosdestaúltima.Tebasgozavadecertaautonomia,podendoelemesmoassinaroscontratosdasobraseconstruções,mesmoestandosobacondiçãodecativo.AopassaraserpropriedadedocônegoMa-theusLourençodeCarvalho,obteveasuaalforria,porvoltadofinaldadécadade1770,medianteaconclusãodaobradofrontispíciodaIgrejadaSé,passando,depoisdisso,aempreenderobrasdemaneiraindepen-dente.EssefoiocasodaobradochafarizdaMisericórdia,construídanolargoemfrenteàigrejademesmonome67.

Segundo Affonso A. de Freitas, Tebas também foi o responsávelpelareconstruçãodaantigacatedraldeSãoPauloemmeadosdoséculoXVIIIetambémdatorredoconventodeSantaTeresa.(FREITAS,1985)AindasegundoFreitas,

“Fez-seaindaTebasengenheirohidráulicoassumindoereali-zandooencargodeestabeleceroprimeiroabastecimentopú-blicoregulardeáguaàPaulicéia,comaconstrução,empedradecantaria,doantigochafarizdolargodaMisericórdiaederiva-çãocanalizadaparaeste,daságuasdoAnhangabaú.”(FREITAS,

1985,p.63)

AindaquenãosejapossíveldeterminarqualfoiamãodeobrautilizadaparaarealizaçãodoscondutosdeáguadessaprimeirarededeSãoPaulo,épossívelobservarqueotrabalhoqueenvolveasatividadesrelaciona-dasàáguaganhamcertadiversidadeemmeadosdoséculoXVIII.Essadiversificaçãorepresentacertodesenvolvimentonadivisãodotrabalho,o que é confirmado pela existência simultânea do trabalho cativo, in-

sefezdáamedidadaimportânciaqueteriaTebasnaexecuçãodostrabalhoscontratadosporMestreBentodeOliveiraLima.Dispunhaeste,portanto,decapitalemão-de-obraqualificadasuficientesparaempresariarqualquerobradeconstruçãonacidade,assimcomodealgumaspropriedadesquepodiare-correrpara“afiançar”asobrasquearrematava”.(CERQUEIRA,2011)

67. ConformeexplicaDeniseBernuzzideSant’Anna,esselocalera“bastantepro-curadopelasvendedorasdequitutes,habituadasaseacomodaraseacomodarjuntoaseustabuleirossobreaescadariadepedradecantariadaigreja.Vendiamcuzcuzdebagreedecamarãodeáguadoce,biscoitosdepolvilho,bolosdemi-lhosocadooudemandiocapuva,pinhãoquente,amendoimtorrado,empadasdepiquiraoulambari,pé-de-moleque,entreoutrossalgadosedoces.Olocaldochafarizeraprocuradoporvendedoresdetodotipo,alémdepedintesedi-versoscuriosos”.(SANT’ANNA,2007,p.97)

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dígenaenegro,epelotrabalholivre.Aexistênciadessascategoriasdetrabalho, de um empreiteiro que liderava uma equipe de escravos, e aprópriaatividadedeTebas,detrabalhadorcativoahomemlivre,revelaacomplexidadedastransformaçõesqueaconteciamemSãoPaulo.

Assimcomofoivisto,dentrodaeconomiacolonial,opreçodoes-cravo eradefinido pelo retorno futurodo investimentodecapitalquesefazianacompra.Esseinvestimentosignificavaumcustofixoparaoproprietárioindependentementeseoescravoestivessetrabalhandoounão.Abuscapelareduçãodoscustosdemanutençãodoescravofaziacomqueotrabalhocativofosseaplicadonosintervalosdasatividadesprodutivas ligadas à atividade colonial de exportação. Ainda que esserendimento, acumulado à margem do mercado agroexportador, signi-ficassealgumaumentodariquezadoproprietário,elenãoseconstituíacomoumfluxoderendamonetária.(PEREIRA,1988)

NocasocitadodeBentoOliveiradeLimaesuaequipedeoficiaiscativos,asuaatividadejáapareceaquicomoumavançonadivisãodotrabalho aplicado à atividade da construção. As descrições acima nospermitemafirmarqueostrabalhosdeconstruçãorealizadospelosescra-vosdeBentoeramasuaprincipalatividade,nãoestandoatreladaàqual-querproduçãovoltadaaomercadoexternoàcidade.Opreçodoescravo,pagoporBentoparaadquiri-lo,continuavaaserdefinidopeloretornofuturodoinvestimentodecapitalrealizadonasuacompra.Entretanto,osrendimentosobtidosnarealizaçãodasempreitadas,agenciadaspeloproprietário, já se configuravam como um fluxo de renda monetária.Istoé,oproprietário,assimcomonocasodaproduçãoagroexportado-ra,aparececomoapessoaqueseapropriaemprimeiramãodotrabalhoexcedentedosprodutosdiretos.

LUTAS PELO CONTROLE E POSSE INDIVIDUAL DA áGUA

OcomportamentodaCâmaraMunicipalcomrelaçãoàsterrasmunici-paisoscilava,oradefendendoosmoradoreseosespaçosdedomínio,oraparecendomaispreocupadaemdefenderquestõesparticulares.Aorga-nizaçãomunicipalocupava-semaiscomadefesadavilaeafiscalizaçãodotransportedeprodutosdoquecomaregulamentaçãodadistribuiçãodeterras.

AlgunscasosrelatadosnasAtasdaCâmaraesboçamtentativasde

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patrimonializaçãodaágua,paralelamenteaoprocessodepatrimoniali-zaçãodasterrasdeusocomum.Essesregistrosrevelamcasosemqueproprietáriosdeterraondeselocalizavamnascentes,fontesouporondepassavaumcursod’água,tentavamseapossardaáguaeimpediroseuusocercando,impedindooacesso,desviandooseucursoouusandodeviolência.

EracomumemSãoPaulo,noperíodocolonial,queproprietáriosdeterrascercassemsuaspropriedadescomoformadeevitaroacessodeoutraspessoasarios,tanquesebicas(SANT’ANNA,2007).Assimcomofoidito,nãohaviaregraquenormatizasseousodaágua,tornando-secomumquediversosconflitosenvolvendoaáguadacidadefossemre-gistradosnasAtasdaCâmaradaVila. Issoaconteciaapesardehaverumanoçãodequeaáguaeraumimportanterecursoequenãosepodiacoibirouimpediroseuuso.Essaapropriaçãosedavacomoumadecor-rênciaquase intuitivadasregrassobreusoepossedaterra,queerammaisclaras,oquenemsempreresultavaemconcordância,jáqueaágua,fisicamente,secomportadeumaformamuitodiferentedaterra.

Comonãohaviaumadeterminaçãodecomoaáguadeveriasertra-tadaeregulada,apossedaterradavaaentenderparaoproprietárioqueaáguaquepassaporsuasterrastambémerasuapropriedade,sendoqueosnão-proprietáriosviamessamesmasituaçãodeumaformadistinta.

Cabe ressaltar que, inicialmente, as primeiras canalizações acon-teceramsemqualquerplanejamento,mas,aospoucos,essasatividadescomeçaramacontarcomapresençadetécnicoseengenheiros.

OscasoscitadosaseguirsãoexemplarespoiscaracterizamopapeldaáguanessemomentoemSãoPaulo.Aáguaaparececomoumobjetodeinteresseaindaambíguo,variandoentreacondiçãodebemcomumedeumpossívelgeradorderenda.Essescasostambémrevelamapo-siçãooscilantedaCâmara,queseorganizavaapartirdenovasrelaçõespolíticaseeconômicas.As indefiniçõessobreousodaáguapareciampairarinclusivesobreamunicipalidadeque,preocupadacomquestõesde outra ordem, deixava essas questões indefinidas, entre a defesa deinteressescomunseparticulares.

Apenasalgumasfamíliaseinstituiçõespossuíamfontesdentrodesuaspropriedades para consumo privado, o que representava um confortoconsiderável para o período. Esse era o caso dos frades do Largo São

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Franciscoquepossuíam,desde1744,umafontedentrodoclaustro68.Devidoaessesistema,osfranciscanosdispunhamdeumforneci-

mentodeáguaabundante,eporessemotivopretendiamencaminharassobrasdessaáguaparausopúblico.Paraisso,foiprojetadoumsistemacomduassaídasdeágua,uma“dentrodacerca”doconvento,destinadaaousoexclusivodessacomunidade,eoutraquedespejavaparaforaassobrasdessaáguaparausodorestantedosmoradores69.

ACâmarapressionavaosfradesparaquedestinassempartedes-saágua,queabundava,paraapopulação(GASPAR,1970).Pelaausênciadelegislaçãoqueregulasseousodaáguanavila,pode-seentenderquetrata-seaquideumcasodeapropriaçãoprivadadessebemcomum,masque,devidoàimportânciapolíticadessainstituição,essefatosetrans-formavaemumatodecaridade.

Aobrafoiorçadaem400$000.Osfranciscanossolicitaramauxí-liode300$000àCâmaraque,posteriormente,secomprometeuaco-laborarcedendoaexploraçãodoaçouguemunicipalaosfradesatéqueesseslevantassemaquantianecessáriaàrealizaçãodosistema.Asobras,quedemoraramaseiniciar70,foramconcluídaseosdoischafarizesfo-rampostosemfuncionamento.Aságuasquesobravamdochafariz“defora” constituíram o primeiro chafariz para abastecimento público deSãoPaulo.Entretanto,essechafariztevecurtaduração,sendodesman-teladologonoiníciodoséculoXIX,apósdiversasparalisaçõespararepa-ros.(GASPAR,1970eBRUNO,1991)

68. SegundoDeniseBernuzzideSant’AnnaessafontedepedrafoiconstruídapelomestredeobraschamadoCiprianoFuntan(SANT’ANNA,2007,p.98).

69. GASPAR,Byron.FonteseChafarizesdeSãoPaulo.SãoPaulo:ConselhoEsta-dualdeCultura,1970,p.21.

70. SegundoByronGasparaCâmarautilizouumartifíciogentilpara fazeruma“suaveadvertência”aosfrades:aCâmaracontratouomesmomestrequecons-truiriaaobraoriginal,CiprianoFuntan,paraaconstrução“naparagemcha-madaInhangavahu,aterradoosítioemcapacidadedeficarvistosaafonte,queterádozepalmosemquadradechãolajeado,duaspiasboas,depedra,emaiscapazcomfrontispíciodedozepalmosemquadra,comsuacimalhabemfeita,compirâmideecruz,tudodecantaria,deboapedra,etôdaaobraàsatisfação”(RevistadoArquivoMunicipaldeSãoPaulo,AnoII,XIV,165apudGASPAR,1970,p.22)“Essaobra,porém,nãofoifeita“porfaltadeágua”,conformesevêdeumanotade2dedezembrodomesmoano.Entretanto-informaAfonsoA.deFreitas-,águahavia,nãosóaquepoderiasercaptadanoaltoAnhangabaú,comoadoMandiocal, cabeceiradoSaracura,ambasaduzíveisporgravidadeparaoprojetadochafariz”(GASPAR,1970,p.21-22).Aparentemente,esseartifí-ciofuncionoujáqueosfradesiniciaramasobraslogodepois.

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Em1829asAtasdaCâmararegistravamumdebatesobreumasolicita-çãoparatornarousodaságuasdochafariz“dedentrodacerca”deusopúblico.Essasolicitaçãodemoroumuitoaserenviada,jáquesesabiaqueosfradesseopunhamàremoçãodacercaquedelimitavaasuapro-priedade.

AfundaçãodaAcademiadeDireitonopróprioLargoSãoFranciscofezcomqueapopulaçãodocentrodacidadetivesseumaumentoconsi-derável,jáque“osestudanteschegavamacompanhadosdesuasfamíliaseescravos,comotambémpelafixaçãocontínuadetodasortedecomer-ciantes”eaCâmaraseviapressionadaatomarumaposição.(GASPAR,

1970,p.22-23)

Ofornecimentodeáguaparaessaporçãodavilacontinuoupreju-dicadaatéqueumaresoluçãodaCâmarapôsfimàquestãotomandoas

“[...]providênciasnecessáriasaproldobempúblico,êsterecla-mandopormaiornúmerodefonteseespaçoparaotráficodoscondutoreseseusanimais,mandandoaproveitartodoterrenocontíguo ao centro da cidade, e abrir ruas e edifícios e casasdemoradaparahabitaçãodospovoadoresedosacadêmicos,e,achando-senessascircunstânciasoterrenoexterioraoedifíciodoCursoJurídico,aCâmarafêzderrubarosmurosdafrenteepôsemservidãopúblicaaáguaquedantesserviaaosreligiososdeSãoFrancisco”71.

Apósdiversasparalisaçõesparareformas,desmantelamentoserecons-truções,aáguafoiextintanoLargoSãoFranciscoem1876comademo-liçãodoschafarizes.(GASPAR,1970,p.25-26)

Umdospequenoscórregos,afluentesdoAnhangabaú,dequeseserviaapopulaçãodavilaeraoYacuba,ouAcu72,cujacabeceiraseformavano

71. AtasdaCâmaraMunicipal,XXIV,p.450apudGASPAR,1970,p.23.72. SegundoByronGasparadenominaçãoYacubavemdotupi-guaraniondeYse-

riaáguaeacuba,venenosa.“Comocorrerdotempo,ovocábuloYacubafoi-secontraindoemYacu,GuacueAcu,paradepoisdasegundametadedoséculoXVIIIfixar-sedefinitivamenteemAcu,estendendo-sepelosarredoresatéoiní-ciodaatualAvenidaSãoJoãoedenominando,também,apontesobreoAnhan-gabaú, naquele ponto. Desaparecido o córrego, a palavra Acu restringiu-se àbica”(GASPAR,1970,p.27).Apesardafamadeenvenenadas,aságuasdoYacubaerammuitoutilizadaspelapopulaçãodavila(GASPAR,1970,p.28).SegundoAffonsoA.deFreitas,oTanquedoZúnigaerao localdeumadasprincipais

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Tanque do Zúniga73 e em seu trajeto abastecia a bica do Acu antes deencontraroAnhangabaú,próximodaruaMiguelCarlos,atualFlorênciodeAbreu.Sabe-sequeessaságuas,apesardenãoseremasmaislimpasdavila,erammuitoutilizadaspelosmoradoresdaregiãoparaingestãoeparalavagemderoupas.(GASPAR,1970,p.28)

OlocalondeseencontravaotanqueeabrigavaasnascentesdoYa-cubaerapropriedadedosargentoManuelCaetanoZúniga,quetambémpossuíaoutrasterrasemSãoPaulo(SANT’ANNA,2007).AffonsoA.deFreitascalculaqueessetanqueproduziacercade10polegadasdeágua,queescoavamporumleitoescavadonochão(FREITAS,1985)e,portan-to,pelasreferênciasdaépocaesegundoesseautor,nãosetratavadeumvolumedeáguadesprezível.

Em1780,osargento tentou impediroacessoàáguadoribeirãoYacuba, jáquehaviaconseguido juntoaoouvidordacidadequepartedocórregofossedesviadoparaoseuquintal,impedindo,portanto,queoutraspessoasutilizassemaágua.Semprequeumapessoaeraflagra-dautilizandoessaáguaeraexpulsadolocalpelosescravosdosargento,queestavamautorizados,inclusive,adistribuirpancadas(SANT’ANNA,

2007,p.89).Osargentofoi,diversasvezes,acusadodeusardeviolênciapararemoverlavadeirasdolocal,comofoiregistradonotrechoquese-gue:

“[...]sobreumaáguaqueosargento-morManuelCaetanoZú-nigaquerimpedir que o povo e moradores do Acu se não sirvam dela[..] representamos a Vossa Excelência as violências que experi-menta o povodobairrodapontedoAnhangabaú[...]comosar-gento-morManuelCaetanoZúnigaarespeitodestelheimpedir lavar a pobreza roupas em um tanque de água que a maior parte do povo se serve dela para lavarem suas roupas e outros misterespeloretiroemqueestá,enãohaveroutranaquelaparagem,comopretextodelhechamar sua por provisão[...]emvirtudedaqualfezentraracorrentezadaditaáguaemumquintalqueestetemnoditobairroeporestepodernãodeveoditosargento-mortaparo

nascentesdoriachoIacuba, tributáriodoAnhangabaú,eque emseutrajetoalimentavaabicadoAcu.(FREITAS,1985,p.190).

73. SegundoDeniseBernuzzideSant’Annaagrafiadessenomevarioucomotem-po“Zúniga,Zunega,Zunicas,ZuniçaseZuniga.”AindasegundoessaautoraolocaldotanquetambémeraconhecidocomopraçadasAlagoasdevidoaexis-tênciadediversoslagosnaregião.(SANT’ANNA,2007)

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ditotanque,nemimpediraopovoqueaíválavarcomofeznodiaquinzedopresentemes,eemoutrosqueachando-seduasmulheresbrancas,casadasdeboanota,as descompôs de palavras injuriosas, e às pretas lhe tirou as roupas pelas matas querendo-lhes dar, e mandando pelos seus negros em outros dias correr com elas,erebaixarporelesoditotanqueafimdequenãojunteáguaparaselavarroupasnempoderemtomarsuascasas[...].” (FREITAS,1985,

p.190-191)

VemosporesseregistronasAtasdaCâmaradaViladeSãoPauloqueosargentotambémtentouimpediroacessoàságuasdotanquerebai-xandooníveldessereservatórioalémdedesviarocursodorio.Essere-gistro,alémdedeixarclaroquenãohaviaclarezasobreasregrasdousodaágua,revelaquejánesseperíodooscorposd’águadacidadesofriamintervençõesdrásticas,comoessadrenagemedesviodecursomostram.NoséculoXIXotanquefoisecado,abicadesfeitaeocórregotampado74.

Noanode1814oGovernoProvisóriodaProvínciadeSãoPauloincum-biuoengenheiromilitarDanielPedroMüller75daconstruçãodaestradadopiques,queligavaSãoPauloaSorocaba,comaintençãodefacilitaraintegraçãocomointeriordacapitania.Asobrasconsistiam:naformaçãodoLargodaMemória; noalargamentoeembelezamentodas ladeirasdoPiqueseSetedeAbril;no levantamentodeumparedãodearrimonaatualruaXavierdeToledo;naedificaçãodeumchafariznopontode

74. Em1855oTanquedoZúnigafoisecadoeterraplanado,dandolugaraoatualLargo do Paissandu, em uma obra coordenada pelo engenheiro Carlos Rathatendendoaumpedidodopresidentedaprovínciadr.AntônioRobertodeAl-meida.Aságuasdasnascentesquealimentavamotanqueforamentãocondu-zidasportubulaçõesdeferroatéoiníciodaatualtravessadoPaissanduondeforaminstaladoschafarizelavadouro.(FREITAS,1985,p.190)Finalmente,ocór-regoYacubafoicanalizadopelaRepartiçãodeÁguaseEsgotosem1898,mesmaépocaemqueabicadoAcudesapareceu.(GASPAR,1970,p.27)

75. Segundo Ernani Silva Bruno, “o Marechal Daniel Pedro Müller, filho de ale-mãesquesefixaramemPortugal,nasceunomarquandosua famíliaviajavaparaLisboa,eveioparaoBrasilcomoajudante-de-ordensdogovernadorFran-caeHorta(1802-1811).Eraengenheiromilitar,ealémdapirâmideedochafa-rizdoPiquesdirigiuaconstruçãodaantigapontedoCarmo.(BRUNO,1984,p.1444) Segundo Denise Bernuzzi de Sant’Anna, “autor de pontes e estradasimportantes,MüllerfoitambémoresponsávelpelaconstruçãodafamosaEs-tradadaMaioridade(nomedadoemhomenagemàmaioridadedeD.PedroII).Aestradaficouprontaem1844,ligandoSãoPauloaSantos,emsubstituiçãoàantigacalçadadoLorena”.(SANT’ANNA,2007,p.100)

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confluênciadas ladeiras;e,comocomplemento,naereçãodeumobe-liscoàmemóriado“zêlodobempúblico”demonstradopelogoverno.(GASPAR,1970,p.39)

Os trabalhos foram concluídos em 1815. As águas do chafariz76,queeramaságuasdoTanqueReúno77,foraminterceptadasdeumcursod’águaquesaíadotanque,sedirigiaaomorrodoCháeque,passandopelo bairro de Santa Ifigênia, finalmente chegava ao Jardim BotânicoparaalimentarolagocentraldoatualJardimdaLuz.(GASPAR,1970).Dadaaextensãodocurso,váriosmoradoresseserviamdessaágua,quefoiobjetodedisputaemdiversasocasiões,implicandoaintervençãodaorganizaçãomunicipal.

Porvoltade1822,jáduranteoImpério,obrigadeiroJoaquimJoséPintodeMoraesLeme foiacusadodemonopolizarocursod’água.ObrigadeirofoiintimadopelaCâmaraataparumdesviodocursoquecor-tavapartesdavilaformandoumsulcoprofundonochãoequepoderiacausaracidentes.Alémdisso,odesvioserviaexclusivamenteaproprie-dadedobrigadeiro,oquegeroudiversosconflitoscomoutrosmorado-resecomumconventolocalizadonasproximidades:orecolhimentodaLuz,que,teoricamente,teriaomesmodireitodeusaraágua.

Obrigadeirorespondeuaintimaçãoalegandoqueaadequaçãodocanaldeveriaserpagaportodosqueresidiamnoslocaisporondeaáguapassava(SANT’ANNA,2007).Eleacusavaumvizinho,JoaquimFlorianodeGodói,detambémusufruirdaáguadodesvio.Entretanto,maistar-de,alegouqueasobrasrealizadasnaconstruçãodapirâmidedoPiques,coordenadaspeloengenheiroDanielPedroMüller,

“[...]perverteuadireçãodiretadoregodenossaservidãoparaintroduzirapassagemdanossaáguaemumtanque,que,sen-domalconstruído, logosedanificoupelacausadeteroditoengenheiroinvertidooníveldoregoantigo”.78

76. OchafarizdoPiqueseraumpontodedescansoparatropeiroseviajantesquechegavamàvila,portanto,umequipamentoimportantenocotidianodacidade.SegundoByronGaspar,“oencanamentodabaciadapirâmideaochafarizeradescoberto,feitodetelhõesunidoscombetume”.(GASPAR,1970,p.39nota1)

77. SegundoDeniseBernuzzideSantana,oTanquedoReúno“eraformadopeloribeirãoSaracura,nocruzamentodaatualavenidaNovedeJulhocomoviadutoMartinhoPrado”.(SANT’ANNA,2007,p.93).

78. DepartamentodeCultura,SãoPaulo,Registrogeral,18,329,7deoutubrode1825apudSANT’ANNA,DeniseBernuzzide.CidadedasÁguas:usosderios,córregos,bicasechafarizesemSãoPaulo(1822-1901).EditoraSenac,SãoPau-

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Apósdiversastrocasdeofícios,aCâmaradecidiuqueoscustosdaobrade regularização seriam cobertos pelo brigadeiro e pelo seu vizinho.(SANT’ANNA,2007)

Em1826,umoutrocasoenvolveuobrigadeiroJoaquimJoséPintodeMoraisLeme.ElefoiacusadodeobstruirumacessoaorioTamanduateíquesedavaporumbecocontíguoàsuapropriedade.

Alémdesseacesso,haviaaindaoutrasformasdeacessarorioTa-manduateí,atravésdasladeirasdoPortoGeralnaregiãodeSãoBento,doCarmo,próximoaoconventoedoFonsecanaregiãodaTabatingue-ra.Poressasladeiraseracomumapresençadepessoasquetransitavamemfunçãodaobtençãodeágua,comoescravasequilibrandopotesnacabeça.(BRUNO,1991)Apassagempróximaàpropriedadedobrigadei-roaconteciapelobecodoColégioeeramuitoutilizadacomoconexãorápidaentreapartealtadacidadeeorioTamanduateí.Apassagemeraespecialmentemuitoutilizadapor“lavadeiras,pescadoresecarregado-resdeágua”quandoprecisavamacessaraságuasdosrio(SANT’ANNA,

2007,p.93).Naocasião,obrigadeiroconstruiudoismuros79queimpediama

passagemdepessoas,animaisecarroçaspelobecoedificultavamoaces-soaorio.ApósumavistoriadaCâmaraealgumdebate,obrigadeirofoiobrigadoaremoverosmuroseliberarapassagem.(SANT’ANNA,2007,p.93)

Em1828aconteceuumadisputaqueenvolviaaságuasdoChafarizdoPiquesedoTanqueReúno.Osatritossederamentreoinspetoredire-tordoJardimBotânico,AntônioMariaQuartim,eocônegoMelchiorFernandesNunes.QuartimacusouaCâmaradenegligênciaaodesviaraságuasdestinadasaolagodoJardimeusá-lasnoChafarizdoPiquesonde,segundoaacusação,“nãohouvecuidadoembetumarascosturas

lo,2007.79. SegundoDeniseBernuzzideSantana,“amoradiadobrigadeiroeravizinhaà

residênciadopadreJoãoJoséVieiraRamalhoquando,então,eleresolveuabo-canharumpedaçodobeco,construindoumbaldramedepedraeoutrodetaipa,ambospoucodiscretos:oprimeiromediacercadecincopalmos(1,10metro).Segundo uma vistoria da Câmara, essas construções invadiam cerca de umabraça(2,20metros)oquintaldaquelepadree,comosenãobastasseisso,elasimpediamapassagemdeanimais,carroçasemesmodepessoaspeloconhecidobeco(SANT’ANNA,2007,p.93).

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dacantariadadta.pirâmide”80acarretandoperdadeáguaedificuldadesemobtê-lanessechafariz.Quartimtambémacusoudedesvioocônegoque,segundoele,

“[...]possuidefronteoditochafarizumamoradadecasas,emcujoquintalquerportodososmeiosemodosteráguaperma-nente,sejaounãosejacomdeteriorações,oudiminuiçõesdasduaságuas,dapirâmideechafariz”.81

Adefesadocônegoalegavaqueaáguaqueeledesviavaeraumaáguasujaquenãoserviriaaninguém:

“Acresce demais a mais ser caluniosa a imputação que fazo mesmo Inspetor ao cônego Melchior, cidadão beneméri-to,virtuosoe incapazdosprocedimentosdequeéargüido:éconstantenoarquivodestaCâmaranumtermoassinadopelomencionadocônegoemqueseobrigaacalçareverificarumaboaporçãodecalçadaconcedendo-lheaCâmaradessetempoencanarparaseuquintalaáguajáinunda”.82

Segundoocônego,oresponsávelpelafaltad’águanopiqueseraQuar-timqueteriadesviadoaáguadoPiquesparaoJardimBotânicoenãoocontrário.Alémdissoocônegoalegavaque

“[...] uma considerável porção de vizinhos daquele lugar, amaiorpartegentepobreequeficareduzidaaprecisãodeirde-mandaráguamuitolonge,aomesmopassoqueestainsignifi-cantepartedeáguaquefoidesviadaparaaditafontenenhumafaltapodefazeraoJardimBotânicoporsersobraaqueiriateratélá.”83

80. ArquivodoEstadodeSãoPaulo,ObrasPúblicas,caixa1,ordem5.674,JardimPúblico,JuntaComercial,EngenhosCentrais,CompanhiaTelefônica,9deja-neirode1828apudSANT’ANNA,2007,p.94.

81. ArquivodoEstadodeSãoPaulo,ObrasPúblicas,caixa1,ordem5.674,JardimPúblico,JuntaComercial,EngenhosCentrais,CompanhiaTelefônica,9deja-neirode1828apudSANT’ANNA,2007,p.94.

82. ArquivodoEstadodeSãoPaulo,ObrasPúblicas,caixa1,ordem5.674,JardimPúblico,JuntaComercial,EngenhosCentrais,CompanhiaTelefônica,9deja-neirode1828apudSANT’ANNA,2007,p.95.

83. ArquivodoEstadodeSãoPaulo,ObrasPúblicas,caixa1,ordem5.674,JardimPúblico,JuntaComercial,EngenhosCentrais,CompanhiaTelefônica,9deja-

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Em1829,umofíciodovice-presidentedaprovínciadeurazãoaQuar-timeordenouqueaCâmararestituísseaáguadoPiques84aoHospitalMilitareaoJardimBotânico.OscustosdessereparoforamarcadospelaCâmara.SegundoDeniseBernuzzideSant’annaaCâmaraacabouar-candocomoscustosdediversasobrasdereparoecorreçãodecursos,principalmentequandoasdisputasenvolviamfigurasinfluentesdavila.(SANT’ANNA,2007,p.96)

AindasobreochafarizdoPiques,sabe-sequeessaobrafoiexecutadapelopedreiroVicenteGomesPereira,o“MestreVicentinho”,e conta-vacomcondutosde telhasdebarrobetumado.SegundoErnaniSilvaBrunoessechafarizforaconstruído“comassobrasdomaterialcomqueDanielPedroMüllerrealizaraasobrasdecanalizaçãodotanquedoBe-xiga”.(BRUNO,1991,p.288)

Dessa forma,percebe-sequea rededecondutosconstruídaparaabastecer o chafariz, continuava a aparentar certa precariedade, já queas“telhasbetumadas”,jánesseperíodo,eramconsideradasimprópriasparaessefimpoispermitiamquepartedaáguafosseperdidanocursoetambémporcorreracéuaberto.Ofatodeessaobratersidoconstruídacomsobrasdematerialdeoutraobranãopareceaquiserumsinaldeprecariedade,massimdeeconomiaderecursos.

AsobrasdemaiorimportânciaemSãoPaulo,comopontesees-tradas,jácostumavamcontarcomaparticipaçãodeengenheiros85.En-tretantoerararoaparticipaçãodessesprofissionaisnasobrasrelacio-nadasàprovisãodeágua.Normalmente,nesseperíodo,osengenheiros

neirode1828apudSANT’ANNA,2007,p.95.84. SobreochafarizdoPiques,sabe-sequepassouporduasgrandesreformulações

emseuencanamentoeestruturaentreosanosde1867e1873.Aúltimanotíciaquesetemdataéde1876,prováveldatadesuademolição.(GASPAR,1970,p.41)SegundoAfonsodeTaunay,“asingelapirâmidedoPiques,aindahojeexisten-te,levantadaporordemdocapitão-generalsobadireçãoeplanodotenente-coroneldeengenheirosDanielPedroMüller rústicoemoderníssimopadrãodestinadoaembelezarolocalondeseconstruíraumchafariz”.(TAUNAY,2007,p.172)

85. SobreCláudioArasawa,“paraasnecessidadesinternasdamaioriadoscentrosurbanos paulistas, até meados do oitocentos, bastava a existência de algunsmestres-de-obrasoumesmodetaipeiros,comunsaindanaentradadonove-centos.[...]Aeles[aosengenheiros]opunham-senaturalmenteospraticantesdeofíciosmanuais,dentreosquaisoscarpinteiros,mestres-de-obras,taipei-ros,pedreiroseserralheirosquepareciamresponsabilizar-sepelamaioriadasdemandasreferentesàsatividadesconstrutivas.”(ARASAWA,2008,p.39)

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existentesocupavamcargospolíticosnosgovernosprovinciaiseerampoucososquesededicavamatrabalhosnascidades.Lentamente,essestrabalhospassaramafazerpartedessecampodoconhecimento,prin-cipalmenteematividadesrelacionadasaobrasdeprovisãodeinfraes-truturasurbanasemelhoramentos,taiscomodrenagem,esgotamentoeabastecimentodeágua.

Amaiorparticipaçãodetécnicoseprofissionaisdaengenharianes-sasobraspodeserexplicadapelastransformaçõesdeordempolíticaeeconômica porquepassava a colônia nofinaldo séculoXVIII.Comarestauração da capitania, sob a administração pombalina, as questõesurbanaspassaramarepresentarumaformadeafirmaçãodopoderpor-tuguês,fazendoqueseinvestissemaisnodesenvolvimentomaterialdacidade (ARASAWA, 2008). O caráter simbólico da cidade e da monu-mentalidadedasedificaçõespassavaasermaisvalorizado.Issoaconteceparalelamenteaodeclíniodamineraçãoeaoaumento,emSãoPaulo,dodesenvolvimentodaproduçãoruraledamaiorpresençadonegroafrica-nonaprodução.NacidadedeSãoPauloissosignificouoincrementodaaplicaçãoderecursosemmelhoriasmateriaisemaiorinvestimentoemcaminhosdeligaçãoporterracomointeriorecomolitoral.

Aindaquenessemomentoaparticipaçãodessesprofissionaissejamuito pequena, é importante notar que a sua presença em projetos eobras na província e, especialmente, na cidade de São Paulo, passariaaser frequente.Osproblemasrelacionadosaos rioseàságuas,comocontaminaçõesesurtosdedoenças,passariamaintegrarocampodosconhecimentostécnico-científicosque,apartirdessemomentoseriamui-tovalorizado.Esse fatoé importantepoismarcaomomentoemque,baseadosnaconfiançanessessabereseemumaimagemdemoderni-dade,oEstadoeasociedadevãopassarareconhecercomoverdadeirososenunciadosproferidospelosprofissionaisdaciência,aindaque,emmuitoscasos,estivessemvinculadosaos interessesdosgruposdomi-nantes.AparticipaçãodaciêncianostemasqueenvolvemosrioseaságuasdeSãoPaulo,nodecorrerdoséculoXIX,passariaaserumaobri-gatoriedade,nãosomentepararesolvertecnicamenteosproblemas,mastambémpara legitimarasaçõesdo Estado eempresas, cada vezmaisenvolvidoscomareproduçãodocapitalcomercialeindustrial.

Apresençadessestécnicosnacidadetambéméumaevidênciadanecessidadecrescentedecontrolesobreoespaçourbanoqueseinten-sificacomatransferênciadacôrteportuguesaparaoRiodeJaneiroem

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1808.Essasatividades,inicialmente,temumcaráterregulatórioperso-nificadonafiguradoengenheiromilitaredosengenheirosfiscais,res-ponsáveisporvistoriareacompanharobraspúblicaseparticulareseporzelarpeloeráriopúblico.(ARASAWA,2008)

Mesmocomapresençadealgunsengenheiroseoavançonadiver-sificaçãodasatividadescomerciaisurbanasobservadasnesseperíodo,aprecariedadedadistribuiçãodeáguadeSãoPaulopersistia.Oabas-tecimento de água, apesar dos avanços, permanecia insatisfatório emquantidadeequalidade.OesgotamentopermaneciapraticamentesemqualquermodificaçãodesdeoséculoXVI.

Isso acontecia, basicamente, pelo fato de São Paulo permanecerisoladadagrandeeconomiacolonial.

