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Nuno Miguel Magarinho Bessa Moreira
A Revista de Histria (1912-1928):
Uma Proposta de Anlise Histrico-Historiogrfica
Volume I
Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2012
Dissertao de Doutoramento em Histria sob a orientao do
Professor Doutor Armando Lus de Carvalho Homem
Tese financiada pelo POPH QREN Tipologia 4.1 Formao Avanada, comparticipada pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MEC atravs da Bolsa da Fundao para a Cincia e Tecnologia com a referncia SFRH/BD/41069/2007
II
III
Ao Caquito
Tia Cu
IV
V
Resumo
Nesta dissertao estudaremos a Revista de Histria, essencialmente pelo
prisma da Histria da Historiografia. O objeto da nossa investigao carece de uma
identificao prvia. A Revista de Histria foi criada no seio da Sociedade Nacional de
Histria, como veculo de informao privilegiado do respetivo iderio e forma de
difuso das ideias da instituio.
O peridico em causa composto por 16 volumes (1912-28). Comeou antes
da I Guerra Mundial, terminou dois anos depois da Instaurao da Ditadura Militar de
Gomes da Costa e foi contemporneo do Integralismo Lusitano, da Renascena
Portuguesa e da Seara Nova. A questo que se coloca : qual a relevncia cultural e
historiogrfica da Revista de Histria no contexto em que se desenvolveu?
A Historiografia tem sido, muitas vezes, equiparada Teoria da Histria numa
perspetiva epistemolgica, mas sobretudo filosfica. Sem esquecer ou ignorar estas
acees, possvel integr-las num reduto amplo, ancorado na diacronia, a coberto de
especulaes com tendncia generalizante. Um determinado discurso historiogrfico
ocorre em espao e tempo prprios, que condicionam o que expressa. Para
concretizar melhor o que est em causa neste trabalho, convm proceder a uma
descrio detalhada das motivaes subjetivas e objetivas e das fontes e
metodologias nele implicadas. Esta dissertao resulta do interesse que desde sempre
nutrimos pela Histria Contempornea, na vertente cultural. A publicao em causa
representa, pelo perodo em que se inscreve, um esforo de conjunto no que respeita
aos peridicos da especialidade na poca republicana. Por outro lado, a Histria da
Historiografia tambm constitui disciplina a aprofundar, a exemplo do que h mais
tempo acontece em Espanha, Frana ou no Brasil. Dentro da Historiografia, a escolha
da diacronia como prioridade prende-se com uma atitude metodolgica que procura
conferir destaque historicidade do objeto de investigao
Este estudo divide-se em trs partes. Na primeira, procede-se ao
enquadramento histrico, institucional e biogrfico do peridico (captulos 1 4). Num
segundo momento, realiza-se a anlise qualitativa de artigos da publicao, seguida
de uma sntese dos conceitos historiogrficos operatrios postos em prtica pelos
articulistas. (captulos 5 9). A terceira parte deste trabalho contempla uma
caracterizao da Revista de Histria, assente num acompanhamento da atualidade
patente ao longo da seco de Factos e Notas e no arranque do andamento dedicado
Bibliografia (captulo 10). Exposto este percurso, concretiza-se um balano
epistemolgico e ideolgico da publicao (captulo 11).
Trata-se de um peridico marcado pela diversidade temtica, mas que no
deve ser inserido numa nica escola, frustrando qualquer prefigurao dos Annales.
VI
VII
Abstract
The topic of this dissertation is the Revista de Histria, mainly from the point of
view of the History of Historiography. First, the object of our research requires prior
identification. The Revista de Histria was created within the National History Society,
as an important means of information of its views and a way of spreading the ideas of
the institution.
The journal in question consists of 16 volumes (1912-28) and was first
published before World War I. It ceased to exist two years after the beginning of the
military dictatorship of Gomes da Costa and was a contemporary of the Integralismo
Lusitano, the Renascena Portuguesa and the Seara Nova. The question is: how
relevant was the Revista de Histria in the context in which it developed, from the
cultural and historiographical point of view?
Historiography has been often equated to the Theory of History not just from an
epistemological perspective, but above all from a philosophical one. Taking these
particular conceptions into account, it is possible to integrate them into a larger extent,
based on diachrony, thus protected from speculation and generalizing tendency. A
particular historiographical discourse occurs in a particular space and time, both of
which determine what is expressed. In order to be more specific regarding what is
involved in this study, we will refer to the motivations both subjective and objective
and the sources and methodologies used. This dissertation is a result of our particular
interest for Contemporary History, from its cultural perspective. Bearing in mind the
historical period, the publication in question represents a joint effort as far as the
specialty journals in the Republican Era are concerned. On the other hand, the history
of historiography is also a subject which requires deeper studies, similar to what has
been happening for a long time in Spain, France or Brazil. Within historiography, the
choice of diachrony as a priority implies a methodological approach that seeks to give
priority to the historicity of the object of research.
This study is divided into three parts. The opening part presents the historical,
institutional and biographical background of the journal (chapters 1 4). In the second
part, a qualitative analysis of the contents of the articles is carried out, followed by a
summary of the historiographical operative concepts used by writers. (Chapters 5 9).
The third part of this study describes a characterization of the Revista de Histria,
based on a follow up of modern times evident over the section of Facts and Notes and
the section of Bibliography (1912-14) in chapter 10. Having presented this line of
thoughts, an epistemological balance of the publication is then established (chapter
11).
VIII
This journal is marked by thematic diversity not to be inserted in a single
doctrine, which impedes any prefiguring of the Annales.
IX
Agradecimentos
Comeo por agradecer ao Professor Doutor Armando Lus de Carvalho
Homem, orientador deste estudo, a confiana que sempre depositou no meu trabalho,
desde a escolha do tema, at escrita. Estou-lhe igualmente grato pelas observaes
construtivas e pela possibilidade que me deu de assistir s suas aulas de Histria da
Historiografia e de Historiografia Portuguesa do curso de licenciatura em Histria, com
as quais muito aprendi, mormente no que respeita anlise de contedos de textos
historiogrficos.
A minha profunda gratido estende-se Fundao para a Cincia e Tecnologia
(FCT), que me concedeu uma Bolsa de Doutoramento (com a referncia
SFRH/BD/41069/2007), durante quatro anos, sem a qual a realizao desta
investigao estaria irremediavelmente comprometida
Agradeo tambm minha mulher, Cristina, pelo seu amor incondicional,
traduzido num companheirismo inquebrantvel, criando sempre todas as condies
para a realizao desta tese, compreendendo os tempos que infelizmente no pude
dedicar-lhe, em virtude da concretizao deste labor intelectual. Muito obrigado pelo
carinho e ternura nos momentos de desnimo e pela enorme fora e energia que me
transmite diariamente, sem as quais este trabalho teria sido impossvel, fazendo de
mim um privilegiado. Muito obrigado tambm pela existncia do nosso filho, Ricardo
Miguel, cujo sorriso vale infinitamente mais do que qualquer das pginas que se
seguem.
Expresso igualmente a minha enorme gratido ao meu irmo gmeo Ricardo,
um ser humano excecional, que, apesar dos seus inmeros afazeres, sempre se
manifestou disponvel para me ajudar a minorar a minha inpcia em questes tcnicas
de carter informtico, revendo e corrigindo todo o texto vrias vezes, abdicando de
incontveis noites de descanso, e beneficiando-me sempre com o seu entusiasmo em
relao a esta dissertao, enriquecendo-a com observaes pragmticas
indispensveis
Agradeo muito especialmente aos meus pais, pelo que no cabe num
agradecimento e espero tentar transmitir ao Ricardo Miguel. A minha me uma
pessoa de uma esperana e bondade contagiantes e o meu pai leu, analisou e criticou
em primeira mo e escrupulosamente a verso final deste texto, quando ela ainda a
no era, de todo, apresentvel.
Por outro lado, agradeo o amor das minhas avs, Clarinha e Palmira, bem
como o dos meus sogros, pelo que no exerccio formal ou convencional chamar-
lhes pais.
X
No posso esquecer o Pedro e o Jorge Sobrado, amigos/ irmos desde a
infncia e respetiva famlia , tributrios da minha admirao sem limites.
So indispensveis tambm palavras de enorme e profunda gratido aos meus
grandes amigos Lucinda Ribeiro e Manuel Maria de Magalhes, pela profunda
amizade que nos une e com a qual fazem o favor de me honrar, ajudando-me
enormemente em importantes, trabalhosos e decisivos detalhes tcnicos desta
dissertao, para mim de difcil execuo, e que obrigaram a uma dedicao a este
trabalho durante vrias semanas, partilhando as minhas angstias e contribuindo
decisivamente para atenu-las e resolv-las.
No mesmo sentido, dirigiu-se a colaborao dos excelentes amigos Rosa Paula
Neves, Ricardo Pereira e Eurico Dias. A Rosa Paula, cuja amizade fundamental para
mim, traduziu para ingls o resumo deste estudo com imensa competncia e
inexcedvel bondade. Ao Ricardo agradeo a cpia e o envio, por mim solicitados, de
dezenas obras da Biblioteca Nacional, qual se deslocou reiterada e
sistematicamente. Ao Eurico estou grato pelas estimulantes conversas e pela partilha
generosa de informaes extremamente importantes, sem pedir nada em troca.
Quero destacar o enorme profissionalismo e o apoio incansvel da D. Maria
Jos da seco de Doutoramentos da Faculdade de Letras do Porto, mas no posso
esquecer que fui sempre bem atendido na seco nas ausncias da funcionria
referida.
Cumpre aqui agradecer aos funcionrios da Biblioteca da Faculdade de Letras
do Porto, pela forma profissional e amiga como sempre resolveram as dvidas e
dificuldades que lhes fui insistentemente colocando. Destaco a Idalina Azeredo, a
Rafaela, a D. Laura, a Mrcia, a ngela, a Marlene e o Jorge.
O meu abrao estende-se a todos os meus queridos familiares e amigos. Muito
obrigado por existirem.