NocontextodeisolamentodeSãoPaulodentrodaeconomiaco-lonial,apesardosavançosnadivisãodotrabalhoenadiversificaçãodeatividades,amaterializaçãodascondiçõesgeraisdeproduçãonãosevia-bilizava,istoé,aproduçãodoespaçourbanocomoumprodutocoletivonecessário à socialização de produção de mercadorias e à apropriaçãodovalornãoacontecia. Issoporque,nãosomentea terra,mas tudooqueaconstitui,aindanãoaparecemcomomercadoria.Dessaforma,as-simcomooespaçonãoseconstituiemumproduto,adivisãotécnicae social do trabalho, pouco desenvolvida, inviabilizava a socializaçãodaproduçãoeconsumodemercadorias,oquerefletianaprovisãodasinfraestruturas.Asinfraestruturaseram,demaneirageral,consideradasapenaselementosestruturantesdoespaço,nãohavendo,portanto,qual-quer sentido nesses elementos que possam identificá-los como agen-tesdevalorizaçãodaspropriedadesterritoriais.Aeconomiadacidadepermanecia, portanto, visando apenas a produção para subsistência emanutençãodaocupação.

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CAPíTULO 3 - SUBSISTêNCIA PELO RIO: PESCA, AGUADEIROS, LAVADEIRAS E A RENDA DA áGUA

Paralelamente ao leve incremento na divisão do trabalho, à maior di-versidade de atividades urbanas e ao pequeno aumento populacional,aredededistribuiçãodeágualentamenteseampliava.Ainstalaçãodoprimeirosistemadeabastecimento,alémdeprecárioeinsuficiente,nãoimplicouqualquermudançanaformacomoosdespejoseramrealiza-dos.Isso,inclusive,continuavaacontecendodiretamentenaságuasdosriosdacidade,principalmenteàsmargensdoTamanduateíedoAnhan-gabaú. Essa atividade era executada por moradores, escravos negros eindígenas.

Alémdaingestão,acontaminaçãodaságuaspassavaadificultareimpediroutrosusosdosrios.

AalimentaçãodomoradordeSãoPaulocertamentefoimaisvaria-daqueadapopulaçãodeoutrascidadesdoBrasilnoperíodocolonial.Apredominânciadamonoculturabaseadanaproduçãodoaçúcarafetavaa produção de outros gêneros nos centros produtores, o que limitavamuitoadiversificaçãodegênerosalimentícios.Mesmoassim,

“[...]apesardafertilidadedoscamposdePiratininga-comcli-maeterrasquepodiamcondicionarocrescimentodaslavourasedosrebanhosdecriação,comonotaramalgunsJesuítasnaeraquinhentista-eadespeitodosesforçosdopodermunicipal,

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deentãopordiante,reveladosatodomomentoatravésdeumaporçãodemedidasqueficaramregistradasnasAtasdaCâma-ra,oabastecimentodecarne,porexemplo,jánoseiscentismo,semostrouemgeralbastanteirregular,nãosódopontodevis-tadaquantidadecomodaqualidadedamercadoriafornecidaàpopulaçãodavila.”86

Dessaforma,abaixadiversificaçãodeatividadesecomércio,queresul-tavaemummercadoatrofiado,tinhaconsequênciasemtodososaspec-tosdavidacotidianadosmoradoresdavila.Mesmoassim,apesardapobrezaedaescassezdegêneros,erapossívelencontraremSãoPauloumaboaalimentação.SegundoPe.ManueldaFonseca,fazia-seumpra-toutilizandoacanjica:

“[...]umguizadoespecialdeSãoPauloemuiprópriodepe-nitentes”,acrescentando:“constademilhogrossodetalsortequebradoemumplilãoquetirando-lheacascaeoôlhofiqueomaisquase inteiro.Émanjar tãopuroe simplesque,alémdaágua,emquesecoze,nemsalse lhemistura.Finalmente,ésustentoprópriodepobres,poissóapobrezadosíndioseafaltadesalporaquelaspartespodiamserosinventoresdetãosaborosomanjar.”87

Apobrezaderecursoseafaltadesalfizeramcomqueacanjicaeoangusetornassema“basedaalimentaçãonosprimeirostempos”aliadosàcaçaeàpesca(BRUNO,1991).

“ImportânciaconsiderávelnaalimentaçãodomoradordeSãoPauloduranteosprimeirosséculosdevemtertidoosprodutosdacaçaedapesca.Nostemposprimitivos,principalmenteosdapesca.Nosriosquecorriampelapovoaçãoesuasvizinhan-çaspescou-sedesdeosprimeirostempos[...].”88

86. BRUNO,ErnaniSilva.HistóriaeTradiçõesdacidadedeSãoPaulo:vol.1ArraialdeSertanistas(1554-1828).SãoPaulo:Hucitec,1991,p.253-254.

87. FONSECA,Manuelda.VidadoVenerávelPadreBelchiordePontes.p.55apudBRUNO,1991,p.259.

88. EssanotaçãodeSilvaBruno(1991,p.197)indicaqueapescafoiumadasprin-cipaisfontesdesubsistênciadosmoradoresdeSãoPaulonosseusprimeirosséculos.Éimportantenotartambémquejuntoàpesca,esseautorcolocaacaça,comofontedesustento.Caberessaltarqueapráticadacaçaaconteciatambém

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Apesca,entretanto,sempreesteve,decertaforma,ameaçadadevidoaocostumeindígena,quefoiincorporadopelocolonizador,deutilizarve-nenosparamatarospeixes.Ousodemateriaispeçonhentosnaspesca-riasvinhadecostumesantigosedetradiçõesindígenas.Essaspráticaspermaneceramaolongodosanos,emborativessevindodosportugue-sesohábitodeutilizaroanzolmetálico.(SANT’ANNA,2007)Essapráti-caancestralutilizavaotinguioutimbó,umveneno”tãofortequenosriosondesebotavanãoficavapeixevivo.Aságuaschegavamaficarescu-ras.DozemilpeixesdeumavezcontouAnchietaqueviumatarassim.”(BRUNO,1991,p.258)

ACâmaraseesforçavaparapreservarosentidocomumdosriosegarantirousodaságuas.Em1591,aCâmaraestabeleciaquenoTaman-duateí “ninguém mandasse nem desse tingui, com pena de quinhen-tosréis”89.ÉmuitoprovávelqueessatécnicafossemaisaplicadanorioTamanduateíjáqueaságuasdesserio,sempredescritascomolentasequaseparadas,provavelmentepermitiamqueacoletadospeixesmortosfossemaisefetivaqueemoutrosrios.

Outratécnicaprimitivamuitoutilizadaparaapescaeraconhecidaporpari,cerca, tapumedetaquaraoucipó,ondeorioeraatravessadode margem a margem por uma cerca capturando os peixes que ali seprendiam.(BRUNO,1991)Entretanto,essatécnicanãoparecesermenosofensivaparaorioesuamanutenção,porcomprometerareproduçãodospeixes.Nessesentido,em1626,registrava-se“quenenhumapessoausetimbónemponhatresmalhoemtempoqueopeixesaiadesovar”90.

Apreocupaçãocomoperíododedesovadospeixesmostraqueha-vianítidaconsciênciaporpartedaorganizaçãomunicipal,ecertamentedosmoradores,dequeacontaminaçãodaságuasdosriosrepresentavaumproblemaparatodososmoradoresdaviladeSãoPaulo.

A depredação dos rios também acontecia a partir da lavagem deroupasededespejosrealizadoscomfrequêncianoscórregos,noAnhan-gabaúeTamanduateí,causandodoençasprincipalmentepelaingestãodeáguacontaminada.

“Tudopareceindicarqueaáguaecertosalimentosutilizadospelos moradores da cidade no setecentismo devam ter sido

emterrasdedomíniocomum,ouseja,nasáreasquecercavamavila,norocio.89. AtasdaCâmaradaViladeSãoPaulo,I,p.425apudBRUNO,1991,p.258.90. AtasdaCâmaradaViladeSãoPaulo,III,p.231apudBRUNO,1991,p.258.

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pelomenosfatôresqueconcorreramparaoaparecimentofre-qüentedeenfermidadesesobretudoparasuapropagação.[...]EaságuasdoTamanduateíedoAnhangabaú,dequeseserviaa maior parte da população, [...] envolvia imundícies proce-dentesdaslavagensderoupaedosdetritosqueconduziamemsuasinundações,comasquais“sepodiamfazerpestíferas,emprejuízodasaúdedospovos””91.(BRUNO,1991,p.342)

Mesmocomosdespejoseaameaçadoenvenenamentodaságuaséim-portanteassinalarqueapescafoiecontinuousendopormuitotempo92fundamentalparaasubsistênciadosmoradoresdeSãoPaulo,“bemoumal, havia peixe fresco de rio para o consumo da vila” (BRUNO, 1991,

p.258).SegundoAfonsodeTaunay,

“[...]nos livrosdamordomia domosteiro de São Bento [...]háreferênciaspreciosasarespeito,mostrandoqueosmongescontavamfreqüentementecomsuprimentoabundantedetraí-ras,trairões,lambariseoutrospeixesdoTietêedeseustribu-tários.”93

Aindasegundoesseautor,“osriosdasvizinhançasdacidadeeramemmeadosdoséculodezoitomaisvolumososdoquehojeepodiamforne-cerpeixecomcertafartura”(TAUNAY,2007,p.159).

AspráticasdapescanosriosdeSãoPaulopermaneceramnossécu-losXVIIIeXIX,assimcomoasmedidastomadaspelogovernonatenta-tivadefrearatividadespredatórias.Em1738,umaOrdemRégia

“[...]visandoasseguraraabundânciadepeixeduranteoanotodo, mandava que ninguém matasse peixe nas piracemas,nembotassetinguijadasnemtimbóenemusassedezangui-zarrasnemderêdesdearrasto94.(BRUNO,1991,p.271)

91. AtasdaCâmaraMunicipaldeSãoPaulo,XVIII,p.379-380apudBRUNO,1991,p.242.

92. Mesmocomaságuasdosriossujas,essaatividadedurouatéasprimeirasdé-cadasdoséculoXX,principalmentenosriosTietêePinheirosondeaságuaspermaneceramlimpaspormaistempo.

93. TAUNAY,AfonsodeEscragnolle.SãoPaulonosprimeirosanos:1554-1601.SãoPaulonoséculoXVI.SãoPaulo:PazeTerra,2007,p.159.

94. OrdensRégias,Rev.doArquivoMunicipal LXXVII,p.247-248apud BRUNO,1991,p.271.

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OtextodaOrdem,originário,portanto,dogovernoportuguês,defen-diaanormatizaçãodapráticadapescaemSãoPaulo, jáqueosméto-dosutilizadosameaçavamospeixeseaqualidadedaságuasdosrios.(SANT’ANNA, 2007) Esse edital expunha a preocupação, também doGovernoMetropolitano,empreservarosrioscomoumafontedesub-sistênciae,aomesmotempo,propunhaformasdecontroledasativida-desnosrios.Issorepresentaumanecessidadecrescentededominaçãoecontroledosrioseáguasdacidade.

Em1808umaposturadeterminavaaproibiçãodacaçadeperdizesedestruiçãodeninhosnoperíododeprocriaçãonumraiodequatrolé-guasemtornodacidade.“Haviamesmonaépocasujeitosquesededica-vamcompaixãoàscaçadasdetôdaespécie,nãoapenasnasvizinhançasdacidade-ondehaviacamposematasaindaemabundância-comoemlocaisdistantes.”(BRUNO,1991,p.636)

ApartirdoséculoXVIII,comamaiordiversificaçãodeatividadesurbanas,assimcomoodesenvolvimentodadivisãodotrabalho,apesca,fundamentalparaasubsistênciadavila,passouaapresentaravendadepescadoscomopossibilidadedegeraçãoderenda.

Pescadoresvendiampeixesempontosfixosdavila.Asruasdocen-troeramasquemaisabrigavamessetipodecomércio95.Váriosdessespontosdevendaficavampróximosaosprincipaischafarizesesuasaglo-merações, onde também eram comercializados outras mercadorias96.(SANT’ANNA,2007,p.85)

EmmeadosdoséculoXVIII,jáexistiaemSãoPauloalgumcomér-ciocompequenaslojasefeiras.Porvoltadametadedoséculo,aCâmaratomava medidas para a criação de mercados, as chamadas “casinhas”.Também nesse período, algumas medidas foram tomadas pelas auto-ridades municipais restringindo as atividades de comerciantes. Umavereançade1749estabeleceuavendadepeixefresconaentradadeum

95. DeniseBernuzzideSant’Anna,citandoJorgeAmericano,falade“umvendedorde peixes chamado Salvador: trazia sobre os ombros um pau roliço de cujaspontaspendiam“doiscestos,amododospeixeirosdaChina:tainha(peixeor-dinário),badejo,garoupa,robalo,camarõesdegraça.Umrobalogrande(paraocasalequatrofilhosemaistrêsempregadas)por 1.500,comcamarõesdegraça,paracontrapeso”.(AMERICANO,Jorge.SãoPaulonaqueletempo(1895-1915),Saraiva,SãoPaulo,1957,p.113apudSANT’ANNA,2007,p.84)

96. “Aliás,SãoPaulodofinaldoséculoaindaerasalpicadapormercadoresambu-lantes,vendedoresdegênerosalimentícios-doces,aves,ovos,verduras,alémde salgados preparados com o caldo e a carne dos pescados”. (SANT’ANNA,2007,p.85)

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becodaruaSãoBento,“defrontedeManueldeSousa”97.Aseguir,em1764,proibiu-seavendadepeixesemestradas,quedeveriaserrealizadanaLapaenoCarmo.(SANT’ANNA,2007,p.84)

Na tentativa de preservar os comerciantes de víveres, a Câmaratentavaorganizarocomércioevitandoaconcorrência,comonocasode“negociantese lojistasdepanosechapéusquevendiamtambém,nosseus estabelecimentos, açúcar, bebidas e até lombo de porco”98. Até ofinaldoséculoas“casinhas”passariamaserpontosimportantesdedis-tribuiçãodegênerosalimentícios.Entretanto,muitosalimentos,comoquitutes,pescadosecaçados,eramnegociadosemlargos,chafarizesecalçadasdeigrejas,ondeambulantes,geralmentenegras,vendiamseusprodutosempequenostabuleirosdemadeira.

NapontedoAcu,noiníciodoséculoXIX,ficavaumasenhoranegrachamadaSinhanadosBolinhos,quevendiabolinhosfeitoscompeixi-nhospescadosnoAcu.

“Preta velha e esturricada, forra, já há anos, manquitolantecomosaci-pererê, sempredepitinhodebarronaboca,ficavaàtardinha,horasinteiras,naquelestempos,aatirarpedrinhasnaságuasquealicorriamsobaPontedoAcu.(MARQUESapud

SANT’ANNA,2007,p.47)99

Dessaforma,osriosdeSãoPauloforneciamsustento,nãosomenteparaconsumoimediato,ouseja,semmediadores,mastambémpossibilita-ramaobtençãodealgumarendaquenãopodiaserdesprezada,diantedoisolamentodavila.

Essarenda,obtidaatravésdacoletadireta,eposteriortrocadeví-verespordinheiro,nãoconfiguraaindaumaformadesenvolvidadege-raçãodecapital.Trata-sedeumarendadesubsistênciajáqueécertoqueessedinheiro,conseguidoapartirdavenda,seriagastocomacompradeoutrositensparasubsistência100.Asenhoranegraquevendeosboli-

97. TAUNAY,AfonsodeE.HistóriadacidadedeSãoPaulonoséculoXVIII(1735-1765),I,p.161apudBRUNO,1991,p.303.

98. TAUNAY,AfonsodeE.HistóriadacidadedeSãoPaulonoséculoXVIII(1735-1765),I,p.90apudBRUNO,1991,p.303.

99. MARQUES,Gabriel.RuaseTradiçõesdeSãoPaulo:umahistóriaemcadarua,vol4daColeçãoHistória(SãoPaulo:ConselhoEstadualdeCultura,1966),p.48apudSANT’ANNA,2007,p.47.

100. NolivroterceirodeOCapital,Marx,aoanalisaraorigemdarendafundiária

101

nhosfeitoscomospeixesdoAnhangabaúcertamenteusariaessarendaparacomprar,porexemplo,umagalinhadeoutrocomercianteparacon-sumopróprio,ouaindaumtecidoparavestirouumavaradepesca.Éinteressantenotarque,diferentedoscasosanalisadosanteriormente,equeenvolviamotrabalhoescravonegroeindígena,aqui,ondeotraba-lhonãoécativo,arelaçãodotrabalhocomapropriedadedosmeiosdeproduçãoaindaéíntegra.Orioeasterrasdedomíniocomumfornecemosustentonecessárioàsubsistência,aindaquejáexistaamediaçãododinheiro–oquedeterminaqueos“bensdaterra”sejamconsideradosmercadoria–ocapitalaindanãoéaformadominante.

“Nas formas de sociedade em que ainda não é o capital queexecutaafunçãodeforçartodoomais-trabalhoeemprimeiramão,deapropriar-seelemesmodetodaamais-valia,ondepor-tanto,ocapitalaindanãosubmeteuaseucontroleotrabalhosocial,ousóofezesporadicamente,nãosepodesequerfalarderendanosentidomoderno,darendacomoexcedentesobreolucromédio,ouseja,sobreaparticipaçãoproporcionaldecadacapital individual na mais-valia produzida pelo capital socialglobal.“101

Aqui,oprodutordireto,ouseja,opescador,dispõedetodooseutempodetrabalhoparaaproduçãodosseusmeiosdesubsistência.Nãoexisteexcedente102,nosentidodenãoexistirmais-produção,istoé,produção

capitalista,divideasrendaspré-capitalistasemrenda-em-trabalho,renda-em-produtoerenda-em-dinheiro(MARX,1986).SegundoJorgeOseki,naFrançasobLuisXIVeColbert,“tratava-sedemodificaraextraçãoerepartiçãodasren-dasfundiárias,queeramaindaosrecursosprincipaisdoEstadoedasclassesdominantes.Tratava-sedearrancarumapartedessarendadossenhorespro-vinciais,bemcomodosnotáveisburguesesdascidades(mercadosagrícolas).Asrendasdeviamsetransformaremrenda-em-dinheiro,asrendas-em-traba-lho(corvéias)ourenda-em-produtodesapareciam,passandoparaacontadaadministração(grandestrabalhos:diques,portos,estradasecanalizaçõesfeitosporcorvéias).”LEFEBVRE,Henri.Del’Etat,tomoII,10/18-UnionGéneraled’Éditions,1976,p.34apudOSEKI,1992,p.114.

101. MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política, vol.3 Livro Terceiro: OProcessoGlobaldaProduçãoCapitalista,Tomo2.SãoPaulo:AbrilCultural,1986,p.246.

102. “Seoshomensnãofossemcapazesdeproduziremumdiadetrabalhomaismeiosdesubsistência,portanto,emsentidoestrito,maisprodutosagrícolas,doquecadatrabalhadorprecisaparasuaprópriareprodução,seodispêndio

102

acimadasnecessidades indispensáveisàmanutençãodoprodutordi-reto.

Dessa forma,oprodutordeve terumaprodutividadenaturalsu-ficientementegrandeparaqueexistaapossibilidadedetrabalhoexce-denteacimadotrabalhonecessário“àsatisfaçãodesuasnecessidadesimprescindíveis”(MARX,1986,p.252).Essaprodutividadedependedecondiçõesnaturais,sejadascondiçõesdeseusbraços,sejadascondi-çõesdosoloedaágua.

“Masaprópriapossibilidadeestápresaacondiçõesnaturaissubjetivaseobjetivas.[...]Seaforçadetrabalhoépequenaeascondiçõesnaturaisdetrabalhosãoprecárias,entãoomais-trabalhoserápequeno,mas,porsuavez,tambémoserãoasne-cessidadesdosprodutorese,poroutrolado,onúmerorelativodeexploradoresdomais-trabalho,e,porfimomaisprodutoemquesematerializaessemais-trabalhopoucorentávelparaesse número menor de proprietários exploradores.” (MARX,

1986,p.252)

Entretanto, essa possibilidade não cria renda de forma espontânea.Isso só ocorre através de coerção e da submissão do produtor direto.Na economia escravocrata, o escravo trabalha com condições de pro-duçãoalheiasede formanãoautônomae issoéoquepermitequeomais-trabalhosejaarrancadodelepeloseuproprietário.Estáclaroque,diferentementedoescravismo,nocasodospescadoresdeSãoPaulo,oprodutordireto103continuaaseroproprietáriodosmeiosdeproduçãoedascondiçõesdetrabalhoparaaproduçãodeseusprópriosmeiosdesubsistência104.

diáriodetodaasuaforçadetrabalhoapenasdesseparaproduzirosmeiosdesubsistênciaindispensáveisparasuasnecessidadesindividuais,entãonãosepoderiafalardemais-produtooudemaisvalia.Umaprodutividadedotrabalhoagrícolaquetranscendaasnecessidadesindividuaisdotrabalhadoréabasedetodaasociedadee,sobretudo,éabasedaproduçãocapitalista,queliberadaproduçãodosmeiosdesubsistênciaumapartesemprecrescentedasociedade[...]”(MARX,1986,p.247)

103. “Deacordocomospressupostos,oprodutordiretoseencontranapossedeseusprópriosmeiosdeprodução,ascondiçõesdetrabalhoobjetivasnecessá-riasàrealizaçãodeseutrabalhoeàgeraçãodeseusmeiosdesubsistência;eleexercedemodoautônomosuaagriculturabemcomoaindústriaruralcaseiraligadaaela.”(MARX,1986,p.251)

104. “A forma econômica específica em que se suga mais-trabalho não pago dos

103

Sobascondiçõesdeabundânciadeterrasefontesdesubsistência,comoera o caso de São Paulo, o mais-trabalho só poderia ser extraído dosprodutoresdiretosmedianteaapropriaçãodaterraeofimdasfontesde subsistência. Tornava-se necessário, portanto, a criação de relaçõespessoaisdedependência,sejamelasquais fossem,sejapresoemumasenzala,sejapresoàterracomoumacessóriodela.

Apesar do avanço representado pela estruturação da pequena rede dedistribuição, com o passar dos anos, o fornecimento de água em SãoPaulocontinuavaextremamentedeficitário.Afaltadeáguanasbicasechafarizeseraumaconstante.Atéofimdoséculo,outroscondutosdederivação foram construídos, complementando o sistema, mas man-tendosempreainsuficiênciadiantedademandaeaprecariedadecomoprincipaiscaracterísticas.Afaltadeáguafaziacomqueamunicipalida-deestudasseapossibilidadedeconseguiráguaemoutraslocalidadesebaciasdeoutrosrios,comooCambuci,jáqueaságuasdosriosecór-regosdavila jánãoapresentavamcondiçõesdeconsumo.Entretanto,as condições econômicas da cidade não permitiam que tais planos seviabilizassem.

Osdespejoscontinuavamacontecendodiretamentenosrios.NoAnhangabaú,

“[...]nasproximidadesdocórregoedapontedoAcuatirava-seaindaolixodacidade.OmesmoaconteciacomavárzeadoCarmo,beirandooTamanduateí,ondesefaziamentãoosdes-pejosdeumapartedapovoação,soltavam-seanimais,sujeitos

produtores diretos determina a relação de dominação e servidão, tal comoestasurgediretamentedaprópriaproduçãoe,porsuavez,retroagedeformadeterminantesobreela.[...]Ésemprenarelaçãodiretadosproprietáriosdascondiçõesdeproduçãocomosprodutoresdiretos-relaçãodaqualcadaformasemprecorrespondenaturalmenteadeterminadafasedodesenvolvimentodosmétodosdetrabalho,eportantoasuaforçaprodutivasocial-queencontramososegredomaisíntimo,ofundamentoocultodetodaconstruçãosociale,porconseguinte,daformapolíticadasrelaçõesdesoberaniaededependência,emsuma,decadaformaespecíficadeEstado.Issonãoimpedequeamesmabaseeconômica - a mesma quanto às condições principais - possa, devido a inú-merascircunstânciasempíricasdistintas,condiçõesnaturais,relaçõesraciais,influênciashistóricasexternasetc.,exibirinfinitasvariaçõesegraduaçõesemsuamanifestação,quesópodemserentendidasmedianteanálisedessascir-cunstânciasempiricamentedadas.”(MARX,1986,p.251-252)

104

preguiçosos caçavam e as lavadeiras batiam roupa.”105 (BRU-

NO,1991,p.198)

NoiníciodoséculoXIX,asAtasdaCâmararegistravamafaltadeáguapara abastecimento dos moradores de São Paulo, onde se conseguiaáguaemapenasum“únicochafarizquehavianacidade”(BRUNO,1991,

p.288),provavelmenteodaMisericórdia.Oprovimentodeáguafoiin-crementadoapartirdaconstruçãodeumacaixad’águaededoiscondu-tos,umabertopróximoàpontedoLorenaeoutropróximoàpontedoMarechal.Entretanto,oabastecimentocontinuavadeficienteemquan-tidadeequalidade.

“Nocentrodaparteprincipaldacidade[...]haviasomenteochafariz da Misericórdia, com quatro bicas que nem semprecorriamcomabundância.[...]Suaáguanãovalianada,poisvi-nhadoTanqueReúnoeemseupercursoatravessavaumrêgodescoberto,partedoqualpassavaporumarrabaldesujocha-madoruadoRêgo,cujoareraempestado[...]ecujochãoerajuncadodecaveirasdeboi,desabugosdechifres,deossoseoutrosresíduosimundos,porqueosseusmoradoreseramqui-tandeirosdemiudezasdomatadouro”106.(BRUNO,1991,p.288-

289)

Longedeserumacaracterísticadaregião,aescassezdeágua,umfatorelacionadoaquestõessociaisepolíticas,acirravaadisputapelaágua.Osconflitoseramrecorrentesemtornodaságuasdosriosechafarizesdavila,motivandoatosdeliberadosdeposseeimpedimentoaoacessoàsfontesdeáguaeaosrios.

PróximodofinaldoséculoXVIII,aescassezdeáguaapareciacomouma oportunidade de geração de renda pelo transporte e distribuiçãodeáguapelavila.Umbarrildeáguapodiaservendidopor40réisnocentrourbanizado(SANT’ANNA,2007).Apopulação,queseabastecianasbicasechafarizesdacidade,passoutambémacompraráguadeven-dedoresambulantesconhecidoscomoaguadeiros.Essesvendedores

“[...]deixavamumbarrilzinhodebaixodatorneiradacarroça

105. SAMPAIO,Teodoro.SãoPaulonotempodeAnchietaapudBRUNO,1991,p.198.106. BUENO,FranciscodeAssisVieira.AcidadedeSãoPauloapudBRUNO,1991,

p.288-289

105

e,enquantoeleseenchialentamente,despejavamoutronoin-teriordacasa-traçandoacarvãonaparede,cadadia,umriscoporvasilhafornecidaparacobrançanofinaldomês”.(BRUNO,

1991,p.1121)

Omovimentodosaguadeirosfaziapartedocotidianodacidade,tendolivreacessoàsfontes,chafarizeseresidências.SegundoSant’Annaessapráticaenvolviacertasociabilidadejáqueocontroledoconsumoera

“[...]estabelecidonarelaçãodiretaentremoradoreseaguadei-rosdentrodasresidênciase,emalgunscasos,apoucacerimô-niadessescomerciantescaíanarotinadoméstica.Váriosdelesassumiamatarefadedespejarolíquidodentrodepotesevasosdebarroqueficavamsobreprateleirassituadasnoslocaismaisfrescosdacasa:aáguamantinha-se,assim,emexcelentetem-peratura.”(SANT’ANNA,2007,p.103)

JánoséculoXIX,muitosdessescomerciantesvisavamodomíniodoco-mércioedadistribuiçãodaáguanacidade.Alémdaescassezdeáguanoschafarizes,ofatodeosriosmaispróximosencontrarem-serelativa-mentesujos,comooAnhangabaúeoTamanduateí,favoreciaavendadeáguapelosaguadeiros.AsAtasdaCâmararegistramqueessescomer-ciantesbuscavamáguaem“pontosdeágua”distantesdavilaequeser-viamumaáguadequalidademuitoboa.Mesmoassimhaviamrumoresdequealgunscomerciantesvendessemáguaimpuracoletadanosriospróximos.(SANT’ANNA,2007)

Há registros de eventos em que aguadeiros sabotavam o funcio-namentodechafarizesouatémesmodepredavamessesequipamentoscomoformadegarantiroseunegócio,causandorevoltaemmoradoresecativos.Asdisputas

“[...]resultavamfrequentementedareaçãodecativosaosabu-sosdosaguadeiros.Conhece-seoofíciodeumfiscaldacidadeem1864,pedindo providências das autoridades contra essesabusosquesedavamemvárioschafarizes.Osaguadeirosnãoapenas praticavam estragos, mas impediam também que osescravoseoutraspessoasseservissemdeáguaenquantonãoestivessemcheiasaspipasdeles.”(BRUNO,1991,p.623)

106

OfatoéqueoabastecimentodeáguadeSãoPaulonãoerasuficienteparaservir todaapopulaçãoeessaeraaprincipalcausadosconflitosemtornodosriosechafarizes.Nessesentido,osaguadeirostiveramumimportante papel na vida da cidade107, complementando o serviço dedistribuiçãoeágua.

AcomparaçãorealizadaporviajantescaracterizavaaestruturadedistribuiçãodeáguadeSãoPaulocomoinsuficiente.OnaturalistaCarlVonMartius,empassagempelaviladeSãoPaulonoprimeiroquartodoséculoXIX,registrouqueoabastecimentodeáguaerabastanteinferioraodeVilaRica,porexemplo,quecontavacomcatorzechafarizes.108

Bicas,fontesechafarizes,porondesedistribuíaáguapublicamen-te, continuavam a oferecer água gratuitamente aos moradores da vila.Esses equipamentos situavam-se em largos e praças, locais que logosetornaramverdadeiroscentrosereferênciageográficadentrodavila.Noslugaresondeaáguaeraoferecidaaglomeravam-seescravos,índios,viajantes,empregados,pobres,ambulantes,animaiserapidamentetor-naram-seocentrodavidasocialdeumaparcelasignificativadapopu-lação,principalmentedeescravos(SANTOS,2011,p.42-43).Ocotidianodacidadeeramarcadopelomovimentodecoletadeáguaentreascasaseoschafarizes.

Conflitos nessas localidades eram comuns e logo a presença daáguapassouarepresentaradesvalorizaçãodosimóveispróximos.Se-gundoAntonioEgídioMartins,logodepoisdainauguraçãodochafarizdaMisericórdiaem1792,umafamíliaqueresidianolargosemudoudelá“[...]pornãopodersuportarascenasdesagradáveisqueeramdecos-tumedar-senolugardoaludidoChafarizentreoscarregadoresdeágua,osquais,nasuamaioria,eramescravos”.(MARTINS,s/d)

Afonso A. de Freitas afirma que alguns desses equipamentos vi-viamrodeadosdegente,diaenoite,

107. SegundoDeniseBernuzzideSant’Anna,antesdafundaçãodoCorpodeBom-beiros, “eram os aguadeiros, a Guarda Urbana e os próprios moradores quedeviamapagarofogoeacudirosflagelados.Ossineirosdavamoalarme.Umaposturade1852,sobreosincêndiosnacidade,apresentadanumaseçãodaCâ-mara,prescreviaque“osproprietáriosouinquilinosdascasasdaruaoulargoemqueforoincêndioquetiverempoçosserãoobrigadosafranquearaentra-daparaosmesmospoçosafimdesetiraraágua”.ArquivoMunicipaldeSãoPaulo,DepartamentodeCultura,SãoPaulo,AtasdaCâmaraMunicipaldeSãoPaulo,6defevereirode1852,p.35apudSANT’ANNA,2007,p.90.

108. MARTIUS,CarlVon.ViagempeloBrasil,I,p.311apudBRUNO,1919,p.287nota145.

107

“[...]emgeralescravoscujasvozesseouviamdelonge.Denoi-teaconcorrênciaeraaindamaior.Emtempodeseca,quandoo fornecimentoescasseava [...]haviaàsvezes lutaemquesequebravamuitopotedebarro[...]”.(FREITAS,1991,p.288)

Os chafarizes promoviam a reunião de diversas pessoas em torno daágua,oquefaziadessesequipamentospontosdeintensastrocas,enãosomentedeconflitos109.Poressemotivosetornaramimportanteslocaisdesociabilidade,despertandodiversos interesseseanecessidade,porpartedaorganizaçãomunicipal,deintervirnessesespaços.

Como tentativa de controlar esses espaços e, por consequência,controlaraágua,aCâmarapassoualimitaroshoráriosdeusodoscha-farizesquepassaramaabriràs5hegeralmenteestavamfechadosàs21hou22h,sendoqueemmuitosdessesequipamentos foram instaladasgradesdefechamento.

NoiníciodoséculoXIX,avilacontavacomdiversasbicasechafarizes,oquenãosignificaqueoabastecimentodeáguafossesuficienteouregu-lar.Amaiorpartedesseschafarizespassavamlongosperíodosquebra-dosouinoperantes,fazendocomquepartesdavilaficassemfrequente-mentesemágua.Apopulaçãovia-seobrigadaaseservirdaságuasdosriosTamanduateíeAnhangabaú.Apesardesujos,essesrioscontinua-vamaserviráguaparaamaiorpartedaspessoasqueviviamemSãoPau-lo.Essacontaminaçãotambémeraresultadodaatividadedelavagemderoupas,queaconteciaprincipalmentenasmargensdorioTamanduateí.

“DaRuaGlicérioede todaaencostadacolinacentraldaci-dade,desciamlavadeirasdetamancos,trazendotrouxasetá-buasdebaterroupa.Àbeiradaágua,juntavamapartetraseiraàdianteiradasaia,porumnónoapanhadodasaia,aqualto-mava aspecto de bombacha. Sugavam-na pela parte superior,amarravam-na à cintura com barbante, de modo a encurtá-laatéos joelhosoupoucoacima, tomandoagora oaspectodecalçãoestofado.Deixavamostamancos,entravamn’águaede-bruçavam-sesobreorio,semperigodeseremmalvistaspelascostas.”(AMERICANO,1957,p.146-147)

109. Denise Bernuzzi de Sant’Anna lembra que “a imprensa e os documentos denaturezapolicial tendemachamaraatençãosobreoschafarizesunicamentenosmomentosdebrigasedepredaçãodeles”.(SANT’ANNA,2007,p.98).

108

AatividadedaslavadeirastinhaumsignificadoimportantenocontextosocialdeSãoPaulo.Emumacidadeondefaltavaáguaparabebereparatomarbanho,alimpezaeraumaqualidadequeseostentavaatravésdasroupasquesevestia.

“Daíaimportânciaextraordináriadaslavadeiraseengomadei-ras:seusofíciosviabilizavamaostentaçãopúblicadalimpezafísica e moraldeseuspatrões.Essatendênciasefortaleceuàme-didaqueacidadecresceueampliouseusespaçosdedistinçãosocial.[...]Dentrodasmoradias,toalhaselençóisdealgodão,linhooubretanha,fronhasdecambraiaeguardanaposalveja-dos graças ao uso de água fervida também contribuíam paraexibirosníveisdelimpezaeboaeducaçãodeseusproprietá-rios.”(SANT’ANNA,2007,p.124)

Osregistrosfeitospormemorialistasdãocontadequeessasmulhereseramemsuamaiorianegrasforras.Entretanto,épossívelsuporqueessaatividadetambémtenhasidoexercidaporescravas,principalmenteatéoséculoXVIII.Afaltadeáguatambémafetavaessaatividade,gerandoconflitoseaconsequenteintervençãodasautoridadesmunicipais.

“[...]quandodafaltadaágua[...].Numerososgruposdemu-lheresapressadassedirigiamemdireçãoàVárzeadoCarmo.Amaioriaeramex-escravasemamelucas,sendopoucasasmu-lheresbrancas.[...]Aconteciaquemuitoantesdeseacomoda-rem,cadaqualemseuslugares,jáseiniciavaadiscussãoqueeraacompanhadadeimpropériosepalavrõeseterminavaembrigas–tudoissoparaadisputademelhoreslugares.Raroodiaemqueapolícianãoerachamadaaintervir[...].”110(SAN-

TOS,2000,p.7)

AsvárzeasdoTamanduateíforamcaracterizadasporSaint-Hilaire111,nocomeçodoséculoXIX,comosendoumlocalmuitopitorescoeanimadopelapresençadelavadeirasquelavavamroupaspróximoàspontes,nabeirado rio.AsvárzeaserammuitopantanosasnasproximidadesdoTamanduateí, fazendocomqueassujeirasprovenientesdedespejose

110. SESSOJR.,Geraldo.RetalhosdavelhaSãoPaulo,1983,p.34.111. SAINT-HILAIRE,Augustede.ViagemàprovínciadeSãoPaulo.SãoPaulo:Mar-

tins/Edusp,1972,p.177.

109

lavagemderoupasseacumulassemecausassemmaiortranstornoqueemoutrosriosdacidade.

ErnaniSilvaBrunoalertaparaofatode,duranteaprimeiraviagemdeSaint-HilaireàSãoPaulo,asvárzeasdesserioestaremtransformadasdevidoaintervençõesnoseuleito112.AvárzeadoCarmoeraumlamaçal,gerandodiversosprotestoseprejuízosàcidade.IssomotivouaCâmaraaintervirnocursodesserio,natentativadedrenaravárzeaefazercomqueaáguafluíssemaisfacilmente.

Entre1841e1848,asprimeirasobrasderetificaçãoforamexecu-tadas nessa várzea visando seu enxugamento e “aformoseamento”, jáqueemépocadechuvasosriosquecercavamacidadetransbordavamquasetransformandoacolinaemumailha.AobrafoiumainiciativadoPresidentedaProvíncia,PiresdaMotta,eaconteceusobadireçãodoen-genheiroalemãoKarlAbrahanBresser,queconstruiuumcanalparaleloaocursooriginaldorio,maisdistantedosopédacolinaecommaiorprofundidade para aumentar sua capacidade de vazão113. Parte dos re-sultadosdessaintervençãopodemserobservadosnomapadaspáginas146-147e148-149.

Essaobraafastouoproblemamasnãooresolveu.OproblemadostransbordamentoseaságuassujasdoTamanduateícontinuaramamo-lestaracidade.Alémdisso,ocanalacaboucomumapartedorioqueeraconhecidacomsetevoltas,umasériedemeandrosquepodiamseravistadosdacolina.Averdadeéqueasintervençõescolaboraramparaagravarasituaçãodeinsalubridadedavárzeajáquedepoisdessasobrasregistrava-seque,alémdeteremdestruídoospasseiospúblicosquealiexistiam,

“[...]sãonotóriasasconsequênciasemprejuízopúblicodapo-pulação,napropagaçãodos insetosque infestamgeralmente

112. “[...] sabe-se que essa várzea, na época da viagem do naturalista francês – esegundodiziaumregistrogeraldaCâmaraem1822–estavareduzidasimples-menteaumpântanocontínuo,devidoaterseconsentidoquecertaspessoasatendendoapenasàssuasconveniênciastivessemdesviadodeseuleitonaturalaságuasdoTamanduateí.”(BRUNO,1991,p.212)

113. Nessaprimeiraintervenção,“[...]abriu-seumavalaque,retificandoacurvadorioondefoidepoisolargodoHospício,faziacomqueoTamanduateímargi-nasse a faixa de terreno onde mais tarde se desenhou a rua da Figueira. Em1810fizera-seumasegundavalapelocentrodavárzea,aomesmotempoqueseconstruíaoatêrroemcontinuaçãodaladeiradoCarmo”.(BRUNO,1991,p.212-213)

110

tôdaestacidade,naalagaçãodasmargensdorioevargeadospor êle derrigados, cujas águas estagnadas anualmente pro-duzemhálitospestíferosdeervascurtidasecorposcorruptos,cujos eflúvios, comunicados aos habitantes pela atmosferamotivamasfrequêntesepidemiasqueoprimemahumanidadecomindizívelestrago[...].”114(BRUNO,1991,p.350)

Essasobrastambémafetavamanavegaçãofluvialaomudarocursodorioesobretudopelalentidãodessesempreendimentos“quedeviamsertrabalhosfeitoscommuitamorosidade”(BRUNO,1991,p.213)SegundoJoséGeraldoSimõesJr.115,jánessasprimeirasintervençõesnocursodoTamanduateí,anavegaçãonesseriotornou-seinviável.

EssaintervençãonoTamanduateíéimportantepoismarcaomo-mentoemqueesserio,apartirdesuapoluiçãoeofimnanavegação,passariaafornecercadavezmenosmeiosdesubsistênciaparaapopula-çãodacidade,apesardemuitosmoradoresaindasubsistirematravésdeatividadesproporcionadasporsuaságuas.

Aomesmotempoemqueanavegaçãofluvialnacidadetinhaesserevés,ascomunicaçõesporterra foramseampliando.Os investimen-tos na agricultura aliados ao desenvolvimento das atividades urbanasemaioratividadecomercialnacidaderessignificaramosantigoscami-nhosquinhentistasquelevavamaocentrodavila,agoramaisligadosàexistênciadessasatividades.

114. RegistroGeraldaCâmaradaCidadedeSãoPaulo,XVII,p.272apudBRUNO,1991,p.350.

115. SIMÕESJR, JoséGeraldo.Anhangabaú:históriaeurbanismo.SãoPaulo:Se-nac/ImprensaOficialdoEstadodeSãoPaulo,2004.

PARTE II - APROPRIAÇÃO DA TERRA, DO HOMEM E DA áGUA

115

CAPíTULO 4 - APROPRIAÇÃO DO BEM COMUM

Enquantootrabalhoéescravo,aterraédestituídadevalorenãoequi-valeaocapitalmesmoquandotemumpreço.SegundoJosédeSousaMartins116, tanto no regime de trabalho escravo quanto no regime detrabalholivre,arendacapitalizadaéaprincipalformadocapital.Aocu-paçãodaterraerafeitapelasimplesposseporpequenoslavradoresoupelascartasdesesmaria,queeramaformalegaldeobtençãodeterrasporgrandesfazendeiros.Nãoexistindoummercadoimobiliáriocapazdegarantirretorno,acomercializaçãodetrabalhadorescativos117repre-sentavamaioresinteresses.

“Nessesentido,oprincipalcapitaldofazendeiroestavainves-tidonapessoadoescravo,imobilizadocomorendacapitaliza-da,istoé,tributoantecipadoaotraficantedenegroscombasenumaprobabilidadedeganhofuturo.Ofazendeirocompravaacapacidadedeoescravocriarriqueza.Defato,a terra sem tra-

116. MARTINS,JosédeSouza.Ocativeirodaterra,SãoPaulo:LivrariaEditoraCiên-ciasHumanas,1981.

117. Sobreotrabalhoescravonasfazendas,explicaMartinsque“essetrabalhoera,como sabemos, trabalho compulsório. Entretanto, o caráter compulsório dotrabalhonãoprovinhadaescassezabsolutademão-de-obra,masdo fatodequeaofertadessestrabalhadoresnomercadoerareguladapelocomércione-greiro.”(MARTINS,1981,p.25)

116

balhadores nada representava em termos econômicos;enquantoisso,independentementedaterra,otrabalhadoreraumbemprecio-so.”(MARTINS,1981,p.26)

Alémdisso,ocapitalimobilizadonapessoadoescravoserviacomoga-rantia em empréstimos realizados pelos fazendeiros para a ampliaçãodosnegóciosdafazenda.Quasetodoocapitalenvolvidonaproduçãoeraprovenientedashipotecaslançadassobreapropriedadedosescra-vos.

Comaproibiçãodotráficoem1850,opreçodosescravosdisparou,aumentandoocapitaldisponívelaosfazendeiros.Essefatotambémex-plicariaoavançodocafédoRiodeJaneiroparaosmunicípiospaulistaspróximosaolimiteentreasduasprovíncias,noValedoParaíba.Assim,

“[...]aexpansãodocrédito,queaparentemente,beneficiavaaprodução,encerravaumacontradição:aelevaçãodopreçodoescravoincrementaabasedeobtençãodeempréstimoshipo-tecáriosaomesmotempoemqueaexpansãodosempreendi-mentoscafeeirosficavanadependênciadeumamaiorimobi-lizaçãodecapital, sob formaderendacapitalizadanapessoadocativo.Essasituação,portanto,nãobeneficiavaofazendeiro,massimotraficante,incrementandootributoqueaproduçãodeviapagaraocomércio”.(MARTINS,1981,p.28)

EmSãoPaulo,comacrescentedemandaportrabalhadoresescravos,tra-zidosdeoutrasprovíncias,atendênciaeraaumentaraimobilizaçãodosrecursosdos fazendeirossoba formaderendacapitalizada,enquantoque os tributos pagos aos traficantes aumentavam mais rapidamentequeaprodutividadedotrabalho.Aúnicasoluçãopossívelseriaaabo-liçãodaescravatura.

Éprovávelque isso já tenhasidoprevistoantesdadatadaproi-biçãodotráfico,em1850,vistoquenessemesmoanofoipromulgadaaleiqueincentivouodesenvolvimentodeumapolíticadeimigração118

118. SegundoPauloCesarXavierPereira“apolíticaimigratóriafoiforjadapelosca-feicultoresdeSãoPauloesubvencionadapeloscofrespúblicos,conseguindocarrearadisponibilidadedetrabalhoeuropeuparaocomplexocafeeiro”(PE-REIRA,2004,p.39nota1).SegundoLúcioKowarick,em“Escravos,PáriasePro-letários”,a“opçãoarquitetadapelograndefazendeirodecaféfoiaimportaçãoemmassadamão-de-obra,queempobrecidanaEuropa,nãotinhaoutraalter-nativasenãoadevender,porsinalapreçosaviltantes,sua forçadetrabalho.

117

decolonosestrangeirosquerespondesseàdemandadetrabalhadoreslivresnasfazendasdecafé.(MARTINS,1981)

Entretanto,aampladisponibilidadedeterras devolutasportodasaspartesdopaíspoderiaconstituirumgraveproblema,jáqueessasterrasestavam,teoricamente, livresparaseremapossadasnãosópornegroslibertosmastambémporqualquertrabalhador livre,nacionalouimi-grante.119

Osistemadeconcessãodesesmarias,queimpunhaobstáculosàsimplesocupaçãodaterra,tinhasidoabolidacomaindependênciadoBrasilnadécadade1820,ficandoasterrasdevolutasdoImpério,“des-protegidas” até a promulgação da Lei de Terras, em 1850, quando foiinstituídoqueoacessoàterranãosedariadeoutraformaquenãofossepelacompra,oque,porsisó,dificultavaconsideravelmenteoacessoàpropriedadedaterra.ApromulgaçãodaLeideTerrasapenasrepresen-touaformalizaçãodapropriedadeprivadadaterranoBrasil.

Em1854,comaregulamentaçãodaLeideTerras,todasasocupa-çõesetítulosdesesmariasforamvalidados,eapartirdisso,surgiunoBrasilumaindústriadefalsificaçãodetítulosdepropriedades,“sempredatadosdeépocaanterioràdatadalei,registradosemcartóriosoficiais,geralmentemediantesubornoaosescrivãesenotários”(MARTINS,1981,

p.29).Oacessoàpropriedadedaterraera,quasesempre,impossívelao

antigoescravoeaoimigrante,sejaporignorânciaouporfaltaderecur-sosfinanceirosparadespesasjudiciaisousubornarautoridades.Dessaforma, “a impossibilidade de ocupação sem pagamento das terras de-volutas,recriavaascondiçõesdesujeição do trabalhoquedesapareceriamcomofimdotrabalhocativo”.(MARTINS,1981,p.29)

[...]Naatividadecafeeiraocorreuasuperexploraçãodotrabalhador,porqueaabundânciadamão-de-obra,predominantementeestrangeiraemcertaszonasenacionalemoutras,possibilitoudeteriorarossalários”.(KOWARICKapudPE-REIRA,2004,p.39nota1)

119. “Ainda no mesmo ano de 1850, foram adotados procedimentos legais comvistas à substituição dos trabalhadores cativos. O objetivo sugerido foi o depromoveralivreimigraçãodoexterior.Todavia,nessepontorefletiu-seofatodeque,noBrasil,aescravidãoeraoprincipalrecursoinstitucionalparagarantiraosfazendeirosumaofertadeforçadetrabalhocompatívelcomademandadeseusempreendimentos.Seaescravidãocessassenadapoderiaprevenirodes-locamentodosantigosenovostrabalhadoresparaasterraslivresdafronteiraagrícola,ondepoderiamtornar-setrabalhadoresautônomosemsuasprópriasterras.”(MARTINS,1981,p.122)

118

Aquestãodocréditohipotecário,queanteseralastreadonocapitalinvestidonoescravo,foisolucionada,em1873,comaexpansãodocrédi-tohipotecárioatodososmunicípiosdasprovínciasdeSãoPaulo,ParanáeSantaCatarina,tendocomosuporteaprópriafazenda,representadasobretudopelasplantações,porsuasinstalaçõeseedifícios(MARTINS,

1981,p.30).Issopermitiuqueoescravofossesubstituídonãosócomotrabalhador,mastambémcomogarantiahipotecária.

FaltavaresolveraquestãodolivreacessoàsterrasdevolutasdoIm-pério,evitandoqueotrabalhadorlivresimplesmentetomasseposseoucomprassealgumaporçãodeterra,tornando-se,assim,trabalhadorau-tônomoeproprietário,deixandootrabalhonaslavourasdecafé.Nessesentido,ocorreramdiversosdebatesentreosgruposinteressadossobreamelhormaneiradesubstituiçãodotrabalhoescravopelotrabalholivre.Asoluçãoadotadaevitouqueoimigrantetivesseacessoàterradeformaimediata,devendooscolonosconquistarapropriedadedaterraatravésdotrabalho,deformaquesecondicionouoacessoàpropriedade,queraramenteaconteceu,aotrabalhoprévionafazendadecafé.(MARTINS,

1981)

Paulatinamente,ocapitalantesinvestidonapessoadocativo,ago-raliberado,passariaaseraplicadonapropriedadefundiária.

“Combinava-sedenovo,soboutrascondiçõeshistóricase,por-tanto,deoutraforma,aparentementeinvertidos,oselementosdesustentaçãodaeconomiacolonial.Arendacapitalizadanoescravotransformava-seemrendaterritorialcapitalizada:numregimedeterraslivres,otrabalhotinhaquesercativo;numre-gimedetrabalholivre,aterratinhaquesercativa.NoBrasil,arendaterritorialcapitalizadanãoéessencialmenteumatrans-figuradaherançafeudal.Elaéengendradanobojodacrisedotrabalhoescravocomomeioparagarantirasujeição do trabalho ao capital,comosubstituto da expropriação territorial do trabalhadoresubstituto da acumulação primitiva na produção da força de traba-lho.”(MARTINS,1981,p.32)

Haviamanifestointeresse,porpartedosprodutoresdecafé,emmanterafastadosdapropriedadeda terranegrosalforriados,assimcomotra-balhadoresnacionaiseimigrantes,comoformadesujeiçãodotrabalhoaocapital,mediantea implementaçãodoregimede trabalho livre.Taloperaçãofoifundamentalparaosucessodastransformaçõessociaise

119

econômicasentãopretendidas, sendonecessário impediroantigoes-cravoeoimigrante,jáexpropriados,aoacessoàpropriedadeetambémaqualquermeiodesubsistência.

Aculturadocaféimplicoumodificaçõesnabasedaproduçãoeco-nômicadaprovíncia,queculminaramcomaaboliçãodaescravaturaea imigração europeia, introduzindo transformações na cidade de SãoPaulo,notadamentenas formasdeproduçãoeelaboraçãomaterialdoespaçodacidade.Nesse,assimcomonaslavouras,aconteceramtrans-formaçõesnaformadevalorizaçãodocapital,passandoaseconcentrar,principalmente, na propriedade imobiliária. Isso também determinoucomoosriosdeSãoPauloseriamapropriadospois,comovimos,elessecaracterizavamcomooprincipalmeiodesubsistênciaparaosmorado-resdacidade.

TERRA E áGUA: DO DOMíNIO COMUM AO DOMíNIO PARTICULAR

SegundoErnaniSilvaBruno120,em1830,SãoPaulo,apesardeseracapi-taldaprovínciaedesde1823detentoradotítulodeImperialCidade,nãopassavadeumapobrepovoação,“nemasuaregiãonemasuaprovín-ciapodiamlhedarelementosdeprosperidadeededestaquedentrodosquadrosdaeconomiabrasileiradaépoca”(BRUNO,1991).AaparênciadacidadepoucohaviamudadodoinícioameadosdasegundametadedoséculoXIX,permanecendocontidanacolinaebalizadapelotriânguloapenasensaiandoaocupaçãodamargemesquerdadoAnhangabaú.

Defato,seobservarmososmapasreferentesaesseperíodo,épos-sívelconstatarqueaparceladacidadeefetivamentearruadaeocupadapraticamentenãosealteroudurantetodooséculoXIX,comopodeservistonosmapasde1844/47e1881(páginas144-145e146-147).Entre-tanto,issocontrastacomaimportânciadosfatosocorridosnesseperío-do,pois,enquantoonúcleourbanizadopoucomudava,acontecimentossociais,políticoseeconômicosdefiniramasbasesdaelaboraçãomate-rialdacidadequeaconteceriaapartirdofinaldoséculoXIX.

Dentreessesacontecimentos,aLeideTerrasde1850,asdisputaspolíticasentreosgovernosMunicipaleProvincial,alémdetransforma-çõesintroduzidaspelocultivodocafénoestadoforamresponsáveispor

120. BRUNO,ErnaniSilva.HistóriaeTradiçõesdacidadedeSãoPaulo:vol.1ArraialdeSertanistas(1554-1828).SãoPaulo:Hucitec,1991.

120

determinaraformacomosedariaaproduçãodoespaçodacidade.Essesacontecimentostambémdeterminaramaformacomoosespaços de uso comum,especialmenteasterrasquecontinhamosrioseaságuasdaci-dade,seriamapropriadosecontrolados.

Alein.601de18desetembrode1850,instituiuqueasterrasdevo-lutasdoImpério,ouaquelasdedomíniopúblico,apartirdaqueladata,medidasedemarcadas,sópoderiamseradquiridasexclusivamentepormeiodacompra.ALeideTerrasrepresentouaformalizaçãodaproprie-dadecapitalistadaterranoBrasileencerrouoantigosistemadeconces-sõeseposses121.

SegundoMônicaSilveiraBrito122,aLeideTerrasseorganizavaemconsonânciacomoprocessodeintroduçãodemudançasnasrelaçõesdeprodução,cujosobjetivosincluíamumaadequaçãodasrelaçõesentreoregimedepropriedadedaterraeoprocessodesubstituiçãodeumregi-mebaseadonotrabalhoescravoporoutrobaseadonotrabalholivre.Deformageral,“eraadefiniçãodecritériosparaaapropriaçãoprivadadasterrasdestinadasàproduçãoagrícola,portanto,oqueestavaentresuasprincipaispreocupações”.(BRITO,2007,p.50)

SobreasconsequênciasdaaplicaçãodessaleinoBrasil,segundoRaquelRolnik123,

121. Alei,“dispõesobreasterrasdevolutasnoImpério,eacercadasquesãopos-suídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bemcomoporsimplestitulodepossemansaepacifica;edeterminaque,medidasedemarcadasasprimeiras,sejamelascedidasatitulooneroso,assimparaem-presasparticulares,comoparaoestabelecimentodecoloniasdenacionaesedeextrangeiros,autorizadooGovernoapromoveracolonisaçãoextrangeiranaformaquesedeclaraD.PedroII[...]:Art.1ºFicamprohibidasasacquisiçõesdeterrasdevolutasporoutrotituloquenãosejaodecompra.[...]Art.3ºSãoterrasdevolutas:§1ºAsquenãoseacharemapplicadasaalgumusopubliconacional,provincial,oumunicipal.§2ºAsquenãoseacharemnodominioparticularporqualquertitulolegitimo,nemforemhavidasporsesmariaseoutrasconcessõesdoGovernoGeralouProvincial,nãoincursasemcommissoporfaltadocum-primentodascondiçõesdemedição,confirmaçãoecultura.§3ºAsquenãoseacharemdadasporsesmarias,ououtrasconcessõesdoGoverno,que,apezardeincursasemcommisso,foremrevalidadasporestaLei.§4ºAsquenãoseacharemoccupadasporposses,que,apezardenãosefundarememtitulolegal,foremlegitimadasporestaLei.”Lein.601de18desetembrode1850.

122. BRITO, Mônica Silveira. Modernização e tradição: urbanização, propriedadedaterraecréditohipotecárioemSãoPaulonasegundametadedoséculoXIX.2007.TesedeDoutoradoapresentadaaoDepartamentodeGeografiadaFFL-CH-USP,2007.

123. ROLNIK,Raquel.ACidadeeaLei: legislação,políticaurbanaeterritóriosna

121

“[...] a promulgação da Lei de Terras marca um corte funda-mentalnaformadeapropriaçãodaterranoBrasil,comgrandesconsequênciasparaodesenvolvimentodascidades.Apartirdesuapromulgação,aúnicaformalegaldepossedaterrapassouaseracompradevidamenteregistrada.Foramduasasimpli-caçõesimediatasdessamudança:[...]oreconhecimentododi-reitodeacessosedesvinculadacondiçãodeefetivaocupação,esuamonetarização,oquesignificaqueaterrapassouaadquirirplenamenteoestatutodemercadoria.”124

Esse novo regime de terras, introduzido pela lei de 1850, foi associa-doaoprojetodeimportaçãodemãodeobradecolonoseuropeuslivresparaaslavourasdecafé,oque,segundoJosédeSouzaMartins,exigiuaorganizaçãodeummovimentodetransição.Afinal,comovimos,oaces-soàterra,noBrasil,foilivreenquantootrabalhofoicativo,enomomen-toemqueseimplantouotrabalholivreaterraéquepassouasercativa.(MARTINS,1981)

É importantenotarqueessa lei refere-se,principalmente,às ter-rasruraisdestinadasàlavouraecriação,eaindaquemencioneasterrasurbanaseasterrasdestinadasaocrescimentodosnúcleos,issoaconte-cedemaneiramuitoimprecisa.NocasodeSãoPaulo,asterrasdeusocomumeporconsequência,osriosdacidade,estavamcontidosnessesespaçoscontempladoscomumasimplesmençãonalei.

Aleideterminouqueasterrasurbanasqueaindafaziampartedopatrimôniomunicipal,ouseja,terrasdedomíniocomum,diferentedoquefoiestabelecidoparaasterrasrurais,eramumaexceção,nãoestan-do,portanto,submetidasaomercado, istoé,àcompraevenda.Essasáreaspermaneceram,mesmoapós1850,sendoconcedidasdamesmaformacomovinhasefazendoantesdalei,ouseja,pormeiodoarrenda-mentoouenfiteuse125.

cidadedeSãoPaulo,SãoPaulo:StudioNobel:Fapesp,2003.124. ROLNIK,Raquel.ACidadeeaLei: legislação,políticaurbanaeterritóriosna

cidadedeSãoPaulo,SãoPaulo:StudioNobel:Fapesp,2003,p.23.125. ComoexplicaMônicaSilveiraBrito,enfiteuseé“umtipodeaforamentodeca-

ráterperpétuo,apartirdoqualoproprietário(oConselhomunicipalouaigre-ja,nagrandemaioriadoscasos),mantendo-sesenhoriododomíniodiretodasterras,transfereaoenfiteutaapenasodomínioútil,medianteopagamentodeumforoanualpreviamenteestabelecido.Alémdeperpétuo,odireitoadquiridopelaenfiteuse(istoé,odomínioútil)podeservendido,desdequerespeitadoodireitodepreferênciadosenhoriodiretoequepagoaesteolaudêmio,umataxa

122

Apesar de não ter implicado em uma mudança significativa na formacomoseconcediaterrasnosnúcleos,vilasecidades,a leide1850fezcomque,emSãoPaulo,umaparcelasignificativadasterrasquecircun-davamonúcleonãofossemconsideradas.Otextodaleiignoraopatri-mônio do Conselho,queeramasáreasdeusocomumeque,nessemomen-tocontinhamparteimportantedosriosdacidade.

Essa lei, que visava a regulamentação das formas de apropriaçãodasterrasrurais,ejánãoconsideravaparteimportantedasterrasdocon-textourbano,nãomencionaosrioseáguas,permanecendoessesrecur-sosignoradoseemsegundoplano,aindaquetenhamsidodiretamenteafetados.

Otextodaleideterminavaaindaquesefariaexceção,nãoestan-do,portanto,submetidasàcompraevendaasáreasqueestivessemnoperímetrodecobrançadadécima urbana, leide1808,queincidiasobreosedifíciosurbanos.Aleiquedeterminavaacobrançadadécima urbanadefiniuqueárea urbanaeraaquelaqueseencontrassearruadaeedificada,áreaessaque,emSãoPaulo,eramuitoreduzidasecomparadaaoperí-metrodorocio.Criou-seassimumagrandeárearemanescenteemvoltadonúcleosobreaqualnenhumadessasleissereferia.

Dessaforma,emSãoPaulo,noiníciodasegundametadedoséculoXIX,momentodapromulgaçãodaLeideTerras,oslimitesterritoriaisquecorrespondiamaorociocertamentenãoequivaliamaodaáreapro-priamenteurbana,aindaqueacontivesse.(BRITO,2007)

Oquedeveserditosobreoraiodemeialégua,ou3.300metros,dorocioéqueelesimplesmentenãoénotadonosmapasdesseperíodo,emuitomenospercebidonacidade,ondenãosenotaqualquerreferênciaou resíduo na morfologia urbana da cidade. Não se nota a existênciadesseperímetro,oumesmodasterrasdeusocomum.Issopodeserob-servadonosmapasdaspáginas 144-145 e 146-147,de 1844/47 e 1881,quesãoalgunsdosúnicosmapasdeSãoPaulodesseperíodo,nosquaisessesespaçosdeusocomumsimplesmentenãoaparecem.Éespecial-menteimportanteaconstataçãodequeessesdomínioscomunsnãoim-plicaramumaevidênciafísicanemumadiferenciaçãoentreoqueeramasterrasdopatrimôniodoConselho,easterrasdestinadasàcompraevenda, quando esse tipo de limite costuma aparecer e permanecer noespaço.Alémdostermosquedenominavamosespaçosdeusocomum,

pré-estabelecida,deresponsabilidadedoenfiteuta”.(BRITO,2007,p.50)

123

asevidênciasfísicasdesuaexistênciatendiamadesaparecereasuaau-sêncianosmapaséumaevidênciadessefato.

Ainda sobre esses dois mapas, é possível notar como os rios jáaparecemtotalmenteemsegundoplanotambémnasrepresentaçõesdacidade.OrioTamanduateí,sempredescritocomoumrioqueregular-mentetransbordava,érepresentadoapenasporseuleitomenor,eviden-ciandoqueasterrasdasvárzeasnãoeramconsideradaspartedorioouqueoestadodetransbordamentonãoeraseuestadoreal.IssoacontecenomomentoemqueasvárzeasdoTamanduateíeramobjetodedispu-ta. Mesmo o Tietê, considerado o mais importante da região, apareceapenasparcialmenteeincompleto.QuandootemadarepresentaçãoéacidadedeSãoPaulo,essesriosestãoausentes.

ALeideTerras,portanto,nãodeterminoucomclarezaoqueseriafeitocomaárea remanescente,ouseja,essaáreaque,

“[...]emborapertencesseaoancestral ‘patrimôniodoConse-lho’,nãoseenquadravacomo“urbana”e,portanto,aomenosteoricamente,deveriaternacompraevendaosúnicosinstru-mentoslegaisparasuaalienação.Poroutrolado,aprópriano-ção de ‘patrimônio do Conselho’ não chegou a ser expressa-menteextintapeloconjuntodeleisquepropunhamarenovaros termos concernentes à propriedade fundiária no Brasil”.(BRITO,2007,p.51)

Essafoiaimprecisãonaleiquefez,nocasodeSãoPaulo,comqueasáreasremanescentesdorociopassassemaser,literalmente,terra de nin-guém,estandosubmetidasaojogopolíticoeaoclientelismo,quecaracte-rizaramesseperíododoséculoXIXnacidade.Dessaforma,

“[...]opoderdeconcederparcelasdeseupatrimônio,dispondodelascomsignificativaautonomiae,presumivelmente,valen-do-sedessepoderparafavorecimentospessoaiscaracterísticodeumsistemapolíticodebaseclientelistapôde,assim,mesmoapósaentradaemvigênciadaLeideTerras,sermantidopelasCâmarasMunicipais”.IssoteveumreflexodiretonoprocessodeurbanizaçãodeSãoPaulo,umavezque foramjustamenteasterraspertencentesaessespatrimôniosquederamsuporteàexpansãodaáreaarruadaeàorganizaçãodomercadoimobi-liáriourbano,nummovimentoqueseassociavaaoprocessode

124

“modernização”aoqualaquelamesmaleiseatrelava(BRITO,

2007,p.55).

Essafoiabaselegalquepermitiaaacumulaçãobaseadanaexpropriaçãodopatrimôniocomumetransformavaaterraemmercadoria.Aindaqueaságuasnãofossemmencionadasnalei,osriostambémseriamafeta-dospelavalorizaçãodasterrassobseudomínio.

Esse é o contexto específico da Lei de setembro de 1850 e alguns deseusdesdobramentos.AorigemdasorganizaçõesmunicipaisnoBrasil,comofoivisto,vemdoperíodocolonial,de1603,datadas Ordenações Filipinas, legislaçãoquepermaneceuemvigormesmoapósaIndepen-dênciadoBrasil.

Em1828,comareestruturaçãopolítico-administrativadecorrentedaIndependência,oGovernoCentralrealizouumareformanalegisla-çãoquediziarespeitoàorganizaçãomunicipaleaogerenciamentodeseupatrimônioterritorial126.Apartirdeentão,avenda,oaforamentoouatrocadasterraspertencentesaopatrimônio do Conselhoestavamvincu-ladosàautorizaçãodospresidentesdeprovíncia,emumaclaratentativadecentralizaçãodopoderporpartedoGovernoProvincial.

Essatentativadecentralizaçãodopoderpassavapelaobrigatorie-dadedaexecuçãodeumlevantamentoouplantaparaaconcessãodosarrendamentos cedidos pelos Conselhos. Planta essa que, no caso deSãoPaulo,jamaisseriarealizada,sendoobjetodedisputasentreasins-

126.ORegimentodasCâmarasMunicipaisquesereferiaaopatrimôniodoConse-lhodispunha,entreoutros,que:“Art.42o.-[AsCâmarasMunicipais]Nãopo-derãovender,aforaroutrocarbensimmóveisdoConselhosemautoridadedoPresidentedaProvínciaemConselho,enquantonãoseinstallaremosConse-lhosGeraes,enaCortesemadoMinistrodoImpério,exprimindoosmotivosevantagensdaalienação,aforamentooutroca,comadescripçãotopographicaeavaliaçãoporperitosdosbensquesepretendemalienar,aforaroutrocar.[...]Art.43o.-Obtidaafaculdade,asvendassefarãosempreemleilãopúblicoeaquemmaisder,excluídososofficiaesqueservirementãoasCâmaras,eaquellesquetiveremfeitoaproposta,eexigindo-sefiançasidôneas,quandosefizeremapagamentos,pornãosepoderemrealizarlogoadinheiro,penaderesponsabi-lidadepeloprejuízod’ahiresultante.[...]Art.44o.-Damesmaformaecomasmesmascautelaseresponsabilidadesprescritasnoartigoantecedente,sefarãoosarrendamentosdosbensdoConselho;masestescontractospoderãoasCâ-marascelebrarpordeliberaçãosua,eserãoconfirmadospelospresidentesdasProvínciasemConselho,enaCortepeloMinistrodoImpério.”LeiImperialde01/10/1828In:ColleçãodasLeisdoImpériodoBrasil,1828,PartePrimeira.

125

tânciasdegoverno,MunicipaleProvincial.Sabia-seque,comela,osfa-vorecimentospessoaisobtidosatravésdasconcessõesearrendamentostenderiamaacabar127.

UmadasjustificativasdaCâmaraparaacobrançadoforonascon-cessões de terras do rocio era o aumento das arrecadações que incre-mentariamareceitamunicipal.ACâmaraalegavaqueeranecessáriaaobtençãodessarenda128atravésdeaforamento,econsequentealienação dos espaços de uso comum,paraarealizaçãodeobrasnecessáriasàcidade.ÉverdadequeasituaçãoeconômicadeSãoPaulopoucomudaradesdeofimdoséculoXVIII,permanecendoisoladaapesardoleveincremen-todaatividadecomercial.Noentanto,essarespostadaCâmaraparecetentaresconderofatodequeaáreasremanescentes,queéoqueestavaemjogonessemomento,erammuitoextensas,nãohavendointeresseempreservá-las,massim,distribuí-lassegundoseusinteressespolíticoseeconômicos.