11
ndice Geral
Introduo 17
Parte 1: Enquadramento Histrico, Institucional e Biogrfico da Revista de
Histria
49
Captulo I Enquadramento Histrico da Revista de Histria 51
1.1 A Viragem do Sculo 55
1.1.1 Economia e Poltica 55
1.1.2 Sistema Poltico e Governao: Legislao Eleitoral e Modalidades de
Voto
63
1.2 Primeira Repblica 70
1.2.1 Base Demogrfica e Populao (1910/1926) 70
1.2.2 O 5 de Outubro de 1910 74
1.2.3 Os Primeiros Anos da Repblica (1910/1917) 76
1.2.4 O Sidonismo (1917/1918) 83
1.2.5 Os ltimos Anos da Repblica (1919/1926) 88
1.2.6 Educao, Cultura e Meio Scio-Cultural Lisboeta Durante a I
Repblica
89
1.2.7 A Ditadura Militar (1926/1933) 95
Captulo II As Revistas e a Revista de Histria: Uma Panormica 97
2.1 As Revistas Como Fonte e Objeto de Estudo: Mtodos e Tcnicas de Anlise 97
2.2 Revista de Cultura na Europa e no Brasil Entre 1880 e 1930: a Belle poque
das Revistas
102
2.3 Revistas Portuguesas de Cultura Geral ou Devotadas Especializao No
Universitria
116
2.4 Revistas Acadmicas e Universitrias de Histria: Panormica Internacional
(Meados do Sculo XIX 1930) e Nacional
121
2.5 Revistas Universitrias de Histria em Portugal 160
2.6 Revista de Histria Um Peridico Institucional Dedicado a Clio: Acadmico,
No-Universitrio, Fruto de uma Sociedade de Saber
162
12
Captulo III Apontamentos sobre a Sociedade Nacional de Histria/ Sociedade
Portuguesa de Estudos Histricos: Instituio Criadora da Revista de Histria
179
3.1 A Circular Fundadora da Sociedade Nacional de Histria 179
3.2 Uma Sociedade de Saber, Herdeira das Academias? 182
3.3 Os Primeiros Anos de Atividade da Sociedade Nacional de Histria/ Sociedade
Portuguesa de Estudos Histricos
192
Captulo IV Esboos dos Perfis Biogrficos dos Articulistas da Revista de Histria 213
4.1 Scios da Sociedade Nacional de Histria/ Sociedade Portuguesa de Estudos
Histricos com Artigos na Revista de Histria
213
4.2 Colaboradores da Seco de Artigos No Scios da Sociedade Nacional de
Histria/ Sociedade Portuguesa de Estudos Histricos
346
4.3 Sntese do Captulo 427
Parte 2: Anlise Qualitativa de Artigos da Revista de Histria: Prticas e
Discursos Historiogrficos
429
Captulo V Da Histria Poltica Histria dos Descobrimentos 431
5.1 Ponto Prvio Sobre a Seco de Artigos 431
5.2 Histria Poltica 435
5.3 Histria Diplomtica 462
5.4 Histria Militar 485
5.5 Histria Econmica e Social 507
5.6 Histria dos Descobrimentos 517
5.6.1 Histria e Historiografia das Cincias Nuticas na Revista de Histria 520
5.6.2 Artigos Sobre os Portugueses na ndia e no Extremo Oriente 527
5.6.3 Estudos sobre o Brasil, a Amrica Latina e Amrica do Norte 537
5.6.4 Estudos sobre frica 548
5.6.4 A Histria Eclesistica e Religiosa da Expanso 548
5.6.5 A Histria da Arte na e da Expanso Portuguesa 561
Captulo VI: Da Histria da Cultura Histria Eclesistica e das Religies 565
6.1 Histria da Cultura 565
6.2 Histria dos Intelectuais e das Ideias na Revista de Histria 578
6.3 Histria da Arte 590
6.4 Histria Eclesistica e das Religies 608
13
Captulo VII: Da Histria da Historiografia s Cincias Auxiliares da Histria e
Histria Local 655
7.1 Histria da Historiografia e Teoria da Histria nas Primeiras Dcadas do Sculo
XX 655
7.2 Anlise de Artigos de Histria da Historiografia 672
7.3 Teoria e Filosofia da Histria 725
7.4 Cincias Auxiliares e Histria Local 746
7.4.1 Arqueologia 746
7.4.2 Genealogia e Herldica 749
7.4.3 Arquivistica e Bibliografias 754
7.4.4 Histria Local 766 Captulo VIII: Outras reas Disciplinares na Seco de Artigos 797
8.1 Literatura 7978.1.1 A Histria da Literatura como dimenso estudada na Revista de Histria 804
8.1.2 Ensino da Histria da Literatura 924
8.1.3 Apontamentos Genricos Sobre a Semntica e a Histria da Crtica
Literria em Portugal: Preldios Abordagem na Revista de Histria 929
8.1.3.1 A viso de Fidelino de Figueiredo Sobre a Histria Crtica
Literria 933
8.1.4 A crtica literria na Revista de Histria 936
8.1.5 Lingustica na Revista de Histria 955
8.2 Filosofia 9678.3 Geografia 9718.4 Antropologia 975 Captulo IX: Conceitos Historiogrficos Operatrios
979
9.1 Documento/ Monumento 9809.2 Factos Histricos 9839.3 Mtodos 9879.4 Tempo Histrico 9899.5 A Verdade Histrica: Categoria de Conhecimento e Processo Histrico 10109.6 Apontamentos sobre o Modo Biogrfico 1021
14
Parte 3: Caracterizao da Revista de Histria: Atualidade, Construes Historiogrficas e Representaes Ideolgicas
1025
Captulo X: A Atualidade na Revista de Histria 1027
10.1 Atividade Cientfico-Cultural na Seco de Factos e Notas 1027
10.1.1 Representaes e Construes da Memria 1134
10.1.1.1 Legitimao da Revista da Histria 1134
10.1.1.2 Institucionalizao da Publicao 1139
10.1.1.2.1 A Promoo da Sociedade Nacional da Histria/ Sociedade
Portuguesa de Estudos Histricos 1139
10.1.1.3 Os Elogios Fnebres como Ritualizaes da Memria 114010.1.1.4 A Divulgao de Atividades Cientifico-Culturais e a
Internacionalizao do Peridico 1142
10.1.1.5 Intervenes Sobre o Presente Histrico e a Cultura Coeva 114510.2 Atualidade Bibliogrfica no arranque da Seco de Bibliografia (1912/1914) 1148
Captulo XI Balano Epistemolgico-Ideolgico da Revista de Histria 120311.1 Os Intelectuais na Revista de Histria (Atividades e Representaes) 120311.2 Um Certo Pendor Historicista: Grupo, Movimento ou Escola? 1228
11.3 Um Exemplar de um Nacionalismo Historicista: o Predomnio de uma Ideologia
Proto-Cientfica Conservadora na escrita da Memria Histrica Nacional 1244
11.3.1 Concees Tericas de Nacionalismo e a Realidade da Revista de
Histria 1246
11.3.2 Usos Historiogrfico-Ideolgicos de Memria Histrica 125811.3.2.1 Jesuitismo, Anti-Pombalismo, Anti-Maonismo 1260
11.3.2.2 Conservadorismo, Tradicionalismo e Pensamento
ContraRevolucionrio 1264
11.3.2.3 Entre o Nacionalismo Cultural Historicista e uma Certa
Hispanofilia 1271
11.4 Historiografia Erudita sem Esquecer Alguma Divulgao Cientfica:
Confirmao de uma Revista Acadmica 1273
Concluses 1277Referncias Bibliogrficas 1305Anexo 1402
15
A estruturao e afirmao de qualquer cincia ou ramo do saber passa no
s pelos seus cultores, pela investigao e pelo ensino, como pelos principais veculos
de divulgao de resultados, designadamente livros e revistas. () Com o acelerado desenvolvimento dos diversos domnios cientficos tanto do mbito das cincias
experimentais, como do das cincias humanas e sociais , de modo particular desde
meados do sculo XIX, o papel desempenhado pelas revistas passou a adquirir uma
relevncia crescente. () A renovao da histria passa tambm, em grande medida, pelas revistas de histria () Trata-se de uma temtica ainda insuficientemente estudada, no obstante o interesse de que a mesma se reveste
Jos Maria Amado Mendes, Desenvolvimento e Estruturao da Historiografia Portuguesa, Revistas de Histria; A Renovao da Historiografia Portuguesa, O Grande Surto das Revistas de Histria e o seu significado in Histria da Histria em Portugal, Sculos XIX-XX, Lus Reis Torgal, Jos Maria Amado Mendes e Fernando Catroga, Lisboa: Crculo de Leitores, 1996,pp.211;337
16
17
Introduo: A Revista de Histria sob o prisma da Histria da
Historiografia
Objeto, Motivaes, Objetivos e Estrutura da Dissertao
O objeto central deste estudo a Revista de Histria (1912-1928), publicada
em dezasseis volumes e sessenta e quatro nmeros, portadora de uma periodicidade
trimestral. A estruturao e o desenvolvimento da cincia da histria dependeram da
criao de rgos de comunicao e difuso dos respetivos resultados, desde meados
do sculo XIX, na Europa, mas tambm noutros continentes.
Tornou-se, deste modo, relevante o estudo do peridico dirigido por Fidelino de
Figueiredo, de forma a tentar ajudar a diminuir a escassez de investigaes em
Portugal sobre publicaes dedicadas a Clio e Histria da Historiografia.
Do nosso ponto de vista, a Histria da Historiografia constitui um domnio de
estudo no seio da histria como cincia. Ocupa-se, em diacronia e sincronia, das
condies espcio-temporais, institucionais e biogrficas de surgimento e
desenvolvimento do ofcio dos historiadores. O trabalho dos cultores de clio, enquanto
conhecimento cientfico, comporta uma vertente profissional e outra disciplinar. A
primeira concita um enquadramento scio- cultural, no qual se integra, e a segunda
implica um conjunto de princpios, valores, mas tambm de paradigmas, modelos,
teorias, conceitos, mtodos, que determinam a escrita historiogrfica, entendida como
ponto de convergncia de prticas historiogrficas, discursos e representaes,
portadores de uma dimenso epistemolgica e outra ideolgica. O ofcio dos
historiadores incorpora as funes e o estatuto do trabalho historiogrfico.
A escola da Faculdade de Letras do Porto, na qual nos licencimos, confere
grande importncia pesquisa de fontes primrias e crtica documental. evidente
que este enquadramento modelou a nossa personalidade e ter reflexos na
investigao.
A Histria uma cincia e a Historiografia uma rea especifica que depende
daquela. A Histria da Historiografia que se ir abordar devedora, entre outros, de
Carbonell, Vitorino Magalhes Godinho e A. H. de Oliveira Marques, no que respeita
ao seu estatuto, e das diversas contribuies da Storia della Storiografia, ainda que
no esqueamos a relevncia, para o (nosso) posicionamento terico, de outras
revistas como os Annales, ou a History and Theory. Esta ltima privilegia a
Historiografia nas suas vertentes epistemolgica e filosfica.
18
Esta investigao parte do enfoque j exposto. Interessa a Historiografia
enquanto atividade desenvolvida por vrios historiadores, num espao e tempo
determinados.
Este estudo ajudar a esclarecer as prticas do fundador e dos colaboradores
da Revista de Histria, numa perspetiva que no esquecer o percurso biogrfico
das personalidades em causa, seguindo o exemplo, entre outros, do Professor
Carvalho Homem. Tentaremos entender o grau de envolvimento de vrios autores na
Sociedade de Estudos Histricos e a ligao existente entre esta e a Revista, que
nasceu no seu seio.
Este trabalho divide-se em trs partes. Na primeira procede-se ao
enquadramento histrico, institucional e biogrfico do peridico (captulos 1 a 4). Num
segundo momento, realiza-se a anlise qualitativa de contedos dos artigos da
publicao, seguida de uma sntese dos conceitos historiogrficos operatrios postos
em prtica pelos articulistas. (captulos 5 a 9). Esta abordagem assenta na anlise das
razes e motivos que levaram os autores a escrever os seus artigos, sem esquecer o
pblico ao qual se dirigem e, sobretudo, os principais assuntos versados, mormente
aqueles que evidenciem os instrumentos e conceitos historiogrficos operatrios
envolvidos nas prticas historiogrficas em causa (documento/ monumento; factos;
mtodos, tempo e verdade). Este trabalho implica uma insero subdisciplinar dos
estudos baseada numa escolha da nossa responsabilidade , sublinhando a
evoluo de dimenses e domnios pertencentes Histria, destacando ainda outras
disciplinas, como a Literatura, a Histria ou a Geografia. A preponderncia do estudo
dos artigos nesta investigao deriva do facto de constiturem, em nosso entender, o
centro da publicao dirigida por Fidelino de Figueiredo seguindo, de resto, uma
tendncia no mesmo sentido patenteada por peridicos congneres a nvel
internacional dado que, atravs deles, define-se o campo de estudo preferido, uma
vez que os artigos constituem o principal elo de comunicao pelo qual a publicao
se responsabiliza e a base de conhecimento disciplinar assumida no peridico. Por
outro lado, a seco de artigos domina as nossas atenes porque ocupa cerca de
dois teros do espao da Revista de Histria, constituindo-se como o respetivo
corao 1.
A terceira parte desta dissertao contempla uma caracterizao da Revista de
Histria, assente num acompanhamento da atualidade, patente ao longo da seco de
Factos e Notas e no arranque do andamento dedicado Bibliografia. Exposto este
percurso concretiza-se um balano epistemolgico da publicao (captulos 10 e 11).
1 Cfr. Margaret Stieg, The Origin and the development of Scholarly Historical periodicals, Alabama: The University of
Alabama Press, 1986, pp. 189-190.
19
A Sociedade Nacional de Histria, posteriormente designada Sociedade
Portuguesa de Estudos Histricos, teve antecedentes institucionais noutras
congneres europeias, participando de um esforo europeu de implementao.
Convm indagar as caractersticas da Sociedade (...) sem excluir a conjuntura
internacional da qual emerge e a que d corpo. Da Sociedade (...) conhecem-se,
essencialmente, os estatutos e algumas notcias publicadas anualmente na Revista de
Histria por Fidelino de Figueiredo. Fidelino de Figueiredo tem merecido estudos e
trabalhos acadmicos de Mestrado ou Doutoramento, mas julgo que ainda no foi
abordado, tendo em conta a sua atividade na Revista de Histria.
Este trabalho de mbito biobibliogrfico contempla os membros da Sociedade
Nacional de Histria/ Sociedade Portuguesa de Estudos Histricos que sejam
colaboradores da seco de artigos da Revista (...) e tambm os articulistas do
peridico que no pertenam referida instituio de origem. O levantamento de uns e
outros, comporta a indicao da data de nascimento e morte e da respetiva profisso,
bem como, sempre que possvel, a origem social e geogrfica dos autores em causa,
seguindo uma metodologia prxima de uma Historiografia de preocupao sociolgica
sobre os intelectuais.
A nossa investigao procurar atingir, na medida do possvel, os seguintes
objetivos gerais: integrar a Revista () na sua poca (1 Repblica; 1 Guerra Mundial
e Ditadura Militar), de forma a perceber se estes acontecimentos so tratados como
objetos de estudo nos artigos do peridico ou, alternativamente, enquanto causas de
uma eventual crise conjuntural da Historiografia; comparar a Revista de Histria com
eventuais modelos estrangeiros e nacionais; estabilizar a gnese da Revista de
Histria no seio da Sociedade Nacional de Histria, atravs da anlise da escassa
documentao disponvel da Sociedade; reconhecer o papel do fundador da Revista
de Histria na Publicao. Para tal, convm tentar responder a questes que se
prendem com a notoriedade e o estatuto profissional de Fidelino Figueiredo:
historiador tout court? historiador, crtico ou terico da literatura?.Convm no
esquecer a eventual importncia do texto de Fidelino, o Esprito Histrico (1910), para
a integrao da Revista (), no mbito da Filosofia e da Teoria da Histria. Note-se
que em 1912 foi publicado na Revista () o artigo: A crtica literria como cincia.
Por outro lado, procuraremos perceber a relevncia dos colaboradores da
Revista de Histria e analisar o respetivo percurso intelectual (perfil bibliogrfico e
pertena a instituies culturais), de modo a compreender as suas prticas
historiogrficas, esclarecendo se o peridico constitui grupo, movimento ou escola.
Esta tarefa complexa. Vejam-se, a ttulo de exemplo, as filiaes tericas dspares
dos seguintes autores: Silva Telles (Evolucionismo); Pedro de Azevedo (Erudio);
20
Fortunato de Almeida (Histria como tribunal e mestra da vida); Fidelino Figueiredo
(Conciliao do Idealismo de matriz croceana com os preceitos rankeanos).
O primeiro, segundo, nono e dcimo primeiro captulos desta dissertao so
essencialmente baseados em bibliografia dita secundria, enquanto os andamentos
que se estendem do quinto ao oitavo centram-se numa anlise dos artigos da Revista
de Histria. Por seu turno, no dcimo captulo encaramos as Seces de Factos e
Notas e de Bibliografia igualmente como fontes primrias. A situao complica-se se
tivermos em conta que no segundo andamento deste estudo recorremos aos textos
programticos da Revue de Synthse Historique e da La Critica. Tambm no
esquecemos a circular fundadora da Sociedade Nacional de Histria ou o inventrio
publicado por esta instituio, intitulado Revistas de Histria, dado estampa em 1915
(trabalhados no terceiro captulo).Por outro lado, o quarto andamento desta tese
essencialmente enciclopdico, mas no esquece obras dos colaboradores do
peridico publicadas fora dele e suas contemporneas.
Em seguida, demonstramos o modo como sero compaginadas as diversas
tarefas a realizar para cumprir os objetivos enunciados todas direcionadas para a
pesquisa, escrita e anlise dos vrios andamentos , atravs do recurso ao resumo de
algumas linhas de fora das quais este trabalho tentar ser portador, configurando-se
estas como caractersticas essenciais do estudo desenvolvido ao longo dos anos, no
qual tentmos ser fiis a uma matriz terica afirmada desde o projeto da bolsa e
sempre reiterada. Resulta importante relembr-la, sucintamente, nesta ocasio. Esta
dissertao inscreve-se, prioritariamente, nunca demais sublinh-lo, na Histria da
Historiografia, cruzando-a com a Histria das ideias e dos intelectuais, concretizando
uma abordagem detentora de nucleares afinidades com a Histria da Cincia de Clio.
Procuraremos perceber o eventual contributo da Revista de Histria para a legitimao
e institucionalizao disciplinar da rea de saber plasmada no ttulo do peridico.
A publicao foi sempre encarada enquanto objeto central deste estudo, ao
arrepio de um tratamento instrumental, que se eximisse a analis-la na sua
especificidade. Todavia, esse destaque, possuidor de autonomia, no impediu que
nesta dissertao, a Histria da Imprensa surja subordinada a imperativos
historiogrficos, que no a anulam, mas colocam-na na estrita dependncia deles e de
um itinerrio que afirma a escrita da Histria essencialmente como prtica
historiogrfica, enquadrada do ponto de vista scio-cultural. Ser necessrio um
trabalho futuro que encare a publicao dirigida por Fidelino de Figueiredo como parte
da imprensa, analisando-a tecnicamente em funo da evoluo dos materiais
impressos, integrando-a nesse conspecto e aprofundando as suas caractersticas, ao
nvel do suporte utilizado, dos caracteres tipogrficos, da paginao, sem deixar de
21
incorpor-las numa reflexo que as reclama, dado que influenciam a edio e a
distribuio da Revista de Histria, assim como a sua colocao no mercado ou o
preo nele atingido.
As questes relacionadas com o mercado e a edio necessitam de uma
investigao autnoma e independente, que nunca esteve nos nossos horizontes.
Contudo, as origens do peridico e a sua gnese interessaram-nos sobretudo no que
respeita sua natureza no plano dos contedos, comparando-a com revistas de
histria que a precederam, sem esquecer a gnese que faz da congnere portuguesa
uma publicao institucional, iniciada durante a Primeira Repblica, devedora do
contexto de instabilidade que preparara o novo regime. Todavia, a anlise qualitativa
de contedos da Revista de Histria constituiu o foco essencial da nossa ateno
assumindo-se como prioritria a abordagem da seco de artigos, sem esquecer as de
Factos e Notas e a de Bibliografia. Bem pelo contrrio, na medida em que estas
possam ajudar a explicar aquela exigindo a considerao de cada texto na sua
especificidade, sem fazer tbua rasa de alguns elementos biobibliogrficos do trajeto
dos articulistas que ajudaram a enquadrar a anlise de contedos e a perceber a
respetiva gestao, condicionada por aspetos scio-culturais. No entanto, nunca
pretendemos ultrapassar os limites de um Esboo de perfis biogrficos dos
colaboradores da Revista de Histria. Note-se que um esboo apenas isso, possui
um carcter indicirio e exime-se a tentar aprofundar informaes de teor biogrfico,
utilizando-as em nome da compreenso dos contedos da Seco de Artigos. Nessa
medida, apenas traaremos perfis biogrficos, assumidamente lacunares, que no
constituem biografias coletivas, nem redes de relaes entre personalidades
histricas, que exigiriam um estudo prosopogrfico completamente independente.
Esse trabalho autnomo tambm esteve sempre ausente dos nossos objetivos.
Por outro lado, a Histria da Historiografia que praticamos no trata os
discursos historiogrficos como unidades lingusticas, lexicais, morfosntticas
autnomas, embora sejam legtimas abordagens afins, para as quais no possumos
habilitaes nem capacidade.