Interessantenotartambémque,mesmoantesde1850,ouseja,an-tesdeaterraadquirirlegalmenteoestatutodemercadoriacomapro-mulgaçãodaLeideTerras,osinteressessobreseudomíniojásemani-festavamdeumaformamuitoevidente.Apropriedadeterritorialpassouatersignificadoeconômicoantesdalei,doquesedepreendequeestafoirealmenteapenasumaformalizaçãodeumprocessoqueseiniciaramuitoantes.Essemovimentodeacumulaçãoapartirdapropriedadedaterra(edaágua)tambémformavaaclassedosproprietáriosdeterraa

127. Paraentenderarelaçãodaausênciademapasdesseperíodocomaproduçãodoespaçodacidadever:GOUVÊA,JoséPauloNeves.CidadedoMapa:AProduçãodoEspaçodeSãoPauloatravésdesuasRepresentaçõesCartográficas.SãoPau-lo:DissertaçãodeMestrado,FAUUSP,2010.

128. Em1830,oPresidentedaprovínciaserecusouasubmeteraoConselhoGeraldaProvíncia,umapropostadaCâmarapaulistanaquesereferiaà imposiçãodecobrançadeforonasconcessõesdeterrasdorocio.ACâmarainsistia:“Oterrenoqueella[aCâmara]pedepararepartirpormeiodeaforamentoétodoaquellequeestádentrodorocio,nãosódacidadecomodasfregueziasdomu-nicípio,emesmoaquelle,queatodotempoellapuderreivindicarouporquetenhacahidoemcommisso,ouporquesejapossuídosemlegítimotítulo.Da-quise inferenãoserpossívelàCamaradeterminaraocertoaquantidadedeterrenoquesepretendeaforar.[...]Todaviacomoseus réditos são assás diminutos,edenenhumasortesufficientesparaasobraspúblicasquetantourgem[...],dirigiuagoraumapropostaaoConselhoGeralparaobterporessemeioalgumalgmentonassuasrendas[...].”AtadaCâmaraMunicipaldeSãoPaulo,Sessãode24/04/1830,p.144eOfíciode30/04/1830in:RegistroGeraldaCâmaradaCidadedeSãoPaulo1829-1830,p.367apudBRITO,2007,p.83.

126

partirdaexpropriaçãodasterrasantesconsideradasbemcomum.Aindaem1830,comooGovernoProvincialhavianegadoapropos-

ta,aCâmara,depoisdaaprovaçãodarevisãodasposturasmunicipaispelo Conselho Geral da Província, suspendeu a concessão gratuita dedatasesolicitouaofiscaldacidade,acompanhadodoarruador,queexe-cutasseademarcaçãodasterrasdorocioeelaborasseumplano.(BRITO,

2007,p.84),comoseobserva:

“Convindo para de futuro se evitarem as tortuosidades, quehoje se observam nas ruas dessa cidade e a falta de praças e de muitas outras servidões públicas, atéde fontes e aguadas queseacham encravadas em prédios particulares com grande detri-mentopúblico,queantesdeseconcederemcartasdedatasdeterrenosno rociodestacidadeseprocedaaumademarcaçãodesignando-seruas,epraças,edemaisservidõespúblicas.[...]SemelhantementeconsiderandoaCâmaraqueseachaaservi-dãodorio Tamanduatehy,quebordaestacidadecom grande detri-mento público;deliberounaditasessãoqueVossaMercêpropo-nha,fazendoosexamesnecessáriosetentandotodososmeiosconciliatórios,asconvenientesaberturasparaafranquezadasprecisasservidões.[...].”129

ACâmaratinhaplenoconhecimentodasnecessidadesdacidadee,emespecial,sobreacondiçãodoabastecimentodeáguaedespejosqueseagravarammuitonasprimeirasdécadasdoséculoXIX,sendoqueafaltadeáguaeraconstante.OTamanduateítornara-seinsalubreesuasmar-gens,quenaturalmentejáeramsuscetíveisaoaparecimentodelamaçais,tornou-seumlocaldeacúmulodedetritosapartirdosdespejosedasobrasnelerealizadas.

Asterrasdeusocomumforamsendoapropriadasporparticulares,apartirdadivisãodessepatrimônioemdatasefavorecimentodosinte-ressespolíticoseeconômicosdaCâmara,daProvínciaedepessoasin-fluentesdesseperíodo.Asaçõesvariavamdeacordocomquemocupavaoscargosdecomandodessasduasinstâncias.Ofatoéque,dadaarela-çãodeinteressesqueseinstituía,adelimitaçãoedemarcaçãodasterras de uso comumnãointeressavanemàCâmaranemaoConselhoProvincial.

129. AtadaCâmaraMunicipaldeSãoPaulo,Sessãode16/04/1830,p.127eRegis-troGeraldaCâmaradaCidadedeSãoPaulo1829-1830,p.259apudBRITO,200,p.83.

127

Issopodeserconfirmadopelaconstataçãodequesimplesmentenãoha-viaregistrocartográficodacidadenesseperíodo.Osqueexistem,maisescondemquerevelamoprogressodasconcessõesdasterrasdedomí-niocomum.Nomapade1844/47(verpáginas144-145),porexemplo,asáreasdeusocomumaparecem,comovimos,deformaindiscriminada.Entretanto,essedocumentoprovaque,naépoca,haviaconhecimentotécnicosuficiente130paraaexecuçãodeumaplantacircunstanciadadopatrimôniomunicipalquediscriminasseasterrassobdomíniodaCâ-maradaquelasquesepretendiampassaraodomínioprivado.

Promulgada a Lei de Terras em 1850 e instituída a dúvida sobreodestinodasáreasremanescentesdorocio,os interessesemquestãotornam-semaisevidenteseasdisputasseacirraram.Osfrequentescon-flitosentreasinstânciasdegovernosedavamporcontadedivergênciasnabasedosgovernos.Mesmoassim,épossívelnotarquehaviaalgumaidentidadedeinteressesentreaCâmaraMunicipaleaAssembleiaLe-gislativaProvincialnadistribuiçãodedatas,aindaquerepresentasseminteresseslocaiseprovinciais.

Até1852,depoisdapromulgaçãodaLeideTerras,estavaproibidaacobrançade forosobreasconcessõesrealizadaspelaCâmaraMuni-cipalesuspensasasconcessõesgratuitasdedatas131.Assim,aCâmaraMunicipaldeSãoPauloenviouàAssembleiaLegislativaProvincialuma

130. Esse mapa foi levantado sob a coordenação do engenheiro agrimensor KarlAbrahan Bresser, cuja própria presença em São Paulo nesse momento, é umreflexodeavançonadiversificaçãodasatividadesurbanas.Sabe-seque,alémdeBresser,haviamoutrosprofissionaisagrimensoresnacidade.Conformeain-formaçãodeMariaLúciaPerronePassoseTeresaEmídio(2009)oautordessaplanta,KarlAbrahanBresser,eraengenheiroagrimensornascidonaPrússiaequeveioparaoBrasilnoanode1838paratrabalharnaconstruçãodeestradasepontesnoGovernodaProvínciadeSãoPaulo.AindasegundoPassoseEmídio“eraproprietáriodeumachácaranaregiãodaatualruaBresser,noBrás,edeumafábricadelicoresnoMarcodaMeiaLégua.AutordemapasdeSãoPau-lo,entreosquaisode1841,éconsideradoointrodutordasprimeirasplantascadastraisnacidade.”EudesCampos(2008)continua,aindasobreBresser:“AssinoucontratoporcincoanoscomoGovernodaProvínciadeSãoPaulo,representadopelomajorBloem,emBremennodia1°deagostode1838,eporesse documento percebe-se que,aindaque nele fossequalificado comoagri-mensor,comdiploma,suaresponsabilidadenoBrasilseriaadeumverdadeiroengenheiro,poisdeveriaelaborarplanos,fazerorçamentosedirigirasobrasdaaberturadeumaestradaderodagementreSãoPauloeSantos”.

131. SIMONI,LúciaNoemia.OarruamentodeterraseoprocessodeformaçãodoespaçourbanonoMunicípiodeSãoPaulo:1840-1930.SãoPaulo,TesedeDou-toradoFAUUSP,2002.

128

representaçãoquepropunhaavendadoslotesconsideradosadequadosàedificaçãourbanaeaoaforamentodos“terrenosdosubúrbio”comaintençãodeaumentarosrendimentosmunicipais.132

ApropostafoiaprovadapelaAssembleiaLegislativaProvincial,au-torizandoavendadeterrenoseoaforamentodechácaras,alterandoacobrançadoforoanualde100paraapenas1realporbraça(SIMONI,

2002).Imediatamenteapósesseato,oPresidentedaProvínciasuspen-deuaautorizaçãoalegandoquenãohaveriatalconcessãosemquefos-semrealizados

“[...]certostrabalhospreparatóriospormeiodosquaesfiquecom clareza averiguado: –1o quaes os terrenos pertencentesinquestionavelmenteaorociodaCapitaleFregueziasquees-tãodevolutos.–2oquaesosquedeveriamserreservadosparalogradouro público. –3o quaes os que cumpre reservar paraa abertura de ruas e praças, para cemitérios das povoações, eoutrasedificaçõespúblicas,quernopresente,quernofuturo,ordenaaosSnres.PresidenteevereadoresdamesmaCâmaraMunicipalq.não[...]aforemantesdeapresentaremaogovernoummapaondeseespecifiquemascircunstanciasacimaexpos-tas[...].”133

Apesar de esta Portaria suspender os aforamentos das terras comuns,enquantonãofossemrealizadososlevantamentoseaplantacitados,aconcessãogratuitadeterrasdorociopermaneceuautorizada,conformealeiaprovadapelaAssembleiaLegislativaProvincial,somentesendosus-pensadoisanosmaistarde,quandoaregulamentaçãodaLeideTerras,de1854,reiterouaobrigatoriedadedarealizaçãodeumlevantamentoda

132. “Alémdisso,namesmarepresentação,alegavaque,emvirtudedasconcessõesteremsidolimitadasaumadataporindivíduoedoestabelecimentodedimen-sõesmáximasbastantereduzidas,de10braçasdefrente,impostasem1830,haviasetornadocomumapráticade,paraaformaçãodeumachácara,umin-divíduo, em nome alheio, proceder a vários pedidos de datas, adquirindo-asposteriormenteporcompra.Poristo,solicitavatambémautorizaçãoparacon-cessões,poraforamento,dedatasdemaioresdimensões,comaté100braçasemquadra(c.48.400m2),limitadasaumadataporindivíduo,pelaqualseriapagooforoanualde100réisporbraça,alémdeumimpostoproporcionalàsuperfícieconcedida,paraasdespesascommediçãoedemarcaçãodoterreno.”(BRITO,2007,p.86)

133. PortariadoExmo.Govo.Proval.de29deoutubrode1852apud.BRITO,2007,p.87.

129

situaçãodetodasasterrasmunicipais.Issopermitiuquecontinuasseaalienaçãodo patrimônio municipalsemapréviarealizaçãodesuadiscri-minação, demarcação e reserva das terras, praticamente legalizando odescontrolesobreessasterras.

ACâmarachegouainiciarolevantamentoeasmediçõesdorocio.Entretanto,oengenheiroprovincialdestacadoparaessatarefanãocon-cluiuostrabalhos134,jáquehaviamanifestadointeressenamanutençãodoregimededistribuiçãodeterras.

Em1859,umaPortariaemitidapeloPresidentedaProvínciarevo-gouadecisãodeproibiçãodasconcessões,respondendoaumasolicita-çãodaCâmarapara“repartiraterragratuitamentepelopovo”,apelandoparaaCartadeDoaçãodorocio,de1598.ACâmaraargumentouaindaqueaiminentechegadadaestradadeferrocertamenteprovocariaocres-cimentodacidadeeaposteriordemandapornovasedificações.Solicita-va-se,então,aautorizaçãoparaaretomadadasconcessõesgratuitasdeterraseaampliaçãodoslimitesdorocio.

AalegaçãodaCâmara,aoreivindicarasterraspara“reparti-lacomopovo”,nãoécoerentecomosfatos.Eraevidentequeacidadeesuapopulaçãoaumentariammuitonosanosseguintes,emdecorrênciadoaumentodovolumedenegócioseimigração.Assim,aselitespressiona-vamaCâmaraparaqueintensificasseadistribuiçãodedatas.Adistri-buiçãodedataserainjustaediscriminatória,resultandonaconcentraçãodapropriedadededatas.AtéofimdoImpérioforamfrequentesoscasosdeapropriaçãoindébitadeterrasdevolutasedeusocomum.Todospre-viamqueacidadepassariaporumacentuadoprocessodecrescimentopopulacionaleurbanização,decorrentesdofimdaescravidãoeinícioda

134. ACâmarasolicitouaoGovernoProvincialumengenheiropararealizarolevan-tamentosendoque,paraisso,foiindicadooengenheiroprovincialJoséPorfíriodeLima.Em1858,aCâmaraalegaqueoengenheiro“abandonouessetrabalhologo depois de começado” (BRITO, 2007, p.89-90). Nessa época a Câmara jácontavacomumengenheiroemseusquadros(CAMPOS,1997)masosverea-doresalegaramqueesseprofissionalestaria impossibilitadodeprocederaoslevantamentosexigidosjáque,paraisso,teriaqueserafastadodesuasatribui-ções(SIMONI,2002).SegundoMônicaSilveiraBrito,Porfíriopertenciaaosgruposinteressadosemmanteroatualregimededistribuiçãodedatas,já“quesetornouvereadornadécadade1860emembrodaComissãoPermanentedeDatas,esteveintimamenterelacionadoadiversasoutrasobrasvoltadasaosme-lhoramentosurbanos.Atuavatambémcomofiscaldeobrasempreitadaspelaadministração provincial junto a particulares. Nessa função, notabilizou-sepelaposturatendenciosadeseusparecerestécnicos,protegendoosinteressesdoscontratadosemdetrimentodospúblicos.”(BRITO,2007,p.89nota45)

130

imigração, fazendo com que se configurasse uma intensa especulaçãofundiárianacidade.Issopodeserfacilmenteidentificadonadocumen-taçãoescritadoperíodo,maspraticamente inexistenadocumentaçãocartográficadeSãoPaulo135.

Prevaleceram, portanto, direitos estabelecidos no século XVI, emdetrimento das normas recém instituídas. O próprio movimento depretensamodernização,queentãose iniciava,mantinhaemevidênciaosarranjosinstitucionaiseaspráticasdecaráterarcaicoestabelecidosséculosantes.(BRITO,2007)

APortariade1859,queautorizouaretomadadasconcessõesgra-tuitasdeterrasdorocio,tornou-seespecialmenteimportantepelofatodeque,logodepoisdesuapublicação,ocorreufartadistribuiçãodeda-tas na região do patrimônio do Conselho, sendo considerada um surto de datas.Foramdistribuídas,emumano,cercade36%dototaldedatasconcedidasemquasetodooséculo.136

Aindefiniçãoeraumfatoconstituídopelasleis,portariaseavisos.Em 1859, uma circular obrigava a Câmara a informar ao delegado doDiretorGeraldeTerrasPúblicas137olimitedorocioedoscampos de uso comumobtendocomorespostaqueestaseram“asterrasdentrodoslimi-tesdameialéguaconcedidasporMartimAffonso”(BRITO,2007).ÀRe-partiçãoGeraldeTerrasPúblicas,cabiaocontroledasterrasdevolutassituadasforadoslimitesdosrocios,devendoautorizaravendadeterrasparaagriculturaecriação.Ironicamente,aRepartiçãofoiinformadapelaCâmarapaulistanaqueaslocalidadesemquestãoeramlogradouros de uso comumdosmoradores,conseguindo,aCâmara,fazercomquetodasassolicitaçõesdecompradeterrasnessaregiãopassassemporsuapréviaaprovação.(BRITO,2007)

“Estava em andamento um processo de apropriação privadadoscampos de uso comum,oulogradourospúblicos,doMunicí-

135. CAMPOS, Eudes. São Paulo Antigo: Plantas da Cidade. Informativo ArquivoHistóricoMunicipal,4(20):set/out.2008.SobreaausênciadessesmapasvertambémGOUVÊA(2010).

136. SegundoRobertoMônaco,“em186oforamdistribuídas476dototalde1300datasconcedidasemSãoPauloentreosanosde1801e1891”.MÔNACO,Ro-berto.AsterrasdevolutaseocrescimentodacidadedeSãoPaulo.DissertaçãodeMestradoFAUUSP,SãoPaulo,1991.

137. “ODelegadodoDiretorGeraldeTerrasPúblicasnessaocasiãoeraotambémvereadorAntônioJoséBarbosadaVeigaqueintegravaa“ComissãoPermanentedeDatas”daCâmara”.”(BRITO,2007,p.91nota52)

131

piodeSãoPaulo.[...]oconflitoempautaeraemtornodaformadeaquisiçãodasterras,onerosaougratuita,eaquemcaberiareparti-las–CâmaraouProvíncia.Estesinteressescontrapu-nham-sediretamenteaodireitodosusuáriosdoslogradouros,queefetivamenteseutilizavamdasterrasparasubsistência[...].(SIMONI,2002,p.59)

Diantedosimpassesemtornodadistribuiçãodasterrasdorocio,maisumavez,em1861,aadministraçãoprovincialsolicitaàCâmaraqueen-carregueumengenheiropararealizarostaistrabalhosprecisosdelevan-tamento.ACâmaranãosomenteseopunhaàdemarcaçãodasterrasdorociocomotambémnãoconseguiarealizarosregistrosdasterrasqueindubitavelmente lhepertenciam,comoeraocasodas terrassituadasforadaáreaconsideradaurbana138.Havia,portanto,certaincapacidadeadministrativa,oumesmodesprezo,sobreasterrasdedomíniocomum.Omesmoseaplicavaaosriosdacidadeque,inclusosounãonoslimi-tesdorocio,permaneciamsemnenhumaoupoucasreferênciasoficiais.Nãoporacaso,osriosdacidadenãoaparecemnosdebatessobreadis-tribuiçãodedatas.Aindaquefosseafaltadeáguaaprincipalpreocupa-çãodosmoradoresdeSãoPaulonesseperíodo,eraaterraqueapareciacomoprincipalinteressenasdisputas.

Nadécadade1860,acidadecontinuavaaserabastecidaporcha-farizes a partir da captação de água, principalmente nas nascentes doAnhangabaú,que,reservadanotanquedeSantaTeresa,eraaduzidaatéacaixad’águadaCruzPreta.Aáguadoschafarizesdacidadenãoeramsuficientes para abastecer toda a população, sendo necessário retirarágua de cisternas abertas nas margens do Tamanduateí e do Lavapés.Continuavaacoletadeáguadiretamentedosrios,alémdavendapelosaguadeiros.(FREITAS,1985)

Nosanosde1862e1863,duranteagestãodoPresidentedePro-vínciaVicentePiresdaMotta,aRepartiçãoGeraldeTerrasPúblicasde-cidiurealizar,elamesma,ostrabalhosdediscriminaçãodosdomíniosdessasterras,masfoiimpedidadiantedarecusadaCâmaraemautorizar

138. “Lembremosquenãofoiapenasquantoàtalvezcomplicadatarefadeconfecçãodeumaplantaqueasautoridadesseomitiram,poisnemmesmooregistrodosterrenosindubitavelmentepertencentesaoConselhoesituadosparaalémdaáreaurbana,impostopeloAvisode17/01/1855,quecomplementavaasdeter-minaçõesdoartigo91odoDecreto1318,chegouaserefetivado.”(BRITO,2007,p.90nota49)

132

autilizaçãodosLivrosdeRegistrodeCartasdeDatas,semasquaisotrabalhofoiinviabilizado.(BRITO,2007)

Nosanosde1866e1867,SãoPaulopassavapor“umadasmaioressecasdequehámemória”(FREITAS,1985).Afaltadechuvassealiavaàprecariedadedosistemadedistribuiçãodeágua.Aindaassim,aGuerradoParaguaiabsorviaasatençõesdoPresidentedaProvíncia,maispreo-cupadocomarepresentaçãopaulistanessadisputa,enquantoamuni-cipalidadeseocupavadadistribuiçãodeterrasecessavaadistribuiçãodeágua.Dessaforma,todososchafarizesdacidadesecaram,ficandoosaguadeirosresponsáveispeloabastecimentodeáguadeSãoPaulo.

Comrelaçãoaostrabalhosdediscriminaçãoentredomíniosdeter-ramunicipaiseprivados,em1868,aAdministraçãoProvincial,atravésdaRepartição Geral de Terras Públicas,realizouotombamentodosPróprios NacionaesdomunicípiodeSãoPaulo,semrealizar,noentanto,nemme-diçãooudemarcação,nemadiscriminaçãoentredomíniosparticularesemunicipais.Foisomenteem1886queessetrabalhofoiparcialmenterealizadopeloGovernoProvincial(MÔNACO,1991)139.

Em 1875 foi aprovado o Código de Posturas140, que vinha sendoredigidodesdeadécadade1860.Ocódigode1875mantémasCartasdeDatacomo“contratoperpétuoepassíveldetransmissãoporheran-ça,doação,arrendamento,aforamentoevenda”.(SIMONI,2002,p.95)Além disso, esse código representou uma tentativa de ampliar o con-trolesobreasatividadesrelativasaosrioseasvárzeas,limitandoasati-vidadesdesubsistênciaespecialmentenasáreas de domínio comum.Dessaforma,ocódigodeterminavaqueera“prohibidolançarem-semateriasexcrementicias nas ruas, largos, pateos e em logares proximos ás fontes e vertentes,ouconservarem-secloacasjuntoàsmesmas;sobpenade10$demulta.”Mantinha-seaseculartentativadesepreservarosriosproi-bindo“empregar-senapescaqualquersubstanciaouvenenoquepossaserprejudicialàsaudepublica;sobpenade30$demulta.”Tambémli-mitava-seacaçaaoproibir“caçarcomarmasdefogonaCidadeeseusarredores,sobpenade30$demulta”e“vender,consertarouemprestararmasoffensivasaescravos.”Aindaatacavaosbanhosderioaodetermi-narque“ninguempoderálavar-sededianosriosemlugarespublicos.

139. Nadécadade1920outrotrabalhodetombamentoediscriminaçãodopatri-môniomunicipalfoirealizadopeloGovernoEstadual(SIMONI,2002,p.79).

140. CâmaraMunicipaldeSãoPaulo,CódigodePosturasdaCâmaraMunicipaldaImperialCidadedeS.Paulo,1875.

133

Oinfractorsoffreráamultade10$ou24horasdeprisão.[...]Alavagememriossóserápermitidaquandoapessoaestivervestida,demodoquenãooffendaamoralpublica.”

Ocódigoaindadeterminavaque

“[...] todaapessoadequalquersexoouidadequefôrencon-tradasem occupaçãoeemestado de vagabundagem,serámandadaapresentaraauctoridadepolicialcompetente,paraassignarotermo de que trata o Codigo do Processo Criminal. Os menoresserãopelaprimeiravezlevadosaseuspaesoututores,enare-incidenciaserãoconduzidosápresençadoJuizdeOrphams,afimdeprovidenciarna fórmadaLei. [...]E’prohibido,semlicença da Camara, tirar-se esmolas no Municipio para qual-querfim.Osinfractoressoffrerãoamultade10$edousdiasdeprisão.[...]E’prohibidoaosescravosvaletudinariosounão,es-molaremparasubsistenciasuaouporordemdealguem.Osqueforemencontrados,serãoapresentadosaoJuizodeOrphams,queprovidenciarácornofôrdedireito.”

Essas determinações, presentes no código de 1875, instituíam o con-trole sobre os rios e o uso dos rios, limitando as atividades da pesca,caçaenavegação.Ocontextoemquese insereocódigo,aoreforçaradistribuiçãodeterrasatravésdasdatas,alinhando-seaosinteressespo-líticoseeconômicosdaselites,fazcomquealimitaçãodosusosdoriocomo fonte de subsistência e a punição aos “desocupados”, possa serrelacionadaàstransformaçõesrelativasàsubstituiçãodotrabalhocativopelotrabalholivre,funcionandotambémcomoumaformadesujeiçãodotrabalhoaocapital.Issoacontecianacidadenomomentoemqueocapitaleraacumuladoapartirdapropriedadedaterraeotrabalholivreseinstituíaatravésdaimportaçãodemãodeobra.Passavaaserimpor-tante controlar os rios e as atividades neles realizadas como tambémevitar a subsistência a partir desses recursos, ainda que já estivessembastantesujos.

Asdécadasde 1870e 1880 forammarcadaspeladistribuiçãodedataspelaCâmaranorocioenamarcadasseis léguas141,comcaracte-

141. “Aliás,segundoSIMONI(2002),adespeitodasdeterminaçõesdoCódigodePosturas,naquelemomento(1875-1878)estavamsendodistribuídas,gratuita-mente,terrasmunicipaisqueseencontravamaindadisponíveisnoMorrodoCaaguassú,Telégrafo,Brás,Pary,EstradadoVergueiro,VárzeadaMoóca,Cam-

134

rísticasmuitopróximasdavenda,mascomumacláusuladecaducidadecasonãohouvesseindíciosdeconstruçãoapósseismesesdaconcessão(BRITO,2007,p.97).Issovinculouamanutençãodadataaosproprietá-rios com recursos financeiros, condição que poucos na cidade manti-nham.Dessaforma,aacumulação,queaconteciaatravésdapropriedadedaterra, tambémpassavaaaconteceratravésda instalaçãode infraes-truturas.

“[...]aquelesque,emperíodoimediatamenteanterior,tinhamsidoagraciadoscomoprivilégiodeobterterrasdopatrimôniopúblico,muitasdelasporconcessãogratuita,puderamextrair,poucodepois,uma renda bastante elevada,umavezquenaqueleintervalo a cidade crescia rapidamente, com uma enorme in-tensificaçãodomercadoimobiliário,lançamento de loteamentos e instalação de infra-estrutura urbana.”(BRITO,2007,p.98)

Oprocessodedissoluçãoeexpropriaçãodessebem comum,que,comovimos, eram as terras do rocio, aconteceram de diversas formas, quasedesaparecendo. O texto do código de 1875, em suas disposições paraconcessão de datas, já não faze mais menção a expressões coloniaiscomorocioebens do Conselho,passandoessasterrasaseremdesignadaspatrimônio municipal.(BRITO,2007)

Ocódigode1875éomarcoinstitucionaldapassagemdoquevi-nha sendo entendido como bem comum e que passa, a partir de então,aserconsideradopropriedade.Éimportantesalientarqueissoacontecenomomentoemqueasterrasdedomíniocomumsofreramuminten-soprocessodeprivatização.Debem comum,essesdomíniospassaramapatrimônio do Conselhoe,apartirdestemomento,serãoconsideradosumbem municipal.Issosignificaqueasterrassobessadesignaçãopassavamaserconsideradas,então,umapropriedade privada,aindaqueumapro-priedadeprivadadomunicípio.

ValepontuaraquiqueoBrasilaindaestavasoboImpérioemboraaproclamaçãodaRepúblicaestivessepróxima.Portanto,todasasterrasaquevimosnosreferindoestavamsobodomíniodoImperador,sendoporeleconcedidas.Nãohaviaainda,portanto,oconceitodobem público,queseriainstituídonaRepública.

Essesmomentos foramseguidospela instalaçãodeumvigoroso

poRedondo,EstradadoLavapéseCaminhodaPenha.(BRITO,2007,p.98)

135

mercadodealuguéisnacidadedeSãoPaulo.Em1886,70%dosimóveispaulistanoschegaramaestaralugados,segundooRelatóriodaComis-sãoCentraldeEstatística.Oiníciodadécadade1880tambémfoimar-cadoporumafortevalorizaçãodasdatasdeterra.

Foitambémnesseperíodoque,apartirdainstalaçãodeinfraestru-turasurbanas,começaramaserexploradoscomercialmentealgunsser-viçospúblicos,comoesgotoedistribuiçãodeágua,empreendidopelaCompanhia Cantareira de Águas e Esgotos.Ainfraestruturaurbana,mesmoquandoempreendidapelopodermunicipal,tambémpassavaasercon-sideradaumapropriedadedomunicípio.

Comrelaçãoàquaseextinçãodasterrassobodomíniodomunicí-pio,épossívelafirmarqueaparcelamaissignificativadoatualpatrimô-niomunicipalteriapassadoamãosprivadasemmomentoanterior.Osprimeirosanosdadécadade1850constituírammomentoimportantenesse processo, quando a Câmara procedeu o aforamento de muitaschácaras,diversascomaté“100braçasemquadra”.(BRITO,2007)

OsúltimosanosdoImpério foramcaracterizadosporuma fortepresençadoGovernoProvincial,apartirdainstituição,em1886,daCo-missãoEspecialdeColonização,cujoobjetivoerapropiciaraampliaçãodosnúcleoscoloniaisexistentesparaaumentaronúmerodeimigrantesnelesassentados.Comgrandepartedasterraspróximasdacapitalnasmãosdeparticulares,essaComissãopromoveuamediçãoeademarca-çãodasterrasdevolutasdeSãoPaulo.142Dessaforma,oGovernoPro-vincialobteveocontroleadministrativodessasterras,devendoaplicá-loà colonização ou venda, previamente medidas e demarcadas. No mo-mentoemqueseregularizavaasituaçãodasconcessõeseasterrasdeusocomumpassamaterdono,nãohaveriamaismotivoparaquenãoexistissemmapasquerepresentassemtodasasterrasquecircundavamonúcleourbanizado.Mapas,apartirdeentão,passariamaserproduzi-doscomoobjetivode,justamente,legitimaroprocessodetransferênciadeterrasdoantigopatrimôniodoConselhododomíniocomumaopar-ticular.Issopodeservistonomapadaspáginas150-151,querepresentaacidadenoprimeiroanodoséculoXX.

142. “Segundo nos informa Roberto Mônaco (1991), esses levantamentos au-feriam ao rocio de São Paulo um perímetro de 28.327,20m e uma área de43.560.000m2.” Essa área corresponde a um raio de aproximadamente3.740m.(BRITO,2007,p.100)

136

ComoestabelecimentodasprimeirasferroviasdeSãoPaulo143,asvár-zeaspróximasàcolinasofreramtransformaçõesconsideráveis,princi-palmenteasvárzeasdosriosTamanduateíeTietê,quereceberam,res-pectivamente,aEstrada de Ferro Santos a Jundiaí,em1867,eaEstrada de Ferro Sorocabana,em1870.Osvínculosqueacidadetinhacomassuasvárzeasacabaramporseralteradospelaferrovia,jáqueotransportedepessoasemercadoriaspassaramasermenosutilizadosnosrios,comonocasodelocaiscomoBarraFunda,ÁguaBrancaeLapa.(SANT’ANNA.

2007,p.262)

Apósaalienaçãodasterrasdoantigorocio,jáduranteaRepública,alegislaçãotratavadelegitimaraspropriedadeseproibiratividadesnasáreasqueagoratinhamlegítimosproprietários.Note-sequealeijáserefereaquiaopatrimônio municipalcomoumlocalpúblico.Aleimunicipalno68de13denovembrode1893144diziaque

“E’ absolutamente prohibida a entrada em terrenos alheios,abertosoufechados,semconsentimentodeseusdonos,paraexercicio da caça; o infractor incorrerá na multa de 50$000,e,nocasodereincidencia,amesmamultade50$000,emaiscincodiasdeprisão.[...]Oexerciciodecaçanoslogares publicosou servidões municipais, só terá logar 500 metros distante dospovoados;oinfractorincorreránamultade20$000.[...]Parao exercicio da caça nos logares publicos todo o caçador tira-rálicençaannualmentenaIntendenciaMunicipal,pagandooimpostode10$000,ebemassimosvendedoresambulantesde caça, salvo se houver outro nas tabellas de impostos mu-nicipaes,que,nessecaso,éoqueceveprevalecer.Oimfractorqueforencontradosemlicençapagaráamultade30$000,pela

143. Também chamada de Estrada de Ferro Santos a Jundiahy, a ferrovia da The SãoPauloRailwayCompanyLtd.,“iniciadaem1860einauguradaseteanosmaistarde,[...] aproximava-se da Capital pela Várzea do Tamanduateí, a sudeste,atravessavaaáreahabitada,aonorte,invadindoumapartedoJardimdaLuz,esedirigiaanoroesteemdireçãoaJundiaí“(CAMPOS,2008).AEstrada de Ferro Sorocabanafoiinauguradaem1870,inicialmenteparaescoaraproduçãodeal-godãodointeriorpaulistaeposteriormenteestendeuseusserviçosàcrescentedemandadaproduçãocafeeira.AEstrada de Ferro São Paulo a Rio de Janeiroco-meçouafuncionarnacidadeem1875,comaintençãodeescoaraproduçãodecafédoValedoParaíbaeinterligarSãoPauloeRiodeJaneiroatravésdaEstradadeFerroD.PedroIIquevinhadoRioechegavaatéCachoeira,atualCachoeiraPaulista.

144. CâmaraMunicipaldeSãoPaulo,Leino68de13denovembrode1893.

137

primeiravez,de50$000pelasdemais,e5diasdeprisão.”

Aleiaindaprotegiaascondiçõesbiológicasdereproduçãodosanimais,comoformadegarantiracaça:

“E’ absolutamente prohibida a caça de perdizes e codornas,comoadestruiçãodeseusninhoseovos,de10desetembroa10deabril,porser reconhecidamenteo tempodesuapro-creação, e bem assim fica absolutamente prohibida, a contarde10deoutubroa10deabril,avendapelasruasemercados,depassarosdequaesquerespecies,mortosoucaçados,comofimdenegócio.Oinfractoincorreránamultade30$000pelaprimeiravez,demais50$000nasdemais,e5diasdeprisão.”

Comamesmaintençãodepreservaçãodapesca,aleide1893aindade-terminavaque

“SerálivrementepermitidaapescanosriosTietéeoutrosdoMunicípio, porém, as redes de pesca terão as malhas com otamanhominimo de quarenta milimetrospormalha.Asqueforem encontradas sem este padrão serão aprehendidas, eaquellesquecomellasforemencontradosnoexerciciodapes-ca, serão multados em 10$000 da primeira vez, e no dobronasreincidencias.[...]E’absolutamenteprohibidooempregodadynamite, raizde timbóeoutrasdrogasvenenosasparaapescariaematançadepeixe.Oinfractorincorreránamultadecincoentamilréis,ecincodiasdeprisão,alémdeoutraspenasdedamnoqueresultarematerceiros,daapplicaçãodessasma-teriasnosrios.”

Aomesmotempo,defendiaaspropriedadesque,nitidamentefizerampartedasantigasterras de domínio comumexpropriadasduranteoséculoXIX.

“No exercicio da pesca em rios publicos, não podem os pesca-doresfazerabicarsuascanôasouembarcaçõesnasmargensenementrarnosterrenos particulares,fazendonestesestragosoudamnos.Oinfractorincorreránamultade30$000,e2diasdeprisãoporvezqueofizer,alémd’outraspenasemquepossaincorrer.”

138

Anavegaçãotambémfoiobjetodalei,sendoregulamentada145.

“Aslanchas,botesecanôasqueseempregaremnotrabalhodecarregaçãodeareia, lenha,tijolos,telhaseoutrosmisteresdenegocios, serãonumeradasporplacas,pagandodecadauma6$000aslanchasebotes,e3$000ascanôas.Osqueforemencontradossemnumeração,serãoaprehendidosatéopaga-mentodoimpostoecomamultade20$000decadaum.”

Pelotextodaleiépossívelentenderqueosrioseaságuascontinuavamaserconsideradosumbem comumaindaqueessebemnãosemanifestassemaiscomoumpatrimônio comum.Aságuasdoriopermaneciampúblicas,enquantoasterrasdorioeramprivatizadas.

Éclaraaintençãodaleideprotegerasáreasdecaçaeosrioscomoumafontedesubsistência.Issoseobservanoscasosdepreservaçãodasperdizesecodornasnosperíodosdereprodução,naproibiçãodautili-zaçãoderedesnosriosbemcomoousodevenenoseexplosivos,pre-servando,assim,areproduçãoe futurodesenvolvimentodosanimais.Poroutrolado,aprópriaregulaçãoecontroledoacessoàsáreasdecaçae aos rios, além da cobrança de tributos e impostos, é uma forma decontrolar o acesso de uma parcela dos moradores a esses bens, agorapraticamentelimitadoaocanaldosrios.Considerandoquemuitasáreasdedomíniocomum,nessemomento,apósdistribuiçãodemuitasdatas,estavamsobdomínioparticular,épossívelacreditarqueasdetermina-çõesdessaleitinhamaintençãodeassegurarereforçaravalidadedessaspropriedades.

145. Nessemesmoperíodo,porvoltade1880,alegislaçãotratavadeatacarosba-nhosderioporconsiderá-losumaprática inconvenienteaos“bonsmodos”.SegundoAffonsoA.deFreitasa“proibiçãoporsetratardehábitosancestrais,legadosdosantepassadosguaianás,carijósemurumimis,avoengosemduasquintaspartesdopovopaulistano?Porumasimplesquestãodetecnologiatal-vez?...Verdadeiramentedeselegante,chato,vulgar,demaugostopoderiapare-cerdizer-se-Nadar,tomarbanho,jogarpeteca,petequearcomosedizia,emvezdeserecorreràerudiçãocosmopolitados-sports,rowing,footqualquercousainegavelmentemenosrebarbativa...Foinotempodosurbanos,espéciedeguar-dacívica,entãocomandadosporumveteranodoParaguai,majorManoelViei-ra,porantonomásiaoManequinhoalfaiate.Aproibiçãoeraconcretizadaemformidáveispegasásapariaporaquelesmantenedoresdaordemque,incutin-doadesordementreosbanhistas,cercavamasduasmargensdoTamanduateí,notrechodaruaGlicério,aotempodoConded’Eu.”(FREITAS,1985,p.67)

139

O MAPA DAS CHáCARAS E A AUSêNCIA DOS ESPAÇOS DE USO COMUM

A planta conhecida como “Mapa das Chácaras” de São Paulo146 – verpáginas 152-153 – representa, como o seu título indica, as proprieda-desdeterrareferentesa“chácaras,sítiosefazendasaoredordocentro”,“desaparecidascomocrescerdacidade”.Essemapamostraoslimitesdaspropriedadesdessaschácaraseonomedoproprietário.Elefoicon-feccionadocombaseemdocumentoscartoriaisqueinformamqueemumanoespecífico,determinadasterraspertenciamaumcertoproprie-tário.Dessaforma,essemapanãomostraosanosemqueessasterrasforamalienadas,apenasgarantequenaqueleanografadoaqueleeraoproprietário.Alémdoslimitesdepropriedadedaschácaras,essemapaapresentaasestradasdeconexãohistóricasinternaseentreoutrosnú-cleosurbanos,osriosecórregos.Apesardeessemapanãoterumadata,pelaformadorioTamanduateí,jácanalizadopróximoacolina,epelosanosgrafados,épossívelafirmarquerepresentaasituaçãodaschácarasepropriedadesprincipalmentedasegundametadedoséculoXIXeco-meçodoXX.

OmapadaschácarasrevelaoqueaCâmaraeosmapasdacidadedesseperíodoforamincapazesderegistrar,istoé,aacumulaçãoapartirdaexpropriaçãodasterraseáguasdeusocomum,umavezqueoantigorocio jáaparece totalmenterepartidoempropriedades.Essa fragmen-taçãoehomogenizaçãodoespaço,aocontráriodosespaçosdeusoco-mum,permaneceriamnoespaçoeestruturariamoarruamentodacida-deapartirdoloteamentodaschácaras.AindaqueonúcleourbanizadopermanecessecontidonotriângulonofinaldoséculoXIX,jáeramclaros

146. Tivemosacessoaumacópiamanuscrita,partedoacervodoMuseuPaulista,quecontémoseguinteregistronoverso:“opresentemapafoiorganizadopeloengºGastãoCezarBrirrembachdeLimaparaaexposiçãodoIVCentenáriodeS.Paulo,apoiadonosdocumentosdoarquivoAguirra”.Profundoconhecedordequestõesdepropriedade imobiliáriadacapitalenoEstadodeSãoPaulo,JoãoBatistadeCamposAguirra,nascidoem1871emLimeira,SãoPaulo,eraconhecidopelaatividadecomercialearquivística.FoiproprietáriodochamadodeArquivoAguirra.Tambémproprietáriode terrasaosuldacapital,Aguirrapublicouestudossobreaquestãodasterraseseusproprietários,sobretudoemSãoPaulo.LevantoudiversasfalsificaçõesrelativasàpropriedadefundiáriaemSãoPaulonoiníciodoséculoXX.Atualmente,oArquivoAguirrafazpartedoacervodoMuseuPaulistadaUniversidadedeSãoPaulo.PIRES,Walter.ArquivoAguirra.FontedocumentalsobreaformaçãoterritorialdeSãoPaulo.inAnaisdoMuseuPaulista.SãoPaulo.10/11p.61-78,2002.

140

osfundamentosdaurbanização,daproduçãodoespaçoedaincorpora-çãodanaturezadacidadecontemporânea.

Omapadaspáginas154-155147tornaevidentearelaçãodessaspro-priedadescomasestradase,principalmente,comosriosecórregos.Asobreposiçãodoperímetrode3.3oometrosdorociorevelaqueasan-cestraisterras de uso comumsimplesmentenãoimplicaramqualquerper-manênciaouevidênciadeestruturasespaciaisquepermanecessemapósadistribuiçãodedatas.Essesespaçossãoignoradospelasdivisasdaschácaras.Tambémépossívelobservarqueoslimitesdaspropriedadesgeralmentesãodefinidospelasestradasecaminhosetambémpelosriosecórregos.Sobrearelaçãodoslimitesdepropriedadeseosrios,perce-be-sequeapenasoleitomenor148éconsiderado.Portanto,asvárzeaseplaníciesaluviais,dopontodevistadapropriedadeterritorial,jáeramconsideradasterraocupável.Assim,essapartedosrios,oleitomaior,jáseconstituíamcomomercadoria.

147. OMapadasChácarasfoiredesenhadoduranteessapesquisa.Asinformaçõestextuais foram transformadas emcódigos numéricos, evidenciandoa relaçãodosrioseestradasecaminhoscomaspropriedadesdeterra.

148. OarquitetoAlexandreDelijaicov,empalestraproferidanoArquivoPúblicodoEstadonodia20demarçode2014,defendeuqueorioesuasvárzeas,emSãoPaulo,passassemaserchamadosdeleito menoreleito maior.

142

Annode1842CARTADACAPITALDESÃOPAULOOExmo.Srn.BarãodeCaxiasmandouexecutarpeloEngenheirodaColumnaJoséJacquesdaCostaOuriqueFortificadordaCapital

1842

Ourique,JoséJacquesdaCosta

EscalaGráficaembraças(1:6.000)

144

MAPPADACIDADEdeSÃOPAULOofferecidoASUAMAGESTADEOIMPERADORpeloPrezidentedaprovinciaManoeldaFonsecaLimaeSilvaFeitopeloEngoCivilC.A.Bresser

1844/1847

Bresser,KarlAbrahan

EscalaGráficaempalmos(1:6.000)

146

PLANTADACIDADEDESÃOPAULOLevantadapelaCOMPANHIACANTAREIRAEESGOTOSHENRYB.JOYNERM.I.C.E.ENGENHEIROEMCHEFE1881

1881

CompanhiaCantareiraeEsgotos

gráfica(1:5.000)

148

PLANTADACIDADEDESÃOPAULOorganisadaparaoALMANAKDES.PAULODE1883(4)publicadoporJorgeSeckler&Cia

ESCALA1:10.000

1883(4)

Seckler,Jorge

1:10.000

150

REPARTIÇÃODEÁGUASEESGOTOSDES.PAULOPLANTADACIDADEDESÃOPAULOCOMASREDESDOSESGOTOSOrganizadapelaSECÇÃODEESGOTOSESC.1:20000

1901

SãoPaulo-Estado-RepartiçãodeÁguaseEsgotos

1:20.000

152

SÃOPAULOCHÁCARAS,SíTIOSEFAZENDAS,AOREDORDOCENTRO(desaparecidoscomocrescerdaCidade)Escala1:20.000

séculosXIXeXX

Aguirra,JoãoBaptistadeCampos

1:20.000

154

C

D

E

7

8

43

44

52

9495

96

97

98

99

100

101

102103

104

105106

107

108109

110111

112 113

114115

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117

118

119

120

121

122

123

163

7

13

15

16

7

6

1718

19

20

21

22

23

24

25

26

MAPADASCHÁCARASDESÃOPAULO

séculosXIXeXX

Aguirra,JoãoB.C.(redesenhadoporGouvêa,JoséPaulo)

EscalaGráfica

A

B

F

1

2

3

4

6

G

H

5

riosecórregos

estradasecaminhos

propiedades/chácaras

perímetrodorocio-3.300m

12

3

45

6

7

8 9

10

11

12

14

13

1516

17

1819

2021

22

23

24

25

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27

28

293031

3233

34 35

37

36

38

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40

41

42

43

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46

47

4849 50

5152

53

54

55 5657

58

59 60 6162

63

64

6566

67

68

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7071

72

73

747576

77

7879

80

81

8283

84

85

86

87 88

89

90

91

92

93

94

99

124

125 126

127

128

129130

131

132

133

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135 136 137

138 139

140

141

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150

151

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153

154155

156

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158159

160

161

162

1

6

4

3

2

5

8

9

10

11

12

14

1

27

28

2930

156

LEGENDA:

NúCCLEOS:A.SãoPauloB.PenhaC.PinheirosD.NossaSenhoradoÓE.SantoAmaroF.Sant’AnnaG.BrazH.Pary

CAMINHOS E ESTRADAS:1.CaminhodoMar2.EstradadoVergueiro3.EstradadoCaaguassú4.EstradadoCaaguassú5.EstradaparaoRio6.Bragança7.EstradaparaJundiahy8.Sorocaba9.EstradadeGuarulhos

RIOS E CóRREGOS:1.Tamanduateí2.Anhangabaú3.Saracura4.Ipiranga5.Cambuci6.Tietê7.Pinheiros8.Tatuapé9.Aricanduva10.CabussúdeCima11.Tiquatira12.Pacaembu13.ÁguaBranca14.Mandaqui15.Piqueri16.CabussúdeBaixo17.Verde18.Pirituba19.Jaguaré20.Pirajussara21.Verde22.Sapateiro23.Uberaba24.Traição25.Jabaquara26.Cupecê

27.daMoóca28.MoinhoVelho29.dosMeninos30.doOratório

PROPRIETáRIOS DE CHáCARAS E SíTIOS:1.ChácaradoChá-BarãodeItapeti-

ninga-18502.SouzaQueiroz3.BarãodeRamalho4.ChácaradoBexiga-18195.ChácaradoBarãodeLimeira6.MartinhoPrado7.ChácaraGeneralArouche8.CampoRedondo9.ChácaradoHenrique10.BrigadeiroTobias11.SenadorQueiroz+ChácaraMiguel

Carlos12.JardimBotânico13.ChácaraMarquezdeItu14.ChácaraBomRetiroMarquezdeTrêzRios-188315.Dulley16.CondePrates17.ChácaraBarãodeAntonina18.ConventodaLuz19.AngélicaMaria-1856CaetanoJoséRodriguesFranciscoAntoniodeBorbaDr.IgnacioJosédeAraújoHoracioTowerFoggFranciscoAntoniodePaula20.ChácaradoBispo21.ChácaraFerrão22.Mons.Andrade23.JoaquimManuelRodrigues24.DonLuizAntoniodeSouzaBote-

lhoMourão(MorgadodeMatheus)-176725.ChácaradoPadreAdelino26.VárzeadoNicolauFranciscoAlvesBicudo-1856ManuelJoaquimdoE.SantoSuzanaAvelino27.EleuterioCintra28.SítiodoPinheiroRaphaelPaesdeBarros-188829.ChácaraTheophiloAzambuja30.ChácaradoOzório

31.ChácaraDonaAnnaMachado32.ChácaradosInglezes-182533.ChácaraLavapés-AntonioSilva

Brito-174334.ChácaraFagundes35.ChácaradoConegoFidelis36.ChácaradasFreiras37.ChácaradaGlóriaBispoD.MatheusdeAbreuPereira

-181038.ChácaradeDonaAlexandrina-

185039.ChácaradoCapãoMajorBeneditoAntoniodaSilva-

188040.ChácaraMoreiraJoséAntonioGonçalvesMoreira-

183741.PossedoHermenegildo42.CompanhiaAltoMearim-189443.MartinhoFerreiradaRosa-189444.JoaquimFerreiradeSouza-189445.Mackenzie-Dr.HorácioLane46.CemitériodaConsolação47.ChácaraWanderley48.DonaVeridianaPrado49.Dr.Jaguaribe50.Dr.CandidoRodrigues51.ChácaradeDonaAngélicadeBarros

-190052.SítiodoPacaembuJesuítas-1775GabrielAntunesdaFonseca-1779ClementeGomesCamponezes-

1779ManuelSimõesPeralva-177953.TheodoraMariadeSalles-182054.ChácaraCarvalho55.ManfredoMeyer56.Com.BonifáciodaSilvaBaptista57.ChácaraFloresta58.ChácaraCoutoMagalhães59.AugustoSaraiva-191160.LuizAmericano61.Dr.JoséVicentedeAzevedo-191162.SampaioMoreira-191163.ChácaraMacedoSoares-191164.LuizAmericano-191165.ChácaraMeloFranco66.CoronelRodovalho-1900

157

-1894100.JoséFelicianoFerreiradaRosa

-1894101.BoaventuraFerreiradaRosa-

1894102.SítiodoBuraco(Jesuítas-1775)AntoniaCardoso-1779103.EugenioMedeiros104.ViúvaAntonioRoqueeFilhos105.ChácaraBoaVistaIrmãosFerreiradaRosa106.EscolásticaHonorata107.Dr.JoaquimdeAlmeidaLeitede

Moraes108.VirgilioGoulart-1888109.SítiodoCuca110.Eng.BianchiBetolo-1888111.SítiodoMandiAntonioXavierBorba-1876112.AntonioXavierBorba-1888113.JoãoGoulart114.CapitãoMorJoséFerreirade

Salles-1820115.SítioMandideBaixo116.SítiodaLapa(Jesuítas-1775)JoséAlvesdaCunha-1779117.SítioBoassava-Dr.JoséTheodoro

Bayeux118.SítioButantan(Jesuítas-1775)BarbaradoEspíritoSanto-1779119.SítiodosRemédios120.SítiodoEmboassava(Jesuítas-

1775)AntonioJoãodeToledo-1779121.FazendadaPonte-DiogoPinto

doRego122.CompanhiaPredial123.SítiodoLimão124.SítioCasaVerdeFranciscoAntonioBaruel-1854125.ChácaraBaruelGertrudesM.Baruel-1845126.SítiodosMorrinhos-SãoBento

-1900127.SítioMandaqui-DamasioAnto-

nioSilva-1854128.SítioCapãodasCabras129.SítioPilãoD’água-Damasio

AntonioSilva-1854130.SítiodeBaixo

131.SítioMandaquideCima132.AntigaFazendadosJesuítas-

1775BentoSiqueiraBarbosa-1779133.SalvadorRomeu134.MiguelMente135.ChácaraGuilhermeGuilhermePradodaSilva-1900136.FazendaBelaVistaCapitãoAntonioBernardoQuar-

tim-1883137.SítiodeJesuínoBueno138.SítioPratod’Água139.SítioGuacon140.DonaMariaJoaquina141.ChácaradoCarrão-1911142.MiguelJacob-1911143.SítioAricanduvaBeneditodeAssisDonaFranciscadePaulaDonaGuilherminaMariano-

1910144.ManuelLopesdeOliveira145.SítiodoPadreFreitas146.MacedoSoares147.IrmãosJacob148.SítiodoFonsecaJm.AntoniodosSantos-1910149.AníbalBarone150.BeneditoAntonioPedrosa151.SítioBomand152.FazendadoOratórioSucessoresdeNestordeBarros153.MariaJeronima-1880154.SítioJoãoDias-1880155.SítiodasMinhocasHerdeirosdeLeandrodoE.SantoJoséAntonioPedrosoBrandinoA.Pedroso-1880156.FelicioAntonioPedroso-1880157.SítiodosOurivesFlorianodeToledo-1880158.JoãoAntoniodeOliveira159.JoséIgnaciodaSilva160.ManuelJ.daLuz161.ParquedaÁguaFunda162.SítiodaRessacaFelicianoFagundes-1888163.ChácaraSantoAntonio

67.Dr.JoséBentodePaulaSouza-1885

68.CoronelPauloOrozimbodeAze-vedo

69.FranciscoJ.daSilva70.SerafimLeme-188571.SítioUmbaubaJoséAntonioBorba-188872.VilaPrudenteIrmãosFalchi-189073.JoãoJ.daSilva74.Dr.JoséVicentedeAzevedo75.HerdeirosdeAntoniodeMoraes76.ChácaradoDr.VicenteGiacaglini77.GrandesMoinhosGamba78.CondePenteado79.BrandinaA.Pedroso80.Sacoman81.JoaquimAntonioPedroso-188182.ChácarasdasMercês-188083.LeonardoLangechard-188184.PedroMariano85.AntonioPedroso-188086.ManuelJoaquimdeOliveira87.Aguirra&Cia.88.GustavoJoséPimenta-188089.ArthurFagundeseAlfredoFagun-

des-188890.VilaClementino91.ParqueIbirapuéra-PróprioMuni-

cipal92.CompanhiaTerritorialPaulista93.JoãoJosédeJesusColaço-1829AntonioAugustoMonteirode

Barros-189094.HerdeirosdeJoaquimPedroCeles-

tino-189095.HerdeirosdoSargentoMorAntonioSafinodaFonseca-1828Cap.ManuelJosédeMoraes-1834RosaEmíliadeMoraes-1890Herdeirosdaprecedente-191396.Cap.ManuelJosédeMoraes-1839Dr.FernandoArens-191597.Dr.AugustodeAraújoAzambuja-

1843GeneralJ.V.CoutodeMagalhães

-189098.BentoRibeirodeCamargo-189499.DonaAnnaEsmeraldinadeLima

159

CAPíTULO 5 - APROPRIAÇÃO DA áGUA

DuranteoúltimoquartodoséculoXIX,acidadedeSãoPaulopassavaporumprocessodeurbanizaçãoquealevariaparaalémdacolinaedosriosquealimitavam–vermapasdaspáginas146-147e148-149.Aex-pansãofísicaeeconômicadacidadefoiumreflexodiretodaculturadocafé,queestimulouocrescimentodocomércio,daindústriaedomer-cadofinanceiroehipotecárionacapital.Osdesdobramentosdocultivodocaféfizeramcomquefazendeiros,empresáriosefuncionáriosdogo-vernoseinstalassemnacidade.Ocrescimentopopulacionalfoiacom-panhado pelo incremento da urbanização. A imigração, que aconteciaparafomentaraproduçãorural,tambémtevefortereflexonacidadecomimigrantesquetentavamnelaencontrartrabalhoemoradiacomoumaalternativaaotrabalhorural.149

Assimcomofoianalisado,aintroduçãodamodernapropriedadedaterraesuainstitucionalização,comapromulgaçãodaLeideTerrasem1850,foiessencialparaoestabelecimentodasrelaçõesdeproduçãocapitalistasnaprovínciaenacidadedeSãoPaulo.Nacidade,fatorim-portanteparaaconstituiçãodessasrelaçõesfoioassalariamento,quenodecorrerdasegundametadedoséculoXIXpassouasermaisutilizadocomoformaderemuneraçãodotrabalho.(PEREIRA,2004)

149. PEREIRA,PauloCesarXavier.SãoPaulo-aconstruçãodacidade-1872-1914.SãoCarlos,Rima,2004.

160

AssimcomoobservaPauloCesarXavierPereiraaoestudaraatividadedaconstruçãonacidade,oassalariamentopôdecoexistircomotrabalhoescravo.Nocasoespecíficodaconstrução,emSãoPaulo,essaatividadefoi, primordialmente, realizada por trabalho livre. A utilização do tra-balhoescravopelocolonizador,comoauxiliardeconstrução,implicoudiretamentena“formaçãoprofissionaldocativo”,quealcançouqualifi-caçãoprofissionaleaperfeiçoamento.(PEREIRA,2004,p.23)

AtéametadedoséculoXIX,otrabalhoescravoerapoucorelevanteemSãoPaulo,tendosidomaisempregadoapartirdodesenvolvimen-todaculturadocafénaprovíncia150.Osescravosrealizavamatividadesmuitodiversificadas,como“escravosdeeito,negrosdeganhoeescravosdomésticos”.Entretanto,o“escravoassalariado”151eraamodalidadedetrabalhoescravoqueanunciavaacomplexidadedastransformaçõesemcurso.

Assimcomoexpostoanteriormente,ocapitaleraaplicadonapes-soadocativonaformaderendacapitalizada.Comoodinheiropagoaotraficanteeradespendidocombasenacapacidadedoescravodegerarriqueza,oproprietárioseesforçavaparatornarpermanenteautilizaçãodoescravo,comoformaderetornodocapital investido,e,nocasodaconstrução,“pormeiodeseudeslocamentocontínuoentreoscanteirosdeobras[...]”.Oaluguel de escravos,soluçãoquefoimuitoutilizadaemSão Paulo152, foi responsável por aumentar a possibilidade de retornodocapitalinvestido,mastambémporintroduzirumaambiguidadenaproduçãoquecolaboroucomaconstituiçãodotrabalholivre.

150. FlorestanFernandes,aoquestionaromitoda“democraciaracial”noBrasil,in-formaque,apartirdaaboliçãodaescravaturaemmaiode1888,emesmoantesdisso,asclassesdominantesnãocontribuíramparaainserçãodosex-escravosnotrabalholivreassalariado,havendopreferênciapelotrabalhadorimigranteeuropeu.FERNANDES,Florestan.AIntegraçãodoNegronaSociedadedeClas-ses.SãoPaulo:Ática,1978.

151. ComolembraPereira,“Adenominação“escravoassalariado”éumaclassifica-çãoadotadapeloRecenseamentode1872”etrata-sedo“alugueldoescravoporseuproprietário.Evidentemente,oescravonãoseassalariaporsimesmo,poisnãoéproprietáriodeseutrabalho.Contudo,eleédenominadoassalariadopor-quepormeiodeseudesempenhonotrabalhoéqueseuproprietáriorecebeumganhoperiódicoquandooaluga.Trata-se,defato,deumaluguelquepropiciaumarendaaoproprietário.[...]”(PEREIRA,2004,p.26,nota6)

152. “NaprovínciadeSãoPaulo,em1872,considerandoaspessoasdosexomas-culinoassalariadas,aproporçãodeescravoscorrespondiaa23,5%(5.403),adeestrangeirosaapenas8%(2.058),sendoagrandemaioriadosassalariados-68,8%-formadaportrabalhadoresnacionais.”(PEREIRA,2004,p.26)

161

“Durante o século XIX, à medida que ocorria a desagregaçãodo escravismo e a dinâmica econômica interna se expandia,tornou-se comum o pagamento de salário como retribuiçãodotrabalho,tantodohomemlivrecomodoescravizado.Nessesentido,alocação de cativos,assemelhadaaumassalariamento,significavamaisdoquemantercontinuidadeeimprimirmo-bilidadenousodoescravo;implicavaquebrararelaçãofixadoescravo e de seu senhor, caminhava em direção à negação daprópriarazãodeserdaescravidão.Oescravodealuguelacen-tuavanoseiodopróprioescravismoascaracterísticas mercantis da força de trabalho, expressandocontradiçõesdessaorganiza-çãosocial.”(PEREIRA,2004,p.28-29)

Assim,ousodoescravo de alugueldenunciavaaproletarizaçãodotraba-lhadore,emboranãorepresentasseo“assalariamentoplenoenemmas-sivo”,tratava-se“apenasdeumprocessodeproletarizaçãoembrionário,quetemsuaimportânciaporserinterioràeconomiaeconcomitanteàsprimeiraslevasimigrantes”.Oimportanteaserconsideradoéque,ape-sardeoregimedetrabalhoescravosermuitodistintodoregimedetra-balholivre,dopontodevistadequemcompravatrabalho,sejaalugandoescravosoupagandoumtrabalhador,nãoexistiadiferença.(PEREIRA,

2004,p.29)

Essa possibilidade de emprego do trabalho escravo, combinadocom o trabalho livre, estabeleceu uma forma de controle da produçãomantendo a sujeição dos escravos e reforçando a dependência dos li-bertos.

Aprosperidadeeconômica,apartirdemeadosdoséculoXIX,aliadaaoaltopreçodocativo,àcrisedaescravidãoeaocrescimentodascida-des,favoreceuoestabelecimentodeatividadesurbanaseodesenvolvi-mentodarelaçãoentremãodeobraescrava,forraelivre.Éimportantenotar que, a partir de 1870, à alforria foi associada a hostilidade pelaescravidão,exercendofortepressãoparaoseufimeseconstituindoemumelementoimportantenatransiçãodoempregodotrabalhoescravoparaoempregodotrabalholivre.(PEREIRA,2004)

Entendendoquearendacapitalizadaéaformadominantedoca-pital,tantonoregimedetrabalhoescravoquantonoregimedetrabalholivre,nomeiourbano,houvetambémumatransiçãodopredomíniodaobtençãoderendaapartirdoescravoparaopredomíniodarendaobtidaapartirdapropriedadeprivadadaterra.

162

Osignificadodapropriedadedoescravoserenovava,passavadeumaformatradicionalderiqueza,deinstrumentopararealizartrabalho,parapropriedadedecapital,garantindohipotecasourendimentosatravésdoaluguel153.

“Alocaçãosemodernizavaesediversificava,apropriedadedoescravoformalizava-acomoforçadetrabalho,porque,dopon-todevistadequemoalugava,nãosecompravaoescravo,masapenas seu trabalho. Nessa modernização e diversificação dapropriedadedoescravo,todaasociedadeserenovava”.(PEREI-

RA,2004,p.34)

Apropriedadedaterrapassavaaserconsiderada,cadavezmais,umpa-trimônio,independentementedequalquerexploraçãoprodutiva.

“Ambasaspropriedades,adoescravoeadaterra,comoformasderiqueza,constituíramelementoseconômicosquenãoseori-ginavamnoprocessoprodutivo,masseredefiniamaoassumi-remformasnovas,modificandoaprópriarelaçãodeprodução.”(PEREIRA,2004,p.34)

Assim,comoapropriedadedoescravopassouafuncionarcomocapital,apropriedadedaterratambémpassouaassumiressafunçãopassandoaproporcionarrenda em dinheiro154.Ouseja,comoafirmaXavierPereira,àmedidaquesealterouosignificadoeconômicodapropriedadedaterra,modificou-seaimportânciadotrabalhoescravocomoelementodegera-çãoderiqueza.(PEREIRA,2004,p.37)

Nesseprocesso,quefundamentavaaindustrializaçãoemSãoPau-lo,comametamorfosedapropriedadeedarenda,emergiuaformadeproduçãodemoradiaporencomenda,fazendocomqueointeressepelapropriedade se situasse sobretudo na construção de casas para seremalugadas,diminuindoointeressepelapropriedadedeescravos.Progres-sivamente,comonovosignificadoeconômicodapropriedadedoescra-

153. “Nesse contexto a proletarização embrionária, representada pelo escravo dealugueltransitoudeumarendaproporcionadapelaconcessãododireitodeusodotrabalhoescravoparaumarendaproporcionadapelaconcessãododireitodeusodotrabalhoescravo(seualuguel).”(PEREIRA,2004,p.37)

154. “Essapassagemresultoudaalteraçãodosignificadoeconômicodas relaçõessociaisquehaviammodificadoointeresseemadquiriroumanterumaououtrapropriedade:adoescravoouadoimóvel.”(PEREIRA,2004,p.37)

163

voedaterra,tornou-semaisinteressanteobterrendasprovenientesdapropriedadeimobiliária.

Nocontextodascontradiçõesentreoescravismoeamercantiliza-çãodaeconomiaurbana,eranecessário,paraa reproduçãodocapital,oavançodotrabalholivrecomoformadesuperaçãodotrabalhoescra-vo.Aconstruçãodacidadecomoformadedesenvolvimentocapitalista,queinicialmentesemanifestounaatividadedeconstruçãodemoradias,passariatambémasemanifestarnanecessidadedeprovisãodeserviçosurbanos.Nastransformaçõesdapropriedadeedarenda,terraetrabalho“metamorfosearam-se”.(PEREIRA,2004,p.37)

Continuava em vigor a necessidade de manter afastados da pro-priedadeprivadadaterraosnegrosalforriadoseamassadetrabalhado-resimigrantes,comoumfatornecessárioàconsolidaçãodasujeiçãodotrabalholivreaocapital.NocasodacidadedeSãoPaulo,oimpedimentoaolivreacessoàpropriedadedasterrasmunicipaisedevolutasdoIm-périoconstituiu-seaolongodoséculoXIX,quandoasterrasdoantigopatrimônio do Conselhopassaramparaasmãosdeparticulares.Aocupaçãodessasterrasdeusocomum,bemcomoainviabilidadedeutilizaçãodaságuaseterrasdosriospróximos,acabavacomaspossibilidadesdesub-sistênciaapartirdosrios,daterraedaágua.Semisso,nãoseriapossívelevitarqueumhomemlivrepudesseviverapartirdoconsumodiretoouderendasobtidasnosdomínios comuns,comoacaça,apesca,acoleta,aextração,entreoutrasatividadesmuitocomunsemSãoPauloaindadu-rantetodooséculoXIXequetenderamaseextinguirapartirdoiníciodoséculoXX.

A abolição e a imigração foram marcos importantes no processodeconstituiçãodomercadodetrabalhonoBrasilnofinaldoséculoXIX,comadifusãodotrabalholivrenomeioruraledotrabalhoassalariadonourbano,condiçõesnecessáriasaoiníciodaproletarizaçãodotraba-lhador e ao desenvolvimento industrial capitalista. (PEREIRA, 2004,p.39)

AgrandequantidadedeimigrantesquechegavamàSãoPauloevi-denciouacrescente importânciadacidadenocontextonacional,pro-vocandoasuaconsolidaçãocomocentrourbanoepolodistribuidordemercadoriaseabsorvedordemãodeobra.Fazendeirosdecafécomeça-vamapassarmaistemponacidadeparatratardenegóciosfinanceirosecomerciais,ficandoclaroqueomododevidatradicionalpassavaaserincompatívelcomasdemandasexigidasnagestãodamodernaempresa

164

capitalista.Dessaforma,pode-seafirmarqueorápidocrescimentoin-dustrialeurbanodeSãoPaulosedeveuprincipalmenteàconcentração de capital e trabalho.Assim,amassademãodeobra,sobretudoestrangeira,serviuaocapitaltantonaacumulaçãoagráriaquantonaacumulaçãoin-dustrial.(PEREIRA,2004)

Orápidocrescimentodacidadesignificouaampliaçãodomercadodetrabalhocomainstalaçãodefábricaseousodemaquinárioemdi-versasatividadesindustriais,refletindoaemergênciadenovasrelaçõessociaisdeprodução.(PEREIRA,2004)

Comosdesdobramentoseasimplicaçõesdaculturadocaféacida-defloresceu155.Oadensamentodocentrodacidade,passouaseracom-panhadopelaproduçãoimobiliáriaextensivaatravésdoloteamentodaschácaras e grandes terrenos e em locais mais valorizados, iniciando aocupação das ancestrais terras de domínio comum, o rocio, e também dasvárzeasdorioTamanduateí.Amassade imigranteseraempregadanacidadeeocapital156oriundodaproduçãodocaféeraaplicadonacons-truçãodecasasdealugueleconjuntosresidenciaisparaoperárioseparaaclassemédia.Aintençãoeraaeuropeizaçãodacidade157quepassava

155. AgestãodeJoãoTeodoroXavier,entreosanosde1872e1875,favoreceuamo-dernizaçãodasconstruçõesdacapitaldeummodotãofortequeoperíodoficouconhecidocomoa“segundafundaçãodeSãoPaulo”.SegundoXavierPereira,“edifíciosdetaipaforamdemolidos.Nolugardacidadeantigacomeçou-seaconstruirumanovacidade,agoratodadealvenaria.Quantoàatividadeurba-na,pode-seconsiderarqueacidadecresceusobresimesma,pois,inicialmenteo aumento da área urbanizada não foi significativo. Na verdade, nessa merasubstituiçãodeedifícioséquesesituavaosegredodoincipientecrescimentourbano,pormeiodarenovaçãodaCapitalapartirdareconstruçãodacidadesobresimesma.”(PEREIRA,2004,p.46)

156. “[...]poucospoderiamtersidomaisclarosqueHenriqueRaffard,nascidonoRiodeJaneiroefilhodocônsul-geraldaSuiça,deformaçãoacadêmicaeuro-péiaeimportantehomemdenegócios.Paraele,os“capitaispaulistasconser-varam-setímidospormuitosanosesóapareciamquandogarantidosporboashipotecas a juros elevadíssimos [...]. Mas prevendo a extinção da escravidãoe, consequentemente, a depreciação das propriedades agrícolas, e temendo abaixadetodotítuloparticularoupúblico[...],oscapitaispaulistasatiraram-seentãosobreosprédioseosterrenosdaPaulicéia[...]afimdedarempregoaseusdinheirosdesocupados”.RAFFARD,H.AlgunsdiasnaPaulicéia.SãoPaulo:AcademiaPaulistadeLetras,1977.