Preferimos concretizar um estudo que tentar entender as prticas
historiogrficas patentes nos artigos escritos para a Revista de Histria, sem deslig-
las da restante atividade biobibliogrfica dos seus autores, que os influenciou e foi
condicionada por eles. Assim, os articulistas da publicao escreveram os seus textos
tendo em conta o lugar que ocupavam espcio-temporal e estatutariamente na
sociedade da poca, dirigindo-se a um pblico letrado e erudito, de forma a partilhar
conhecimentos. Da que a anlise de contedos que empreendemos procure esboar
as razes ou os objetivos dos cultores de Clio ao abord-los. A sntese destes ser
22
utilizada para ajudar a compreender o modo como os historiadores trabalharam, e as
prticas historiogrficas que concretizaram, utilizando conceitos historiogrficos
operatrios, aos quais consagrmos um captulo. Todavia, esta anlise das
potencialidades informativas, comunicacionais e historiogrficas dos artigos da Revista
de Histria subordinou-se a uma categorizao prvia de contedos, distribudos por
reas sub-disciplinares no mbito da Histria e da Literatura, da Geografia e da
Filosofia.
Natureza, Tipologias e Funes da Historia da Historiografia
Para sublinhar as opes descritas at este momento, testando-as e
classificando-as teoricamente, convm integrar o nosso estudo num quadro
conceptual amplo, dentro da Histria da Historiografia, contemplando e comparando
os modos de a fazer, e propiciando uma aferio da nossa posio nesse conspecto,
aproximando-nos mais de certas abordagens do que de outras, mas tentando uma
configurao do objeto de estudo e da respetiva anlise. Urge a distino sumria
entre Histria da Historiografia e Teoria e Filosofia da Histria. Apresentamos um
ponto prvio. H autores que entendem a Teoria da Histria enquanto foro disciplinar
dedicado s reflexes relativas discusso dos fundamentos do pensamento
historiogrfico, considerado como objeto abstrato, sem aplicao prtica. Outros
defendem que a prtica historiogrfica um complemento tramitao terica,
subordinado ao imperativo categrico configurado pelos ditames da teoria. Existem
estudiosos favorveis inverso de predomnio. A teoria no entendida como
essncia, pelo contrrio, e pode diluir-se ou deixar de ser explicitada.
A nossa perspetiva identifica-se com a Histria da Historiografia, enquanto
promotora da relao entre ambos os domnios contidos na designao e constitui-se
como teoria aplicada a situaes concretas. A relao aludida pressupe hierarquias e
confere precedncia Histria sobre a Historiografia, mas sem a anular, antes pelo
contrrio. A Filosofia da Histria pode ser encarada sob diversos prismas: enquanto
disciplina, subdisciplina ou cincia autnoma; como mtodo, objeto, ou conceito, e
suscita vrias questes relativas natureza, ao objeto, com reflexos no
enquadramento institucional que traduz um dos mbitos de concretizao da Filosofia
da Histria, e pode ajudar a responder s seguintes interrogaes colocadas por
Berkley Eddins: how may single philosophies of history be evaluated, and in what
ground may one philosophy of history be preferred to another?2 A Filosofia da Histria
pode ser encarada na sua vertente epistemolgica ou teleolgica. A primeira no nos
2 Berkley Eddins Historical data and policy decisions: a key to evaluating philosophies of history. In Philosophy and Phenomenological Research, vol. 26, n. 3. Providence: Brown University, 1966, p. 427.
23
totalmente estranha e identifica-se com uma dimenso reflexiva e crtica, enquanto
nos desviamos da dimenso especulativa configurada pela procura de um sentido
para as aes humanas, em Deus ou no mundo. A nossa escolha da Histria da
Historiografia recebeu contributos vrios, alguns deles j citados, mas no
aprofundados. Comearemos por abordar a influncia das posies de Charles-Olivier
Carbonell no nosso trabalho, e pensamos que se tornam mais claras agora, dado que
temos vindo a expor o modo concreto como assimilamos empiricamente as suas
ideias sem a elas nos referirmos explicitamente.
Num texto que consideramos seminal, pelos caminhos que abriu e permitiu
desbravar, intitulado Pour une Histoire de lHistoriographie, publicado no primeiro
nmero da Revista Storia della Storiografia, relativo a 1981, o historiador francs
elabora um manifesto a favor da sua disciplina de eleio, reclamando a respetiva
prtica e escrita como um exclusivo de historiadores.3 Procede, desde logo,
desmontagem de certos preconceitos, evidenciados inclusive por muitos colegas de
profisso e responsveis pela desconfiana face Histria da Historiografia que, no
caso portugus, se encontra nos dias de hoje ainda longe de ser cabalmente
ultrapassada, embora haja avanos nesta matria na atualidade. O afastamento ou a
distncia de historiadores relativamente Histria da Historiografia pode dever-se
considerao e/ou conjugao de quatro atitudes que convergem, situando-a fora da
Histria: a vaidade, a degradao, a mutilao e a rejeio. A Histria da Historiografia
foi sendo escrita durante dois mil anos sem que aqueles que se lhe dedicaram a
denominassem enquanto tal ou a constitussem como disciplina, concretizando-se este
processo durante o sculo XIX, e na passagem de oitocentos para novecentos. At a
materializao desta realidade, os historiadores que se debruavam sobre a atividade
de outros cultores de Clio faziam-no, no raro, de modo laudatrio, apologtico.
endeusando-os e divinizando-os, recusando-se a relativizar aquilo que perspetivavam
como absoluto, transcendente, comprazendo-se em produzir elogios que alimentavam,
eventualmente, a vaidade de quem os fazia. A Historiografia podia comparecer como
algo intangvel, etreo, oracular, vagamente esotrico. Ora, conforme ficou
demonstrado, pretendemos contrariar esta viso, na linha de Carbonell, dado que
escolhemos um objeto concreto devidamente situado, imanente ao devir humano e
dele dependente. O segundo preconceito que tentaremos evitar encontra-se
devidamente circunscrito pelo historiador francs, que se reporta natureza limitada
de certas Histrias da Historiografia produzidas no sculo XIX e que constituem
apenas inventrios de nomes de autores e de obras, no aprofundando qualquer das
3 Cfr. Charles-Olivier Carbonell Pour une Histoire de lHistoriographie. In Storia della Storiografia, vol.1.Milo: Jaka
Book, 1981, pp.7-25.
24
duas componentes e contribuindo decisivamente para a degradao de uma rea sub-
disciplinar na qual se deveria investir para alm da elaborao de bibliografias
regressivas, de inegvel interesse heurstico, mas que nele se no esgotassem. Outro
dos preconceitos frequentemente associados Histria da Historiografia deriva da
desvalorizao das fontes secundrias como base documental dos trabalhos
historiogrficos, sob pena de serem encaradas como menos originais. Ora, conforme
j comprovmos no caso da Revista de Histria, a natureza das fontes depende do
uso que lhes do os cultores de Clio. Relembre-se que o peridico em questo ser
por ns tratado como fonte primria que no se encontra mutilada ou diminuda
mesmo quando serve de suporte e instrumento de consulta a investigaes que nela
no se centrem, utilizando-a episdica ou parcialmente, medida das respetivas
necessidades. O fetiche pelas fontes primrias pode implicar a rejeio de certas
abordagens situveis no mbito da Histria da Historiografia.
Numa investigao recente, publicada sob a forma de artigo, intitulado Towards
a new theory-based history of historiography, Horst Walter Blanke devota-se a um
exerccio incomum, e necessrio, que consiste na descrio informativa formalizada
das tipologias referentes aos diversos modos de praticar e escrever Histria da
Historiografia. Assim, refere-se a dez abordagens historiogrficas que no obrigam os
estudiosos a seguir em exclusivo uma delas, permitindo e incentivando combinaes
diferentes4. Deste modo, existem: a Histria de autores; de obras; os textbooks, a
Histria das Instituies; a Histria dos mtodos historiogrficos; a concatenao de
temas, mtodos e modelos interpretativos (Histria intelectual); as Histrias-Problema;
a concentrao no estatuto social da Historiografia; a Histria social da Historiografia e
a reflexo historiogrfica meta-terica. A primeira e a segunda abordagem citadas so
suscetveis de trilhar caminhos absolutamente autnomos, contudo, a respetiva
conciliao possvel e, em nosso entender, desejvel, conforme j explicitmos
anteriormente.
Por outro lado, os textbooks consistem no agrupamento selecionado de textos
dos historiadores, por forma a serem posteriormente utilizados como panormica da
respetiva atividade historiogrfica, eventualmente ao servio de fins pedaggico-
didticos ou heursticos, estes ltimos integrados numa perspetiva que salvaguarde
intuitos cientficos especializados, pertencentes ao mbito da investigao. No nosso
estudo, a publicao autnoma de excertos de obras e artigos encontra-se ausente, o
que no significa que nos furtemos a apresentar vrias citaes no corpo do texto,
sempre que se justifiquem, para que cada leitor possa confront-las com os nossos
4 Horst Walter Blanke- Towards a new theory-based history of historiography. In Peter Koslowaki (org.), The discovery
of historicity in German Idealism and historism. Berlim: Springer, 2010, pp. 223-267.
25
enquadramentos e as descries ou interpretaes que realizamos, incentivando a
perspetiva pessoal de cada um. A Revista de Histria, em certa medida, uma
instituio, dado que se constitui como uma organizao (com uma hierarquia, da qual
faziam parte um diretor, uma redao nunca especificada, mas em nome da qual eram
assinadas notcias das Seces de Factos e Notas e de Bibliografia e colaboradores),
e teve origem numa outra, a Sociedade Nacional de Histria (objeto do terceiro
captulo deste trabalho), que a dotou de um conjunto de regras, eventualmente pouco
formalizadas, mas possuidoras de um teor indicativo, ainda que escassamente
definido. No concretizaremos uma abordagem assente numa metodologia que
ressalte essencialmente a dimenso institucional, jurdica ou grupal do peridico
dirigido por Fidelino de Figueiredo, comparecendo a primeira apenas na justa medida
em que se considera a revista em anlise institucional, acadmica e no universitria.
No entanto, o nosso enfoque subsidirio de uma Histria da Historiografia
problematizante, que procura entender se e em que medida o seu objeto central de
estudo contribuiu para a certificao cientfica profissional e disciplinar da Histria
na sua poca em Portugal. Assim, as Histrias-Problema a que Horst Walter Blanke se
refere no so necessria ou exclusivamente aquelas que a Historiografia dos Annales
prodigalizou do ponto de vista da atitude metodolgica. Tambm comportam um tipo
especfico de Histria da Historiografia que pode escolher como objeto a diacronia de
disciplinas individuais, a relao entre disciplinas e sub-disciplinas ou a receo de
eventos histricos particulares. A nossa investigao centra-se essencialmente na
diacronia de uma disciplina central no interior de uma publicao, relacionando-a com
sub-disciplinas e outras disciplinas, conforme tivemos ocasio de afirmar numa fase
precedente desta introduo.
A Histria da Historiografia concita mltiplas funes. Destaquemos algumas, em
sintonia com Walter Horst-Blanke. Esta rea do saber pode assumir vertentes
cientficas e ideolgicas, separadas ou conjugadas, afirmando-se como base de apoio
ou de crtica dos poderes dominantes. Por outro lado, passvel de constituir-se como
plataforma que absorve, situa e condiciona construes tericas, que se lhe
submetem. Tambm pode verificar-se a instrumentalizao da Histria da
Historiografia pela Teoria da Histria. Optmos, neste estudo, pela penltima funo
enunciada5.
Em seguida, expomos uma breve e muito lacunar reviso bibliogrfica sobre a
Histria da Historiografia em Portugal, que enquadre e ajude a contextualizar a nossa
dissertao.
5 Ibid., pp. 232-237.
26
Breve reviso bibliogrfica sobre Histria da Historiografia (e temticas
afins) em Portugal
A reviso bibliogrfica a que procederemos centra-se na Histria da
Historiografia e exclui a abordagem do ensino da histria. Logo em 1915, Fidelino de
Figueiredo deu estampa uma Bibliografia Portuguesa de Theoria e Ensino da
Histria, publicada como anexo da segunda edio de O Esprito Histrico. Trata-se de
um instrumento heurstico bastante til.6
Em 1940, Vitorino Magalhes Godinho foi pioneiro na anlise de problemas
historiogrficos, relacionando-os com a crise contempornea. Decorria a Segunda
Guerra Mundial na Europa quando, na sua dissertao de licenciatura, apresentada
Faculdade de Letras de Lisboa, o autor construiu uma argumentao cientfica para
responder aos problemas que como cidado observava em Portugal, na Europa e no
Mundo. Queria intervir civicamente na denncia do regime poltico vigente no nosso
pas, de modo a contribuir, no plano intelectual, para ajudar mudar a situao. O
trabalho em apreo intitula-se Razo e Histria (introduo a um problema)7. Nesta
dissertao de licenciatura, o autor distingue a lgica transcendente da lgica formal,
admitindo ligaes entre ambas, mas ultrapassa-as, recorrendo a Kant, sem colocar,
por outro lado, o empirismo totalmente de parte, consciente das respetivas
necessidade e insuficincia Dois anos depois, a Guerra continuava e os indesejveis
irracionalismo e misticismo recrudesciam. Assim, no estudo A Historiografia
Contempornea Orientaes e Problemas, Magalhes Godinho rejeita a leitura do
presente a partir de uma imposio dogmtica e acrtica do passado como tradio.
Por outro lado, o historiador coloca o problema do passado no apenas para o
recapitular, nem to pouco com o intuito de julg-lo. Procura explicar a sua irredutvel
especificidade e relacion-lo com o presente, sem instrumentalizaes recprocas.
Magalhes Godinho tenta ultrapassar a pura erudio, tendo-a em conta, sem a anul-
la ou posterg-la. Bem pelo contrrio. Acrescenta-lhe uma insero da Histria no
mbito da problematizao scio-cultural8.
Alguns anos volvidos, o autor reafirmou a confiana na cincia, na tcnica, no
alargamento geogrfico e temtico da histria, acolhendo os contributos da histria
econmica e social, na obra A Crise da Histria e as suas novas diretrizes9.Neste
trabalho, o historiador contesta a arquitetura tradicional da histria, tendencialmente
6 Fidelino de Figueiredo - Bibliografia Portuguesa de Theoria e Ensino da Histria, in O Esprito Histrico, 2. edio.
Lisboa: Clssica Editora, 1915. 7 Vitorino Magalhes GodinhoRazo e Histria (introduo a um problema), Lisboa: [s:n], 1940.
8 Cfr. Vitorino Magalhes Godinho A Historiografia Contempornea Orientaes e Problemas, Lisboa: [s.n.], 1942.
9Cfr. Vitorino Magalhes Godinho A Crise da Histria e as suas novas directrizes, Lisboa. Empresa contempornea
de edies, s.d.
27
poltica, militar e diplomtica, baseada no primado da descrio andina de factos,
datas, reinados, batalhas
Num mbito assaz diverso, em 1962, Carlos Abranches de Soveral, professor
da Faculdade de Letras do Porto, publicou um artigo intitulado Histria, Historiografia e
Historiologia na revista Studium Generale, Boletim do Centro de Estudos Humansticos
anexo Universidade respetiva10. Trata-se de um estudo essencialmente terico, no
qual o seu autor se exime a enveredar pela histria da historiografia, centrando-se
numa reflexo conceptual, alicerada na distino entre Histria, Historiografia e
Historiologia. A primeira entendida como a realidade histrica, o processo
existencial, correspondendo ao que acontece e flui, enquanto a segunda diz respeito a
uma produo escrita, ao registo e interpretao da histria, concretizando a respetiva
transformao, baseada na expresso subjetiva do historiador, sem esquecer que o
seu esforo se inscreve, igualmente, no mbito de uma inteno coletiva. Por seu
turno, a historiologia abarca e congrega as duas dimenses anteriores, constituindo
uma abordagem filosfica acerca da historiografia. No entender de Carlos Abranches
de Soveral, Tucdides foi o pai da historiografia, distinguindo-se pelo cunho
alegadamente pragmtico do seu trabalho. Fora da Teoria da Histria, curioso
verificar que Joaquim Verssimo Serro se interessasse por estabelecer uma diacronia
essencialmente descritiva da Historiografia Portuguesa dos Sculos XIX e XX.
Ainda em 1962, Joaquim Verssimo Serro publicou a Histria Breve da
Historiografia Portuguesa11, que constitui essencialmente uma recolha de nomes, de
personalidades e de obras, uma inventariao com fins descritivos, na qual quaisquer
intuitos de problematizao e interpretao resultam subalternos. O mesmo
diagnstico repercute-se e pode ser aplicado num estudo que comeou a ser dado
estampa dez anos volvidos, intitulado A Historiografia Portuguesa: Doutrina e Crtica12,
no qual o autor apresenta, em trs volumes uma panormica diacrnica da
Historiografia Portuguesa, portadora de um aparato erudito mais vincado do que o
patente no trabalho anterior. Em 1963, Antnio da Silva Rego publicou um trabalho
essencialmente de cariz metodolgico e pedaggico, intitulado Lies de Metodologia
e Crtica Histrica.13
Por seu turno, numa linha bem diferente da exposta nas linhas precedentes,
assente na problematizao e na inspirao extrada dos Annales, mormente da
Histria Nova, Magalhes Godinho, nos seus Ensaios III, publicados em 1971, deu
10
Cfr. Carlos Abranches de Soveral Histria, Historiografia e Historiologia Studium Generale Boletim do Centro de Estudos Humansticos, volume IX, Tomo 2, Porto: Universidade do Porto,1952, pp. 5-60. 11
, Joaquim Verssimo Serro Histria Breve da Historiografia Portuguesa, Lisboa: Verbo, 1962. 12
Joaquim Verssimo Serro A Historiografia Portuguesa Doutrina e Crtica, Volume I sculos XII-XVI, Lisboa: Verbo, 1972. 13
Cfr. Antnio Silva Rego Lies de Metodologia e Crtica Histrica. Lisboa: Junta de Investigaes do Ultramar, Centro de Estudos Polticos e Sociais,1963.
28
sequncia a importantes contributos anteriores de sua lavra e traou, de forma
original, as diretrizes da Historiografia Portuguesa, republicando vrios artigos, entre
os quais pontifica o estudo Historiografia Portuguesa do Sculo XX, orientaes
problemas e perspetivas, dado estampa pela primeira vez em 1955 e que constituiu
uma fonte de inspirao par ns, dado que configura um dos primeiros trabalhos
empricos na rea da Histria da Historiografia, dedicado aos historiadores e suas
obras, da autoria de um cultor de Clio profissional. A reflexo historiogrfica em
Portugal deve muito a Vitorino Magalhes Godinho e aos diversos trabalhos que lhe
devotou, praticando nos trs volumes dos Ensaios, uma historiografia total,
problematizante, aberta interdisciplinaridade com a geografia, a economia ou a
sociologia, incrementando a histria da cincia e da tcnica, mas tambm a das
mentalidades, sem esquecer uma empatia pelo tempo presente, incentivando uma
nova erudio, conferindo destaque a historiadores dos Descobrimentos a sua
poca de estudo de eleio durante a maior parte do seu trajeto intelectual como
Duarte Leite. No terceiro volume dos Ensaios comparecem alguns artigos previamente
publicados no Dicionrio da Histria de Portugal, dirigido por Joel Serro. Na primeira
parte deste estudo, subordinada Crise da Histria e suas novas diretrizes, so
abordados temas como; a histria humana e a histria natural; a histria e a geografia;
a histria econmica e social; histria da tcnica, civilizao e vida mental e histria da
cultura. Na segunda parte, Magalhes Godinho debrua-se sobre diversos
historiadores como Duarte Leite, Jaime Corteso e Veiga Simes14.
Em 1974, precisamente no ano da Revoluo de Abril, A.H. de Oliveira Marques
publicou uma obra que a reviso bibliogrfica no pode esquecer, ou pr de parte, um
contributo estruturante, basilar e indispensvel; a Antologia de Historiografia
Portuguesa. Este trabalho aposta na apresentao de diversos historiadores
portugueses, atravs da pesquisa e publicao de excertos significativos dos seus
textos. Essa recolha no aleatria e percorre cronologicamente momentos
significativos do pensamento historiogrfico portugus, tal como os posteriores
Ensaios de Historiografia Portuguesa. As duas obras possuem uma introduo
comum, na qual Oliveira Marques lamenta a escassez de trabalhos de Histria da
Historiografia publicados em Portugal. O primeiro trabalho referido uma seleta, em
dois volumes, de textos considerados significativos de historiadores de vrias pocas
at ao dealbar do sculo XX. Nas suas escolhas nota-se o respeito de Oliveira
Marques pela historicidade das prticas historiogrficas que colige, eximindo-se a
fazer interpretaes explcitas sobre os excertos transcritos. Nota-se que o historiador
14
Cfr. Vitorino Magalhes Godinho Ensaios III, Sobre Teoria da Histria, Lisboa: Livraria S da Costa 1971. Este autor estudou, ao longo da sua vida, a evoluo das Cincias Sociais e Humanas em Portugal, visando sempre o reforo da cidadania.