157. Acidadese“modernizava”.Osfazendeirosquevinhamseestabelecernacapi-talmiravamaculturaeuropéia, resultando,dessaprosperidadeeconômica,oprojetodeeuropeizaçãodeSãoPaulo.Esseprojetofavoreceuotrabalhadorli-vreestrangeiroqueerapreferidoemrelaçãoaotrabalhadornacional.ACâmaraMunicipalcomeçariaaestabelecerrestriçõesàsconstruçõesnaregiãocentral,

165

porsuareconstrução.Assim,osinvestimentospassavamaseconcentrarmaisnaproduçãoimobiliáriaeapropriedadedaterrapassouasermaisinteressantequeapropriedadedotrabalhadorcativo,agoraconsidera-daarriscadadevidoàiminênciadaaboliçãodaescravatura.Aformaçãodepreçosdemonopóliodaterraeaconsequenteexpectativadeeleva-çãodospreçosdosimóveisfaziadonegócioimobiliárioumaatividademuitorentável.Avalorizaçãodocapitalaplicadonaconstruçãoretornatantoatravésdarendacomotambématravésdaexploraçãodotrabalhonaconstrução.

Oaumentodovalordapropriedadeimobiliária,expressanaeleva-çãodospreçosdemercado,começavaacombinarcapitalizaçãoevalori-zação;“aprimeira,medianteosimplesaumentodospreçosdemercadodos imóveis, muitas vezes especulativamente, a partir da intermedia-çãodecorretorese loteadores,easegunda,pelaconstruçãodestinadaaomercadodeimóveisemformação”.Essa“construçãosocialdosetoreconômicodapropriedade”,comodenominouXavierPereira,teveseuimpulsoinicialcomasconstruçõesdeluxoparalocaçãoembairrosex-clusivosdestinadosànovaburguesia.Agora,osfazendeiros

“[...]eramobrigadosaresidirmaistemponacidade,juntodasrepartiçõespúblicaseparticulares,emcontatocomosorganis-mospolíticos;asdemorasnosdomíniosruraiscomeçavamaencurtar:acasa ruralperdiaemausteridadeoqueganhavamemelegânciaparaestadasconfortáveis,mas,aomesmotem-po,acasadacidadepassavaaserresidênciaprincipal,objetodetodososcuidados,manifestaçãoexteriordariquezadeseuproprietário.”158

modelandooaspectodacidadeerestringindoousodesistemasconstrutivostradicionais, “a velha taipa começou a ser substituída pelo tijolo”. (PEREIRA,2004,p.46)Asconstruçõesresidenciaisagoraabrigavamfamíliasmaisabasta-das,enriquecidascomaproduçãodocafé.Osporõesaltosseparamointeriordosolharesdarua,asvidraçassubstituemasjanelasdetábuaepermitemquealuzentrenascasas.Aparecemosrecuosque,primeiramentelaterais,alcan-çampoucotempodepoisatotalindependênciaeisolamentodaedificaçãoemrelaçãoaolote.Asaladevisitassurgeparaselecionaropúbliconumacrescenteoposiçãoaoespaçodaruaquesetornariaumespaçodecirculaçãoporexcelên-cia.(ROLNIK,2003)

158. MONBEIG,p.LacroissencedelavilledeSãoPaulo.Grenoble:InstitutetRevuedeGeographieAlpine,1953apudPEREIRA,2004,p.48.

166

Antigosedifícioscoloniaisdesapareciamdacidade,quecresciarapida-mente,alterandoaestruturaurbana,aumentandoamobilidadeterrito-rialesocialdapopulação.

“ÀmedidaqueoséculoXIXterminava,aalusãoaocongestiona-mentonasestreitasruasdacapitale,tantonasAtasdaCâmaraMunicipal como na imprensa do período, há várias mençõesànecessidadededisciplinarotrânsito,ordenarasruas,regu-larizá-las e introduzir alguma racionalidade em um desenhoconsideradocaótico”159(ROLNIK,2003,p.31).

Valereforçarqueessessãoapenasosprimeirospassosdeummercadoimobiliárioqueseinstituíaeque,cadavezmais,vinculavamercadodetrabalhoaosespaçosarquiteturaleurbano.Apenasquandoaeconomiademercadoestivessedesenvolvidaéqueaatividadedeconstruçãoapre-sentariaotrabalhadoremsuaduplaface:comoprodutorecomoconsu-midordecasas.”Nesseprimeiromomento,otrabalhadorpoucoadqui-riu.Omercadoimobiliárioseconcentrounaproduçãodeconstruçõesdeluxo,passandoemseguidaàproduçãodecasasdealuguelapreçosaltos,ficandootrabalhador“limitadoaosegmentoinferiordomercado,adquirindolotesdistantesoumorandoemcubículosdealuguel”.(PE-

REIRA,2004,p.49)

A COMPANHIA CANTAREIRA DE áGUAS E ESGOTOS

Alémdoinvestimentonaconstruçãodeedifícios,passou-seainvestirtambémnaprovisãodeinfraestrutura urbana,comoainstalaçãodasferro-viasedasredes de águaeesgoto,ampliandoassimasformasdevalorizaçãodapropriedadedaterra.Essesempreendimentosbuscavamavaloriza-çãodocapitalatravésdaexploraçãodotrabalhorealizadonaconstruçãodasinfraestruturasetambématravésdavendaedistribuiçãodeservi-çoscomogás,águaeesgoto.Alémdessasduasformadevalorizaçãodocapital,aprovisãodessesserviçospromoviaavalorizaçãodosimóveispróximos,propiciandooincrementodovalordemercadodosedifícioselotesservidos,aumentandoapossibilidadedeobtençãoderenda.No

159. ROLNIK,Raquel.ACidadeeaLei: legislação,políticaurbanaeterritóriosnacidadedeSãoPaulo,SãoPaulo:StudioNobel:Fapesp,2003.

167

momentoemqueeranecessárioequiparSãoPaulocomcondições gerais de produção,comoformadereforçaracidadecomoumcentroprodutivo,ocapitalprovenientedaculturadocaféetambémestrangeiropassariamaseraplicadosnessatriplapossibilidadedevalorizaçãopropiciadapelaprovisãodeserviçosurbanos.

Ainda que a cidade tenha “florescido”, como foi dito, a partir dacapitalizaçãodotrabalho,ofornecimentodeáguadacidadepermaneciaextremamenteprecário.Simplesmentenãoexistiarededeesgotamento:osdespejoscontinuavamaserfeitosdiretamentenosriosAnhangabaúeTamanduateíalémdeoutroscórregos.Oaumentodapopulaçãoaliadoà fragilidadeestruturaldofornecimentodeáguaea frequentesperío-dosdesecaagravavamuitoasituação.Águaeesgotoeramestruturasmínimas,semasquaisoestabelecimentodecondiçõesgeraisdepro-duçãonãoseviabilizava.Aspretensõesdevalorizaçãodocapitalatravésdapropriedadedaterraedotrabalhoencontravamnaprecariedadedasredesqueenvolviamosrioseaáguaumgrandeobstáculo.Seafunçãodacidadepassavaaserareproduçãodecapital,serianecessárioenfren-taroproblema.

EmmeadosdoséculoXIX,aspropriedadesestavampulverizadaspelosarredoresdonúcleourbanizadonasmãosdediversosproprietá-rioseconstrutores.Ariquezaestavadiluídanasmãosdediversospe-quenosproprietários,refletindo-senaprópriaestruturaçãodoespaço.A partir do novo significado da propriedade da terra e do trabalho, atendênciaseriaaacumulação do espaço,incluindoanecessidadedecon-centraçãodeterraeágua.

Apresençadocafénaprovínciarepresentouumainflexãonospa-drõesdedesenvolvimentodacidadedeSãoPaulo.De1872a1890,SãoPaulo passou por um enorme crescimento populacional, dobrando onúmerodehabitantesdacidade,de31.385a64.934.Nadécadaseguinte,apopulaçãoquadruplicaria.Oslimitesdacidade,queatéentãoselimi-tavaaotriângulocentral,seexpandemparachácaraspróximasemlotea-mentos“empíricos”ede formadesordenada160.Segundo JorgeOseki,“qualitativamenteacidadeexplode(eimplode)”.161

160. TOLEDO,BeneditoLimade.SãoPaulo:trêscidadesemumséculo.SãoPaulo:CosacNaify,2004.

161. AonortefoiloteadaachácaraMauá(ouCampoRedondo),adoMiguelCarloseadoBomRetiro;aolesteaschácarasdoFigueiraedoFernão,aosulascháca-rasdoBarãodeLimeira,deAnnaMachado,doOzório(oudoMenezes),doFa-gundes,doCônegoFidélis,daGlóriaedoLuizdoLavapéseaoesteaschácaras

168

Nessa época tiveram início obras de infraestrutura visando resolverproblemas urbanos e também realizar embelezamentos na cidade. AsmargensdoTamanduateí–avárzea do Carmo–começouasersaneadaapartirdainstalaçãodeumpasseiopúblicoedaconstruçãodaIlhadosAmores.AsobrasaconteceramàsmargensdoriomastambémsobreoriocomaobradoaterrodoGasômetroearuaConded’Eu(ruadoGlicé-rio).Aindanesseperíodoforamexecutadasruasdeconexãoimportan-tesearegularizaçãodolargodoCurro(atualPraçadaRepública)edoparquedaLuz,emfrenteànovaestaçãodetrens,quefoireplanejada.Nonúcleohistóricofez-seocalçamentodeparalelepípedosemimportantesruascentrais.(TOLEDO,2004)

Oproblemadeabastecimentosecoloca,diantedesseaumentopo-pulacional,comainsuficiênciadeáguaemfontesevertentespróximasaonúcleo.Nãosetratavamaisdonúmerodechafarizesoudaquanti-dadeouqualidadedatubulação,massimafaltadeágua,sobretudoemperíodosdeseca.(OSEKI,1992)ParaessefimforamrealizadasalgumasobrasporengenheiroscontratadospeloGovernoProvincialque,entre-tanto,nãosurtiramefeitonoabastecimento,sendonecessáriasobrasdemaiorporte.

ApartirdasegundametadedoséculoXIX,diantedessasdeficiên-ciasnadistribuiçãodeágua,odebatesobreasoluçãodoproblemaga-nhou força entre especialistas. As disputas, basicamente, giravam emtornodapossibilidadedecaptaraságuasdoTietê,amontantedacida-de,oudaserradaCantareira162.

OribeirãodaPedraBranca,naserradaCantareira163,aonortedoTietê, teve suas águas analisadas pelo farmacêutico Gustavo Schau-mann,sendoconstatadoqueeramdeboaqualidade.(OSEKI,1992)

Em1860,oengenheirobritânicoJamesBrunleeseumaequipedeengenheiros ingleses foram contratados pelo GovernoProvincial paraarealizaçãodeumplanogeraldeabastecimentodacidade,utilizando,sobretudo,osrecursosdaserradaCantareira.Comopartedosestudos,Brunleeseequiperealizaramumlevantamentotopográfico,demarcan-

doSenadorQueiroz,deMartinhodaSilvaPradoedoMarechalArouche.OSE-KI,JorgeH..PensareViveraConstruçãodaCidade:CanteirosdeDesenhosdePavimentação,DrenagemdeÁguasPluviaiseRedesdeEsgotoemSãoPaulo.Tesededoutoramento,FAUUSP,SãoPaulo1992,p.11.

162. HaviaaindaquemdefendesseacaptaçãodaságuasdoTamanduateí.163. “Essaságuasparaserembebidaseramdistribuídasemcântaros,oquedeuo

nomeàserra.”(OSEKI,1992,p.14)

ano população crescimento

1872 31.385 -

1886 47.697 52%

1890 64.934 36%

1900 239.820 269%

1910 375.000 56%

1920 579.033 54%

1934 1.060.120 83%

1940 1.337.644 26%

1950 2.198.096 65%

1960 3.825.351 74%

169

dotodososrecursoshídricosdaregião.Influenciadospelointeressedeproprietários de terra na região e de empresários na possibilidade deexploraçãodeserviçospúblicosenarealizaçãodessaobra,ostécnicosdeclararamqueessacaptaçãoresolveria“plenamente”problemadafaltad’águanacidade.

Em meio a desconfianças e longe de ser uma unanimidade, em1864,Brunleesentregaoseurelatórioaogoverno.Nesserelatório,cons-tavamosvaloresnecessáriosparaarealizaçãodaobra,consideradosto-talmenteforadospadrõesdegastosdaprovíncia.Oempreendimentopermaneceriasemqualquerprogressoatéadécadaseguinte.

SegundoatestouorelatóriodopresidentedaProvíncia,dr.Fran-ciscoIgnacioMarcondesHomemdeMello164,arealidadefinanceiradaprovíncianãopermitiaarealizaçãodasobrasdecanalizaçãodaságuasda Cantareira, considerada uma obra dispendiosa, continuando, por-tanto,o“quasesecular”problemadeabastecimentodeáguapotáveldacapital.165(FREITAS,1985,p.32)

SegundoAffonsodeFreitas,“umadasmaioressecasdequeháme-móriana Pauliceia teve lugar em 1866-1867: reinava entãoem todooBrasilumtempoquenteemconsequênciadaguerracontraoParaguai.”Assimcomofoimencionadoanteriormente,opresidentedaprovínciaestavaabsorvidocomacampanhapaulistanaguerradeformaque“pou-cotempoepoucosrecursosmateriaisdispunhaparaatenderaosinte-ressesprivadosdaProvíncia”(FREITAS,1985,p.33).Nessaseca,todososchafarizesdacidadesecaram,ficandoosaguadeirosresponsáveispeloabastecimentodeáguadeSãoPaulo.Dessaforma,acidadecontinuouaserabastecidaporchafarizesesuaprecáriarededecondutos166.

164. Relatório à Assembléia Legislativa Provincial pelo presidente (Francisco Ig-nacioMarcondesHomemdeMello),TypografiaImparcialdeJ.RdeAzevedoMarques,1864.

165. FREITAS, Affonso A. de Freitas. Tradições e Reminiscências Paulistanas. SãoPaulo:Itatiaia/Edusp,1985,p.32.

166. “A freguesia da Sé era abastecida pelas nascentes do Anhangabaú, captadasno tanque de Santa Teresa (situado na parte mais baixa da atual rua SantaMadalena)eaduzidasparaaCaixad’Águada ruaCruzPreta(depois ruadoPríncipeeatualQuintinoBocaiuva),construídaem1860;paraochafarizdolargodaMisericórdia,construídoeinauguradoem1792porordemdocapitãogeneralBernardoJosédeLorenaeparaoslargosdoPelourinho(depoislargo7deSetembro),deS.Gonçalo(presentementepraçadr.JoãoMendes),deS.FranciscoedeS.Bento,mandadosconstruirem1864pelopresidentedr.Ho-memdeMello.OchafarizdoCampodaLuz(HojetransformadoemAvenidaTiradentes) e o do Piques derivavam-se do encanamento geral das águas do

tabela1:crescimentopopulacionaldacidadedeSãoPaulo1872-1960(fontes:SINGER,Paul.DesenvolvimentoEconômicoeExclu-sãoUrbanaePETRONE,Pasquale.AcidadedeSãoPaulonoséculoXXapudOSEKI,1992.)

170

A precariedade da rede de distribuição continuava a comprometer oacessodosmoradoresàágua.AdistribuiçãodeáguadeSãoPaulo,nadécadade1860,eraumaredemistaonde80%daáguaconsumidape-losmoradoresnãoeraprovenientedoschafarizesdavilamassim,decisternas,dacoletadiretaemriosedavendadeáguapelosaguadeiros167.

O problema de abastecimento se agravava e em 1866, a falta deáguanoschafarizesdacidadeprovocourevoltasviolentas.Quantoaoesgotamentoeahigienepública,segundoAffonsodeFreitas,“sejáeranascida,estariaaindanaprimeirainfância”(FREITAS,1985).

No relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial em1872,opresidentedaprovínciaJoséFernandesdaCostaPereira,escla-receasituaçãodoabastecimentoemSãoPauloeapontaparaaadoçãodosistemadecaptaçãodaságuasdaCantareira:

“Nãoháregularidadenaedificaçãodascasas[paulistas];me-nosháumsistemadeesgotosqueobsteconstantesexalaçõesmiasmáticas. Falta-lhes até o abastecimento de água potável,

tanquedoBexigaparaoJardimPúblico,serviçoesseinauguradoem1868equenãoteveaduraçãodeumdecênio,porquanto,jáem1876,osdoischafarizesachavam-sedesmanteladoseoleitodolagocentraldojardim,completamenteenxuto,serviadehangaraoaeronautaCeballos.Enemsedeveriaesperarmaiordurabilidade de semelhante abastecimento, considerando que os tubos neleempregados eram manufaturados em papelão revestido de asfalto e, emborativessemtido“tãobemassentadosquenãohaviaumajuntaporondeaáguasaísse”contudoolíquido,segundoasseveraoinspetorgeraldasobraspúblicasemseurelatórioentreguea30de janeirode1869aoBarãodeItaúna,entãopresidentedaProvíncia,“rompiaochamadobetumenoespaçomédioentreotuboeoscabeçosdeferro,devidoàimperfeiçãoepoucavigilânciaempregadanaoficina,estabelecidanaantigacasadosloucos(situadanaruadeS.João).”(FREITAS,1985,p.32)

167. “TodosesseschafarizesemaisabicadeBaixo,localizadaentreasruasdeBaixo(hojeCarlosGomes),eadoMeio(atualRodrigoSilva)aduzidadoextremodolargodaForca(presentementeLargodaLiberdade),atravésdeumagaleriasubterrâneaeasdoGaio,dosInglesesedoMoringuinho,forneciamàpopula-çãodaCapitalcercade336.000litrosou,empregandoatecnologiadaépoca,20.000medidasdeágua;asrestantes80.000quefaltavamparacompletaroabastecimentoem24horas,pelosentendidoscalculadoem100.000medidas,eramretiradasdecisternasabertasaolongodasmargensdorioTamanduateíedocórregoLavapésevendidasempipasambulantesaopreçode40réisobarril.Semembargodessesistemamistoou,talvez,porissomesmo,oabas-tecimentodeáguaàPaulicéia,porsuanaturezadeficiente,tornava-seprecáriosemprequeaProvidênciaDivinadescuidava-sede forneceroóxidovitalemformadecopiosaschuvas.”(FREITAS,1985,p.33)

171

umadascondiçõesessenciaisdesalubridade.[...]Comosabeisaleiprovincialno102de1870,autorizou[...]oencanamentodaságuasdacantareira[...]podendoparaessefimcontrairem-préstimoouemitirtítulosatéaquantiade650contos,comojurode7%aoano[...].Nessesentido[foramchamados]con-correntesqueseencarregassemdaobra,segundoumplanoor-ganizadopeloeng.Brunlees.”168

Diantedasituaçãodadistribuiçãodeáguaesalubridade,opresidente,portanto,assumeaincapacidadedoEstadoderealizarasobrasnecessá-riasparaainstalaçãodasredes.Conclui-se,portanto,queoEstadonãoestavaaparelhadotantoeconomicamentecomotecnicamente.

Norelatóriode1873àAssembleia,opresidenteJoãoTheodorodis-cuteaspropostasparaosempreendimentos:

“Tenho recebido algumas [propostas] [...], entendo porém,quenasconcessõesdeprivilégiosdeveolegisladorevitar,entreoutros,trêsperigoscapitais:(a)garantiadejuros-asituaçãoatual da província não permite, e os transcendentes interes-sesdascompanhiasdelinhasférreasatornampresentementeinexequível;(b)transmissibilidadedeprivilégio-éumacláu-sulaquerevelaumpensamentoeumaempresapuramentedemercenáriosenãodeutilidadepública;(c)retribuiçãoobriga-tóriapelosparticulares-seráumaopressãomaiseumatira-nia,muitasvezes,contraapobreza,amaisnumerosaclassedacapital.”169

Posteriormente,em1875,aAssembleiaLegislativaProvincialaprovaaleino45,quedeterminaainstalaçãoobrigatóriadeumsistemacompletode“despejoseesgotos”nosprédiosdacapital.Noentantoaobrigato-riedadedeinstalaçãodeáguanãofoiaprovada.Mesmoassim,oprojetodecaptaçãodeáguanaCantareiracomeçouaseviabilizarcomaasso-ciaçãodetrês importantespersonagensdaépoca:oengenheiro inglêsDaniel Mackinson Fox, o major Benedito Antonio da Silva e coronelAntonioProostRodovalho,quandoestabeleceram,comoGovernoPro-

168. RelatórioàAssembléiaLegislativaProvincialpelopresidente(JoséFernandesdaCostaPereiraJr.),TipografiaAmericana,SãoPaulo,1872.

169. RelatórioàAssembléiaLegislativaProvincialpelopresidente(JoãoTheodoroXavier),TipografiaAmericana,SãoPaulo,1873.

172

vincial,umcontratodeconcessãodomonopóliodaexploraçãodarededeesgotosdeSãoPaulo,comvalidadedesetentaanos,apartirdains-talaçãodeum“sistemacompletodeesgotoedespejos”(OSEKI,1992).

Inicialmente,essecontrato,alémdaredededespejoseesgotos,determi-navaaconstruçãodeseischafarizes170edediversasválvulasdecombateaincêndionacidade.

Finalmente, em 1877, os três empreendedores fundaram a Com-panhiaCantareiradeÁguaseEsgotos171.Paraaassinaturadocontratode concessão, foi alterada uma cláusula, propondo que a Companhia,alémdainstalaçãodarededeesgotos,comodeterminavainicialmenteaconcessão,tambémsupririadeáguatodooperímetrourbanodacidade.Nessemomento,aáreacentraldacidade tinhaaproximadamente191km2.(SANT’ANNA,2007)

OsproprietáriosdaCompanhiaestavamenvolvidoscomocapi-tal cafeeiro, o que determinou que o negócio respeitaria os interessesdessesetordaeconomia.Paraarealizaçãodaobraseriamcontratadosengenheirosingleses.Tratava-sedeumacompanhiaprivadabrasileira,ligadaaocapitalcafeeiromastambémcomaparticipaçãodeprofissio-naisingleses(SANT‘ANNA,2007eOSEKI,1992).TantoomajorBene-ditoAntoniodaSilva172quantoocoronelAntonioProostRodovalho173

170. SegundoDeniseBernuzzideSant’Anna,“oschafarizesdeveriamsercolocadosemlargos,nosseguinteslocais:Brás,Luz,Guaianases,Curros,SetedeSetem-bro e São Bento.” SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. Cidade das Águas: usos derios,córregos,bicasechafarizesemSãoPaulo(1822-1901).SãoPaulo:EditoraSenac,2007,p.168,nota3.

171. InicialmenteaCompanhiafoidirigidaporClementeFalcãodeSousaFilho,oBarãodeTrêsRioseporRafaelAguiarPaisdeBarros.(SANT’ANNA,2007)

172. OmajorBeneditoAntôniodaSilvafoicomandantedaguardanacionaldeSan-toAmaro,acumulouduranteasuavidaumadasmaioresfortunasdasegundametadedoséculoXIX.Foifundador,alémdealgunsbancospaulistas,daCom-panhiaDocasdeSantos,daCompanhiadeÁguasSãoLourençoedaFerroviaRio Claro-São Carlos. Residia em uma casa no Páteo do Colégio, localizadaaoladodoSolardaMarquesadeSantos.FoimembrodaIrmandadedaSantaCasadeMisericórdiadeSãoPaulo,instituiçãoconhecidaporserumadasgran-desproprietáriasdeterrasemSãoPauloatualmente.CINTRA,JorgeP.Primei-rasPlantasTopográficasdaCidadedeSãoPaulo.inIDOETA,Irineu;IDOETA,IvanV.;CINTRA,JorgeP.SãoPaulovistadoalto,75anosdeaerofotogrametria.SãoPaulo:Érica,2004.

173. OcoronelAntônioProostRodovalho,foimembrodaGuardaNacional,pro-movidoacoronelapósacampanhadaGuerradoParaguai.AolongodoséculoXIXatuoucomoempresárionossetoresdoaçúcar,salecafésendofundadordoBancoComercialdeSãoPaulo,daCaixaEconômicaeMontedeSocorro,da

173

tinhamenvolvimentocomocapitalbancário,industrialecomercial.Fo-ramresponsáveisporfinanciareempreenderdiversosnegóciosemSãoPauloenaprovíncia,sempreligadosàprovisãodeinfraestrutura,comoaexploraçãodegás,água,cimentoeainstalaçãodeferrovias.Exerciamforte influênciapolíticanasdecisõesdaCâmaraedaprovíncia, tendosidoocoronel,membrodaCâmaraepresidentedessainstituiçãoentre1866e1870.Ouseja,alémdopodereconômico,governavamelegisla-vam.Amboseramproprietáriosde terrasnacidade,muitasdasquaissituavam-sedentrodaáreadoantigorocioenasvárzeasdosrios.EsseéocasodachácaradoCapão,depropriedadedomajorBeneditoAntoniodaSilvaequereceberia,nessemesmoperíodo,osloteamentosquede-ramorigemàavenidaPaulistaebairrospróximos.AchácaradoCapãofoiumadasmaioresqueexistiudentrodolimitedoantigorocio,comopodeserobservadonomapadaschácaras,páginas154-155,número39naindicaçãodomapaedalegenda.Evidentemente,SilvaeRodovalhoapoiaramaaboliçãodaescravaturaeaimigraçãoeuropeia.

Dessaforma,ocapitalcafeeiro,quenesseperíodoeracontroladoporapenasalgumasfamílias,começavatambémaseraplicadoemem-preendimentosdeserviçospúblicosurbanos,concentrandoessasativi-dades.

OengenheiroDanielM.Fox,dentrediversasatividadesqueenvol-viamainstalaçãodeinfraestruturas,haviacoordenado,contratadopelaSãoPauloRailway,oscomplexostrabalhosparaainstalaçãodaferroviaSantos-Jundiaí,construídade1860a1867,projetoquetambémcontoucomaparticipaçãodeJamesBrunlees.

Em1878,aCompanhiacontratou,emLondres,oengenheiroHen-ryBatsonJoynerparacoordenarasobraserealizarumaplantacadas-

CompanhiadeEstradasdeFerroItuana,daCompanhiadeEstradasdeFerroSãoPaulo-RiodeJaneiroedaCompanhiaítaloPaulista.TambémfinancioueparticipoudosempreendimentoscomoaFábricadeTecidosAnhaia&Cia,aSerrariaSydoweaCompanhiadeGásdeSãoPaulo.EmCaieiras,nointeriordaprovíncia,ocoronelempreendeuumnegóciodeexploraçãodecimentoepapel,aCompanhiaMelhoramentosdeSãoPaulo.FoifundadordaAssociaçãoComercialdeSãoPaulo.MembrodoPartidoConservador,eraabolicionistaeéconsideradoumdosprimeirosapoiadoresdaRepública.AssimcomoomajorSilva, foimembrodaIrmandadedaSantaCasadeMisericórdiadeSãoPau-lo.CINTRA,JorgeP.PrimeirasPlantasTopográficasdaCidadedeSãoPaulo.inIDOETA,Irineu;IDOETA,IvanV.;CINTRA,JorgeP.SãoPaulovistadoalto,75anosdeaerofotogrametria.SãoPaulo:Érica,2004.

174

tral174dacidadedeSãoPaulo–vermapadaspáginas146-147.Apósal-gumadificuldadecomachamadadecapitais,ostrabalhosseiniciaramnessemesmoanocomasobrasdoreservatóriodaConsolação,situadoemumapartedasterrasdomajorBeneditoAntôniodaSilva,nachácaradoCapão.Tantooreservatóriocomoaplantaforamconcluídasem1881.

Sobreessaplanta,apesardesetratardeumaplantacadastral,mi-nuciosamentelevantadaedesenhada,nãofoiútilpararesolverasques-tõesqueenvolviamadeterminaçãodosdomíniosdeterrasmunicipaiseprivadasdorocio,vistoquerepresentavaexclusivamenteaáreaurba-nizadadacidade.Curiosamente,comoexplicaEudesCampos175,elafoiutilizadanaCâmaradeSãoPauloparacomplementaçãodedados:

“Em7demarçode1881,umvereador indicouàCâmaraquesolicitassedaempresacópiadessedocumentográficoparaquefosserealizadoapartirdelaumtrabalhodecomplementaçãode dados que interessava à Municipalidade. Como a Câmaranãoconseguiamandarrealizaratãosonhadaplantacadastraldacidade,queorientasseadistribuiçãodasterrasdopatrimô-niomunicipal(rossio)sobaformadedatasetodososfuturos

174. InicialmenteaCompanhiafoidirigidaporJoaquimEgídiodeSouzaAranha,oentãoBarãodeTrêsRios,ClementeFalcãodeSousaFilhoeporRafaelAguiarPaisdeBarros.(SANT’ANNA,2007)OcafeicultorJoaquimdeSouzaAranha–barão,visconde,condeemarquêsdeTrêsRios–eraproprietáriodachácaradoBomRetiroquefaziapartedoantigorociodeSãoPaulonavárzeadoTietêpró-ximoáfozdoTamanduateí.Diversasvezesdeputadoprovincial,ocupouapre-sidênciadaProvínciaemtrêsocasiões,dezembrode1878afevereirode1879,demarçoaabrilde1881,edenovembrode1881ajaneirode1882.ProduziucaféemfazendasdeCampinaseRioClaro.SousaFilhotinhasidopresidentedaCompanhiaPaulistadeEstradasdeFerronadécadade60.PaisdeBarros(nãoconfundircomseuprimoRafaelTobiasdeAguiarPaisdeBarros,osegun-dobarãodePiracicaba)estudounaFaculdadedeDireitodoLargoSãoFrancis-coeeracafeicultor,proprietáriodaFazendaSãoRafaelnacidadedeLeme,SãoPaulo.FoivereadoremSãoPauloduranteoImpérioesignatáriodaConvençãodeItuem1873e,assim,apoiadordaRepública,daaboliçãodaescravaturaedaimigração.TambémfoiprovedordaSantaCasadeMisericórdiadeSãoPaulo.Tornou-seproprietáriodeumaenormechácaraqueincorporavaterrasdoan-tigorocio,àsmargensdoTamanduateí,osítiodoPinheiro,quepodeservistanomapadaschácaras(verpáginas154-155,número28daindicaçãodomapaedalegenda).MesmosendoproprietáriodosítiodoPinheiro,PaisdeBarrosmoravaemumacasanaruaAlegre,atualruaBrigadeiroTobias,nomedadoemhomenagemaoseuprimo.

175. CAMPOS, Eudes. São Paulo Antigo: Plantas da Cidade. Informativo ArquivoHistóricoMunicipal,4(20):set/out.2008.

175

trabalhosdealinhamentoderuasedeconstruções,oedilco-gitavausaressaplantarecentementeexecutadapelainiciativaprivadaeadaptá-laaoserviçopúblico.Aindaem1887aplantadaCantareiraeravistanaCâmaracomoumdocumentomuitoútil,portrazerumapartedocadastrodacidadeepartedosar-rabaldes.Emborajádesatualizadonoqueserefereaotraçadoviárioeàsconstruções,emdecorrênciadarápidaexpansãour-banaexperimentadanaquelesdias,mantinha-seessetrabalho“dignodetodaaconfiança”.”(CAMPOS,2008)

Valeressaltarque,comoseviu,ospersonagensenvolvidosnaorgani-zaçãomunicipaleprovincial,nasempresasdeserviçosurbanosenasprivatizações de terras e águas eram exatamente os mesmos, fato queexplicaotrânsitodessaplantaeexplicitaarelaçãocontraditóriaentrea privatização do rocio, o capital industrial e comercial, a provisão deinfraestruturasurbanaseopróprioEstado176.

Aindasobreaplantade1881,énotávelsuaobjetividade177quandocomparadacomplantasanteriores,registrandoinclusivemudançasdenomes178dediversaslocalidadescomodecorrênciadiretadeummovi-

176. SegundoJorgeOseki,“ograndecapitalcafeeiro,aliásconstituídonaépocaporoitograndesfamíliaspaulistas,temgrandesfazendas,açõesdeempresasfer-roviárias, fomentaa imigração,empreendeserviçospúblicosurbanos,possuibancos, dedica-se à atividade industrial. E também governa.” (OSEKI, 1992,p.17)

177. “AindasobreosregistrosnotáveisnaplantadaCompanhiaCantareira,vê-seque se trata de uma representação extremamente objetiva e redutora, sendoseusedifíciosrepresentadosdeformamuitoclaraedireta.NomapadaCompa-nhiasãorepresentadasigrejas,lojasmaçônicas,teatros,aassembléia,quartéis,academias, armazéns e estações, não havendo preferência, ao menos grafica-mente,poredifícioscivis,militaresoureligiosos.Ocaráter laicodessemapanão é somente uma característica de uma planta realizada por uma empresacapitalistadeprovimentosurbanos,aquemessecomportamentobeneficiaria,mas também uma evidência da laicização crescente na transição do ImpérioparaaRepública,quandodiversosaspectosdavidasocialacompanharamessatendência, influindo notavelmente, inclusive, na nomeação de logradouros”(GOUVÊA,2010).

178. “Atémesmonomesnovosderuashaviamsidoadotadosoficialmenteem1865,ficandoastradicionaisdenominaçõespopulares,àsvezestãocruas,substituí-daspornomesmais“convenientes”,relativosapessoasilustresouentãoalu-sivosafatosedatascomemorativasdahistóriapátria.OsprincipaisedifíciosdaCapitalcontinuavamsendoigrejaseconventos,masagoravemostambémassinaladossedesdejornais,tipografias,boticasecolégios,oquedemonstraqueacidadezinhacomeçavaa terumavidaurbanamais intensa”(CAMPOS,

176

mentodelaicização179decorrentedaRepública.Nela,alémdaferrovia,alocalizaçãodediversospontoscomerciaisevidenciaumamaiordiversi-ficaçãodeatividadesurbanaseafortetendênciadecrescimentodaativi-dadecomercialeindustrialnacidade.Apesardeseremofocoprincipaldarepresentação,aáguaeosriosnãoaparecemcomotal,jáqueainten-çãoaquiéofornecimentodoserviçodeáguaeesgoto.