29
salvaguarda a objetividade e identidade dos materiais selecionados. Esta seleo no
aleatria e permite aos leitores potenciais encetar novas investigaes, estimulando-
as. No segundo trabalho citado, o autor rene estudos vrios de histria da
historiografia escritos entre 1960 e 1985, nos quais prolonga o tipo de prtica
historiogrfica que acabmos de enunciar. Congrega, por exemplo, documentos sobre:
os primrdios da Faculdade de Letras de Lisboa, o magistrio de Vieira de Almeida, a
historiografia regionalista na poca do Abade de Baal, entre outros temas, tais como
uma aproximao s biografias de Ferno Lopes, de Jaime Corteso e Antnio Srgio,
todas indicadoras de uma linhagem metodolgica e ideolgica respeitada por Oliveira
Marques, seguidor de uma anlise crtica e emprica de fontes, avesso a lucubraes
e especulaes filosficas abstratas. O esboo biogrfico sobre Francisco Vieira de
Almeida pretende conferir destaque a uma personalidade que foi alvo da denunciada
censura salazarista.
Em 1976, fortemente influenciado e marcado pelo marxismo e pelo
materialismo dialtico, Joaquim Barradas de Carvalho publicou um estudo intitulado
Da Crnica Histrica Histria Cincia15.
No ano de 1982, Daniel de Sousa, publicou um trabalho essencialmente
filosfico, intitulado Teoria da Histria e do Conhecimento Histrico16. Trata-se de um
texto que pretende distinguir as vrias acees de Teoria da Histria, desde as que a
identificam com a reflexo sobre o conhecimento cientfico e seus limites, at s que a
aparentam com um exerccio sobre o sentido da existncia. No primeiro caso, ressalta-
se o processo de autonomizao da Histria como cincia do esprito face s cincias
da natureza, prodigalizada na Alemanha na segunda metade do sculo XIX por
autores como Dilthey, Wildeband, Droysen ou Rickert. Quanto abordagem
especulativa, Daniel de Sousa confere bastante espao ao Marxismo e ao
Materialismo Dialtico. No mesmo ano surgiu outro trabalho tambm de natureza
pedaggico-didtica, mas dotado de uma perspetiva ideolgica bem diversa. Trata-se
de Teorias sobre a Histria, da autoria de Filipe Rocha, personalidade ligada
Faculdade de Filosofia da Universidade Catlica de Braga, que construiu uma espcie
de manual para poder ser lido pelos alunos, dividido em trs partes: a primeira,
dedicada diacronia das Teorias sobre a Histria, entendidas estas como
conhecimento histrico; a segunda, subordinada s dinmicas de foro existencial, que
contemplam uma dimenso metafsica, na qual a indagao de Deus e da
transcendncia no est ausente. Num terceiro momento, o autor procura descrever
os instrumentos conceptuais ao dispor do historiador na construo crtico-reflexiva de
15
Cfr. Joaquim Barradas de Carvalho Da Crnica Histrica Histria Cincia, Lisboa: Livros Horizonte, 1976. 16
Daniel de Sousa Teoria da Histria e do Conhecimento Histrico, Lisboa: Livros Horizonte, 1982.
30
um conhecimento cientfico de natureza disciplinar. Esses instrumentos so, por
exemplo, a explicao, a causalidade ou o tempo histrico. Este andamento o mais
til nossa pesquisa, mas Filipe Rocha parece no se contentar com o apuramento, a
construo e interpretao de factos positivos, embora os considere imprescindveis17.
Vrios autores no deixaram de fazer importantes estudos sobre a
Historiografia, nas suas vertentes terica e conceptual.
Em 1986, num trabalho mais nitidamente historiogrfico, Antnio Manuel
Hespanha preocupou-se com questes historiogrficas, no deixando de interrogar a
Historiografia Ps-Moderna no seu artigo publicado na Revista Ler Histria em 1986,
intitulado Histria Sistema: interrogaes Historiografia Ps-Moderna18.Neste texto, o
seu autor expressa algumas reservas face ao modo ps moderno de escrever histria
alegadamente presente nos dois volumes da Identificao de um Pas (), dada
estampa no ano anterior por Jos Mattoso, nos qual se sacrifica, supostamente, uma
ideia de sistema na anlise historiogrfica, em detrimento da valorizao exclusiva do
individuo e do singular
Por seu turno, Jos Maria Amado Mendes dedicou-se Histria como Cincia,
texto publicado em 198719. Trata-se de um trabalho que foi realizado no mbito das
preocupaes pedaggicas do seu autor, Professor na Faculdade de Letras de
Coimbra, que pretendeu orientar os estudos dos seus alunos em meados dos anos
oitenta do sculo XX, no que tange problemtica das fontes em histria e vertente
terica da cincia de clio. O historiador comea por debruar-se sobre a natureza e
evoluo do conhecimento histrico, considerado diferente do patente nas Cincias
Naturais e inscrito nas Cincias Sociais e Humanas. Amado Mendes no pe em
causa este estatuto cientfico da Histria e sublinha a sua importncia. Concordamos
com esta perspetiva. Em seguida, o autor de Histria como Cincia estabelece a
evoluo do processo histrico, privilegiando a respetiva cronologia. Contudo,
histria da historiografia acrescenta a metodologia da histria (tendo em conta
conceitos e problemticas importantes como o tempo histrico) e a respetiva
teorizao (na qual no esquece conceitos e instrumentos imprescindveis ao trabalho
do historiador, como a explicao). Esta conciliao da Histria da Historiografia com
uma teoria da histria, extrada da prtica historiogrfica, e dela catalisadora, parece-
nos relevante, a tal ponto que a partilhamos.
Em 1988, o historiador brasileiro Francisco Falcon traou uma panormica
diacrnica da Historiografia Portuguesa at aos nossos dias, publicando-a na revista
17
Cfr. Filipe Rocha Teorias sobre a Histria, Braga: Faculdade de Filosofia de Universidade Catlica Portuguesa, 1982. 18
Antnio Manuel Hespanha Histria Sistema: interrogaes Historiografia Ps-Moderna, in Revista Ler Histria, vol. 9, 1986. 19
Cfr. Jos Maria Amado Mendes Histria como Cincia, Cimbra: Minerva, 1987.
31
brasileira Estudos Histricos20. Existe uma edio portuguesa deste texto, dada
estampa na Revista da Faculdade de Letras do Porto, srie de Histria.
Num trabalho de carcter bem diferente, Jos Mattoso rene um conjunto de
conferncias dadas estampa em 2002, que contemplam textos escritos em 1988 e
outros em 2000. O volume intitula-se A Escrita da Histria. O trabalho deste historiador
essencialmente terico. Debrua-se sobre a escrita da histria, os materiais e os
temas nela envolvidos, sem esquecer o respetivo ensino. Defende que a histria
uma cincia com uma forte componente artstica. No que tange escrita
historiogrfica, comporta um discurso especfico que, segundo Jos Mattoso, alberga
trs momentos: a reunio de marcas e vestgios do passado; a representao mental
dos dados compilados e construdos e a produo discursiva por parte do historiador.
O autor de A escrita da Histria sugere que os cultores de clio devem materializar um
ofcio assente na contemplao, conceito despido, eventualmente, da sinonmia face a
transcendncia ou a irrealismo, ligando-se realidade dos vestgios do passado, que
cabe ao historiador interpretar21.
Em 1988, Ana Leonor Pereira destacou a posio de Antnio Hespanha face
ao papel dos indivduos na Histria. No seu artigo intitulado Problemas atuais da
Histria, a historiadora defende que deve haver um equilbrio entre o individual e o
coletivo na Histria22. Para esta autora, as cincias historiogrficas necessitam de um
discurso do mtodo, ao arrepio da reduo da historicidade a um sistema
unidimensional assente no cientismo. Por outro lado, Ana Leonor Pereira solidariza-se
com a primeira historiografia positivista e o seu alegado repdio do sociologismo,
defendendo que as polticas da historiografia devem situar-se entre a prtica
historiogrfica e a reflexo filosfica23.
Em 1991, Antnio Manuel Hespanha voltou a interrogar criticamente certas
posies historiogrficas de Jos Mattoso, num artigo intitulado A Emergncia da
Histria, publicado na revista Penlope, no qual sublinhou a existncia de dois
problemas na historiografia do visado: a verificabilidade e comunicabilidade dbeis dos
respectivos objectos historiogrficos e o risco de anacronismo, decorrente de uma
hipertrofia da experincia existencial do cultor de clio24.
Quando este artigo de Antnio Manuel Hespanha foi tornado pblico, a
divulgao da Histria encontrava-se na moda no mercado livreiro, nas televises e
20
Cfr. Francisco Falcon A Historiografia Portuguesa, esboo histrico-interpretativo, in Estudos Histricos,vol.1, n.1, Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vragas 1988, pp.79-99. 21
Cfr. Jos Mattoso A Escrita da Histria , Lisboa: Crculo de Leitores, 2002, maxime pp.5;11-22. 22
Ana Leonor PereiraProblemas actuais da Histria, In Revista de Histria das Ideias, volume 11, Coimbra: Instituto de Histria e Teoria das Ideias, Faculdade de Letras, pp. 579-639. 23
Ibid. p. 577. 24
Antnio Manuel Hespanha - A Emergncia da Histria, in Revista Penlope, Fazer e Desfazer a Histria, nmero 5, Lisboa: Edies Cosmos, 1991, pp 9-22.
32
nos jornais. O historiador alerta para alguns perigos e equvocos deste quadro, que se
prendem com a domesticao indesejvel do passado; a legitimao a todo o custo do
presente do historiador; a adequao s categorias profundas de organizao do real,
tendencialmente unidimensional e totalitria; a prtica de uma histria redutora da
diversidade humana.
Por outro lado, faltava realizar uma Histria geral da Histria ou da
Historiografia em Portugal. Em 1996, o trabalho de Jos Maria Amado Mendes, Lus
Reis Torgal e Fernando Catroga foi pioneiro, paradigmtico e estimulante, dado que a
Histria da Histria em Portugal apresenta uma viso de conjunto dotada de uma
profundidade e extenso nunca antes verificadas, e preenche uma lacuna25 no ofcio
de clio. No partilhamos esta designao Histria da Histria e preferimos a que
consagra a Histria da Historiografia, entendendo que exprime melhor a consignao
da escrita historiogrfica como resultado do trabalho dos historiadores e da prtica
historiogrfica, que possuem um carcter cientfico e uma historicidade prpria.
Alternativamente, no prefcio respetiva obra, Lus Reis Torgal, Fernando Catroga e
Jos Maria Amado Mendes consideram que a Histria da Histria cumpre melhor esse
e outros desgnios, mormente aquele mais discutvel que encara a Histria como uma
cincia especial, materializando uma literatura de expresso cientfica. Para os
historiadores imediatamente ante-citados, a Histria da Histria comporta os trs
sentidos do conhecimento histrico: o cientfico, o pedaggico-didtico e o
conhecimento do senso comum (a conscincia histrica, individual e coletiva). Em
nosso entender, a expresso Histria da Historiografia tambm alberga estas
dimenses e torna-se menos equvoca, dado que no se confunde com a Histria
como devir ou realidade histrica.