OengenheiroAdolfoAugustoPinto,queexerciaocargodefiscalnaCompanhia,jánessesprimeirosanosdaempresa,defendiaaobriga-toriedadedacanalizaçãodeáguaeesgotoparatodasasresidênciasdacidadeassimcomoopagamentoregularpeloconsumodessesserviços.PintotinhaexcelentesrelaçõescomoGovernoProvincial180.

NorelatórioàAssembleiade1880,opresidentedaProvínciaLau-rindoAbelardodeBrito,relata:

“S.S.M.M. Imperiais em setembro de 1878 [inauguraram]solenemente os trabalhos do reservatório de distribuição deáguas na Consolação, onde se colocou a pedra fundamental.[...]Ostrabalhosestãosendofeitoscombastantemorosidade[...].OvolumeáguaobtidanaCantareira[será]de2.970.007l.quedistribuídosporumapopulaçãode30.870hab.[...]daráaquantidadede96l./hab.pordia;quantidadeesta[...]muitoabaixodosmisteresdomésticos[cujo]limítemínimoé100l./hab./dia[...].ACia.jáencomendoutodooseumaterialdaIn-glaterra[...],chegaram45t.dechumboparaasjuntasdetubos,1/2deestopaparaomesmofim,750barrisdecimento,3180tubosparaoencanamentocom0.305mdediâmetro.Opesototal de ferro recebido é de 1,137 t., 6 quintais, 2 arrobas e 3

2008).179. SobrealaicizaçãoerenomeaçãodaslocalidadesnaEuropadoséculoXII,Henri

Lefebvre,naanálisequefezsobreaconsolidaçãodoespaçoabstratolembraque“Oespaçoqueemergenoséculo XIInaEuropaocidental,quegradualmenteganha(aFrança,aInglaterra,aHolandaeaItália),éoespaçodaacumulação,seuberço,seulugardenascimento.Porqueecomo?PorqueoespaçolaicizadoresultadaressurreiçãodoLogosedoCosmos,quesubordinamasio“mundo”e às forças subterrâneas. Com o Logos e a lógica, o direito se reconstitui; asrelaçõescontratuais(estipuladas)substituemoscostumeseexigênciascostu-meiras”(LEFEBVRE,2006,p.177).

180. Naocasião,oengenheirohaviasido“muitobemrecomendado”pelaesposadeAlexandreVieiradeCarvalho,aCondessadeLajes”,sendoqueapósotraba-lhonaCantareiraexerceuocargodefiscalnaSãoPauloRailway.(SANT’ANNA,2007,p.169)

177

libras[1.154.492kg].Asplantaseperfisquedaconstruçãoparaoabastecimentodeágua,querparaosesgotos,estãoprontaserubricadaspelaCia.epelosempresários.”181

Em meio a questionamentos sobre a lisura do empreendimento, asobrascontinuarame,até1881,oschafarizesconstantesdocontratofo-raminstaladosenessemesmoanoaságuasdaCantareirapassaramaser levadas ao reservatório da Consolação e distribuídas para apenaspartedacidade(SANT’ANNA,2007).Issonãoaconteceusemprotestos:

“Hácoisasqueanaturezadádegraçaedequeninguémtemodireitodeseapoderarparavenderoualienar.Sãoágua, luzear.ACompanhiaCantareiraobteveoprivilégiodeencanaraáguadaCantareira:masninguémpodiadaraágua,porqueelaédetodos.Nãoentendeuporémassimaprivilegiada:entendeuqueoprivilégio lhedavaapossedaáguatambém,e fazendodestapossebasedesuasoperaçõesnosvaivendendoaoslitrosaáguaqueénossa.ACompanhiaadquiriucomoprivilégiooalugueldoencanamentopelopreçoqueelaquiser:masnãoapropriedadedaágua.”182

Aolongodadécadade80,diversaschácarasforamloteadasnaregiãodoreservatórioprovocandoumarápidaocupaçãodaregiãodaConsolaçãoeruaAugusta.Nessaépoca,achácaradoCapão,propriedadedomajorBeneditoAntoniodaSilva,tambémfoiloteadaeaavenidaPaulistafoiaberta.Ainstalaçãodarededeáguasignificavaoaumentodointeressepormorarnessaslocalidades,favorecendoaatividadeimobiliária.

Em 1882 a Companhia iniciou a cobrança de taxas de consumodepartedascasasservidaspelaredeque,até1888,teriacercade5.000domicíliosconectados.(SANT’ANNA,2007).

SegundoorelatórioapresentadoàAssembleiaem1882pelopre-sidenteJoaquimEgídiodeSouzaAranha,barãodeTrêsRios,tambémdirigentedaCompanhia,

“[...]aCia.[...]temencontradodificuldadessériasnachamada

181. RelatórioàAssembléiaLegislativaProvincialpelopresidente(LaurindoAbe-lardo de Brito), Tipografia do Diário de Santos, Santos, 1880 apud OSEKI,1992.

182. CorreioPaulistano,26deabrilde1882,p.3apudSANT’ANNA,2007,p.171.

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decapitais[...].Ocapitaltemsidorealizadosobreumnúmerodeaçõesqueestámuitolongedeatingiraonúmeroprimitiva-mentesubscrito.ACia.tevederecorreraoutrafontederecur-sosparanãointerromperosseustrabalhos.Levantouumem-préstimonapraçadeLondres,naimportânciade1.200contos[...]. As obras conquanto sem dificuldades técnicas a vencer,[...]abonamozelodaCia. [...]Estarãoconcluídasdentrodepoucotempo.[...][Asobrasdeesgoto]infelizmentenãotemtidoomesmoimpulso.”183

A rede de esgotos fica pronta em 1883, tornando São Paulo a terceiracidadedoBrasilcomumsistemacompletodeesgotosanitário.NoRiodeJaneiro,obrasimilarfoiconcluídaem1864,antesdeBerlimem1874,BuenosAiresem1877eRomaem1879.Recife teve tais instalaçõesapartirde1878.Paristeveseusistemainstaladoem1855.Cidadesame-ricanasforamasprimeirasaterumarededeesgotamento,Brooklynem1855,Chicagoem1856eJerseycityem1859.NaAlemanha,Frankfurtem1867,StuttgarteNurembergem1874eColôniaeMuniqueem1881.(OSEKI, 1992) Esses dados revelam a sincronia em que essas ativida-desaconteciamnomundo,provandoqueaeconomiaatrelava-se,cadavezmais,acondiçõesmundiaisdereproduçãodecapital,aindaqueSãoPaulofossemuitomenoremenosestruturadaqueessasoutrascidades.

ArededeesgotosdeSãoPauloeraumsistemaamericanodecir-culaçãocontínua.Umaestruturamuitosimples,baseadaemumcole-torgeralfeitodeferrofundidode48polegadasposicionadonavárzeadaLuzatéoTietê.Asramificaçõesdaredeeramcompostasportubosde menor diâmetro paralelos aos rios principais, como era o caso doAnhangabaúedoTamanduateí.Coletoressecundáriosderivavamdes-sesprincipais,pelosquaisseespalhavamportodasasruasdacidade,feitosdemanilhasdebarrovidradode18,15e12polegadas.Odespejodomaterialcoletadoerarealizadoin naturanorioTietêsemdesinfecçãoprévia.Nessemomento,essedespejonãosignificavaumproblemaparaoTietê,jáqueaproporçãodosresíduosemrelaçãoàáguaeraconside-radaabaixodospadrões, levando-seemcontaquea indústriadeSãoPauloaindaeramuitopoucodesenvolvida.(OSEKI,1992)

183. RelatórioàAssembléiaLegislativaProvincialpelopresidente(CondedeTrêsRios).Apresentadopeloquarto-vice(ManuelMarcondesMouraeCosta),Ti-pografiadoDiáriodeSantos,Santos,1882apudOSEKI,1992.

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Apesardeterdiversosproblemasemelhoriasafazer,arededeesgotosdeSãoPauloconstruídapelaCantareiraeraconsiderada“amelhordoBrasil”.Entretanto,segundoJorgeOseki,essaafirmaçãoérelativajáqueareivindicaçãopopularemaiornecessidadeeraaáguaenãooesgoto.Evidentemente,umnãosubstituiooutro.Entretanto,éimportanteno-tarquenessemesmoperíodohaviamaiscasasservidasporesgotoqueporágua,sendoprivilegiadaaregiãomaisricadacidade.Essefatomos-tra que a Cantareira estava mais interessada na realização do negócioquepropriamentenaquestãodosaneamento.(OSEKI,1992)

Outrofatorimportanteéque,apesardeaCompanhiaserumaem-presanacional,importavadaInglaterratodososmateriaiseequipamen-tos empregados na construção da rede. Somente em 1900 é que ma-nilhasnacionaiscomeçamaserutilizadasnoBrasil.Essefatotambémreforçaumatendênciadeinternacionalizaçãodosmeiosdeprodução,oque,alémdeprejudicaranascente indústrianacional,contribuíacomaalienaçãodenossosoperários jáque“estasmercadoriastranspondoooceano,transformavam-sedefetichesemmistérios[...].Objetosquenossostrabalhadoresvãocolocandonochãosemsabermuitobemparaqueserviriam.”(OSEKI,1992)

SegundoValérioVictorino184,nomomentoemqueasobrasforamconcluídas,essaredeeracapazdeservirodobrodapopulaçãodacida-dequeerade30.000habitantes.Entretanto,oaumentopopulacionalobservadonosdezanosseguintes–120.000habitantese8.642edifí-ciosem1892–tornouobsoletoosistemamuitorapidamente.Osentão3.500.000litrosdiáriosfornecidospelaredeeramconsideradosirrisó-rios.(VICTORINO,2002b)

O fato é que, como o abastecimento de água continuava insufi-ciente,umasignificativaparceladapopulaçãocontinuavaaseservirdaságuassujasdasbicasechafarizesabastecidaspelosriospróximos.Asi-tuaçãopioravamuitonosperíodosmaissecosdoanoe,dessa forma,as revoltaspopularescontinuavamaacontecer.Alémdisso,essenovoconceitodeserelacionarcomaáguatambémnãoagradavaatodos.Acobrançasistemáticapelosserviçosdeáguaeesgototornavaessesre-cursos inacessíveis a muitos moradores. Além disso, o antigo serviçoprestadopelosaguadeirospermitiaalgumanegociaçãonopagamento

184. VICTORINO,ValérioIgor.UmavisãoHistóricadosRecursosHídricosnaCi-dadedeSãoPauloinRevistaBrasileiradeRecursosHídricos,vol.7.SãoPaulo:2002b.

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queagoranãoeramaispossível.Oserviçodeesgototambémsetornoudeficitárioquandoarede,

inauguradaem1883,eracapazdeservirapenas66%dosedifíciosem1889eapenas48%jáem1894.

Longedascondiçõesideais,oschafarizesebicascontinuavamaserimportantesfontesdeáguaparaosmoradoresdeSãoPaulo.Ocompor-tamentodaCompanhiaemrelaçãoaessesequipamentoseramuitocla-ro.Cumpridoocontratocomainstalaçãodeseischafarizes,aCantareirainiciouodesmontedaancestralrede,desmantelandoantigoschafarizesedesfazendoasredesdecondutos.AintençãoeraforçarapopulaçãoacomprarosserviçosdaCompanhiadeformaquediversoschafarizesdacidadeforamrelocadosedepoisdemolidos185.

O planejamento da Companhia, quando da implementação darede,nãopreviuocrescimentodacidade.Osupostodesenvolvimentodarede,previstonomomentodesuainstalação,nãosemostroueficien-te.Àinsuficiênciadaredeuniu-seamáqualidadedaságuasoferecidaspelaCompanhiaeosjornaispassaramaacusaraempresadeserares-ponsávelpelapropagaçãodesurtosecontaminações.

AincapacidadedaCompanhiadesuprirsatisfatoriamenteapopu-

185. OstanquesMunicipaledeSantaTeresa,formadosapartirdasnascentesdoAnhangabaúforamdesativadosporvoltade1881pelaCantareira.Ochafarizdo largoSãoFranciscodesapareceuem1876.ExistentedesdefinsdoséculoXVIII,abicadoGaiofoiremovidaem1887.OchafarizdoPiques,construídoem1815,jánãoexistianofinaldadécadade1870.AfontequealimentavaabicadosIngleses,utilizadadesdemuitocedoemSãoPaulo,desapareceunadécadade189oassimcomoabicadeBaixo.OchafarizdolargodaPólvora,existentedesdeadécadade1820foiremovidoporvoltade1880.OtanquedoZúnigafoisecadoeterraplanadoem1855eochafarizdesapareceuem1881.OchafarizdolargodoBrásfoidesmontadoem1893,pelaRepartiçãodeÁguaseEsgotos.OchafarizdoMiguelCarlos,existentedesdeofinaldoséculoXVIIIfoidesativadoem1881.OschafarizesdoCampodaLuz,existentesdesde1863,desapareceramporvoltade1893,apartirdaencampaçãodaCantareira,assimcomooschafa-rizesdoslargosdeSãoBentoedoPelourinho.OchafarizdolargodoPaláciofoidemolidonadécadade1890.OchafarizdolargodoRosáriofoidemolidoem1893pelaRepartição,assimcomoochafarizdolargodoCarmo,inauguradoem1875.OchafarizdolargodosGuaianases,construídopelaCompanhiaem1881,foidemolidopelaRepartiçãoem1893,assimcomoochafarizdaPraçadaRepública.OchafarizdapraçadoMercado,foiconstruídoem1882edemolidoem1893,tambémpelaRepartição.AspoucasbicasechafarizesqueresistiramàCompanhiaeàRepartiçãojáestavamcomaságuassujasapartirdofinaldoséculoXIX,sendodemolidasatéadécadade1920,apósexamesdelaboratórioqueatestaramsuacontaminação.(GASPAR,1970)

181

laçãodacidadefezcomqueaempresaseendividasseemuitorapida-mentesereconheceuasuaimpotênciadiantedosproblemasdeabas-tecimento.

Em1893,oEstadopromoveuaencampaçãodaCompanhia186,ab-sorvendoasatividadesdaempresamediantepagamentodeumainde-nização187aosproprietáriosdaCantareira.OatodeencampaçãocriouaRepartiçãodeÁguaseEsgotos-RAE,sobadireçãodoengenheiroJoséPereiraRebouças.Nessemesmoano,aRepartiçãopromoveuaamplia-çãodaredededistribuiçãodeáguacomacaptaçãonoscórregosdoBis-po,IraguaçueMeninos,quepassaramaalimentaraadutoradoGuaraú.Arededeesgotostambémfoimelhorada,expandidaatodaaáreapo-voada,comumaextensaeprofundagaleriadedrenagemconstruídaemdiversospontos,atéosextremosdacidade.

A Repartição, assim como a Companhia, continuou com o des-monteedemoliçãodechafarizes.AatuaçãodaCompanhiaedaRepar-tiçãorepresentouofimdaofertadeáguagratuitaàpopulaçãodacidadedeSãoPaulo.Osdesmontesaconteciammesmocomaefetivadiminui-çãodosdomicíliosservidose,dessaforma,devidoàimportânciades-sesequipamentos,apósasdemoliçõesaconteciamrebeliões,comofoiocasodaremoçãodochafarizdolargodoRosárioem1893.

Enquantoisso,aRAEpromoveuacaptaçãodaáguadoscórregos

186. “FlávioSaesdescrevenocomeçodoséculoatransferênciadaestradadeferroSorocabana,umacompanhiaprivada,àUnião,suaprincipalcredora,jáqueestacompanhiaestava insolvente.Posteriormenteessamesmacompanhiaéarre-matada(em1907)aumgrupofranco-norte-americano(a“SorocabanaRail-wayCo.Ltd.”)pelanecessidadedeseobteremrecursosparasustentarcomprasdecafé.Arrendou-seentãoumativodoEstadopor60anos,oquerepresentouquaseasuaalienação.Em1921aSorocabanavoltaaseradministradapeloGo-vernodoEstadodeSãoPaulo(medianteumpagamentodeumamultaporres-cisãodecontratodecercade50.000contos),não“[paraseconstituir]comoempresaestatal,portantocomcertaautonomia,massimcomouma“reparti-ção”jáquetodasassuasreceitasaoTesourodoEstadoetodasassuasdespesasficavamacargodotesouro”.ImaginamosqueaencampaçãodaCia.CantareiraesuatransformaçãoemRepartiçãodeÁguaseEsgotostenhasidoanáloga,istoé,comperdatotaldesuaautonomiafinanceira.”(OSEKI,1892.p.28)

187. SegundoDeniseBernuzzideSant’Anna,osengenheirosAdolfoPintoeFran-ciscodeSalesOliveiraforamosresponsáveisporarbitraropreçodaencampa-ção.“Osdoisengenheirosestimaramem6.814:549$663(seismiloitocentosecatorzecontos,quinhentosequarentaenovemilseiscentosdesessentaetrêsréis)oquantumdaindenizaçãoàserpagapeloEstadoàreferidaCompanhiapelaencampaçãodeseusserviçosedireitos.PINTO,AdolfoAugusto.MinhaVidaapudSANT’ANNA,2007.

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SimãoeBorba,nacabeceiradoIpiranga,assimcomonoscórregosCas-sununga,CapãoRedondoeEngordador,dolestedaCantareira.Oreser-vatóriodaConsolaçãofoiampliadoeoutrofoiconstruídonoParaíso.ComoapoioaessasobrasfoiconstruídaalinhadoTramwaydaCanta-reira,queligavaaserraaoPari,ondeficavaopátiodaSãoPauloRailwayeporondechegavamosmateriaisquecontinuaramaserimportadosdaInglaterra.

As obras de retificação do Tamanduateí, do Ipiranga até o Tietê,prosseguiram, assim como as do Tietê na região do Anastácio. Nesseperíodo,oAnhangabaútambémfoicanalizadoecoberto.

Comrelaçãoàrededeesgoto,emdoisanos(1893e1894)oEstadoestendeuaredea3.410edifícios,enquantoqueaCompanhia,emdezanos(1883a1892),construíraumaredeparaservirapenas6.244edi-fícios.Mesmocomobservávelaumentonaeficiênciadosserviçospres-tadospeloEstado,comocrescimentodapopulação,quequadruplicouentre1890e1900,ofornecimentodeáguamantenha-sedeficitário.

SobreamãodeobrautilizadanaconstruçãodasredesdeáguaeesgotodaCompanhiaCantareiraedaRepartição,poucofoiregistrado.OsestudosdePauloCesarXavierPereirasobreosfundamentosdain-dustrializaçãodaconstruçãorevelamqueseuestabelecimentosedeunaviradadoséculocomoassalariamentodotrabalho,portanto,apartirdoestabelecimentodeummercadodetrabalhoconstituídopelaproprieda-dedaterraeaconsolidaçãodomercadofundiárioeimobiliário.Assimcomovimos,issoaconteceuapartirdainserçãoesujeiçãodotrabalha-dornacionalalforriado(escravodealugueleescravoassalariado)edotrabalhadorlivreimigrante.(PEREIRA,1988)

NacidadedeSãoPaulo,apresençadeescravosnãoeraexpressivae,apartirdadécadade1870,aumentouonúmerodetrabalhadoreslivresnomercadodetrabalhodaconstrução.Noinício,nomercadodetraba-lhodaconstrução,deu-sepreferênciaaotrabalhadoritaliano,pelaqua-lidadedoseutrabalho,cujaparticipaçãonaproporçãodetrabalhadoreslivresaumentouatéoiníciodoséculoXX.Oiníciodoséculofoimar-cado por reivindicações e paralisações empreendidas pelo movimentooperário,conseguindofeitosimportantescomoareduçãodajornadadetrabalhonaconstruçãocivil. Essasparalisaçõesgeraramconflitosqueacabaramtransformandoaimagemquesetinhadotrabalhadoritalianoque, resistindoàexploração,passouaserumtrabalhador indesejável.Asparalisaçõespassaramaserduramentereprimidaseascondiçõesde

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trabalhopioraramdiantedaaceitaçãodeoutrostrabalhadoresdorebai-xamentodesalários,abrindoespaçoparaaampliaçãodaespoliaçãodotrabalhadordaconstrução.(PEREIRA,1988)Esseeraocontextodaati-vidadedeconstrução.

JorgeOseki,aoestudaro“trabalhadordeobraspúblicas”emSãoPaulo nesse mesmo período, se deparou com a quase inexistência defontes documentais que registrassem o trabalho de construção de re-desdeinfraestrutura,sobretudonasobrasdasredesdeáguaeesgotodaCompanhiaCantareiraedaRepartiçãodeÁguaseEsgotos.Ospoucosdadosencontradospermitiramfazeralgumasobservações.Apartirdedadosdo recenseamentode 1872,percebe-sequeos trabalhadoresdeobraspúblicaserammuitopoucossecomparadosaostrabalhadoresde“edificações”. No grupo de obras públicas, registrou-se a presença detrabalhadoresnacionaisbrancos,negroseestrangeiros,comopredomí-niodenacionaisbrancosemuitopoucaparticipaçãodetrabalhadoresescravosnegros.Apesardeosdadosserempoucoesclarecedores,Osekiconcluique“ouastarefasnãoestavamdefinidasenquantohabilitaçãoprofissionalouotrabalhoutilizadoerabasicamentebruto,nãoqualifi-cadonemregistrado.Umtrabalhototalmenteindiscriminado.”(OSEKI,

1992,p.127)

CHICAGO, BUENOS AIRES, RIO DE jANEIRO, PARIS, LONDRES, BERLIN E MADRID

EmSãoPaulo,oCódigodePosturasde1875,quefoirevistoeampliadoem1886,passandoacontrolarmaisarua,lugardeintensasociabilida-de,docotidianonoslargos,emtornodoschafarizes,lugardaescravaria,dalibertinagemedadevassidão.Oespaçopúblicofoiredimensionadoparareceberocapitalcafeeiro,intervindo,basicamente,nosbairrospo-bresedaclassetrabalhadora.

A“higiene”apareceunacidadenomomentoemqueessetemado-minavacompletamenteodebateurbanístico internacional,apartirdaatuaçãodaengenharia.EmSãoPaulo,apopulaçãopassavade64.934em 1890 para 120.775 de habitantes em 1893. Isso também motivoutais intervenções, que acabaram por produzir os subúrbios da cidade,agoramarcadamentepopulareseoperários.

Evidentemente, a preocupação com a salubridade das ocupaçõespopularesnãoerampuramentehumanistas,comoficaclaronadeclara-

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çãodeCerqueiraCésar,entãovice-presidentedaProvíncia:

“Epidemias intensas devastaram durante os últimos mesesváriaslocalidadesdoEstado.[...]Asepidemiasqueassolamoprincipal dos nossos portos não só perturbam o mecanismoeconômicodoEstadoeameaçamdesériasdificuldadesasuacomunicação comercial com o exterior, mas expõe tambémtodooterritóriopaulistaàinvasãodafebreamarela,diziman-doaclasseoperáriaeroubando-nosbraços úteis que importamos com sacrifícios.”188

CoubeaoGovernoProvincial,queencabeçavaosesforçosdeimplantaramãodeobraassalariadacomapromoçãodaimigraçãoeuropeia,criarem1890oServiçoSanitárioeem1894oprimeiroCódigoSanitáriodoEstadodeSãoPaulo.Afaladovice-presidentedaprovínciaevidenciaarelaçãoentreaconstituiçãodasredesdeinfraestruturadeáguaeesgotoscomosinteressesdocapitalcafeeiroeindustrial,nomomentoemqueseinstituíaomercadodetrabalhoassalariadonacidade.OsurgimentodaideologiasanitárianãoéexclusivodacidadedeSãoPaulo,aindaque,comovimos,essasredestenhamsidoconstituídasquasequesimulta-neamenteemdiversascidadesdomundo.

Sobreosurgimentodaspreocupaçõesquederamorigemaosanita-rismo,asdécadasde1830e1840destacam-secomoasmaisimportan-tesnahistóriadaengenhariasanitária.Asepidemiasdecóleraqueas-solaramascidadesinglesasnadécadade30despertaramapreocupaçãocomosaneamentodascidades,evidenciandoqueasdoençaserammaisintensas em áreas urbanas carentes de saneamento efetivo, principal-mentepornãoselimitaremàsclassesmaisbaixasdasociedade.

Um dos documentos que mais influenciaram as decisões nesseperíodo foi o relatório sobre doenças da classe trabalhadora inglesa,publicado em 1842 por Edwin Chadwick189. Nesse relatório, o sanita-

188. CESAR,Cerqueira.MensagemdirigidaaoCongressoLegislativodoestadopelovice-presidentedoestadoemexercício,7deabrilde1892apudROLNIK,2003,p.38.

189. EdwinChadwick(1800-1890),sanitaristabritânico,pioneirodasaúdepú-blicaeincansáveldefensordahigiene,foiumdosprimeiroscientistasacom-preenderaimportânciadofornecimentodeáguapura.AInglaterraestavaemplenodesenvolvimentoindustrialeascondiçõesdehigieneprecárias,princi-palmentecomolançamentoindiscriminadodosefluentesindustriaisemcór-regoserios.Orelatóriode1842demonstrouarelaçãoentrepobrezaeinsalu-

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rista inglês constatou a necessidade de se tomar medidas preventivascomodrenagemelimpezadascasas,atravésdeumsuprimentodeáguaedeesgoto,juntoàlimpezadedejetosnocivosdascidades.Alémdis-so,eledeterminouqueessasoperaçõesdeveriamserresolvidascomosrecursosdocampodaengenhariacivilenãonoserviçomédico.Nessemomento, a Inglaterra passava por um assombroso desenvolvimentoindustrial,eaperdadeoperáriosparaepidemiassetornava,sobretudo,umproblemaeconômico.

Aevoluçãodosconhecimentoscientíficos,principalmentenaáreadesaúdepública,eadifusãoemtodoomundodeumaideologiacien-tífico-tecnológica, tornou imprescindível a necessidade de canalizaresgotosemtodososcentrosurbanos.Issoaconteceunomomentoemqueessescentroscresciamesuaseconomiaspassavamasebasearnaproduçãoindustrial.

Emtodoomundoaquestãosanitáriapassavaaserumproblemaparaoavançodaindustrialização.AsideiasepostulaçõesdeChadwickedaengenhariasanitáriasedisseminarampelomundo,comopodeserobservadonosexemplosaseguir.

Apósumagraveepidemiadecóleraedevidoaoaltoriscodeincêndios,acidadedeChicagocriou,em1851,oseuConselhoPúblicodaÁgua(Wa-terBoard).Aredefoiinauguradaem1856e,inicialmente,seestendeuaoslocaismaissuscetíveisaincêndioseproliferaçãodedoenças,loca-lizadosnocentrodacidade.Chicagopassavaporumfortecrescimentodaatividadeindustrial,oquemotivouumagrandeimigração,passandode30.000habitantes,em1850,para112.000,em1860.NoiníciodoséculoXIX,índiosnativosdaregiãoforamforçadosavendersuasterrasapreçosmuitobaixos.Apósainstalaçãodaredededistribuiçãodeáguanadécadade50,oslotesurbanosporelaservidosexperimentaramumafortevalorização,fazendocomquearedepassasseaseguiroseixosdevalorização imobiliária. Nessa ocasião o esgoto era despejado direta-mentenolagoMichigan.190

bridadeetornou-semodeloparasanitaristasdeváriasoutrasnações.Integroudiversas comissões importantes na saúde pública inglesa estabelecendo, em1848,comoestabelecimentodoConselhoGeraldeSaúde.

190. SMITH,Carl.CityWater,CityLife:WaterandtheInfrastructureofIdeasinUr-banizingPhiladelphia,Boston,andChicago.UniversityofChicagoPress,2013.

186

DuranteaprimeirametadedoséculoXIX,apopulaçãodeBuenosAiresapresentouumsensívelcrescimento,acompanhandooaumentodaati-vidadecomercialemseuportodevido,principalmente,àconcentraçãodospoderespolíticoemilitarargentinosnacidade.Apopulaçãofoidecercade40.000em1801acercade90.000em1855.Nocontextodoenriquecimentodacidade,aselitesportenhaspassavamavisaramoder-nizaçãodacidadeeoestabelecimentodealgumaracionalidadenaorga-nizaçãodoespaçourbano.EssemomentododesenvolvimentourbanodeBuenosAiresfoimarcadopelapresençadeinvestimentosdecapitalinglês,principalmenteatravésdefinanciamentosparaaproduçãodein-fraestruturas,comoaestruturaportuáriaeofornecimentodeágua.

Os primeiros projetos de abastecimento de água e esgoto forampropostosnofinaldadécadade1820peloengenheiroitalianoCarlosEnriquePellegrini,quepropunhaautilizaçãodaságuasdoriodaPrataatravésdeumsistemadeelevaçãoearmazenamento.OprojetodePel-legrini foi rejeitado, assim como diversos outros planos apresentadosaopoderpúblicoatéofimdadécadade1850.Basicamente,odebatesedividiaentreosquedefendiamqueasredesdeveriamserumempreen-dimentoprivado,eosquedefendiamqueasredeseramumaresponsa-bilidadedogoverno.Apreocupaçãodogovernoerasubmeterocontroledaágua,umbempúblico,àespeculaçãoprivada.191

Apesardoavançonosdebates,apopulaçãosentiaosefeitosdapre-cariedadedofornecimentodeáguaeesgoto,dependendodadistribui-çãorealizadapelosaguaterosedacoletaempoços.Comocrescimentodapopulaçãoeafaltadesaneamento,erainevitávelquesurtosdefebretifoideacontecessem.Apesardisso,divergênciaspolíticasentreaselitesargentinasedisputasentreasadministraçõesmunicipaleprovincial,re-tardarammuitooestabelecimentodasredesnacidade.Finalmente,em1867foiaprovadaaleiqueautorizavaoBancodaProvínciaafinanciaramunicipalidadeparaaexecuçãodoprojetodefornecimentodeáguaeesgotoparaBuenosAires.AComisión de Aguas Corrientes, Cloacas y Ado-quinadosdeuparecerfavorávelaoprojetodoengenheiroJohnCoghlaneasobrasseiniciaramem1868.Entretanto,esseprojetofoiimplantadoapenasparcialmente,privilegiandoaszonasmaisricasdacidadealémdeedifíciosgovernamentaisealgumasempresas.Em1869acidadeche-

191. RÜCKERT,FabianoQuadros.ExperiênciasdeSaneamentonaCidadedeBue-nosAires:dosprojetosdePellegriniaconclusãodoProjetoBateman(1829-1905).Florianópolis:RevistaEsboços,2013.

187

gavaa177.000habitantes,istoé,praticamentedobrouem15anos.Osproblemasdesaneamentocontinuavameem1871acidadepassouporumaepidemiadefebreamarelasemprecedentesnahistóriaargentina.(RÜCKERT,2013)

Acidadepassavaporumsurtodedesenvolvimentourbanoepopu-lacionaldevidoaoincrementodaatividadeagroexportadoraargentinaque,necessariamente,passavapeloseuporto,refletindoemumaforteonda de imigração europeia. No início da década de 1870 o GovernoProvincialconcedeuaoengenheiroinglêsJohnFredrickBatemanodi-reitodecoordenarasobrasdeimplantaçãodasredesatravésdefinan-ciamentosestrangeiros.Aredepassouaserutilizadaapartirde1877,mesmoquenãototalmenteconcluídaemesmodiantedefrequentesde-núnciassobrealisuradaconcessãoeconflitosentreaspartesenvolvi-das.Dessaforma,ostrabalhosforamparalisadosaté1880.(RÜCKERT,

2013)Nospróximos12anos,apopulaçãopassariade230.000em1875a430.000em1887.

ApósofimdaguerracivilentreportenhoseoExércitoNacional,BuenosAirespassouaseracapitaldopaís,sendoqueBatemantornou-seDirector de las Obras de SalubridaddeBuenosAires.Apósváriosadia-mentosedenúnciasdeirregularidadessobreaautonomiadeBatemanna importaçãodemaquinários,aobrachegoua1887semestar total-menteconcluída.Diantedessesimpassesdecidiu-sepeloarrendamentodaobraporumaempresaprivada,sendoodireitoconcedidoàThe Bue-nos Aires Water Supply and Drainage Company,depropriedadedeumgrupodebanqueirosingleses.Apósumboicoterealizadoporproprietáriosdelotesquefuturamenteusufruiriamdasredes,ogovernonacionaldeci-diu,em1890,pelaanulaçãodocontratodearrendamento.Aessaaltura,acidadejáhaviacrescidomuitoepossuíaumagrandeperiferia,sendoasobrassempreinsuficientesparacobriraáreaurbanizada.(RÜCKERT,

2013)Aindaqueinsuficientediantedademanda,oprojetodeBatemanfoi concluído apenas em 1905, quando a população de Buenos Aireschegavaa950.000habitantes.