Ainda em 1996, num artigo publicado numa revista espanhola, Pedro Cardim
foi eventualmente o primeiro historiador de que temos conhecimento a abordar
exclusiva e autonomamente a anlise do discurso historiogrfico como um dos
aspectos centrais no trabalho dos historiadores, que costumavam eximir-se a tratar
conceptual e metodologicamente esta temtica, deixando tal responsabilidade a cargo
de hermeneutas e estudiosos da literatura. O estudo em questo intitula-se Entre
textos y discursos. La historiografa y el poder del lenguaje26.
Ao longo dos anos 90 do sculo XX, incorporando desafios e interrogaes da
historiografia ps-moderna (parcialmente na linha de Jos Mattoso), Maria de Ftima
Bonifcio desenvolveu vrios estudos, de teor diverso, mas portadores de um
25
Cfr. Lus Reis Torgal; Jos Maria Amado Mendes e Fernando Catroga (org.) Histria da Histria em Portugal. Lisboa: Crculo de Leitores, 1996. 26
Pedro Cardim - Entre textos y discursos. La historiografia y el poder de l lenguaje, Cuadernos de Historia Moderna, 17. In Revista da Universidad Complutense de Madrid, 1996, pp. 123-149.
33
denominador comum. Para a autora, as grandes narrativas legitimadoras de um
sentido para a histria e a historiografia foram sendo substitudas por dimenses
tericas intermdias e menores, at consagrao da desintegrao da histria
cientfica. A referida historiadora defendeu, desde 1993, O abenoado retorno da velha
histria, sustentando uma crtica consequente ao estrutralismo braudeliano, tido como
abstrato e exemplo do paroxismo atingido pela histria cientfica, alegadamente
desligada das aes dos homens e da vida das personalidades histricas. Como
antdoto a este impasse, a cultora de Clio encorajou um regresso narrativa e
historiografia como gnero artstico, sujeito a regras internas27.
Em 1999, Ftima Bonifcio radicalizou o seu diagnstico e a defesa da
biografia e do estudo dos acontecimentos, aplicando-os Apologia da Histria
Poltica28. No mesmo ano, a historiadora afastou-se das verses mais radicais do ps-
modernismo, sobretudo da ideia do fim da histria, postulando a existncia e a
necessidade de continuar a analisar A narrativa na poca ps-histrica Maria de
Ftima Bonifcio defendeu, ento, uma soluo ps-moderna moderada, num
momento percorrido por uma desintegrao, pulverizao e fragmentao do objeto
historiogrfico, portadoras de sinais de alarme e perigos, dos quais o historiador teria
que estar consciente para atenu-los e evitar a anarquia total. O nilismo ou o
relativismo infrene so vistos com perplexidade pela historiadora, que defende que a
narrativa historiogrfica se subordina a regras que salvaguardam a existncia de um
referente exterior (a realidade histrica) neste gnero literrio bem diferente da
literatura tout court, dado que esta d livre curso imaginao, enquanto a histria
implica veracidade, verosimilhana e regimes de verdade, na linha de Ricoeur29. Por
seu turno, em 2002, Rui Bebiano defendeu um conjunto de ideas dotado, em nosso
entender, de afinidades com a a perspetiva de Ftima Bonifcio, aprofundando a
importncia, funcionalidade e a historicidade do discurso historiogrfico. O autor
considera que a histria um gnero literrio e no deve haver drama quando se
destaca a necessidade de abordar a narrativa historiogrfica como algo que no
neutro, imparcial ou assptico, veiculando, da forma aos estilos, as posies e
ideossincrasias dos historiadores. O esforo intelectual de Rui Bebiano intitula-se
Sobre a Histria como potica30.
No entanto, boa parte dos trabalhos inventariados at ao momento, com raras
e honrosas excees, so essencialmente epistemolgicos, constituindo reflexes
27
Cfr. Maria de Ftima Bonifcio O abenoado retorno da velha histria. In Anlise Social, n. 122, 1993. 28
Cfr. Maria de Ftima BonifcioApologia da Histria Poltica. Lisboa: Quetzal, 1999. 29
Cfr. Maria de Ftima Bonifcio A narrativa na poca ps-histrica. In, Anlise Social, volume XXIV, n. 150, pp. 11-28. 30
Cfr. Rui Bebiano, Sobre a Histria como potica. In Revista de Histria das Ideias, vol. 21. Coimbra: Instituto de Histria e Teoria das Ideias, 2000.
34
sobre a natureza e o estatuto do conhecimento historiogrfico. Convm tambm
prestar ateno a estudos menos genricos, mais sectoriais e portadores de
abordagens de certo modo mais nitidamente empricas, que inspiraram diretamente a
nossa dissertao, numa linha que privilegia a historicidade do percurso dos cultores
de clio e dos seus trabalhos, a exemplo da prtica historiogrfica materializada por
Vitorino Magalhes Godinho e A.H: de Oliveira Marques, entre outros. A Histria da
Historiografia, em sentido mais restrito, tributria dos trabalhos de Armando Carvalho
Homem, atentos institucionalizao universitria da Historiografia a diversos nveis.
Observamos ainda que as investigaes de Doutoramento nesta rea,
demonstrativas de uma histria da historiografia sectorial, na qual nos inscrevemos,
esto numa fase de desenvolvimento, lento mas sustentado. So disso exemplo os
esforos de Srgio Campos Matos e Isabel Mota. Antes de rastrearmos os trabalhos
destes autores, convm referir a nica tese de licenciatura da qual temos
conhecimento, situvel no mbito da histria da historiografia. Trata-se de um estudo
pioneiro, bastante pormenorizado da autoria de Anbal Barreira, apresentado
Faculdade de Letras do Porto e publicado em 1971, com o ttulo: Aspetos do
pensamento histrico em Portugal no sculo XIX31. Em 1971, o autor deu estampa
um artigo sobre Jos Anastcio de Figueiredo, publicando oito anos volvidos outro,
desta vez acerca de Joo Pedro Ribeiro].
Em 1990, Srgio Campos de Matos publicou a sua dissertao de mestrado,
intitulada Histria, mitologia, imaginrio nacional. A Histria no curso dos liceus (1895-
1939), na qual se debruou sobre a historiografia de divulgao no ensino mdio,
analisando e criticando fontes primria diversas, de modo a entender o contributo dos
manuais escolares para a legitimao e institucionalizao da histria como saber
construdo, dando conta dessa construo tornando evidentes prticas
historiogrficas, discursos e representaes, na sequncia do levantamento exaustivo
de uma problemtica inerente s funes e ao estatuto da historiografia de divulgao
e dos seus cultores. Este historiador concilia uma heurstica rigorosa com uma
hermenutica que situa a histria da historiografia no mbito da histria da cultura.
Esta metodologia foi testada e aprofundada, oito anos volvidos, na Dissertao de
Doutoramento do seu autor, intitulada, Historiografia e memria nacional no Portugal
do sculo XIX (1846-1898)32. Neste trabalho, o seu autor desenvolveu um aparelho
conceptial complexo, aplicando-o a um universo documental mais vasto,
correspondente a um amplo espectro da historiografia de divulgao, nomeadamente
as Histrias de Portugal publicadas por estrangeiros. O historiador desenvolveu os
31
Anbal BarreiraAspectos do pensamento histrico em Portugal no sculo XIX. Porto: Faculdade de Letras, 1970. [Dissertao de Licenciatura em Histria] 32
Srgio Campos Matos Historiografia e memria nacional no Portugal do sculo XIX (1846-1898), Lisboa, 1998.
35
conceitos de memria social, cruzando saberes interdisciplinares, partindo de Maurcio
Hlbwacks at s tendncias mais recentes e atuais. Fez o mesmo quando distinguiu
Nacionalismo de Patriotismo e analisou as diversas modalidades e representaes e
correntes nomeadamente acerca das origens da nacionalidade.
Em 2001 foi publicada a dissertao de doutoramento de Isabel Ferreira da
Mota, intitulada Academia Real da Histria: a histria e os historiadores na primeira
metade do sculo XVIII33. Trata-se de um trabalho alicerado numa exaustiva
pesquisa de fontes, assente numa cuidadosa crtica documental.
No ano de 2004 foi dada estampa a dissertao de doutoramento de Carlos
Maurcio, intitulada A Inveno de Oliveira Martins34. Neste estudo, o seu autor
debrua-se sobre o percurso pessoal e o discurso historiogrfico de um dos pioneiros
da historiografia portuguesa.
H ainda que assinalar, sem qualquer exaustividade, as provas de Agregao
de Joo Francisco Marques, Mestrados como o de Joo Paulo Avels Nunes, Sofia
Gomes da Costa ou Eurico Dias.
Quanto s primeiras, Joo Francisco Marques realizou um trabalho pioneiro
sobre a institucionalizao da Teoria da Histria como disciplina acadmica, intitulado
Teoria da histria e do conhecimento histrico: programa, contedos e mtodos de
uma disciplina da Licenciatura em Histria, apresentado Faculdade de Letras do
Porto em 199035.
No que respeita aos mestrados, Joo Paulo Avels Nunes ocupou-se da
evoluo de uma disciplina, a Histria Econmica e Social, lecionada na Faculdade de
Letras de Coimbra, a partir de 1911. Analisou ampla e pormenorizadamente um
conjunto extremamente amplo de documentos, de forma a aproximar-se da
historicidade do objeto de estudo, consultando e abordando a legislao que regulava
as Universidades, os currculos, os sumrios de aulas, a correspondncia e a
bibliografia dos docentes. O historiador desenvolveu uma aprofundada crtica de
fontes e procurou perceber uma questo especfica relacionada com a ascenso e
queda do paradigma historicista neo-metdico36.
Por seu turno, Eurico Gomes Dias, em 2002, dedicou-se s construes da
Idade Mdia em dois peridicos Oitocentistas: O Panorama e o Archivo Pittoresco.
Trata-se de um estudo que se centra em representaes historiogrficas, trabalhando
33
Isabel Maria Henriques Ferreira da Mota Academia Real da Histria: a histria e os historiadores na primeira metade do sculo XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras,2001. [Dissertao de Doutoramento]. 34
Cfr. Carlos Maurcio A inveno de Oliveira Martins. Lisboa:Imprensa nacional Casa da Moeda, 2004. 35
Cfr. Joo Francisco MarquesTeoria da histria e do conhecimento histrico: programa, contedos e mtodos de uma disciplina da Licenciatura em Histria. Porto: FLUP, 1990 [Relatrio para a agregao em Histria]. 36
Cfr. Joo Paulo Avels Nunes A Histria Econmica e Social na Faculdade de Letras de Coimbra. Ascenso e queda do paradigma historicista da escola neo-metdica. Coimbra: Faculdade de Letras, 2003 [Dissertao de Mestrado em Histria].