AgeografiadasplaníciesondeaocupaçãodacidadedoRiodeJaneirose iniciounoséculoXVIeramarcadapelapresençade lagoaseopelomovimento das marés. Essas lagoas, e também valas e talvegues na-turais, recebiam os dejetos dos moradores, concentrando uma grandequantidadedesujeira.CoubeàCâmaraMunicipalassumiroserviçode

188

limpeza desses locais. Os esgotos domésticos passaram a ser acondi-cionados em barricas e despejados por escravos em praias próximas.Diantedaspéssimascondiçõessanitárias,jánoséculoXIX,em1857,oImperadorD.PedroIIautorizouaassinaturadocontratodeprojetodarededeesgotamentoquedeuorigemaThe Rio de Janeiro City Improvements Company Limited,empresadecapitalinglês,responsávelpelaconstruçãodainfraestruturadeesgotamentoconcluídaem1864.Apósaconclusãodo projeto original, a empresa atuou na ampliação da rede, operandoatravésdediversosoutroscontratosaté1947,quandoseucontratofoiencerrado.(SILVA,1988)

OabastecimentodeáguadoRiodeJaneiro,desdesuafundação,enfrentouofatodeaságuaspróximasaonúcleoseremsalobrasdevidoàproximidadedomar.Paraisso,desdemuitocedoaságuasdodistan-terioCariocaforamusadasparaoconsumo.Otransportedeáguaerarealizadopor índioseescravose tambémvendidanosdomicíliosporaguadeiros.Osconflitosemtornodaáguaapareceramdevidoàdificul-dadedeacessoeaoaltocustoparasuaobtençãononúcleo.JánoséculoXVII,existiaumprojetodecaptaçãodaságuasdorioCariocafeitopelogoverno,obraqueseriarealizadaquaseumséculomaistardedevidoadificuldadesfinanceiras.Dessaforma,em1723,foiinauguradoochafarizdeSantoAntônionolargodaCarioca.Aáguaquesobravadochafarizescorriaporumavalaatéomar.Devidoàprecariedadedosistema,queexigiareparosconstantes,de1744a1750foiconstruídooAquedutodaCarioca,utilizandomãodeobraescravaeumaestruturadepedraear-gamassa.Comocrescimentodacidade,adistribuiçãodeáguaporcha-farizes foi ampliada, aumentando também o número de rios e fontesdosmorrospróximosenvolvidosnoabastecimento.Oslocaisondesedistribuíaáguaeramocentrodasociabilidadedacidade,concentrandodiversasatividadesdeconsumoeobtençãoderendaegerandodiversosconflitos.NoiníciodoséculoXIX,avalorizaçãodapropriedadefundiá-riapromoveuaocupaçãodediversosmorrosporchácarasonde, fren-quentemente,estavamfontesdeáguaqueabasteciamacidade,gerandodiversosconflitosentreoEstado,proprietáriosdeterraeapopulação,quesofriacomafaltadeágua,chegandoabuscaráguaemnaviosapor-tadosnabaía.Oestadodecalamidadeporfaltadeáguapermaneceuaté1888,quandooImperador,diantedefortepressãopopular,promoveuum concurso público para a realização de obras de abastecimento. OprojetodosengenheirosPaulodeFrontineBelfortRoxofoiescolhidoe,

189

umasemanaapósoiníciodasobras,foiestabelecidoosistemadedistri-buiçãoquedurariapormuitotempo.(SANTARITTA,2009)

AsprimeirasestruturasdefornecimentodeáguadeParis,entãochama-dadeLutèce, foramaquedutosconstruídossobodomíniodoImpérioRomano.ComaquedadoImpério,essasestruturasformademolidas.Dessaforma,orioSena,alémdealgumasfontes,passaramaserosprin-cipaisfornecedoresdeáguaparaacidade.Osdespejosdeesgotoacon-teciamdiretamentenasruas,aindasempavimentação,atéalcançaremosriosdaregião.NoséculoXIII,grandepartedasruasfoipavimentada,sendoinstaladascanaletasnomeiodasviasporondeoesgotoeracole-tado.Essesistema,queéconsideradooprimeirosistemadeesgotosdeParis,nãosemostroueficientejáquefavoreciaaproliferaçãodedoenças.

PorvoltadametadedoséculoXVI,apopulaçãodeParischegavaa260.000 habitantes e o fornecimento de água e esgoto se tornarammuito deficitários. Sob o reinado de Luis XIV, na segunda metade doséculoXVII,foiconstruídonamargemdireitadorioSena,umcanalla-teral de esgotos. Nesse sistema, o rio Bièvre foi usado como canal deesgotodapartedacidadeàesquerdadoSena.Alémdessesistemanãoresolveroproblemadeesgotamento,oabastecimentodeáguafoimuitonegligenciado.ApopulaçãoaindatinhaquerecorreraoSena,carregan-doáguaembaldesparasuasresidências.

No final do século XVIII, os irmão Périer criaram a Companhia das Águas de Paris.A intençãoeraviabilizaraconstruçãodaredemediantea cobrança de taxas de usuários privados que desejassem ter suas re-sidências abastecidas. Dessa forma, foi estabelecido o serviço públicodefornecimentodeágua.JásoboreinadodeNapoleãoBonaparte,foiconstruído o canal de Ourcq, viabilizando a construção de chafarizesemquasetodososbairrosdacidade.Alémdisso,emgrandepartedasruas de Paris foram construídas galerias de esgoto centrais visitáveis,melhorandosensivelmenteascondiçõesdeesgotamentodacidade.En-tretanto,agrandequantidadedeágua fornecidaàpopulaçãoporessaredetambémfoiaresponsávelpelaproliferaçãodeepidemiasdecóleraefebretifoide.192

NoiníciodoséculoXIX,Parispassouporumfortecrescimentodaatividadeindustriale,consequentemente,apopulaçãodacidadefoide

192. BARLES,S.Urbanmetabolismandriversystems:anhistoricalperspective–ParisandtheSeine,1790–1970.HydrologyandEarthSystemSciences,2007.

190

cercade550.000em1801a1.000.000em1851.Acidadesofriacompéssimascondiçõesdesalubridadepelaplenainsuficiênciadossistemasdeáguaeesgoto.Ascondiçõesdehabitaçãodostrabalhadorestambémerampéssimas.Amaiorpartedaspessoasviviaemcortiçosmalilumi-nadoseventilados.Aessefatoseassociavaadificuldadedecirculaçãodepessoasetransportedemercadoriasnacidadedevidoàinadequaçãodosarruamentosmedievais.Aquestãocentralpassavaaseramelhorianossistemasdeesgotoecirculação.(BARLES,2007)

Em 1855, o prefeito de Paris, barão de Haussmann, e o engenhei-roEugèneBelgrand,ordenadospeloimperadorNapoleãoIII,projetamosistemadesuprimentodeáguaeesgotosdeParis,quecontinuaemfuncionamento atualmente. Esse sistema separou as redes, tornandoindependentesoserviçosdeáguaeesgotoalémdecriarumarededeáguapotáveleoutradeáguanão-potável.Alémdessessistemas,foramabertosnovosbulevareseavenidasnacidade,melhorandoascondiçõesdecirculaçãoe foramconstruídosnovosaquedutos, trazendoáguadebaciasdistantesdeParis.(BARLES,2007)

AtéofinaldoséculoXVI,amaiorpartedoshabitantesdeLondresuti-lizavamorioTâmisaeseusafluentes,alémdealgumasfontes,paraoabastecimentodeágua.ConhecidacomoGreat Conduit,aprimeirarededecondutosfoiconstruídanoiníciodoséculoXIIIutilizandocanosdechumbo.Devidoàcotadecaptaçãodeágua,arede,quesófuncionavapor gravidade, apenas servia algumas partes da cidade. Aos londrinosmaisricoseramconcedidaspermissõesparaacaptaçãodaáguadireta-mentedederivaçõesdoGreat ConduitrestandoaosmaispobresacoletadeáguadiretamentenoTâmisa.NoiníciodoséculoXVII,porumaini-ciativadeumaempresaprivada,foiconstruídaumarededecaptaçãodeáguaemHertford,conhecidacomoNew River,acercade60kilometrosdeLondres.193

NomomentoemqueLondresjácontavacomcercade500.000habitantes,umgrandeincêndio,em1666,destruiuacidadeeseuantigosistemadedistribuiçãodeágua,marcandooiníciodeumanovafasenadistribuiçãonacidade.Apartirdoincêndio,diversascompanhiaspri-vadas de água se estabeleceram, cada qual cuidando do fornecimento

193. RICHARDS,HenryCharles.LondonWaterSupply:BeingACompendiumOfTheHistory,Law,&TransactionsRelatingToTheMetropolitanWaterCompa-niesFromEarliestTimesToThePresentDay.London:P.S.King&Son,1989.

napáginaaolado:Chicago1857

(fonte:DavidRumseyMapCollection)

napáginaseguinte:BuenosAires1888

(fonte:DavidRumseyMapCollection)

191

194

nessapágina:RiodeJaneiro1864

(fonte:FundaçãoBibliotecaNacional)

napáginaseguinte:Paris1893

(fonte:DavidRumseyMapCollection)

200

napáginaanterior:Londres1865

(fonte:DavidRumseyMapCollection)

nessapágina:Berlin1877

(fonte:DavidRumseyMapCollection)

202

nessapágina:Madrid1883

(fonte:DavidRumseyMapCollection)

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deumaporçãodacidade.Asempresaseramformadasassimquebair-rosnovoseloteamentosseconstituíam,acompanhandoocrescimentodacidade.EssasempresasutilizavamáguadorioTâmisaeoutrosriospróximosque,jánoiníciodoséculoXIX,eraminsuficientesemuitopo-luídos.Osistemadeesgotoerainexistente,eoTâmisaeraconsideradoumesgotoacéuaberto.Alegislaçãoespecíficapreviaacompetiçãoentreasempresas,masoqueaconteciadefatoeramacordoscomerciaiscomrespeitoàsdivisõesgeográficasdeatuaçãodacompanhias,estimulandoa fusãoentre essasempresas.Durante oséculoXIX,osefeitosda Re-volução Industrial promoveram o crescimento da produção agrícola edaatividade industrial,momentoemqueLondresregistraumespan-tosocrescimentodotecidourbano,passando,apopulação,decercade880.000habitantesem1801,paracercade2.000.000em1851.Nesseperíodoforamregistradosdiversossurtosdecóleraeepidemias,fazen-docomquefossedeclaradaaMetropolis Water Actem1852.AfiltragemdaságuasdosriospróximosdeLondres,quejáerapraticadaporalgu-masempresasdesde1829,tornou-seobrigatóriaeaComissão Metropoli-tana de Esgotosfoiconstituída.(RICHARDS,1989)

Oproblemadoesgotopermanecianegligenciadodevidoàfaltaderecursos.Foisomenteem1858,apósumgravesurtodemaucheiroemLondres,conhecidocomoThe Great Stink,queoparlamentodecidiucriarumsistemadeesgotamento.OengenheiroJosephBazalguetteprojetouumaextensaredesubterrâneadecoletadeesgotosqueconduziaosde-jetosatéoestuáriodoTâmisa,àjusantedasáreasdemaiordensidadepopulacional.Atéofinaldoséculo,diversosreservatóriosdeáguaforamconstruídosnacidade,abrangendo,ofornecimento,maisde95%dosdomicílios londrinos em 1900. No início do século XX, todas as em-presasde fornecimentodeágua foramnacionalizadasapartirdo Me-tropolis Water Actde1902,criandooConselhoMetropolitanodeÁgua.(RICHARDS,1989)

NoiníciodoséculoXIX,Berlinpassouporumfortecrescimentodaati-vidade industrial, chegando a 1850 com uma população de 420.000habitantes.Em1870, jácomumapopulaçãode800.000habitantes,noentanto,ascondiçõesdesaneamentodacidadeeramconsideradasaspioresdetodaEuropa,quandooesgotocorriaemvalasdescobertaspe-lasruas.OfimdebarreirascomerciaiseindenizaçõespagaspelaFrançaapósofimdaguerrafrancoprussianaem1871favoreceramaatividade

205

comercial,industrialedaconstruçãonacidade.Foiapenasnesseperío-do,em1874,apósaguerra,quandoBerlinfoideclaradacapitaldoIm-périoAlemão,quearedeesgotosedistribuiçãodeáguafoiinstalada.194

MadridfoifundadanoséculoIXapartirdeumafortalezamuçulmanaqueprotegiaasrotasfluviaisdorioManzanares.OiníciodaocupaçãofoimarcadopelaabundânciadeáguasdecórregosafluentesdoManza-nares,fontesnaturaisetambémdeáguassubterrâneas.OrioManzana-resfoipoucoexploradonoiníciodaocupaçãodevidoaoseuexíguovo-lumedeáguaepequenodesnível.Duranteoperíodomedieval,Madridteveumgrandecrescimentopopulacionalfazendocomque,jánoséculoXIV, se estudasse a possibilidade de captação de água em mananciaismaisdistantes.NosséculosXVeXVI,engenheirosmuçulmanoscons-truíramumelaboradosistemadecaptaçãodeáguassubterrâneascha-madoQanat.Essaredeabasteciapoçosecanais,conhecidoscomoviajes de agua,ondesepodiaacessaráguapotável.Asfontespúblicasdeáguaeramabastecidasporessarede,massomentemembrosdaaristocraciaeordensreligiosaspossuíamencanamentosdiretamenteemsuaspro-priedades.Estima-seque,noiníciodoséculoXVIII,55%daáguaeramdestinadosa471derivaçõesparticulares,enquantoqueparaorestantedapopulaçãohaviaapenas43fontespúblicas,forçandoosmoradoresaarmazenaráguaemdepósitosebarris.Alémdisso,cercademetadedasfontespúblicaseramdeusoexclusivodevendedoresdeáguaconheci-doscomoaguadores,oquegeravadiversosconflitos.195

ComocrescimentodapopulaçãonoséculoXVIII,essaredesemos-trouinsuficientefrenteàdemandadeágua,alémdeineficaz,causandodiversasepidemiasdecólera.Assim,surgiramosprimeirosprojetosdefornecimentodeáguaesaneamentoapartirdacaptaçãodeáguaemdi-versosriosdaregião.NoséculoXIX,acidadepassouporumfortedesen-volvimentodaatividadeindustrial.Apartirdainstalaçãodeestradasdeferro,Madridpassouaserocentrodeumaredeprodutiva,provocandointensoincrementodaáreaurbanizadaefortecrescimentodapopula-ção.Para resolveroproblemadoabastecimentodeágua,oprojetodo

194. JUUTI,PetriS.eKATKO,TapioS.Water,TimeandEuropeanCities:HistoryMattersfortheFutures.TampereUniversityPress,2005.

195. LAFFOND, JoséCarlosRueda.ElAguaenMadrid:Datospara laHistoriadeCanaldeIsabelII-1851-1930.Madrid:UniversidadComplutensedeMadrid,1994.

206

CanaldeIsabelIIfoicolocadoemprática.Trata-sedeumcanaldecapta-çãodeáguadecincoriospróximosdacidade,constituindoumarededecanais,túneiseaquedutos,responsávelporfornecerumenormevolumedeáguaparaMadrid.Essemesmoprojetocontemplavaumarededees-gotos constituída por canais subterrâneos, responsáveis por conduzirosdejetosapartirdeáguaspluviais.Nessemesmoperíodo,paraarea-lizaçãodoprojeto,oConselho Municipal de Madridseencarregoudoser-viçodefornecimentodeáguamedianteumdecretoreal.Asobrasforamrealizadascommuitasdificuldades,utilizando,inclusive,amãodeobradepresidiários.Aobra,iniciadaem1851,foirealizadaemetapas,sendoconcluídaapenasem1907eacompanhouocrescimentodapopulação,quefoidecercade160.000habitantesem1842paracercade600.000em1910.(LAFFOND,1994)

Aindaquesesaibaqueexisteumainfinidadedemediaçõeshistóricas,geográficas,sociaiseeconômicasqueessesbrevíssimosrelatosnãodãocontaderesolvereexplicar,épossívelchegaraalgumasquestõesrelati-vasàconstituiçãodasredesdeáguaeesgotonessascidades.

Aindustrializaçãoaconteceunessascidadesemtemposdiferentesede formasdistintas,masaprovisãodossistemasdedistribuiçãodeáguaeesgotamentoaconteceusimultaneamente,nasegundametadedoséculoXIX.Asimultaneidadedainstalaçãodasredespareceestarrela-cionadaaomomentoemqueaproduçãodeinfraestruturasurbanaseabuscapelareproduçãodecapitalapartirdaprovisãodeserviçosurba-nosecondiçõesgeraissemundializava.Aacumulaçãoderiquezaatravésdaprovisãodasredeseserviçosurbanospassavaaserbuscadacommaisefetividade,nãoimportandoparaissoqualoestágiododesenvolvimen-to econômico da industrialização ou da história desses centros. Essefenômenoéaacumulaçãoatravésdaprodução do espaço.Dessaforma,épossívelafirmarqueaáguasetornoumercadoria,quasequesimulta-neamente em todos esses centros, inclusive em São Paulo que, comovimos,aindanãotinhaaimportânciaeconômicaqueterianasdécadasseguintes.

Entretanto,oespaçoengendradopelaatividadeindustrialnessascidadesdiferemuito–vermapasdaspáginas191a202.Osmapasdes-sascidadesnesseperíodorevelamquearelaçãocomaságuasdosriosédiferenteemcadaumadessascidades.Chicago,BuenosAireseRiodeJaneirosãosemelhantesquantoàrelaçãocomaáguapoisestãoàbeira

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deumlago, rioemar, respectivamente.Apresençadesuaáguanãoépassíveldeinterferênciapelaurbanização,sendotransformadosapenaspequenosriosecórregos.

Paris,LondreseBerlinsãomuitoparecidassobeesseaspecto, jáqueonúcleourbanosedesenvolveaoredordorio,quedivideacidadeemduas.Orioéenglobadopelonúcleourbano.Nocasodessastrêsci-dades,oriopermaneceumeândricomesmocomaintensaurbanizaçãodesuasmargens,muitoprovavelmentepeloritmoemquesedeuasuaocupação.

MadridéacidadequemaisseassemelhaaSãoPaulo.Onúcleofoiestabelecidoemumacotamaiselevadaemrelaçãoaorio,ocupandoasuamargemesquerda.AssimcomoSãoPaulo,orioManzanarespareceter constituído alguma barreira para o crescimento do tecido urbano.Ainda assim, é possível observar que, nas margens do rio Manzana-res,existem,alémde loteamentos,diversosespaçospúblicos,parquesepraças,oquenãoacontecenasmargensdosriosTamanduateí,TietêePinheiros,ondepredominaamplamenteaocupaçãoprivadadaterraatravésdeloteamentos.

OsmapasdessascidadesdevemsercomparadosaomapadeSãoPaulode1881–páginas146-147.Oquediferenciaoprocessodeincor-poraçãodosriosdeSãoPauloedessasoutrascidadeséocontextoemqueomaiorcrescimentourbanoaconteceu.ArelaçãoentreaexplosãodemográficaeadisponibilidadedeterraslivresparaurbanizaçãoemSãoPaulonãoencontraqualquersemelhançacomqualquerumadascida-descitadas,apesardehaveralgunspontosemcomumcomtodaselas.CertamenteéSãoPauloqueapresentaarelaçãomaisdistanteentreacidadeeosrios.Atransformaçãodeseusrios,terraseáguas,derecursosnaturaisemrecursoseconômicos,aconteceuantesdoperíodointensodeurbanização,certamentecolaborandoparaqueessesespaçosfossemproduzidosdeacordocomosmarcosdomododeproduçãocapitalista,determinandocomoanaturezaseriaincorporadaaoprocessoderepro-duçãodecapitalbaseado,sobretudo,naproduçãodoespaço.

208

209

rioTamanduateí1890foto:GuilhermeGaensly

(fonte:InstitutoMoreiraSales)

211

CONCLUSÃO - O RIO TORNADO áGUA

Riossãoterraeágua.OprocessoquetransformouosriosdeSãoPauloé,sobretudo,um

processodeabstração.Riostêmumlugar,umnome,umafisionomia,característicasfísicasemateriais.Poressarazão,sãofortementeligadosaochãoeàterra,ouseja,ànatureza primeira,àpaisagemnatural.Terraeáguaparabeber,limpar,limpar-se,nadar,pescarelavarroupas.Terraeáguadeondeseextraimateriais, lama,barroparafazertijolos,areiaecascalhoparaconstruirepavimentar.Terraeáguadasmargensparaplantar,engordaroboi, caçar,navegareaportar.Terraeáguaqueme-tabolizam os dejetos do homem. Todas atividades concretas. Terra eáguaqueestruturamavidadohomemapartirdoritmodassuascheiasevazantes.Riosconcretos,usáveis,nomeáveis,determinadosporsuasespecificidadesqualitativas,dasquaissefaz uso, implicandoterraeágua.

Drenarasterrasmarginaiseretificarseucanalésepararterraeáguaesubmeterhomemenatureza.Étornarosriosumaabstração-concretanamedidaemqueengendraereproduzpráticassociais.Éumaformadedeslocaroriodesuaspossibilidadesenquantonaturezaprimeiraeenquanto unidade. É abstrair essas possibilidades enquanto potênciasrelativasaouso, reduzindo-asamercadoriasematérias-primas,aele-mentosisolados:terraeáguaquandoseparadostornam-sedivisíveisequantificáveis.Terraeáguacaracterizadospordesignaçõestécnico-cien-

212

tífico-burocráticas, descritos por abstrações numéricas e representa-ções:metros,metroscúbicos,litros,kilowatt/hora.Afragmentaçãodosriosedopróprioespaço,entreterraeáguaestárelacionadaàdetermina-çãoeconômicadapropriedade,resultandonafragmentaçãodanatureza,separadaempartes,vendidaaospedaços,consumidaemloteselitros.

“Nãoexistenenhum“paraísoperdido”,atenuarosefeitosdosfenômenosnaturaissobreavida,usaranaturezacomoforçaprodutivaéumaconquistafundamentalequepertenceatodaHistóriapregressadahumanidade”.196(SEABRA,1994,p.261)

Ohomem,naatividadesocialdebuscarmeiosparasuasubsistência,realiza trabalho, reproduz e produz sua existência agindo sobre a na-tureza,determinandousosparaela.Ainteraçãodohomemcomana-tureza,internaeexterna,produzaevoluçãosocial.Oatoderetiraralgodanatureza,determinarumusoparaumapartedela, inclusiveparaoprópriocorpo,éumatodeapropriação.197Arelaçãoentreohomemesuascondiçõesnaturaisestácontidanoconceitodepropriedade,istoé,noatode se apropriar, de tomar posse, da natureza. Dessa forma, a propriedadeseriaarelaçãodoindivíduocomascondições“naturais”detrabalhoereprodução198.

Aoseapropriardanatureza,oshomensconstroemrelaçõessociaiseconcepçõesquedãosentidoàsuaatividade,transformando,assim,asociedade,queéabasedesuaatuaçãonanatureza.Aespecializaçãodefunçõesépossibilitadapelaproduçãodeexcedentesque,comadivisãosocialdo trabalho, tornapossívela troca. Inicialmente,aproduçãoeatrocatêmcomofinalidadeapenasouso, oconsumoimediato,ouseja,amanutençãodoprodutordiretoedesuacomunidade.Aevoluçãosocialestájustamentenoprocessodeemancipaçãodohomemcomrelaçãoànaturezaeseucrescentedomíniosobreamesma(MARX,2006).

Essemovimentoincluiumprogressivodistanciamentoentretra-balhoepropriedade,namedidaemqueohomemseafastadassuasrela-

196. SEABRA,OdetteC.DeL.,OsMeandrosdosRiosnosMeandrosdoPoder:Tie-têePinheiros–valorizaçãodasvárzeasdeSãoPaulo.Tesededoutoramento,FFLCH-DG/USP,SãoPaulo,1994,p.261.

197. HOBSBAWM,Eric.Introdução,inMARX,FormaçõesEconômicasPré-Capita-listas,SãoPaulo:PazeTerra,2006,cit.,p.16.

198. MARX,FormaçõesEconômicasPré-Capitalistas,SãoPaulo:PazeTerra,2006,cit.,p.66.

213

çõesprimitivaseespontâneascomanatureza.Essaevoluçãoémarcadapeloprocessodeseparaçãoentreotrabalholivreeascondiçõesobjetivasparaasuarealização,ouseja,aseparaçãoentreosmeiosdetrabalhoeoobjetodetrabalho199.

Aproduçãocapitalistapressupõeaseparaçãoentreotrabalhadoreapropriedadedascondiçõesderealizaçãodotrabalho.Essaseparação,até certo ponto, natural, não somente é conservada, mas reproduzidaemescalasemprecrescente.Esseprocessotransforma,porumlado,osmeiossociaisdesubsistênciaeproduçãoemcapitale,poroutro,ospro-dutoresdiretosemtrabalhadoresassalariados(MARX,1985a).

Destaforma,nomododeproduçãocapitalista,existeanecessidadedesepararoprodutordiretodaterraedaáguacomoaformadesujeiçãodotrabalhador.Essarupturadarelaçãodepropriedadeentreprodutoremeiosdeproduçãoesubsistência,nomodocapitalista,formaumamas-sadetrabalhadoreslivresobrigadaatrocarasuaforçadetrabalhopordinheiro.Essaexpropriaçãoéabasedoprocesso,pois,semterraslivresesemapossibilidadedesubsistênciapelanatureza,elagarantequeotrabalhadornãoteráoutraopçãoanãoservenderasuaforçadetraba-

199. “Opontochavesobreaquestãoé:emtodasestasformasnasquaisaproprie-dade da terra e a agricultura constituem a base da ordem econômica, conse-quentemente,oobjetivoeconômicoéaproduçãodevaloresdeuso, istoé,areprodução dos indivíduos em determinadas relações com sua comunidade, daqualconstituemabase,encontramososseguinteselementos: 1.Apropriaçãodas condições naturais de trabalho: da terra como o instrumento original detrabalho,aomesmotempolaboratórioereservatóriodematériasprimas;entre-tanto,apropriaçãoqueseefetuanãopormeiodotrabalho,mascomocondiçãopreliminardotrabalho.Oindivíduosimplesmente,consideraascondiçõesob-jetivasdetrabalhocomopróprias,comoanaturezainorgânicadesuasubjeti-vidade,queserealizaatravésdelas.Aprincipalcondiçãoobjetivadetrabalho,emsi,nãosemostracomooprodutodotrabalhomasocorrecomonatureza.Deumlado,temosoindivíduovivo,dooutroaterracomocondiçãoobjetivadesuareprodução.2.Aatitudeemrelaçãoà terra,à terracomopropriedadedoindivíduoquetrabalha,significaqueohomemmostra-se,desdeoprincípio,comoalgomaisdoqueaabstraçãodo“indivíduoquetrabalha”,tendoummodo objetivo de existência na propriedade da terra, que antecede sua atividade e nãosurgecomosimplesconsequênciadela,sendotantoumapré-condiçãodesuaatividade,comoésuaprópriapele,comosãoseusórgãossensoriais,poistodaapele,etodososórgãosdossentidossão,também,desenvolvidos,reproduzidos,etc,noprocessodavida,quantopressupostosdesseprocessodereprodução”.(MARX,2006,p.77-78)

riosecórregos

estradasecaminhos

propiedades/chácaras

220

lho.(MARX,1985a)200.Anatureza,portanto,participadoprocessocomoforçaprodutiva,comomercadoria,etambémcomoformadesujeiçãodotrabalhoaocapital.

“Acríticaradicalimplicadanoconceitodeapropriaçãoesclare-ceapropriedade,nolimite,comonão-apropriação,comopa-ródia,comocaricatura,comorestriçãoàapropriaçãoconcreta.Issosedáporqueaapropriaçãoestáreferenciadaaqualidades,atributos,aopassoqueapropriedadeestáreferenciadaaquan-tidades, a comparações quantitativas, igualações formais, aodinheiro(quedelimitandoousotendearestringi-lo)201

NocasodosriosdeSãoPaulo,desdeafundaçãodavila,dentrodalógicadeexploraçãocolonial,aindaquefossemconsideradosumbemcomum,jáapareciamsubmetidosàsformasdeapropriaçãoprivadadanatureza.Aatividadediretaeimediatadesubsistênciaatravésdosriosconviveucomaintermediaçãodetrabalhocativo,ondeoprodutordiretoéaliena-dodosmeiosdeprodução,determinando,assim,queasterraseaságuasdosriosjásemanifestassemcomoumprodutodotrabalho.

Durante o período colonial, os rios próximos da cidade estavamsubmetidosàcondiçãodeapropriaçãodasterrasdeusocomum,orocio,por nelas estarem contidos, definindo assim a forma com que terra eáguaseriamapropriadas.

Atravésdaintermediaçãodotrabalhoedodesenvolvimentodere-

200. “Esse modo de produção pressupõe o parcelamento do solo e dos demaismeiosdeprodução.Assimcomoaconcentraçãodestesúltimos,excluitambémacooperação,divisãodotrabalhodentrodosprópriosprocessosdeprodução,dominação social e regulação da Natureza, livre desenvolvimento das forçassociais produtivas. Ele só é compatível com estreitas barreiras naturalmentedesenvolvidasdaproduçãoedasociedade.[...]Suadestruição,atransformaçãodosmeiosdeproduçãoindividuaiseparceladosemsocialmenteconcentrados,portantodapropriedademinúsculademuitosempropriedadegigantescadepoucos,portantoaexpropiaçãodagrandemassadapopulaçãodesuabasefun-diária,deseusmeiosdesubsistênciaeinstrumentosdetrabalho,essaterríveledifícilexpropriaçãodamassadopovoconstituiapré-históriadocapital.[...]Apropriedadeprivadaobtidacomtrabalhopróprio,baseada,porassimdizer,nafusãodotrabalhadorindividualisoladoeindependentecomsuascondiçõesdetrabalho,édeslocadapelapropriedadeprivadacapitalista,aqualsebaseianaexploraçãodotrabalhoalheio,masformalmentelivre.”(MARX,1985a,p.379-380)

201. SEABRA,OdetteC.DeL.A Insurreiçãodouso, in MARTINS, JosédeSousa.HenriLefebvreeoRetornoàDialética.Hucitec,1996.

221

laçõesdeprodução,ousodosriospassouaconvivercomo“valor”dosrios,quesedesdobraemvalor de uso eovalor de troca.Arelaçãocontradi-tóriaqueenvolviaavilaeosriosaparecenaprovisãodosprimeirossis-temasdedistribuiçãodeáguaenarelaçãoentreamãodeobrautilizadanessasconstruçõeseafinalidadedostrabalhos.

As contradições presentes no ato de apropriação privada e utili-zaçãoeconômicaderecursosessenciaisàvidaaparecememSãoPauloquasequesimultaneamenteaomomentodefundaçãodavila,eseevi-denciamnosséculosseguintesdiantedaprecariedadedossistemasdedistribuição edespejos,daescassezeda qualidade daágua deque seserviamosmoradores.

Apoluiçãodosrios,istoé,oatode,conscientemente,depredaraságuasqueseconsome,comofoivisto,eraumcostumeindígenaanterioràfundaçãodavila,nãosendo,portanto,umacaracterísticasomentedocolonizador.Entretanto,elaganhaescalaevolumecomocrescimentoda população, evidenciando as contradições e a incapacidade de lidarcomosdejetosproduzidospelosprópriosmoradores.

Afaltadeágua,comofoidito,estálongedeserumacondiçãonatu-raldeSãoPaulo.Pelocontrário,aescassezéumfatosocial,constituídaparalelamenteaoprocessodevalorizaçãoeconômicadaterraedaágua.

Aobtençãoderenda,atravésdeatividadesrealizadasnosriosportrabalholivre,foiumaoportunidadecriadapelafaltadeáguaepelofatodeos riospróximosaonúcleo jáestarempoluídos.Apesardenãoterintroduzidograndestransformaçõesnasrelaçõessociaiseeconômicasdavila,essasrendasdesubsistênciapassaramarefletiralgumavançonadivisãodotrabalhoeconsequenteafastamentoentreoprodutordiretoeosmeiosdeprodução.Nocasodessasatividades,osmeiosdeprodu-ção,istoé,terraeágua,permaneciamsobodomíniodoprodutordireto.Dessemodo,a relaçãoentreo trabalhoeapropriedadedosmeiosderealizaçãodessetrabalhoerarelativamenteíntegra.

“Liberado, o princípio da propriedade privada não permane-ceestéril;eleengendraumespaço. [...]Dominandooespaço(mais exatamente submetendo-o ao dominium), o princípiodapropriedadepunhafimàcontemplaçãodanatureza,cosmosoumundo,paraexibiraviadaaçãodominadora,quetransfor-maaoinvésdeinterpretar.”202

202.LEFEBVRE,Henri.LaPresenciayLaAusencia:ContribuiciónaLaTeoriadelas

222

DuranteoséculoXIX,aculturadocaféeapolíticadeimportaçãodemão

deobracontribuíramparaqueocapitalantesinvestidonapropriedadedoescravopassasseaserempregadonapropriedadefundiária,ouseja,noespaço,implicandotransformaçõesnomododeapropriaçãodaterraedaágua.Nacidade,aacumulaçãodecapitalbaseadanaproduçãodecondiçõesgeraisatravésdaprovisãodeinfraestruturasurbanaspassaaintegrarumaesferamundialdereproduçãodocapital,representadopelapresença de capital estrangeiro nas companhias de serviços públicos,sendofinanciadasporbancossediadosemoutrospaíses.Aproduçãodoespaçocomoumprocessomundialdeacumulaçãosemanifestanasimultaneidadecomqueasredesdeinfraestruturadeáguaeesgotosãoestabelecidasemdiversascidadesdomundo.NocasodeSãoPaulo,ocapitalinvestido,emgeral,eraestrangeiroeasoperaçõeseramcontrola-daseassessoradaspelaselitesnacionais,evidenciandoqueessaacumu-laçãoaconteciapelaassociaçãoepeloalinhamentodeinteressesentreessaspartes.

A expropriação dos espaços de uso comum, que é o meio para aacumulaçãodecapital,incorporouosriosapartirdavalorizaçãoeconô-micadaterraedaágua.Essasáreasforamutilizadascomoabasema-terialdaproduçãodoespaçodeSãoPaulo.Atransformaçãodeterraeáguaemrecursoseconômicosesuamercantilizaçãoaconteceusimulta-neamenteemdiversascidades,resultandoemprocessosdeurbanizaçãodistintoseemdiferentesformasdepermanênciadosespaçoscomuns,atualmenteconsideradossimplesmentepúblicos.Omomentoemqueaconteceuessaacumulação,atravésdaproduçãodoespaçoedaprovisãodeinfraestruturaseserviçosurbanos,distingueoprocessoocorridoemSãoPaulodaquelenosdemaiscentros.Dopontodevistadaestrutu-raçãoespacialdacidade,esseprocessosedeunomomentoemqueonúcleourbanizadoeramuitorestrito,praticamenteconfinadoaotriân-gulohistóricooriginal,estandoamaiorpartedasáreasqueabrigariamaatualmetrópole,desocupadas,aindaque tivessemproprietários.Osrios,jábastantepoluídos,estavamnessasáreas,estando,portanto,sub-metidosàlógicadeproduçãodoespaçoeàracionalidadedareproduçãodocapital,determinandoaformacomoessesespaçose,sobretudo,terraeágua,seriamapropriadoseurbanizados.Asobreposiçãodemapasdaspáginas214a219mostracomooprocessodealienaçãodopatrimônio

Representaciones.MéxicoD.F.:FondodeCulturaEcononica,2006,p.170.

223

comum foi a base material do processo de produção do espaço. Essasobreposiçãomostraqueoespaço-capitalconcentradoemchácarasper-maneceunaformadosloteamentosqueconstituiuotecidourbano.Osrios,separadosemterraeágua,desapareceramcomonaturezaepassamaintegrarasredesdedrenagem,esgotamentoeproduçãodeeletricida-de.

Apartirdestasreflexões,estapesquisacolaboraparaaampliaçãodacompreensãodoprocessodeurbanizaçãodeSãoPaulo,destacandoopapeldosrios,edastransformaçõesempreendidas,comoimportan-tesestruturadoresdametrópole,constituindo-secomobasematerialdaproduçãodoespaçoetambémdeterminadoresdasformasdeapropria-çãodanaturezaedohomem.

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