36
tematicamente uma poca histrica, a medieval, e escolhendo fontes primrias,
pormenorizada e escrupulosamente abordadas, pertencentes ao sculo XIX. Esta
investigao de Eurico Dias situa-se no mbito da histria da imprensa, cruzando-a,
implicitamente, com a histria da historiografia. A transcrio e exegese documentais
so a base metodolgica deste estudo37.
Em 2004, Sofia Gomes da Costa debruou-se sobre a Vida e Obra do Conde
de Sabugosa (1845-1923): Questes Historiogrficas Relacionadas com a Idade
Mdia38. Neste trabalho, a autora recolhe extensa documentao sobre a vida e obra
do Conde de Sabugosa, sublinhando a respetiva conceo de histria, as
metodologias utilizadas ou a presena de temticas pertencentes Histria Medieval e
Histria moderna.
Em 2006, fora do mbito de Mestrados e doutoramentos, Judite de Freitas
apresentou uma comunicao ao colquio realizado na Universidade Fernando
Pessoa, intitulado Cidadanias: Prticas e discursos.39 A historiadora pronunciou-se
sobre os desafios atuais do ofcio de clio. No ano seguinte, foi publicado um artigo da
mesma autora sobre dois arabistas: David Lopes e Pedro de Azevedo40.
Em 2010, Srgio Campos de Matos e Joana Gaspar de Freitas colaboraram
num projecto internacional, dirigido por Ilaria Porciani e Lutz Raphael, intitulado, Atlas
of European Historiography The making of a profession 1800-2005,dando estampa o
artigo denominado Portugal, que consiste numa panormica da historiografia
Portuguesa desde a Academia Real da Histria at atualidade. Este trabalho inclui
um clculo do nmero de historiadores profissionais portugueses, desde 1928 (eram
catorze) at 2005 (altura em que havia 135)41.
Recuemos ligeiramente na diacronia, retomando, neste momento, a referncia
a trabalhos de ndole menos emprica, dotados de cariz essencialmente terico-
conceptual, dos quais nos distanciamos mais, mas que so extremamente teis para a
compreenso dos conceitos historiogrficos operatrios e foram publicados na ltima
dcada. No ano 2001, Antnio Horta Fernandes concluiu a sua tese de doutoramento
37
Eurico Gomes Dias A Construo da histria medieval portuguesa na imprensa peridica portuguesa de oitocentos: Os exemplos de O Panorama e do Archivo Pittoresco. Porto: Faculdade de Letras do Porto, 2002 [Dissertao de Mestrado em Histria Medieval]. 38
Sofia Gomes da Costa Vida e Obra do Conde de Sabugosa (1845-1923): Questes Historiogrficas Relacionadas com a Idade Mdia. Porto: Faculdade de Letras do Porto, 2004 [Dissertao de Mestrado]. 39 Este trabalho foi publicado em 2008, na Revista da Faculdade de Letras do Porto.Cfr: Judite de Freitas Ser historiador e cidado hoje. In Revista da Faculdade de Letras, Histria, volume 9, 3 srie, Porto: Faculdade de Letras, 2008, pp.357-374. 40 Cfr. Judite de Freitas David Lopes et Pedro de Azevedo: Deux contrastants arabo-islamologues dans l hitoriographie portugaise.In Portugal Marrocos.Dilogos culturais, Porto: Afrontamento, 2007, pp. 63-74. 41
Cfr. Srgio Campos de Matos e Joana Gaspar de Freitas Portugal, in AAVV, Atlas of European Historiography The Making of a profession, Ilaria Porciani, Lutz Raphael, New York: European Science Foundation/ Palgrave Macmilan, 2010, pp.122-124.
37
sobre a teoria da histria em Ortega e Gasset42. Nesse ano, A. Marques de Almeida
debruou-se sobre A escrita da Histria: questes de teoria e de problematizao43.
Ainda em 2001, Fernando Catroga estudou a interligao de temticas como Memria,
Histria e Historiografia44. Dois anos volvidos, o mesmo historiador analisou as
Filosofias da Histria, interrogando escatologias e teleologias ao longo da especulao
filosfica acerca do sentido da Histria45. Em 2006, o historiador debruou-se sobre a
diacronia do conceito ciceroniano de Histria Mestra da Vida, concluindo que essa
noo foi abalada na atualidade devido alegada crise da histria46. No entanto, o
referido culor de Clio continua a defender a necessidade de uma funo social e cvica
da histria. Em 2010, Fernando Catroga abordou a memria histrica e historiogrfica,
uma vez mais, num trabalho intitulado Os passos do Homem no Restolho do Tempo47.
Bem diferente o labor intelectual de Lus Ado da Fonseca, que, em 2004, se
pronunciou-se sobre a inevitabilidade e necessidade de existncia das narrativas
historiogrficas, num trabalho de natureza terica bastante oportuno e fundamentado,
assente na reflexo crtica acerca dos excessos do ps-modernismo, parcialmente
encarado como um dos responsveis da crise na dimenso social da escrita
historiogrfica48.
Em 2007, Francisco Manuel Ferreira de Azevedo Mendes concluiu uma tese de
Doutoramento na qual se debruou filosoficamente sobre temticas como crise na
teoria contempornea da Histria. Analisou os conceitos de passividade e teoria
historiogrfica. Trabalhou a questo da ps modernidade na Historiografia
Internacional, no se pronunciando sobre o caso portugus. O autor estudou uma
conceo historiogrfica prpria da filosofia crtica ou epistemolgica da histria,
comum a personalidades como Raymond Aron, Henri Irene Marrou, Michel Foucault,
Paul Ricoeur e Paul Veyne49.
Em 2010, Diogo Ramada Curto reuniu uma srie de artigos escritos
anteriormente, subordinados teoria da histria e ao mtodo histrico. Este trabalho
intitula-se Mltiplas Faces da Histria. Desde o ttulo, o historiador perfilha uma viso
42 Cfr. Antnio Manuel Horta Fernandes A teoria da histria em Ortega y Casset. Lisboa: Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2001 [Dissertao de Doutoramento em Histria e Teoria das Ideias, Especialidade de Histria e Teoria dos Paradigmas]. 43
Cfr. Antnio Marques Almeida A escrita da Histria: questes de teoria e de problematizao. In Clio, Revista do Centro Histrico da Universidade de Lisboa, nova srie, vol. 5. Lisboa, 2000, pp. 9-18. 44
Cfr. Fernando Catroga - Memria, Histria e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001. 45
Cfr. Fernando Catroga - Caminhos do Fim da Histria. Coimbra: Quarteto, 2003. 46
Cfr. Fernando Catroga - Ainda ser a histria mestra da vida? In Estudos Ibero-Americanos, n. 2. Porto Alegre: Pontifcia Universidade Catlica, pp. 7-34. 47
Fernando Catroga Os passos do Homem no Restolho do Tempo Coimbra: Almedina, 2010. 48
Cfr. Lus Ado da Fonseca - As relaes entre histria e literatura no contexto da actual crise da dimenso social da narrativa historiogrfica, in Ftima Marinho (org.), Literatura e Histria, vol. 1. Porto: Departamento de Estudos Portuguese e Romnicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004. pp. 267-287. 49
Cfr. Francisco Azevedo MendesCrise e passividade na teoria contempornea da histria. A transformao do tpico da Coerncia Historiogrfica. Braga: Universidade do Minho, 2007 [Dissertao de Doutoramento em Histria/Teoria e Mtodos].
38
polidrica acerca do seu objeto de estudo, incentivando uma interdisciplinaridade com
a Sociologia das representaes e a Antropologia do simblico. O autor confere
relevncia s condies de produo dos discursos historiogrficos relacionadas com
os contextos inerentes ao ofcio do historiador. Especifica trs: o contexto nacional, a
crtica ao nacionalismo e a transcendncia da nao. Por outro lado, Ramada Curto
advoga que o atraso historiogrfico portugus que diagnostica deve ser ultrapassado
pelo controlo de modelos e mtodos de pesquisa e no pela pura e simples
importao respetiva. O autor considera que a explicao e a interpretao so
fundamentais em historiografia, que deve ter em conta uma conceo experimental e
no reprodutiva da histria, assente numa tenso entre o individual e a estrutura. Por
outro lado, Ramada Curto recebe influncias do filsofo Foucault, do historiador Roger
Chartier e do antroplogo Cliford Greetz, entre outros50.
Ainda em 2010, Maria Manuela Tavares Ribeiro coordenou um volume
intitulado Outros Combates pela Histria, resultante de um colquio homnimo
organizado pelo Centro de Histria do sculo XX, da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra. Numa das intervenes, transformadas em artigos,
Fernando Catroga pronunciou-se sobre o Valor Epistemolgico da Histria da Histria,
defendendo o carcter mediatizado do conhecimento historiogrfico, da reflexo sobre
ele e a importncia da interpretao e da subjetividade dos historiadores neste
processo51.
Por outro lado, acercando-nos, de novo, do tema de eleio desta dissertao,
as revistas de Histria do sculo XX no tm merecido, segundo cremos, estudos de
conjunto no seio da Histria e Historiografia da Imprensa, que muito devem aos
levantamentos de Lcia Veloso e s anlises, entre outros, de Jos Manuel
Tengarrinha, impulsionador do ltimo trabalho citado.52
Conhecemos apenas uma bibliografia muito til de revistas de Histria dos
sculos XIX e XX, por Rosalina da Silva Cunha, que cita a Revista de Histria, que nos
vai ocupar. Apenas existe, julgamos ns, um pequeno mas precioso estudo
exclusivamente acerca da Revista de Histria, realizado no mbito de uma disciplina
de ps-graduao de um Mestrado em Histria Contempornea, realizado na
50
, Diogo Ramada Curto Mltiplas Faces da Histria, Lisboa: Livros Horizonte, 2010. 51
Cfr. Fernando Catroga Valor Epistemolgico da Histria da Histria, in Manuela Tavares Ribeiro (coord.) - Outros Combates pela Histria. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010. 52
Em 2011, Maria Sidnia Tavares realizou uma dissertao de mestrado sobre o Archivo Histrico Portuguez, que contribui para atenuar a lacuna assinalada, no que tange a trabalhos afins. Sobre este assunto ver: Maria Sidnia dos Santos Nunes Tavares Descobrimentos e Navegaes no Archivo Histrico Portugus, Lisboa: Faculdade de Letras, 2011 [Dissertao de Mestrado em Histria dos Descobrimentos e da Expanso].
39
Faculdade de Let